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Resenha (Edi¢ao n° 39) “Civilizacdo e revolta: os Botocudos ¢ a catequese na Provincia de Minas", por| Carmen Liicia Silva Lima (*) Dados do ive resennado: art Nome da autora: Izabel Missagia de Mattos E REVOUA Titulo da obra: Civiizagao e revolta: os Botocudos e a catequese na Provincia de Minas Editora: EDUSC Namero de paginas: 492 Civilizacao e revolta situa a histéria dos indios Botocudos numa tela de complexas relagées interétnicas, marcadas pela implantago de um proceso civlizador de administragao indigena, Em meio as estas relacdes, revela singularidades capazes de demonstrar e de caracterizar a especificidade da experiéncia histérica deste grupo indigena em seus aspectos séciocosmolégicos. O recorte cronolégico adotado compreende os anos de 1873 a 1911, periodo de funcionamento da misso do tambacuri. Ao longo deste intervalo, é valido ressaltar, a sociedade brasileira passou por intensas transformagSes e instabilidades ocasionadas pela abolicdo da escraviddo, proclamagdo da republica, separagao ofcial entre a Igreja @ o Estado e as migragées ocasionadas pelas secas. Empreendida pelos indigenas aldeados, a revolta de ltambacuri, ocorrida em 1893, toma-se uma metafora da relagao de contradigao existente entre as forgas atuantes para a integragao nacionalizadora as que deflagraram movimentos de diviséo, buscando a recuperagao da autonomia local. Iniciaimente, a autora discute as especificidades lingiiisticas ¢ culturais dos Botocudos através de um exame das fontes histéricas e etnograficas. Os documentos analisados possibilitaram a apreciagao dos sistemas de conhecimento e de corganizagao politica dos nativos e a conformagao dos servicos de catequese na Provincia de Minas. Jé a etnografia histérica, evidenciou que no interior da trama interétnica instaurada pelo indigenismo, verifica-se a sustentagao historica de formas e estratégias indigenas articuladas a partir dos esquemas etnopoliticos nativos. ‘A mesticagem ¢ abordada por uma descrigao e analise dos mecanismos sécio-simbélicos, tendo como locus privilegiado desta observagdo os aldeamentos, Os relatos dos missionérios, dos viajantes, dos administradores de Indios e dos inspetores das politicas territoriais, assim como as noticias propagadas pela impressa, permitircam a apreciagao da transformacao dos indigenas e do impacto da catequese sobre sua organizacao politica nestes espagos. No exercicio interpretative empreendido, merece destaque o fato que ao olhar para as identidades indigenas, a autora, soube articular perspectivas anallticas aparentemente antagénicas: estrutura e process. Assim, a diregao tedrico- metodolégica adotada na descricdo dos eventos contemplou aspectos do universo simbélico dos atores particulares e da histéria. Em conjunto, estes aspectos, endégenos e exégenos, possibilitaram o conhecimento do campo de forcas atuantes sobre a constituigaéo das formas assumidas pelos grupos indigenas em suas interagées. A luz da documentagao oficial, as situagées de aldeamento foram examinadas a partir de uma metodologia processual que possibilitou a contextualizagdo histérica dos acontecimentos, auxiliados por um instrumental etnolégico bastante adequado para a apreensao das ldgicas de conhecimento e organizagao séciopolitico nativa, As frequentes mobilizagdes das populagdes indigenas, presentes na vida cotidiana dos aldeamentos missionarios na Provincia de Minas, estao sugestivamente relacionadas aos sistemas sociocosmolégicos nativos. Contudo, através do esforco teérico de articulagao da perspectiva processual e estrutural, verifica-se que as formas indigenas nao podem ser definidas de maneira auténoma. A mistura ¢ a incorporacao da historia devem ser devidamente equacionadas a esta configuracao. E significativo o esforgo da autora em nao limitar a dinamica da identidade dos Botocudos a uma mera resposta a pratica evangelizadora dos missionérios. Para ndo cair neste equivoco, oportunamente, s4o abordadas as tansformagies ocorridas nas relagées sociais no interior da misao, privilegiando as dimensées simbdlicas pré-existentes no universo indigena, arficulando, assim, os principios sociocosmolégicos dos Botocudos na histéria. © xamanismo, visto como a articulagao de uma “consciéncia histérica” no pensamento indigena, estaria intimamente relacionado as formas e as estratégias politicas e guerreiras tradicionais dos povos nativos. Segundo Missagia de Mattos, o idioma do xamanismo forneceu os elementos para a interpretagao da experiéncia historica das situagdes de aldeamento e norteou as estratégias de sobrevivéncia coletiva. Através do relato etnografico das situagées de rebeldia das populagdes aldeadas, 0 compartihamento deste idioma pelos diversos subgrupos Botocudos é atestado. A sustentaco das formas identificéveis ao longo do processo de colonizagao era orientada por lideres respeitados como xamas e curadores, detentores de poderes sobrenaturais capazes de propiciar o ideal de solidariedade necessario & existéncia da coletividade indigena, Com propriedade, ela mostra como os movimentos de rebeldia identificados nos aldeamentos foram promovidos alimentados por categorias do xamanismo, que definiam a compreensao do outro Elementos da civilizagao cristé séo apropriados pelos indigenas. Asociados a dimensao sobrenatural e ao poder politico estes elementos passam a integrar 0 universo indigena. Entre as fronteiras étnicas verifica-se, enldo, o transito da forga magica (yikég) © de simbolos cristaos. Esta abordagem nos permite vislumbrar a atualizagao dos principios sociocosmolégicos dos Botocudos de ltambacuri, inovados em meio a esta movimentacao, Estamos diante de um estudo sobre as fronteiras. Abrangendo os varios sentidos abrigados por este termo (geografico, simbélico, étnico e disciplinar), 0 enfoque adotado privilegiou os deslocamentos e as transgressoes presentes neste espago propicio para as resignificagdes simbélicas e reformulagées das estratégias séciopoliticas indigenas. Este 6, ainda, 0 locus privilegiado para anélise dos recursos dialégicos utilizados pelos diferentes atores envolvidos em constantes negociagdes dos diversos sentidos da sedugdo © da converséo civilizatéria, instrumento principal do indigenismo na Provincia de Minas Gerais e de todo o Império brasileiro. Na fronteira, a histéria vai sendo tecida por imigrantes europeus, romeiros, aventureiros, missionérios, retirantes, ex-escravos e Indios revoltosos. Inseridos nesta situagdo de contato, eles promoveram o didlogo, as trocas, os transitos entre os diversos mundos por eles habitados, entrecruzando estatutos, negociando significados, configurando identidades e construindo utopias. © exame lingUistico e etnolégico acurado empreendido pela autora nos permite contemplar as formas indigenas em movimento constante de dissolugao, mistura e reconstituigao. Sua abordagem ndo se limita ao relato, téo corriqueiro, de embate entre indios e branoos. Superando esta interpretagao, so evidenciadas as teias de relagdes interétnicas, marcadas por divergéncia de interesses, mostrando como se constr6i a histéria dos Botocudos. Esta histéria é tecida em um contexto em transformagao. Os empreendimentos extrativistas, agrérios e pecudrios vao prevalecendo nas matas de Mecuri, do Doce e adjacéncias. Junto com o crescimento populacional decorrente destas atividades, aparecem interesses distintos: dos indios, dos missiondrios, dos soldados, dos latifundiarios, dos sitiantes, dos escravos afticanos, dos migrantes europeus e dos nordestinos retirantes da seca de 1877. Ao acompanhar a dinamica social dos grupos indigenas ao longo do processo histérico de colonizagao e de implantacao das politicas indigenistas, a autora nos apresenta situacdes etnograficas privilegiadas para a investigagao antropologica, Através da andlise da trajetéria dos Botocudos, os atores indigenas ganham visibilidade enquanto participantes deste processo. As liderangas indigenas, as linguas, os sertanistas © os missionarios so abordados como operadores da mediacao, cujo idioma abarcou 0 xamanismo, a simbologia oristé, o discurso civilizador e a mestigagem. Estes distintos registros e linguagens possibilitaram a escrita de uma historia distinta da empreendida por missionérios e pela politica indigenista da época, que considera os indigenas apenas como derrotados, passivos ou assimilados, ‘Ao se ocupar do passado, a autora nos permite entender melhor o presente dos povos indigenas. 0 periodo facalizado pela pesquisa corresponde ao momento em que ocorre o desaparecimento das populacGes indigenas nao apenas em Minas Gerais, mas também em todo o Brasil. Possibilitando a compreensao deste fato, esta obra nos sugere que o desaparecimento dos indigenas esta mais relacionado & imposi¢ao de um modelo civilizador do que as situacées © Praticas do cotidiano. Em sintese, Civilizagao e revolta, produto da reconfiguracao da tese de doutoramento de Izabel Missagia de Mattos, defendida na UNICAMP, sob a orientagao de John Manuel Monteiro, atenta para a complexidade dos contextos e a diversidade dos atores sociais neles presentes, sem desconsiderar a imposigao do discurso civilizatério e das praticas evangelizadoras. A partir da andlise das fontes, resgatou as vozes indigenas, que foram muitas vezes, ou quase sempre, silenciadas por uma escrita unilateral da historia, Esta publicag&o comprova a fecundidade da aproximago entre a antropologia e a histéria, uma vez que desta relago brotam interpretagdes diferenciadas, que nos oferecem elementos oportunos para a desconstrugao das visoes equivocadas a cerca da existéncia indigena. Denominados de etno-histéria ou antropologia historica, 08 estudos desta natureza focalizam os indigenas como protagonistas de sua histéria, sujeitos capazes, mesmo em condigées adversas, de fazer suas escolhas e forjar estratégias pollicas. Por considerar este protagonismo, eles se opdem a cronica da destruigo e do desaparecimento que privilegiou a perspectiva do colonizador e que prevaleceu na interpretagéo da realidade nativa. (*) Carmen Licia Silva Lima @ bacharel em Ciéncias Sociais pela Universidade Federal do Ceard - UFC e mestre © doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal de Pemambuco - UFPE, Membro do Grupo de Estudos @ Pesquisas Etnicas ~ GEPE da UFC.

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