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A ESCRITA DA CULTURA: POETICA E POLITICA DA ETNOGRAFIA James Clifford e George E. Marcus Organizacio ‘Traducio: Maria Claudia Coelho dD uer] a SELVAGENS Rio de Janeiro 2016 Introducao: Vetdades patciais James Clifford trabalho interdisciplinar, tao discutido hoje em dia, nao se refore ao confronto entre disciplinas jd consttuédas (ne~ niuma delas, na verdade, quer se deixar desfazer). Para focer algunas coisa interdiseiphinar, nao basta escolber aim “qhjeto” (umn tema) e colocar i sua volta duas om trés Gncias, A interdisciplinaridade consiste em eriar tm now objeto que niio pertence a ninguém. Roland Barthes, “Jeunes chercheurs”. ocd vai precisar de mais mesas do que imagina. Elenore Stith Bowen, conselho para o trabalho de campo, em Return to laughter. Nosso frontispicio mostra Stephen Tyler, um dos colaboradores deste volume, trabalhando na india, em 1963. O etndgrafo esta absorto, escre- vendo — anota algo que Ihe é ditado? labora uma interpretacio? Registra uma observacio importante? Rabisca um poema? Curvado no calor, tem um pano molhado pendurado sobre 08 dculos. Nao se pode ver sua expresso. “tras dele, um interlocutor olha para longe — com tédio? Paciéncia? Diver- imento? Nesta imagem, o emégrafo esté na borda do quadro — sem rosto, quase extraterreno, uma mio que escreve, Este nfo € 0 retrato coma do szabatho de campo antropol6gico. Estamos mais acostumados a imagens de Margaret Mead brincando exuberante com criancas, em. Manus, ou fazendo 32 A cscrita da cultura: pottica e politica da etnografia perguntas 20s aldedes, em Bali. A observagio participate, a formula clés- sica do trabalho antropolégico, deixa pouco espaco para textos. Mas, ainda assim, perdido em algum lugar em seu relato do trabalho de campo entre os pigmeus Mbuti — correndo por trilhas na mata, sentado noite cantando, dormindo em uma cabana de folhas lotada —, Colin Turnbull menciona que carregava pata todos os lados uma mquina de escrever. Nos Argonautas do Pacifico Ocidental, de Bronislaw Malinowski, em que uma fotografia da tenda do etaégrafo, em meio as habitagdes de Kiriwina, € exibida com destaque, nfio ha qualquer exposi¢ao do interior da tenda. Mas em outra foto, em uma pose cuidadosa, Malinowski registrou a si mesmo escrevendo a uma mesa. (A tenda esti aberta; ele est4 de perfil ¢ alguns trobriandeses esto do lado de fora, e observam aquele tito curioso.) Essa notivel fotografia s6 foi publicada dois anos atris — um sinal dos nossos tempos, e nio dos dele.' Principiamos no com observacio participante ou textos culturais (passiveis de interpretacio), mas com a escrita, a constru- cho de textos. A escrita nfo é mais uma dimensio marginal, ou oculta, mas vem surgindo como central para aquilo que os antropdlogos fazem, tanto no campo quanto no que a ele se segue. O fato de que até recentemente a escrita nao tenha sido retratada ou seriamente discutida reflete a persisténcia de uma ideologia que reivindica a transparéncia da representacio e 0 imediatismo da experiéncia. A esctita reduzida a um método: boas anotagdes de campo, elaboracio de mapas precisos, “redacio minuciosa” de resultados. Os ensaios aqui reunidos afirmam que essa ideologia se desintegrou. Neles, a cultura é vista como composta por representages € codigos se- riamente contestados; neles, assume-se que 0 poético € 0 politico sao in- separiveis, que a ciéncia esta nos processos histéricos e linguisticos, ¢ nfo acima deles, Os textos pattem do principio de que os génetos académicos e literdtios se interpenetram e que a escrita de desctigdes culturais € propria- mente experimental e ética. Seu foco na construcio de textos e na retérica serve para destacar a natureza artificial e construida dos relatos culturais. Esse foco mina modos de autoridade abertamente transparentes ¢ chama a atencio para as condicGes histéricas da etnografia, para o fato de que a etnografia esti sempre enredada na invengio, e nfo na tepresentacio das 1 Malinowski, 1961, p. 17. A fotografia dentro da tenda foi publicada, em 1983, por George Stocking, em History of Anthropology 1, p. 101. O volume contém outras cenas zeveladoras da escrita emogrifica, Introdugio: Verdades parciais 33 culturas (Wagner, 1975). Conforme ficara evidente nas préximas paginas, a gama de tépicos abordados nio é literdria, no sentido tradicional. A maior parte dos ensaios, embora enfoquem priticas textuais, vio além dos textos, adentrando contextos de poder, resisténcia, constrangimentos institucionais e inovacdes. A tradiclio etnografica é aquela de Herddoto e do Persa de Montes- quieu. Essa tradicao olha de forma obliqua para todos os arranjos coletivos, distantes ou prdximos. Ela transforma o estranho em familiar, 0 exético em cotidiano. A etnografia cultiva uma clareza engajada, como aquela instada por Virginia Woolf: Que nunca patemos de pensar — 0 que é esta “civilizagio” na qual nos en- contramos? O que sio estas ceriménias ¢ por que devemos participar delas? © gue sio estas profissdes ¢ por que devemos ganhar dinheizo com elas? Aonde, em resumo, isso est nos levando, esse cortejo dos filhos de homens educados? (Woolf, 1936, pp. 62-63). A etnografia situa-se ativamente entre poderosos sistemas de significa- dos. Coloca suas questdes nas fronteiras entre civilizacées, culturas, classes, racas € géneros. A etnografia decodifica e recodifica, revelando as bases da ordem coletiva e da diversidade, da inclusao e da exclusio. Ela descreve pro- cessos de inovacio de estruturacio e faz parte, ela mesma, desses processos. ‘A etnografia é um fendmeno interdisciplinar emergente. Sua autori- dade ¢ sua retérica espalharam-se por muitas 4reas em que a “cultura” é um objeto problematico recente de descri¢io e critica. Este livro, embora parta do trabalho de campo e de seus textos, abre-se para a pratica mais abran- gente de escrever sobre, contra e entre culturas. Este taio de agao de alcance indefinido inclui, para citar apenas algumas perspectivas em desenvolvimen- to, a etnografia histérica (Emmanuel Le Roy Ladurie, Natalie Davis, Carlo Ginzburg), a poética cultural (Stephen Greenblatt), a critica cultural (Hayden White, Edward Said, Fredric Jameson), a andlise do conhecimento implicito e das praticas cotidianas (Pierre Bourdieu, Michel de Certeau), a critica das estruturas hegeménicas de sentimento (Raymond Williams), o estudo de co- munidades cientificas (seguindo Thomas Kuhn), a semiética dos mundos exéticos € dos espacos fantasticos (T'zvetan ‘Todorov, Louis Martin) e todos 34 Acscrita da cultura: pottica¢ politica da emografia aqueles estudos que abordam sistemas de significados, tradices em conflito ou artefatos cultutais. Essa complexa érea interdisciplinar, cuja abordagem toma aqui, como ponto de partida, uma crise na antropologia, é diversa ¢ esté em transforma cao. Por isso, nao quero impor uma falsa unidade aos ensaios exploratérios que se seguem. Embora compartilhem uma simpatia getal por abordagens que combinam poética, politica ¢ hist6ria, eles divergem varias vezes entre si. Muitas contribuicdes combinam teoria literiria e etnografia. Algumas explo- ram os limites dessas abordagens, sublinhando os petigos do esteticismo ¢ os constrangimentos do poder institucional. Outras defendem ardorosamente formas experimentais de escrita. Mas, cada qual a seu modo, todas analisam priticas atuais e passadas a partir de um compromisso com possibilidades futuras, Veem a escrita etnogafica como inventiva, em estado de transfor- macio: “a Historia”, nas palavras de William Carlos Williams, “deveria ser pata nds como a mio esquerda de um violinista”. Hk ‘As abordagens “literétias” vém, nos tiltimos tempos, ganhando certa popularidade nas ciéncias humanas. Na antropologia, esctitores influentes como Clifford Geertz, Victor Turner, Mary Douglas, Claude Lévi-Strauss, Jean Duvignaud e Edmund Leach, para mencionar apenas alguns, demons- traram interesse pela teotia ¢ prética literdrias. Cada um a sua maneira, bor- raram a fronteira que separa arte e ciéncia. Mas essa atracio nfo é inédita. As identificagdes autorais de Malinowski (Conrad, Frazet) so bem conhecidas. Margaret Mead, Edward Sapir ¢ Ruth Benedict viam a si mesmos como ao mesmo tempo antropdlogos e artistas literarios. Em Paris, 0 surrealismo e a etnografia profissional trocavam zegularmente tanto ideias quanto pessoas. ‘Mas, até tecentemente, as influéncias literdrias foram mantidas 4 distancia do cemne “‘rigoroso” da disciplina. Sapir e Benedict tiveram, afinal, que escon- der sua poesia do olhar cientifico de Franz Boas. E, embora os etndgrafos tenhham sido muitas vezes chamados de romancistas mangué (ptincipalmente aqueles que esctevern um pouco bem demais), a nocio de que procedimen- tos literftios perpassam qualquer trabalho de representagio cultural € uma ideia nova na disciplina. Pata um nmimero cada vez maior, contudo, a “na- cureza literéria” da antropologia — ¢, particulatmente, da etnografia — parece Introducio: Verdades parciais 35 ser muito mais do que uma questo de esctever bem ou de ter um estilo particular? Os processos literarios — metiifora, figuragio, narrativa — afe- tam as formas como fendmenos culturais so registrados, desde as ptimeiras “observagdes” rabiscadas até a versio final do livro, até chegar 4 forma como essas configuragdes “fazem sentido” em atos de leitura especificos.* Jé ha muito se afirma que a antropologia cientifica é também uma “arte”, que as etnografias tém qualidades literdrias. Escutamos com frequén- cia que um autor escreve com estilo, que determinadas descrigdes sio vividas ow convincentes (mas qualquer descrigdo precisa nfo deveria ser convincen- te?), Uma obra é considerada evocativa ou artisticamente composta, além de ser factual; fungdes expressivas ou retéricas sfio concebidas como decotati- vas ou apenas como maneiras de apresentar uma anélise ou descricéo objeti- va de forma mais eficaz. Assim, os fatos podem ser mantidos separados, a0 menos em prinefpio, de seu meio de comunicacio. Mas as dimensées litera- sia ow ret6rica da etnografia nao podem mais ser compartimentalizadas tio facilmente. Elas atuam em todos os niveis da ciéncia cultural. Na verdade, a propria nogdo de uma abordagem ““literéria” de uma disciplina, a “antropo- logia”, é seriamente enganosa. Os ensaios aqui teunidos nfo representam uma tendéncia ou perspec- tiva dentro de uma “antropologia” coerente (pace Wolf, 1980). A defini¢io da disciplina no modelo dos “quatro campos” — da qual Boas foi, talvez, 0 iltimo virtuoso — inclufa a antropologia fisica (ou biolégica), a atqueologia, 2 antropologia cultural (ou social) ¢ a linguistica. Poucos argumentatiam, hoje, a sério que esses campos compartilham uma abordagem ou objeto uni- ficados, embora 0 sonho continue, gracas, em larga medida, a arranjos ins- titucionais. Os ensaios deste volume ocupam um novo espaco aberto pela desintegracio do “Homem?” como #e/as de toda uma disciplina, ¢ recorrem a desenvolvimentos recentes nos campos da critica textual, da historia cultural, da semidtica, da filosofia hermenéutica ¢ da psicandlise. HA alguns anos, em > Uma lista parcial de obras que exploram esse campo em expansio do “literitio” na antropo- logia inclui (sem mencionar os colaboradotes deste volume): Boon (1972, 197, 1982); Ge- extz (1973, 1983); ‘Turner (1974, 1975); Fernandez (1974); Diamond (1974); Duvignaud (1970, 1973); Favret-Saada (1980); Favret-Saada e Contreras (1981); Dumont (1978); Tedlock (1983); Jammin (1979, 1980, 1985); Webster (1982); Thornton (1983, 1984). > Para uma teoria tropologica de realidades “pré-figuradas”, vet a obta de Hayden White (1973, 1978); ver, também, Latour ¢ Woolgar (1979), para uma concep¢io da atividade cientifica como “inscricio”. 3: poéticae politica da etnografia um ensaio vigoroso, Rodney Needham passou em teyista as incoeréncias te- dricas, as raizes entrelacadas, as companhias impossiveis e as especializagdes divergentes que pareciam estar conduzindo a uma desintegracio intelectual da antropologia académica. Ele sugeriu, com uma imparcialidade ir6nica, que © campo poderia, em breve, ser redistribuido por diversas disciplinas vizi- nhas. A antropologia, em sua forma atual, iria passar por uma “metamorfose iridescente” (Needham, 1970, p. 46). Este conjunto de ensaios faz parte des- sa metamorfose. Mas, se sio pés-antropologicos, séo, também, pés-literirios. Michel Foucault (1973), Michel de Certeau (1983) e Tetry Eagleton (1983) argumen- taram recentemente que “literatura” é, em si mesma, uma categoria transi- téria. Desde o século XVII, sugerem eles, a ciéncia ocidental teria excluido certos modos expressivos do seu repertorio legitimo: a retdrica (em nome da significagao transparente e “evidente”), a fic¢io (em nome do fyto) e a subjetividade (em nome da objetividade). As qualidades eliminadas da ci- éncia foram alocadas na categoria de “literatura”. Os textos literarios eram considerados metaféricos ¢ alegdricos, compostos de invengGes ao invés de fatos observados; concediam ampla elasticidade as emogées, as especulaces ¢ a0 “génio” subjetivo de seus autores. De Certeau observa que as ficcGes da linguagem literaria cram cientificamente condenadas (e esteticamente apreciadas) por carecerem de “univocidade”, do relato supostamente sem ambiguidades da ciéncia natural e da historia profissional. Nesse esquema, 0 discurso da literatura e da ficco é inerentemente instavel; ele “joga com a es- tratificacio do sentido; narra uma coisa para dizer outta; esboca a si mesmo em uma linguagem da qual retira continuamente efeitos de significado que no podem ser circunscritos ou verificados” (De Certeau, 1983, p. 128). Esse discurso, reiteradamente banido da ciéncia, mas com sucesso irregular, é in- cutavelmente figurativo e polissémico. (Sempre que seus efeitos comecam a ser sentidos muito abertamente, um texto cientifico parecera “literario”; a impressio sera de que usa metéforas demais, de que se apoia no estilo, na evocacao etc.)* “Pode-se objetar que estilo figurativo nao é o unico estilo, ou mesmo 0 tinico estilo poético, e ‘que a ret6tica também esta presente naquilo que € chamado de estilo simples. Mas, na verda- de, esse € apenas um estilo menos decorado, ou melhor, um estilo decorado de maneira mais simples, ¢ ele tem também, como 0 litico 0 épico, suas proprias figuras especiais. Um estilo do qual a figura esteja estritamente ausente nfo existe”, afirma Gérard Genette (1982, p. 47). Introdugio: Verdades parciais, | 37 Por volta do século XIX, a literatura havia despontado como uma instituicao burguesa intimamente aliada da “cultura” e da “arte”. Raymond Williams (1966) mostra como essa sensibilidade especial e refinada funciona- +a como uma espécie de tribunal de recutsos, em reagao aos deslocamentos © A vulgatidade atribuidos & sociedade industrial de classes. A literatura ¢ 2 arte eram, de fato, zonas circunscritas, nas quais os valores “mais clevados” nio utilitatios eam preservados. Ao mesmo tempo, exam dominios para encenacio de transgress6es expetimentais € avant-garde. Sob essa luz, as Formacdes ideol6gicas da arte ¢ da cultura nao tém qualquer sfafus essencial ou eterno. Encontram-se em mudanga ¢ em contestagio, como a retérica especial da “literatura”. Os ensaios que se seguem nfo recorrem, na verdade, 2 uma pritica literétia demarcada como um dominio humanizados, estético ou criativo, Lutam, cada um a seu jeito, contra as definigbes prontas de arte, Ireratura, ciéncia ¢ historia. E, se as vezes sugetem que a etnografia ¢ uma “arte”, devolvem a palavra a um uso mais antigo — antes que fosse associada 2 uma sensibilidade mais elevada ou rebelde -, a0 significado que tinha no <éculo XVII, tal como recuperado por Williams: a arte como modelagem habilidosa de artefatos uteis. A construcio da etnografia é artesanal, ligada ao srabalho mundano da escrita. ‘A eserita etnografica é determinada a0 menos de seis maneitas: (1) contextualmente (cla ctia e se apoia em meios sociais significativos); (2) reto- ricamente (usa e é usada por convengGes expressivas); (3) institucionalmente escreve-se dentro, e contra, tradig6es, disciplinas e publicos especificos); (4) do ponto de vista do género (uma etnografia pode, geralmente, ser distingui- « da de um romance on de um relato de viagem); (5) politicamente (a autosi- dade para septesentar realidades culturais € distribuida de forma desigual e, por vezes, contestada); (6) historicamente (todas as convencoes € constran- gimentos acima esto em mudanca). Essas determinacdes regulam 0 registro de ficgdes etnograficas coerentes. Chamar etnografias de ficcdes pode suscitar contendas empiticistas. Mas a palavra, tal como vem sendo comumente utilizada na teoria textual recente, perdea sua conotacio de falsidade, de algo que apenas se opde 2 verdade. Sugere a parcialidade das verdades culturais e hist6ricas, as formas nas quais so sisteméticas e exclusivas. Os esctitos etnogrificos podem ser adequadamente chamados de ficgBes no sentido de “algo feito ou mode- lado”, 0 que é o sentido principal da raiz latina da palavea, fingere. Mas € 38 A cscrita da cultura: poética e politica da etnogralia importante preservar o sentido nio apenas de construcio, mas também de ctiagio, de invengao de coisas que nao sao de fato reais. (Fingere, em alguns de seus usos, implica certo grau de falsidade.) Os cientistas sociais inter- ptetativistas come¢aram, recentemente, a encarar as boas etnografias como “fiegdes verdadeizas”, mas, em geral, a0 pteco de enfraquecer o oximoro, reduzindo-o @ alegagiio banal de que todas as verdades so construidas. Os ensaios aqui reunidos preservam a perspicdcia do oximoro. Por exemplo, Vincent Crapanzano retrata os etndgrafos como malandros, prometendo, como Hermes, nio mentit, mas sem nunca se comprometer também a con- tar toda a verdade. Sua retérica fortalece ¢ subverte sua mensagem. Outros ensaios reforcam 0 ponto ¢ enfatizam que as ficgdes culturais se baseiam em exclusdes sistematicas e questiondveis. Essas exclusées podem envolver 0 silenciamento de vozes incongruentes (“O caso de Dois Corvos nega isso!”) ou 0 emprego recorrente de uma forma de citar, “falando em some de”, traduzindo a realidade dos outros. Circunstincias histdricas ou pessoais su- postamente irrelevantes também serio excluidas (nao se pode contar tudo). Além disso, 0 ctiador (mas por que somente um?) de textos etnograficos nao pode evitar figuras de linguagem, imagens ¢ alegorias que selecionam ¢ impdem sentido 4 medida que o traduzem. Nesta visio, mais nietzschiana do que tealista ou hermenéutica, todas as verdades construfdas sao tornadas possiveis pot meio de “mentiras” poderosas de exclusio e retérica. Mesmo os melhores textos etnograficos — ficcSes sétias, verdadeiras — so sistemas, ou economias, de verdade. O poder e a histéria atuam por seu intermédio, de formas sobre as quais os autores nfo tém pleno controle. As verdades etnograficas so, assim, inerentemente parviais— engajadas € incompletas. O ponto é hoje amplamente reiterado — e questionado em aspectos estratégicos por aqueles que temem o colapso de padrées claros de verificagio. Mas, uma vez aceito e incorporado @ arte etnografica, um senso tigoroso de parcialidade pode set uma fonte de juizo representacio- nal. Uma obra recente de Richatd Price, First-Time: The historical vision of an Afro-American people (1983), € um bom exemplo de parcialidade séria ¢ auto- consciente. Price reconta as condigées especificas de seu trabalho de campo entre os Saramaka, uma sociedade Maroon do Suriname. Somos informados a respeito dos limites externos ¢ autoimpostos da pesquisa, sobre informan- tes especificos e sobre a construcio do artefato escrito final. (O livro evita uma forma aplainada, monolégica, apresentando-se literalmente como uma montagem, cheia de buracos.) First-Time € uma evidéncia do fato de que Inerodugio: Verdades parciais, 39 uma autoconsciéncia politica e epistemol6gica aguda nio precisa levar a uma antoabsoroio etnogrifica, ou A conclusio de que é impossivel ter certeza de qualquer coisa sobre outros povos. Em vez disso, 0 livro nos conduz a uma percepgio concreta de por que um conto popular Saramaka, nartado por Price, ensina que “conhecimento é poder, e que nunca se deve revelar tudo o que se sabe” (Price, 1983, p. 14). Uma complexa técnica de revelagio ¢ de segredo regula a comunica- co (reinvengiio) do conhecimento dos “Primeiros Tempos”, um saber so- bre as lutas cruciais da sociedade pela sobrevivéncia no século XVIII. Com © emptego de técnicas de frustracio, digressio ¢ incompletude deliberadas, os anciZos transmitem seu conhecimento histérico aos parentes masculinos mais jovens, de preferéncia na hora do canto do galo, que antecede ama- shecer, Essas estratégias elipticas, de ocultacio e revelacio parcial, determi- nam as relagdes etnograficas tanto quanto a transmissao de hist6rias entre gerages. Price tem que aceitar 0 fato paradoxal de que [..] qualquer natrativa Saramaka (inclusive aquelas natradas durante 0 canto do galo, com a intengio explicita de comunicagio de conhecimento) deixara de fora muito daquilo que o natrador sabe sobre 0 acontecimento em ques- tio, O pressuposto é de que 0 conhecimento de uma pessoa deve aumentar Ientamente, ¢ s6 se conta a alguém, sobre qualquer aspecto da vida, um pou- quinho mais do que o falante supde que cle ja sabe (Price, op. cit, p. 10). Logo se toma evidente que nfo existe um corpus “completo” de conhe- cimento dos “Primeiros ‘Tempos”, que ninguém — ainda mais etnégtafo visitante — pode ter acesso a esse saber, a nfo ser por meio de uma sétie infinita de encontros citcunstanciais ¢ perpassados pelo poder. “Aceita-se que os diversos histotiadores Saramaka terio versdes diferentes, ¢ cabe a0 ouvinte compot para si mesmo a versio de um acontecimento que ele, na- quela ocasiio, aceita” (ibid., p. 28). Embora Price, o historiador e etndgrafo escrupuloso, armado com a escrita, tenha construido um texto que supera em extensio aquilo que os individuos sabem ou contam, esse texto, ainda assim, “representa apenas a ponta do iceberg que os Saramaka preservam cole- finamente sobre os Primeiros Tempos” (ibid., p. 25). ‘As questdes éticas levantadas pela formagio de um arquivo escrito de um saber secteto € oral sfio consideraveis, e Price lida com elas abertamente, 40 Acscrita da cultura: poéticae politica da etnografia Parte da solugio adotada foi minar a completude (mas niio a setiedade) de seu préprio relato por meio da publicacio de um livro que é uma série de fragmentos. O objetivo nio é indicar lacunas lamentaveis que permanecem em nosso conhecimento acerca da vida Saramaka no século XVIII, mas, em vez disso, apresentar um modo de conhecimento intrinsecamente imperfei- to, que gera lacunas a medida que as preenche. Embora 0 proprio Price nio esteja livte do desejo de esctever uma etnogtafia ou uma histéria completas, de retratar “todo um modo de vida” (ibid., p. 24), a mensagem da parcialida- de ecoa por todo 0 livto. Os etnégtafos sio mais ou menos como 0 cacador Cree que (de acor- do com a hist6ria) veio a Montreal para testemunhar em um julgamento relativo ao destino das terras onde cacava, no novo projeto hidrelétrico de James Bay. Ele deveria descrever seu modo de vida. Mas, quando foi fazer 0 juramento, hesitou: “Nao tenho certeza se posso dizer a vetdade... S6 posso dizer 0 que sei”. E importante lembrar que a testemunha falava de forma astuta, em um determinado contexto de poder. Desde 0 ensaio seminal de Michel Lei- ris, em 1950, “L’Bthnographe devant le colonialisme” (mas por que tio tar- diamente?), a antropologia vem tendo que lidar com a determinacio hist6- rica € 0 conflito politico em seu meio. Uma década veloz, de 1950 a 1960, vin 0 fim do impétio transformar-se em um projeto amplamente aceito, se nao um fato concreto. A “stixation colonialé’ de Georges Balandier tornou-se siibrtaiare bviarel (19S5)RAs aelagUCStimipetiais ommnis'e iifotmaielalaNo eram a regra aceita do jogo — a ser reformado gradativamente, ou ironica- mente ultrapassado, de diversas maneiras. Essa “situagao” foi sentida, em primeiro lugar, na Franca, em larga medida devido aos conflitos vietnamitas e argelinos e através dos esctitos de um grupo etnogtaficamente consciente de intelectuais e poetas negtos, o movimento négritude de Aimé Césaire, Lé- opold Senghor, René Ménil ¢ Léon Damas. As paginas de Présence Africaine, no inicio dos anos 1950, criaram um férum incomum pata a colaboragio entre esses esctitores € cientistas sociais, tais como Balandier, Leiris, Marcel Griaule, Edmond Ortigues e Paul Rivet. Em outtos paises, a crise de conscience elo tit ponco nals tates Pade-se jpensar'no influctite: ensaiorde Jacques Tnwodugio: Verdades parciais 41 Maquet, “Objectivity in Anthropology” (1964), em Reinventing Anthropology de Dell Hymes, nas obras de Stanley Diamond (1974), Bob Scholte (1971, 1972, 1978), Gérard Leclere (1972) ¢, em particular, na coletinea Anthropology and the colonial encounter de Talal Asad (1973), que estimulou um debate bastante esclarecedor (Firth et al., 1977). Nas imagens populares, o etndgrafo passou de um observador soli- diario ¢ dotado de autoridade (cuja melhor encarnagio, talvez, seja Margaret Mead) para a figura pouco lisonjeira retratada por Vine Deloria em Custer died fr your sins (1969). Na verdade, o retrato negativo acentuou-se, por vezes, 20 ponto da caricatura — 0 ambicioso cientista social que se apropria do conhe- cimento tribal sem oferecer coisa alguma em toca, divulga retratos toscos de povos refinados ou (mais recentemente) se deixa iludir por informantes sofisticados. Essas imagens sfo tao realistas quanto as vers6es heroicas an- reriores da observacio participante. O trabalho etnografico de fato enredou- se em um mundo de desigualdades de poder duradouras ¢ em estado de sransformacio, e essas implicacdes continuam. Esse trabalho coloca em cena relacdes de poder. Mas sua fungio nessas relacdes é complexa, por vezes ambivalente, e potencialmente contra-hegeménica. Em muitas partes do mundo surgem, hoje, regtas diferentes pata o jogo da etnografia. Um estranho que estude as culturas nativas ameticanas pode esperar, talvez como exigéncia para que possa continuar sua pesquisa, ser chamado a testemunhat em favor de conflitos em torno de reivindicagdes de terras. E muiltiplas restricdes formais so agora impostas ao trabalho de campo pelos governos nativos, em niveis nacional ¢ local. Essas restrigdes condicionam a partir de novas formas aquilo que pode, e, especialmente, que nao pode ser dito sobre povos especificos. Uma nova personagem entrou em cena: 0 “etndgrafo nativo” (Fahim (org), 1982; Ohnuki-Tierney, 1984). Nativos que estudam suas proprias culturas oferecem novos angulos de vi- s&o ¢ ptofundidade de entendimento. Seus relatos séo, ao mesmo tempo, empoderados ¢ restritos, de formas muito particulares, As diversas regras pos ¢ neocoloniais para a pratica etnogrifica no necessariamente geram re- latos culturais “melhores”. Os critérios para se avaliar um bom telato nunca foram definidos ¢ esto em transformacio. Mas o que surgiu a partir de todas essas mudancas ideolégicas, alteracdes nas regras ¢ novos compromissos é © fato de que uma sétie de pressdes histdricas comecou a reposicionar a antropologia em relacio a seus “objetos” de estudo. A antropologia jé nao fala com uma autotidade automatica em nome de outtos definidos como in- 42 Accrita da culeura: poéticae politica da exnografia capazes de falar pot si mesmos (“primitivos”, “sem escrita”, “sem hist6ria”). Outros grupos stio mais dificeis de alocar em tempos especiais, quase sempre passados ou passando — representados como se nio estivessem envolvidos em sistemas mundiais atuais, que ligam os etndgrafos com os povos que estudam. As “culturas” no posam para fotografias. As tentativas de fazé-las posat sempre envolvem simplificagdes ¢ exclusdes, a selegio de um foco temporal, a construg&o de uma telagio eu-outto especifica € a imposicio ou a nepociagio de uma relagao de poder. ‘A ctitica do colonialismo no perfodo do pés-guerta — uma fragilizacio da capacidade do “Ocidente” de representar outtas sociedades — foi reforca- da por um processo importante de teorizagao quanto aos limites da propria representacio. Nao ha forma alguma de avaliar adequadamente essa critica multifacetada daquilo a que Vico se referiu como 0 “poema sério” da his- t6tia cultural, H4 uma proliferacio de posigdes: “hermenéutica”, “estrutu- talismo”, “histéria das mentalidades”, “neomarxismo”, “genealogia”, “pds- -estruturalismo”, “pés-modernismo”, “pragmatismo”; hd, também, uma avalanche de “epistemologias alternativas” — feminista, étnica e nfo ociden- tal. © que esta em questo, embora nem sempre seja admitido, é uma critica em cutso dos discursos mais tipicos ¢ arraigados do Ocidente. Ha varias filosofias que talvez tenham esse olhar critico implicitamente em comum. Por exemplo, 0 deslindamento do logocentrismo de Jacques Derrida, dos gregos a Freud, ¢ 0 diagnéstico bastante distinto de Walter J. Ong das conse- quéncias da escrita compattillham uma rejeigo mais abrangente das formas institucionalizadas pelas quais uma grande parte da humanidade construiu, ha milénios, 0 seu mundo. Novos estudos histéricos dos padrdes hegems- nicos de pensamento (o marxismo, a Ficole des Annales, o foucaultianismo) compartilham com estilos recentes de critica textual (a semidtica, as teorias da recepcio, 0 pés-estruturalismo) a conviccio de que aquilo que parece “real” na histétia, nas ciéncias sociais, nas artes, ¢ até mesmo no senso co- mum, pode sempre set analisado como um conjunto restritivo € expressivo de cédigos e convengées sociais. A filosofia hetmenéutica em seus diversos estilos, de Wilhelm Dilthey ¢ Paul Ricoeur a Heidegger, lembra-nos de que os mais simples relatos culturais sio criagdes intencionais, que os intérpretes constantemente constroem a si mesmos através dos outros que estudam. As ciéncias da “linguagem” do século XX, de Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson a Benjamin Lee Whorf, Sapir ¢ Wittgenstein, tornaram impossivel fagir as estruturas verbais sistematicas e situacionais que determinam todas Tncrodugo: Verdades parciais 43 as representagoes da realidade. Finalmente, a volta da retérica a um lugar im- portante em muitas Areas de investigacio (cla havia sido, durante milénios, 0 cerne da educagio ocidental) possibilitou uma anatomia detalhada de modos expressivos convencionais. Aliada 4 semistica e 4 anilise do discurso, a nova ret6rica esti voltada para o estudo daquilo que Kenneth Burke chamou de “esttatégias para englobar as situacdes” (Burke, 1969, p. 3). Trata-se menos de como falar bem do que de como falar, e de como agir de forma significa- tiva, em um mundo de simbolos culturais publicos. © impacto dessas criticas est comegando a se fazer sentir na percep- co da etnografia em relagio a seu proprio desenvolvimento. Histérias no celebratérias esto se tornando comuns. As novas histérias tentam evitar o mapeamento da descoberta de algum saber atual (as origens do conceito de cultura, e por af vai); e so suspeitas de promover ou destituir precursores intelectuais com 0 objetivo de confirmar um patadigma especifico. (Para essa liltima abordagem, ver Harris [1968] e Evans-Pritchard [1981]). Ao invés disso, as novas hist6tias tratam as ideias antropolgicas como enredadas nas priticas locais e nos constrangimentos institucionais, como solugdes circuns- tanciais e muitas vezes “politicas” para problemas culturais. Elas entendem a ciéncia como um ptocesso social. Enfatizam as descontinuidades historicas, bem como as continuidades, das priticas passadas ¢ atuais, coma mesma fre- quéncia com que fazem 0 conhecimento atual parecer permanente, estivel. A autoridade de uma disciplina cientifica, nesse tipo de relato histérico, sera sempre mediada pelas reivindicacées de retdrica ¢ de poder? Outro impacto importante da critica politico/tedrica da antropologia que vem se avolumando pode ser brevemente resumido como uma rejeicio do “visualismo”. Ong (1967, 1977), entre outros, estudou as formas pelas quais os sentidos sio organizados hictarquicamente em diferentes culturas Exclai dessa categoria as diversas historias das ideias “antropolégicas”, que precisam sempte ter uma organizasao evolucionista. Incluo 0 vigoroso historicismo de George Stocking, que muitas vezes tem 0 efeito de questionar as genealogias disciplinares (ver, por exemplo, Sto- cking, 1968, pp. 69-90). A obra de Terry Clark sobre a institucionalizacio das ciéncias sociais (1973) e a de Foucault (1973) sobre a constituicio sociopolitica das “formacdes discursivas”” apontam nessa direcio que estou indicando. Ver, também, Hastog (1980), Duchet (1971), di- versas obras de De Certeau (por exemplo, 1980), Boon (1982), Rupp-Fisenreich (1984) e 0 volume anual History of Anthropology, organizado por Stocking, cuja abordagem vai muito além da historia das idcias ou da teoria. Uma abordagem semelhante pode ser encontrada em estu- dos sociais zecentes da pesquisa cientifica: por exemplo, Knorr-Cetina (1981), Latour (1984), Knorr-Cetina e Mulkay (1983). 44 Acscrita da cultura: poticae politica da etnografia © épocas. Ong argumenta que a verdade da visio nas culturas letradas oci- dentais predominou sobre as evidéncias do som e da intetlocucio do tato, do olfato e do paladar. (Mary Pratt obsetvou que as referéncias ao cheiro, muito proeminentes em relatos de viagem, so virtualmente ausentes das etnografias.") As metiforas predominantes da pesquisa antropolégica tém sido a observacio participante, a coleta de dados e a descricao cultural, que pressupdem, todas elas, uma visio externa — observar, objetificar ou, um pouco mais de petto, “ler” uma dada realidade. A obra de Ong foi utilizada como uma critica da etnografia por Johannes Fabian (1983), que explora as consequéncias de se tomar os fatos culturais como coisas observadas, a0 invés de, por exemplo, escutadas, inventadas em didlogo ow transcritas, Se- guindo Frances Yates (1966), 0 autor argumenta que a imaginagio taxondmi- cano Ocidente tem uma natureza fortemente visual, constituindo as culturas como se fossem teatros da meméria, ou arranjos espacializados. Em uma polémica de mesmo tipo contra o “orientalismo”, Edward Said (1978) identifica imagens recorrentes por meio das quais os europeus norte-americanos visualizaram as culturas orientais e arabes. O Oriente fun- ciona como um teatro, um palco no qual se repete uma performance, a set assistida de um ponto de vista privilegiado. (Barthes [1977] atribui a estética burguesa emergente de Diderot uma “perspectiva” semellnante.) Para Said, © Oriente é “textualizado”; suas hist6rias miultiplas e divergentes ¢ suas ca- tegorias existenciais sio entrelagadas de forma coerente de modo a compor um corpo de signos que pode ser lido pelos virtuoses. Esse Oxiente, ocul- to e fragil, é trazido 4 luz amorosamente, resgatado na obra do intelectual estrangeiro. © efeito de dominac&o nesses embates espaciais/temporais (¢ que nio se limitam, é claro, a0 orientalismo em si) é a attibui¢io ao outro de uma identidade nitida, enquanto a0 mesmo tempo fornecem, ao observador consciente, um Angulo de observacao a partir do qual pode ver sem set visto, pode ler sem set interrompido. Uma vez que as culturas no sejam mais prefiguradas visualmente — como objetos, teatros, textos —, torna-se possivel pensar em uma poética cultural que seja uma interacio entre vozes, entre elocugées posicionadas. Em um paradigma discursivo, ¢ nao visual, as metdforas predominantes © Observacio feita por Pratt no seminério de Santa Fé. A relativa desatencio para com 0 som esti, comecando a ser corrigida nos escritos etnogrificos recentes (por exemplo, Feld, 1982). Paza cexemplos de uma obra que dedica uma atengio incomum ao sensorial, ver Stoller (1984a, 1984b). Introdugio: Verdades parciais 45 na etnografia afastam-se do olho observador em diregio 8 fala (€ a0 gesto) expressivos. A “voz” do esctitor perpassa ¢ situa a anilise, ¢ renuncia-se retdrica objetiva e distanciada. Renato Rosaldo argumentou e exemplificou recentemente esses pontos (1984, 1985). Outras alteracdes na encenacio do texto sio advogadas por Stephen ‘Tyler neste volume. (Ver, também, Tedlock, 1983) Os elementos evocativos ¢ performativos da etnografia so, assim, legitimados. E 0 problema poético crucial de uma etnografia discursiva passa a set como “alcangar, por meios esctitos, aquilo que a fala ctia, e como fazé-lo sem simplesmente imitar a fala” (Tyler, 1984c, p. 25). Por outro Angulo, podemos notar quanto foi dito, como critica e elogio, sobre o olhar etnogrifico. Mas, e a escuta etnogrifica? E nesse ponto que Nathaniel ‘Tarn quer chegar, em uma entrevista na qual fala sobre sua experiéncia como um homem tricultural, um francés/inglés em processo interminavel de transformago em americano. ¥ possivel que se trate moais uma vez do etnégrafo ou do antropdlogo com os ouvidos bem abertos para aquilo que considera como exético em oposi¢io ao familiar, mas ainda acho, quase todos os dias, que estou descobrindo algo novo no uso da lingua aqui. Aprendo expresses novas quase todos os dias, como se a linguagem estivesse brotando a partir de toda fonte concebivel (Tarn, 1975, p. 9). ee O interesse nos aspectos discursivos da representagio cultural chama a atengio nio pata a interpretagdo de “textos” culturais, mas para suas rela- ces de produgio. Estilos divergentes de escrita esto, com graus variados de sucesso, digladiando-se com essas novas otdens de complexidade ~ regras € possibilidades diferentes no hotizonte de um momento histérico. As prin- cipais tendéncias experimentais foram revisadas, detalhadamente, em outro lugar (Marcus ¢ Cushman, 1982; Clifford, 1983a). Aqui, basta mencionar a tendéncia geral em direcio a uma especficagao dos discursos na etnografia: quem fala? Quem escteve? Quando ¢ onde? Com quem ou pata quem? Sob quais limites institucionais e histéricos? Desde a época de Malinowski, 0 “método” da observacao partici- pante oscilou em um equilibrio delicado entre subjetividade e objetivida- 46° Acscrca da cultura: ptties politica da etnografia de. As experiéncias pessoais do etnégrafo, principalmente as experiéncias de participagao e empatia, sio teconhecidas como centrais no processo de pesquisa, mas sio firmemente contidas pelos padrdes impessoais de observagio e de distancia “objetiva”. Nas etnografias classicas, a voz do autor sempre estcve manifesta, mas as convengées da apresentacio textual ¢ da leitura proibiam uma conexdo muito proxima entre o estilo autoral ea realidade representada. Embota possamos facilmente discernit 0 sotaque tipico de Margaret Mead, de Raymond Firth ou de Paul Radin, ainda assim nfio podemos nos referir aos samoanos como “meadianos” ou chamar os Tikopia de uma cultura “firthiana” to livremente como falamos de mun- dos dickensianos ou flaubertianos. A subjetividade do autor € separada do referente objetivo do texto. Na melhor das hipéteses, a voz pessoal do autor é vista como um estilo em seu sentido mais fraco: uma tonalidade, ou uma ornamentacio dos fatos. Além disso, a experiéncia de campo teal do etnégrafo s6 € apresentada de maneiras muito estilizadas (por exemplo, as “historias de chegada” discutidas adiante por Mary Pratt), Os momentos de séria confusio, sentimentos ou atitudes violentas, censuras, fracassos importantes, mudancas de rumo e prazeres excessivos sio excluidos dos relatos publicados. Nos anos 1960, esse conjunto de convengdes expositivas se estilhacou. Os etnégrafos comegaram a esctever sobre suas experiéncias de campo de formas que perturbaram o equilibrio predominante entre subjetivo/objetivo. Perturbagdes anteriores ja haviam ocorrido, mas foram mantidas 4 margem: © extravagante L'Arique fantime de Leitis (1934); Tristes tropiques (cujo impac- to mais forte fora da Franga sé se deu apés 1960); ¢ o importante Return to Jaughter de Elenore Smith Bowen (1954). Ei sintomatico que Laura Bohannan, no inicio dos anos 1960, tenha tido que se disfarcar como Bowen e aptesen- tar sua narrativa de campo como um “romance”. Mas as coisas estavam mu- dando sapidamente, ¢ outros — Georges Balandier (L’Afrigue ambigué, 1957), David Maybury-Lewis (The savage and the innocent, 1965), Jean Briggs (Never in Anger, 1970), Jean-Paul Dumont (The Headman and I, 1978) e Paul Rabinow (Reflections on fieldwork in Morocco, 1977) — logo estavam escrevendo “factual- mente” com scus prdprios nomes. A publicagio dos diétios de Malinowski em Mailu e Trobriand (1967) estragou todos os planos. A partir dai, um pon- to de intettogacio implicito passou a set colocado ao lado de qualquer voz Inccodugio: Verdades parciais 47 etogrifica abertamente confiante e estiivel. Quais desejos e confusées ela estaria atenuando? Como a sua “objetividade” era construida textualmente?” Um subgénero da escrita etnografica surgiu: 0 “relato de campo” au- torreflexivo. As vezes sofisticados, as vezes ingénuos, ora confessionais, ora analiticos, esses relatos criam um forum importante de debates sobre uma ampla gama de temas epistemol6gicos, existenciais ¢ politicos. O discurso do analista cultural nfo pode mais ser, sinaplesmente, 0 discurso do “obser- dot” experiente, descrevendo e interpretando costumes. Os ideais da ex- periéncia etnogrifica e da observacio participante passam a ser vistos como >roblematicos. Novas estratégias textuais sio experimentadas. Por exemplo, imeira pessoa do singular (nunca banida das etnografias, sempre pessoais de forma estilizada) passa a ser empregada de acordo com novas conven- es. Com 0 “relato de campo”, a ret6rica da objetividade experienciada de o lugar 4 autobiografia e ao autorretrato irdnico. (Ver Beaujour, 1980, ¢ une, 1975.) O etndgrafo, um petsonagem de uma ficco, ocupa 0 ptos- . Ele ou ela podem falar sobre t6picos antes “irrelevantes”: violencia esejo, confusées, brigas ¢ transagdes econdmicas com os informantes. es assuntos (desde ha muito discutidos informalmente na disciplina) sai- com das margens da etnografia e passaram a ser vistos como constitutivos € capaveis (Honigman, 1976). Alguns telatos reflexivos buscaram especificar 0 discurso dos infor- ates, bem como 0 discurso do etnégrafo, encenando didlogos ou narran- > confrontos interpessoais (Lacoste-Dujardin [1977], Crapanzano [1980], Duyer [1982], Shostak [1981], Mernissi [1984]). Hssas ficgdes de diélogo tem efeito de transformar o texto “cultural” (um ritual, uma instituigio, uma ia de vida, ou qualquer unidade de comportamento tipico a ser descrita interpretada) em um sujeito falante, que vé tanto quanto é visto, que se iva, discute e investiga de volta. Nessa concepeio de etnografia, o refe- re adequado de qualquer relato nfio é um “mundo” representado; trata-se, zora, de instincias especfficas de discurso. Mas o ptincfpio da produgio cual dialdgica vai muito além da apresentagio mais ou menos habilidosa eacontros “reais”. Ele aloca as interpretacdes culturais em muitos tipos contextos reciprocos e obriga os escritores a encontrar diversas maneiras Explorei a relagio entre subjetividade pessoal e relatos culturais dotados de autotidade, vistos Ficedes que se reforcavam mutuamente, em um ensaio sobre Malinowski e Conrad ford, 19852). 48 Acscrica da cultura: postica ¢ politica da etnografia de apresentar realidades negociadas como multissubjetivas, atravessadas pelo poder ¢ incongruentes. Nessa visio, a “cultura” € sempre zelacional, uma ins- cric&o de processos comunicativos que existe, historicamente, ere sujeitos em telacées de poder (Dwyer [1977], Tedlock [1979)). Os modos dialégicos nfo sio, em principio, autobiograficos; aio precisam levar a uma hipetautoconsciéncia ou autoabsor¢io. Conforme mostrou Bakhtin (1981), os processos dialdgicos proliferam em qualquer ¢s- paco discursivo reptesentado de forma complexa (como a etnografia ou, no caso dele, um romance realista). Muitas vozes clamam por expresso. A poli- vocalidade foi restringida ¢ orquestrada nas etnografias tradicionais por meio da concessio 2 uma voz de uma funcao autoral onipresente ¢ da alocagio das outras no papel de fontes, “informantes” a serem citados ou parafrase- ados, Quando 0 dialogismo ¢ a polifonia sio reconhecidos como modos de produgio textual, a autoridade monofSnica passa a ser questionada e apon- tada como caracteristica de uma ciéncia que reivindicou representar culturas. A tendéncia a especificar os discursos — historicamente © intersubjetivamente — muda o lugar dessa autoridade, e, nesse processo, altera as questes que fazemos 4s descrigdes culturais. Basta citarmos dois exemplos recentes. O primeiro envolve as vozes ¢ leituras dos nativos norte-americanos, 0 segun- do diz respeito as mulheres. James Walker é amplamente conhecido por sua monografia cléssica The Sun Dance and other ceremonies of the Oglala division of the Teton Sioux (1917). Trata-se de um trabalho de interpretacio cuidadosamente observado ¢ do- cumentado. Mas nossa leitura precisa agora set complementada — ¢ alterada ~ por um vislumbre extraozdinario de suas “construgdes”. Foram publicados trés titulos em uma edigio em quatro volumes de documentos coletados pelo autor quando trabalhava como médico e etndgrafo na Reserva Sioux de Pine Ridge, entre 1896 e 1914.0 primeizo (Walker, Lakota belief and ritual [1982a], editado por Raymond DeMallie ¢ Elaine Jahnet) é uma colagem de anotacdes, entrevistas, textos e fragmentos de ensaios escritos ou falados por Walker e por diversos colaboradores Oglala. Esse volume lista mais de trinta “qutoridades”, ¢, sempre que possivel, as contribuigdes trazem 0 nome de seu enunciador, escritor ou transctitor. Esses individuos nao sao “{nforman- tes” etnograficos. Lakota belie’ & uma obra esctita de maneira colaborativa, editada de uma forma que atribui o mesmo peso retérico a diversas verses Introdugio: Verdades parciis 49 tradigio. As descrigdes e interpretagdes do proprio Walker sao fragmen- tos entre fragmentos. O etnégrafo trabalhou junto com os intérpretes Charles ¢ Richard Ni- nes, e com Thomas 'Tyon e George Sword, os quais redigitam extensos en- saios em Lakota antigo. Esses ensaios foram agora traduzidos e publicados pela primeira vez. Em uma longa segio de Lakota belief; Tyon apresenta expli- cagdes que obteve junto a diversos xamis de Pine Ridge; ¢ é muito revelador ex questes de crenca (como, por exemplo, a qualidade crucial e de dificil definigao de “wakan”) interptetadas em estilos diferentes e idiossincriticos. O resultado € uma versio da cultura em processo que resiste a qualquer sin- rese final. Em Lakota belief os editores fornecem detalhes biogtaficos sobre Walker, com pistas sobre as fontes individuais dos escritos em sua colecio, reunidos pela Colorado Historical Society, pelo American Museum of Natu- zal History e pela American Philosophical Society. O segundo volume publicado foi Lakota society (1982b), que retine do- cumentos que guardam alguma relaciio com aspectos da organizacio social, bem como com conceitos de tempo e histéria. A inclusao de extensas Con- zagens de Inverno (os registros histéricos Lakota) e de lembrancas pessoais de eventos histéricos confirma as tendéncias recentes de questionar distin- ces excessivamente claras entre os povos “com” e “sem” historia (Rosaldo, 1980; Price, 1983). O terceito volume é Lakota myth (1983). E 0 Ultimo traz 08 escritos traduzidos de George Sword. Sword foi um guerreito Oglala, que mais tarde se tornou juiz do Tribunal de Causas Indigenas* de Pine Ridge. Com o incentivo de Walker, ele escreveu um registro vernacular detalhado da vida cotidiana, incluindo mitos, rituais, guerras e jogos, complementado por uma autobiografia, ‘Tomadas em conjunto, essas obras oferecem um registro incomum da vida Lakota, com multiplas atticulagdes, em um momento crucial da sua hist6ria — uma antologia em trés volumes de interpretagées ¢ transcri¢des ad hoe pot mais de vinte individuos ocupantes de um espectro de posicées distintas em relagao 4 “tradi¢ao”, actescidas de uma visio claborada do con- junto tedigida por um escritor Oglala em posicio privilegiada de observacio. Isto torna possivel avaliar criticamente a sintese feita por Walker desses di- versos materiais. Quando completos, os cinco volumes (incluindo The Sun Danéé) constituirio um texto expandido (disperso, no coeso) representando ® “Court of Indian Offenses”. (N. do‘T:) 50 A cscrita da cultura: pocicae politica da etnografia um momento particular de producio etnografica (€ nao a “cultura Lakota”). E esse texto extenso, ao invés da monografia de Walker, que precisamos agora aprender a ler. Esse conjunto abre novos significados ¢ desejos em uma poesis cultural continua, A decisio de publicar esses textos foi provocada por reivindica- c6es feitas A Colorado Historical Society por membros da comunidade de Pine Ridge, na qual eram necessarias cépias para as aulas de historia Oglala. Para outros leitores, a “Colegio Walker” oferece licées diferentes, propician- do, entre outras coisas, um modelo pata uma etnopoética contendo histéria (e individuos). E dificil dar a esses materiais (muitos dos quais sio muito bonitos) a identidade atemporal e impessoal de, digamos, um “mito Sioux”. Além disso, a questio de quem esoreve (representa? transcreve? traduz? edita?) afitmagées culturais é inescapavel quando se trata de um texto expandido dessa natureza. Aqui, o etnégrafo j4 no detém direitos inquestionaveis de resgate: a autoridade hd muito associada 4 tarefa de dar a um saber oral esqui- vo, “em extingao”, uma forma textual legivel. Nao est4 clato se James Walker (ou qualquer outro) pode ser considerado como autor desses escritos. Essa falta de clareza é um sinal dos tempos. Os textos ocidentais sio, tradicionalmente, atrelados a autores. As- sim, talvez seja inevitavel que Lakota belief, Lakota society Lakota nyth se- jam publicados sob o nome de Walker. Mas, a medida que a poesis plural e complexa da etnografia se tora mais aparente — ¢ politicamente catregada =, as convencées comecam, de formas sutis, a se alterar. A obra de Walker pode ser um caso incomum de colaboracio textual. Mas ela nos ajuda a ver ‘os bastidores. Uma vez que os “informantes” comecem a set considerados como coautores, € 0 etndgrafo como um esctiba e arquivista, bem como um observadot intérprete, poderemos colocar questdes novas ¢ ctiticas a todas as etnografias. Qualquer que seja sua forma monolégica, dialégica ou polifo- nica, as etnografias sfo arranjos hierirquicos de discursos. Um segundo exemplo da especificagio dos discursos diz respeito ao género, Abordarei primeiro as formas pelas quais o género pode se impor & eitura de textos etnograficos ¢, em seguida, explorarei como a exclusio de perspectivas feinistas deste volume limita e direciona seu ponto de vis- ta discursivo. Meu primeiro exemplo, entre os muitos possiveis, é Divinity and experience: the religion of the Dinka, de Godfrey Lienhardt (1961), que esta, seguramente, entre as mais refinadas etnografias da literatura antropologi- ca recente. Sua interpretagio fenomenoldgica da percepcio Dinka do seif Introdugdo: Verdades parciais. 51 Go tempo, do espaco e dos “Poderes” € inigualavel. Por isso, é um choque mando percebemos que o retrato de Lienharde diz respeito, quase que exclu- ivamente, a experiéncia dos homens Dinka Quando fala sobre “os Dinka”, pode ou nfo estar falando também sobre as mulheres. Muitas vezes, nao é el saber com base no texto publicado. Os exemplos escolhidos sio, da forma, esmagadoramente centrados em homens. Uma répida leitura apitulo de introducio do livro sobre os Dinka ¢ seu gado confirma esse ato. H4 uma tinica mengao & visio de uma mulher, ¢ ela se refere & afirma- 2 relaciio dos homens com as vacas, nada dizendo sobre a forma como sulheres vivenciam o gado. Essa observacio introduz uma ambiguidade passagens tais como “os Dinka mnuitas vezes interpretam acidentes ou idéncias como atos de Divindade, distinguindo 0 verdadeiro do falso com base em sinais que aparecem aos homens” (Lienhardt, 1961, p. 47). O do pretendido da palavra “homens” é, com certeza, genético, mas, cer- exclusivamente de exemplos extraidos da experiéncia masculina, desliza um sentido generificado. (Esses sinais aparecem para as mulheres? As encas sio significativas?) Termos como “os Dinka” ou “Dinka”, usados longo de todo o livro, tornam-se igualmente ambiguos. O ponto, aqui, ndo é acusar Lienhardt de parcialidade; seu livro aborda zénero em uma medida incomum, O que extraimos dai, a0 contritio, so a ria e a politica que intervém na nossa leitura. Os intelectuais britinicos certa casta e época dizem “homens” quando se teferem a “pessoas” com frequéncia do que outros grupos, um contexto histérico e cultural que je menos invisivel do que jé foi. A parcialidade do género que esté em stio aqui no era um problema quando o livro foi publicado, em 1961. fosse, Lienhardt o teria abordado dietamente, como etndgtafos mais te- tes se sentem agota obtigados a fazer (como, por exemplo, Meigs, 1984, xix). Nao se lia “A Religiéo dos Dinka” na época como se deve ler hoje, a teligiio dos homens Dinka ¢ apenas, talvez, das mulheres Dinka. Nossa tarefa é pensar historicamente sobre 0 texto de Lienhardt € suas pos- veis leituras, incluindo a nossa, a medida que o lemos. Dividas sisteméticas sobre géneco na representacio cultural s6 se torna- 2 correntes a partir da década passada, em alguns ambientes, sob a pressio do feminismo. Muitos retratos das verdades “culturais” parecem agora refletit s dominios masculinos da experiéncia. (E hi também, é claro, casos inver- os, embora muito menos comuns: por exemplo, a obra de Mead, que muitas vezes se concentrava nos dominios femininos e generalizava, a partir dai, para 52 Acscrita da culeura: poéticae politica da eumnografia a cultura como um todo) Ao reconhecer esses vieses, contudo, é importante Jembrar que nossas préptias versbes “completas” irio inevitavelmente parecer parciais; e, se muitos retratos culturais agora parecer mais limitados do que antes, isso é um indicio da contingéncia € do movimento histérico de todas as leituras. Ninguém Ié a partir de uma posisio neutra ou definitiva. Essa precaugio Sbvia é muitas vezes esquecida em novos relatos que se propdem consertar as coisas ou a preenchet uma lacuna no “nosso” conhecimento. Quando se percebe uma lacuna no conhecimento, e quem a pet- cebe? De onde vém os problemas?” Obviamente, trata-se de mais do que simplesmente perccber um eto, um bias ou uma omissio. Escolhi exemplos (Walker e Lienhards) que enfatizam 0 papel dos fatores politicos ¢ historicos na descoberta da parcialidade discursiva. A epistemologia ai implicada nao pode fazer as pazes com uma nocio de progresso cientifico cumalativo, ¢ a parcialidade em questio € mais forte do que o ditame cientifico normal de que estudemos os problemas por partes, de que no genetalizemos em de- masia, de que o melhor quadzo é construido pela justaposi¢ao de evidéncias sigorosas. As culturas no sio “objetos” cientificos (presumindo-se que tais coisas existam, mesmo nas ciéncias naturais). A cultura, bem como as visbes gue temos “disso”, so produzidas historicamente ¢ ativamente contestadas. Nio existe um quadro integral que possa ser “preenchido”, ja que a percep- cio e o preenchimento de uma lacuna conduzem 4 consciéncia de outras Jacunas. Se a experiencia das mulheres tem sido significativamente excluida dos relatos etnogrificos, 0 reconhecimento dessa auséncia, bem como sua corregio em muitos estudos recentes, agora jlumina o fato de que a experi- éncia dos homens (como sujeitos generificados, € fio como tipos culturais _ “Dinka” ou “Trobtiandeses”) é, ela também, largamente subestudada. A medida que t6picos canénicos tais como “parentesco” séo submetidos a um escrutinio critico (Needham, 1974; Schneider, 1972, 1984), novos problemas relativos 4 “sexualidade” tornam-se visiveis. E por af vai. B evidente que sabemos mais sobre os Trobriandeses do que se sabia em 1900. Mas este “nds” exige uma identificagao historica. (Talal Asad argumenta, em seu texto neste volume, que o fato de que esse conhecimento costume ser inscrito em determinadas linguas “fortes” nao é cientificamente neutro.) Se a “cultura” no é um objeto a ser descrito, entio também no é um corpus unificado 3” Rio foi a cegonha que trouxe!” (David Schneider, em conversa pessoal). Foucault descreven sua abordagem como uma “histéria das probleméticas” (1984). Introdusio: Verdades parciais, | 53 ¢ simbolos e significados que podem ser definitivamente interpretados. A cultura é contestada, temporal e emergente. A representago ¢ a explicagio — tanto por parte de nativos quanto de estranhos — estfio implicadas nesse argimento, A especificagio dos discursos que venho tracando é, assim, mais ) que uma questio de se fazer reivindicagées claramente delimitadas. Essa especificagio é intciramente historicista ¢ autorreflexiva. Com este espirito, volto-me agora para o presente volume. Todos se- o capazes de se lembrar de individuos ou perspectivas que deveriam ter do incluidos, O foco da coletanea a limita de uma forma que seus autores zganizadores podem apenas esbocat. Os leitores poderiam observar que 0 seu bias antropol6gico deixa de lado a fotografia, o cinema, as teorias da per- formance, 0 documentario, o romance nio ficcional, o “novo jornalismo”, a hist6ria oral e diversas formas de sociologia. O livro dé relativamente pouca atengao as novas possibilidades etnogrificas que tém surgido a partir da ex- periéncia no ocidental e da teoria e da politica feministas. Deixem que eu me detenha nessa iltima exclusao, pois ela diz respeito a uma influéncia in- selectual e moral pazticularmente forte ao ambiente universitétio, a partir do gual esses ensaios foram produzidos. Por essa razfo, sua auséncia exige um comentario. (Mas, 20 me dedicar a essa exclusio em particular, nao pretendo com isso afirmar que ela ofereca um ponto de vista privilegiado a partir do gual é possivel perceber a parcialidade do livro.) As teorizagdes feministas slo, obviamente, de grande relevincia potencial pata se repensar a escrita ognifica, Elas colocam em questo a construgio politica e histérica das identidades e das relagées self/outro, ¢ examinam as posigdes generificadas que fazem com que todos os relatos de, ou feitos por, outros povos sejam inevitavelmente parciais."° Por que, entio, este livro nfo inclui texto algam escrito sob um ponto de vista essencialmente feminista? Muitos dos temas que abordei acima se apoiam em obtas feministas recentes. Alguns teéri- cos problematizaram todas as perspectivas totalizantes € arquimedianas (Jehlen, 1981). Muitos repensaram seriamente a construcio social da relacio ¢ da diferenga (Chodorow, 1978; Rich, 1976; Keller, 1985). Muito da pritica feminists questiona a separago estrita entre subjetivo € objetivo, enfatizando formas processuais de conhecimento, estabelecendo intimas conexdes entre processos pessoais, politicos e representacionais. Outeas vertentes aprofundam a critica de modos de vigilincia e descrigio de base visual, relacionando-os 4 dominagio € ao desejo masculino (Mulvey, 1975; Kuhn, 1982). Formas narrativas de representacio sio analisadas quanto as posigdes genetificadas que reencenain (De Lautetis, 1984). Alguns escritos feminis- tas trabalharam para politizar e subverter todas as esséncias ¢ identidades naturais, incluindo 2 “feminilidade” e a “mulher” (Wittig, 1975; Irigaray, 1977; Russ, 1975; Haraway, 1985). 54 Acsctia da cultura: podtica e politica da etmografia O volume foi planejado como publicagio de um seminario limitado pela instituigiio promotora a dez participantes. Foi definido institucionalmen- te como um seminario “avangado”, ¢ seus organizadores, George Marcus ¢ eu, aceitamos esse formato sem question4-lo. Decidimos convidar pessoas que estavam fazendo trabalhos “avangados” sobre nosso tpico; com isso, queriamos dizer pessoas que j4 houvessem contribuido significativamente pata a anilise da forma textual etnogrifica. A bem da coeréncia, situamos o seminario dentro, ¢ nas fronteiras, da disciplina antropolégica. Convidamos participantes bem conhecidos por suas contribuigdes recentes para a aber- tura de possibilidades para a escrita etnografica, ou que sabiamos estar com pesquisas adiantadas relevantes para o nosso foco. O seminatio foi pequeno, e sua formacio, ad hoc, refletindo nossas redes intelectuais e pessoais espect- ficas, bem como nosso conhecimento limitado dos trabalhos adequados em curso. (Nao vou abordar petsonalidades individuais, amizades etc., embora sejam também evidentemente relevantes.) ‘Ao planejar o seminario, fomos confrontados pelo que nos pareceu um fato ébvio — importante ¢ lamentavel. O feminismo nao havia contri- buido muito pata a andlise tedrica das etnografias como textos. Nos espa- os em que mulheres haviam feito inovages textuais (Bowen, 1954; Briggs, 1970; Favret Saada, 1980, 1981), clas nao fizeram sobre bases feministas. Algumas poucas obras muito recentes (Shostak, 1981; Cesara, 1982; Mer- nissi, 1984) haviam refletido, em sua forma, alegagdes feministas quanto & subjetividade, & relacionalidade e a experiéncia feminista, mas essas mesmas formas textuais eram compartilhadas pot outras obras experimentais néio feministas, Além disso, suas autoras nio pareciam estar dialogando com as, teorias sobte texto e retdrica que queriamos aproximar da etnografia. Nosso foco estava, assim, na teoria textual bem como na forma textual: um foco defensavel e produtivo. Com esse foco, no podiamos recorrer a quaisquer debates ja desen- volvidos getados pelo feminismo sobre priticas textuais ctnogrificas. Algu- mas poucas indicacdes muito iniciais (por exemplo, Atkinson, 1982; Roberts (org), 1981) etam tudo 0 que jf havia sido publicado. B, desde eatfo, a si- macio nfio mudou muito. O feminismo coatribuiu claramente com a teoria ‘gozizs “antropoldgicas” tais como natureza e cultura, pablico e privado, sexo e género foram também questionadas (Ortner, 1974; MacCormack e Strathern, 1980; Rosaldo ¢ Lamphere, 1974; Rosaldo, 1980; Rubin, 1975). | 5 Inerodusio: Verdades parciais 55 antropoldgica. E diversas etnégrafas, como Annette Weiner (1976), estio vamente reescrevendo o cénone masculino. Mas a etnografia feminista se dedicado ou 4 corregio do que se diz sobre as mulhetes ov 4 tevisio ¢ categorias antropolégicas (por exemplo, a oposigao natureza/cultura). A ografia feminista nao produziu formas no convencionais de escrita ou ama reflexio desenvolvida sobre a textualidade etnografica em si. As razdes para este quadxo getal precisam de uma investigaco cuida- dosa, ¢ este nfo é 0 lugat para isso." No caso do nosso seminario e do nosso ‘0, ao enfatizar a forma textual e privilegiar a teoria textual, delimitamos -Spico de uma maneira que excluiu determinadas formas de inovacio et- gréfica. Esse fato apateceu nas discussdes travadas durante o seminatio, quais ficou claro que havia forcas institucionais concretas — tais como os padrdes da obtencio de estabilidade no emprego, os cAnones, a influ- das autoridades disciplinares, as desigualdades de poder em nivel glo- — que eram inescapfveis. Sob essa perspectiva, questes de contedo na ografia (a exclusio € a incluso de experiéacias diferentes no arquivo an- poldgico, a reescrita de tradigdes estabelecidas) tornaram-se diretamente -vantes. E, foi aqui que os esctitos feministas ¢ no ocidentais tiveram seu maior impacto.” Sem ditvida, nossa separa¢io nitida entre forma e conteido — nossa fetichizagio da forma — foi, e é, contestavel. E um bias que pode ‘0 bem estat implicito no “textualismo” modernista. (A maioria de nds, rante 0 seminirio, com excegio de Stephen Tyler, ainda nfo era inteira- ate “pés-moderna”!) O easaio inédito de Marilyn Strathern (1984), “Dislodging a World View”, também discutido por "zal Rabinow neste livro, inaugura a investigagio. Deborah Gordon esti desenvolvendo uma -nilise mais completa, em uma tese em preparaciio no Programa de Histéria da Consciéncia da Universidade da Califéenia, em Santa Cruz. Devo muito as conversas que mantive com ela. No original, “tenure patterns”. (N. do T.) ossivel que seja geralmente verdade que grupos ha muito excluidos das posices de poder rucional, tais como as mulheres ou as pessoas de cor, tenham menos liberdade de fato para empreender experimentacdes textuais. Para escrever de forma heterodoxa, sugere Paul Rabinow neste livro, é preciso primeiro alcangar a estabilidade. Em contextos especificos, a prsocupacio com a autorreflexividade com o estilo pode ser um indicio do esteticismo dos Pavilegiados. Porque, se uma pessoa nao precisa se preocupar com a exclusiio ou com a repre- seatagio verdadeiea de sua experiéacia, ela tem mais liberdade para questionar as formas de rar, para privilegiar a forma em detrimento do contetido. Mas fico pouco 4 vontade com a cio geral de que um discusso privilegiado pode se conceder o prazer da reflexdio sobre su- -as estéticas ou epistemolégicas, enquanto 0 discurso marginal “dria como as coisas sio”. itas vezes 6 0 contratio, (Ver o ensaio de Michael Fischer neste volume) BG Acscrica da cultura: pottica e politica da etnografia Enxergamos tudo isso melhor, é claro, agora que a tarefa esté conclu- ida e 0 livto, terminado. Mas, mesmo antes, em Santa Fé, tivemos intensas discussdes sobre a exclusio de diversas perspectivas importantes ¢ sobre 0 que fazer com elas. Como organizadores, decidimos nao tentar “preencher” © volume buscando novos textos. Isso nos pareceu uma forma falaciosa de “acio afirmativa intelectual”,!* que tefletiria uma aspiragio a uma falsa com- pletude. Nossa resposta ao problema dos pontos de vista excluidos foi deixa- -los ostensivos. © presente volume é, assim, uma intervencio limitada, sem qualquer aspitacio 4 abrangéncia ou a dat conta de uma area. A luz que lana é forte e parcial. kee Uma consequéncia importante dos movimentos histéricos ¢ tedricos tragados nesta “Introdugio” foi abalar as bases a partir das quais pessoas ¢ grupos representam com seguranca os outros. Uma guinada conceitual, de implicacdes “tectOnicas”, teve lugar. Apoiamo-nos, hoje, sobre uma terra em movimento. Nio hé mais um angulo abrangente de observagio (no topo da montanha) a partir do qual mapeat os modos de vida humanos, nenhum ponto atquimediano a partir do qual representar 0 mundo. As moatanhas estio em movimento constante, bem como as ilhas: pois nao se pode ocu- par, sem qualquer ambiguidade, um mundo cultural de froateizas nitidas, a partir do qual se aventurar e analisar outras culturas. Os modos humanos de vida cada vez mais influenciam, dominam, parodiam, traduzem ¢ subvertem uns aos outros. A anilise cultural esta sempre perpassada por movimentos globais de diferenga ¢ poder. Um “sistema mundial”, seja ld como for que seja definido — e aqui usamos a expresso de modo lato — conecta, hoje, as sociedades do planeta em um proceso hist6rico comum.'* Diversos ensaios deste volume partem desse pressuposto. Suas énfa- ses variam. Como, pergunta George Marcus, pode a etnografia — em casa ou naio — definir seu objeto de estudo de formas que permitam ao mesmo tem- po uma anilise detalhada, local e contextual ¢ a descticio de forcas de im- * No oziginal, “tokenism”. (N. do T) +5 O termo, é claro, é de autoria de Wallerstein (1976). Considero, contudo, que seu forte senso de uma direcio tinica para 0 processo histérico global é problematico, ¢ concordo com as observacdes de Ortner (1984, pp.142-43). Introdugio: Verdades parciais. 57 plicagio global? As estratégias textuais aceitas para a definicio de dominios turais, com a separaciio dos niveis micro e macro, nao so mais adequadas desafio. Marcus explora novas possibilidades de escrita que nublam a cinco entre antropologia e sociologia, subvertendo uma divisto do traba- iho improdutiva. Talal Asad também discute a interconexio sistematica das ciedades do planeta. Mas revela a existéncia de desigualdades duradouras dlaciais, que impdem formas excessivamente coerentes sobre a diversidade coundial e posicionam fitmemente qualquer pratica etnografica. “Tradugdes” cultura, no importa quio sutis ou inventivas sejam em sua forma textual, rem dentro de relagdes entre linguas “fortes” e “fracas” que controlam © internacional de conhecimento. A etnografia ainda é, em larga medida, ema mua de mio tinica. O ensaio de Michael Fischer sugere que nogées de

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