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PRIMEIRA SESSAO (segunda-feira) (As duas primeiras sessoes estao haseadas em notas incompletas) Mrs K. havia deixado preparades alguns brinquedos pequenos, um bloco de papel, lapis e giz sobre uma mesa com duas cadeiras. Quando se sentou, Richard também sentou, sem dar atencdo aos brinquedos e olhando-a de uma maneira avida e cheia de expectativa, obviamente esperando que ela dissesse alguma coisa. Ela sugeriu que ele sabia por que estava vindo vé-la: tinha algumas dificuldades, para as quais queria ajuda. Richard concordou e imediatamente comecou a falar sobre suas preocupa- ¢6es (Nota 1). Tinha medo dos meninos que encontrava na rua e de sair sozinho, e esse medo estava pioranda cada vez mais, fazendo-o odiar a escola. Também pensava muito sobre a guerra. Claro que sabia que os Aliados iriam vencer e nao estava preocupado, mas nao era horrivel o que Hitler fazia com as pessoas, especialmente as coisas terriveis que ele fez com os poloneses? Sera que tinha a intencdo de fazer o mesmo aqui? Mas ele, Richard, tinha certeza que Hitler seria derrotado. (Ao falar sobre Hitler foi dar uma olhada num grande mapa que estava pendurado na parede.) ... Mrs K. era austriaca, nao era? Hitler foi horrivel com 1 Ci. “Sobre a teoria da ansiedade e da culpa” (1948, Obras Completas, 11). 24 PRIMEIRA SESSAO os austriacos, embora ele mesmo fosse austriaco. ... Richard também contou sobre uma bomba que tinha caido perto do jardim de sua outra casa (em "Z"). A pobre Cozinheira havia ficado em casa completamente sozinha. Fez uma descrigdo dramatica do que tinha acontecido. Os danos reais nao foram grandes; apenas algumas janelas que estilhacaram e a estufa no jardim que desabou. A pobre Cozinheira devia ter ficado aterrorizada; foi dormir no vizinho. Richard achava que os canarios em suas gaiolas deviam ter ficado abalados ¢ muito assustados. ... Falou noyamente do tratamento cruel que Hitler dispensava aos paises conquistados. ... Depois disso, tentou lembrar se tinha alguma outra preocupacao que ainda nao tivesse mencionado. Ah, sim, freqtientemente pu- nha-se a imaginar como ele era por dentro, ¢ como seriam as outras pessoas por dentro. Ficava intrigado com o modo como 0 sangue corre. Se a gente ficasse de cabeca para baixo por muito tempo, e todo o sangue descesse para a cabeca, a gente morreria? Mrs K. perguntou se as vezes ele também se preocupava com a mae’. Richard contou que muitas vezes sentia medo a noite, ¢ até quatro ou cinco meses atras ficava realmente aterrorizado. Ultimamente também andava se sentindo "so e abandonado", antes de pegar no sono. Freqiientemente se preocupava com a satide da Mamae: algunas vezes ela nao estava hem. Uma vez foi trazida de maca para casa, depois de um acidente: tinha sido atropelada. Isso aconteceu antes de ele nascer; haviam-lhe contado o fato, mas ele sempre pensava sobre isso. ... A noite, muitas vezes temia que um homem mau — uma espécie de vagabundo — viesse e raptasse a Mama durante a noite. Imaginava entdo como ele, Richard, iria ajudéa, queimando 0 vagabundo com Agua fervendo ¢ deixando-o inconsciente; ¢ se ele, Richard, tivesse que morrer, nao se importaria muito — nao, ele se importaria muito —, mas isso nao o impediria de salvar a Mamie Mrs K. perguntou como ele achava que o vagabundo entraria no quarto da Mamae. Richard disse (depois de alguma resistencia) que ele poderia entrar pela jancla: talvez a arrombasse. Mrs K. perguntou se ele também imaginava que o vagabundo pudesse machucar a Mamae. Richard (relutantemente) respondeu que achava que o homem poderia machucé-la, mas que cle, Richard, iria salvéla. 1 Sua mie tinha-me contado que ele ficava muito preocupado quando havia algo de errado com ela. Uma informacao como esta nao deve ser usada com frequéncia e somente deveria fazer parte da interpretagao no caso de encaixarse muito bem no material. E mais seguro confiar apenas no material fomecido pela crianga, porque de outra forma ela poderia suspeitar que o analista mantém com os pais um contato intimo. Mas, neste caso particular, senti que o menino estava excepcionalmente pronto para falar sobre todas as suas preocupagoes. NARRATIVA DA ANALISE DE UMA CRIANGA 25 Mrs K. sugeriu que o vagabundo que machucaria a Mamae durante a noite era para cle muito parecido com Hitler, que tinha amedrontado a Cozinheira no bombardeio aéreo e que maltratava os austriacos. Richard sabia que Mrs K. era austriaca, e assim ela também seria maltratada. A noite ele poderia ter tido medo de que, quando seus pais fossem para a cama, alguma coisa pudesse acontecer entre eles com seus genitais que machucasse a Mamie (Nota II). Richard ficou surpreso e amedrontado. Parecia nao compreender 0 que a palavra "genital" significava’. Até esse ponto ele obviamente havia entendido e tinha ouvido com sentimentos mistos. Mrs K. perguntou se ele sabia o que ela queria dizer com "genital". Richard primeiro disse que nao, depois admitiu que achava que sabia. A Mamie tinha lhe contado que os bebés cresciam dentro dela, que ela possuia ovinhos ali e 0 Papai colocava algum tipo de fluido la dentro que fazia os ovinhos crescerem. (Conscientemente ele parecia nao ter idéia do ato sexual, nem um nome para os genitais*). Continuou dizendo que o Papai era muito legal, que nao faria nada a Mamie. Mrs K. interpretou que ele poderia ter pensamentos contraditorios sobre 0 Papai. Embora soubesse que o Papai era um homem bondoso, a noite, quando estava com medo, poderia temer que o Papai estivesse fazendo algum mal a Mamae. Quando pensava no vagabundo, nao lembrava que o Papai estava no quarto com a Mamie, que a protegeria; ¢ isso porque, sugeriu Mrs K., ele sentia que era o proprio Papai que poderia machucar a Mamie. (Naquele momento Richard mostrou-se impressionado e evidentemente aceitou a interpretacdo.) Durante o dia achava que o Papai era bonzinho, mas durante a noite, quando ele, Richard, nao podia ver seus pais € nao sabia o que eles estavam fazendo na cama, poderia ter sentido que o pai era mau e perigoso e que todas as coisas LCE Intedugao. 2 Eu havia perguntado a mae de Richard como ele costumava designar seus orgs genitais, ¢ ela dissera que ele ndo tinha nenhuma expresso ¢ nunca se referia a cles. Parecia que tampouco tinha nomes para os atos de urinar ¢ defecar; mas quando introduzi as palavras “cocé” “xixi™, ealgum tempo mais tarde “fezes”, ele nao teve dificuldade para compreender essas expresses. Num caso em que a repressae, favorecida pelo meio, foi tao longe a ponto de nao existir um nome para 03 b1g40s genitais ou para as fungoes fisiologicas,o analista tem que introduzir palavras para designé-los. Sem davida a crianca sabe que possui um genital, como sabe que produz urina e fezes, © as palavras introduzidas farzo a associacao com esse conhecimento, como este caso demonstrou, Da mesma forma, a expressao para o ato sexual teve que ser introduzida comecando pela descricao do que ele na verdade inconscientemente supunha que seus pais estivessem fazendo a noite. Gradualmente fai usando a expresso "relacdes sexuais” e mais tarde, também, “ato sexual” *Melanie Klein utiliza “big job” e “tittle job” para se referir « fezes e urina, respectivamente. Sio expressées muito usadas pelas criancas inglesas. Nao havendo equivalente em portugues, opte- mos pelas palavras “coc” e 'xixi”. (N. da T.) 26 PRIMEIRA SESSAO terriveis que aconteceram com a Cozinheira, bem como a balancar ¢ quebrar das Janelas, estivessem acontecendo com a Mamie [Cisao da figura paterna em boa ema]. Tais pensamentos poderiam estar em sua mente, embora ele nao estivesse de forma alguma consciente deles. Agora mesmo ele tinha falado das coisas terriveis que o austriaco Hitler fizera aos austriacos. Com isso, ele queria dizer que Hitler, de certa forma, estava maltratando seu proprio povo, incluindo Mrs K.,, da mesma forma que o Papai mau maltrataria a Mamie. Richard, embora nao o tenha dito, pareceu aceitar essa interpretagao (Nota III). Desde o inicio da sessao ele parecia extremamente desejoso de contar tudo sobre si, como se tivesse esperado essa oportunidade por muito tempo. Embora Yepetidamente demonstrasse ansiedade e surpresa, e rejeitasse algumas das interpretagoes, perto do fim da sessio toda a sua atitude tinha se alterado e ele estava menos lenso. Disse que tinha reparado nos brinquedos, no bloco e nos lapis sobre a mesa, mas que nao gostava de brinquedos, gostava de conversar € de pensar. Mostrou-se amistoso ¢ satisfeito ao se despedir de Mrs K. e disse que estava contente de voltar novamente no dia seguinte (Nota IV). otas referentes @ Primeira Sessao 1 Nao € incomum que uma crianca no periodo de latencia pergunte por que est vindo a anélise. Muito provavelmente ela ja fez essa pergunta em casa, ¢ é til discutir 'sle Ponto antes com a mde, ou com os pais. Se existem dificuldades que a propria crianca ‘econhece, entdo a tesposta € simples; o analista responderia que é por causa dessas lificuldades que ela the é trazida para tratamento. Com Richard, eu mesma apresenteia [WestAo; conclui que isso € vtil em alguns casos em que a crianga, embora evidentemente lesejando informacao, néo faria ela mesma a pergunta. De outra forma, podem decorrer huitas sessdes até que o analista tenha uma oportunidade de explicar as tazoes do ratamento, Existem, no entanto, criancas com quem teriamos primeiro que buscar no aaterial inconscieme seu desejo de saber sobre sua relacdo com o analista ¢ sua ompreensao de que precisa de andlise e de que ela é proveitosa. (Dei exemplos do inicio € uma andlise de uma crianca no periodo de latencia em 4 Ppsicandlise de criancas, apitulo IV.) IL. A opiniao dos analistas difere no que diz respeito a0 momento na transferéncia m que o material deve ser interpretado. Embora acredite que nao deveria haver nenhuma 2ssdo sem alguma interpretacao transferencial, minha experiéncia mostrou-me quenem tmpre € no inicio da interpretacao que a transferéncia deveria ser abordada. Quando 0 aciente esta profundamente ocupado com suas relacdes com o pai ou a mae, irmao ou ma, com suas experiéncias do passado ou mesmo do presente, € necessério dar-lhe toda portunidade de expandir esses assuntos. A referencia ao analista, entdo, tem de vir osteriormente. Em outras ocasides, o analista pode sentir que, independentemente do e 0 paciente esteja falando, toda a énfase emocional esta na sua relacao com o analista. este caso, a interpretacao referir-se-ia primeiramente a transferéncia. E desnecessario zer que uma interpretacdo transferencial sempre significa referir as emogdes vivencia- NARRATIVA DA ANALISE DE UMA CRIANCA 27 das com 0 analistaa objetos anteriores. De outro modo, seu propésito nao sera cumprido a contento. Esta técnica da interpretagao transferencial foi descoherta por Freud nos primordios da psicandlise e conserva toda a sua importancia. A intuicéo do analista deve guidlo para reconhecer a transferéncia em material no qual ele possa nao ter sido diretamente mencionado. Il. Ao longo desie relato, indico, em varios pontos, a resposta de Richard a minhas interpretacdes: algumas vezes essas respostas eram negativas, expressando mesmo forte objecdo; outras, expressavam total concordancia; e, outras vezes, sua atenczo vagava ¢ ele parecia nao me ouvir. Entretanto, mesmo quando sua atengo vagava, seria incorreto supor que ele ndo reagia de todo. Mas com freqtiencia nao registrei, ou nao pude registrar, © efeito momentanco que a interpretacdo teve sobre ele. Enquanto eu falava a crianga raramente ficava sentada silenciosamente. Ora se levantava e pegava um brinquedo, um lapis ou 0 bloco; ora intercalava algum comentirio, que poderia ser uma outra associagao ou uma ditvida. Assim, minhas interpretacoes varias vezes podem parecer mais longas € encadeadas do que de fato eram. TV. E pouco comum que uma crianca no periodo de laténcia apresente, nas primeiras sessoes, o tipo de material que Richard produziu: conseqitentemente, as interpretacdes em outros casos seriam também diferentes. O conteddo das interpretacdes € 0 momento em que sao feitas variam de paciente para paciente, conforme o material apresentado ¢ a sitaacao emocional predominante. (Cf. A psicandlise de criancas, capitulo TV.)

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