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NOTA PRELIMINAR * FRANKLIN DE OLIVEIRA NA HOJE CLAssica Theory of Literature Austin Warren e René Wel- lek afirmam que: Embora toda obra literdria seja uma constelagéo de sons da qual emerge um sentido, em muitas obras 0 phonetic stratum reduz-se a um minimo, fazen- do-se didfano, como nas novelas. (Every work of literary art is, first of all, a series of sounds out of which arises the meaning. In some literary works, this stratum of sounds is minimized in its importance; and it becomes, so to speak, diaphanous, as in most novels.) Mas, ainda nestas obras, 0 estrato sénico é condigdo prévia de sentido. (But even there the phonetic stratum is a necessary precondition or the meaning.) O principal-mérito de Minerério de Pasargada, de Manuel Ban- deira, primeira biografia estritamente literéria que se publica no Brasil — histdria da formagao de uma inteligéncia poética e nao apenas relato de uma vida de poeta — esté na maneira licida pela. qual coloca o problema das relagées das literatura com a miisica. A questao nado é nova. Para esgotd-la em sua numerosa pro- blemética os alemaes chegaram a criar uma ciéncia: a Schallana- lyse. Atividade paralela foi fundada pela Escola de Praga ao esta- belecer uma Fonologia Estilistica. Os Formalistas Russos amplia- ram consideravelmente esses estudos transpondo as pesquisas sobre @ estrutura musical da forma literéria do campo do verso para: o campo da ficcao. Em lingua inglesa a bibliografia sobre a matéria é rica, e continua a receber contribuigées da importancia das obras de Calvin §. Brown’ e de E. K. Brow.* No Brasil, modesta tenta- tiva nossa,de abordar esses problemas encontrou obtusa resisténcia. Eis porgte a leitura das memérias poéticas de Manuel Bandeira significou, para nds, uma esperanga de que as dreas mais sérias da cultura brasileira se possam tornar mais sensiveis a reformulagao do problema das relacoes da musica com a literatura. ' Itinerdrio de Pas4rgada limita o campo deste debate a esfera da poesia, come nao poderia deixar de ser, por ser livro sobre a expe- riéncia poética de Manuel Bandeira. A questao da estrutura musical da ficgao, que é a que mais nos apaixona, ficard, pois, para outra Publicado in Correio da Manha, Rio de Janeiro, 4 de janciro de 1958, sob ? titulo: “A Flauta de Papel’. ie, vee oe 1o.f8'¥in 8, Brown, Muste and Literature: Geéreia, University of Georsin Press, el, V of Toronto 2 bi K. Brow. Rhythm i rc nive EIRA / POESTA COMPLETA E PRog, rroblema entre », lidade dominap; 30 MANUEL BAND! olocagao do P' i ira traz @ C ta oportunidade. Bandeira 116 Até agora a@ men te porém, uma nova dimensao. | ANiade do verso apenas quando dk ia a music 1 mais agressiva. O yen! era a que reconhecia oie 5 se) inanifestava, gee D jou aiissonancias, naquilo que W. cheio, sustentado em aliteragoes ou homophonic relation 3, & Wimsait chama verbal orchestration, OF SES a Pouce fini ela sua inflagao eu) 2 y Pev or see matrizes odor Maret Bandera: ee ee a eee poet iz M ‘ s i ra, de dcido sabor mas t aC u P i Orde. eee fe uma resolugdo ou solugao a fee fine e sutil quanto ,menos ostensiva. Uma music 5 a externa. a ai indo, mas a aseado nfo 6 0 fraseado redondo, ie lugar exato ¢ cada palavra tem uma funcig aramente musical, ¢ nao serve senig , ada parcela da frase por suas ressonancix, Cedo compreendi que o bom fri em que cada palavra esta no seu precisa, de carater intelectivo ou pi palavras cujos fonemas fazem vibrar ¢ anteriores e posteriores. : Music offered them the perfect analogy for the fleetingnes and. elusiveness of their poetic experiences.+ Pelos caminhos da misica que Bandeira chegou a “‘musicalidade subentendida” de sua poesia. Tomar um tema e trabalhé-lo em variacdes — [escreve Bandeira] — on, como na‘ forma sonata, tomar dois temas e opé-los, fazé-los, embolarem, je. rirem-se ¢ estracalharem-se e dar a vitéria a um ou, ao contrdrio, apazigui-los num entendimento de todo repouso:.. creio que nao pode haver maior delicia em matéria de arte. i Apesar da confissao ndo cre os de soe Quarta-Feira de Cinzas”, toda a obra poética de Bat- “ira obedeca a@ uma estrutura corresponde: sicais como a da sonata. Sua musicalidade + 5 eee we parece ser no sentido da musicalidade de T. §. Eliot quando este - a declara que: Os elementos pelos quais @ miisica mals intere : ne @ miki tis interessa ao poeta sao o ritmo ¢ apresentarem analoglag ees desenvolvimento te ie 5 : ul pees de instrume; raveis ao movimento de uma dades de disposi¢éo co) which music concerns the = a ull sense of structure, os = fo the development ein (ue Ossibi for wen Sense of rhythm and t Bossbilties ‘of ‘transitions ‘in e panne some Cad Ba tom dem conmp instruments; there Of subject-matierna Camtets ble to the different moveme el 8 W. K.. Wimsatt nae 1954, hg loseph Chiari. Symb 5 TS. Eliot. The Mu i INTRODUCAO GERAL / ITINERARIO DE PASARGADA 31 Seu Four Quartets estd estruturado rigorosamente dentro de um esquema e de uma ordem composicional musical. Eliot's musical models for “Four quartets” have note been finally isolated, but it is generally understood that the intended an analogy with Beethoven’s late quartets. 6 Com efeito, em Four Quartets cada “quarteto” possui uma dis- posigGo que sugere a de uma sonata com seus movimentos de ex- posigao, desenvolvimento, recapitulagéo e coda. Em seu L’Esthéti- que des “Fleurs du Mal”,* D. J. Hubert. analisa os poemas bau- delarianos como fugas, nas quais ouvimos ao mesmo tempo duas “melodias” diferentes. A musicalidade da poesia de Bandeira nao decorre da organizagao do poema, nao emerge do processo de elaboracgéo do poema, mas resulta da natureza intrinseca da emogao poética: musica como que. armada quase que numa sé equagao de siléncio — tio fina se esconde na ultima camada audivel da palavra; misica que come¢ga onde a palavra acaba. Confessa Bandeira a forca mdgica, religiosa (penso em An die Musik, que ndo é um lied, mas uma oragao), com que atuou sobre a sua sensibilidade aquilo que, no Doktor Faustus, Thomas Mann chama “o mundo glorioso da cangao alema’. Longa e fundamente deixou-se penetrar da ternura, o lirismo, a delicadeza — que sei? — desse rumor de asas noturnas, sonho, despedida e tristeza que povoam o universo dos lieder de Schubert, Schumann, Brahms e Hugo Wolf, universo pensado pelo que a miisica tem de mais intimo e tocante. Nenhum poeta brasileiro tem servido mais do que Ban- deira @ necessidade de expresso artistica dos grandes compositores brasileiros: Villa-Lobos, Camargo Guarnieri. Justamente porque des- cobrem a musicalidade latente de Bandeira, nela nossos composi- tores sentem que podem inserir a sua musicalidade propriamente musical. E que, como tao seguramente disse Andrade Muricy, na “musicalidade subentendida, por vezes inexpressa ou simplesmente indicada” de Bandeira os miisicos brasileiros descobrem “uma co- laboragéo que ndo ird constitutr uma superescritura, mas que se fundird com a obra poética, intimamente”. Um dos maiores exem- Plos dessa “musicalidade subentendida” esté no poema “Debussy”. las é preciso reconhecer que se a musicalidade recéndita é a mais treqiiente em Bandeira, ela cede, por vezes, lugar a uma outra, mais audivel, mais nitida, de que “Berimbau” talvez seja o exem~ plo mais expressive, com seu solitdrio e penado acento de assom- bragao amazénica. Em “Berimbau”, o verso, pela vibragao de suas células, atinge os limites da mitsica pura. O fluxo sonoro nao se interrompe: entre palavra e palavra, nao hd ponto morto, espaco Cy Stover Smith, Jr. 7. §, Eliot's Poetry and Play. Chicago, University of Fhicago, 1956, 4 D. J. Hubert. L’Esthétique des “Fleurs du Mal”. Geneve, Cailer, 1953. MANUEL BANDEIRA / POESIA COMPLETA E PROS4 a ser alinhavado. A angelical sabedoria mozartiana. de dar vitajj. dade ao tecido conjuntivo e tratar com o mdximo de perfeicao ay irias e os pontos de passagem é também a sabedo. linkias intermedia o i ria de Bandeira. Gronde artifice; eis que grande artista. ~ 32

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