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Os cendrios da Repiiblica. O Brasil na virada do século XIX para o século XX Margarida de Souza Neves Professora Associada do Departamento de Histéria da PUC-Rio. Vertigem ¢ aceleragio do tempo. Esta seria, sem divida, asensagio mais for- te experimentada pelos homens ¢ mulheres que viviam ou circulavam pelas ruas do Rio de Janeirona virada do século XIX para oséculo XX. Ainda que de forma menos contundente, o mesmo sentimento estaria presente mas prin- cipais cidades brasileiras, que, tal como a cidade-capital,' cresciam coma nunca, tornavam complexas suas fungées ¢ recebiam levas de imigrantes curopeus que atravessavam o Atlintico cm busca do sonho de fazer a Améri- ca. Tudo parecia mudar em ritmo alucinante. A politica ¢ a vida cotidiana; as idéias © as praticas sociais; a vida dentro das casas ¢ 0 que se via nas rias. Como nas subidas, descidas, voltas ¢ reviravoltas de uma montanha-russa estonteante, na feliz imagem utilizada por Nicolau Seveenke (2001, p. 11- 22), o progresso, tudo parecia arrebatar em sua corrida desenfreada. Marasmo. E um tempo que parecia transcorrer tio lentamente que sua marcha inexordyel mal cra perecbida. Assim, nas fazendas, nas vilas do inte- rior ¢ nos sertées do pais, essa mesma virada do século seria percebida. Ali, nada parecia romper uma rotina secular, firmemente alicergada no privilé~ gio, no arbitrio, na légica do favor, na inviolabilidade da vontade senhorial* dos coronéis ¢ nas rigidas hicrarquias assentadas sobre a propriedade, a vio- léncia eo medo. Tudo parecia ser sempre igual, ¢ o tempo, ao menos aparen= temente, ainda seguia o ritmo da natureza. Como nas memérias de infincia de Graciliano Ramos, a vida transcorria lenta ¢ sem outras alteragdes que no aquelas que distinguiam a estagio das chuvas daquela da estiagem: Mergulhei numa comprida manhi de inverno. © agude apojado, a roga ver- de, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos, ficaram- me fia alma. Depois veio a seca. Arvores pelaram-se, bichos morreram, 0 sol 13 0 BRASIt MEPUBLICANO crescen, bebeu as dguas, ¢ ventos mornos espalharam na terra queimada uma pocira cinzenta. Olhando-me por dentro, percebo com desgosto a segunda paisagem. Devastagio, calcinagio. Nesta vida lenta sinto-me coagido entre duas situag6cs contradicérias — uma longa noite, um dia imenso ¢ enervante, favorivel A modorra (Ramos, 1978, p. 20). primeira vista opostos pelo vértice, o cenario do progresso ‘montado na cidade que, apds o 1$ de novembro, assume foros de capital federal ¢ 0 cendrio do interior do pais, onde a Republica recéi “que 0 correio de quando em vea faz chegar, a bandeira nacional hasteada nas festas, as notas ¢ moedas que pouco circulam e algumas das datas patrias festejadas com fanfarra bandcirolas. ‘Aprofundar na relagao aap sedans entre aqueles que viveram ‘tempo conturbado do ii do Estado imperial ¢ do inicio da Republica, Euclides da Cunha experimentou na prépria vida ¢ trouxe para a sua obra o paradoxo entre os dois cendrios da Repiblica ¢ os impasses do sonho republicano, Nascido em uma fazenda em Santa Rita do Rio Negro, interior da entao provincia fluminense, peregrinou desde muito pequeno pelo Brasil afora em razio da morte precoce de sua mac ¢, jd adulto, ao sabor dos deveres de offcio que assume come militar, come engenhciro ou como jornalista. Ainda meni- no, € levado, da Fazenda Saudade em que nascera, para a cidade serrana de Teresépolis; dali a Sio Fidélis, para a fazenda de um tio, coronel da Guarda Nacional. Depois, muda-se para Salvador, na Bahia, onde vive entre os 11 ¢ 08 12 anos em companhia dos avés paternos. Transfere-se entio para o Rio de Janeiro em 1879, onde, mais tarde, ingressa na Escola Militar, sem no entanto conelul-la em fungao de um famoso episddio ocorrido no més de novembro de 1888, cm que ostenta suas convicgées republicanas diante de Tomas Coe- tho, ministro da Guerra do governo imperial. Ja adulto, continuard o périplo pelo Brasil: $40 Paulo, novamente o Rio de Janeiro, interior de Minas Gerais, 16 OS COMARIOS DA REROMLICA ¢ outra vez Sao Paulo, onde retoma a colaboragio com a imprensa no periddi- co O Estado de §. Panto, que o enviard como repdérter 4 cena do mais desconcertante confronto a que fez frente a Repablica em seus primeiros anos: aquele que resultou do enfrentamento, no interior da Bahia, entre o Exército nacional ¢ os sertancjos que buscavam nas pregagécs de Anténio Conselheiro a esperanga que o Estado republicano — tal como a monarquia — insistia em negar-lhes no plano dos mais elementares direitos de cidadania. Depois da expedigao Saldcia sagrada de Canudos, para o eseritor uma verdadeira cpifania em que o Brasil revelow-se por inteiro, Euclides seguiria ainda a peregrinagio que nao cessava de leva-lo ¢ de trazé-lo do cendrio do progresso montado no Rio de Janeiro para os grotées mais remotos do pais; das vilas pacatas para as capitais dos estados; da rorina das fazendas ¢ plantagées para a exuberdncia indomével da selva amazénica, Depois de testemunhar a tragédia de Canudos e antes de sua morte viclenta em 1907, aos 43 anos de idade, Euclides viajaria ainda por todo o interior de Sio Paulo como engenheiro de obras piblicas; conheceria a tranqiilidade da vida em Guaratingueté ¢ Lorena; viveria no Guarujd enquanto trabalhava em Santos; percorreria boa parte da Amazénia, chegaria as nascentcs do rio Purus ¢ regressaria a vida agitada da capital fede- ral j4 travestida em Paris tropical pela reforma Pereira Passos. Por ter testemunhado o fim tragico daquilo que ele préprio qualificou de A nossa Vendéia (Cunha, 1966, vol. I, p. 575), Euclides pode escrever Os ser- tes, um dos mais lticidos e draméticos Retratos do Brasil do inicio do século passado, Nesse livro, engastada no meio de uma rebuscada descrigio da caa- tinga ¢ do homem sertanejo escrita conforme os cdnones positivistas em que fora formado, aparece uma rara sintese que condensa o contraste entre os ideais de progresso ¢ civilizagiio que pautam os sonhos de seu tempo e a dura reali- dade do Br |. Destilada no incessante ir-e-vir, na experiéncia na vida familiar entre os corondis das fazendas fluminenses ¢ da Bahia, no Exército, no jornal €no trabalho como engenheiro ¢ funcionario do governo pelo Brasil afora, esse trecho daquela que é uma das obras maiores da literatura brasileira ofere- ce uma cartografia simbélica dos dois cendrios republicanos: Estamos condenados 4 civilizagao. Ou progredimos ow desaparecemos, A afirmativa é segura. [..] 17 9 BRASIL MEPUBLICANO ‘Vivendo quarrocentos anos no litoral yastissimo, em que palejam reflexos de vida civilizada, tivemos de improviso, como heranga inesperada, a Repabli- ca. Ascendemos de chofre, arrebatados no caudal dos ideais modernos, dei- xando na penumbra secular em que jazem no dmago do pais um tergo da nossa gente. lludidos por uma civilizaglo de empréstimo, respingando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos cddigos arganicos de ou- tas nagdes, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligei- ro com as exigéncias da nossa propria nacionalidade, mais fundo fundo o contraste ‘entre 0 nosso modo de viver € 0 daqueles rudes patricios mais estrangeiros nessa terra que os imigrantes da Europa. Po So no-los separa um mar, separam-no-los | ints séculos (Cunha, 1966, vol. 2, p. 141 ¢ 231), Na esteira dessas palavras, % é)cm primeiro lugar, re- fletir sobre a Republica, regime pol ico que Euclides da Cunha afirmaya ser, no caso brasileiro, uma heranga inesperada, bem como sobre as relagdes e1 en- Ire a nova institucionalidade implantada em 1889 ¢ os sonh es30 € civilizagda, Sem esquecer que, para o autor de Os sertées, o primeiro termo esta associado a uma condenagdo inexordyel c o segundo constivui-se em um ideal de empréstimo, E também, em segundo lugar, aprofundar nessa curiosa geometria cuclidiana que mede em séculos a distancia entre. 9 dmago do pats €0 litoral vastissimo, representagées espaciais dos dois cendrios da Repibli- ca da perspectiva do autor. E ainda — ¢ sobretudo — pensar como, apesar das transformagdes de toda ordem que caracterizam aquela virada de século, intransponivel o fosso que exclui da arena politica formal os ne- ose mant as as hicrarquias que subordinam aos interesses ¢ a0 mando dos que ‘imprimem diregio 4 Repiiblica aqueles que Fnclides, num calculo talvez oti mista, estima serem son terco.da nossa gente, © CAUDAL DOS IDEAIS MODERNOS Ao associar discursivamente 6 momento do advento da Republica no Brasil ds idéias de improviso, de arrebatamento, de ascensdo, de velocidade © de inesperado, Euclides da Cunha retne ¢ resume um sentimento fortemente presente entre Os seus contemporaneos, em especial entre aqueles $22,651 95 CEWNARIOS DA REPGRLICA homens ¢ mulheres que o censo de 1890 contabilizava como sendo a popu- lagio da cidade do Rio de Janciro, De fato, era sob o signo de uma certa pirotecnia de sbbites mudangas que o tempo vivido era percebido na cidade que, ae novembro de 1889, amanhecera como ci republicana. A ‘Arrebatado no caudal dos ideals madernos, o Rio de Janeiro, no fim do século XIX ¢ inicio do século XX, era palco de nio poucas transfor- magées ina esfera pablica e na vida privada. De olhos postas no outro lado, do Atlintico, o Brasil, metonimizado em sua capital, procurava imitar, er faina cega de copistas ¢ fugindo ao transigir mais ligeiro com as exipéncias da nossa propria nacionalidade, nas palavras de Euclides, os modos de viver, os valores, as instituigdes, os scédigos ¢as modas daquelas que ie entio eram fas ideais modernos, condensados no que entao era visto como aasso- clagio indissoltivel entre os conceitos de progresso ¢ de civilizacdo, redesenhavam © quadro internacional, acenavam com a possibilidade de um otimismo sem limites em fungio das conquistas da ciéncia ¢ da téenica, im- punham uma determinada concepeao de tempo ¢ de histéria, ¢ ocultavam aos olhos da grande maioria o reverso de um panorama apresentado, quasc sempre, como uma espécie de parusia terrena na qual at conquistas da técni- ca ¢ do engenho humano transformariam a barbsirie das guerras no reinado da emulagdo entre os paises mais aptos, destinados a anunciar, por todo o orbe, a boa-nova da redencao do atraso. Sio muitas as novidades do tempo. Novos protagonistas asiumem um papel importante no cenirio interna- cional e, ao lado da Inglaterra, que havia sido até entao.a poténcia hegem6nica inconteste, senhora do império onde o sol jamais se punha, ¢ que subordinara a seus interesses boa parte dos jovens paises da América Latina — entre eles 0 Brasil —, outros pafses passam a desempenhar um papel imperialista de desta- que. A Franga, até o perfodo napolednico poténcia eminentemente continen- tal, que ocupara a Argélia desde 1830, alarga seus dominios africanos depois de 1878 na bacia mediterranea, na Mauritinia, na Africa Ocidental, no Gabaio, na ilha de Madagascar; ocupa no Pacifico o Taiti, as ilhas Marquesas ca Nova Caledénia, © passa a dividir com os britinicos territérios significativos no @ PRASIL REFUBLICANG Oriente: Cochinchina, Camboja, Anam, Tonquim e Laos, ocupados entre 1862 ¢ 1893, vio constituir a Indochina Francesa, A Alemanha, unificada em 1870, apossa-se na Africa de Camarées, do Togo ¢ de vastos territérios da Africa sul- ocidental ¢ oriental, além de parte significativa da Nova Guiné ¢ das ilhas do Pacifico a partir de 1878. Simultaneamente, a Itilia, também unificada no mesmo perfodo que a Alemanha, ocupa a Libia, a Eritréia ¢ parte da Somalia no territério africano. A Bélgica planta, em 1908, no coragao da Africa.o Congo Belga, enquanto Portugal ¢ Espanha, hd muito presentes na Africa, aumentam seus dominios. A Holanda manvém os territérios em Sumatra, Java, Bornéu, ilhas Célebes e Nova Guiné, No Extremo Oriente, o Japao rompe o insulamento ¢ ocupa territérios na Coréia ¢ na China. A Riissia expande-se pelos Balcas, pelo Turquestio, pela Pérsia, pela Mongdlia Exterior ¢ pela China. Nas Amé- ricas, os Estados Unidos, considerados como um modelo de pais jovem ¢ em- preendedor, entram na corrida imperialista ¢ estabelecem bases militares ou ‘ocupam, entre 1967 ¢ 1915, o Alasca, o Haval, Guam, Cuba, Haiti, Porto Rico, ilhas Virgens, Nicarégua, Panamd, parte do territério mexicano, algumas ilhas no Pacifico ¢, em 1898, substimem os espanhdéis nas Filipinas, O mapa politi- co do mundo passa a ser outro, ¢ o Brasil nele continua inscrito como pais dependente e periférico, mas nao mais exclusivamente na drea de influéncia inglesa. Outros investimentos ¢ interesses internacionais aqui aportam, notadamente 3 norte-americanos. Novas engrenagens internacionais transformam a economia mundial, as grandes poténcias hegeménicas descobrem, nas areas periféricas — inclusive no Brasil —, um mercado lucrative para aplicagées financeiras ¢ passam a investir fortemente ali, onde a mio-de-obra ¢ barata, os direitos sociais esto longe de serem conquistados € a ‘amatéria-prima é farta € disponivel. © capi- talismo financciro complementa as conquistas dos paises industrializados ¢ ‘os trustes ¢ cartéis dardo novas formas as politicas monopolistas. Por toda parte, novos agentes ¢ novas priticas sociais transformam as cidades. Empresirios e operdrios redesenham os pélos da conf conflitividade so- cial, ¢ se 05 primeiros ostentam riqueza nos 5 saldes c nas festas suntuosas, OS segundos encontram nas greves ¢ nos sindicatos a forma de reivindicar seus direitos, Cresce o niimero das fornunas feitas da noire parao dia, ¢ Balzac, escritor francés que traz para a literatura as transformagées que, entao, afe- 20 Nn 5 O35 CENARIOS DA REPUBLICA tavami tantas vidas, sustenta com argiicia que, por tras de uma grande fortu- na, hd sempre um crime inconfessavel (Balzac, 1965, p. 139). Simétrica € oposta, cresce também a pobreza nas cidades; ji em 1859 Charles Dickens em 1862 Vitor Hugo a transporio para a literatura em Um conto de duas cidades e em Os miserdueis. Os pobres — cada vex mais numerosos nas cida- des — s¢ amontoam em casas ade cémodos, | pardiciros, pensdes, » Sguas-furte- novidades do tempo, ooupa a s Tuas e, paradoxalmente, faz crescer a sensa- gio de isolamento e solidio ao instaurar 0 anonimaro, Para conté-la os urba- nistas reformam as cidades. Para diverti-la, os mesmos maquinismos, que nas fibricas estao associados a dura retina do trabalho, sio utilizados nos gran- des parques de diversdes. Para amenizar a distancia que a separa da natureza sio construidos os grandes | parques ‘urbanos, como o Central Park, em Nova York, ou o Bois de Boulogne, em Paris.’ Para educd-la, curi-la, disc civilizd-la mobilizam-se os intelectuais ¢ 0 poder piblico. Também no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, esse mesmo fenémeno pode ser observado ¢ écaptado pela liverarura. Machado de Assis, em 1904, faz do contraste entre ‘9 morro do Castelo e os palacetes da rua Sia ‘Clemente um. dos nemas de traz para seus romances, contos ¢ crénicas © universo dos pobres € dos su- birbios que s¢ ocultava nos desvios da capital da ordem ¢ do progresso. Novas conguistas da ciéncia eda récnica ¢ novas invengées revolucio- nam os habitos ¢ o cotidiano. Na medicina sao extraordindrios os avangos. For um lado, os segredos da satide do corpo vio sendo desvendados a partir da identificagao do bacilo da febre tifside por Eberth em 1880, do bacilo da tuberculose por Koch em 1882, do bacilo da difteria por Klebs em 1883, do bacilo da peste bubdnica por Yersin em 1894, da descoberta do ridio por Pierre ¢ Maric Curic em 1894 ¢ dos grupos sanguineos por Landsteiner em 1900. Por outro, os mistérios do inconsciente comegam a ser revelados des- de que, no ano de 1900, Sigmund Freud escreve A interpretagdo das sonbos. No Brasil, os higienistas, tendo 4 frente Osvaldo Cruz, tera um papel im- portantena ciéncia e na modernizagao da capital, e alguns cientistas, tais como. Carlos Chagas, que em 1909 isola o Trypanosoma cruzi, se destacario no mundo cientifico internacional. O BRASIL REPUBLICANG E novo também o ritmo da vida e, com a associagSo da ciéncia & técnica, as distincias parecem encurtar-sc. Em terra, amplia-se a poderosa rede de ferrowi ‘as que corta os cinco continentes ¢,em 1890, um trem, o Empire State Express, atinge uma velocidade de mais de 100km por hora, Um novo vel- culo ganha as ruas de todas as cidades desde que Daimler ¢ Benz constroem um automével movido a gasolina em 1885 ¢ Henry Ford comega a fabricar em série seus modelos T em 1908. Nos mares, desde 1873, a maquina Normand, de expansio tripla, toma os navios transatlinticos mais velozes, ¢ o submarino langado por Laboeuf em 1899 traz para a realidade o que antes era possivel apenas na ficgio de Julio Verne, que jd fizera 0 capitio Nemo singrar as profundezas do mar nas paginas de Vinte mil léguas sufonarinas. O telefone, o radio, o telégrafo ¢ a linotipo inventada por Mergenthaler em 1884 revolucionam as possibilidades de comunicagao. E os balées, os dirigf- veis, o8 zepelins ¢ outras engenhocas yoadoras tornam cada vez mais tangi- vel o mito de [caro ¢ osonho de Leonardo da Vinci, que se tornard realidade gragas a um brasileiro franzino, Alberto Santos Dumont, que cruza os céus de Paris em 1906 a bordo do primeiro avido, o 14 bis, ainda que muitos afir- mem que a proeza de voar a bordo de um aparelho mais pesado que o ar pertenceu aos irmios Wright. Também o espago privado se transforma com mil novidades desde que Siemens inventa um forno elétrico em 1870, surge a baquelite — a primeita matéria plistica —em 1872, Edison acende a primeira Limpada incandescente ho vacuo em 1876 eo primeira fogio elétrico comega aser vendido em 1893. © progresso.técnico invade as casas, transforma os rites, os costumes ¢ os hordrios da rotina doméstica, Quando, em 1905, Einstein prope a teoria dat relatividade, revolucionando a fisica moderna, g a a quimica cotidiana da “cozinha da maioria das casas jd havia sido transformada pela descoberta de um norte-americano de nome Normann que, em 1903, patenteara o proces- so de hidrogenacio para a fabricagio da margarina. Entre nds, alguns desses artefatos comecam a modificar os habitos dos casardes da rua Siio Clemente ¢da avenida Paulista.* Uma nova concepgic de tempo ¢ de histéria acompanha as milriplas mudangas que, aproximadamente entre 1870 ea primeira grande guerra de 1914, se multiplicam cm todos os Ambivos. O Ocidente vive um desses pe- a2 Of CENARIC’ OA MEPOBLICA riodos em que a histéria parece acelerar-se, ¢ no € apenas a experiéncia do tempo vivido que reflete e provoca essa pennaecs a propria percepgo mais abstrata do. tempo ¢ a concepga que ¢ seu coroldrio esata pau- tadas pela primazia da nogao de evolugio ¢ por uma repre em constante aceleracio, do tempo histérico, que certamente ganha uma nova coloragio, ainda que possa ser percebida desde o século XVIII e da constru- gao da razio instrumental moderna, posto que, nas palavras de Reinhart Koselleck, nosso conceito moderno de historia é fruto da reflexio das Luzes sobre a complexidade crescente da “histéria em si, na qual as condigdes da experiéncia parecem afastar-se, cada vez mais, da prépria experiéncia” (Koselleck, 1990, p. 12). Uniforme, rigidamente controlado, cada vez mais veloz e pautado pela cficiéncia, o tempo € visto como um comtinuum entre dois pélos que especi- ficam seu ponto de partida e seu telos, situado no pélo que assinala a sempre renovada conquista do progresso ¢ da civilizagdo, marcado com um sinal de positividade e oposto ao pélo doatraso c da barbdrie, negativado. Nesse tem- po retilineo ¢ direcionado mover-se-iam todas as nagdes, que sc viam ¢ eram vistas como modernas na medida em que se siruassem no limiar das mais Fecentes conquistas da ¢poca, consideradas como manifestagées inequivocas da primazia de seu engenho ¢ arte, Cabe lembrar que o evolucionismo social de Spencer precede o darwinismo, que parece aplicar em sua teoria da selegio natural das espécies os principios que norteiam a concepedo de histéria como uma incessante corrida pelos trilhos do progresso, ¢ que permis ia aos paises que se viam paises ou mesmo continentes vistos como mais atrasados, cujo destino seria emular os que se apresentavam como a vanguarda do Ocidente. _O problema dessa concepgao evolucionista ¢ linear da histéria reside em tratar diferengas como se : fossem desigualdades. Com efeito, ainda que os paises periféricos — entre eles o Brasil — incorporassem o discurso das na- ges hegemdnicas ¢ entendessem que bastaria imprimir uma maior velocida- de a'suas conquistas para entrar no rol das nagdes civilizadas ¢ progressistas — para utilizar uma formulagio recorrente na época — ¢ mesmo para che- gar a alcangar um lugar de proeminéncia na corrida pelo progresso, supe- 23 0 BRASIL REPUBLICANO rando assim uma desigualdade facilmente sandvel pela aplicagio das inteli- géncias ¢ a mobilizagio das yontades, a diferenga essencial que os separava de paises como a Franga ea Inglaterra, a Alemanha ¢ os Estados Unidos, Bélgica ou a Indlia ndo cessava de aprofundar-se, uma vez que da manuten- gio de seu lugar periférico, subordinado ¢ ainda colonial, dependia a repro- onencia) da riqueza, da egemonia ¢ do lugar ocupado pelos taledea aligumas das decorréncias menos edificantes do « esp 5 rito do tempo, tais como © etnocentrismo, o desrespeito aos valores das diversas culturas, a injusta distribuigao da riqueza entre os Estados ¢ no inte- rior deles, a prepoténcia, a violéncia ¢ a exploragio. Desde a metade do sé- culo XIX, essa ideologia, sinvese dos ideais modernos em cujo caudal Euclides da Cunha via o Brasil arrebatado, transformara-se em algo muito préximo a uma religido leiga, ‘Como toda religiio, para além de realizar seu sentido etimolégico — re ligare —, ao congregar os que partilhavam a mesma fé em torno a um credo comum, aquela que se consolida a partir da crenga inabaldvel na marcha do progresso da humanidade como decorréncia ldgica ¢ necess4ria das conquis- tas técnicas e cientificas saberd encontrar seus ritos, sua liturgia ¢ suas cele- brapées: as Exposi ais,” realizadas periodicamente, cumprirac com eficicia essa fung razdo, Walter Benjamin, arguto observa- dor de seu tempo, as considerard como lugares de peregrinacdo @ mercado- ria-fetiche (Benjamin, 1982, p. 64). i Desde 1851, quando a Inglaterra vitoriana inaugura a primeira das Exposig6es Universais, o caudal dos ideais modernos vird desaguar nessas festas do progresso c da civilizagao, vistas pelos organizadores como are- nas pacificas (Neves, 1988). Milhares de visitantes de todas as latitudes geograficas ¢ sociais aprenderao, ao visitd-las, ligées indeléveis que resu- mirao.as convicedes daquele tempo, associarao indissoluvelmente os con- ceitos de progresso ¢ civilizagdo ¢ assimilario uma determinada visio da histéria. Cabe assinalar que muitos dos marcos que monumentalizam es- ses ideais modernos sao ori riamente vinculados as Exposigées. E 0 caso do Palicio de Cristal, projetade por John Paxton para a Exposigio OS CONANIOS DA REPGmLICA londrina de 1851; da Estdtua da Liberdade, presente da Franca aos Esta- dos Unidos no centendrio de sua emancipagio politica ¢ que, antes de cruzar o Arlintico ¢ aportar diante da ilha de Manhattan, esteve exposta em Paris na Exposigdo de 1878, ¢ também da torre Eiffel, em seu tempo a mais alta ¢ ousada construgdo erguida pela mao do homem, e que presi- diu 4 grandiosa Exposigao Universal com que a Franga.comemorou o ter- ceiro centenario da Revalugio Francesa, No Brasil, tmidamente, as novidades do Ep! estario presentes desde sete pelo Império pelo segundo imperador, aqui chegaram al- guns lampejos suntudrios das conguistas modernas. A fotografia, o telefone, o telégrafo c.o fonégrafo causaram espanto e maravilha, A rede de estradas de ferro estendeu-se, unindo aos portos de escoamento para o mercado ex- terno as grandes fazendas do Oeste paulista, onde o trabalho livre ganhava espago ¢ os proprietirios pretendiam ser empresirios madernos. Desde 1862 © Brasil participava das Exposigécs Internacionais!' realizadas na Europa ¢ nos Estados Unidos, ainda que a imagem que os visitantes dessas grandes mostras que, por acaso, se fixassem no que o Estado imperial enviava para representar o pals niio pudesse deixar de estar associada 4 sua extraordinaria riqueza natural ¢. ao exotisma: pedras ¢ madeiras preciosas, peles de animais selvagens, produtos agricolas e arte plumdria abarrotavam o espaco destina- do ao Império do Brasil nas primeiras Exposigées Internacionais que conta- ram com a presenga do pais, No mesmo ano em que os holofotes da Exposigio Universal de 1889 fi- zeram resplandecer em Paris a torre de 300 metros de altura construida por Gustave Eiffel, um golpe militar, a principio destinado apenas a provocar a derrocada do gabinete Ouro Preto, terminou por derrubar_a monarquia, expulsar o velho imperador ¢ sua familia € instaurar a Republica. Revolu- cionaniamente, como dird Euclides da Cunha, engenheiro militar para quem a conotagao de revolta, sublevagdo ¢ convulsdo social que nos habitamos a associar ao terme revolugdo certamente estaria associada Aquela de seu sen- tido primitivo, oriundo dos campos intelectuais da fisica, da astrenomia, da geometria e da mecAnica, ¢ que aparecem em primeiro lugar no Diciondrio 25 O BRASIL RERUBLICANO prdtico illustrada de Jayme Séguier, um dos mais utilizados em sua época ¢ que assim define os principais sentidos da palavra revolugdo: Revolugio, s.f (lat. revolutio). Phys: Movimento de um mével que percorre uma curva fechada. Astron. Marcha circular dos corpos celestes no espago; periodo de tempo que elles empregam em recerrer a sua drbita: a revolugio da terra cm tomo do sol. Geom. Movimento suposto de um plano em volta de um dos seus lados, para gerar um slide. Mechin. Giro completo de uma roda. Fig. Levantamento ou insurreigio politica de grande importincia c gra- Vidade, tendente a modificar, a transformar a constituigio de um Estado, as suas instituigdes ete.: a revolugio francesa (Séguier, s.d., p. 1001). Sem divida o golpe militar do 15 de novembro de 1889 modificaria a Gons- tituigho do Estado brasileiro ¢ suas instituigdes. “Mas, tal como na acepgio astronbeni ica da palavra, a Republica, revolucionariamente instaurada, termi- . Conclufdo o movimento circular “no plano politico, a so- ciedade volraria ao ponto de partida sem grandes convuls6es. Sab novas for- mas, 03 antigos ¢ os novos Domos do Poder manteriam firmes as rédeas do mando. Ou, na classica formulagio que Machado de Assis poe na boca do Conselheiro Aires sobre os acontecimentos do 15 de novembro, mais uma vez os brasileiros constatariam que “nada se mudaria; o Regime sim, era possivel, mas também se muda de roupa sem mudar de pele. O comércio é preciso. Os bancos sio indispensdveis. No sébado, ou quando muito na se- gunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a Constituigio” (Machado de Assis, 1971, p. 1031). UMA REPUBLICA DE IMPROVISO? A proclamagio da Repiiblica no dia 15 de novembro de 1889 ¢, sem divida, um dos acontecimentos significativos de nossa histéria. Feriado nacional fes- tejado anualmente como uma das datas civicas mais importantes, o 15 de novembro se inscreve nos livros escolares ¢ no imaginario coletivo como um acontecimento fundador do que somos, como um ugar de memdria' para 26 OS CEWARIGS OA REPUBLICA todas os brasileiros ¢ como um marco significativo de nossa histéria. Por isso mesmo, presta-se, come poucos, a uma reflexio mais consistente sobre o acontecimento ¢ seu significado para a histéria. E Pierre Nora, historiador francés, quem nos lembra que se, por um lado, as novas correntes da histéria aprenderam a relativizar os acontecimentos do universo da politica ea dar importdncia a novos temas, tais como as men- talidades coletivas, a novos objetos de estudo como, por exemplo, a festa, o tiso, os habitos de leitura ou a vida familiar ¢ a novas perspectivas de andlise propostas pela histéria cultural, por outro € preciso ndo esquecer que ha acontecimentos que condensam ¢ permitem uma melhor compreensio do processo histérico em que se inserem. Tal como a ponta de um iceberg, esses acontecimentos revelam © que se esconde sob o mar do cotidiano, deixam perceber aspectos fundamentais da légica que imprime direcao 4 histéria de uma coletividade ¢ que pode ser responsdvel por inflexdes significativas nes- sa mesma histéria, Nas palavras de Nora, “é necessdrio auscultar o aconteci- mento porque é cle que une, como num feixe, todos os significados sociais de que se rodeia” (Nora, 1978, p. 61). ; Nessa linha de raciocinio, o acontecimento da proclamagio da Repiblica merece uma atengio particular. Visto do plano do ocorrida naquele 15 de novembro, sem divida a Re- publica brasileira parece feita de improviso, tal como sugere Euclides. A pro- clamagao da Republica aparenta ser a resultante imediata de um golpe militar, eo marechal Deodore da Fonseca, ao assumir as rédeas do movimento que resultou na implantago do novo regime, pode ser visto como o fundador a contragosto da Repiblica brasileira, tal como sugere Joseph Love ao esere- ver que “no 15 de novembro de 1889, os conspiradores republicanos que st agruparam em torno do marechal Deodoro da Fonseca o convenceram a proclamar a Repiblica” (Love, 2000, p. 127). A hipotese de que a Repdblica brasileira foi, em sua origem, obra dos militares, fesultado do descontentamento de setores do Exército das questécs militares que se arrastavam desde o fim da Guerra do Paraguai, encontra respaldo nas versdes contemporineas ao fato ¢ na historiografia. Entre as andlises recentes, os trabalhos de Celso Castro (1995, 2000) susten~ tam oargumento do protagonisme do Exército no advento da Repiblica. E 2 O HAASIL REFUBLICANO. © mais conhecido dos testemunhos escritos sobre aguele 15 de novembro, a carta de Aristides Lobo em que o futuro ministro do Interior do primeiro governo republicano afirma ter o pove assistido ao desenrolar dos fatos da- quele dia “bestializado, apénito, surpreso, sem conhecer o que significava”, reconhece, no calor da hora, que “por ora, a cor do governo ¢ puramente militar ¢ deverd ser assim. © fato foi deles, deles 56, porque a colaboragio do elemento civil foi quase mula” (Citado in Carone, 1969, p. 289). Aliconografia dos primeiros anos republicanos também sublinha o papel do Exército, tanto se temarmos como referéncia a imprensa ilustrada de entio, em que despontaa pena inspirada de Angelo Agostini, quanto se pensarmos nos registros mais solenes dos pintores da época. O quadro de Henrique Bernardelli em que Deodoro, montado em um cavalo branco ¢ com ar triun- fal, ocupa todo o primeiro plano da tela, deixando na sombra um grupo fardado ¢ alguns poucos civis que dio virzs a Repdblica, é exemplar nesse sentido ¢ jd foi objcto da andlise de José Murilo de Carvalho (1990). Angela Maria de Castro Gomes (Gomes, Pandolfi ¢ Alberti, 2002, p. 12-30) mostra ser esse também o sentido da tela de Benedito Calixto pintada em 1893 ¢ que continua pondo no centro dos acontecimentos Deodoro ¢ 0 Exeército, s¢ bem que alargue o plano pintado, mostrando todo o campo da Aclamagio, a tropa formada, canhdes assestados, oficiais a cavalo em meio aos quais estd o major Frederico Sdlon de Sampaio Ribeiro com sua espada desembainhada, © alguns civis, entre os quais € possivel reconhecer republicanos histéricos, como Quintino Bocayuva, Ainda que com mais personagens em cena, Deodoro e o Exército continuam, na tela de Benedito Calixto, a desempe- nhar o papel principal no advento republicano. Visto da perspectiva do tempo cronoldgico que antecede o 15 de no- vembro propriamente dito, outra luz ilumina o ocorrido e € f4eil perceber que a Republica brasileira nao foi apenas obra do golpe militar que fez cair a monarquia, Se bem seja possivel encontrar referéncias mais remotas, ¢ a partir de 1870 que se oficializa o republicanismo brasi ‘iro, com a publicagio do Manifesto Republicano no primeiro nimero do jornal A | Repitblica, Cocrente com o principio descentralizador do federalismo, que se constitufa na grande ban- deira politica dos republicanos de todos os matizes ¢ na principal propesta OS CEWARIOS DA RERGOLICA do Manifesto de 1870," o movimento republicano organizou-se desde en- tio em partidos politicos provinciais; divulgou seus ideais em jornais da cor- te edas provincias; multiplicou aexisténcia de clubes republicanos por todo o pals; chegou a cleger dois representantes para a Camara dos Deputados; organizou Congressos Republicanos, como os de 1887 ¢ 1888; abrigou ten- déncias diferenciadas entre as quais os chamados republicanos histéricos — os signatirios do Manifesto de 1870 —, 03 positivistas, os ‘moderados, os cliberais ¢ tantos outros; cooptou descontentes com os rumos do Estado im- perial — tais como os ironicamente chamados republicans de 14 de maio, de escraves que abandonam o barco da monar- vt de 13 de maio de 1888, ou Rui Barbosa, que em voto em separado no Congreso do Partido Liberal de maio de 1889 anuncia sua adesio ao ideal republicano, uma vez que a monarquia recusava a bandeira federalista; publicou obras de grande aceitacio pelo piblico leitor, como A Repiblica Federal de J. F. de Assis Brasil ou o famoso Catecisino Republicano de auroria de Alberto Sales, que teve uma tiragem de 10.000 exemplares — exceptional para a época — para distribuicio gratuita e, tal como o livro de Assis Brasil, foi patrocinado pelo Partido Republicano Paulista. Do ponto de vista da polftica era explosiva a combinagao entre a perda de apoio politico da monarquia por parte de setores influentes, como os cafeicultores do vale do Paraiba — grande parte deles com interesses escravistas —e do Orste paulista — que consideravam insuficientes os es- forgos de modernizagio do Império; os descontentamentos militares; a ina- bilidade da politica imperial para lidar com os interesses corporatives da Igreja Catélica; a satide periclitante do monarca que punha de manifesto a chama- da questio dinastica, pois a auséncia de um herdeiro homem levaria ao tro- noa incesa Isabel, no precisamente popular entre os fazendeiros escravistas com o conde d’Eu, que conseguira angariar antipatias generaliza- dasi'o éxito da proposta federalista que os partidos mondrquicos recusavam adespcito dos esforgos de Tavares Bastos e de Joaquim Nabuco;'* ¢ também da propaganda dos partidiirios da Repiiblica, entre os quais o barulhento Silva Jardim, que constrangia a representacao diplomatica francesa a0 promover festas republicanas nas ruas do Rio de Janciro no dia 14 de julho eque, quando oImpério patrocinou uma viagem do conde d'Eu pelo litoral brasileiro para © casa © BRASIL MEPUBLICAHO promover o futuro da monarquia, embarcou no mesmo navio, que, a cada porto, atracava ao som de duas fanfarras, uma servindo de pano de fundo 05 grupos monarquistas ¢ outra entoando hinos republicanos. Estava portanto minado o terreno da monarquia brasileira, cuja razio de ser era a garantia e a reprodugio da ordem escravista, ¢ bem pavimentado 0 caminho republicano quando o golpe militar fez ruir o Estado imperial em novembro de 1889. Disso davam-se conta nio apenas os brasileiros atentos 4 vida politica mas também os representantes diplomiticos sediados no Rio de Janeiro. Entre os primeiros, poucos testemunhos sio tio eloqiientes quanto 0 do historiador Joiio Ribeiro, que em janeiro de 1889 mapeia os setores descon= tentes com a monarquia e profetiza a proc no primeiro niimero da Revista Sul-Americana, pi publicado no Rio de Janeiro pelo Centro Bibliographico Vulgarizador entre janeiro ¢ dezembro do ano em que foi proclamada a Repiblica. Ha um fermento revolucionario por toda parte: a repdblica triunfa ¢ apenas deve-se registrar a existéncia de um tinico partido mondrquico, o dos que esperam lugubremente a certidio de ébito de Sua Majestade. [...] Nao ha espirino, por mais obruso, que ndo veja, ao menos dentro de poucos anos, a rafna coral da instituigso mondrquica no Brasil. [..0] ‘A forga republicana atual é uma caudal [sic] soberana que resulta de varias convergéncias: da antiga ¢ tradicional idéia republicana; da autonomia da lavoura, ji nao precisando da protegio imperial; dos desesperos das classes em crise econGmica; do Gdio contra a imoralidade dos governos; da miséria das provincias; do abolicionismo que trabalhou pela liberdade © nio ficou mondrquico... O republicanismo espera apenas a reagdo armada e esta jd de- ploravelmente se manifestou mascarada, ainda que iniludivel. [...] Seja como for, a repiblica vencerd (Citado in Hansen, 2000, p. 24-25), Entre os observadores estrangeiros, dois relatérios diplomaticos se destacam. Em junho de 1988, o representante diplomdtico da Espanha escreve a seu gaverno aludindo a uma agitagio republicana generalizada, ¢ associa a enfermidade do imperador ao descontentamento dos ¢x-proprictarios de 30 Os CENARIOS DA REPOBLICA egcravos, aos interesses paulistas ¢ ao que chama de separatismo das provin- cias do sul do império: Cumpre-me participar a V. Excia. que, desde o momento em que se teve co- nhecimento da methora de $. M. o Imperador do Brasil, a excitagio polltica que se notava em varias provincias do Império, particularmente nas de Sho Paulo © Minas, acalmou-se bastante, As manifestagdes de caniter republicano que tiveram lugar durante os dias em que a enfermidade de $. M. fazia esperar, a qualquer momento, um de- senlace fatal preocuparam sobremaneira 2 atengio pablica, pois, em Sao Pan- fo, o assim chamado Congresso Republicano ocupow-se [...] de questées de grande transcendéncia. As tendéncias separatistas que desde hi muito tempo vém-se manifestando nas provincias do sul do Império comegam a encontrar certo eco nas demais provincias, sobrerudo desde a emancipacio dos eseravos, quando os denos das fazendas ow engenhos, prejudicados em seus interesses, comegam a ade- rir as idéias republicanas, O representante do Reino Unido, por sua vez, escreverd cm dezembro desse mesmo ano, em carta confidencial de nove paginas. ao Ministério das Rela- Ges Exteriores (Foreign Office): Em meu despacho confidencial n° 72, de 12 de agosto, tive a honrade dirigir aatengao de Vossa Senhoria para a existéncia de certas tendéncias republica- nas neste Império, Ainda que a ago dos republicanos tenha decrescide por algum tempo apés o retorno do Imperador, tal como assinalei em meudespa- sho n° 94, de 16 de setembro dltima, voltou a tornar-se ultimamente extre~ mamente ativa, ea propaganda contra a continuidade das instituighes mondrquicas no Brasil € fica abertamente ¢ sem contestacdo aqui e em ou- tras cidades do império. [...] O exércite ea marinha, fui informado, tornam-se republicanos, ¢ a Esco- la do Rio de Janciro, onde estio aproximadamente quatrocentas ca- detes, também esti, conforme ouvi, imbuida das mesmas opiniées. Por volta do fim do més passado, © Faiz, um importante jornal da cidade, trazia um artigo conclamande as tropas a adesio ao Partido Republicano, ¢ 9 mesmo a4 O BRASIL REPUBLICANO jornal alardeta, todos os dias, as manifestag6es republicanas que se realizam por todo o pais. [uo] © Imperader tem a satde enfraquecida [...J; a Princesa Imperial nao é, infelizmente, popular junto.a uma classe numerosa © influente, prejudicada em seus negdcios privados com a abolicio da escravidio, o-executivo é fraco; o-exército nio inspira confianga, ¢ todas essas circunstincias apomtam para a possibilidade de uma revoluc3o num fururo. ndo distante." Previsivel para brasileiros ¢ 1 ilcires, a Repiiblica, se bem que talvez inesperada para alguns ¢ prockamada de chore, como assevera Euclides, tal- vez nao tenha sido feita tio de improviso assim, como parece indicar o pré- prio gesto rebelde do autor quando jovem cadere da Escola Militar em 1888, No entanto, quando o fato do golpe militar republicano torna-se aconteci- mento histérico na versao que 9 ex-cadete entio jornalista ¢ Tntelectual respeitado Euclides da Cunha publicacem™T902,)¢ tal como propée Pierre Nora ao teorizar sobre o acontecimento e a histéria, passa.a enfeixar todos os significados sociais que rodeiam seu ponto de vista ¢ as reunstancias da , muito especialmente o massacre dos rudes patricios que testemunha- ra em Canudos. - Rar isso, 5 sso, sendo outro seu foco de -observagaio em 1902, a ¢ A perspectiva do periodo que antecede a Proclamagao, ¢ no qual 0 eco republicano se multiplicara, acrescentarmos aquela dos anos que sucedem ao 15 de novembro, adensando assim o tempo histérico, seri possivel inferir que, além de nao propriamente de improviso, a nova institucionalidade re- publicana instaurada em 1889 revestiu-se de uma Logica histérica possivel- mente pouco evidente para as tropas que, reunidas no campo da Aclamagao €atentas ao comando de Deodoro da Fonseca, precipitaram ogolpe de morte da. monarquia. Essa perspectiva de futuro também nio seria previsivel para.os que, ma- quela sexta-feira, 15 de novembro de 1889, ouviram pelas ruas da cidade, leram nas fachadas dos prédios em que se alojavam os principais jornais ou escutaram da boca de José do Patrocinio na Camara Municipal a noticia de que estava deposta a monarquia ¢ proclamada a Repiblica. Também © impe- rador esua familia, retirados da paz do verao petropolitano por um : telegra- a2 O93 CENAMIOS DA REFGSLICA ma do visconde de Quro Preto, chefe do dltimo gabinete mondrquico, man- tidos sob custédia militar no Pago Imperial ¢ embarcados, na madrugada do dia 17, no Alagoas para o exilio europeu, no poderiam imaginar 0 que se Gs janeiro ce cytaaenie surpreenderam muitos, mas ndo houve reagio digna de noticias na imprensa ¢, imediatamente, foram formados governos provi- s6rios, Também nelas nao era possivel prever o que sucederia no futuro ime- diato da Republica recém-implantada. apenas o povo das ruas da capital, que a tudo assistira bestializado, no mudaria em suas vidas, a boca, ¢, recorrendo a sabedoria dos refrios ¢ provérbios repetidos de gerapio em geracao, diriam que essa tal de Repiiblica nao mudaria nada para quem ndo tems ena mem being ¢ anda pela vida ser officio nem beneficio, Em tempo de Munici... cada qual cuide de si! Em todo caso, a submissio de séculos levaria alguns a pensar que quem boa drvore se achega, boa sombra o cobre, para continuar buscando o favor €a protegio dos poderosos de sempre, muitos deles convertidas em ardorosos re- publicanos depois daquela sexta-feira quente de novembro. Em novembro de 1889 a Reptiblica foi apenas proclamada, $6 anos mais tarde, no governo de Campos Sales (1898-1902), o irmao do autor do Cate- cismo republicano de 1885, ¢ que se tornaria o grande arquiteto e 0 execu- tor da obra de engenharia polftica que faria funcionar azeitadas as engrenagens da chamada Republica Velha, serenaria a turbuléncia da primeira hora repu- blicana no Brasil, $6 entio o terreno movedico ¢ ainda indefinido da Repi- blica brasileira se assentaria para que as bases de um equilibrio politics complexo, frigil, mas eficiente até a década de 1930, fossem langadas. Como nunca antes, as rédeas do poder do Estado, sem a mediagao da coroa metro- politana ou da coroa imperial, estariam direta ¢ exclusivamente nas maos dos que — sem grandes sutileras ¢ com boa dose de arbitrio — cfetivamente imprimiam diregio 4 sociedade brasileira. Como num feixe, para novamente recorrer A imagem proposta por Pierre Nora, os significados sociais de que se rodeia 0 acontecimento da proclama- 33 O ORASIL REPUBLICANG Gao da Republica no Brasil se retinem ¢ 0 improviso de 1889 enoontra sua completude na invengao republicaia ( (Lessa, 1999 ¢ 2001, p. 11-58) de pos Sales e dos governos que o se iram, Ags que viveram © jo sucedida entre 1870 ¢ a primeira década do século XX, no entanto, s6 os fatos eram aces siveis, O acontecimento, com toda sua carga de significados ¢ com a possibi- a.um sem-niimero de possiveis versées, quase nunca pertence ida. Ele ¢, sobretudo, o territério da histéria feita pelos hist riadores. A CAPITAL E OS ESTADOS Entre 15 de novembro de 1859 ¢ 15 de novembro de 1898, quando Manuel Ferraz de Campos Sales assume a Presidéncia, a Republica brasileira enfren- tou anos tumultuados. Antes de que 0 novo regime politico se consolidasse, a Repiiblica vive um periodo de instabilidade, de ndo poucas tensdes, de indefinicho de ru- mos e de auséncia de um desenho politico nitido para a nova ordem instau- rada,/Para Renato Lessa, “os primeiros anos republicanos se caracterizaram mais pelo vazio representado pela supressio dos mecanismos instirucionais préprios do Impétio do que pela invengdo de novas formas de organizagio politica. O veto imposto ao regime mondrquice nao implicou a invengio de uma nova ordem”™ (Lessa, 2001, p. 17). A composigio do ministério do governo provisdrio, presidido por Deodoro, demonstra a necessidade de abrigar, ne mais alto escalao do pri- meiro governo da Repiblica, representantes de rendénci ciadas ¢ das mais variadas latitudes republicanas. Compunham esse primeiro ministério, na pasta da Justica, o paulista Campos Sales, o mesmo que mais tarde, como presidente eleito, assentaria as bases da Repdblica Velha e que, nas primeiras horas do noyo regime, fora chamado para garantir o apoio dos cafeicultores paulistas; 4 frente do Ministério da Fazenda estavao baiano Rui Barbosa, que poucos meses antes abandonara o Partido Liberal por conside- tar a defesa do federalismo mais importante que a fidelidade A monarquia. Também estavam presentes dois republicanos histéricos, signatérios do Ma- to diferen- aa GS CEMARIO‘ DA REPOBLICA nifesto de 1870, o moderado Quintino Bocaitiva, na pasta das Relagbes Ex- teriores, ¢, no Ministério do Interior, Aristides da Silveira Lobo, o jornalista paraibano ¢ republicano da ala radical que afirmara, em 15 de novembro, ter o povo a tudo assistido bestializado. A pasta da Guerra coubera ao positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhies, enquanto Eduardo Wandenkolk presidia a pasta da Marinha, uma forga militar mais clitista que o Exéreito, Por fim, na pasta da Agricultura, Demétrio Ribeiro, um repre- sentante do Rio Grande do Sul, provincia que sempre se apresentara com caracteristicas muito préprias no cendrio politico brasileiro. Estavam portanto presentes nesse primeiro ministério representantes de imteresses nem sempre convergentes das provincias mais poderosas; republi- canos histéricos ¢ outros de adesdo muito recente 4 causa republicana; federalistas ¢ centralistas; moderados e radicais; liberais ¢ positivistas, endo seria ficil ao marechal habituado a disciplina da caserna presidir aquele go- verno ¢ atravessar as tensties provocadas pelo primeiro plano econémico do pais, decidido por Rui Barbosa e decretado sem consulta a seus colegas de ministério, episédio que provocou turbuléncia politica ¢ financeira e ficou conhecido pelo nome de Encilhamento, Somente em junho de 1890 foram convocadas eleiges para a Assem- NStitUiNte £, em 24 de severe. de 1394, anova Constimalsaoy de Constituicio republicana, foi real eta a a eleigao presidencial, aie yotando os membros da Assembléia Constituinte. Contabilizaram-se 234 eleitores, ¢ os resultados do pleito demonstram a tensao ¢ a instabilidade desses primeiros tempos republicanos. Defrontavam-se duas candidaruras, a primeira, da situagho, formada pelo marechal Deodoro da | Fonseca ¢ pelo almirante ‘Eduardo Wan Segunda composta por Prudente de Morais, paulista que havia p ‘Constituinte, c por Floriano Peixot Os }, militar de geragio ¢ formagio distin- iy © BRASIL REPUBLICAN tas daquelas de Deodoro. Os. resultados foram elogtientes: para a Presidén- cia, é eleito Deodor 129 votos, contra te dados a Prudente de Mo- ras. estavam vinculaé los —, Floriano recebeu he EOF: enquanto Wandenkolk teve apenas $7. tentiveis. D jcodor decreta a dissolucio d do Cong Congresso, mas, dial ‘Slo de grupos militares ¢ vis, de uma greve de ferrovidrios que explode no ‘Rio de Janeiro, do aumento da tensio no Rio Grande do Sul com a deposi- so de Jiilio de Castithos ¢, por fim, da revalta de Custédio de io de Melo, que assesta os canhOes dos navios da armada ancorados na bala de de Guanabara tal da Repiblica, sem ter como lidar com uma situagdo que se amente da guerra civil, em 23 de nov mbro, 0 mador c transformado, depois de um breve governo cons- tit ional, em ditador | Passa © ROVerno As mAos de Floriana Peixoto, o vice- presidente eleito pela Assembiéia Constituinte’—SCSCSCS Floriano passaria & histéria como o. Marechal de Ferra, por ter enfren- tado com éxito, entre 23 de nove! novembre de 1890 ¢ 15 de novembro de de 1894, periodo em que presidiu a Repabli a Repiiblica, Moyimentos armados de expressio como a Revolucio Federalista na Sul do pais ¢.a Revolta da Armada; ter procedido A derrubada de quase todos os governadores de estado, substi- tuindo-os por outros, fiis a seu governo; ter buscado apoio politica nas oligarquias estaduais, na jovem oficialidade ¢ na capital federal, onde apli- cou medidas como o combate & especulagao dos aluguéis das casas popula- rese abaixa dos precos de alguns produtos, como acame, que the granjearam forte apoio popular. Com a a a eleigdio de de Prudente de ¢ Morais, © primeiro civil a presidir a Repa- blica, §: Sio Paulo, ¢ entio a principal ¢ rquia do pais, ascende a0 poder, ea Partido Republicano Paulista consolida-se como a principal forga politica do Brasil. Mas ainda era instivel o panorama republicano, Prudente teve de fa- ‘avissimos problemas: no plano internacional, a queda dos precos do café, que dominava a pauta de exportaces brasileiras, ameacan- jO assim as bases econdmicas da Repiiblica, Internamente, para além dos malabarismos politicos necessirios as composicées regionais desequilibradas OS CENARIOS DA REFOBLICA pela consolidagdo dos paulistas no poder, Prudente enfrentou uma ameaga insuspeitada: a de ver o brioso Exército nacional desbaratado e vencido pe- Jos homens de Canudos, os rudes patricios que Euclides da Cunha vira lutar como bravos ¢ morrer como fortes na aldeia sagrada de Canudos, Durante csse primeiro momento republicano, ainda instavel ¢ turbulen- To, governo ¢ intelectuais ligados ao nove regime njio descuraram na dificil busca da construgio de referéncias simbélicas para a Repablica brasileira. ‘Tanto quanto 9 controle das cis6es e oposicdes politicas, era importante ins- crever a Republica nos coragSes ¢ nas mentes dos brasileiros, ¢ ‘© proceso de construgio de um imagindrio Fepublicano, come jd foi demonstrado," mos- trou-se tao. complexo quanto saquele da formulagio da engenharia politica necessdria 4 estabilidade do regime implantado em 1889. Essa tiltima, como j foi sugerido aqui, foi obra de Campos Sales. © politica campineiro conhecia bem, desde que compusera o gabinete do primeiro governo republicano, os meandros dos dificeis equilibrios re- gionais, das suscctibilidades oligarquicas ¢ o que, de seu ponto de vista, Tepresentava & perigo potencial das multidées na rua. Ao assumir a Presidéncia da Repoblica, , Campos Sales fez coincidir 9 desenho republicano com os interesses dos setores oligarquicos qi que o ha- viam conduzido.ao Catete, As questées financeiras foram encaminhadas pela via do endividamento externo negociado através do funding loan; do ponto de vista econémico, o desemprego, a estagnacio econémicaeaalta dos pre- gos foram aténica das diretrizes i impressas Pela mi nistro da a fazenda | ‘Ag escrever suas memdrias politicas, Campos Sales formula assim a ain- tese da arquitetura polftica que, a partir de seu foverno, presidiu a primeira Reptiblica brasileira: Nessa, como em todas as lutas, procurci fortalecer-me com o apoio dos Estg- dos, porgue — niio cessarei de repeti-lo — & 14 que reside a verdadeira forca politica, [-4] Em que pese os centralistas, o verdadeiro piblico que formaa © BRASIL REPUBLECANO Opinio ¢ imprime diregdo ao aan nacional €0 ee std nos Estados. agitadas, ri nas ruas da Capital da Unido (Sales, 1983, p. 127). E clara a equagao politica formulada em scu governo: ela supéc, em primeira lugar, a clara prioridade atribufda a um dos cendrios da Repiblica, o dos esta- dos da federagao, onde dominam ¢ se digladiam as oligarquias regionais, onde predomina a relacao pessoal ea polftica do favor, onde se perpetuam as prati- cas coronelisticas. Um cendrio, se nos lembrarmos do trecho das memérias infantis de Graciliano Ramos, onde o tempo parecia nao ter passado ¢ onde a Repdblica proclamada em 1889 nao mudara grande coisa. Mas a formulagio de Campos Sales ¢ de uma limpidez cristalina: para ele, ¢ dos estados que se governa a Repeiblica, Nao termina por ai no entanto sua férmula politica. Na contraface do primado atri 10 politica da Repiblica ¢ alicerce da ordem, Campos Sales também explicica com nitidez o corobirio desse primeciro termo de sua equagio de governo: por cima das multiddes que turmultuarm, agitadas, nas ruas da Capital da Unido, 0 cendrio da capital federal, que. o governante enxerga sob o signo da desordem, deveria, por via de consegiiéncia, ser despolitizado. ‘Tragados assim os principios da politica a ser implementada, com a clara hierarquizag’o entre os dois cenarios da Republica, um a Capital da Unido, aser politicamente csvaziado, c outro os Estados, aser tomado como 0 locus, por exceléncia, do exercicio do poder, restava por em movimento o maqui- nismo politica. Para tanto, Campos Sales ¢, a partir dele, os presidentes que se suced mio aré 1930 buscardo no federalisma, inscrito no idedrio republicano brasi- leiro como principio cardeal desde o Manifesto de 1870, a mola mestra que fard funcionar a Repdbli ileira, permitindo, por um lado, um. uunga de. autonomia consagrado institucionalmente para as oligarquias re jonais ¢ suas Tutas intestinas €, Por outro, uma para.a politica de contraprestagio de favores palfticas que os pord nsonancia com o governo federal. ~ O sutil equilibrio entre municipios, estados da federa¢io ¢ governo fede- ral pode entio armar-se com a forte politizagao de uma instincia — os esta- dos — que, durante todo o século XIX, quando ainda eram chamados de OS CEWARIOS DA REPUBLICA provincias, tivera uma fungio, sobretudo, de mediagao administrativa. Ago- ra, com base no pecultar federalismo da primeira Republica brasileira, er cra ao governo federal 0 apoio necessdrio — — traduzido sobretudo no forneci- mento de uma base eleitoral —, enquanto este oferecia em troca as verbas necessirias para a manuten¢gio do prestigio da situacio nos estados ¢ muni- cfpios ¢, para casos de necessidade, o mecanismo da Comissdo de le Verificagdo de Poderes, encarregada de corroborar os resultados eleitorais. Nas raras ocasiGes cm que as eleigdes escapavam das rédeas da situagio, a Comissdo simplesmente impedia a titulagiio dos eleitos. Na base do sistema estava a figura do coronel, dono da vontade dos eleiro- res esenhor dos currais elcitorais, cujo poder pessoal substinufa ¢ representava o Estado, distribuindo como favor e benesses, a seu bel-prazer, o que seria de di- reito dos cidadaos, Nesse quadro, as eleigses eram um ritual vazio, a participa- ao eleitoral cra minima (Carvalho, 2002, p. 40) ¢ a fraude a norma eleitoral, © coronclismo costurava assim, pela base, o sistema politico da primeira Republica. E se nos municipios os coronéis teciam as malhas iniciais dessa rede de compromissos, ela tornava-se mais is complexa e mais | firme ao passar entre as oligarquias regionais nos estados ¢ chegar até a defi- 0 go federal. Para arremati-la pelo alto, Cam- ja com destreza o principio do federalismo e a pritica da politica dos governadores. ‘O desenho que resulta dessa tessitura complexa e firme mostrard.a clara hierarquia das oligarquias regionais. Nao por outra razko o Paliicio do Catete hospedard, até 1930, uma sucessio de paulistas cr iros, com algum fluminense como a exceg3o para confirmar a regra: essas 1s so as duas oligar- quias mais podere = imei dos cafezais ¢ da incipiente indtistria cafceira paulista, ¢ a segunda encon- trando seu prestigio no maior contingente eleitoral do pais. ‘Como num gigantesco mobile politico, as oligarquias estaduais se equilibra- vam no eixo federativo, oscilavam ao sabor dos venvos dos arranjos politioas ¢ deixavam de manifesto a hicrarquia existente entre os estados da federagdo. Num plano mais elevado, So Paulo ¢ Minas. Logo abaixo, o Rio de Janeiro com o Distrito Federal, seguido, quase no mesmo plano, ainda que por distintas ra~ a9 © BRASIL REPUBLICANO z6es, da Bahiae do Rio Grande do Sul. Depois o bloco das principais oligarquias nordestinas. Um pouco mais abaixo, os estados do Norte, o Parana ¢ Santa ‘Catarina. Depois ainda o Mato Grosso e Goids. E no plano da menor pondera- io politica, estados como o Sergipe ¢ Piauf. Ao poder federal competia, despolitizada a capital federal ¢ mantidas sob rédea curta as multidées das cida- des,"* governar os ventos politicos para que ndo se embaragassem os ténues fios que uniam os diferentes interesses politicos ¢ ndo se rompesse o fragil, comple- xo ¢ —a seu modo — eficiente equilibrio sobre o qual repousava a Republica. Esse era o segredo da onder, que, cada vez mais, cra apresentada como pre- condigia do progresso, subordinando assim ao primeiro o segundo dos dois ter- mos da divisa positivista que a Repiblica brasileira bordara em pé de igualdade, em letras de ouro, no centro da bandeira nacional. Com o governo Rodrigues Alves, o desenho politico tragado encontra seu complementa: necessirio. | Despol zada, a capital federal sera higienizada por Osvaldo Cruz ¢ reformada pelas picaretas comandadas por engenheiros como Paulo de Frontin ¢ Francisco Bicalho. Na avenida Central, boulevard retilineo tracado par sobre o emaranha- do de ruclas ainda coloniais ¢ ladeado por fachadas ecléticas, o Rio de Janci- fo viveria 0 sonho de ser ma Paris. tr tropical (Needell, 1993), tio bem dew-se que era preciso ser cal cual Buenos ek que € 0 esforco despedacante de ser Paris” (Jodo do Rio, 1919, p. 215). E do porto deslocado do velho cais Pharoux para a praga Maud, iluminado ¢ modernizado, a cidade conti- nuaria a exportar as riquezas do pals, cumprindo assim o destino mercantil, que, desde os tempos coloniais, era o seu. De que forma a suntudria ¢ carfssima reforma urbana do Rio de Janeiro orquestrada pelo prefeito Pereira Passos sc justifica, uma vez que, como foi visto, a capital havia sido esvaziada de scu potencial politica? Para desvendar esse aparente paradoxo é preciso lembrar o papel simbélico que o Rio assume como cidade-capital: reformada, iluminada, saneada ¢ mo- dernizada, a capital permitia aos estrangeiros que nela aportavam, aos que cir- culavam pelas calgadas da grande Avenida vestidos pelo tiltimo figurino parisiense © a0s lideres da Republica acreditar que o Brasil — nela metonimizado — havia finalmente ingressado na era do progresso eda civilizagdo, Para o pais como um 40 me OF CEMARIOS DA REPGaLICA todo, os estados — para utilizar a férmula de Campos Sales —, a capital moder- nizada antecipava um futuro cue imaginavam que um dia seria o seu. ‘Opostos pelo vértice na aparéncia, os dois cendrios inscrevem-se no mesino cfrculo da Iégica da primeira Reptblica ¢ demonstram ser comple- mentares. No primeiro — aquele conformado pelos estados —a Repiiblica consolida os alicerces politicos que permitem a privatizagao da res publica e imprime diregdo ao governo. No segundo — a capital federal despolitizada —a Republica constréi um cenario de sonho, projeta um future imaginada ¢ legitima, assim, o presente. Num ¢ noutro cendrio, a velha ordem excludente ¢ hicrarquizadora mantera, sob novas formas, a permanéncia de priticas sociais, estrutura eco- nOmica, légicas politicas e visoes de mundo. Num ¢ noutro cendrio, para dizer 9 mesmo nos termos propostos por Euclides da Cunha, iludidos por uma civilizagdo de empréstimo, tivemos de improvise, como heranga inesperada, a Repriblica. Nela, na capital, como nos estados, a nova ordem institucional nao impede que se torne mais fundo o contraste entre aqueles que o autor de (Os sert6es qualifica de copistas, empenhados em construir uma Republica 4 imagem e semelhanga de seus interesses, € 0 modo de wiver |...] daqueles ru- des patricios mais estrangeiros nessa terra que os imigrantes da Europa. NOTAS 1, Para o conceito de cidade-capital aplicado 4 cidade do Rio de Janeiro da virada do século, ver Neves (1991, p. $3 a 63), . Para o conceito de inviolabilidade da vontade senhorial, ver Chalhoub (1990). . Vida vertiginosa € o titulo de uma série de crdnicas de Joie do Rio (Paulo Barreto) publicada em livro no ano de 1911. 4. Retrsto do Brasil € 0 tirulo de um livre de Paulo Prado, publicado em 1928, Muitos foram os intelectuais brasileiros que, pela via ensaistica ou pela ficgio, dedicaram-se nesse periodo a fornular, na letra, interpretagdes do Brasil. Sobre esse tema, ver, por exemplo, os textox de Alberto da Costa ¢ Silva (2000), e os trés volumes de Intérpretes do Brasil, coordenades por Santiago (2000), Ver, a respeito das formas de divertir ¢ educar a multidio, o livro de Kasson (1978), A respeito das novidades do tempo ¢ de scu impacto na vida ¢ na histdria beasileiras, £ importante a Ieitura do texto de Nicolau Sevcenke intitulado “O prekidio repu- wpe Pi O WRASIN REPUBLICANG blicano, astécias da ordem e ilustes do progresso™, que abre o terceiro volume da Histéria da vide privacta mo Brasil (1998). Ver também Neves ¢ Heizer (1998). 7. A bibliografia brasileira sobre as Exposigdes Internactonais € i numerosa e significativa. Para um balango dessa produgia, ver o capitulo “A ‘machina’ e o indigena. O Império do Brasil ea Exposigho Internacional de 1862". In Heiter ¢ Videira (orgs.) (2001). 8. Ver, a esse respeito, Neves (1986). 9. Alusio 4 obra clissica de Raimundo Faoro, 10. Para uma compreensio do conceito de lgares de memsiria, ver o texto de Pierre Nora gue introduz a colegio de gito volumes sobre o tema publicada pela editora Gallimard, Tradurido para o porrugués, o artigo de Nora foi publicado pela revista Projeto Histéria, do Programa de Pés-Graduacio em Historia da PUC de Sao Paulo. 11. A integra do Manifesto Republicano de 1870, um longulssime texto de acusagio & monarquia pelos males do Brasil, que silencia sobre o problema da escravidio € presenta como conteddo politico quase exclusive a proposta federativa, pode ser encontrado em Pessoa (1973, p. 38-62). 12. Tavares Bastos formula com clarcza uma proposta de federalismo mondrquico em sua bea A provincia, publicada em 1870, ¢ Nabuce apresenta ao Parlamento dois projetos de federalizagio do Impérie brasileiro, um em 1881 ¢ outro em 1885, mas desde 1870 0 ideal federalista cmeve associado as iddias republicans no Brasil. 13. Cara manuscrita, originalmente em espanol, do representante diplomdtico da Espanha, Luis del Castillo Trigueros, ao ministro de Estado de Exterior de governo espanhol. Ric de Janeiro, 17/6/1888. Archive del Ministerio de Asuntos Exteriores de Espacia. 14, Carta manuscrita, originalmente em inglés, do representante diphomdico da Ingla~ terra, Hugh Wyndham, ao ministro de Estado do Exterior do gaverno inglés. Rio de Janeiro, 19/12/1888. Foreign Office Records, Ingiaterra. 15. Ver, a retpeito do processo de construgio do imagingrio republicano, o conhecido livro de José Murilo de Carvalho (1990), mas também alguns trabalhot académicos relevantes (Ferreira Neto, 1989, e Siqueira, 1995) © artigos em periGdicos especia- lizados (Oliveira, 1989). 16. Sobre esse tema, hi uma extensa bibliografia. Entre os mais recentemente publica- dos ou reeditados, ver Chalhoub (2001), Cunha (2001) ¢ Pereira (2002). BIBLIOGRAFIA Assis, Machado de, 1971, Esai ¢ Jacd, In Obracompleta, vol. 1. 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