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KURT PAHLEN HISTORIA UNIVERSAL DA MUSICA Tradugao de A. Della Nina 5.9 Edicao Revista e anotada pelo Dr. JOSE DA VEIGA Membro efetivo da Associ titico music © de discon clit de “0 Euade de Soo Paulo", 3 EDIGOES MELHORAMENTOS Prefdcio Mostra-nos Paul Bekker que o ano de 1750 constitui uma “cesura na histéria da miisica € na histria da literatura do século. H4 uma geracio de grandes artistas que produz suas obras antes de 1750 ¢, uma outra, que as produz sensivelmente depoi as duas geragdes se acham na relagio de idade de avés para netos”. £ 1750 0 ano da morte de Bach, de quem se pode dizer que estatui, na_pratica, os fundamentos da linguagem harménica, a cuja evolugio € conseqiiente dissolucao atonal assistimos, no decorrer de dois séculos. Vir, portanto, desde os primérdios da musica, € mesmo da pré-histéria musical, como Kurt Pahlen, neste seu livro, para atingir os apices bachianos, e continuar até os tempos modernos — equivale a surpreender 0 longo processo histérico que culmina em fazer precipitar, entre as margens rigidas da tonalidade, caracterizada por um s6 tipo de escala, 0 rio da misica, sempre vario, onde o nosso espirito se abebera; e 0 vemos, por fim, des- pencar, tumultuoso, em saltos e diregdes imprevisiveis, talver para ganhar, no fu- turo, novos leitos mais tranqiiilos. £ vasta, portanto, essa visio panordmica que Kurt Pahlen nos oferece, ¢ no ne- cessiriamente revestida de complexidade progressiva, pois lanca éle a sugestiva hi- potese de que talvez ocorresse j4 a pratica da polifonia em civilizagoes recuadas, Cuja miisica, na tealidade, desconhecemos, mas cujos meios de fazer’ musica eram extraordinariamente ricos. Se éste livro de Kurt Pahlen, ao condensar os fatos que se encadeiam da Histéria da Musica, permite concebé-la como tendo em Bach um marco limitrofe — do qual, desde entdo, se vem afastando, sempre com maior intensidade, também nos concede © direito, ao dar balango 4 enorme série de material que aqui se ordena — material de diversidade estonteante, como é préprio da substincia da Histéria, e colorido, por vézes, de vivos tracos de pitoresco — de buscar novos Angulos para o espetdculo das metamorfoses continuas da cultura da musica, através dos tempos. Entre os varios sentidos que se desprendem do curso histérico_h4 também o que nos faz caracterizar a miisica, no s6 dos primitivos, mas de tédas as culturas que evolveram até o século XVIII, como atividade eminentemente interessada; s depois de Bach & que atinge a gratuidade artistica: e embora, a partir de Beethoven, se reforce ao extremo sua repercussio social, trata-se, sempre, de manifestagbes artis- ticas puras, que comovem, afetivamente, pelo influxo estético da beleza. Houve, sem duivida, antes de Bach, muita musica que hoje qualificariamos de pura. E depois de Bach tem havido muita musica que persegue objetivos extramu- sicais, Esquematica que seja, mas no arbitréria, aquela linha que se desprende do contexto histérico néo deixa, por isso, de indicar um dos grandes rumos que a miisica vem seguindo, no transcurso dos séculos. E significative que Bach, voltado para © pasado, 0 arauto do futuro, retina ésses dois aspectos: 0 de consagrar sua obra a Deus e de representar, hoje, um modélo, pela forca abstrata das suas cons- trugées, do miisico puro por exceléncia. Uma questio excessivamente controvertida da musica, de fato, tem sido a do seu contetido expressivo — quanto a possibilidade ou nao de o definirmos com clareza. HA os que consideram parasitéria téda a significagdo emocional da misica, suscetivel de formular-se verbalmente: proclamam que a misica vale e deve ser aceita s6 pelo puro prazer da contemplacio sonora. H4, ao contrario, os que estabelecem com a misica téda a sorte de paralelos, nao sb verbais, ou seja, literdrios, mas até com as cores, € mesmo com os perfumes, como no caso de Baudelaire... Essas analogias sfo, por vézes, irrecusaveis, ou, a0 menos, sugestivas. Parece-me, no entanto, que as duas opinides contririas podem conciliar-se em um certo plano, pois um equivoco total existe em pretendermos que a miisica represente diretamente determinados senti- 5 mentos ou emogGes. O que ela faz é, isso sim, desencadear estados de alma que equi- valem a ésses movimentos afetivos. Nao é um agente exterior da emosio, como um quadro, ou uma pagina literdria, mas um agente cuja percepcio se opera como se partisse em nés de dentro para fora, estimulando a dindmica do espirito, ¢ assim se projetando na consciéncia. Historicamente, téda a musica, quanto mais recuada no tempo, mais se carrega de significacgo explicita. Tinha, nos primérdios, sentido ritual; aparece, na Grécia, como parte de um complexo subordinado A expressio verbal poética; torna-se, na Idade Média, veiculo e agente sensibilizador para a prece, no canto gregoriano. Bach a utiliza como instrumento para as suas grandes iluminagdes misticas. J4 essa capacidade que possui de exaltar o senso religioso mostra que a misica é motora dos movimentos elementares do espirito. Ndo se trata apenas de representar ou de traduzir o sentimento religioso, mas de deflagrd-lo na imaginacio do ouvinte — ¢ isso a despeito de todo o simbolismo que Bach utilizou. Como acontece quando ouvimos uma Sonata de Beethoven, sente-se que se est4 passando um drama, em- bora nao saibamos qual. Se a medida que avancamos, na Histéria da Miisica, torna-se a “informulacio” uma palavra de ordem de estética, nio € menos verdade que o substrato humano da criagio musical deve conservar-se. Como todos os historiadores do nosso tempo, nio deixa Kurt Pahlen de aludir, com inquietude, aos ignorados rumos que a misica seguira. Por maiores, entretanto, que sejam as auddcias dos compositores ¢ experi- mentadores musicais contempordneos, uma coisa ¢ certa: s6 subsistira a musica que, dentro da sua pureza especifica, guarde, intata, suas relagdes com a alma, 0 coracio € 0 espirito humanos. EURICO NOGUEIRA FRANCA INDICE A Guisa de Introdugio 00... ..0006 00 cee ee eee cece eeeee eens Primeiro Livro: A ASCENSAO 1. A mtsica na vida humana .. . A misica na Antiguidade . O mundo helénico . Desaparece uma cultura e surge outra . A pitoresca época dos trovadores ..... ‘As cidades e a sua “nova arte” . O teatro na Idade Média . Rumo ao mundo moderno . . O nascimento da dpera Florenca: De um érro nasce a mais popular forma de mtisica Veneza: Surge Sua Majestade, o Ptiblico levees Népoles: O triunfo do “bel canto” A conquista do mundo tel Cera gn we Primeiro Intermezzo Segundo Livro: O APOGEU . 10. Bach, ou a fé ......--- ll. Handel, ou a férga de vontade . 12, Viena torna-se centro musical . 13. Haydn, ou a calma alegria .. 14. Mozart, ou o divino ........ 15. Beethoven, ou o rebelde solitario . 16. Schubert, ou a vida irreal .... 17. A valsa do império — 0 império da valsa . 18. A natureza do concérto e o virtuosismo 19. A épera em pleno florescimento . Os italianos Os franceses Os alemies A “Zarzuela” espanhola . 20. O triunfo do romantismo . Hector Berlioz .. 5 Felix Mendelssohn. Barthotdy 5 Robert Schumann . Franz Liszt ..... 1 13 17 26 32 38 43 49 53 60 60 62 65 68 72 7 79 87 92 98 104 112 128 135 141 149 150 153 156 158 161 165 167 169 172 21. O despertar musical dos povos Um punhado de terra polonesa: Frédéric Chopin . 117 A alma tcheca: Bedrich Smetana 180 O Oriente infinito e desconhecido: A Russia . 181 O alto Norte canta a sua solidao: Edvard Grieg 185 22. Wagner 28. Verdi, ou “O Cantor do seu Povo 24. Os ultimos romanticos .. A Maturidade da Opera Dois mtisicos de Deus: César Franck e Anton Bruckner .. 218 Johannes Brahms .. 217 A Flor do Romantism . 220 Dois Grandes Romdanticos Eslavos: Tchaikousky e Dvorak 224 O Névo Despertar da Espanha Segundo Intermezzo 1.0... 0.060. 00seeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeees 229 Terceiro Livro: © CAMINHO PARA A INCERTEZA ........ 281 25. O névo século .. 238 26. A dpera moderna . 258 A Moderna Opereta . 275 27. A época das dissondncias 278 28. América 304 A Epoca India 305 A Epoca da Colonizacio 308 A Epoca da Independéncia 312 A Atualidade Americana .. 319 29. A musica mecanica .... 30. A vida musical moderna . APENDICES I. Os instrumentos da orquestra moderna ... 359 Il. Principais obras dos grandes mestres . 362 IIL. {ndice onomistico de misicos . 375 IV. Indice das ilustragées 381 A GUISA DE INTRODUGAO Creio na redengao do mal pela eterna beleza, ¢ creio também na missio da arte. (G.B. SHAW: “O Dilema do Médico") Destina-se éste livro nao aos entendidos mas aos amantes de musica que devem poder Iélo sem que, a todo instante, se Ihes antolhem limites insuperdveis da ciéncia da matéria. Encontrarao aqui um grande panorama que inclui paises, épocas, compositores favoritos no grande mosaico da histéria do espirito e do desenvolvimento da arte, e que procura facilitarlhes o caminho para as suas préprias obras. Apesar de doutor em musica pela Universidade de Viena, n&o che- guei a éste livro pelos caminhos da ciéncia mas pelos da arte e da educacio do povo. E, vejo-o bem, um livro muito pessoal, 0 que nao quer dizer caprichoso, nem desejoso de ser diferente; para isso, continuo a ter veneracio demais pela arte e pela atividade humana em geral. Mas tenho com a musica uma nica relacéo: a do amor. Nas minhas viagens de concertos e de conferéncias por muitos paises e continentes, em téda parte comprovei ardoroso interésse pela musica. Talvez, na nossa época cheia de ansiedades, seja mais do que nunca maior o numero dos que sonham com a sua beleza, tranqitilidade, forca e consdlo. Impelido por ésse conhecimento direto, escrevi em 1944 a primeira edigio, espanhola, déste livro. Pretendia oferecer aos homens do jovem continente sul-americano um manual que os apro- ximasse mais da musica. E tive a grande satisfacio de ver a minha intengao compreendida, no apenas nas grandes metrépoles e centros culturais sen3o também freqiientemente em longinquas colénias da mata virgem, portos tropicais, vales quase inacessiveis das cordilheiras, para onde os meios musicais do século XX — abencoados sejam por isso! — levaram, pela primeira vez, o nome sagrado de Bach e Beethoven. Foi grande a alegria que senti quando a Casa Editéra de Orell Fiissli, de Zurique, me convidou para incluir minha obra em sua co- le¢do cultural. Assim comegou a difusio mundial déste livro, téo im- prevista quanto lisonjeira para mim. Desejo que a presente edigo em portugués, fruto da experiéncia e da carinhosa dedicacio da Compa- nhia Melhoramentos de Sio Paulo, encontre igualmente acolhida em muitos amantes da musica. Quisera colocar-lhe como ema as palavras de um amigo suigo, o educador musical Rudolf Schoch: “A musica é 9 uma coisa do coracéo. Sen analisa-la” Foi precisamente o que senti, quando escrevi éste livro. Passo-o, agora, as mos dos que pensam da mesma forma. Nao foi escrito para os entendidos da matéria, repito, mas para os amantes de musica. N4o discute problemas tedricos, nao acumula datas em demasia e nao supde conhecimentos preliminares. Pretende ser o mais simples possivel, mas propée varias perguntas com o fito de aperfeicoar e fazer refletir, sobre- tudo, no que diz respeito a ouvir musica e, 0 que mais belo ainda seria: fazer musica. Pretende ser particularmente um guia, no melhor sentido da palavra, e pretende falar uma lingua bem viva ao novato. Nao mergulha em anilises; limita-se a ser um resumo do essencial. Ape- sar disso, tenta as vézes, por pequenas indicagdes, mostrar o caminho para a andlise musical. Creio que para muitos ser4 o primeiro livro de misica, 0 que abre as cortinas, como que diante de um palco. Houve na histéria humana — h4 muito, muito tempo — longas épo, cas em que a musica se achava no centro da vida. E... eram tempox felizest KURT PAHLEN 10 Primeiro Livro A ASCENSAO wf melhor “sentit” a Historia do que dominar as suas particularidades... (HENDRIK VAN LOON) 1 A MUSICA NA VIDA HUMANA A vida é som. Continuamente estamos cercados de sons e ruidos oriundos da natureza e das varias formas de vida que ela produz. O homem fala e canta hd incalculdveis milhares de anos e, gtacas ao seu ouvido maravilhosamente construido que se parece a uma harpa com infinidade de cordas, percebe sons ¢ ruidos, embora apenas uma parte insignificante da imensidao de tudo quanto soa. Tédas as criangas, sem excecdo, nascem com capacidade musical, voz e ouvido: criancas da cidade, do interior, das zonas frias, dos trépicos, das montanhas, das planicies, brancas, pardas, pretas, amarelas, ver- melhas. A propria natureza é que nos di a musica; 0 que dela fazemos varia, conforme o temperamento, a educacdo, 0 povo, a raca € a época. Fig. 1. Sdtiros pisando wvas; antigilissimo exemplo de trabalho acompanhado por musica, Pintura em dnfora grega. Wiirzburg. A natureza est4 cheia de sons, de musica: h4 milhdes de anos, antes que houvesse ouvidos humanos para capté-la, borbulhavam as Aguas, ribombavam os trovées, sussurravam as félhas ao vento... Quem sabe quantos outros sons se nfo propagaram! Talvez cantassem 0s raios do sol nas montanhas que se aqueciam tddas as manhis, como ainda hoje cantam misteriosamente nas colunas egipcias de Memnon; durante tem- 13 pos sem fim deve ter ressoado o 6rgio natural da gruta de Fingal, muito antes que os celtas Ihe chamassem “Ihaimh bin”, gruta da mi- sica, e muito antes, ainda, que um compositor romantico, Mendelssohn, transferisse aquéles sons naturais para a moderna orquestra. E 0 es. tranho “ouvido de Dionisio”, da Sicilia, aumentou, com certeza, todos 08 sons que o penetravam, muito, muito antes que um ser humano Id se achasse para comprovar o milagre, A terra a abrirse na mocidade, as fontes a jorrar, os vulcées ¢ as montanhas a explodir, as aguas do dilvio a subir, tudo deve ter constituido gigantesca sinfonia que ninguém nos descreveu. O homem nasceu num mundo repleto de sons. O trovio, amedron- tando-o, tornou-se simbolo dos poderes celestiais. No ulular dos ventos percebia éle a voz dos deménios. Os habitantes do litoral conheciam © mau ou bom humor dos deuses pelo bramir das Aguas. Os ecos eram ordculos e as vores dos animais, revelagées. Religiio e musica manti- veram-se inseparavelmente ligadas nos antigos tempos da humanidade. Fig. 2. Flauta da Guiana Britdnica feita de osso de jaguar. Grande foi sempre a influéncia da musica sébre a mente humana. © homem primitivo dispde apenas de poucas palavras. Quase somente © que éle vé é que tem nome. Para exprimir os sentimentos, serve-se de sons ¢ cria a musica que o ajuda a exteriorizar o jubilo, a tristeza, 0 amor, 0s instintos belicosos, a crenca nos podéres supremos e a vontade de dangar. Para éle é parte da vida a musica, desde 0 acalanto até a elegia fiinebre, desde a danca ritual até a cura dos doentes pela melodia e pelo ritmo. O efeito da misica ssbre o homem diminui no decorrer dos milénios; apesar disso, podem ser encontrados nos tempos histéricos e até na atualidade interessantes exemplos do seu poder. Davi toca harpa para afugentar os maus pensamentos do Rei Saul; Farinelli, com o auxilio da misica, cura a terrivel melancolia de Filipe V. Timéteo provoca, por meio de certa melodia, a firia de Alexandre, 0 Grande, e acalma-o por meio de outra. Os sacerdotes celtas educam 0 povo com a mtisica; somente éles conseguem abrandar os costumes selvagens. Diz-se que Terpandro, tocando flauta, abafou a revolta dos lacedeménios. Santo Agostinho conta que um pastor foi, em virtude das suas melodias, eleito imperador. E a histéria do cagador de ratos de Hameln é um exemplo conhecidissimo do efeito da musica sbre o homem e o animal. Na literatura moderna, deparam-se-nos numerosas obras de psicologia profunda em que as mais fortes excitacdes sentimentais sio provocadas pela influéncia da mtsica, Com excecao de “Werther”, nenhuma outra 14 obra de arte originou semelhante onda de melancolia e suicidio como o “Tristo”, de Wagner. ‘A mtsica age sdbre_o individuo e a massa; encontra-se no sdmente na historia das revolugdes sendo também nas psicdseS de” guerra. A— musica é mas maos~dos HOniens,um feitigo; o seu efeito se estende desde 0 despertar dos mais nobres sentimentos até o desencadeamento dos mais baixos instintos, desde a concentragao devotada até a perda da consciéncia que parece embriaguez, desde a veneracdo religiosa até a mais brutal sensualidade. | Pelo pouco que dissemos, j4 se depreende que a musica tem intimeras facétas. Uma cangao de danga moderna difere certamente de um coral de monges na solidio de um mosteiro; difere a cang’o de berco da marcha que deve estimular os soldados ao ataque contra o inimigo; difere a cangio de amor, numa noite azul de verao, da toada ritmica que o alto-falante difunde numa fabrica moderna para aumentar a produgio. A variedade da misica é ilimitada. Que distancia entre a melodia triténica, sempre repetida, do indiano, e a sinfonia de um grande mes- tre, entre as dangas sagradas do longinquo Oriente e a musica européia de épera, entre o coral gregoriano € o jazz! E, no obstante, tudo isso vive ao mesmo tempo, agora, no nosso planéta, e para tudo isso usamos a mesma palavra: musica. Maiores ainda se tornam as diferengas se seguirmos a musica no seu percurso de milhares de anos, o que ser a razao déste livro: melodias sagradas dos egipcios, teatro grego, coros antigos, cancées de guildas e artesdos da Idade Média e o grande despertar artistico da Renascenga; € mesmo desde entao até hoje, que diferenga entre Palestrina e Haydn, entre Bach e Chopin, entre Beethoven e Stravinsky, entre Mozart e Debussy... A vida € som, dissemos. A vida é movimento, e 0 som se origina do movimento. A acistica, é verdade, discerne fundamentalmente duas classes de sons: os sons prdpriamente ditos e os ruidos, conforme forem as vibragdes uniformes, ou nao. A musica, segundo a antiga teoria, deve ocupar-se apenas dos primeiros. Mas nao é to facil tragar claramente © limite. Muitos s4o os instrumentos que apenas produzem ruidos, e no sons, e que ocupam lugar importante na moderna orquestra: tam- bor, tridngulo, pratos, tants, castanholas, tamborins! E quem jé ouviu uma orquestra malaia de gongos, sem duivida sentird a fantastica har- monia désses instrumentos como forte impressio musical, apesar de a fisica afirmar diferentemente. Veremos mais tarde como, no nosso tem- po, sofre violentos ataques o sistema de sons que ha séculos constitui a base da musica ocidental. Muitos désses ataques visam ao verdadeiro ponto fraco, pelo qual 0 nosso sistema, desenvolvido da série de tons superiores, se tornou, pelo “tempéro”, mais simples, mas matematica € fisicamente tio impuro, que a ligacao entre ciéncia e musica nao passa de simples ficgdo. Nao discutiremos aqui teoria nem ciéncia. Sejam os mimeros de vibragées puros ou falsos, 0 dé sustenido igual ou nao ao ré bemol, 0 15 semitom a menor unidade ou nao, a subténica uma imposigio, o sis- tema dodecafénico um capricho, o que nos interessa apenas so as obras que o sistema produziu, é 0 desenvolvimento da musica durante milha- res de anos de histéria humana, desde as primeiras expressées de vida, desde 0 elemento instintivo até a obra de arte mais elevada e nobre da humanidade. Sera um ciclo? Nao, uma série de grandes ciclos miste- riosos, um eterno nascer, desaparecer e renascer, um caminho miste- rioso pela vida e pela morte, através de paises e continentes, culturas e épocas. De tudo quanto soa, ao redor de nés, imperscrutavelmente e de mi- Ihdes de modos, s6 uma pequena parte é que nos penetra a consciéncia, pelos ouvidos e pelo cérebro. Uma parte ainda menor nos penetra o coracio onde pode despertar ecos, e essa parte pequenina é um mundo inteiro.. Que € a mtisica? Quando eu era jovem, um meu aluno surpreen- deu-me com essa pergunta, Respondi-lhe: — A musica é um fenémeno aciistico para o prosaico; um problema de melodia, harmonia e ritmo para o teérico; e o desdobrar das asas da alma, o despertar e a realizagio de todos os sonhos e anseios de quem verdadeiramente a ama. Ainda hoje assim penso. 16 Banda militar assiria. Munidos de citara, cimbalo e timpanos, os miisicos acompanham com passos ritmicos, para a frente e para trés, a marcha dos soldados. Pormenor de um relévo de alabastro do século VII antes de Cristo, Louvre yf te A IA e Musicos egipcios com harpa e flauta travessa. Pormenor do Mastaba de Akhuthotep. 5.4 Dinastia, cérca de 2.700 anos antes de Cristo, Louvre. PRANCHA 1 PRANCHA 2 LBRO HRA RAL KAKERYEOLRTE RAM ORR TRUS RHR A MMH Rw Soe bts ok weak ZGREVA RLS eer great ’ SRT ARG Ro Ra ewes eA KEEL TT ES Confticio tocando citara. Com win mestre de musica, concentia-se no sentido da muisica. Gravura cm madeira do século XVI, segundo Ku Kai Tschi, i esquerda: Samisen, instramento japonés de trés cordas 4 direita: Tocador de alatide diante de um principe no trono. Miniatura persa do livro de Raschid-ad-Din, Escola de Tabris, cérca de 1400. Paris, Biblioteca Nacional, PRANCHA 3 4 esquerda: Tocadora de pandora. Era a pandora instrumento de dedilhar semelhante a0 bandolim, com 2 a 3 cordas. Figurinha de barro, de Tanagra. Século III, antes de Cristo. A direita: Tocador de citara grego. Pintura em jarro de barro num timulo de Atenas. Pro: vavelmente representa 0 jovem morto no seu passatempo favorito, Século V a.C. AS nove musas. Relévo grego de um sarcéfago nas imediages de Roma. A esquerda Clio, a musa da historiografia, depois Tilia, com a miscara da comédia, a extrema direita Melpémene com a mascara trigica (posta na cabeca), a0 seu lado Urania. As outras cinco sio Caliope, Terpsicore, Frato, Euterpe ¢ Polimnia, 2 musa da muisica. Século II depois de Cristo. Louvre. PRANCHA 4 2 A MUSICA NA ANTIGUIDADE A misica é velha como a humanidade; é com a danca a mais velha de tddas as artes (apesar de assim nao poder ser sentida pelo homem primitivo, visto que éle desconhece o conceito de arte). Contudo, a sua histéria é de fato a mais curta e nova, Possuimos monumentos de bronze e de pedra que nos testemunham culturas desaparecidas, e poesias, lendas, filosofias de milhares de anos pelas quais podemos for- mar uma imagem espiritual das épocas passadas. Apenas com a musica a coisa é diferente. Fig. 3. Tocadores egipcios de harpa, segundo um mural no timulo de Ramsés IV, cérca de 1150 anos antes de Cristo. Nenhum som nos vem das culturas mortas. E datam de pouco os primeiros manuscritos que deciframos sem cometer erros é que trans- crevemos no sistema moderno, dando-lhes nova vida. O resto, 0 que antecede, miisica de milhares de anos durante inumeras culturas, estd para sempre perdido na noite dos tempos. Li certa vez ~ creio que na obra de um escritor norte-americano — interessante comparagio. Suponhamos, diz éle, que a terra, desde os seus primeiros tempos até hoje, tenha vivido, ndo milhdes de anos, 17 2bis Histéria Misica mas apenas um tinico ano, de primeiro de janeiro ao ultimo dia de dezembro, Se pretendermos situar a época da chegada do homem ao mundo, deveremos avangar muito: no dia $1 de dezembro, as 6 horas da tarde, é que aparece 0 senhor da criacio. Mas nao comecam ainda os tempos histéricos. Outras horas devem passar... Cérca de um minuto e meio antes da meia-noite é que se inicia a histéria. E agora mais um passo para demonstrar aos leitores a incrivel brevidade da histéria da musica: comeca ela aproximadamente 15 segundos antes da meia-noite do derradeiro dia do ano que a terra vive... Deveremos sentir-nos pe- queninos e insignificantes, ou deveremos orgulhar-nos de tudo o que os 15 segundos produziram de belo? Pouquissimo sabemos da mtsica da Antiguidade. E sobretudo falta © mais importante: a propria musica. Sobre ela lemos em velhos € eruditos livros de religido, filosofia, matemitica, astronomia e ciéncia do cardter. Em todos éles a musica ocupa freqiientemente lugar impor- tante. Vemo-la mencionada em poemas antigos, sagas, lendas e contos. Dela fala a Biblia, falam os sabios da China e as tradigdes indianas, descrevendo-Ihe a beleza, o feitico, 0 poder. Como seria aquela misica? Ninguém o sabe, dela nos separam séculos e nada no-la pode devolver. Um pouco mais perto nos levam os testemunhos de pedra: os monu- mentos, monélitos, figuras, relevos, vasos, travessas, urnas. Néles, muitas vézes, vemos cenas musicais, reprodugées de instrumentos e até de orquestras inteiras. Fizeram-se medicdes, para se conhecer a consonancia dos instrumentos, contaram-se as cordas das liras e harpas, os orificios Fig.4. Tocadora egipcia de alatide com vestido de danca, segundo um mural em Tebas. 18 Fig.5. Orquestra de cérte de Assurbanipal, ‘em Susa, Cena parcial, segundo um relévo asstrio, por wolta de 650 antes de Cristo. dos instrumentos de s6pro, precursores das nossas flautas, oboés e trom- petes, e estudou-se o efeito dos instrumentos de percussio. As vézes, encontram-se os préprios instrumentos em velhissimos tému- los € cidades desaparecidas. Podemos, assim, reconstruir-lhes a execugéo € comparé-la & dos instrumentos de hoje. Mas, apesar de tudo... como terd sido a musica? Nao o sabemos. Foi musica por musica, musica para divertir, distrair e alegrar? ou foi servidora de uma idéia elevada, ou de um fim materialista? Sentimo-nos tentados a reconstruir com os restos encontrados, com as tradigdes de origem poética, com o nosso conhecimento de antigas culturas, uma imagem que nio difere muito da nossa musica presente. Cantavam os sacerdotes nos templos como o fazem hoje? Tocava em honra do rei vitorioso uma orquestra enorme como vemos no relévo assirio (Prancha 1)? Acompanhavam os escravos do Egito a construgio das piramides com musica, para facilitar 0 trabalho pesado, ou como os negros do Haiti, quando carregam os sacos de café para os navios, sob o calor tropical? Nao era como a do nosso tempo a musica que ressoava, alegre, nos velhos palacios de reis, que acompanhava as dan- cas € as refeicdes? Reconstruimos tudo; sabemos que havia canto indi- vidual e coral acompanhado ou nio por instrumentos, musica religiosa € profana — tudo como hoje. E apesar disso, nio podemos saber que musica era. Também para as antigas teorias de musica descobrimos importantes pontos de apoio. Temos conhecimento, entre outros, de um sabio chi- nés, Ling Lun que, por volta de 2.500 anos antes de Cristo, ordenou os cinco tons da misica oriental, explicou-os, sistematizou-os e deu-lhes no- mes estranhos. Cada tom tinha o nome de uma classe social, desde o imperador até o camponés. Cinco tons, em vez dos doze que representam hoje o nosso sistema de musica? A escala pentaténica, como se diz em grego, estd surpreendente- mente divulgada na terra inteira: na China, no Japao, na América, 19 Fig. 6. Muisicos do budismo antigo, com érgao bucal, flauta travessa, caramela, alatide e harpa. Mural no paldcio de um ca, no Turquestéo chinés. na Groenlandia e até na Europa. A Asia, como vimos, guardou-a numa teoria antiqiiissima e ainda hoje os cinco tons sio caracteristicos em grandes partes do Oriente; sero tao poucos para o Oriente quatro mil e quinhentos anos? Que de modificagdes nio houve nesse tempo no sistema musical do Ocidente! E a musica pentaténica um simples coméco ou j4 um progresso comparado ao sistema de trés tons que ainda hoje encontramos entre ragas primitivas da Africa e da América? E como se originou dessa musica primitiva a cadeia dos sistemas de tons que hoje conhecemos? Aumentaram os tons de trés para quatro, para cinco? Na Grécia passaram para seis e sete, e na Idade Média, pela “elevacdo” e “abaixamento”, para um numero muito maior que depois, pelo “tempéro”, se restringiu aos nossos 12 tons? Podemos realmente falar de um desenvolvimento continuo? Os india- nos, os drabes e provavelmente também os chineses nao conheciam ha milhares de anos outros sistemas de musica? Musica com tércas e quar- tas? Tera um povo, ao mesmo tempo, duas misicas diferentes, uma religiosa e outra profana? Ou uma para classes elevadas, e outra para © povo? Para tudo isso, dispomos de pontos de apoio. Ha diferencas de audicao, segundo racas e épocas, ha evolugio para o aperfeigoamento, gira-se em térno de um ponto, ou se sobe e desce desordenadamente? E — aqui chego ao cerne de tédas as pesquisas musicais — serd ver- dade que a musica polifénica sé foi “inventada” na Idade Média, e todos os milhares de anos anteriores, tédas as prévias culturas apenas criaram musica monddica, uma sé melodia, sem contraponto, sem harmonia, sem acompanhamento? Para que entio as grandes orques- tras existentes nas cOrtes de Ninive, Susa e Babildnia, para que o gigantesco céro de sopradores no grande templo de Jerusalém? E a tra- gédia grega, exemplo de todos os teatros, com a sua profunda sabedoria, a sua fusao de tédas as artes — a tragédia que era cercada de mtsica, 20 quando nao acompanhada e parcialmente cantada — tudo isso sem polifonia? Temos o direito de negar a existéncia da polifonia sé porque nao podemos prova-la? Poderemos considerar outros séculos — que em muitos pontos de maneira nenhuma foram inferiores ao nosso, ¢ em alguns até superiores — mais pobres, na arte musical do que realmente foram e muito mais pobres do que o nosso? Nao terao os muitos séculos, entre o florescimento da Grécia e a polifonia da Idade Média, elimi- nado os trechos que indicavam uma polifonia nos textos, visto que nZo podiam compreendé-los? Com isso, nada pretendo afirmar; quero ape- nas exprimir 0 que, muitas vézes, me cruzou a mente. Em todos os campos, h4 um sem-ntimero de coisas “esquecidas” pertencentes as an- tigas culturas, ‘A musica no € como a poesia ou a pintura. Vive um momento e desaparece. E uma vez desaparecida, ninguém mais pode concretizé-la. E por isso que éste capitulo contém tantos pontos de interrogacio. Para conhecermos a musica do passado, dispomos de dois caminhos. Um é a existéncia da tradigao oral; hd povos em que as melodias vivem, as vézes, muito tempo. Todavia, hé somente a possibilidade de remontar uns poucos séculos, tratando-se de melodias populares cuja Fig. 7, Indiana com “Sitar”, segundo uma miniatura indiana. conservagio nfo estd oficialmente confiada a ninguém, Somente quando tal se verifica é que a existéncia delas se prolonga. Essas excecoes in- cluem dois grupos que nos fazem retroceder bastante: 0 canto sagrado dos judeus que talvez, durante trés mil anos, pouco mudou e, a éle relacionado, 0 canto do primitivo cristianismo do qual falaremos. Essas 21 duas formas de musica nos permitem relancear os olhos pela Antigui- dade; mas é apenas uma tnica espécie de musica que assim conhece- mos, e ela mal nos permite tirar conclusées, quanto as demais, nume- rosas. £ como se a ciéncia da musica do ano 4000 pretendesse tirar conclusées quanto & misica do nosso tempo, baseando-se nos cantos da Igreja Catélica que ainda se praticam, ou’ na musica sagrada dos indianos, para s6 darmos dois exemplos mais vagos do que caracte- risticos de uma época. © segundo caminho para o conhecimento da musica antiga é 0 es- crito; mas, apesar de nos parecer natural e simples, esta cheio de difi- Kin, citara de 7 cordas Se, instrumento de cordas Flauta dupla Tambor 2 i Se Matraca em forma de tigre Orgdo bucal Sino grande Fig. 8. Instrumentos musicais chineses, segundo um dicionério chines. 22 Fig.9. Kemanche, instrumento de cordas dos beduinos. culdades e problemas. Em primeiro lugar, nao é tao natural transcrever sons em caracteres como no caso da falta. Também nao é tio facil, por ser preciso exprimir com éles a altura, duracdo, forca e expresso de um tom, de uma frase, de uma melodia, Veremos quio longo foi, através dos séculos, 0 caminho percorrido para chegarmos a perfei¢ao das nossas notas. Nao se trata apenas de dificuldades técnicas. Psicold- gicamente as outras sio até mais interessantes; houve longas épocas em que os povos nao queriam escrever a sua misica. Incumbiamse de conserva-la sacerdotes que a recebiam como revelacdo divina, e a exe- cutavam em honra 4 divindade, nos templos, considerando-a ciéncia oculta para o povo, e transmitindo-a oralmente ao filho ou sucessor. Quando havia o desejo de anotar musica, deparavam-se dois cami- nhos: simbolos semelhantes 4 escrita ou desenhos. Vamos ver rapida- mente como se verifica isso na pratica e quais as vantagens e desvan- tagens, Na representagao semelhante a escrita dé, mi, sol podiam indicar uma melodia de trés tons; mas nfo sabemos se a melodia sobe, se o mi est4 acima do dé ou se, talvez, 0 mi esta abaixo, e igualmente obscuro & 0 caso do sol. Cremos que essa objecdo tem resposta no uso de seta- zinhas indicadoras da diregdo. Nesse caso, a altura do tom estaria bem indicada mas nao a sua duragio e intensidade do som; além disso, essa representacio no dispde de nenhuma clareza. O caso da reprodugio por meio de desenhos é justamente o contrério; aqui, uma linha que sobe uniformemente corresponde a uma melodia que também sobe, e assim por diante. O que ésse método lucra em clareza perde em signi- ficagZo. Essa maneira de escrever, usada em algumas antigas culturas € da qual lentamente se originou a nossa escrita, nasceu, talvez dos sinais feitos pela mio do regente do céro que, para guiar os seus cantores, tra- ¢ava a linha da melodia no ar; em seguida, para dela lembrarsse, trans- crevia-a num material qualquer, que no era ainda o papel. Provavel- mente por isso é que tal espécie de escrita, cujos estranhos hierdglifos encontramos nas vizinhangas do Mediterraneo, recebeu o nome grego de neuma, que significa gesto ou aceno (?). Outra maneira, a mais perfeita, de conservar a musica nao cabe neste capitulo de musica antiga, mas num dos ultimos: trata-se do disco, da fita sonora, do filme falado, conquistas técnicas do século XX que impedem de uma vez se perca qualquer musica. 30 significam determinados tons, finha sinuosa, ete. (1). Bates sinais 350 uma espécie de estenografia musical; mas grupos de tons em formulas fixas: virgula, risco, circulo, 23 Mas agora, apés tantos pontos de interrogagio e duvidas, exami- nemos os fatos certos da muisica da Antiguidade. Quanto a China, j dissemos que ali viveu o primeiro tedrico de misica, Ling Lun, que sistematizou os cinco tons perfeitamente de acérdo com as relagdes de vibragio. Os nomes dados as notas, em cor- respondéncia com as classes sociais — kong, o imperador, chang, o ministro, kyo, 0 burgués, tchi, 0 funciondrio e yu, 0 camponés, mos- tram o enraizamento da misica na vida publica. Também nos ensina- mentos do grande Confiicio (Prancha 8) desempenhava ela na educa- cio e na moral papel predominante; para Confucio era a musica uma forca geratriz de cultura; ocupava-se extraordinariamente com ela, co- lecionava antigas melodias e compunha novas. Dizse que uma das antiqilissimas melodias do Império do Meio, a Cancio da Porta das Nuvens, tem a sua origem na figura mitica do imperador amarelo que se supde haver reinado cérca de 2700 antes de Cristo. Fig. 10. Um dueto comovente, Caricatura japonésa, de Kiosai, século XIX. Na india se nos deparam tracos de velho interésse pela musica; quanto ao seu valor, fala-nos um livro sagrado o Sama-Veda. Conforme a lenda, foi o préprio deus Brama que doou ao povo a “vina” que, apesar de diversas alteragées, até hoje continua sendo instrumento fa- vorito. A musica, para os indianos, é 0 mesmo que “a grande harmonia universal”, ¢ por isso tem a mesma importincia que a religiio. Da Ilha de Ceilo se origina 0 mais antigo instrumento de que temos noticia. Um rei lendario da ilha, Ravana, foi quem o inventou ha cérca de 7.000 anos, chamando-lhe “ravanastron”. £ 0 protétipo dos nossos instrumentos de cordas, tem duas cordas, e toca-se com um arco recurvo. Das ricas culturas dos assirios, babilénios e persas conservamos escul- turas que representam cenas musicais ou instrumentos (Prancha 1 e fig. 5). Uma cultura especialmente desenvolvida da muisica parece ter tido o império dos sumerianos, desaparecido ha muito tempo; nas rui- nas da sua capital, Ur, hd pouco trazida & luz, nas proximidades do Golfo da Pérsia, encontrou-se uma lira maravilhosamente lavrada, cuja idade foi avaliada em 5.000 anos. 24 N&o ha diivida quanto ao extraordindrio desenvolvimento musical dos egipcios; parece haver existido no Egito verdadeira vida musical conforme a compreendemos, com musica religiosa e profana, cangGes de trabalho e melodias de dangas. Nos ttimulos, tém-se encontrado freqiientemente reproduces de instrumentos, por meio das quais sabe- mos que os egipcios j4 possuiam instrumentos de s6pro, de percussio e de cordas (Prancha 1, figs. 3, 4). Conhecemos numerosos antigos instrumentos de percussio da Arabia, apesar de muito mais novos que o “ravanastron” e alguns instrumentos egipcios e chineses. O “kemanche” dos arabes (fig. 9) emprega um céco vazio como caixa de ressonancia; também aqui o arco é um verdadeiro arco, quer dizer recurvo. Um pouco mais novo deve ser o “rabab”, que 0s mouros, em 711 da nossa era, levaram para a Espanha, onde tomou © nome de “viela”; e quem sabe se a nossa viola e os seus descendentes dai nao derivam os seus nomes. Finalmente, mencionaremos ainda outro povo asidtico onde a musica floresceu, e que de certa maneira forma a transigo entre a Antiguidade ea primitiva musica cristd: os judeus. Esse povo, que mostrava pouca inclinagao para a escultura e pintura ¢ a quem era proibido representar a Deus por imagens, concentrou téda a forca criadora na poesia e na miisica que serviam por exceléncia 4 religiio. Dois reis se tornaram simbolos désse povo amante de musica: Davi (cérca de 1000-960), sem- pre reproduzido de harpa na mio, e 0 seu sucessor, Salomio, cujo co- nhecimento da arte era tio admirado em todo o Oriente a ponto de ilustres visitantes — como a Rainha de Sabd — acorrerem de longe & sua cérte, para conhecer-lhes as obras. A hist6ria dos judeus contém imimeros acontecimentos em que a musica desempenha relevante papel, desde o dos muros de Jericé que cairam ao toque de trombetas até 0 cuidado dispensado 4 musica no grande templo de Jerusalém. Quando éste, em 70, foi destruido e se iniciou a dispersio dos judeus pelo mundo inteiro, aumentou também a influéncia de muitos paises através do espirito asidtico; & musica oriental se abriram novas portas pelas quais ela conseguiu penetrar, fertilizante, no Ocidente, como poderemos observar em Roma; ou se expandiu para o Norte onde Ihe encontramos os ves- tigios em numerosas regies russas As quais chegou através de Bizancio. No nos surpreendamos pelo fato de “Antiguidade” significar para nés quase a mesma coisa que “Asia”. O mundo antigo que conhecemos, € que consideramos precursor do nosso, era asidtico. Isso, porém, nao quer dizer que no houvesse em muitos pontos do mundo outras cul- turas, hoje desaparecidas e esquecidas, que conheceram a musica e a estudaram. Surpréso ficou o autor déste livro diante da Porta do Sol, em Tiauanaco, no planalto boliviano, perto das margens do Lago Titicaca, sagrado para os indios, ao contemplar o ultimo testemunho de uma cultura desaparecida hd milhares de anos, uma cabeca de indio a tocar uma trombeta. E como provavelmente todos os desenhos da Porta do Sol representam simbolos religiosos, concluimos que também ai, como nas demais culturas altamente desenvolvidas, a musica foi irma da religiio, e foi sabedoria, beleza, bondade e consdlo. 25 8 O MUNDO HELENICO A cultura do mundo antigo concentra-se e mais uma vez brilha na Grécia. Embora, pela geografia de hoje, ela esteja situada na Europa, a sua época de florescimento é a coroagdo de um mundo asiatico e sé muito condicionalmente 0 coméco de um mundo ocidental. A Europa, como expressio de cultura e ainda mais como simbolo de misica, ficar-nos-4 por mais algum tempo desconhecida. A historia grega abrange na Antiguidade perto de dois mil anos. A Grécia era quase um mundo em si. Assim, € claro que nesse longo pe- riodo nao existe uniformidade, que ha épocas de ascensio, de flores- cimento, de decadéncia, crises ¢ progressos, até que, finalmente, téda a rica heranga passa as méos de outros povos os quais, nao conhecendo as profundas raizes de tal cultura, no a sabem conservar. Parece Idgico que, como em todos os tempos, a musica deve ter sido uma imagem exata da cultura e civilizagio da Grécia, refletindo fiel- mente os tempos de brilho e de decadéncia. Infelizmente, t6das as objecdes do capitulo anterior continuam de pé, e muito, muito pouco € 0 que sabemos da musica helénica, uma vez que nos falta o principal: © som. Mas nada nos autoriza a supor que a musica grega fosse menos espléndida que a arquitetura, a escultura e a poesia, das quais pos- suimos tio magnificos exemplos e que ainda hoje admiramos, milhares de anos depois da sua criago. Prova-o também a estreita ligagio de tdas as artes, ¢ delas com a vida, ligagio que representa um marco bdsico na cultura helénica. Nao terao realmente os gregos conhecido a polifonia? E provavel que as grandes epopéias escritas, a0 que se supde, pelo lendario Homero, que viveu no século nono antes de Cristo, a Iliada e a Fig. 11. Marcha dionisica com musica ¢ danca, segundo um sarcéfago no Museu Britdnico. 26 Miisicos gregos com flautas, harpas e liras, Segundo um vaso dtico do século V antes de Cristo, Museu Britdnico. Odisséia, tenham sido representadas sob forma musical, talvez recitati- vamente, apoiadas ¢ ilustradas por acordes de instrumento musical, como na época dos bardos e trovadores da Idade Média e novamente na época dos “Minnesinger”. O ritmo de muitos versos faz pensar as vézes num canto que, em numerosas linguas, brota diretamente da declamagio, de que é separada apenas por diferenca de grau. Um pouco mais tarde, nos séculos VI, V, IV A.C., Atenas transfor- mou-se no centro espiritual da Grécia; dentro dos seus muros viviam Esquilo, Séfocles, Euripides, Aristéfanes, cujas obras foram com cer- teza cercadas ou acompanhadas de musica. Sob o templo de Partenon da Acrépole, encontrou-se o enorme Teatro de Dioniso, no qual se aco- modavam aproximadamente 30.000 espectadores; ali as pecas musicais estavam na ordem do dia ¢ Id se nos depara um fator importante, 0 céro, que desempenhava relevante papel como céro falado e como céro cantado no drama grego. Ali, achamo-nos pela primeira vez em frente de um teatro artistico, que mais tarde veremos ainda neste livro como épera, opereta, ballet, pantomima e oratério. Apesar disso, a origem do teatro é muito mais antiga; comeca com 0 desejo de o homem primitivo disfarcar-se, usar mascaras para talvez enganar um deus furioso, ou para escapar ao seu proprio “ego” torturado e poder fazer coisas que de outra maneira seriam proibidas. Essa idéia original, que encontraremos novamente no teatro da Idade Média, atingiu na Grécia a maior perfeigio possivel. A mu- sica era inteligentemente inclufda, como se pode ver em numerosas crénicas. O teatro grego era teatro ao ar livre; a méscara do artista servia ao mesmo tempo para aumentar os sons de maneira que éle pudesse ser bem ouvido na enorme arena. Mais tarde, veremos como 27 a idéia do teatro ao ar livre na nossa época conquista novamente ter- reno; outra instituiggo dos gregos renasce no mundo moderno: os festivais. E possivel que realmente os festivais constituissem a base dos teatros helénicos. Néles, que vao até o século VIII antes de Cristo, exprimiu-se a magnifica uniformidade daquela vida. Ali, uniam-se ceriménias reli- giosas, combates esportivos, torneios espirituais e representagdes artis- ticas. As mais antigas e veneradas dentre tais festas eram as da Olimpia, cuja origem em alguns textos se liga a figura de Hércules; comecaram a realizar-se desde 776 A.C, todos os 4 anos, e chegaram a ter tal significado na vida nacional que o tempo passou a ser computado em periodos de quatro anos, as olimpfadas. Nos, os modernos, realizamos sob ésse nome jogos fraternais em que infelizmente se renova apenas © lado esportive e nao o espiritual-artistico da instituicéo helénica. Fig. 13. Cena grega de comédia, segundo desenho de vaso. Parece que 0 teatro, como tal, apareceu em 535 A.C. segundo narra uma crénica. Por ésse tempo as poesias recitadas transformaramse em ato dramatico com a intervencdo de um artista, Téspis, que se tornou simbolo do teatro. Inicialmente, disfarcava-se sucessivamente € usava diversas mascaras. O seu companheiro era o cOro, que, cantando, fa- Iando ou agindo, desempenhava varias funcdes, Era conselheiro do artista, representava uma voz divina, ou a consciéncia, cooperava com musica ou preenchia os intervalos com cangées. Finalmente, fazia tam- bém o papel de narrador e explicava os antecedentes do drama e certos trechos obscuros da peca; é interessante notar que o papel de explicador reapareceu em algumas das obras dramaticas do nosso tempo. Na Grécia, e em todos os paises sob a sua influéncia formaram-se teatros; encontramos os seus restos na Sicilia, na Italia do Sul e na Africa do Norte. A maioria situa-se em belissimos lugares. Muitos ainda podem ser usados hoje, dotados que sio de excelente actstica. Possuimos informagées sobre a teoria da musica na Grécia, por obra e mérito de Pitdgoras, que viveu no século V antes de Cristo e foi educado no Egito. Provavelmente a musica grega é, nas suas bases 28 Fig. 14. Fragmento de papiro do texto do “Orestes” de Euripides (Verso 330) com sinais de notas acima das palavras. tedricas, uma conseqiiéncia direta da ciéncia da musica no império dos farads. Pitd4goras era matemdtico, como todos os estudiosos da musica na Antiguidade e na Idade Média, e o seu conhecimento do nimero de vibragdes dos tons harménicos e dos intervalos nunca perdeu o valor. A representaGao escrita das notas na Grécia nao era uniforme. Havia ocasides em que correspondia ao sistema de letra (fig. 14); noutras, voltava-se para os neumas; ademais, parecia diferente para a miisica vocal e instrumental. Os gregos conheciam 8 escalas que divergem consideravelmente das nossas pelo fato importante de nao serem entre si uniformes como sfo as escalas do nosso sistema, Convém comparar as escalas gregas aos nossos dois tipos de tons maior e menor, cada um dos quais possui o seu proprio cardter. Cada um dos oito “modi” gregos tem seu cardter prdprio, visto que a sua estrutura é diferente Fig. 15. Apolo com lira, segundo um desenho grego em vaso. 29 da dos outros; e visto que cada um tinha o seu efeito sobre a mente humana, também o seu uso era diverso. Na nossa musica, 0 maior, mais limpido, é usado para exprimir alegria, e 0 menor, mais sombrio, para exprimir tristeza e melancolia; a diferenga na Grécia era muito maior. Platio da-nos informacées pormenorizadas sobre ésse ponto: chama a uma tonalidade “plangente”, a outra, “macia e sensual”, a terceira, “belicosa”, & quarta, “‘pacifica e de acérdo com a livre reso- lugio”. O culto de um deus, além de exigir outra tonalidade, exigia também outros instrumentos, diversos dos usados no culto de outro deus. A citara, espécie de lira e instrumento nacional (Prancha 4, fig. 15), era, com o seu som macio, reservada & musica séria; 0 cantor mitolégico Orfeu acompanhava com ela as suas melodias que emocio- navam todos os homens e até os animais. Quando sua espésa Euridice morreu, Orfeu dirigiu-se ao senhor do mundo subterraneo e conseguiu comové-lo com o seu canto de tal maneira que logrou Ihe fésse devol- vida a espésa, sob a condi¢io de, ao voltar, nao olhar para ela. Mas © cantor nao péde resistir & cruel tensio (Prancha 5). Na lenda de Orfeu, 0 conhecimento do poder da musica revestese da sua forma mais bela, e tornaremos a encontrar ésse tema emocionante em muitas 6peras. O instrumento oposto a citara era 0 aulos, oboé oriundo da Asia, de tubo duplo, som excitante e sensual; servia para © culto apaixonado do deus Dioniso. Lentamente 0 império helénico se encaminhou para a ruina. Roma tornou-se a nova poténcia mundial, e a ela a Grécia sucumbiu. Mas nao foi o conquistador que impés a sua cultura ao vencido; pelo contrario, a cultura grega, superior, foi aceita pelo vencedor. Assim entraram a miisica € o teatro gregos cm Roma, na Italia e na Europa. Nao se pode, Fig.16, Tuba, cornetas € drgao acompanham as lutas dos gladiadores no circo romano, segundo um mosaico em Zlitem (Tripoli) cérca de 70 depois de Cristo. 30 ASSVETTM- CERI; - ~> AEDILIS FAMILIA GLA DINTERLA Preaori “| eal Fig. 17, Antincios de jogos de circo num muro, em Pompéia, O texto, em verniculo, diz 0 seguinte: “O grupo de gladiadores do edil Aulus Suettius Cerius tulard um dia antes das calendas de junho (31 de maio); serd realizada uma cacada de animais, € estender-se-do (contra o sol) toldos protetores”. todavia, tirar uma cultura do seu terreno natural e fixd-la em lugar onde as condigées basicas de vida séo completamente diferentes. Roma, materialista, nao compreendeu a cultura que adotou, nao sentiu as profundas raizes que se prendiam num mundo diferente. A elevacio espiritual tornow-se trivialidade, os pensamentos seletos descambaram para um simples palavrério. Os cantos meditativos, misticos talvez, entoados por uma multidao imersa na contemplagao dos sagrados luga- res de ordculo dos gregos, transformaram-se em fanfarras sensuais — que abriam sangrentos espetdculos no Circo Maximo (fig. 16) e que precisavam abafar os gritos dos torturados — ou em rufar de tambores que acompanhava a marcha das legiées vencedoras até as fronteiras do mundo conhecido. A moldura exterior dos jogos ultrapassou os limites. Centenas de milhares de pessoas assistiam as corridas de bigas € as Jutas dos gladiadores, realizadas em lugar das nobres olimpiadas. Os romanos nao inventaram nenhum instrumento, limitando-se a adotar os que se deparavam aos seus exércitos, nas conquistas. Tinham especial preferéncia pelas flautas usadas nos solenes ritos divinos bem como nas bacanais — longinquos precursores do carnaval. Introduzi- ram-se também as representagoes teatrais; em 336 antes de Cristo apa- receram, pela primeira vez em Roma, pantomimas etruscas, sucessoras do teatro grego, nas quais era comum a mitisica. Pouco a pouco, criou-se um teatro romano préprio, mas principalmente de natureza satirica € muito popular (Prancha 6). Assim € 0 império romano, forte na sua organizacio e poténcia poli- tica e militar, o marco final de uma época cultural; a musica se rebaixara a acompanhar festas sensuais e representacdes cruéis. Nao é de admirar que os primeiros cristZos detestassem a musica que conhe- ciam apenas na sua mais aviltante formal Mas serdo justamente éles 0s colecionadores de musica da Antiguidade para erguéla a novas alturas. 31 4 DESAPARECE UMA CULTURA E SURGE OUTRA Desde que a humanidade habita a Terra, intmeras culturas segui- ram 0 seu caminho misterioso, cresceram lentamente, atingiram o Apice e desapareceram, Mas raramente ou nunca se concentraram o desapa- recimento de uma cultura e 0 inicio de outra, tanto no tempo como no espaco, a ponto de poderem ser observados na mesma cidade. Foi, todavia, 0 caso de Roma, durante os primeiros séculos cristdos. Em Roma, presenciamos a decadéncia, o fim de uma enorme cultura de cujo aspecto musical muito pouco pudemos dizer. Em Roma, veremos, agora, nascer outra cultura, completamente di- ferente, na qual vivemos ha dois mil anos. No entanto, muitos séculos dessa nova cultura pertencem, sob o ponto de vista da musica, 4 pré- historia, Somente muito devagar é que se levanta o véu do passado e aparecem os primeiros manuscritos que podemos decifrar, as primei- ras melodias que ainda hoje vivem e os primeiros criadores de mi- sica, cujas obras de fato nos falam. Na brilhante metrépole de Roma, nas suas magnificas ruas € pra- as, nos seus palicios, nos seus locais de diversio, nos seus quartéis bairros pobres, desaparece o mundo antigo, devagar ¢ quase insensivel- mente. Ao mesmo tempo nasce nos subterraneos da cidade, nos cor- redores secretos, nas catacumbas, uma nova época da humanidade. Ali se rednem em ntimero cada vez maior, diariamente, os discipulos do Mestre de Nazaré. Inicialmente detestam a musica, que conhecem ape- nas como fanfarra de guerra ou como rufar de tambores com os quais se abafavam os gemidos de morte dos irmaos nas arenas; conhecem-na também como miisica sensual de danga ou de acompanhamento dos ritos pagdos. Mas téda verdadeira revolugao necessita de musica. Tam- bém 0 cristianismo, a mais profunda revolugio da humanidade, em milhares de anos, nao podia dispensé-la. Os primeiros crentes, reuni- dos nas sombrias catacumbas, procuraram erguer 0 coracio a Deus por meio de cAnticos de louvor; mas ndo conheciam melodia que pu- desse exprimir a pureza dos seus pensamentos, nem som que se pres- tasse as suas preces, Em 54 chegou a Roma o apéstolo Pedro, que ensinou a jovem co- munidade crista a rezar, alegrando as suas reunides noturnas com a apresentacio de estranhas melodias de triste beleza € casto entusiasmo. Oriundas do Oriente, de Antioquia, onde Pedro vivera muito tempo, eram melodias muito antigas, estreitamente ligadas aos cinticos sagrados 82 Orfeu ¢ Euridice. Orfeu (4 direita) volta-se para a espésa; Hermes, entio, pega-lhe a mio, para levé-la de novo s profundezas da terra. Cépia romana de um relévo grego (desaparecido) do século V antes de Cristo. (Os nomes falsos foram acrescentados mais tarde.) Louvre. PRANCHA 3 A misica dos etruscos (aulos duplo e citara) era fortemente influenciada pelos gregos. Mural num timulo, dos séculos TV e V, antes de Cristo. A esquerda: Trovador na Pérsia. Prato pintado e dowrado de Kaschan. Século X11 4 direita: Cena de comédia, na Roma antiga. Acompanhado por uma flautista ¢ apoiado a um escravo, 0 jovem, depois de uma orgia, volta cambaleando para casa, A esquerda, um amigo retém 0 pai furioso que quer precipitar-se sobre 0 estouvado. Relévo romano. Napoles. PRANCHA 6 Samay ite bin on btinng “1 ‘A folha do manuscrito de Manesse, dedicada a Klingsor von Ungerland, mostra 0 torneio de trovadores no Wartburgo. Em cima estdo sentados o landgrave da Turingia ¢ sua espdsa, embaixo “rivalizam no canto Walther von der Vogelweide, Wolfram von Eschenbach, Rei mar 0 Velho, o virtuoso escritor Heinrich von Ofterdingen e Klingsor von Ungerland”, PRANCHA 7 Devincinrs ore Fan, Pnscene Ry A esquerda: Manuscrito do século XII_com neumas ¢ representagio do monge Luither, que apresenta a Si0 Gallo os canticos do Gradual da missa. St. Gallen, Biblioteca do convento. 4 direita: Tannhauser, 0 grande poeta, muito viajado, com o manto branco da ordem dos cavaleiros alemes tal qual estd descrito no manuscrito de Manesse Instrumentos musicais do século XV; da esquerda para a direita: saltério, trombeta marinha ou falante, alaide, sacabuxa, bombarda. Triptico de Hans Memling, “Os Anjos Miisicos”. PRANCHA 8 dos judeus. A multiddo revoluciondria nas catacumbas achava nelas tudo 0 que procurava; e um névo espirito penetrou as velhissimas me- lodias. Por dez séculos ésse canto nao nos abandonard. Por mil anos en- cherd téda a histéria da misica, estreitamente ligada ao desenvol- vimento da religido cristd, com o seu triunfo e expansio no mundo. Os missiondrios servem-se déle para converter os pagios e, assim, le- vam-lhes a0 mesmo tempo uma nova religido e uma nova misica, na realidade jd muito antiga, mas, nao obstante, nova e estranha para os povos da Europa e — mil anos mais tarde — para a América. O canto — falo intencionalmente de canto e nao de misica, por- que nenhum instrumento acompanha a melodia cantada durante int- meros séculos — atravessa uma fase de desenvolvimento, adaptase e abandona algumas coisas para poder aceitar outras. O seu cultivo, mes- mo com longas interrupgGes, nao cessou até hoje na Igreja Catdlica 0 seu nome eterniza o de um papa que colecionou tédas as melo- dias do culto divino naquele tempo, as anotou e ordenou: foi Gre- gorio Magno (5402-604). Por muitos séculos o grande livro que repre- senta a sua obra ficou préso por uma corrente ao altar da igreja de Sao Pedro, e ainda hoje a éle se deve a uniformidade da musica da Igreja Catélica. Devemos, contudo, mencionar também Santo Ambré- sio, Bispo de Milio, que por volta de 400 conquistou o maior mérito pela musica da Igreja ocidental. Ja falamos de Roma e do martirio; citemos entéo Santa Cecilia, a padroeira e, segundo antigos textos, “‘inventora” da musica ou, se- gundo outros, do érgio, a qual, em 22 de novembro (em muitos pai- ses celebrado como dia da musica) de 230, morreu no martirio, Tor- nouse ela objeto de numerosas representagées da musica na pintura, especialmente na época da Renascenca. Em 323, transformou-se o cristianismo em religiao oficial do Estado e a sua musica pode abandonar as catacumbas ¢ entrar nas igrejas. Mas, com isso, iniciaram-se lutas no clero, que se ocupava de questées musicais. O canto da comunidade foi violentamente atacado; a mu- sica devia ser privilégio exclusivo do clero. O Concilio de Chalons proibiu, em 650, o canto das mulheres na igreja; e nunca terminou de vez a luta entre a tendéncia oriental, que defendia as melodias complicadas e o canto melismaticamente florido, e a tendéncia ociden- tal que pretendia impor cantos mais simples e modestos. Nos primei- ros séculos, 0 papel da musica na Igreja Catélica foi muito maior que © de hoje. E um dos pontos de ataque, importante alis, da reforma protestante foi precisamente a questdo musical, nao satisfatoriamente resolvida; 0 protestantismo deu livre acesso a0 povo no exercicio da musica. Especialmente longa ¢ violenta foi a luta em térno do uso de instrumentos musicais na igreja; s6 depois de muito tempo foi que se permitiu 0 uso do érgio. Apesar de tddas as divergéncias, a musica constituiu na crescente atividade das obras de missoes € catequizacio um elemento essencial, 33 3° Histéria Masica como jé mencionamos. Onde a palavra do sacerdote ndo conseguia penetrar, seja por nfo compreenderem os indigenas o latim e os mis- siondrios nao falarem a lingua do pais, seja porque os que conser- vavam a antiga crenga se recusavam a ouvir os sermdes dos recém- chegados, a musica realizava verdadeiros milagres. Talvez tenha con- vertido ao cristianismo tanta gente quanto a palavra falada. Havia em Roma, e outras cidades, escolas — scholae cantorum — nas quais os missiondrios aprendiam musica. Mais tarde, ao se espa- Iharem pela Europa inteira, construiram éles mosteiros em que as aulas de musica desempenhavam importante papel. Muitos désses mos- teiros tornaram-se famosos, como, por exemplo, o que Santo Agosti- nho fundou em Kent, na Inglaterra, em 597. Lentamente chega ao fim 0 poder politico de Roma. Em geral, in- dica-se 0 ano de 476 como ponto crucial da histéria, data em que o mundo antigo desaparece para sempre; e iniciase nova era que no difere apenas daquela seno também essencialmente da nossa, tanto que a consideramos embaralhada, mistica, estranha, cheia de fanatis- mo e violéncia. No entanto, deve ter sido ésse um desenvolvimento necessario para o Ocidente, sem o qual a nova ascengio, 0 névo flo- rescimento nao teria podido ser preparado. Na Europa daquele tempo eram raras e inseguras as estradas. Pou- cas as que permitiam a expansio do cristianismo e, com ela, a da escrita e da musica. As vézes os meios de comunicagio eram os gran- des rios, como o Dantibio e o Reno; outras, os Passos dos Alpes. Ali, erguiam-se colénias cujo ponto central era um mosteiro, como a fa- mosa Abadia de Sio Gallo, cuja histéria remonta até o ano de 720, Era um dos centros culturais mais importantes daquele tempo: dentro dos seus muros encontramos os monges mais eruditos da Idade Média, como o poeta Notker Balbulus (830-912). A Balbulus atribuem-se conhe- cimentos de teoria musical e também uma melodia que ainda hoje se Fig. 18. Orgdo com dois organistas ¢ quatro calcadores segundo 0 Saltério de Utrecht, cérca de 860. sty "SDT > ‘ts a Bpenloracecepiz (ymton . 58-[ eat 2 pw Ta frogecea anwermeat. fet prpeu fontae rr ie Be urea, eeont inter New a rg snout vvoonrtn ste evapo Fp Crhinrueted = neon Qhectpie antnateat twas. 6% ‘ is oo Coltenraxgtevarses pas Chee Fig. 19. Neumas italianos com linha de fd. Manuscrito de cérca de 1100, Vaticano. canta, geralmente na adaptacao de Martinho Lutero, e que se denomina: “Media vita”. Exprime ela exatamente a esséncia da vida monacal, isto é, estar a morte sempre 4 espreita da vida; era a substancia do pensamento da Idade Média cujo unico esférco parecia voltar-se para o além. Naturalmente, também a misica — 0 céro gregoriano — néo podia exprimir outra coisa. Outro Notker, com 0 sobrenome de Labeo (950-1022) possufa tam- bém cultura universal. Traduziu autores latinos e gregos, como por exemplo Aristételes para o alemio, e compés o primeiro tratado sd- bre misica em lingua alem3, bem como um guia para a construgio de tubos de érgios. Um relance de olhos 4 biblioteca do Convento de Sao Gallo é inte- ressante. Jé em 850 continha mais de quatrocentos volumes, ntimero imponente para aquéle tempo. Entre éles, ocupam lugar importante as obras musicais, especialmente um cédice de cantos missais do qual, na prancha 8, vemos uma pdgina com o retrato do musico Luither. Esses manuscritos nos permitem saber alguma coisa sébre o cuidado extremamente severo da nossa arte naquele tempo, Compreendemos também que a musica, privada do seu contato com 0 povo, se trans- formou em ciéncia dura e séca, irma de outras ciéncias e bem dis- 35 tante do desenvolvimento livre e do véo entusiasmado da arte. Cer- tamente foram grandes os seus progressos tedricos naqueles séculos, mas quase nulo o seu desenvolvimento como arte; no préximo capitulo, que trataré dos trovadores, ser-nos-4 dado ver a reacio. Devemos ainda falar de outra personalidade musical daquele século, talvez a mais importante: Giiido de Arezzo. Diz-se que é autor de um sem-niimero de novidades musicais: progressos importantes na es- crita das notas (fig. 19), exercicios praticos de entoagdo, chamados a “mio de Gitido” e a invengio do alfabeto musical, hoje adotado em grande parte do mundo; o D6-Ré-Mi-Fa-Sol-La-Si (sem o ultimo som ‘si’, introduzido mais tarde). Gitido de Arezzo, que viveu de 995 a 1050, era homem cheio de idéias. Para as silabas destinadas aos exer- cicios de entoacio, usou um hino que os meninos cantores entoavam a Sio Joio, para que os protegesse da rouquidao; nessa melodia cada frase comeca com um grau mais alto que o anterior. Assim Giiido va- leu-se das primeiras silabas da cangio, que dizia: UT queant laxis, Para que nés, servos, com nitidez REsonare fibris e lingua desimpedida, Mira gestorum o milagre e a forca dos teus feitos FAmuli tuorum elogiemos, SOLve polluti Tira-nos a grave culpa LAbii reatum da lingua maculada Sancte Joannes... 6 So Joao! € usou como tom bisico a silaba ut; para o seguinte o tom ré, etc. Mas em breve se viu que ut nio era facil de ser cantado, visto que nfo acabava em vogal; foi, assim, substituido por dd. Acabava de nascer 0 alfabeto musical dos paises latinos. Com todo o direito perguntard o leitor 0 que aconteceu com a mi- sica dos paises aos quais os missiondrios levaram o coral gregoriano. Jé sabemos que na terra nao hd povo sem musica. A mtsica dos eu- Topeus parecia aos romanos barbara, feia e desarmoniosa, segundo podemos ler em numerosas crénicas. E o que afirmou Julio César quanto aos helvécios; e um bidgrafo de Gregério Magno confirma essa opinido relativa aos europeus em geral. N4o devemos tomar tal opi- nigo demasiadamente a sério por ser dificil discutir o belo e o feio no campo da musica; nao hd, porém, a menor diivida de que o canto grego- riano era superior, como arte, as cangdes e melodias de dancas popu- lares das tribos européias. O seu efeito sébre os povos primitivos da Europa foi enorme. Esforcavam-se por aprendélo, apesar de no se harmonizar com o cardter e compreensio déles, e retiravam-se com as suas criag6es musicais para onde os missiondrios nZo chegavam. Dali, partiu a tendéncia oposta ao canto gregoriano, como veremos. Mas por enquanto o seu triunfo € completo; é a tinica forma de musica na Europa durante quase mil anos. Os seus caracteristicos so pronunciados; é uma musica pura, vocal, sem cooperacio instrumental; 36 17. KR. Ailerbey (chiter ficdy sus ergeflen dag clner diefe belde Reirmpeile foldyer den geflale gu derftehen gebert. Redlich fole bu fahren mle mies Reche guts fol wredecfabren dir. D.Sdurno. eoentaibe wrt. Creuk Sreaben. n bic. Fig. 20. Trecho mneménico para a aprendizagem das notas, extrato dos “Trechos de Conversacdo”, de Philipp Harsdérfer, Niiremberg, 1644-43, cujas notas foram escritas por Gottlieb Staden. As silabas que faltam dao os nomes das notas ré-sol-fé, etc. Estd indicada @ clave c(ut) na primeira linha. € sempre musica monédica, sem contraponto, sem acompanhamen- to. E misica sem compasso e com um ritmo que corresponde a leis outras que as de tempos mais recentes. A melodia desenvolveu-se qua- se sempre da lingua; reconhece-e facilmente que a oracio recitada foi a origem dessa musica. Compreenderemos claramente a esséncia dessa mtisica se imaginar- mos 0 seu nascimento e uso. No creptisculo mistico de uma igreja, os monges elevam a voz e entoam uma oragio cantada. Profunda de- vo¢io os domina, Sentem-se uma unidade absoluta; nenhum vale mais, diante de Deus, do que outro; por isso, nio pode haver um solista, nem tampouco “segunda voz”. O canto € a mais alta expresso de sen- timento; assim, nao pode haver atavio artistico. A concepgio de “arte” ainda nao nasceu na Europa; a musica, a pintura e a poesia servem a Deus. Sao, na formacio e na execugio, ainda andnimas, porque ne- nhuma gléria mundana se Ihes liga e, menos ainda, vantagem material, Quem deseja ter uma idéia dessa musica remota, entre numa igreja catélica, no qual se cultive o canto gregoriano. Os seus mais puros recintos de cultivo sio a Capela Sistina do Vaticano e 0 mosteiro dos beneditinos de Solesmes (}). Mas também num templo judaico ortodoxo se pode ter profunda impressio da musica daquela época; ali se evi- dencia claramente até que ponto 0 canto judaico de templo é o funda- mento da primeira musica crista — da mesma maneira como o dogma judaico de um unico Deus se tornou base do cristianismo. O canto de templo conserva ainda — no sabemos até que ponto — vestigios da musica que se ouviu na antiga Jerusalém. Musica asitica, que se tornou base da musica cristi ¢, conseqiientemente, foi praticada por muitos séculos na Europa; mesmo ainda se pratica, em ndo poucos lugares de culto. (1) Cumpre tembrar ainda 0 Céro de Monges Beneditinos da Abadia de $io Mar Beuron, Alemanha, mundialmente célebre, em virtude dos numerosos e espléndidos res fonogriticos da “Archiv Produktion” da “Deutsche Grammophon Gesellschaft". (N. do R.)- EL) A PITORESCA EPOCA DOS TROVADORES Bem atrds de nés esto os templos que nos guiaram pela historia cultural e musical do Mundo Antigo. Também desapareceram os tea- tros ao ar livre, da civilizagdo helénica, e agora, deixando os mostei- ros dos primeiros séculos cristZos, estudamos nova e significativa trans- formacio. A Europa vé-se ameacada por todos os lados; no sul os muculma- Nos, no norte e leste os normandos, no oeste os hunos, tartaros € es- lavos querem invadir e submeter a parte fraca do continente, Recua 0 vulto do sacerdote, e na Europa dominam homens em armas. Assim, cria-se 0 feudalismo, a cavalaria. A arte, e com ela a musica, é em tédas as épocas, imagem fiel da vida da qual nasceu. Assim, é claro que essa transformagio politica fundamental teve como conseqiiéncia uma completa mudanca no ter- reno da arte e da musica. As idéias dos cavaleiros diferiam necessa- riamente das do sacerdote. Apesar de senhores de profunda piedade e considerdvel temor A prestagio de contas depois da morte, nao tardam em ser vencidos por objetivos profanos, amizades, aventuras guerreiras, perigos em regides longinquas e particularmente o amor. Sao os temas que ocupam a sua vida, sio os temas que éles cantam querem ouvir, quando se instalam ao pé da fogueira do acampa- mento, ou no salao do seu castelo, nas Iongas noites de inverno, ro- deados pela familia. O castelo situase no alto da colina. Vigia estradas e rios e protege os casebres dos camponeses que, timidamente, se erguem nas encostas. Um cavaleiro errante hospeda-se no castelo, e em sua honra se reu- nem os nobres das vizinhancas. De noite — depois de livrar-se da es- pada — empunha éle a sua lira e comeca a cantar. Os homens ou- vem-no com atencio porque narra fatos pelos quais todos passaram ou passario um dia, de lutas e jornadas na Terra Santa, beleza de mouras, nupcias solenes em castelo real, trai¢zo e morte nas batalhas, fidelidade de amigo, misteriosas pocdes de feitico e de esquecimento, duelos e perdicio. As mulheres, ricamente trajadas, ouvem-no ainda mais atentamente que os proprios cavaleiros; e diante dos seus olhos se descortina um mundo estranho e inimagindvel. Com voz macia o cavaleiro errante declama: é metade poema, metade cangio; as vézes sio palavras; outras, melodia... E quando termina, a filha do castelio dé-lhe uma flor, e éle se julga ricamente premiado. 38 No canto do cavaleiro mesclam-se numerosos elementos: melodias populares do seu pais e melodias de paises do Ocidente e do Oriente, que éle percorreu nas suas jornadas. A Europa inteira é inundada pelo névo canto; talvez tenham sido os bardos, os cantores profissio- nais celtas, os seus primeiros representantes, Eram ainda sacerdotes na Irlanda, no Pais de Gales e Escandinavia, mas viajavam e constitu{am uma crénica viva de tudo o que viam, transformado em cangées. Cada vez mais se converteram em verdadeira classe de musicos; entre éles havia tocadores de harpa com o titulo de “doutor em misica”, conce- dido somente depois de longos estudos e rigorosos exames. Cada trés anos, reuniam-se os bardos para a concessio de titulos que iam de simples “aprendiz licenciado” até “professor de poesia e musica’ Fig. 21. Concérto com acompanhamento de drgdo, segundo um manuscrito da biblioteca de Pesaro. A partir do século XI, encontramos os trovadores no Sul da Franga, ja na sua maioria cavaleiros. Inicialmente reconhecem ainda a supre- macia da Igreja; mas ndo tardam as descriges santas em ser substi- tuidas pelas de lutas, e 0 culto de Maria transforma.se em cangées de amor mundano. Lentamente também a lingua latina desaparece, cedendo o lugar aos dialetos do pais por todos compreendidos. A poesia e a musica conquistam uma popularidade que, necessiriamente, faltava ao canto eclesidstico latino. O centro dos trovadores locali- zou-se na Provenga, berco da “langue d’oc”, em cuja terra ensolarada se situam Limoges e a capital Tolosa. Em Tolosa, acha-se uma das mais antigas catedrais da Franga, aos pés da qual, j4 nos séculos XI e XII, se realizavam torneios de fléres acompanhados de musica, du- 39 ¢ ae (Shane etmon pour wit Y. Ee luccquel prenuent Tare Fig. 22. Cancao de trovador, do século XIN. rante os quais a rainha da festa dava ao vencedor uma unica e belis- sima flor... Devem ter sido tempos felizes aquéles em que os homens dispu- nham de sosségo bastante para construir durante séculos uma catedral, em que o trovador recebia, como recompensa da sua obra & qual éle havia certamente dedicado anos de vida, uma simples flor entregue por formosa mio. Algumas melodias da época dos trovadores se conservam até hoje, provavelmente modificadas; sentimos nelas a expressio de pensamen- tos nobres e elevados, certa tendéncia para o efeito dramatico e um fino gésto poético. Conservam-se também manuscritos das cangdes, em que notamos consideravel progresso na escrita das notas; j4 se véem pautas, para se fixar a altura do som. Mas nao ha notagdes quanto as vozes acompanhantes ou aos acordes; supomos, assim, terem éles ficado ao critério do gésto e habilidade do musico, como ainda hoje & 0 caso da mtsica popular de todos os paises. Parece que os trova- dores e “Minnesiinger” se acompanhavam, as vézes, com antigos vio- linos (chamados giga), “viela” e outros instrumentos de corda, apare- cidos pela primeira vez, naquela época, na Europa, trazidos pelos mouros. Talvez usassem também instrumentos semelhantes as harpas, © que nos faz crer que ja conhecessem, embora primitivas, as harmé- nicas de acordes, muito antes que a teoria as adotasse. No Sul da Franca encontramos o trovador; no Norte, chama-se “trouvere”. O movimento propagase para além dos Pireneus, na Es- panha e em Portugal. Ali também, onde, sem duivida, j4 muito antes existiam melodias populares, onde, desde a conquista arabe em 711, um dos mais interessantes folclores estava prestes a nascer, a nobreza encarregou-se da vida musical e produziu notdveis artistas. Afonso, 0 Sdbio, rei de Castela e Ledo (1221-1284), poeta e compositor excelen- temente dotado, escreveu célebres cantigas; Dom Jofio I de Aragio fundou um instituto musical em Barcelona e organizou festivais poé- 40 tico-musicais, seguindo 0 exemplo de Tolosa, os quais ainda hoje se praticam em varias partes da Espanha (!). Do Norte da Franca passam os trovadores as Flandres e A Ingla- terra; aqui, 0 cuidado dispensado A musica chega a tal ponto que por séculos se fala apenas no “Merry Old England”, Também na Ingla- terra houve reis trovadores, e de um déles fala antiga e célebre Jenda. Ricardo, Coragio de Leio, proclamado rei inglés em 1189, caiu pri- sioneiro do seu inimigo, Duque Leopoldo da Austria, ao voltar de uma cruzada A Terra Santa. Leopoldo encerrou-o no sombrio cala- bougo da fortaleza Diirnstein, as margens do Danubio. Narra a lenda que Blondel, o fiel amigo de Ricardo, comegou a procuré-lo entoan- do tédas as noites uma cangio diante dos numerosos castelos do Da- nubio; uma noite, respondeu-Ihe a voz do rei com o segundo verso, mal Blondel terminou o primeiro. ea earcel De Gimoz Fig. 23. O trovador. Gravura em madeira, de frontispicio do “Carcel de amor”, de Sao Pedro, 1547. As cangdes de cavalaria propagaram-se também para o leste, para os paises a que hoje chamamos Austria e Alemanha, Suiga e Holanda € onde, justamente naquele tempo, comecava a formarse a lingua es- crita alema. Apesar de ja terem os trovadores numerosos nomes, “trou- badour” e “trouvére” na Franga, “Minstrel” na Inglaterra, “trovador” na Espanha, receberam na Alemanha o seu, baseado no tema princi- pal das suas cang6es: chamaram-se “Minnesanger” (). Em Portugal, 0 rei Dom Dinis (1279-1325), possula completa educagio literdria_e Pode ser considerado 0 mais. sibio monarca de seu tempo. Estudou’ com Aymérie dEbrard ¢ Domingos Jardo. Mandou traduzir para o. vernéculo, importantes obras, as leis das “sete Partidas”, a “"Cronica Geral" ou “Historia da Espana" de Afonso-o-Sbio, edo escritor 4rabe Razis de Cérdova, a “"Histéria e Geografia da Peninsula”. A 1.° de marco de 1290, fundou 3 “Estudos Gerais", mais tarde Universidade de Coimbra. A ¢érte de Dom Dinis foi centro de imtensa vida literdria e musical, acorrendo jograis e trovadores da Galiza, Leio ¢ Castela. O proprio mongrea “dew exemple, ‘compondo cancées profanas, “cantigas de ‘amor”, “cantigzas de * ou “cancées de dona’; e “cantigas de escarnio e mal-dizer", de censura ¢ cr Pestoas, com ou sem acompanhamento de teorba oll aladde, — V. Mendes dos Remédios, “Historia da Literatura Portuguésa", Coimbra, 1930, pigs. 31-33. (N. do R.). (2) Cantores do amor. (N. do 'T.). 41 Nas suas cang6es, aparecem pela primeira vez sagas que se torna- ram em seguida popularissimas: a cangio do Nibelungen que, com a Edda nérdica e o Cid espanhol, pertence as mais antigas obras da literatura européia; a lenda de Tristéo e Isolda, de Parsifal e do Santo Gral, temas que mais uma vez nos ocupar’o quando falarmos da obra de Richard Wagner. Wagner, no seu “Tannhiuser”, inclui um costume daquela época: 0 torneio de cantores. No Wartburgo, retine os famosos “Minnesinger” Biterolf, Tannhauser, Wolfram von Eschenbach e Walther von der Vogelweide. Esse acontecimento nfo € histérico, apesar de estar data- do num mural do Wartburgo, a 7 de julho de 1207; a dpera de Wagner, bem como a descrigao numa das mais belas e célebres cole- taneas de cangées da época, a do manuscrito de Manesse, feita entre 1280 e 1290 (Prancha 7), baseiam-se num conto em versos do século XIII. De resto a épera segue a saga de Tannhiuser (Prancha 8); a vida désse trovador, que morreu por volta de 1270, nfo foi com certeza tio romintica. Apesar de nfo haver Wagner reavivado fatos histéricos nas cang6es e sagas da Idade Média, o “Tannhauser” nos dé uma idéia viva € pitoresca da época de cavaleiros e trovadores. Mas também essa época variegada e rica de céres teve o seu fim. Os castelos foram-se esboroando, e a sua importancia politica dimi- nuiu. A Europa povoou-se. Em 1287 morre Adam de la Halle, “o ultimo trovador”, autor de rara peca musical “Le jeu de Robin et Marion”, que nos parece precursora da épera. Em 1805, morre o tltimo trovador real, Venceslau II da Boémia, de quem conservamos algumas melodias, testemunhas e precursoras de animada vida musical 4s mar- gens do Moldava. Temos na arte dos trovadores e “Minnesinger” a primeira irrup- do da miisica popular européia para a musica artistica — reacao inconsciente contra 0 canto gregoriano, e hora de nascimento da mu- sica européia. Dali se estende longo e sinuoso caminho aos “séculos de ouro” do classicismo e romantismo. De névo, levantam-se cidades, depois de longa interrupcio. Eos burgueses que nelas se instalam herdam dos cavaleiros ndo sbmente © poder sendo também a musica, modificando-os muitissimo como ve- remos daqui a pouco. 42 6 AS CIDADES E A SUA “NOVA ARTE” Durante muitos séculos, durante téda a Antiguidade, foram as ci- dades os centros espirituais e politicos do mundo; ésse desenvolvi- mento atingiu o seu ponto culminante espiritual em Atenas, e o poli tico em Roma. Na época das grandes migragdes, e com a decadéncia do império mundial romano, as cidades desapareceram, foram saquea- das, incendiadas, destruidas, despovoadas. Na Idade Média, centrali- zou-se o poder espiritual e politico nos mosteiros, cértes reais e cas- telos de cavaleiros. Mas as cidades reapareceram. Ao pé da colina em cujo topo se er- guia o castelo, sob a protecio do poderoso cavaleiro, fixaram-se cam- poneses e artesios. O ntimero das casas aumentou continuamente, os seus habitantes tornaram-se cada vez mais altivos, e um dia os pa- péis se inverteram. As cidades recém-nascidas e vigoradas cercaram-se por sua vez com poderosas muralhas e os cavaleiros, enfraquecidos por incessantes contendas entre si, empobreceram e passaram a necessitar de protec4o. A cidade torna-se cada vez maior, cada vez menos im- portante 0 castelo, e os habitantes da cidade, que a si prdprios cha- mam burgueses, habitantes de burgo, sentem-se seguros, prescindem do amparo, tornam-se mais ricos e orgulhosos, exigentes e cdnscios da sua importancia. As cidades mudam completamente o aspecto do mundo. Um névo espirito paira na Europa daquele tempo, a certeza da férca coletiva, uma nova alegria de viver. Encontraremos a sua expressdo clara e distintamente posta nas milagrosas obras arquitetonicas daqueles sé- culos, nas catedrais, nos paldcios, nos pérticos de castelos, e nas fontes. O burgués, uma vez satisfeitas as suas necessidades materiais, sonha com grandes obras, que Ihe projetem a gloria no espaco e no tempo. In- venta a arte de imprimir livros, arma navios que negociam com lon- ginquas partes do mundo e descobrem novos mundos. Baseia o seu poder no espirito e no dinheiro. As artes florescem como nio flo- resciam havia tempo; ndo contam apenas com apoios materiais sendo também com uma nova embriaguez de grandeza, da qual tiram ines- gotiveis temas. Tudo isso faz a cidade. # claro que o préprio homem devia mudar em meio de tio grande transformagio. Ja falamos de uma nova alegria de viver que, no coméco, mal ousava mostrar-se; talvez j4 se possa, neste mundo, aspirar A real zacéo de no minimo uns poucos desejos! O canto gregoriano, que tio fielmente refletiu o ideal dos monges da vida bem-aventurada no além, recua cada vez mais para os mosteiros onde ésse ideal sera conservado. A nova musica burguesa,.da cidade, é uma afirmacao ainda mais forte 43 da vida transitéria do que a oferecida pelos trovadores. Apesar disso, muitas vézes sio os seus temas de natureza religiosa, porque o homem nao cessa de crer em Deus, porque a vida terrena se tornou melhor, mais segura e mais feliz. Tecnicamente, verificase agora na musica uma transformacio sig- nificativa que, ao que sei, nem em lugar nem em tempo nenhum ad- mitiu explicacao causal, Trata-se da invengio, da introdugio da polf- fonia. £ claro que isso nao aconteceu de um dia para o outro, Exa- minemos um pouco os antecedentes. \ AAO ANY NOES LTT PLATS DY 6 ffDz TSO Mfz tz biPoMezz bP zszoe Letaon a voy wos Lm LES BIST eszpi Sez bi) WONz220 Fig. 24. Danga tirada de um manuscrito borgonkés do século XV. Debaixo das linhas do texto estdo indicados por letras os pasos da danga. Bruxelas. Dizse (j4 falei a éste respeito no segundo capitulo) que a huma- nidade nada mais conhecia, até entéo, do que a monofonia na musica vocal bem como na instrumental. Num tratado do Monge Hucbald, de St.-Amand, que viveu de 840 a 980, aparece apenas um rudimento de polifonia, que éle chama diafonia. Dé também exemplos e estabe- lece uma oposicio de duas vozes, em intervalos de quintas, o que para os séculos seguintes se afigurou a maior das dissonancias. Mas deixemos de lado essas questées relativas e pouco importantes de consonancia e dissonancia (pouco importantes por serem relacionadas & época e ao lugar), e observemos o futuro desenvolvimento de ques- tdo tao vital. Outros tedricos importantes comegam a ocupar-se do tema, por exemplo o jd mencionado Gitido de Arezzo e, depois déle, Hans Cotton (1050-1180) que dd a seguinte explicacio: “A diafonia é 44 uma combinagio de varios sons. realizada pelo menos por dois can- tores de tal modo que, enquanto um canta a melodia principal, o ou- tro a acompanha em outros tons. Em téda pausa encontram-se os dois em unjssono ou na oitava. A essa espécie de canto chamamos comu- mente “organum”. Também aparecem outras formas da antiga polifonia, o Faux bour- don (no qual o canto em térgas e sextas jd se tornou lei, de maneira que devemos, involuntariamente, pensar na existéncia désses interva- los na musica popular daquele tempo), também chamado “Fabordon” e “Falso bordone”, o Gymel (derivado do latim “Cantus gemellus”, canto gémeo ou canto de duas vozes) na Inglaterra, que também pre- fere intervalos “populares”, e muitos outros que provam como apare- ceu a mesma idéia, a0 mesmo tempo, nos lugares que apresentam o mesmo desenvolvimento. Eis ai exemplos individuais que nos provam a existéncia de uma polifonia primitiva, como a descrita, pouco usada, e que necessitava de uma explicagdo exata. Os comegos da polifonia, como tantos ou- tros pontos da ciéncia da musica, so obscuros. Como ¢ que agora emerge? Como é que agora se torna a tendéncia predominante? Ten- tarei uma resposta a essa importante pergunta. A vida primitiva produz uma arte primitiva; a vida simples, che- gada 4 natureza, uma arte simples, chegada & natureza; a vida mis- tica uma arte mistica, a crente uma crente, a de cavalaria uma arte feudal. O coral gregoriano podia, devia ser monddico, porque era um ideal coletivo que néle se exprimia, e exatamente o mesmo para todos. Na nova cidade, a vida complicase, sabem-no todos por- que vivemos as suas ultimas e maiores conseqiiéncias nas modernas metrépoles. Nao se complica apenas pelas exigéncias crescentes, pelas expansées e distancias, cada vez maiores, pela multiplicagdo das rela- g6es muituas dos homens, complica-se especialmente pelo crescente in- dividualismo, pela especializagio cada vez maior e pelo nervosismo cada vez mais sensivel. Nio se trata aqui de um estudo psicoldgico, mas simplesmente da explicagio do desenvolvimento da musica dos séculos citadinos. Tal- vez possa dar-nos também a explicagdo do desenvolvimento da poli- fonia. Quando os burgueses se reuniam de noite, apés o trabalho nas profisses j4 bastante diferenciadas, a musica constituia parte con- sideravel da diversio. (Aqui se fala de diversdo, ao passo que, pouco antes, a musica era devocio e edificacio.) JA nao era, porém, um sé que contava feitos herdicos acompanhado pela lira, enquanto os outros o escutavam sem respirar; era dificil haver entre éles um que tivesse viajado ou vivido mais que os outros. Ninguém queria ser menos que 0 outro. Se todos cantassem a mesma coisa, como os mon- ges no coro gregoriano, mal satisfeito ficaria o seu individualismo. Exco- gitaram assim a polifonia, que deixava por conta de cada um uma tarefa interessante e independente, embora todos cantassem ao mesmo tempo. Talvez ja antes aparecessem as bases técnicas para a polifonia, mas 0 momenio psicolégico — que é, afinal, o que importa — sé 45 naquele tempo foi que surgiu. A sociedade burguesa devia chegar neces- sariamente a musica polifonica. Bem cedo a encontramos em Paris, onde sob o nome de “nova arte”, ars nova, forja as suas primeiras armas. Mencionemos aqui os nomes de dois importantes misicos: Leoninus e. Perotinus, contrapontistas des- bravadores do século XII. Nascem cangées polifénicas, as chamadas mo- tetes, e torna-se moda o canto de canones que, mais tarde, constituiriam a base da fuga, a mais desenvolvida forma de polifonia. Nao é sem razio que, as vézes, se compara a arquitetura da mesma época & nova musica. A magnifica catedral de Notre-Dame na cidade do Sena é um claro exemplo: a dissolugio das massas compactas em ritmos vi- vos, a mistica expansio do espaco, a alegria dos ornatos, dos acaba- mentos, tudo isso encontramos na arquitetura e na musica daqueles tempos. Realmente sio as magnificas igrejas que nos mostram tam. bém o caminho através da musica do século polifénico, para nos per- mitir entrar finalmente na grandiosa época da Renascenca italiana. Winston Churchill teve certa vez éste profundo pensamento: “O ho- mem forma os edificios; depois os edificios formam os homens...” & evidente que, em face de tal desenvolvimento da misica, a escri- tura das notas teve que ser aperfeigoada. Os cantos monddicos podem, a custo, ser aprendidos e recitados de cor, ou, de maneira primi- tiva, anotados como pontos de apoio 4 meméria. Tratando-se da poli- fonia, nao € mais possivel. Para ser possivel preservar e observar sua execucao (faz-se agora, cada vez mais, necessdrio um “chefe”, um re- gente) é mister uma anotacdo clara. Assim sendo, é natural que os mesmos séculos, nos quais se aperfeigoa a musica polifonica e se ini- cia o seu império, tragam uma elaboragio apressada e completa de novas escrituras de notas. Primeiro, a tonalidade foi completamente anotada; em seguida, foram atacados os complicados principios da du- ragio dos tons e as relagdes ritmicas. Cada época resolve os problemas que Ihe sao importantes. Assim, chegamos ao terreno da escritura de notas, em rapido desenvolvimento, através da anotacZo quadrada & ano- taco mensural, e finalmente, 4 moderna escritura de notas, que merece ser chamada criacio milagrosa de clareza e com cujo auxilio nos é dado anotar qualquer obra de musica inclusive a mais complicada. Os centros da nova musica surgem logicamente onde se retinem as tendéncias espirituais e politicas da época — fato que verificaremos freqiientemente. Depois do prelidio relativamente curto de Paris, é especialmente 0 caso das Flandres, onde, através de varias geracées, se encontra o centro de gravidade dos acontecimentos musicais e de onde o névo estilo se irradia para a Europa inteira. Os mestres das Flandres séo também, naquele tempo, as figuras predominantes da pintura européia (Prancha 8). A sede espiritual da musica das Flan- dres era a cidade de Cambraia, mas os seus representantes viviam nas cértes de Munique e Innsbruck, em Paris, na Italia e na Espanha, onde a nova musica se encontrava com a época mais positiva da politica e, assim, provocava um florescimento que, em seguida, por muitos 46 El SRE sui Femiger (S ssng Setiul’ geben ettecbe p Ciebpaber der Brunfi den Meifterfingern elude Baber juverfinge, Blan mied aud vortee can Gon Boy ange tame ae tt BW scatelea see, Schamaetef a semceginy Sashes Anger fol afin Sie cin aut fer at Gj Soar eitnaegemehlrnnon 1 Saul 36 Si jutemelnaeneye en te Bb sc Fig. 25. Convite para wma reunido dos mestres cantores de Niiremberg, fim do século XVI. O retrato representa Hans Sachs, com 81 anos de idade. séculos, nao mais seria alcangado. A predominancia da musica das Flan- dres sé pode ser comparada a absoluta hegemonia que, dois séculos mais tarde, a dpera italiana exerceu sébre 0 mundo inteiro. Mencio- nemos agora os grandes mestres daquela escola, figuras que, na sua época, tiveram, talvez, a significagio de um Bach ou de um Beethoven, e que para nds so apenas expressdes histéricas: Guillaume Dufay (1400? 1474), Jan Okeghem (14307-1495), Josquin Deprés ou Despres ou des Prets (14507-1521), Adrian Willaert (1480-1562), Jan Pieter Sweelinck (1562-1621), e, especialmente, Orlando di Lasso (1530?-1594). A polifonia em pouco tempo de tal maneira se desenvolveu que © seu cuidado nao péde mais ficar entre as maos de leigos. O que os burgueses iniciaram a titulo de divertimento noturno tornou-se a mais elevada e complicada forma de téda a musica. Os amadores nao conseguiram acompanhar-Ihe 0 passo. Mas o entusiasmo musical do povo fora despertado e nao iria mais desaparecer. Citamos outra vez Wagner para térmos uma idéia pitoresca da época da burguesia aman- te da arte: Nos “Mestres Cantores de Niiremberg”, desenrola-se a cena que nos pée diante dos olhos a honrosa instituigao musical dos mestres cantores das cidades alemis. Sio burgueses de diversas profissdes, tabe- lifes, alfaiates, padeiros ou sapateiros, os quais nas horas de lazer se entregam entusiasticamente A arte, cuidam dela com o mais puro zélo, com sacrificio e ambicdo e criam 0 tipo hoje um pouco injustamente desprezado de amador de arte. Formaram verdadeiras “escolas de mu- sica”, estipularam regras severas que dizem respeito ao texto bem como a melodia, e referiram-se até & declamacao. Tédas essas regras foram conservadas no “tabulatur”, que representa espécie de cédigo da guilda 47 dos mestres cantores. Justamente dessa fidelidade as regras é que Wag- ner deriva o conflito dramatico no qual se encontra o “Junker” Stolzing que canta sem regras, segue apenas 0 seu coraco e quase perece. Quem © salva é uma figura histérica, um grande poeta e miisico do povo, Hans Sachs, sapateiro em Niiremberg, € presidente dos mestres can- tores da sua cidade em 1554 (fig. 25). Naquele tempo, a instituicéo dos mestres cantores j4 contava aproximadamente trés séculos desde a sua origem em Mogincia (Mainz); e a benéfica conseqiiéncia para 0 amor do povo 4 musica ndo pode ser bastante agradecida a ésses homens, apesar do muito formalismo e pedantismo, e apesar da grande distancia entre a sua musica e a dos mestres da polifonia. Com 0 florescimento das cidades muda também a posicio social dos miisicos viajantes. Durante muitos séculos pertenceram éles, com 0s vagabundos, mendigos e domadores de animais, 4 classe infima da sociedade. Tocavam por ocasiio de festas camponesas; as vézes se- guiam os exércitos. Mas os seus servicos passam a ser agora mais pro- curados; na cidade ha bailes, ou um senhor distinto contrata-os para uma serenata diante da janela da amada. Em velhas crénicas se nos deparam freqiientemente pormenores pitorescos. Nao raro foram tidos por uma praga; apareciam nas cidades e tocavam por longo tempo diante das casas dos conselheiros e prefeitos até receberem pousada e comida. Nao tardaram em exigir também dinheiro. Resolveu, entio, a cimara empregé-los definitivamente, 0 que ficou mais barato. A orquestra municipal de Berna, em 1426, compunha-se de 3 flautistas, dois clarinetistas, 1 cantor € 1 organista. Mas nao tardaram as orques- tras em incluir harpas, violdes, violinos e violas, gaitas de fole, trom- bones, tambores e timbales. Os miusicos comecaram a organizarse, 0 que se verificou provavelmente em primeiro lugar em Viena, onde, em 1288, nasceu a “Irmandade de Sdo Nicolau” que perdurou quase cinco séculos; entre os seus expoentes, 0s chamados “Condes musicos” havia personalidades interessantes. Na Franca, criouse em 1330 a “Ménes- trandia”, que concedia patentes aos seus membros em 1381, na Ingla- terra, organizaram-se os “Minstrels” ¢, quase ao mesmo tempo, se reali- zaram esforcos semelhantes na Suica. Na Zurique medieval, um decreto, que parece moderno, estabelece que os mtsicos s6 podem trabalhar organizados em sindicatos. Basi- Iéia proibe aos misicos em 1397 usar escudo e lanca, o que, eviden- temente, é o golpe de misericérdia nos ultimos trovadores... Sic transit gloria mundi! ‘A mesma cidade suica proibe-lhes, treze anos mais tarde, 0 uso das calcas, a nova moda da cidade, para distingui-los dos “verdadei- ros” burgueses, Mas os cadastros de varias cidades j4 contém naquele tempo o nome de musicos donos de lindas casas. A posigio social dos grandes compositores chega ao seu primeiro ponto culminante. Sao amigos ¢ confidentes de principes e grandes do seu tempo, gozam de honras e de espléndidas rendas. Aproxima- mo-nos da Renascenca com o seu quase incompreensivel florescimento de tédas as artes. 48 4 esquerda: Parte da “Veneracio do Menino Jesus", de Bartolomeu Suardi, cognominado Bramantino (1475-1536). A figura A esquerda ergue um instrumento musical de cordas cuja posicZo natural é sobre o chao. Esse instrumento da Idade Média, também chamado trombeta de Maria, era constituido por uma longa caixa e tinha apenas uma corda. A direita: Nossa Senhora com menino e anjos, de Giovanni Boccati da Camerino, cérca de 1460. Na parte superior, a esquerda, alatide de colo dobrado, pandeiro e pratos; 4 direita, rabeca, gaita de fole e harpa. Embaixo, érgio portitil € saltério. : a if esa igh toa € eo wb flag at, Palazzo Pitti em Florenga, no qual, emi 1600, se representou a épera “Euridice” de Caccini. Gravura de J. S. Miller. Com ésse acontecimento, inicia-se a historia dessa forma de arte, que’ 37 anos depois passa dos palicios para os primeiros teatros de épera. PRANCHA 9 Cenirio de batalha maritima encenada por Buontalenti, intendente da corte dos Médicis, cérca de 1589, na praca do Palazzo Pitti. Trata-se de uma das representagdes pomposas, tecnicamente requintadas da época da Renascenca, as quais, acompanhadas de musica, foram as precursoras da épera. A sala do Metropolitan Opera House de Nova York. PRANCHA 12 7 O TEATRO NA IDADE MEDIA Antes de nos despedirmos da misica da Idade Média, mencionare- mos ainda um dos seus aspectos mais atraentes e importantes: o teatro. A crassa decadéncia que, depois do grande florescimento na Gré- cia, se verificou no teatro no império romano, mais ainda se percebe nos primeiros séculos da nossa era. Era como um regresso as formas mais primitivas, sem o sentido profundo e a idéia ética que predo- minaram durante a época helénica. Fig. 26. Concérto instrumental do século XVI. Frontispicio do Patrocinium musices missarm solemniorum, de F. Sale. Ménaco, 1589. Durante muito tempo lutou a Igreja contra essas peas populares, mas sem éxito. Essa paixdo est4 demasiadamente enraizada no ho- mem, e justamente no coméco da Idade Média constituiu um dos poucos divertimentos da populacio. A Igreja, vendo a impossibilidade de aniquilé-lo, decidiu empregi-lo em seu favor. Comecou, assim, a dramatizar a maravilhosa vida de Jesus, depois a histéria dos santos e, finalmente, introduziu nos espeticulos oferecidos a0 povo nas pra- gas, diante das igrejas, idéias abstratas sob a forma de pessoas, para poder influenciar consciéncias e almas. Apareceram, ai, figuras que ainda no teatro moderno nfo sao raras: 0 diabo e a morte, a beleza, a bondade e o amor. 49 Abis Histéria Masica Transformou-se, pois, 0 teatro da Idade Média em teatro cristio, como também aconteceu com a misica. A transformag&o comecou no préprio altar, visto que a missa ¢, basicamente, um drama. Tornou-se ainda mais pronunciado o fato pelo canto alternado do sacerdote € do povo, um dialogo musical de efeito verdadeiramente teatral. No século XI a dramatizaco do ato sagrado chegou ao dpice através da inclusio de cantos liturgicos, e 0 oratério nasceu. Ao mesmo tempo surgem, fora das igrejas, pecas teatrais com mtisica abundante, evidentes precursoras da dpera. Possuimos os nomes de algumas, apresentadas no mesmo século na Holanda e na Franca: “Os Profetas", “As Virgens Boas e Mas”, drama simbélico com misica gregoriana, e “O auto de Daniel”, no qual parece ter havido partes cantadas e acompanhadas por instrumentos. Naturalmente, a principio, foram os dramas litirgicos escritos em Iatim; mas como vimos antes no terreno da musica, nfo tarda em penetrar, também ali, a lingua do povo. Aos poucos, vai-se criando uma das formas mais importantes do teatro da Idade Média, os “autos sacros”, que se esforcam por sair da moldura das igrejas, sendo primei- ramente representadas no adro dos templos e mais tarde nas_princi- pais pracas das cidades. No século XIII, a forma do teatro leigo esta completamente desenvolvida e popularizada; misturam-se nela temas religiosos e profanos, cenas sérias e alegres. O papel da musica nas pecas de mistérios também chamados Milagres ou, na Espanha, “Autos Sacramentales”, & desigual, e depende do tema bem como das cir- cunstincias locais da época. A influéncia dessa forma teatral da Idade Média sébre a poesia dos séculos futuros é importante. O seu sim- bolismo e a sua profunda mistica atraem Calderén de la Barca, ins- piram Gabriele d’Annunzio, no seu “Martirio de Sdo Sebastiio” musi- cado por Debussy, e levam Hugo von Hofmannsthal a reformar a antiga lenda “Cada qual”. Esta “Peca da Morte de um Homem Rico” foi representada anualmente, nos festivais de Salzburgo, de 1924 a 1937, sob a genial direcio de Max Reinhardt, e mostrou ao homem moderno a sua ligagio profundamente mistica aos mesmos problemas que assoberbaram a Idade Média. Parece que a humanidade nasceu para se rir das suas préprias cria Ses. Por isso, simultineamente com o teatro surge a sua parédia: pe- gas de caréter satirico, ridiculo e as vézes extraordinariamente desa- vergonhado, as quais se popularizaram até entre o clero. Uma das mais célebres comédias, a “Festa dos Loucos” chegou a ser represen- tada na prépria igreja, e incluia a obscena parédia de uma miss: nio menos incompreensivel nos parece hoje em dia a “Festa do Asno” que todos os anos se celebrava em Notre-Dame de Paris e na qual nio se recuou diante de nenhuma profanacao. A Igreja tolerou tais usurpagées, podemos quase dizer que as estimulou, percebendo, com rara psicologia, que o homem tio fortemente oprimido como o da Idade Média, devia, durante alguns dias, dar vazZo aos seus baixos instintos, para ser, durante 0 resto do ano, bom e honesto. Natural- 50 mente a sdtira incluiu também a misica. O que no drama primitivo servia A edificagio ou acenava 4 morte e ao Juizo Final foi ironizado, sem piedade, ridicularizado ou transformado, por meio de névo texto, em grotesca obscenidade. Somente durante a Reforma foi que desapareceram essas pecas to- leradas pela Igreja, para se eliminar um argumento importante dos adversdrios. Mas 0 povo nao mais a elas renunciou, e vemo-las ainda em muitos lugares, no carnaval. CHAliracledenofltre Damedelamardfe dela Gandine un par (aceafemet Be onct Be fo mact cd matt fauott comife a garB8er fu conBampnee a ardoic/ Dont Antheno: ple comanSantd Mofire dame fey comBate a foncte ct fe Defeonfit cn Ramp, Bt ft fe Dict macte 4. pBn. perfonaigra. Jnpunte nouucilemet a Darr. Fig. 27. A marquesa 4 conduzida & fogueira, Frontispicio de uma peca francesa de milagres, século XVI Lentamente todos os paises europeus organizam o seu teatro. Na Espanha, conserva-se um manuscrito do século XI que representa uma dramatizagio dos Trés Santos Reis, com varias mudangas de cena, abundancia de atéres e aparentemente muita musica. De 1226 data a famosa peca de “Mistérios de Elche”, que até hoje se representa na bela aldeia da provincia de Valéncia; trata-se da teatralizagio da morte € assungio da Virgem, acompanhada de misica, do coméco ao fim. Na Inglaterra, inicia-se o teatro religioso com os folguedos de Natal, cujo centro mais uma vez sdo as conhecidas cangdes de Natal, os 51 . £ um fendmeno internacional; pela representa- do teatral dessas cangdes, chamadas na Alemanha canoes de Natal, na Inglaterra “Christmas Carols” e na Espanha “Villancico”, chega o homem da Idade Média a uma espécie da representacio dramitica. Na Suiga, onde o cuidado dispensado 4 musica foi assaz intenso durante téda a Idade Média, criou-se o drama da paixdo em versos alemies, representado pela primeira vez no Mosteiro de Muri, em 1250. Em 1377, reproduziu-se o drama da paixdo em Basiléia, mais tarde também em Lucerna e, em 1400, ouviu-se no Mosteiro de Sao Gallo a primeira representacio do nascimento de Cristo, a peca de Natal. Na Alemanha, os dramas religiosos foram, até o século XIII, repre- sentados em latim nas igrejas. Depois, misturaram-se 4s pecas na lin- gua do pais, bem como cangées e figuras populares, na mesma pro- porgio em que crescia a separagio da igreja. Nasceu o tipo das pe- Gas carnavalescas, entre cujos autores mais ilustres figura o ja men- cionado poeta-sapateiro Hans Sachs, de Niiremberg. Semelhante é 0 desenvolvimento nos demais paises europeus. As formas do teatro da Idade Média séo inumeras e grande é o entu- siasmo com o qual todos os habitantes das cidades se entregam a ésse prazer. Para nés é interessante essa fase, porque dela derivam tédas as formas do moderno teatro musical: a épera séria e a épera comica ou bufa; a opereta, a pega cantada, o “vaudeville”, a “zarzuela”, o oratério e a paixdo. E muita coisa da musica popular e folclérica deve 0 seu inicio aos longinquos tempos da Idade Média. 52 8 RUMO AO MUNDO MODERNO Nas ricas e poderosas cidades das Flandres, 0 estilo polifnico co- megou a dominar e, em pouco tempo, se assenhoreou de tédas as formas musicais. Apesar de se registrar na Inglaterra, no vigésimo ano do século XIII, a anotagio de um cAnone polifénico, “Sumer is icumen in”, chamado “cinone de verao”, podemos, como primeiro documento de uma grande forma musical polifénica, considerar a “Missa de Tournay” escrita, em 1350, para trés vozes. De quatro vo- zes é a missa que Guillaume de Machault, em 1364, escreveu para a coroacio de Carlos V da Franca; nela o estilo se torna mais livre e mais complexo. Ainda nao existe o sentimento de harmonia, que po- demos definir como combinacao de sons simultaneos. A polifonia sé é sentida na forma horizontal e entendida como curso simultaneo de varias linhas melédicas, que se desenvolvem paralelamente, segundo as rigidas regras do contraponto. Quando, hoje, ouvimos trechos dessa polifonia, com a sua multiplicidade de melodias simultdneas, com os seus duros acordes, que nao séo acordes para a nossa nocZo de har- monia, estampa-se-nos na mente espléndida e estranha imagem, im- pressionante para sermos mais exatos, de uma época profundamente mistica. Como jé dissemos, os mestres das Flandres dominaram téda a Eu- ropa. Na Alemanha, na corte de Munique, um déles, talvez o mais importante, Orlando di Lasso, galgou posicio de grande prestigio. Apesar de aquéle tempo nao ter sido mesquinho na distribuicao de titulos honorificos, devemos admitir que Orlando di Lasso, sem dui- vida, mereceu o seu titulo de “principe da miisica”. Nasceu em Monza, em 1530 ou 152, viajou na Europa, e compés mais de 2.000 obras, entre as quais sio especialmente significativos os seus madrigais e sal- mos. Foi homem da Renascenga no mais profundo sentido da palavra, aperfeicoador e resumidor da misica holando-flamenga, mestre mais absolutamente acessivel ao névo (o que naquele tempo era a harmo- nia), cheio de sutileza, espirito e humor, mas também cheio de pro- fundidade religiosa. O ano de seu falecimento — o mesmo do de Pa- lestrina, 1594 — significa uma cisto na histéria da mtsica, especial- mente por ser, a0 mesmo tempo, o ano de nascimento da primeira épera. Na Austria, Heinrich Isaak (1450-1517) foi o que mais sobressaiu, sendo um dos primeiros compositores de cancdes da histéria e longin- quo precursor de Schubert. Devemos-Ihe a composigio ou, pelo me- nos, trecho da famosa cangdo: “Innsbruck, devo deixar-te”. 53 A maior influéncia da escola das Flandres exerceu-se na Italia. As florescentes cidades da peninsula iam-se tornando cada vez mais po- pulosas e ricas. O comércio com 0 Oriente, 0 contato com outros po- vos e racas, o clima favoravel, a historia secular, tudo contribuiu para que elas se incumbissem do principal papel em matéria de fa- tos € progressos culturais. Veneza, pelo fim do século XIV, contava cérca de duzentos mil habitantes; desde os tempos de Roma nio se via cidade maior. O centro musical de Veneza achava-se na be- lissima Igreja de Sio Marcos, orgulhoso testemunho de uma cultura bizantina de milhares de anos. No famoso érgio de Sio Marcos, to- cavam os maiores mestres da época que ja haviam acolhido 0 névo estilo polifénico oriundo do norte. Para facilitar a execugio das obras polifd- nicas, que exigiam multipla divisio de coros e grupos de instrumentos, construiu-se em 1490 outro érgio, de maneira que cada uma das naves principais dispunha do seu instrumento e do seu céro com orquestra @s quais, ao se combinarem, produziam grandiosos efeitos. Fig. 28. Afinacao de tons naturais. Gravagdo em madeira, de “Theorica musicae” de Franchino Gajori, Mildo, 1192, Pouco depois dos ensinamentos, chegaram também das Flandres os préprios mestres. Em 1527, Adrian Willaert tornou-se organista da Igreja de Sio Marcos; foi incalculavel a sua influéncia em téda a Italia. Pela ultima vez, atinge a Igreja o seu mais elevado poder e 0 seu mais radioso esplendor. Os papas de Roma fazem-se protetores das artes e chamam pintores, escultores, poetas e musicos a Cidade Eterna. 54 Déstes uiltimos, muitos vieram de Veneza, apés terem sido discipulos do flamengo Willaert, como os dois Gabrieli, tio e sobrinho, e o gran- de Frescobaldi, um dos maiores organistas de todos os tempos. Nao tardou muito para que Roma desse ao mundo o maior misico da época, em cuja obra se encerra pela wltima vez téda a grandeza da miisica da Idade Média: Giovanni Pierluigi, cognominado Palestrina, de acérdo com o seu lugar de origem (Prancha 10). Cerca-lhe a vida uma auréola de lendas. Até bem pouco era incerta a data do seu nascimento; alguns textos afirmam que veio ao mundo em 1514, outros em 1529. Segundo as mais recentes pesquisas, parece mais provavel o ano de 1525. Nao hd dividas, porém, quanto ao dia do seu falecimento, que se verificou em 2 de fevereiro de 1594. Jus- tamente durante a sua vida se travaram as mais importantes discus- s6es em térno da misica de igreja, no Concilio de Trento. As lendas sdbre Palestrina prendem-se a ésse concilio que, durante numerosas conferéncias, de 1545 a 1563, se ocupou com a posi¢io da musica nos oficios religiosos. Melodias profanas, as vézes até melodias para dan- as, e outras coisas levianas se mesclavam as melodias religiosas, per- turbando 0 espirito dos fi¢is. Conta a lenda que um grupo de car- deais exigiu a exclusio de qualquer musica do ambito das igrejas; outro grupo, porém, logrou obter se ordenasse a um muisico escrever obras de verdadeira piedade e, a0 mesmo tempo, excelentes sob o ponto de vista de musica, para provar que nao era a musica prdpria- mente dita, mas o seu abuso que levava a inconvenientes. O miusico escolhido foi Palestrina: dizem que uma noite os anjos desceram do céu ao seu quartinho, situado no sévao de um dos prédios mais altos da Cidade Eterna, perto da Catedral de Sio Pedro, e entoaram ma- ravilhosa polifonia; Palestrina, com a mio trémula, limitara-se apenas a escrever 0 que ouvia. ‘A Missa ficou famosa. Palestrina denominou-a, em honra do seu protetor, o papa falecido, “Missa Papae Marcelli”. Dizse que a im- pressio que ela provocou foi t4o grande e profunda que, em pouco tempo, cessaram de vez os ataques contra o uso de musica nas igrejas. (Dessa mescla de histéria e lenda tirou Hans Pfitzner o material e a musica para a sua belissima épera “Palestrina”.) Iniciou Palestrina a sua carreira na qualidade de misico da igreja da sua cidade natal; chamado a Roma, encarrega-se em 1551 da di- regio de coros infantis na Capela Giulia para, em seguida, tornar- se diretor da orquestra da basilica de Si0 Pedro. Em 1554, dedicou ao Papa Julio III o primeiro livro das suas missas e foi incum- bido da Capela Sistina, onde ficou durante o curto pontilicado de Marcelo I], o qual foi um dos primeiros criticos da decadéncia da musica eclesidstica da época. J4 em 1555 dispensou o névo pontifice, Paulo IV, alguns misicos, entre éles Palestrina, alegando que o exer- cicio daquele cargo nao condizia com o casamento. Tio duro con- tratempo no péde ser compensado pela nomeacio de Palestrina para © cargo de organista da Igreja de Sao Joio de Latrao e, mais tarde, 55 PARTHENIA or THE MAYDENHEAD of the first musicke that fuer (ua fui for te VIRGINALLS IMPOSED Bs thee farms Masters Waa LYSED Cheb (be Oey go, ci Lisionn ligt SO” Dopmen Slits Fig. 29. Frontispicio de “Parthenia” de William Byrd, John Bull e Orlando Gibbons. para o da Igreja de Santa Maria Maggiore. A sua fama de compositor alastrouse e o Papa Pio IV nao tardou em nomeéd-lo compositor da Capela do Vaticano. Finalmente, em 1571, voltou o nosso artista ao seu antigo pésto, na Igreja de Sio Pedro, diante de cujo altar foi se- pultado em 1594. Palestrina nao significa apenas a maior pureza possivel em maté- ria de musica eclesidstica; a sua obra, tanto religiosa como profana, constitui um dos maiores patriménios da humanidade. Com éle atin- ge 0 apogeu a arte polifénica. Mas como sempre, nao dista do apogeu a decadéncia. Passa a misica polifonica, que somente nas mios de um génio da categoria de Palestrina lograra viver realmente, enquanto nas obras da maioria dos demais compositores permanecera simples teoria, musica de papel. A técnica desenvolve-se sem limite. Estéo na 56 ordem do dia missas com 20, 30 e mais vozes; nas partituras sio ad- mirdveis; mas, executadas, faltalhes vida e inspiracdo, e ficam mor- tas como qualquer exemplo matemético. Em obras de mais de 90 vores se nos deparam as mais engenhosas combinagées; temas que s6 po- dem ser lidos ao espelho, ou temas “a caranguejo”, além de centenas de outras variedades. A polifonia, j4 mais oficio que arte, e tio complexa que cada vez mais estranha se tornou ao povo, vera o seu dominio ameacado pelo fim do século e, por fim, abatido. Como sempre, quando um prin- cipio atinge o seu maior desenvolvimento, também dessa vez se inicia a reagio para levar a vitéria 0 oposto. Chegamos a um momento critico e decisivo da histéria da musica, e é claro que hd de coincidir com época excepcionalmente impor- tante da histéria politica. Estamos no limiar do mundo moderno. Um névo espirito sacode os povos europeus. O humanismo penetra as universidades. O império bizantino caminha para o fim, quando os turcos, em 1458, conquistam Constantinopla. Com isso, desaparece o ultimo testemunho e sucessor imediato do mundo helénico. Ao mesmo tempo, porém, desperta em téda a Europa o desejo de pesquisar mais aquéle mundo desconhecido e sumamente civilizado; e de imité-lo. O ano de 1492 é 0 ano da decisio, ¢ 0 ano em que se inicia a era moderna. Colombo, inesperada e entontecedoramente, expande o mundo conhecido. No mesmo ano morre Lourenco, o mais brilhante dos Médicis, tiranos de Florenga; e no mesmo ano, inicia- se o pontificado de Bérgia, 0 mais mundano dos papas, amigo dos ar- tistas e protetor das artes. Perpassa pelas cidades italianas um espirito de renovagio. Consi- deram-no elas um névo nascimento, e é por isso que a espléndida época recebe 0 nome de Renascenca. Em Veneza, Roma, Milio e, particularmente, em Florenga, triunfa a nova misica, a reagio contra a polifonia. As rigidas linhas do contraponto suavizam-se e constituem a nova harmonia, s6bre a qual se tece, com singeleza e como cangio, a nova melodia, & interessante notar que 0 contraponto nasceu nas regides nérdicas, Asperas, e que foi sob o céu meridional da Italia que nasceu a harmonia. ‘As novas cangées possuem, realmente, uma longinqua relacéo com 0 canto dos trovadores e ampla base popular. A principio, trata-se de sim- ples composicées vocais; mas nao tardam em ser acompanhadas por instrumentos. Todos tocam pelo menos um instrumento, alatide, cra- vo ou uma das espléndidas violas, precursores dos nossos modernos instrumentos de corda. Enquanto nas igrejas a polifonia se esforca por manter 0 dominio, nos palacios dos nobres e dos burgueses, can- tam-se as novas melodias, as chamadas “madrigali”, mais tarde conhe- cidas por “sonetta” ou “canzonetta” na Itilia, “chanson” na Franga, e “Lied” na Alemanha. Simultaneamente, aparece um dos géneros musicais mais nobres que incentiva numerosos mestres: a musica de camara. 57 Florenga é 0 berco da Renascenga; nao so poucos os titulos hon- rosos dessa cidade ilustre: patria de Dante, Petrarca e Boccaccio, poe- tas; Uccello e Botticelli, pintores; Brunelleschi, construtor da famosa cipula da catedral. No século XVI, deu ela a0 mundo um incrivel presente: Leonardo da Vinci, Raffael. d'Urbino e Miguel Angelo. £ também em Florenga que desponta a mais estranha forma de musica; boa parte déste livro trataré da sua histéria porque ela, mais que qualquer outra, tem comovido os homens: a épera. O século XVI é um século de transi¢io para a misica: lado a lado, deparam-se-nos 0 antigo e 0 moderno. Mas cada vez mais nitido se esboca o futuro desenvolvimento. A misica deixa de escravizarse a outras idéias, e ergue-se a categoria de arte, repleta de individualismo € nacionalismo; 0 religioso e 0 profano separamse ¢, enquanto a musica litiirgica cada vez mais recua, conquista a profana posicéo delinida na vida artistica, substituindo as artes plisticas, até ento fiel expresso do espirito da época e do sentimento popular. A md- sica vocal e a instrumental também se separam, apesar de continua- rem a existir formas que as unem. A musica nacional tem agora os seus limites, e j se pode falar de musica italiana, francesa, alema, cujos caracteristicos, com 0 decorrer do tempo se vio pronunciando cada vez mais para, em seguida, mais uma vez se apagarem. E preciso reconhecer que a genial invengio de Gutenberg exerceu influéncia decisiva no desenvolvimento musical. Foi Petrucci, em Ve- neza, em 1500, quem pela primeira vez imprimiu notas musicais. O que antes, em manuscritos escassos e freqiientemente repletos de erros, s6 chegava ao conhecimento de um circulo assaz restrito, espalha-se agora por téda parte. Somente a invengio do radio, no século XX, pode ser comparada A que mencionamos, em valor para a historia da _misica. Citemos ainda varios outros importantes misicos da época de tran- sico, ultimos representantes do passado ou precursores do futuro. Na Alemanha, ja falamos dos mestres cantores, cuja atividade coincide com a Renascenga; Niiremberg, a cidade do imortal Diirer, é 0 centro, ao lado de outros pontos importantes. Na Suica, viveu um ilustre musico, Ludwig Senfl (1492-1555), cujas formosas cangdes se popularizaram. A Inglaterra vive uma época especialmente feliz pelas suas criacdes artisticas. $6 no século XVI, no qual se inicia a brilhante era de Isa- bel, nascem os seguintes ilustres mestres: Thomas Tallis (c. 1505-1585), William Byrd (1543-1623), Thomas Morley (1557-1603), John Dowland (1563-1626), John Bull (1563-1628) e Orlando Gibbons (1583-1625). Si0 contemporaneos de Shakespeare, outro ardoroso amante da musica, para a qual, nas suas obras, marmoriza imortais palavras. Também a Espanha conheceu uma época de florescimento. Ao lado do grande Cervantes, vivem musicos de extraordindria reputagio: To- mas Luis de Victoria (15487-1611), colega de escola de Palestrina, e An- ténio de Cabezén (1510-1566), organista cego e tocador de clavicér- 58 dio na corte de Carlos V e Filipe II, verdadeiro Bach do século XVI, e hoje injustamente esquecido... Estamos agora no limiar das épocas de misica a que chamamos clas- sicismo e romantismo; atras, muito atrds, ficou a pré-histéria da md- sica na qual fomos guiados por fracos sinais e documentos inseguros. © que agora se segue ¢ 0 repertério da nossa vida musical. Falta ape- nas uma coisa para podermos comegar a falar dos mestres classicos: acompanharmos o nascimento da épera. Antes de nos despedirmos da arte da Idade Média, relanceemos os olhos por ela outra vez: nas suas maiores criacées, dedicou-se a Deus; dai tirou téda a sua forga, todo o seu poder e, dominada por Ele, pensou na eternidade. A arte moderna dedica-se ao homem, os senti- mentos € paixdes déste dao-lhe impulso. Por isso, nunca sera maior que o homem, o que, no entanto, ja é muito. 59 9 O NASCIMENTO DA OPERA Florenca: De um érro nasce a mais popular forma de musica “A Opera é absurdal” declaram fildsofos, pensadores e até miusicos, que a desprezam desde o dia em que ela nasceu. A Opera é atacada desde que existe, afirma-se que est4 morta, é ridicularizada com todos 0s argumentos possiveis. “Como se pode suportar tamanha série de disparates? Desde quando se cantam as frases mais banais da vida de todos os dias? Por que entoam dois inimigos de morte, antes de se atacarem a espada, longos e espléndidos duetos? Onde jamais se viu pessoa mortalmente ferida levantar-se outra vez, para emitir uma coloratura artistica? Por que cantam os perseguidos pelo inimigo in- termindveis cenas musicais, perdendo, com isso, a dianteira conquis- tada, e até permitindo que os perseguidores os localizem facilmente pela voz?" Eis ai algumas das objegdes contra a épera. Outras nao se dirigem contra a sua légica (peculiar, alids) mas contra a sua estética. ‘Tanto umas como outras malogram no intento. A “absurda” épera vive, e vive melhor e mais enraizada, e com mais brilho e riqueza de sensacées que as demais formas de musica juntas. Nao ha cidade mo- derna que nao disponha de um teatro a ela inteiramente dedicado, quase sempre o mais belo. Durante trés séculos, os cantores de éperas foram os mais famosos artistas do mundo, os seus honordrios fanta: ticos, e as suas lutas e intrigas verdadeiros romances. As melodias sao, até hoje, as mais populares. Opera, feitico sob forma de musica, palavra magica, harmonia de tédas as artes, obra artistica completa, festa dos olhos, dos ouvidos e da alma! Divertimento poético, dramatico, musical. Campo de ati- vidade de poetas, compositores, regentes, empresdrios, muisicos, pin- tores, cenaristas, diretores, dangarinos... um exército, tendo atrds ou- tro, invisivel: alfaiates, sapateiros, cabeleireiros, maquinistas, eletricis- tas, pontos... Mas a apoteose cabe a um sé: 0 cantor, que, para triun- far, necessita de trés coisas apenas, como dizia Rossini, que muito bem sabia 0 que dizia: voz, voz... € voz! Para podermos compreender o nascimento e crescimento da épera, mais uma vez € preciso voltar 4 Florenca do Renascimento. Ja vi- mos como nessa cidade brotou o espirito que ansiava pela volta ao ideal artistico da velha Grécia. Portanto, nao surpreende considerar um grupo de homens cultos seu dever despertar a tragédia grega, 60, 7 PROLOGO LAT TRAGEDIA- Ricomins Avia medina flepucl patna op pispip bi ionepee SS ae Fig. 30. Primeira edicéo da dpera “Euridice” de Caccini, Florenca, 1600. expressio maxima de arte do mundo antigo. Mas os cultos vardes de Florenca tiveram uma experiéncia semelhante a de Colombo que, em busca de um névo caminho para um velho alvo, a india, o que descobriu foi algo névo e de todo inesperado: a América. Os floren- tinos pretenderam reviver coisa antiga, o drama grego, e descobriram uma coisa inteiramente nova, a 6pera... Convém anotemos que a dpe- ra é a tnica forma de misica (e muito provavelmente a unica forma artistica em geral) que nao percorreu longo caminho de desenvolvi- mento, pois que foi o fruto de tentativas tedricas, como se se tratasse de um hominculo feito na retorta. A dpera, consciente da sua excep- cional posigao, saberd proceder de acérdo. Musicalmente falando, a dpera é 0 resultado das novas formas mu. sicais de que falamos. & inconcebivel sem melodia e harmonia. Espi ritualmente, é a expresso da luxuosa vida burguesa e da alegria de viver, novamente nascida. E verdadeira filha da Italia e sé podere- mos compreendéla, se disso nos nao esquecermos. Do que dissemos se depreende que a 6pera, como pessoa € nao como forma artistica, possui lugar e data de nascimento. O lugar sio 0s pa- lacios de Florenca, sobretudo 0 magnifico Palazzo Pitti (Prancha 9). A data é 0 ano de 1594, em que pela primeira vez se resumem os re- sultados dos estudos tedricos numa pequena “aco musical”, s6 muito 61 depois chamada pera. O seu tema, como exigia a moda da época, era uma pastoral, e 0 titulo, “Dafne”. Infelizmente, nao se conser- vou a partitura, Trés anos depois, apareceu interessante obra, mas nao épera ainda, “Lamfiparnasso”, ou “comédia harménica”, em cujo prélogo 0 autor, Orazio Vecchi, coloca, 8 semelhanca de uma pintura da Renascenca, varios protagonistas no primeiro plano, e no segundo outros que descrevem o ambiente. Eis a idéia da dpera. Aproxima-se o ano de 1600, justamente considerado ano de nasci- mento da épera, uma vez que Florenga assiste 4 primeira represen- tagio de “Euridice” (fig. 1) no Palazzo Pitti. E essa a mais antiga 6pera conservada, e é obra do poeta Rinuccini e dos compositores Giacomo Peri (1561-1633) e Giulio Caccini (15502-1618). O tema era naturalmente grego, a histéria do cantor mitolégico Orfeu e de sua esposa Euridice que, em seguida, comprovaria muitas e€ muitas vézes a sua fidelidade nos palcos de todos os tempos. Mal passou a primeira infincia da épera, nasce um ilustre mestre que nos conduz, na segunda fase de sua pitoresca histéria, a Veneza, onde nos aguardam inumeras surprésas. Veneza: Surge Sua Majestade, 0 Piblico Claudio Monteverdi (1567-1643) (Prancha 11) é, desde 1618, orga- nista da igreja de Sd0 Marcos, onde hd mais de um século traba- Tham os maiores musicos. Monteverdi é um dos mais importantes. Brilhante autor de mtsica de igreja, é ao mesmo tempo, partidirio entusiasta da nova épera na qual procura reconhecer a nobre descen- déncia da tragédia grega. Comecando com o “Orfeu” (1607) e até a “Incoronazione di Poppea” (1643) escreve uma série de grandes dpe- ras, dotadas da mais profunda expresso, do mais elevado sentimento e de importantissimos progressos no tocante 4 instrumentacio, em cuja historia figura entre os mais ilustres pioneiros. Nos seus traba- Ihos, muito h4 que nos lembra Wagner e Gluck, apesar de a forma das suas Gperas diferir consideravelmente da nossa, sendo quase mais um meio-térmo entre pera e oratério, com alegorias, imagens, pou- ca aco, longos cantos recitativos, mas nenhum conjunto musical. Como deu a pera o passo decisive que a transformou no que hoje entendemos por ésse nome? Como se transformou — para usarmos uma imagem — a fina donzela dos palicios florentinos no “enfant terrible” que hoje conhecemos? Para continuarmos com a imagem, diremos que a donzela se viu obrigada a freqiientar a escola da aldeia. Infelizmente, nao consegue enobrecer os companheiros; pelo contr: rio, ela € que aprende uma boa porgio de novidades. A escola de aldeia que a donzela deve freqitentar é, neste caso, o teatro. Mas, em vez de descrever ésse desenvolvimento, prefiro expli- car os fatos confusos e grotescos com a histéria do conteido de uma 62 6pera moderna, a “Ariadne em Naxos”, texto de Hugo von Hofmanns. thal e musica de Richard Strauss: No paldcio de um rico burgués de Viena dois grupos de artistas aguardam o sinal para o inicio da representacio, e estio incumbidos de distrair os convidados até a hora em que os fogos terminarao a festa. Um dos grupos se compée de cantores que levario ao batismo a 6pera séria de um jovem compositor, chamada “Ariadne em Na- xos”, e escrita no estilo das primeiras éperas das quais acabamos de falar: nobre e repleta de profunda moral, mas bastante aborrecida para um puiblico mediocre ¢ sobretudo para uma festa de verdo. O outro grupo, que espera representar, se compde de dancarinos e fol- gazées, do tipo de que falamos, quando tratamos do teatro da Idade Média: colombina, arlequim e outras figuras da alegre e leve “Com- media dell’Arte”. Por um motivo qualquer, atrasa-se o inicio da festa € 0 mordomo do ricaco, aparecendo, diz aos artistas que, por abso- luta falta de tempo sera representada apenas a parte alegre da peca, nfo a séria. Parecem destruidas as esperangas do jovem compositor da “Ariadne em Naxos” que pés todo 0 seu coracdo nas longas arias queixosas da grega abandonada ua ilha solitria. A primeira baila- rina, vendo-o desolado e gostando déle (portanto, nao hd motivos artisticos) faz-Ihe uma estranha proposta. Nao resta muito tempo para refletir e, assim, realizase 0 grotesco: ambas as pecas se fundem e enquanto Ariadne chora a sua soliddo, os dancarinos, no palco, diver- tem 0 publico... Voltemos, agora, dessa encantadora épera para a realidade do sé- culo XVII. Em 1637, data histérica, abriu-se em Veneza o primeiro teatro, San Cassiano; dois anos depois, 0 segundo, de San Giovanni e San Paolo; em 1641, 0 teatro San Mosé, e mais outros quinze, até o fim do século. Como se vé, os venezianos deram-lhes os nomes das igrejas vizinhas. Nesses teatros se di a grotesca aproximagio descrita ha pouco. Quan- do o empresdrio de teatro verifica que 0 estilo sério e solene das pri- meiras éperas nao atrai de maneira nenhuma 0 névo piblico, 0 povo, recorre 4 inser¢io de intermezzos cémicos nos intervalos, 0 que agrada mais aos venezianos; mas entio éles comecam a aparecer no teatro pouco antes do intermezzo, e retiram-se logo depois de concluido éste. As- sim, os intermezzos devem ir ganhando significado cada vez maior, a custa da épera. Um dia, finalmente, as duas partes, aparentemente to diversas, se fundem num s6 trabalho. A épera acaba de passar por uma grande transformacdo, e é agora de trés espécies: a épera séria (que também adquiriu mais elasticidade, tensio dramatica e mo- vimento) a Opera cémica ou bula, ¢ entre as duas a dpera semi-séria, mistura de trechos sérios € outros cémicos. Sio numerosas as obras- primas pertencentes a éste grupo; mencionarei apenas dois exemplos tipicos de dois séculos diferentes: “Don Giovanni” de Mozart e “Tu- randot” de Puccini. 63 Pela primeira vez aparece neste capitulo a palavra “publico”, to natural para nds, ¢ tio nova € revoluciondria na arte do século XVII. Anteriormente, a musica jamais saira de circulos estritamente parti- culares ou de membros da mesma classe social: 0 cavaleiro no seu cas- telo, 0 monge e os crentes na igreja, 0 trovador nas suas escolas, os aristocratas nos seus palicios, 0 povo nas suas reunides dangantes. Mas agora, a mudanga é enorme, e hd uma misica sé para todos, in- fluenciada tanto pela cangio aristocratica como pela danga popular. Fig. 31. Seis atores da “Commedia dell’Arte” na Franga, no tltimo quartel do século XVI. A instituiggo do “ingresso”, pedacinho de papel que, por dinheiro, qualquer pessoa pode obter, tem conseqiiéncias inimagindveis. Em pri- meiro lugar, tal “democratizacio” simplifica a musica, para torndla compreensiva a todos, e torna os textos mais populares. O diretor de teatro, que muitos julgavam ser homem invejavel, geme agora sob 0 péso de dupla escravidao, a do publico que também tiraniza autores e compositores (sério conflito que em parte encontra solugio quando o Estado, a cidade ou um verdadeiro mecenas arcam com a responsabili- dade de manutencio do teatro); e em segundo lugar, tanto éle como o autor do texto dependem do cantor, da tinica férca capaz de dominar a imponderavel, inconstante e perigosa massa humana chamada publico. Comega, dessarte, o terceiro periodo da vida da pera, que nos conduz A cidade do canto, Napoles. 64 Georg Friedrich Handel (168 PRANCHA 13 punal no 3.9 ato da “Opera dos Mendigos” de Gay ¢ Pepusch, 1728, Gravura de W. Blake, segundo pintura de Hogarth “Dom Jodo VI ouvinde o Padre José Mauricio”. Tela de Henrique Bernardelli PRANCHA 11 Johann Sebasti 85 tura_andnima contemporsinea. Col baden, Alemanha. PRANCHA 13 i = 3 we Ss ey 3 = al wae Bee 6 ve Cena da morte de Jesus no manuscrito de Bach da “Paixio segundo Sio Mateus”. Em cima, Iéem-se as linhas: *(Jesus gritou) mais uma vez e faleceu". Segue-se, 0 que é habitual em Bach, um coral como intervalo lirico num momento dramatico. $6 depois prossegue 0 evan. gelista, realisticamente acompanhado: “E eis que a cortina do templo se rasgou em dois pedacos”. PRANCHA 16 Ndpoles: O triunfo do “bel canto” £ evidente que uma forma de arte cuja hist6ria inicial € to confusa (6 pudemos, aqui, narrar pequenissima parte), inclui um sem-nuimero de problemas. Que predomina nela, 0 texto ou a musica? A expressio dramética ou a melodia do canto? Foi sempre ésse o conflito essencial, e cada época o resolveu de acérdo com as suas prdprias idéias estéticas, cada pais de acérdo com o cardter do seu piblico. Os florentinos par- tiram do drama, isto é da palavra. Mas ja nesta terceira fase, da qual falaremos agora, e que dista apenas alguns anos da primeira, chegamos ao outro extremo, a completa vitéria da melodia cantada, 0 que cor- responde totalmente ao cardter do povo de Napoles, onde todos, bur- gueses € artesdos, pescadores e comerciantes, so dotados de excelentes vores. Ali se verifica o triunfo do “bel canto”, da melodia doce, macia, embriagadora, diante da qual passam para o segundo plano o sentido, 0 texto, a ldgica e a aco dramatica. Em Napoles, a épera da os passos decisivos para o que o mundo chama hoje de “épera italiana”. Criowa © temperamento alegre e sensual do habitante de uma regido do Sul, que se entusiasmou de maneira nunca vista... as A (ESE Fig. 32. Recitative de Netuno na épera “Telémaco”, de Scarlatti, no manuscrito do compositor. As nossas modernas metrépoles possuem, as vézes, dois, € excepcional- mente trés teatros de 6pera funcionando simultaneamente. Em Veneza e Napoles (além de outras cidades italianas) funcionavam, pelo fim do século XVIII, tédas as noites, até oito teatros! Assim, é facil de com- preender que o nivel artistico desceu, em conseqiiéncia da enorme procura, a um ponto sem precedente. Nao sabemos, ao certo, 0 mimero de éperas existentes; numa estatistica que apenas contém os dramas musicais representados (incluindo-se todos os tipos) contei, hd pouco... 42.000. Quantas nao haverd que nunca viram as luzes de um palco? 65 5 Histéria MGsica Para satisfazer a grande procura de obras musicais, que 0 povo apai- xonado pelas éperas exigia, serviram todos os meios. Muitas vézes, com varias éperas — uma aria de amor aqui, um dueto de vinganca ali, um grande céro acold — se compunha outra que recebia um texto diferente. Libretistas e compositores, forcados pelos seus contratos que exigiam certo némero de trabalhos por ano, nao tinham mios a medir, em prejuizo da fantasia e da inspiracdo. Talvez sirva uma comparagio com o cinema moderno, caso em que a enorme procura e o interésse comercial também conspiram contra o nivel artistico. Apesar disso — tanto num caso como no outro — seria injusto no assinalar, no oceano de trabalhos mediocres, as verdadeiras obras-primas. Fig. 33. Dangarinos e comediantes, no segundo plano de um paleo. Gravura de Jacques Callot nos “Balli di Sfessania”, por volta de 1516. No comégo da histéria da épera, viveu um grupo de ilustres com- positores. Havia em Veneza, além do grande Monteverdi, Francesco Cavalli (1602-1676), e Marco Anténio Cesti (1623-1669) cujo majestoso “Pomo d'Oro”, foi a primeira “Grande Opera”. Entre os napolitanos citaremos Alessandro Scarlatti (1659-1725), chefe da escola, Alessandro Stradella (16452-1682), verdadeira figura de romance como cantor, mu- sico e aventureiro, vitimado finalmente por um punhal vingativo. (Uma épera de Flotow e outras o dao como herdi); e finalmente o mais genial, Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736) que morreu na flor da moci- dade. A sua “Serva Padrona” é um brilhante exemplo de épera cémica, admirado por Verdi e Puccini (sem falar da sua “Stabat Mater” e outras belas obras). Resta-nos dedicar algumas palavras ao ptblico da época, cujo com- portamento no teatro era inconcebivel para os costumes de hoje. Ai do cantor que nao encontrasse misericérdia diante dos seus olhos, ou melhor, dos seus ouvidos! Os fruteiros, que perambulavam pela sala de espetdculo com os seus céstos, faziam entao excelentes negécios... Aquela maneira drastica de exprimir desaprovacdo subsistiu até ha pouco tempo. Feliz, porém, do artista que soubesse atrair 0 publico, cujo 66 entusiasmo era to exagerado como a sua desaprovacio! Cada melodia bem cantada, e até cada nota alta particularmente bem emitida era aco- Ihida com estrondoso jubilo. O cantor tornavase idolo das massas que pela primeira vez viam um teatro artistico desde o desaparecimento do drama grego, e€ 0 entusiasmo comunicava-se da galeria, embora mais moderado, as classes mais elevadas que enchiam a platéia. A platéia era fundamentalmente diversa da nossa: vazia, nao tinha poltronas. Quem quisesse assistir cémodamente ao espetaculo, era obrigado a munirse de assento, Viase de tudo, cadeiras, poltronas e até sofas € mesas que as damas mandavam ao teatro pelos lacaios. Jogavam-se cartas ¢ dados, ou liam-se os libretos das Gperas, A luz das velas. Alguns museus ainda hoje possuem exemplares amarelados de antigos libretos nos quais se notam manchas de pingos de estearina... Antes do inicio da representagao, todos conversavam em voz alta, ou passeavam pela sala como se estivessem em plena rua. Conhecidos politicos exprimiam as suas opinides a circulos de curiosos, cortesds eram homenageadas pelos adoradores, todos os fatos do dia, modas € precos de artigos formavam 0 inesgotdvel tema de conversacdo. O pré- prio inicio da representagio nao conseguia, as vézes, por cdbro aquela algaravia; somente o aparecimento de um cantor predileto ou o coméco de uma melodia bastante popularizada transformava o mar de especta- dores turbulentos em massa obedientemente atenta, até irromper o aplauso ensurdecedor, como avalanche a ameacar por por terra o teatro. ‘A ésse publico indisciplinado é que devemos 0 nascimento de uma importante forma musical: a ouverture. A principio nao passa de um fortissimo toque de clarim que anunciava & multidao tagarela o inicio do espetaculo. Em breve, comecou-se a fazer um prelidio das melodias mais populares da peca; o publico cantava-as, entusiasmado, Ainda hoje conhecemos algo semelhante na opereta que também costuma, na ouverture e nos entreatos, resumir as principais melodias. A Opera conseguiu atrair a atengao de tédas as camadas sociais; a sua influéncia ndo se limitou ao teatro, ¢ ela invadiu a vida de todos 0s dias. Mencionaremos daqui a pouco a histéria de uma revoluczo que eclodiu apés a representagio de uma épera; dizem-nos as crénicas que um rebelde, condenado a pena capital, foi perdoado por ser com- positor popular de éperas; veremos irromper lutas de rua entre part darios de varias tendéncias... Reis, principes, cardeais, aristocratas e bur- gueses eram protetores, compositores, libretistas, empresdrios, criticos, amadores ou simplesmente publico. Smente os cantores formavam uma classe parte, e que classel Napoles tornou-se a cidade dos mais famosos cantores do mundo, a patria do canto de épera, como Cremona é a do violino, Viena a da valsa e a Argentina a do tango. Em Napoles, vé-se contra 0 azul eterno do gélfo, como o mausoléu de um verdadeiro rei, 0 mausoléu de Ca- ruso. LA repousa éle, num sarcéfago de cristal, 14 repousa o grande cantor embalsamado, em traje de gala, sempre substituido, ao cabo de alguns anos, por outro névo... simbolo do “bel canto”, da arte lirica e da 6pera triunfante. 67 A conquista do mundo Mal se firmou o dominio da épera na Italia, iniciou-se a conquista do mundo. Nao séo apenas os melodramas que inundam a Europa inteira e a América; acompanham-nos regentes e cantores, formando, em volta dos teatros de tédas as cidades, desde a Franga até a Russia, desde a Escandindvia até os Balcds, pequenas ilhas de lingua italiana, cuja influéncia na sociedade e no publico em breve deixa de ser pro- porcional ao seu significado numérico. Os miusicos italianos sio recebidos com tédas as honras nas cértes, € conquistam posicéo de dominio na vida musical de todos os paises europeus. Por mais de século e meio nao dominam somente a musica de teatro senao também a dos paldcios e freqiientemente até a das igrejas, expulsando um Beethoven, sem falarmos de Bach e€ Mozart... Esse dominio da dpera italiana provoca naturalmente uma reacio de defesa em muitos paises, que desejam combater o monstro chamado Opera, o qual a tudo ameaga devorar; em parte, todavia, j4 se acham éles proprios dominados por essa febre e 0 que almejam é apenas substituir a vitoriosa épera italiana por outras nacionais, francesas, alemés, inglésas. Muito cedo comeca a historia da pera alema; j4 em 1627, um excelente miisico, Heinrich Schiitz (1585-1672) (Prancha 11), escreve uma “Dafne” para o libreto de Rinuccini, traduzido do italiano. Tam- bém dessa época, devemos mencionar a dpera alema “Seelewig”, de Sigmund Staden (1607-1655). Brotam depois cada vez mais numero- sos os teatros de épera. (A Alemanha, antes da segunda guerra mun- dial, era 0 pais que possufa o maior mimero de teatros de épera no mundo.) Mas imediatamente se enfrentam duas tendéncias: enquanto o Sul (catélico) segue a escola puramente italiana e especialmente em Viena a Opera italiana constitui uma verdadeira fortaleza, insiste o Norte (protestante) na sua peca nacional, alema no espirito e na lingua. Hamburgo torna-se o centro, e Reinhard Keiser (1674-1739) 0 mais ilustre compositor. Na corte prussiana ¢ o prdprio Frederico, 0 Grande, que estimula a musica e oferece uma patria a épera nacional; éle proprio escreve diversos libretos, como por exemplo o de “Montezuma”, sobre a conquista da América, que foi musicado pelo compositor da cérte Karl Heinrich Graun (1704?-1759). destino da dpera alemi foi repleto de vicissitudes; em certas épocas desaparecia completamente perante a tendéncia italiana vitoriosa. Final- mente, com Weber e mais ainda com Wagner, inverteram-se os papéis, ea dpera alema tornou-se séria ameaga 4 épera do “bel canto”. Como notdvel pormenor, desejo mencionar que twés compositores de lingua alema representam, nos seus trabalhos, a arte de outros paises: so éles Handel na Inglaterra, Gluck na Franca e Mozart — parcialmente — na Italia. Na Franca, o italiano Lully (1682-1687) (Prancha 11) foi o fundador de uma escola nacional que, desde o inicio, se distinguiu pelo ballet. Tal era a pompa das pecas de cérte que chegaram a exceder 0 luxo 68 PROSERPINE. eee eee Fig. 34. Partitura da “Prosérpina”, de Lully, 1680. das éperas italianas. Mais tarde, Jean-Philippe Rameau (1683-1764) tornou-se a figura mais importante da épera francesa; a sua fama foi extraordindria em t6das as artes e ciéncias musicais. Durante os der- radeiros anos de sua vida, desenrolou-se a grotesca uta que se iniciou nos teatros continuo nas ruas € nos saldes. Em 1752, uma companhia italiana recebeu permissio para representar em Paris e logrou, sobre- tudo com a “Serva Padrona”, enorme éxito, o que pés mal-humorados 69 os nacionalistas. Imediatamente, dividiuse a cidade em dois campos inimigos: os “bufonistas", partiddrios da épera cémica italiana, e os “antibufonistas”, que defendiam a jovem épera francesa. Apés dois anos de violenta Luta, os italianos viram-se forcados a abandonar Paris; mas a sua influéncia permaneceu por muito tempo. Encontré-la-emos de névo na luta que se feriu em térno de Gluck, e vé-la-emos também enraizada em algumas criagdes francesas, como a “Opéra comique”. Lb Hi = 1 Sige a Fig. 35. Purcell. Coméco da “Golden Sonata”, manuscrito do compositor, 1683. Na Inglaterra, antes do inicio de quase dois séculos estéreis em mu- sica, depara-se-nos um génio, Henry Purcell (1658-1695) (Prancha 11), que deve ser considerado o mais ilustre dos compositores ingléses. Entre as suas 54 obras, vemos algumas baseadas em textos de Shakespeare, como “Ricardo II”, e “Sonho de uma Noite de Verao”. O seu trabalho melhor — Purcell morreu muito jovem — é “Dido e Enéias” que repre- senta adaptacio do estilo nobre das primeiras dperas italianas ao estilo desenvolvidissimo do teatro inglés. O sucessor de Purcell foi Hiindel, alemfo pertencente a escola italiana, cuja luta, no tocante A épera nacional inglésa, veremos logo mais. Mas j4 aqui mencionaremos um trabalho curioso representado em Londres, em 1728. (Talvez no seja desinteressante saber que foi representado em 1750 em Nova York.) Tratava-se de uma parddia multipla; sob 0 pretexto de atacar os exa- geros e absurdos da dpera italiana, escondia-se violenta sdtira social contra a epoca (Prancha 14). O éxito obtido com essa “épera de men- digo” foi tal que Handel se viu obrigado a fechar o seu teatro, nao podendo enfrentar a concorréncia daquela mtsica popular, 4 moda de baladas, e as vézes bastante belicosa que, sem piedade, parodiava as suas melodias e se ria do seu publico. O estranho trabalho foi em 1928 — exatamente dois séculos depois do seu nascimento — moderni- zado por dois autores alemies, Bert Brecht e Kurt Weill os quais, com 70 a sua “Dreigroschenoper” (Opera de trés tostes) quase ultrapassaram o éxito da velha “épera de mendigo”. Uma verséo nova da mesma peca foi dada por um inglés contemporineo, Benjamim Britten, em 1949. O autor daquela época chamavase John Gay (1685-1732) e 0 diretor do teatro, Rich. Daf o trocadilho correntissimo em Londres, naqueles dias: “Gay became rich and Rich became gay” (1). ‘Antes de encerrarmos o primeiro capitulo da épera, mencionaremos um homem indissoluvelmente ligado 4 6pera barroca. Nao se trata de misico, e sim de poeta, autor de libretos, Pietro Metastasio (1698-1782) No decorrer de outras paginas que dedicaremos 4 épera, teremos sem- pre de voltar a dizer que essa forma de arte quase nunca foi obra de um sé homem, mas fruto de um acérdo artistico de duas criaturas: o libretista e 0 compositor. Em geral, é quase sempre o libretista que indica 0 caminho, guiando o musico com o seu estilo, a sua lingua, € 0 cardter mais lirico ou dramatico da pega. Nao nos esquecamos tam- bém de que tanto na épera como na can¢io artfstica, 0 que primeiro existiu foi sempre o texto. Pietro Metastésio imprimiu 0 seu cunho a duas geragdes de criadores de épera. Romano de nascimento, j4 com dez anos era excelente impro- visador, segundo o gésto da época, Mudou o seu nome de Trapassi para o de Metastdsio; quanto ao seu titulo de abade, como o de muitos contempordneos seus, nfo passava com certeza de simples for- malidade. Em 1724, saiu a lume o seu primeiro libreto de épera “Didone abbandonata”, com musica de L. Vinci. Passando de éxito a éxito, nao tardou Carlos VI em chamé-lo 4 cérte de Viena, como poeta. Ali escre- veu éle mais de 50 libretos de dperas, além de cantatas, oratérios e outros trabalhos musicados por ilustres compositores da época, tanto que alguns dos seus libretos foram musicados mais de dez vézes. Hasse, tio famoso na época, gabava-se de haver musicado todos os 50 libretos de Me- tastdsio. Mencionemos, ainda, Pergolesi (“Olimpiade”), Gluck (“L'Inno- cenza Giustificata”), Haydn (“L’Isola Disabitata”), Mozart (“La Betulia Liberata”, “Il Re Pastore", “La Clemenza di Tito”) e lembremos que © proprio Rossini, j4 representante de uma época de todo diferente, recorre a Metastdsio na sua “Semiramide”. Os livros de Metastdsio foram a expressdo mais pura da arte barroca; as suas figuras n3o eram homens, eram mais tipos, abstragdes de uma idéia; os seus versos, bases esplén- didas para as melodias da época. Foi uma arte monumental que sé conseguiram destruir o Século da Iustragio e a Revolug’o. Fran- cesa; 0 seu lugar é importantissimo nos primérdios da pera. Hoje, Metastasio esté esquecido e os seus trabalhos jd nao vivem. Apenas uma ruela no coracio de Viena e uma placa comemorativa, na casa em que sempre residiu, nos dizem da sua influéncia por meio século na magnifica cidade imperial. Logo nos sera mister, porém, falar num longo capitulo de um miisico que, naquela época, pobre e desconhecido, foi descoberto pelo famoso Metastasio e por éle materialmente auxiliado: Joseph Haydn. (1) “O Senhor Alegre tornou-te rico, e 0 Senhor Rico tornou-se alegre 7 PRIMEIRO INTERMEZZO Paremos um pouco. fste livro é uma espécie de viagem, um passeio por extenso pais: o pais da musica, Nas jornadas da vida, muitas vézes devemos parar. Jé caminhamos por milhares de anos. Olhemos para trds, € resumamos 0 que vimos. Depois, relanceemos os olhos para a frente, para o que nos espera. O livro afastase, aqui, levemente do caminho tracado; se até agora tratou essencialmente de épocas e tentou transformélas em imagens perante os nossos olhos, para, em seguida, delas deduzir a musica, dei- xaremos, a partir déste momento, o primeiro plano aos vultos, & sua vida e & sua obra. Aos problemas histéricos e estilisticos, juntam-se agora os psicolégicos. Mas se bem atentarmos, nfo se trata de mudan- Ga, porque em cada criador se refletem também a sua época e a sua circunstancia. E cada uma a éle se prende indissolivelmente; é sua filha ou enteada. Paremos antes de entrar na maior época da nossa histéria musical, aquela que, por motivos estilisticos, se chama classicismo e romantismo. Para continuar no terreno da nossa viagem, a éste segundo livro dei © titulo de “O Apogeu”. £ realmente um cume, donde se contempla o passado e o futuro. Lentamente, mas cada vez mais altas, erguem-se as colinas em dirego a éle; e os derradeiros raios de sol cairéo ainda sobre a sua grandiosidade voltada para o céu, muito embora, em volta, a regido jé esteja banhada pelas sombras... Esse cume é 0 ponto mais alto da nossa histéria da musica; 0 que existiu antes, apesar de magnifico talvez, escapa & nossa consciéncia, distante demais. Aqui comeca de fato aquilo que constitui a “nossa musica”, aquilo que vive e respira em volta de nés. A cultura bur- guesa, européia, cuja poderosa ascensio vimos no ultimo capitulo, atingiu nos séculos XVIII e XIX o seu cume; a mtisica acompanha-a, € tornase a sua expressio € nobre espiritualizacio. A historia é sempre injusta. Nao pode ser justa, uma vez que c escrita por homens. Assim, talvez sejamos injustos, chamando cume aos dois séculos de ouro que diante de nds se estendem; um dia, quem sabe, outra época poderd julgar-se o cume, outras obras poderao con- siderar-se classicas € outros musicos imortais... Para facilitar aos meus leitores a compreensio, darei alguns porme- nores técnicos. As armas materiais da musica desenvolveram-se grada- tivamente, lentamente, durante séculos. E agora serio o fundamento de todos os que ocupam um lugar no cume. 72 © 2 Keine Dofyen ) Gergen cin Octar haber. 3. Dileant-Gag ein Quart béber, | NechueDilcaat-Bag, 5. Tenor-Geis 6 Bai-Grigdedracto. 7. Tumfiher . 8. Sehaitepaits. Fig. 36. Instrumentos de corda do coméso do século XVII. Extraido do “Syntagma Musicum”, do compositor turingiano Michael Praetorius, 1620. A escrita musical atinge o seu aperfeigoamento. Bach jd escreve a sua musica, tal qual farfamos hoje, com apenas leves modificagdes em prol de maior simplicidade, introduzidas desde entio. Assim, escreve- mos apenas duas claves, a do dé e a do fd, e outras duas para certos instrumentos, ao passo que Bach usava no minimo seis de mesmo valor. A impressio de notas inventada por Petrucci em Veneza, por volta de 1500, de tal forma se alastrou que a divulgacio de obras de musica se tornou facil e natural como a dos livros. Somente com o auxilio 73 dessa invengio &€ que a musica se expande no espaco e no tempo, somente com ela € que se nos apresenta a base para uma verdadeira vida internacional da misica. Os tons ja constituem a escala que os estudantes de mtisica aprendem hoje. Os tons maiores e menores limitam-se, as novas escalas e acordes comegam a impor-se e, com isso, 0 ouvido humano se habitua ao névo sistema que repele os antigos “tons de igreja” e que passa a constituir a base de uma nova estética da musica. Ja existem também os dois principios fundamentais da nossa musica: a polifonia, com o seu estilo contrapontistico, atinge o Apice na obra de Bach, ao passo que a homofonia, melodia de uma voz com acom- panhamento harménico, adquire supremacia no restante dos dois “sé- culos de ouro' Tédas as formas de composicio se realizam segundo o principio. A musica vocal conhece a 6pera, 0 oratério, a can¢io coral e o solo; a mtsica instrumental pratica a fuga, as formas tripartidas que con- duzem a sonata e 4 sinfonia, a reunido de trechos pequenos, 4 moda de danca, em “suite” e€ as formas livres, ao sabor da fantasia e da improvisacao. Os préprios instrumentos chegam quase ao ponto de hoje. Existem quatro grupos, separados um do outro pela técnica e uso diversos, mas unidos nas orquestras: sao os instrumentos de corda, de sépro, de percussio e de teclado. Dentre os uiltimos falta apenas o mais impor- tante, 0 piano que em 1711 foi dado ao mundo pelo italiano Chris- tofori. Outros instrumentos estdo ainda sujeitos a modificagées, alguns desaparecero até, substituidos por outros do mesmo grupo. Eis ai, em grandes pinceladas, as bases técnicas. Nao é igualmente facil descrever as psicoldgicas. Cada trabalho de arte raia o milagroso, cada criador é um mundo & parte, quase sempre incompreensivel para 0s que o rodeiam. Provam-nos os qitiproqués, os desentendimentos, e, muitas vézes, a dor a que no escapa nenhum criador. Cada um dos grandes miisicos que agora iremos conhecer difere no temperamento e no carter de qualquer outro. Para um o trabalho é diversio, para outro tortura. Este pensa maduramente em cada nota, muda-a, corrige-a cem vézes; aquéle escreve como que adormecido, se- guro como num sonho, sem que uma unica nota deva ser modificada. Um cria sob a impressio de viagens, de arredores entrevistos, de festas, de aventuras; outro num canto de miserdvel quartinho de arrabalde que quase nunca abandona. © trabalho artistico é segrédo e milagre. Mozart pobre e doente, no escreve a sua dpera mais alegre? Beethoven nao compée, imerso na mais profunda depressio, 0 jubilo hinico da sua “Nona”? Nao pinta Schubert nas suas cangdes milhares de coisas que nunca viu durante a breve vida que viveu? Génio e ambiente... Que problema! Cada um déles bastaria para encher um livro. Génio e éxito, génio e Deus, génio e mulher. $6 A nos é permitido colhér alguma coisa aqui e acola. Nada mais. Milhares de outras perguntas deveriam ter resposta; entre elas a seguinte: por que nao hd entre os grandes compositores nenhuma mulher? Problema de sexo? Falta da férca de criagao na mulher? Creio que nao; 0 que hd é um problema social: como pode a mulher atingir o mesmo nivel que os homens, na criagio artistica, se durante séculos Ihes foi social- mente inferior? Deveriamos também tocar na questao racial, se pre- tendéssemos esquadrinhar todos os limites do vasto império da musica. Mas nio nos é possivel, € cingir-nos-emos apenas a seguir a linha geral para nos nao extraviarmos. Continuemos, pois, a nossa jornada. Acabamos de atravessar uma longa planicie, na qual por vézes se alternaram as belas paisagens ter- renos algo pedregosos. Vimos freqiientemente, aos lados do caminho, grandes montes clevarem-se na neblina. Mas nao os vimos bem, por esta- rem demasiadamente distantes e por desconhecermos nés o meio de a éles acercar-nos. A nossa estrada foi subindo cada vez mais e agora, diante dos nossos olhos, se descortina o planalto, 0 cume... 75 Segundo Livro O APOGEU Enviar luz & profundeza do coragio humano é dever do artista. (ROBERT SCHUMANN) 10 BACH, OU A FE Em 1740, quando Bach era organista da Igreja de Santo Tomas em Leipzig, publicou um jornal alemao uma lista dos dez melhores miisi- cos do pais e da época. (ff de estranhar que em tempos tao sérios j4 se tivesse idéia tao absurda.) Bach conquistou o sétimo lugar; o pri- meiro ganhou-o Telemann, 0 mais famoso artista alemao naqueles dias. Também Handel conquistou bom lugar, com o que nos declaramos de acérdo. Os demais cairam hoje no mais completo esquecimento. Exatamente duzentos anos mais tarde, em 1940, apresentou um jor- nal norte-americano a mesma (insoluvel) questio a um grupo de peri- tos € ao piiblico em geral, mas deu & pergunta maior extensio, in- dluindo misicos de todos os tempos e de todos os paises. O puiblico decidiu-se pelo favorito Beethoven, dando a Bach o segundo lugar; mas os entendedores inverteram o julgamento e declararam ser Bach © maior musico que jamais viveu... Estranho destino de um compositor que, duzentos anos depois da sua morte, nfo somente é reconhecido mais do que no seu tempo, senao tam- bém considerado inteiramente moderno. Tera sido o simples organista da Igreja de Santo Tomés tao adiantado para a sua época? Ou tera a nossa tao grande saudade da mistica e profundidade da sua obra? Em Bach revive pela ultima vez o espirito da polifonia religiosa; éle completa a imagem universal de Palestrina. Sente a musica poli- fénica, 0 contraponto linear como o conhecia a Idade Média e a nova musica harmonica que cada vez mais se assenhoreia do mundo. Rara- mente compreendeu um miisico téo bem ésses dois estilos basicamente diferentes. Num ponto critico da histéria da musica, sintetiza 0 pas- sado e indica 0 futuro, ao mesmo tempo. Imediatamente depois da sua morte, 0 panorama muda por inteiro; seus prdprios filhos figuram entre os revolucionarios. Haydn j4 contava 18 anos, quando Bach morreu. Seis anos depois, nasce Mozart. Em ambos atinge o seu mais elevado florescimento 0 névo estilo, a homofonia, a musica “galante” do feudalismo e do rococé. Se folhearmos a imensa obra de Bach, 58 enormes Albuns, legada por éle a um mundo que muito pouco o compreendeu, sdmente como organista mortal e nao como imortal criador, encontraremos diretas an- tecipagdes de todos os estilos musicais que, desde entio, deixaram o seu cunho na histéria da musica. O seu grande espirito incluiu as grandes formas, como 0 oratério, a missa e a paixio, e as médias e pequenas, como pecas instrumentais, dancas e cangdes jocosas. 79 Dizse, as vézes, que a musica de Bach ¢ “absoluta”, o que é verdade, quando se pretende dizer 0 contrario de musica de programa, da mi- sica descritiva e pictérica, que procura representar por notas um pen samento. (Aqui, pareceme digno de mencio haver-se limitado Walt Disney na sua linda pelicula “Fantasia”, em que tenta interpretar, mediante desenhos, famosas pecas musicais, a simples cres e formas no que se refere 4 Tocata e Fuga em ré menor, de Bach). Falemos agora um pouco da misica e da vida musical alemis, no meio das quais Bach cresceu. Veremos que um pico da categoria de Bach nao pode brotar numa planicie; os grandes criadores, em todos os cam- Pos so como as pontas mais elevadas de um elevado macigo montanho- so. Quanto mais elevado o nivel comum, tanto mais elevadas as pontas. O macigo montanhoso é 0 nivel da cultura da época. Como devia ser alta a posigéo da misica daquela época para que um Bach pudesse coroé-la! Citemos apenas alguns dos misicos mais importantes: Schiitz, Schein, Scheidt, Telemann, Pachelbel, os quais constituem 0 macico montanhoso cujo pico mais elevado, Bach, se estende para a eternidade. Fraetudiame yh Md bux l re a r Fig. 37. Manuscrito de Bach. Inicio do Preliidio em mi bemol maior no “Cravo bem temperado”, segunda parte, N? 7. Varios désses mestres mereciam capitulos especiais. Sua arte foi grande e pura, e enorme sua influéncia na musica alema dos séculos vindouros. Diremos algumas palavras do mais importante: Heinrich Schiitz. Nasceu Schiitz exatamente um século antes de Bach (1585), por conseguinte numa época em que Palestrina e Lasso viviam ainda e trabalhavam. Compés madrigais, motetes polifonicos e atingiu a magnificéncia da sua “Paixio segundo Sio Mateus” e a sublime matu- ridade das “Histérias Evangélicas”, sem as quais seriam inconcebiveis varias obras de Bach. Morreu em 1672, em Dresden. Mas aqui ndo devemos apenas lembrar-nos dos mestres alemaes, quan- do se trata de modelar a figura de Bach: também os seus contempor’- neos italianos Ihe foram de significagio decisiva. Que mestres excelsos nao ha entre éles! Arcangelo Corelli (1653-1713), criador de magnificas obras de estilo de musica de camara, cheias de melodias nobres e sen- sual alegria italiana, também exerceu sua atividade, temporaria- mente, na cérte de Ansbach; assim sendo, as numerosas inovagées, 80 Cristoph Willibald von Gluck (1714-1787). Pintura de J. S. Duplessis, 1775. Representagio da “Armida” de Gluck, em Paris, Pintura de G. de Saint-Aubin. PRANCHA 17 d esquerda: “Viola d'Amour" de P, Mantegatia, Milo, 1767. No meio: Lira giratéria de P. Louvet, Paris, Colecio Gerber. 4 direita: Alatide (tiorba), de M. Tiefforbrucher, Venera, 1610. Embaixo: Clavicérdio do século XVIII. Encontra-se, assim como a viola € 0 alatide, no Museu Richard Wagner em Tribschen, Lucerna. PRANCHA 18 7 PRANCHA 19 z a Cena final de “L'Incontro Improvviso” de Haydn, no teatro dos Esterhazy, 1775. Os treze toca- dores de instrumentos de corda ¢ os dois flautistas estio sentados numa longa estante comum. ‘© proprio Haydn toca cravo; a esquerda um violoncelo, dois baixos e um fagote. PRANCHA 20 no terreno do concérto grosso e da sonata, tornaram-se conhecidas além dos Alpes; Anténio Vivaldi (1675?-1741), conhecido e famoso naquele tempo como “il prete rosso” (“‘o padre ruivo”), em virtude da cér dos cabelos, figura certamente entre as mais fortes naturezas criadoras de todos 0s tempos. Os seus concertos instrumentais impressionaram profundamente Bach — Bach adaptou um, destinado a quatro violinos, para 4 cravos —; quanto A musica de cordas, pode ser considerado pioneiro; Nossa época retorna, deliciada, ao intenso cultivo de muitas de suas obras vocais e instrumentais, como “L’estro armonico”, “La Stravaganza”, “Il Cimento dell’armonia e dell'inventione”, séries de doze concertos para um ou mais violinos, orquestra de cordas € baixo- continuo. Mui apreciados so os programaticos “Concerti delle Sta- gioni”, que integram essa ultima coletinea. Nos 444 Concertos pre- domina o violino, circunstancia explicvel, porquanto Vivaldi, instru- tor, regente, compositor do “Pio Ospedale della Pieta” de Veneza, era eximio violinista. Suas numerosas éperas jazem no esquecimento; mas a musica religiosa, como o oratério “Juditha Triumphans”, motetes, o “Kyrie” em sol menor, o “Gloria” em ré maior, o “Magnificat “Salve Regina”, — é de todo em todo excelente. Testemunhos con- temporaneos, os de Quantz, flautista da cérte de Frederico, o Grande da Prussia, do poeta e teatrdlogo veneziano Goldoni, do Presidente Charles de Brosses, proclamam o alto grau de mestria atingido por An- ténio Vivaldi, quer como compositor, quer como executante. Giuseppe Tartini (1692-1770), foi outro compositor e virtuose da mais alta qua- lidade, sem o qual muitas reformas orquestrais, usadas por Stamitz no seu famoso conjunto de Mannheim, seriam inimaginaveis. E ao redor désses trés, quantos outros mestres — Legrenzi, dall'Abaco, Geminiani, Veracini, Locatelli, sio apenas alguns nomes daquele apogeu — nao inundaram com as suas melodias a Europa! Na segunda metade do mesmo século comecou a Alemanha a curar as feridas da guerra dos trinta anos (1618-1648). Estava o pais dividido em centenas de pequeninos estados feudais, dominados por reis, prin- cipes, duques e margraves. Apesar de na sua maioria insignificantes como férca politica e apesar de terem t&éo pouca extensio territorial que um moderno trem expresso os percorreria em poucos minutos, possuiam todos o desejo de transformar as suas capitais em centros de cultura. A vida dos musicos alemZes da época diferia completa- mente da dos colegas italianos cujo campo de acéo era o mundo inteiro. Nao eram ainda artistas livres como sera, cem anos mais tarde, Beethoven pela primeira vez, mas simples empregados que, como criados, usavam o uniforme impésto pelo amo. A sua vida transcorria num circulo restrito: paldcios e igrejas. Eram organistas e diretores de céro, com o titulo de “cantor”, diretor de orquestra”, quando havia pequeninas orquestras, “muisicos de camara” que se exibiam em peque- nos conjuntos por ocasio de concertos e festas, Muitas vézes davam aulas nas escolas € nem sempre apenas aulas de musica. Nessa moldura estreita, acanhada, nesses horizontes limitados foi que transcorreu a vida de Bach. Duplamente incompreensivel se nos torna 81 6bis Histéria Masico a amplidao das suas idéias, a universalidade da sua musica que abrange © mundo inteiro. Se analisarmos, separadamente, as diversas etapas da sua vida, ficaremos surpreendidos com a sua simplicidade, a sua pro- funda moral, a sua grande generosidade, o seu equilibrio de cardter. Uma tinica paixdo domina tao exemplar vida: a paixdo da mtsica. Johann Sebastian Bach (Prancha 15) nasceu em 1685, em Eisenach, pequena cidade da Turingia, aos pés do Wartburgo; portanto, onde em 1207 se teriam encontrado os mais famosos trovadores e onde, trés séculos depois, Lutero traduziu a Biblia para o alemio (1521), fato de igual repercussio quer no desenvolvimento religioso, quer no musical. Por conseguinte, Bach cresceu no centro do protestantismo que era a crenga de sua familia e uma das mais fortes inspiracdes da sua mu- sica; 0 coral, expresso ideal do canto da igreja protestante ¢ um dos pilares fundamentais da sua obra. Tudo quanto Bach criou em matéria de musica religiosa foi expresso tipica da sua fé, e nao ha talvez prova mais forte da universalidade da sua arte que o fato de hoje os homens de tédas as religides, sem excecio, se inclinarem diante da sua musica, € ressoarem as suas obras sobre a Pascoa € o Pentecostes tanto nas igre- jas protestantes como nas catdlicas. Heinrich —__——. age oh F @® Christoph Cristo Jonann OP nach yon Ambrosivs |_ ee ee 2 “ee — Maria Barbara u © tes Sebastian On wan vino eee Joh. Christoph Joh ee Faearee Chain Fig. 38. Arvore genealégica da familia Bach. Exemplo empregado pelos estudiosos de hereditariedade para ilustrar a hereditariedade do talento musical. Entre os 32 descendentes havia 17 musics. Jon Crmstoon aa Joh i A familia de Bach, de misicos, apresenta um dos mais extraordind- rios casos de hereditariedade artistica (fig. 88). Em numerosos pontos da Alemanha central, o nome de Bach tornarase sinénimo de “mtsico”. E a corrente nao termina com Johann Sebastian; seus filhos continuam a tradigio e entre éles figuram grandes talentos, como Friedemann, Philipp Emanuel e Johann Christian, um dos revoluciondrios da sua época, que se ria do pai, chamando-lhe “velha peruca”, e que rumou para a Itdlia (0 que significava naquele tempo passar para o campo musical inimigo), convertendo-se ao catolicismo (0 que significava dei- 82 xar 0 fundamento seguro da familia) e escrevendo éperas (0 que era considerado pelos meios bachianos obra do diabo). Bach, cuja mocidade transcorreu cheia de impress6es musicais — so- bretudo os “dias da familia” constituiam uma culmindncia festiva anual, na qual todos os Bach se reuniam para dedicar-se em comum, durante dias seguidos, 4 musica — comecou a sua carreira aos 18 anos como violinista na orquestra do Duque de Weimar. Péde, assim, viver numa das cidades mais cultas da Alemanha, na qual, mais tarde, resi- diriam os principes da poesia, Goethe e Schiller, e em cuja historia musical Liszt figuraria com importantes trabalhos. Mas em Weimar s6 permanece pouco tempo; desde a infancia o seu sonho é o rei dos instrumentos, 0 érgio. E nao tem repouso, enquanto nio realiza o seu sonho. Na igrejinha de Arnstadt trabalha pela primeira vez como organista. © seu desejo de se aperfeigoar leva-o, em 1705, a uma estranha jor- mada, a pé até a cidade de Liibeck, para 14 ouvir um dos maiores organistas da época, Buxtehude. Sob a profunda impressio de tio aperfeicoada arte, 4 qual se entrega diariamente e como que inebriado, esquece-se do mundo, esquecese dos seus deveres que o chamam de volta a Arnstadt, onde o seu superior Ihe havia concedido apenas uns dias livres... A transgressio, € a repreensdo por ter levado consigo ao céro do érgéo uma jovem (sua futura espésa) custaram-lhe o emprégo. Encontrou outro trabalho em 1707 em Miihlhausen; mas ali também s6 ficou pouco tempo, em virtude de uma divergéncia entre os fidis da cidade, a qual tornou insuportavel a vida do miusico de igreja. E para Weimar que éle dirige, entao, os passos (aqui no hé nenhuma metafora, visto que na realidade Bach empreendeu muitas das suas viagens a pé, por falta de dinheiro), tornando-se organista da cérte e musico de camara do duque. Em 1714 foi promovido a primeiro violinista o que naquela época significava espécie de posicao de chefia no conjunto. A orquestra era imponente para os tempos, contando as vézes com 20 misicos. Comega, entio, a crescer a sua fama de organista. Prova-o um curioso fato ocorrido em 1717. Na cérte de Dresden, exibia-se naquele ano um virtuose francés do érgio e cravo, Louis Marchand, reputado ini- gualavel na Europa. Os amigos e partidérios de Bach tiveram grande trabalho para convencélo, homem reservado e quase timido que era, a desafiar Marchand. Quando, finalmente, se declarou pronto, e chegou a Dresdem para a competicao, o francés desapareceu sem deixar vesti- gios. E a pena de Telemann, famoso compositor e critico de Ham- burgo, escreveu: “Ninguém supera a Handel no érgao, com excegio talvez de Bach”. A subseqiiente etapa da vida de Bach e, ao mesmo tempo, a tnica que o mantém completamente afastado da musica religiosa é Kéthen, no Ducado de Anhalt. Ali, dirige éle a orquestra da corte e é a ésse cargo que deve a maioria das suas obras profanas cuja significacio demasiadamente se esquece, em face dos seus trabalhos religiosos. Apesar de tao febril atividade nada pode, no mundo, afastd-lo por longo tempo 83 do seu amado érgio. Em 1728 participa do concurso para a vaga de organista da Igreja de Santo Tomds em Leipzig, sem grande esperanca, alids, por j4 ter sido vergonhosamente Iudibriado em Hamburgo. Mas dessa vez tudo vai bem, e Bach muda-se para a cidade que sera teste- munha da maior parte da sua atividade, dos seus trabalhos mais importantes e da sua morte. Em Leipzig, é infatigavel 0 nosso artista, é feliz no lar e diante do érgio. Nao o estimulam nem o amargura a ambiggo do triunfo. Sémente poucas pessoas suspeitam a sua verda- deira grandeza como criador musical; muitos si0 os que, apesar de admirarem a sua habilidade no érgio, no o reconhecem como grande compositor. Entre os seus mais fervorosos partiddrios figura Frederico, © Grande, que em 1747 0 convidou a ir a Potsdam, onde Bach deu uma série de concertos de érgio ¢ cravo. Clavier ith une beftehend in PReludierdlemanden G@hanlen Sarabanden Gi iquen enucten, und ancdern Galanterien, Daren keibatern aw, Gormilbe Cpeauey vorfertiget von ~ Gohan Sebastian Bache. Toctfaecte Anhalt Ghiruschen wierchlichen (Gjscthmetfler ured Te ri Masicr Qpriensis Powe Sarita V Jt Verlegung des Autoris 4730 Fig. 39. Frontispicio da primeira edigdo das “partite” de Bach. Sdmente durante os tltimos anos de vida foi que cresceu a sua reputacdo. Cresceu o niimero de viajantes que, ao chegarem a Leipzig, queriam ver e ouvir o grande Bach, sempre infatigivelmente dedicado a musica num lar verdadeiramente feliz repleto de criangas, dirigido, apés a morte de sua primeira espésa, por outra, igualmente compreen- siva e terna como a primeira. Bach’ compés obra sobre obra, até que os olhos, cansados, Ihe dificultavam o trabalho. No dia 28 de julho de 1750, aos 66 anos de idade, cerrou os olhos para sempre. Os seus restos mortais foram enterrados na cripta da igreja de Sao Jodo em Leipzig. ‘As Ultimas notas por éle escritas pertencem a uma fuga na qual usou o seu préprio nome — as notas B-A-C-H (Sib-Li-Dé-Si) — como 84 contramelodia. Nesse ponto, arrancou-lhe a pena a morte que éle tan- tas vézes cantou, nao com terror, mas com a profunda fé religiosa que em tudo foi sua luminosa guia. No derradeiro manuscrito lemos, acres- centadas por Philipp Emanuel, as palavras: “Sébre esta fuga, em que foi usado o nome de Bach como contramelodia, morreu o autor”. Século e meio depois, um grande compositor que em muitas coisas se parece a Bach, Anton Bruckner, dedicou a sua ultima e maior sinfonia “Ao Deus Querido”; provavelmente Bach, sem alids proferir- lhe o nome, havia dedicado tédas as suas obras a Deus, pois iniciou sempre os seus manuscritos com as Letras J. J. (Jesu juva) e os ter- minou com S$. D. G. (Soli Deo Gloria); e nao se trata de palavras vazias no caso do grande crente cuja férca Ihe veio de Deus. Jé mencionamos as suas obras, reunidas em 58 grossos albuns. E dificil classificar segundo a ordem as suas composicées. Talvez caiba o primeiro lugar aos oratérios. Aqui devemos incluir algumas linhas que expliquem essa forma de arte, a qual ocupa importante pésto nas obras de Bach, assim como nas de Handel e outros compositores que Ihe sucederam. O oratorio nasce das formas medievais dos autos e mistérios da Paixdo; por- tanto, é irmao gémeo da épera. E como sdi acontecer, as vézes, com os gémeos, tém muito em comum; mas também possuem diferencas. Oratério e épera possuem uma patria comum, a Italia, e aproximada- mente a mesma data de nascimento, cérca de 1600. De fato, o oratério € 0 primogénito, e deve sua definigao a varios ilustres compositores, so- bretudo romanos como Emilio de Cavalieri e Giacomo Carissimi (1604- 1674). O oratério nao é necessariamente uma pega musical religiosa, e num dos seus tipos é profano, embora nunca tao profano quanto a dpe- ra; apresenta sempre certa solenidade como elemento bisico. Em co- mum, possuem épera e oratério o principio estimulante da acio, a sua divisio em varias figuras, a inclinagio a alternncia entre solos € coros, as formas cantadas de misica (dria, dueto, etc.), acompanhamento pela orquestra que inclui também trechos independentes (ouverture, inter- mezzo, marcha, etc.). Pela origem idéntica, nZo nos surpreendem os primeiros anos de vida paralela e grande semelhanca; mais tarde, sur- gem naturalmente divergéncias e até oposigdes. A épera conquista o teatro popular; 0 oratério renuncia ao palco, 4 decoragio, aos trajes, enfim a tudo quanto diz respeito ao teatro; apresenta os seus conflitos dramiticos que, em certos trabalhos, cedem o lugar a uma contem- placao mais lirica, sob a forma de concérto; e, para conservar a neces- saria ligacdo das partes individuais que, freqiientemente, s6 se encon- tra na representacio teatral, o oratério introduz a figura do narrador © qual une, geralmente, os ntimeros musicais, por meio da recitacZo semimusical. Dissemos que nos trabalhos de Bach, os oratérios ocuparam lugar predominante. O seu carater religioso nao pode surpreender-nos, uma vez que acompanhamos a vida do organista de Santo Tomas. O primeiro lugar cabe aqui: As trés Paixdes ainda hoje conservadas, a segundo Sio Lucas, a segundo Sio Joao e a gigantesca obra-prima 85 da “Paixdo segundo Sio Mateus” (Prancha 16). Uma wnica vez apre- sentou Bach essa obra, na sexta-feira santa de 1729; diante da acolhida fria e incompreensiva, renunciou a outras apresentacdes, e s6 mais tarde um jovem e genial miusico, Felix Mendelssohn-Bartholdy, des- cobrindo a’partitura, devolveu a magnifica obra 4 humanidade. Tem-se duvidado nos ultimos anos da paternidade de Bach quanto 4 “PaixZo segundo Sao Lucas”; existe realmente com a sua grafia, mas por varias razées parece nfo ser obra sua. A “Paixo segundo So Jo%o” foi escrita em 1723, portanto antes que Bach ocupasse o cargo de organista em Leipzig. O autor modificou-a, no entanto, duas vézes, em 1729 e 1738. Essa insatisfaco, pouco encontradica em Bach, tem o seu motivo em primeiro lugar no texto. Bach foi, nela, o seu proprio libretista e modificou um entrecho do Conselheiro Brockes de Hamburgo, ja anteriormente musicado por Hiindel, Mattheson e Keiser. Decidiu-se, desprezando os versos barrocos e altissonantes do enrédo, pelo texto ori- ginal de Séo Jodo, em que incluiu drias de varios autores. O micleo de cada “Paixio” é constituido pela narragio do evangelista, na qual se in- troduziram arias, corais e coros. A “Paixio” atinge com Bach tal sintese de serenidade e realismo empolgante que dificilmente aparece coisa igual na historia da musica. As cenas do tribunal, nas quais uma mul- tid’o vociferante exige a cabeca do Salvador, nfo podiam ser mais naturalisticamente escritas por qualquer compositor moderno; os mag- nificos corais que interrompem a férca do acontecimento nao sio uma quebra de estilo; pelo contrario, entrelacados ao dramatico como pon- tos culminantes liricos, produzem efeito emocionante e arrebatador. Pouco menos importantes sio as demais obras religiosas de Bach, a sua Missa em si menor, 0 seu Oratério de Natal, as suas intimeras Cantatas, os Corais, simples, mas profundamente emotivos. Entre os seus trabalhos profanos ha dois importantes: “O Cravo bem Temperado”, colecio de Prelidios e Fugas, no qual pela primeira vez se usa todo o sistema de tons maiores e menores; pouco antes fora, por Andreas Werckmeister, estabelecida a consonincia uniforme ou “tempéro”, a subdivisio regular da oitava em doze semitons. Bach ocupa-se também, pouco antes de morrer, da sua forma preferida, a fuga. Nao péde terminar “A Arte da Fuga”, inesgotavel mina para os amantes da musica polifonica. No estilo orquestral de muiltiplas composigdes do seu tempo, escreveu os “Concertos de Brandemburgo”. Nao devemos deixar de mencionar importante série de concertos para instrumentos solistas ¢ orquestra. O numero das suas obras é dema- siadamente grande para que aqui as enumeremos; o leitor encontrard no fim déste volume um indice contendo os titulos de todos os traba- Thos do grande e imortal mestre. Beethoven que, como os demais grandes musics, venerava incon- dicionalmente o organista de Leipzig, escreveu: “Nao devia ser Bach (1), devia ser mar. (1) Bach, em alemio, significa regato. (N. do T-). 86 i HANDEL, OU A FORGA DE VONTADE Estranhos caprichos do Destino! Bach e Hindel, os dois grandes génios da musica alema do século XVIII, nascidos no intervalo de poucas semanas em cidades nado muito distantes, nao se conheceram em vida. Tampouco se cruzaram, cem anos mais tarde, os caminhos de Beethoven e Schubert, apesar de percorrerem éles diariamente as mesmas ruas da mesma cidade. Também Wagner e Verdi, meio século depois, nunca se conheceram. A vida de Handel é, em quase tédas as suas circunstancias, 0 oposto da de Bach. £ o triunfo de um lutador que, batendo-se contra empe- cilhos de téda espécie, objecées ¢ intrigas, invejas e ciumes, vence final- mente, gracas 4 sua energia férrea ¢ a sua vontade indomdvel. Na familia de Bach sé havia misicos; na de Handel, nenhum. Assim, & compreensivel a forte resisténcia paterna a estranha escolha de profis- sio do filho. Apesar de ja se haver a musica tornado ocupagio em parte bem recompensada — numerosos compositores italianos de épera con- seguiram bons lucros — continuava em intimeras mentes o velho preconceito de pertencerem os misicos a uma classe social inferior. Georg Friedrich Handel (Prancha 13) nasceu em 1685, em Halle, e deu a primeira demonstragao da sua forca de vontade vencendo a oposicéio do pai. No mesmo ano em que Bach inicia a sua carreira em Weimar e Arnstadt, vemos o jovem Handel de 18 anos, como seu colega, ir a Hamburgo, de cuja importincia para a dpera alema jé falamos. Ali foram representadas as suas duas primeiras dperas e ali se Ihe abriu o caminho para Liibeck, com maior facilidade que para Bach, visto nao ser o seu caminho tao distante e dispor éle de meios mais copiosos para tanto. Também éle fica impressionado com a arte perfeita de Buxtehude; sugerem-Ihe que despose a filha do artista, 0 que representaria a sucessio no cargo de organista do sogro, de acor- do com o costume da época (e de outras épocas). Mas o tempera- mento de Handel nao admitia casamento e fixacgao. Para éle eram as viagens, como para tantos outros artistas, uma necessidade vital, e pre- tendia colhér impressées, pois sentia que elas Ihe aumentariam a capa- cidade criadora. Também nesse ponto foi o oposto de Bach (assim como de Schubert e varios outros) que dispensavam qualquer inspira- Go exterior para as suas criagdes, Hiindel, tal qual muitos artis- tas alemies, é atraido pelo sol da Italia e, no mesmo ano em que Bach ruma para Miihlhausen, vemo-lo a caminho do pais luminoso, onde se atira imediatamente, e cheio de entusiasmo, aos bragos sedu- tores da épera. 87 Depois de permanecer algum tempo em Veneza, Florenca e Roma, fixou-se em Napoles, cuja escola, sob a guia de Alessandro Scarlatti, dominava naquela época 0 mundo, Trés anos mais tarde, na quali- dade de perfeito compositor italiano de éperas, volta a patria, onde o nomeiam diretor de orquestra em Hanéver; mais uma vez, porém, © seu sangue inquieto nao o deixa em paz, e éle procura, instintiva- mente, um campo de acio maior, viajando para o norte, para a Ingla- terra, que se transforma em sua segunda patria. Apés fundar um teatro de épera, comega a compor intimeros tra- balhos, Iutando contra poderosa oposigéo em parte dirigida contra éle, em parte contra a escola que éle representa. Por fim, malogra, mas nao abandona a idéia de criar uma épera nacional inglésa com influén- cia napolitana muito embora. Na segunda tentativa, luta como na primeira, e é somente a parddia que jé citei (a “Opera dos Mendigos”) que o arruina completamente. Amargurado pelos golpes do destino ¢ com a satide abalada pelo excesso de trabalho, vése atacado de uma paralisia parcial. Viaja, entdo, para Aquisgrana (Aix-la-Chapelle, Aachen) onde os médicos lhe desaconselham os banhos. Mas a sua fortissima natureza o torna dife- rente do comum dos mortais. Toma uma série tripla de banhos e cura-se. Mal sente que as fércas Ihe voltam, parte imediatamente para a Inglaterra, verdadeira natureza de lutador que nao abandona a bata- Tha enquanto ainda sobram esperangas, mesmo porque jd se sente atraido pela patria adotiva. E dessa vez obtém a vitéria. eat A ee 3. aTni t fl == oF pee nertri pak, alr ef Ie, WO g = Se Fig.40. Do manuscrito de Hindel “Salve Regina”, 1751. 88. aby Mendd Lthan yom Gale UDO) a =a Ebr Seed Phill the Lively. turn to ema turn to your Srraen Ooforectsbilate, = E as + LSa = Shoud you Dery helt Py youtlDye, Cars SS eS sashes EEE oC ee fa ara 7 e Pe Fig. 41. Minueto de Handel. De um original publicado em 1738 (“Bicham’s Musical Entertainer”). Nao a obtém, contudo, com a épera. Volta-se para um névo ramo, para 0 oratorio popular que, apesar de grandioso ¢ teatral, tem base religiosa, Aos 56 anos, de 22 de agosto até 14 de setembro de 1741 — 24 dias! — compoe a sua obra-prima, o “Messias”, e tao poderosa & a sua capacidade de trabalho, que imediatamente inicia outra obra, © “Sansio”, terminado aos 29 de outubro. Duvidando do ptblico de Londres que, por duas vézes, o forcara a fechar as portas do seu teatro, confia a primeira apresentacdo do “Messias” a Dublim, capital da Irlanda, E somente depois do enorme éxito obtido, por volta de 1742, é que a faz executar em Londres. 89 lrhanna Pride rica Floe ter of | loth. ta Mone i whditfen in Hie ow Gf mat. 4 ee at thes ry Left Whe le wb n cog a, Evrennfy bend Ge g 949 of. VIE, 50 eo Geese Fidene Hames Fig. 42, Ultimas linhas do testamento de Hindel. O rei e a corte esto presentes; quando a orquestra e 0 céro iniciam © ultimo jubiloso Aleluia, o rei levanta-se para, emocionadissimo, pres- tar a sua homenagem ao magnifico trabalho. E até hoje permanece © costume de ouvir 0 povo inglés e, de pé, a ultima parte. A partir désse momento, nada mais impede o caminho da fama e popularidade das suas melodias. Ele prdéprio as ouve, ao passear pelos jardins de Vauxhall onde, no vero, se exibe uma orquestra. Hoje, ergue-se nesse lugar a sua estdtua. Ouve-as também nos seus passeios pelo Tamisa, quando em amenas noites de verio acompanha 0 rei, ¢ a orquestra de bordo executa a sua “Musica Aquatica” composta espe- cialmente para tal fim. Um dia, um triste dia, interrompe um névo manuscrito com a se- guinte observacao: “Nao posso continuar, pois nada mais enxergo com a vista esquerda”. Foi um momento terrivel para o lutador infatigdvel, assim como foi para Beethoven o pressentimento da sua surdez, Nove anos mais tarde, j4 inteiramente cego, sente-se pela primeira vez cansado e pensa na morte, Conta-se que desejava morrer numa sexta-feira santa; e foi © que sucedeu, Hiindel viu o seu desejo satisfeito. Antes do fim da noite de sexta-feira santa de 1759, cerrou para sempre os pobres olhos que, havia muito, nao mais viam a luz. Sepultaram-no com grandes honras na Abadia de Westminster; ali repousa éle no “Poets’ Corner”, (“Rinc&o dos poetas”) ao lado dos grandes artistas da Inglaterra: Shake- speare, Tennyson, Purcell. Nio sao tanto as numerosas Gperas de Handel que Ihe asseguram um lugar entre os imortais; no obstante, nelas se nos deparam paginas de extraordindria beleza, como o famoso largo de “Xerxes”, e a dria “Las- cia ch'io Pianga” por éle empregada trés vézes, nas dperas “Almira” € “Rinaldo” € no oratorio “Il Trionfo del Tempo”. fste ultimo é inte- ressante também por pertencer ao grupo dos oratérios nao religiosos que, de acérdo com o exemplo da Idade Média, personificam idéias abstratas, como a Verdade, a Beleza e 0 Tempo. 90 Hindel possui mais vigor nos seus magnificos oratérios que nao negam a sua origem comum com a pera; pelo contrério, Cada um dos seus oratérios exceto “O Messias”, poderia ser representado no palco, assim como cada uma das duas dperas o poderia ser numa sala de concertos. A maioria dos seus oratérios se baseia em fatos biblicos, porém com certa liberdade. Percebemos néles uma mudanca substancial quando os comparamos as formas anteriores: so trabalhos para o grande piiblico, e neste exercem efeito imediato. Grandes coros pres- tam a sua colaboragio e imprimem ao estilo um cunho monumental. A influéncia dos oratérios de Handel foi grande em varias geracées de compositores, de Haydn a Schumann, Liszt e César Franck. Lugar importante ocupam ainda, na sua obra, as composigdes orques- trais, especialmente os “Concerti grossi”; aqui também a sua musica é cheia de colorido, majestosa ¢ visivelmente escrita para grandes orquestras. Enquanto Bach, em Leipzig, apresentava uma peticio a Camara para obter mais dois artistas para o seu céro ¢ a sua orquestra, a fim de aumenté-los para 14 e 16 figuras, Handel dispunha de gran- des massas para a realizagio dos seus sonhos. E centenas de coristas disciplinados — a Inglaterra sempre foi um pais de excelentes co- ros — colaboravam entusiasmados nos mais belos trechos musicados da Escritura. Disse certa vez Madame de Staél, com grande acérto, que Miguel Angelo foi o pintor da Biblia. Handel foi o seu compositor. 91 12 VIENA TORNA-SE CENTRO MUSICAL Por ocasifio da morte de Bach e de Hindel, a miisica e a época esta- vam em transicao. A polifonia, jd fortemente golpeada pela Opera ita- liana, agoniza até nas formas puramente instrumentais. O névo estilo, a melodia monof6nica com acompanhamento harménico representa a época do rococé feudal; estamos poucas dezenas de anos antes de gran- des eventos que transformaro o mundo: a revolucdo francesa e a inde- pendéncia norte-americana. A vida da cérte brilha no seu maior es- plendor. A misica dos paldcios no pretende comover os homens, aprofundar- Ihes os sentimentos ou purificar-Ihes os ideais; € um mero passatempo, agradavel, mas trivial, e de modo nenhum deve tocar os pontos fra- cos. Muito significativa me parece a expressio cunhada para a musica dos saldes aristocrdticos: estilo galante. A sua forma musical corres- ponde as formas cerimoniosas da corte; tudo é compassado e medido, as formas superam o conteido. Até os que arrebatam as almas e fazem sentir o infinito como os grandes mestres, os génios, mal podem, na- quele tempo como em qualquer outro, livrar-se da forma, que conti- nua sempre galante, sempre aristocrdtica. Os sentimentos e paixdes so os mesmos que na época burguesa, que em breve se iniciaré, mas quao diferente a forma de exprimi-los! Ou, como se poderia dizer mais acer- tadamente entio, de escondé-los... Durante mais de um século, 0 predominio musical pertenceu, sem duvida, & dpera, apesar dos vultos ilustres doutros campos, apesar de Bach ¢ seus filhos, apesar de Handel e alguns geniais compositores italianos, como Tartini, Vivaldi e Corelli, cujo nobre estilo, em geral pertencente a musica de camara, com tendéncia para a virtuosidade, se alternava constantemente com o dos mestres alemies. Desde 1600 a 6pera passou a constituir a forma mais visivel de musica e foi somente a posteridade que baniu alguns dos seus representantes e os substituiu por mestres cuja obra durante a vida foi obumbrada pela épera. Nos meados do século XVII, a Itdlia perde o seu dominio de pais da épera, de tio longo tempo. Ao mesmo tempo, outras cidades se tor- nam centros de cultura e de arte, acolhem os espiritos de escol da épo- ca e atraem os olhos do mundo. J noutra oportunidade, afirmamos que nao é por simples acaso que, em determinada época, as farcas es- pirituais se concentram e produzem o florescer das artes. Depois das cidades das Flandres foi a vez dos centros da Renascenca italiana. E agora, por quase um século e meio, passa Viena a ser o centro artistico da Europa e 0 foco indiscutivel da musica mundial. 92 A histéria da formosa cidade remonta 4 Antiguidade, provavelmente aos tempos anteriores aos romanos. A sua posicao geografica é a inter- seco das principais estradas da Europa, € é ali que se reinem ger- manos, romanos e eslavos. Situada na rota do Damibio que conta milhares de anos, foi, desde a Antiguidade, importante centro de co- mércio e ponto de grande significacio politica. Como fortaleza contra as invasées asidticas, que se esboroaram diante dos seus muros, foi amea- ¢ada por ultimo, e por duzentos anos, pelos turcos. Quando éstes, em 1683, foram definitivamente vencidos, iniciou-se a rapida ascensao de Viena, cuja primeira patente de cidade data de 1137 e que, cem anos mais tarde, j4 era o mais importante centro da Europa Central e de lingua alem&; ainda, portanto, nos tempos dos trovadores. No século XVIII comega a grande invasio de artistas e sdbios internacionais, e tédas as nagdes da Europa cooperam para a formacio verdadeiramente cosmopolita da cidade. Misturam-se nela a graca francesa, a alegria italiana, a tristeza eslava, a profundidade alema, o orgulho hiingaro eo cavalheirismo espanhol. Quem estuda a musica vienense, quer a classica dos seus grandes mestres, quer a popular das suas imortais valsas, descobre com facilidade tragos de tédas essas influéncias, e mui- tos outros que, juntos, constituem o cardter vienense. Em 1750 reina ainda 0 estilo italiano na capital do Danubio, mas © proverbial entusiasmo dos seus habitantes pela musica comeca a dividir-se. Ao lado da épera, vemos aparecer a musica instrumental. A aristocracia e a rica burguesia, cuja ambicao consiste em imitar aquela tanto quanto possivel, cada vez mais se interessam pela musica orquestral. Numerosos paldcios dispdem dos seus conjuntos préprios, dos quais participam freqiientemente o chefe da familia, da casa, mem- bros desta e até criados. Também a musica de cdmara vai agradando cada vez mais, e nas quentes noites de vero ecoam belissimas serenatas pelos jardins. Significativos da época sio os numerosos antincios nos jornais em que se procuram “um cozinheiro que também saiba tocar viola”, ou um “camareiro que, a0 mesmo tempo, saiba tocar bem flauta”. Por cento e cingiienta anos nao haverd quase nenhum compositor importante, no mundo inteiro, que n&o trave relagdes, de um modo ou de outro, com Viena. Nao pretendo dizer que fdssem sempre rela- ges amaveis; pelo contrério, vemos bom numero de amargas paginas na histéria da musica da cidade. Nao obstante, nenhum musico pode subtrair-se ao seu misterioso encanto. Gluck foi um dos primeiros. Christoph Willibald “Ritter” von Gluck (Prancha 17), nasceu em 1714, no Palatinado, perto do Reno, e traba- Thou primeiramente em Praga; depois, por pouco tempo, em’ Viena, € em seguida viajou para a Itdlia, coisa que, para qualquer compositor de éperas, era uma necessidade. Na Itdlia, apresentou em 1741 a sua pri- meira obra, A qual se seguiram outras cem durante a sua vida. Con- vidado a ir a Londres, escreve para 0 Teatro Haymarket — 0 mesmo em que trabalhou Hiindel — trés dperas, tédas em estilo estritamente ita- liano. Os principais teatros da Europa representam os seus trabalhos (Prancha 17). Em 1750, chama-o a Imperatriz Maria Teresa para o 98 Be Coleg Lace Vero ta BBB ecompynet Saiass: see Sy Wy mat eee Ene suit Aa a Fig.43. Coro da partitura de Gluck “Feste d’Appollo”, 1769. seu teatro da cérte em Viena. Nesse mesmo ano morre Bach e um pobre rapaz de 18 anos, Joseph Haydn, inicia a sua brilhante carreira. No apogeu, verifica-se em Gluck uma estranha mudanca; comega a pen- sar na inegavel crise da dpera, e afasta-se da trivialidade da sua rotina. Reconhece com absoluta certeza que a salvacdo da arte musico-drama- tica deve comecar pelo texto. “Seja a palavra senhora da melodia e néo sua escrava”, j4 dizia Monteverdi. Gluck quer retroceder para ali e, além disso, infundir 4 épera um sentido profundamente ético, quer fazé-la mais humana e moral. Encontra em Calsabigi um colaborador ideal, cujo talento poético sente e realiza a idéia fundamental, e ambos ini- ciam a grande obra da reforma. Um século depois, seré ela comple- tada por um tinico homem, poeta e mtsico ao mesmo tempo, Richard Wagner. Nao nos admira voltarem-se os dois reformadores da épera para temas antigos, para a tragédia grega com téda a sua profunda huma- nidade, com as suas linhas simples e elevadas, com o seu céro € bai- lado ao servico das mais elevadas idéias, tudo exatamente oposto a tendéncia reinante da épera. Noutras palavras, a dpera voltase para © ponto em que haviam comecado os seus criadores, ou seja, para o teatro helénico. “Orfeu”, o tema t&o freqiientemente musicado, e “Alceste”’ (fig. 44) sio os primeiros degraus da reforma. Mas o publico nao acolhe bem 94 Franz Schubert caminhard pelas ruas de Viena, desconhecido, até a sua morte assaz prematura. Justamente no tempo de Beethoven e Schubert viveu Viena uma de suas mais brilhantes épocas em mateéria de teatro. O Kartnertortheater era o da cérte; portanto o precursor do Teatro Imperial da Opera muito mais tarde Opera do Estado. Para éle foi chamado um dos mais capazes empresirios europeus, Barbaja, que passara por uma vida aventurosa de garcdo e diretor de circo. Por algum tempo foi éle intendente em Viena e ao mesmo tempo no Scala de Milao. Apesar da sua tendéncia italiana, em dperas, devem-Ihe Viena e o drama musical alemao o estimulo de varias obras importantes. Foi éle que incumbiu Weber de compor “Euriante” e Schubert de escrever “Fierrabras”. No teatro rival “An der Wien” (que, desde a destruicao da Opera do Estado, de 1945 a 1955, substituiu éste), realizaram-se tam- bém importantissimas estréias: “A Flauta Magica”, de Mozart, em 1791 — ainda hoje, chama-se uma das portas da casa pelo nome da figura mais popular da épera: “A Porta de Papageno” — e “Fidélio” de Beethoven, durante a ocupacio francesa. Sébre a vida concertista de Viena, contam-se coisas curiosas nas ve- lhas crénicas. Uma testemunha da categoria de Hanslick — 0 mesmo que mais tarde atacard selvagemente e, ao mesmo tempo, com grande argticia, Wagner e Bruckner, escolhendo Brahms para seu idolo — narra que, naquela época, quando éle era ainda crianga, eram pratica- mente desconhecidos os ensaios de orquestras. Uma obra como a “Nona” de Beethoven, ainda hoje meticulosamente estudada por orquestras profissionais, antes da representacao, era executada mediante a leitura direta da partitura por um conjunto de amadores! Recusamo-nos a crer nisso, apesar de haver outros fatos rigorosamente documentados como, por exemplo, o da execugdo de concertos no Prater em dias tteis, as sete horas da manhal Outrossim, muito raramente se ouvia num programa uma sinfonia completa; em geral, era a primeira parte de uma ao lado da ultima de outra de compositor diferente, e até separadas por uma dria & moda italiana... Hoje, pelo contrario, somos tao severos que nem sequer permitimos aplausos entre as partes de uma obra! Em 1771, os musicos de Viena organizaram-se e fundaram a “Socie- dade dos Artistas Musicos”. Como sempre, quando se retinem, excedem os artistas em falta de destreza os mais capazes burocratas. Mozart, por exemplo, nao foi admitido 4 sociedade por nio exibir certificado de batismo; Lanner, co-criador da valsa vienense, também nio, por lidar com musica de danga. E Haydn? Teve éle, apesar de ser o mais famoso da época, de esperar muito tempo até que decidissem admiti-lo; e foram entio os seus oratérios que, executados em concertos anuais em beneficio da sociedade, encheram os cofres crénicamente vazios desta... Desde o tempo do célebre Congresso de Viena que pds cdbro as guerras napoleénicas e que, segundo afirmava um contemporaneo, “danca mas nao avanca”, envolve a cidade uma enorme onda musical popular, que, embora lentamente, nao tarda em se assenhorear do centro elegante. O seu reino durard quase cem anos e a sua dinastia 96 4 esquerda: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) com a idade de 6 anos. 4 direita: Mozart com a idade de onze anos. Pintura de Thaddius Helbling, 1768, A esquerda: Motart jov PRANCHA 21 Bosque de palmeiras: cei preparado por k PRANCHA 22 4 esquerda: Ludwig van Beethoven (1770-1827). A direita: Beethoven, por Hofel, segundo um desenho de L. Letronne, de 1814. Beethoven. 4 esquerda: Parte de uma pintura de Waldmiiller, 1823, 4 direita: Agua-forte de Arthur W. Heintzelman. PRANGHA 25 © famoso € freqiientemente comentado frontispicio da terceira sinfonia (Eréica) de Beethoven, cuja dedicatéria a Napoleo aqui se vé riscada veementemente. Manuscrito da “Sonata da Primavera", op. 24, de Beethoven PRANCHA 24 se intitula pelo nome de Johann Strauss. Quase todos os mestres do romantismo passam por Viena: Weber, Schumann, Chopin, Liszt, Wag- ner. Ali fixam residéncia os ultimos grandes sinfonistas: Brahms, Bruck- ner, Mahler. Pelo fim do século, canta Hugo Wolf as suas cangdes chorosas, e em Viena vive algum tempo Richard Strauss, 0 derradeiro roctedo no vagalhéo do turbulento século XX. thu or Mate Tiny Preis gain 4 wind fat Cpe = 7 Fig.44. Manuscrito de Gluck “Alceste", 3. ato. “Grands dieux, soutenez mon courage”. Encontramse em Viena todos os fatéres que, concordes, fazem da cidade verdadeiro centro cultural: talento e idealismo do povo, com- preensio e generosidade da classe dominante, e inteligéncia dos gover- nantes, Através de tédas as grandes mudangas da Revolucio Francesa, do império e das guerras de Napoledo, durante a ocupacio estrangeira, durante o Congreso, durante a reacio politica, a revolugio de 1848, durante o século da maquina e do crescente materialismo, permanece intato o papel de Viena como centro musical. A atmosfera parecia tao repleta de melodias que todos os jornalistas, musicos, poetas, fild- sofos, politicos, estadistas e comerciantes estrangeiros a qualificavam com uma tmica expresso: “A cidade da miisica”. Os sons ecoam das pedras das velhas e estreitas ruelas, das paredes dos palicios, do mur- muirio dos bosques, das pontes e das térres. do sorriso das mulheres eda alma das criangas. 97 7 Histério Masica 13 HAYDN, OU A CALMA ALEGRIA Nos ultimos capitulos falamos dos paldcios, simbolos do século XVIII, e da sua misica galante. Mas agora que pretendemos tratar dos com- Positores, aos quais costumamos chamar cldssicos de Viena, mister nos é visitar construgées muito mais modestas, em que os mestres nasceram e viveram, enquanto a sua musica embelezava a vida dos ricos. A casa em que nasceu Haydn era uma simples casa de camponeses no “Bur- genland” (“regio dos castelos” comarca entre a Austria e a Hungria) a de Mozart o lar de um funciondrio musical de posigéo média, na velha cidade episcopal de Salzburgo. As condicées do lar de Beethoven em Bonn sé podem ser classificadas de pobres, ¢ néo eram melhores as da casa paterna de Schubert. Nenhum déles nasceu em bergo de ouro; e até podemos asseverar que apenas pouquissimos dos grandes misicos viveram infancia e mo- cidade cémodas e despreocupadas. Talvez seja justamente a luta pela vida que os torna aptos a receber a inspiracdo divina com que com- pdem obras imortais. © primeiro dos chamados cldssicos de Viena é Haydn, (1782-1809) que nao é um dos miisicos “‘interessantes”, segundo a opiniao publica. Haydn nao é um prodigio que espanta o mundo como Mozart, nao é um lutador que, furioso, enfrenta o destino, como Beethoven, nao é um triste desconhecido como Schubert. Mas a sua vida é uma verdadeira lenda, um exemplo que serve para demonstrar que fdrcas pode des- pertar no espirito humano um nobre ideal. Impressionante é a sua vida, desde o acanhamento da casa camponesa em que nasceu até a fama mundial, e 0 seu longo caminho hirto de obstdculos, porque Haydn deve a sua ascensao exclusivamente ao seu cardter, ao seu tra- balho e ao seu talento. Nasceu éle numa pequenina aldeia da fronteira austro-hingara, Rohrau, nZo muito distante de outra, Raiding, onde, trés quartos de século depois, nasceria Liszt. Deparam-se-nnos nessa regiio influén- cias dos dois povos e, embora nao tao forte como no caso de Liszt, podemos sentir o seu efeito também na obra de Haydn. Haydn era um genuino filho do povo, e o seu cardter simples, despido de vai- dade, Ihe conquistou sempre tédas as simpatias. Seu pai era ferreiro, grande amador de musica, e sua mie, cozinheira, dotada de belissima voz. Assim, a mtisica e 0 canto cercaram o berco de Joseph e de seu irmio Michael, outro é6timo musico. Haydn freqiientou a escola primaria em Hainburg, pequena cidade do Danubio, onde vivia um parente da familia; mas o método de 98 educagio parece ter consistido mais de pancadas do que de mtsica; assim, foi uma verdadeira providéncia 0 dia em que o diretor dos meninos cantores de Viena passou por Hainburg, ouviu o pequeno Haydn e o levou imediatamente a brilhante capital do império. Por longos anos cantou Haydn no céro da Igreja de Santo Estévio e em numerosos concertos de palacio, aprendendo musica e vivendo uma vida feliz. Mas como as vozes infantis tem apenas determinada dura- cdo, Haydn no coméco da mudanca de voz perdeu o seu ganha-pao € 0 teto que o abrigava. fatter SY fama Re ot9. a ee 7 eke Ae pee ty Fig, 45. “Kyrie Eleison” do manuscrito da “Missa brevis” de Haydn. Com dezoito anos inicia a luta na grande cidade, menos pelo pao de todos os dias, o que para éle era secundario, do que pelo seu ideal de tornar-se musico compositor. Ganha alguma coisa copiando misica e tocando violino num baile de arrabalde; depois de longas noites em que nao sabia onde repousar, melhoram lentamente as suas condi¢ées materiais, e finalmente consegue a confianga de um conhecido mestre italiano, Porpora, cujos alunos de canto acompanha ao cravo. Pro- curando um quarto, entra infelizmente na casa do cabeleireiro Keller. A sua ma sorte nao consiste em namorar éle uma das filhas do cabe- Ieireiro mas, por simples agradecimento, como se diz, casarse com uma irma dela. Raras vézes concordam as crénicas como no caso de Anna Maria Haydn que, afirma-se geralmente, Ihe foi uma espésa m4 e briguenta. Suportou-a o musico quarenta anos... Tentaremos, nao obs- tante uma palavra em defesa da pobre mulher. Quando se casou com Haydn, era filha de burgueses, de familia respeitada no bairro; 0 ma- rido, pelo contrrio, um misico desconhecido, sem meios, sem espe- rangas, sem posicio e sem nome. Comecou a ascensio déle; o violi- 99 nista de tavernas, por um trabalho tenaz, tornou-se homem culto, res- peitado, importante, um génio, enquanto ela continuava a ser filha de um cabeleireiro de suburbio, vendo como Ihe fugia o marido para regides cada vez mais elevadas, como se tornava intimo de belas can- toras e aristocratas influentes e como fazia e discutia coisas a ela sem- pre inacessiveis. Nessas condices, Anna Maria Haydn nio devia tor- nar-se irritada, histérica até, lundtica, briguenta, malévola? Sé uma natureza muito maior poderia té-lo evitado. Apesar de tudo, detenhamo-nos ainda um pouco com essa mulher. O problema da companheira é um dos mais importantes na vida dos génios, € so poucos os que sabem resolvé-lo a contento. Que podemos exigir da filha do cabeleireiro que desposa um jovem misico sem nome e sem recursos € que depois nao consegue acompanhar-lhe 0 passo, enquanto o talento impele o marido a alturas para ela impossiveis? Deveria ter-lhe compreendido o génio, facilitar-Ihe o caminho que ela propria desconheciar Deveria ter sorrido, feliz, cada vez que o seu fa- moso marido beijasse a mio de uma princesa, de uma intelectual, de uma prima-dona? Como poderia ela ter cooperado para a ascensio désse genio, se Ihe faltava qualquer base? teria sido torturada pelos piores complexos de inferioridade... e nao teria tratado de desabafd-los contra éle que cada vez mais se distanciava? £ a tragédia da espésa do artista... e tragédia bastas vézes repetida... Mesmo que tivesse sido um anjo nao teria garantido a felicidade do géniol Na Boémia, num castelo do Conde Morzin, Haydn obtém o seu pri- meiro cargo na qualidade de muisico; ali compde a sua primeira sin- fonia, a primeira de muito mais de cem. £ um érro supor que os génios nascem mestres. Nao, as obras da mocidade de Haydn so como as de tantos outros, obras de principiante. Nao Ihe falta apenas a pratica; faltalhe também o conhecimento suficiente da teoria. Mas Haydn pertence & categoria de homens que nunca descansam. Se nao ha quem lhe ensine contraponto e harmonia, ha de aprendé-los sdzinho. E fa-lo téo bem que j4 em 1761 um dos mais famosos amadores e mecenas da Europa, o Principe Esterhazy, 0 chama para a sua orquestra do Castelo de Eisenstadt, na Hungria. Haydn ali é admitido como se- gundo diretor de orquestra e, durante a maior parte da sua vida, usard a libré dos Esterhazys. Em 1766, passa a ser primeiro diretor e tor- na-se chefe da melhor orquestra européia do tempo, com cérca de 30 mtusicos 4s suas ordens. Para ela compde obras e mais obras, de acérdo, alids, com o contrato; éle mesmo copia as vozes, dirige os ensaios durante a semana e rege, nos domingos e dias de festa, 0 con- cérto ao qual assistem convidados vizinhos e distantes, os primeiros va- res do império, potentados estrangeiros e, as vézes, a propria imperatriz. Surpreende-os a altura atingida pela musica no Palacio dos Esterhazys, 0 principe nao consegue esconder o orgulho que Ihe provoca o seu diretor de orquestra que escreve as belissimas ouvertures, sinfonias, con- certos, suites, minuetos, serenatas, e até as pequenas éperas que se representam no teatro do castelo (Prancha 20). Isso, sem mencionarmos as centenas de composigdes que Haydn prepara para uso exclusivo do 100 principe, excelente baritonista, nome que se dava ao precursor do violoncelo. Assim é facil de compreender 0 enorme niimero das obras de Haydn, entre as quais algumas ha que no sao de boa qualidade. Quem deve trabalhar por ordem de outro, nao seguindo apenas a inspiragio, nem sempre logra produzir coisas boas. O numero exato das suas obras nao é conhecido; muitas, sem duvida, se perderam, porque Haydn nem sempre as assinava, visto nao imaginar pudessem ter alguma signi- ficagio no futuro. A orquestra do Castelo de Esterhazy foi dissolvida apés a morte do Principe Nicolau, em 1790. Haydn recebeu uma pensio e foi-lhe per- mitido continuar com o titulo de diretor de orquestra, compositor ¢ mui- sico de camara do principe. Decidiu, entio, passar os seus tltimos dias em Viena. Aguardava-o ali uma surprésa, pois se tornou, sem o perce- ber, uma celebridade. Tantos foram os convidados ao Castelo dos Esterhazys, durante a sua atividade de 30 anos, que era quase impossi- vel encontrar lugar na Europa onde se Ihe desconhecesse a fama. A cérte imperial e o publico testemunhavam-lhe grande respeito e veneracio; as capitais européias chamavam-no. Haydn dedica seis novas sinfonias a Paris; depois, aceita o convite da Inglaterra, pais em que é grande- mente festejado. Na velha e honrosa universidade de Oxford recebe o grau de doutor “honoris causa” da mtisica, mas quando o reitor o apre- senta como 0 maior compositor da atualidade, éle, muito sério, recusa © titulo. “Hd, responde, um compositor muito mais importante do que eu, além de varios outros: chama-se Mozart, e vive na minha mesma cidade...” Os ingléses consideram tais palavras modéstia, esquecidos, hé muito, da crianca-prodigio que um quarto de século antes também ob- tivera estrondosos triunfos. Haydn com sessenta anos, no apogeu — as suas sinfonias dedicadas aos ingléses, entre elas a “Londoner” e a “Oxforder”, séo realmente admiraveis — volta para Viena. Durante a viagem, seguindo o Reno, apresentam-Ihe um rapaz que Ihe submete algumas provas musicais. Haydn estimula-o, acha-o talentoso e afirma que se for a Viena, éle proprio, de muito boa vontade, Ihe ensinard todos os segredos da composicio. Como poderia supor que aquéle momento modificaria uma vida humana e talvez a da histéria da musica? O jovem nao tarda em partir para Viena, mas o seu estudo com Haydn dura pouco e € pouco satisfatério. Chocam-se dois mundos, duas geraces que se nao podem compreender: Haydn e Beethoven. Em 1794, Haydn parte pela segunda vez para a Inglaterra, e os seus éxitos, se assim ¢ possivel, sio maiores ainda. Mas é somente no regresso A patria que Ihe amadurecem no espirito envelhecido as mais importantes obras de téda a sua vida, os oratérios “A Criagio” (1798) e “As Estacées” (1801). E um verdadeiro milagre da velhice, coisa dada a pouquissimos homens, nao somente conservar a capacidade de tra- balho, sendo também enveredar por novos caminhos, em vez de repetir velhos éxitos, Se a primeira obra ainda se calca na Biblia, a segunda 101 dirige-se abertamente para o oratério profano. Nao se pode negar a profunda impressio causada pelo “Messias” de Handel em Haydn. Aproximamo-nos do fim dessa portentosa vida. O vulto de Haydn popularizouse em Viena, e o pobre filho de camponeses, diante de quem se inclinavam os grandes da época, possuia uma residéncia e alguns haveres. Foi, havemos de frisé-lo, 0 unico dentre os classicos que soube resolver a contento a questio financeira; Mozart morreu na extrema pobreza, a vida de Beethoven foi um constante subir e descer, e Schubert nunca teve a menor idéia do valor do dinheiro. AVVISO. Oxzi: Venerdi 8. del corrente Gert» ayo la Sigra, Maris Bolla, virtuo- fadi Mujica, dard una Accademia aella piccola Sala del Ridotto. La Mafica fara di nuova compofizione del Sigre. Haydn, il quale ne fora alla diresione. Vi canteranno la Sigza, Boila, la Sigra. Tomeoni, ¢ it Sigre. Mombelli. H Sigre. Bethofen fuonera un Concerto fui Pisnoforte. II preceo dei bighietsi d ingreffo fora di uno secchino, Quefti potran. 20 avevfi o alla Caffa del Teatro Na. zionale, o in cafa della Sigra. Bolla, aella Parifergaffe Nro. aga. al fecor do piano. U principio fara alle ore fei ¢ mezza, Fig. 46, Antincio de um concérto vienense em 1796, do qual participaram Haydn € Beethoven. Haydn, ardente patriota austriaco, que deu a patria maravilhoso hino nacional, viu, no fim da vida, a capital ocupada pelos franceses eo imperador exilado. Mas 0 corso que afugentou a aristocracia incli- nou-se perante o génio, ordenando se postasse uma guarda de honra diante da casa do artista. 102 Em 27 de marco de 1808, Haydn mais uma vez apareceu em publico, num dos chamados “Concertos de Cavalheiros”, e assistiu 4 representa- go da sua “Criaco", ao lado dos grandes do império. O Principe Esterhazy foi buscé-lo de carruagem, e, & entrada da universidade, todos os que em Viena, naquela época, gozavam de nome ilustre e posi¢ao invejavel, o aguardaram, como o aguardaram também os mu- sicos mais notaveis, entre éles Beethoven. Haydn, porém, sé logrou ouvir parte do concérto; a certa altura, amparado por varias pessoas, teve de deixar a sala, enquanto os que podiam déle aproximarse The beijavam as mios, prevendo seria aquela a derradeira vez. Os franceses ainda ocupavam a cidade, quando Haydn morreu em 81 de maio de 1809. Nas suas exéquias, cantou-se o imortal Réquiem legado ao mundo 18 anos antes por Mozart, 0 maior mtsico de todos os tempos, segundo o parecer de Haydn. Se quisermos realmente compreender a musica de Haydn, devemos como sempre transportar-nos 4 época em que ela se originou. Ea época das perucas empoadas, da forma impecavel, dos movimentos ri- gidamente fiscalizados por severissimo cerimonial. & uma mtsica exa- tamente determinada, cuja simetria jamais interrompem grandes ex- ploses de paixdo, pouco mais tarde um dos principais sinais do estilo TomAntico. E contudo, quantas vézes, especialmente nas partes liricas, ndo sentimos palpitar um coragdo ardente para o qual ndo ha sofri- mento humano desconhecidol... Haydn sobreviveu ao seu tempo; pertenceu na vida e na obra & época pré-revoluciondria. Apesar das numerosas e importantes novida- des apresentadas pela sua musica, ndo foi um revoluciondrio. Nao pode € nao quis sé-lo. Em lento e constante desenvolvimento, colocou pedra sébre pedra, pressentindo as vézes uma idéia romantica, opés 4 musica absoluta alguns lados programaticos, descrigées da natureza € outras coisas, e em muitas partituras, pela primeira vez, exprimiu musicalmente um vivo e penetrante humor. Mas tudo sem revolugio. Finalmente, no fim da carreira, entrou naquilo em que ja se sentia © sdpro da nova época, os oratérios, os quais se afastam bastante da musica de paldcio, e representam a primeira ponte em direcio ao povo, sem desrespeito as antigas leis. Em breve, muito em breve, viria um artista — que jd vive na mesma cidade — 0 qual nfo vacilaria em rasgar as leis musicais, assim como as revolugées rasgam as leis sociais, um gigante que abrird as portas do névo século, um gigante chamado Beethoven. 103 14 MOZART, OU O DIVINO As vézes os deuses tém os seus caprichos: concentram todo o génio, todo 0 sublime, todo o milagre numa crianca, que erguem muito acima dos coetineos e levam, por caminhos ocultos, para a perfei- cdo, por ela distribuindo uma ventura sem-par durante varias gera- gdes. O capricho é grandioso e cruel ao mesmo tempo, porque con- cede ao eleito poucos, pouquissimos anos de vida, deixa que a sua alma sensivel v4 de encontro a todos os obstéculos do mundo, e arda na sua propria chama... Viveu Mozart trinta e cinco anos, bastantes para fazer com que ale galgasse todos os degraus da escada que conduz a gloria e da glé- ria ao esquecimento, ¢ desse oitocentos trabalhos a uma humanidade que o nao compreendeu. Cada um désses trabalhos pertence ao que ha de mais perfeito no género, quer se trate de éperas, de sinfonias, de musica instrumental, de musica de camara ou de igreja. Talvez nao tenha existido outro grande mestre de semelhante versatilidade; o grande Beethoven encontrou s¢rias dificuldades nas vozes de canto, Schubert malogrou na épera e Wagner sé se dedicou ao teatro. £ inutil refletir s6bre o que teria acontecido com Mozart se ti- vesse vivido setenta e sete anos como Haydn, seu amigo e exemplo. A sua vida de ardorosa intensidade devia terminar cedo, como a da borboleta que dissipa a beleza num tinico dia de sol; devia terminar antes que a fadiga, a indiferenca ou a aversio se apoderasse daquela alma de escol. O que importa numa vida nao sdo os anos vividos, séo os anos criadores. E Mozart desfrutou de quase trinta, sem que, durante um unico instante, o abandonasse a capacidade de trabalho. Antes dos seis anos de idade foi que comecou a jorrar a fonte milagrosa da sua arte, e s6 a morte logrou secé-la. Noutras vidas em que se dilata mais a evolugio orginica, alternam-se épocas de trabalho, de ansiedade e de inspiragio com outras de tranqililidade, repouso e preparo. Mas na vida metedrica de Mozart, Schubert, Pergolesi, Bizet e Purcell, parece que uma fora oculta pressente a proximidade da morte prematura, e es- timula o corpo a uma sincronizacio com o espirito inquieto para que se realize 0 que uma alma elevada quer legar a0 mundo. Freqiientemente refletimos sébre o enigma da crianca-prodigio. Don- de vém essas forgas ocultas, essa maravilhosa natureza? A unica expli- cagéo que ouvi deu-ma um sabio do Oriente, e como nao posso subs- titué-la vantajosamente, transcrevo-a aqui: Todos os homens tém uma alma imortal, que, depois da morte, volta 4 terra em busca de um 104 névo corpo para lev4lo a um grau mais elevado de perfeicio. No intervalo entre a morte € a reincarnacdo, esquece-se a alma de tudo quanto aprendeu na vida anterior. Mas ha vézes em que a alma se esquece de esquecer... A de Mozart, sem ditvida, pertenceu a um ex- celente miusico numa vida anterior e se esqueceu de esquecer... Nasceu Wolfgang Amadeus Mozart em 27 de janeiro de 1756, em Salzburgo, encantadora cidade dos Alpes austriacos, onde se fundem a cultura romana e a germanica; a sua populacio é alegre, e as suas melodias possuem a cristalina alegria dos lagos das montanhas e a clareza dos picos ensolarados que os cercam. Ai esta um dos fatéres da obra de Mozart; o outro havemos de encontrd-lo nas condigdes sociais da sua época. Fig. 47. Do livro de esbogos de Mozart em Londres. O pai de Mozart, Leopold, era um timo violinista e autor de um ex. celente compéndio de violinistas, além de ser um dos numerosos fun- ciondrios do arcebispo, cujo palacio constituia o centro politico e cul- tural da cidade. Sete filhos nasceram ao casal Mozart, mas apenas dois sobreviveram, Maria Anna, apelidada: “Nannerl” e Wolfgang Amadeus (Prancha 21). Cresceram ambos na velha casa que ainda hoje se situa perto da margem do Salzach, e ndo tardaram em revelar — Wolfgang com apenas trés anos — excepcional talento musical. Quando Wolf- gang contava seis anos e “Nannerl” onze, em 1762, realizaram a sua primeira viagem de concertos, apresentando-se ao “mundo aristocré- ico”. Munique e Viena sio as primeiras etapas dessa jornada verda- deiramente triunfal. Wolfgang toca cravo, violino e érgio e impro- visa com rara mestria sobre qualquer tema que Ihe submetam. A crianga-prodigio desperta o entusiasmo de todos os circulos proe- minentes e a atencio da cOrte onde se exibe com enorme éxito. Um dia, Mozart, depois do concérto, correu pelas salas — pois nas horas em que nao tocava era uma crianca como qualquer outra — e, escor- regando no soalho liso como espelho, caiu. Uma princesa o levantou, e de imediatamente decidiu casarse com ela. Nao tinha ainda idéia nenhuma das classes socia No ano seguinte, os dois irmaos, sempre acompanhados do pai, viajam para Paris. No caminho, detémse em numerosas cidades ¢ paldcios para concertos. Em Francforte, 0 jovem Goethe fica profun- damente impressionado com Wolfgang; quase meio século depois, tra- vard conhecimento com outra crianga-prodigio de musica: Mendels- 105 sohn, Outros pontos de parada da longa viagem foram Stuttgart, Moguncia (Mainz), Coblenca, Aix-la-Chapelle e Bruxelas, todos éles re- presentando distancias incomuns para uma crianga, sobretudo no tempo das diligéncias. Talvez ésses esforgos, ao lado da permanente tensio dos concertos, das recepgées, das festas e dos ensaios, tenham contribuido para abalar-lhe a saude. Em Paris, o menino de sete anos publica as suas primeiras compo- sigdes e indica no titulo a idade e o lugar de nascimento. Coberta de gléria, a familia Mozart continua a jornada para Londres, onde Wolfgang dedica a rainha seis sonatas, ¢ onde os éxitos triunfais se repetem. O caminho de volta leva-os, através da Holanda, Lille, Di- jon, Berna, Zurique, Ulm e Munique, a Salzburgo, apés uma auséncia de trés anos. Em Salzburgo continua o pai sérios estudos com os filhos e apro- veitase de algumas novidades vistas na viagem, por terem entrado em contato com muitos compositores modernos, como Johann Schober (1720-1767) em Paris, hoje completamente esquecido é Johann Chris- tian Bach (1735-1782) em Londres, filho mais mé¢o do organista da Igreja de Santo Tomas. Em 1767, encontramos a familia Mozart novamente em Viena, e Wolfgang recebe o primeiro choque provocado pela maldade huma- na e pela inveja profissional. Tem onze anos... e sofre difamacées e caltinias que nio acabam e dio a entender nao ser éle, mas 0 pai, © autor das composigées. Wolfgang vé-se obrigado a submeter-se a imimeras provas. Apesar de tudo a inveja dos colegas cresce mais ainda, quando o imperador pede ao menino que componha uma pe- ra, Nao seré a ultima vez na sua vida que empresdrios subornados e artistas que cantam mal propositadamente se esforcem por Ihe ani- quilar o trabalho. Depois de curta estada na cidade natal, Mozart empreende a mais importante jornada para os musicos do tempo: a jornada A Itdlia. Ali também deve submeter-se a rigorosos exames, pois os musicos mais ilustres querem convencerse pessoalmente do seu grande talento. Iso- lado do mundo, compée sébre tédas as formas musicais que se Ihe exi- gem, e improvisa sobre qualquer tema. Os mestres enchem-se de admira- cdo: nunca viram coisa semelhante. Mozart conta quatorze anos quan- do, no Scala de Milio, se representa a sua primeira grande dpera “Mitridate, Re di Ponto”. Naturalmente estd escrita no estilo italiano, exatamente como a maioria das suas quase trinta obras de teatro. Er- rariamos se quiséssemos esperar do “Mitridate” uma obra-prima no sentido da épera moderna, a qual exige muito mais que simples belas melodias. Como poderia éle, crianca ainda, representar por musica sentimentos que nao conhecia? Na épera italiana no existia profun- didade psicolégica; as reformas de Gluck mal se haviam iniciado, e © seu efeito na Italia nunca foi importante. Mozart devia percorrer longo caminho — nao quanto & capacidade técnica que em 1770 ja era extraordindria, mas quanto A experiéncia de vida — até que che- 106 gasse 0 momento de compor os seus grandes trabalhos ("“Bodas de Figaro”, “Don Giovanni” e “A Flauta Magica”). Nao obstante, a estréia de Milo constituiu um grande éxito, que provocou sensacZo em toda a Europa. Com os triunfos obtidos em Bolonha, Roma e Napoles, foi a consagracio. Hasse, excelente compositor de éperas naquela épo- ca, pronunciou as seguintes palavras: “Essa crianca far com que to- dos nés sejamos esquecidos...” Nao sabia que se passaria muito tem- po antes que a profecia se realizasse. Na ocasiao do regresso a Salzburgo, verificou-se 0 vergonhoso episé- dio da pretensio do arcebispo de traté-lo como um lacaio desobe- diente. O rompimento com Salzburgo foi desagradavel e definitivo. Fig. 48. “Basle” de Mozart, Maria Anna Mozart em Augsburgo. Desenho de Mozart numa carta datada de 10 de maio de 1769. Novas viagens, novos éxitos nas grandes cidades, mais frios, porém, menos duradouros. & triste ver como essa vida, que se iniciou com tao raro brilho se torna cada vez menos conhecida e menos estimada ago- ra, que uma espléndida maturidade toma paulatinamente o lugar dos transportes juvenis. As mesmas cidades que o haviam recebido com jubilo quase nem Ihe notam a presenca, € 0 éxito dos seus trabalhos € quase 0 mesmo, comum, das éperas italianas na época da produgio em grande escala: hoje a celebracio, amanhi o esquecimento... Um dia, enamora-se 0 nosso artista de uma bela e jovem cantora; mas seu pai, ainda conselheiro e mestre dos filhos, ndo aprova um casamento prematuro. Sdmente varios anos depois é que Mozart se casa... com a irma do seu amor da mocidade. Repete-se 0 caso de Haydn, com um pouco mais de sorte, todavia. Constanze Weber nio foi ma companheira para Mozart, embora nao tenha sido também ideal. Onde seria possivel, contudo, encontrar a companheira ideal para um Mozart? Belissimas sao as cartas que escreveu & espésa, durante as viagens; Iéem- 107 se nelas, carinho, bondade e uma maturidade obtida por meio de imumeras decepcées. “Alcangar o céu é coisa maravilhosa e sublime, mas também na terra ha coisas incomparavelmente belas...” escreveu certa vez. A nota fundamental é, como o seu cardter, sempre alegre, juvenil, espirituoso e otimista, até A sua morte. Apenas dez anos nos separam do tragico evento. S40 os anos dos seus maiores trabalhos. Mozart est4 agora em Viena, onde a vida mu- sical € dirigida por uma minoria italiana. A sua situacio finan- ceira piora de dia para dia. “O Rapto do Serralho”, encantadora peca que constitui um marco na histéria da épera alema, sé pode ser representada mediante ordem especial do imperador. Em 1786, os can- tores, intencionalmente desafinados, arruinam as “Bodas de Figaro”, a mais genial comédia desde os tempos de Pergolesi. Somente na representagio em Praga é que aparecem os verdadeiros valores dessa 6pera. Mozart, reconhecido, dedica entio a essa cidade a sua obra seguinte, o “Don Giovanni” que também causa a mais profunda im- pressio. Morre-lhe, nessa casio, o pai que, renunciando a gloria artistica, se sacrificara pelos filhos, sobretudo por Wolfgang. Nove anos antes morrera-Ihe a mae, quando acompanhava o filho genial numa viagem a Franca. Logo depois da estréia em Praga, é a vez de Viena conhecer o “Don Giovanni”; mais uma incompreensivel reprovacdo. A situagio de Mozart na vida musical da capital austriaca é simplesmente de segunda ordem, enquanto nos pincaros da fama brilham compositores hoje inteira- mente esquecidos. Em 1789 empreende Mozart a sua derradeira viagem, passando pelas cértes de Dresden e Berlim; na Igreja de Santo Tomés, em Leipzig, homenageia Bach tocando o érgio. O Rei da Prissia oferece-Ihe pésto de relévo na cOrte, mas éle recusa, Foi a tnica oferta digna recebida por Mozart em téda a sua vida. Esperaria ainda o reconhecimento da patria? De tédas as posigdes que a cidade imperial poderia oferecerlhe, na cOrte, nos teatros ou nas igrejas, ndo conseguiu uma sequer. Tudo quanto Viena Ihe pro- porcionou foram pequenos titulos e pouquissimo dinheiro. Mas 0 nosso artista ainda no chegou ao extremo; falta-lhe ainda o pior. Em 1790, realiza-se a estréia da sua pera cOmica “Cosi fan tutte” to italiana no espirito que em tédas as partes do mundo é represen- tada com ésse titulo; é também tipicamente italiana no seu absurdo libreto que vive apenas em virtude da musica de Mozart. No ano seguinte, dedica o nosso artista a sua ultima épera italiana “La Cle- menza di Tito” a Praga, e no mesmo ano a ultima obra da sua vida “A Flauta Magica” se dé em Viena. Esta pera alema é extraordinaria em todos os sentidos: musicalmente precursora do “Fidélio” e do “Frei- schiitz” (Franco-atirador), porém diferente de qualquer outra no texto que, por tras da infantilidade de algumas das suas figuras e de um simbolismo fora do comum, oculta problemas que s6 podiam ser com- preendidos pelos conhecedores dos segredos dos macons livres. To im- 108 pressionado ficou Goethe com o texto que pensou em escrever uma segunda parte. Quanto & musica, a “A Flauta Magica” esta tio repleta de bondade e sabedoria, de humor e humanismo que nos parece um verdadeiro auto-retrato de Mozart (Prancha 22), O éxito da “A Flauta Magica” foi maior, contudo, em virtude das suas partes cémicas. Mozart vivia, naquele tempo, em miseravel morada perto do Teatro de Viena, onde a dpera era representada tédas as noites; sé raramente Ihe era dado assistir & pega; quase sempre estava confinado ao leito de enférmo. Ouvia entio com alegria infantil o relato dos amigos, que o visitavam ainda na mesma noite para lhe di- zerem qual a aria que havia obtido mais aplausos e quais os trechos bisados. (See wit& $3 8 att € Se eae ST SRG TE ERT EE, = = aan = Boe i eg Po Og APT = ete tte res FA —_ or gee ee az aoe fata = BSZn 2 gy et Ae) = == a oe ee re eg Sif Pape) fer Copp Antal CF ferried” afte} Fig. 49. Manuscrito das “Ntipcias de Figaro” de Mozart, final do segundo ato. No seu leito de enférmo, achavam-se dispersas folhas em que havia trabalhado com as forcas que Ihe restavam. Era o seu “Réquiem”, o que de mais puro e perfeito jamais saiu da sua pena, Nao péde ter- mind-lo. (Foi o seu discipulo Siissmayer que acrescentou as ultimas paginas.) Em 5 de dezembro de 1791, enquanto durava o éxito retum- bante da “A Flauta Magica”, com que o libretista Schikaneder, ao mesmo tempo protagonista e diretor do teatro, se enriquecia, morreu Mozart na extrema miséria. 109 Fig. 50. Manuscrito de Mozart da sinfonia em sol menor, terceira parte, minueto. Foi sepultado em 8 de dezembro, um dia frio e chuvoso de inverno. Um grupo de amigos 0 acompanhou até a igreja. Dali ao cemitério ninguém seguiu a misera carruagem que levava os seus restos mortais para o derradeiro repouso, $6 um cio Ihe foi fiel, e vemo-lo, numa figura da época, como tinico enlutado. Nao havendo dinheiro para timulo préprio, os restos de Mozart foram depositados em vala comum. LA repousaram por muito tempo até que a vitiva, restabelecida de uma enfermidade, procurasse o guarda do cemitério, 0 tinico homem que poderia com certeza mostrar-lhe 0 paradeiro do marido. Infelizmente 0 guarda falecera também; por con- seguinte, 0 timulo do grande artista nunca mais foi encontrado. Ninguém morre, todavia, enquanto as suas obras vivem. Mal Mozart desapareceu, a humanidade sentiu-lhe a perda irrepardvel. Passou, entdo, a reunir-lhe os trabalhos, estudou-lhe a vida, editowlhe as car- tas e deu o seu nome a ruas e pracas, além de erguer-Ihe varias estd- tuas. A cidade natal, Salzburgo, criou em sua honra famosos festivais em que a quantia que o visitante despende para ouvir os trabalhos do misico imortal daria para que Mozart pudesse ter vivido durante um més sem preocupagdes € sem opressdes... 110 £ tdo grande a sua obra e tio completa que aqui sé podemos men- ciondla por alto. Ao lado das suas éperas, pertence o lugar de honra as numerosas sinfonias, especialmente as tltimas, e entre elas as trés que, num tinico verdo, o de 1788, criou o génio como grandioso trip- tico: a Sinfonia em mi bemol maior, a em sol menor ¢ a em dé maior, conhecida por Sinfonia Jupiter. Também a sua musica de cimara per- tence as mais belas jéias dessa nobre literatura, e o seu “Réquiem” atinge alturas que 86 pouquissimos mortais conseguem vislumbrar. Mozart, como Haydn, é um representante dos tempos aristocrdticos. A sua musica desperta em nés a imagem de palacios principescos, bri- Ihantes, com belissimos jardins perfumados, enormes salas de cristal em que formosas mulheres e homens elegantes dancam minuetos e gavotas, ou ouvem serenatas. Tudo isso dista muito de nés e, por vézes, se nos afigura irreal. Mas, entdo, penetra-nos uma melodia dolo- rosa, um canto carinhoso, um sopro de divinal alegria, e imediatamente se ergue a ponte sobre o tempo € 0 espaco: a ponte que vai de coracio a coragio, do coraco ardente do génio ao coragio receptivo de téda a gente. “Génio é aquéle que nenhum professor consegue arruinar”, disse certa vez Mozart. Acrescentemos: “e nenhum destino”. ml 15 BEETHOVEN, OU O REBELDE SOLITARIO Nao houve certamente artista que mais inflamasse a fantasia humana do que Beethoven. Intimeros foram 08 livros escritos sobre éle, e tanto © teatro como o cinema tentaram esbocar-lhe a biografia. Donde pro- vém a extraordindria ressondncia da sua personalidade? Nao serd talvez por existirem em todos nés cordas que a sua obra faz vibrar, por exprimir éle 0 que todos nés buscamos, por Ihe admi- rarmos 0 esférco sdbre-humano, a vontade indomavel, a forca que, numa luta sem fim, criou leis proprias para a sua vida? Ou sera por nos comover a profunda tragédia que Ihe torturou a desesperada exis- téncia? Na obra de Beethoven creio sentir, em primeiro lugar, duas coisas: liberdade e solidao. Para chegar & liberdade, teve éle de ser rebelde, € para no perecer na solidao viuse obrigado a voltar a sua alma cheia de amor para a humanidade. Da sua prépria obra se irradia a luz que nos guia no labirinto da sua grande alma; e das suas cartas tiramos varias elucidagées. Dispo- mos, ainda, do comovente documento constituido pelos seus canhenhos de conversacio: 11.000 paginas, desde 1816 até a morte, mil paginas por ano, mil paginas por intermédio das quais conserva 0 contato com © mundo, e onde os visitantes e amigos escrevem as perguntas que os seus ouvidos mortos j4 ndo percebem. Finalmente, temos outra teste- munha, igualmente comovedora, de sua mio: o didrio. Quanto mais nos aprofundamos nessas fontes, tanto mais confusas sio as nossas impresses, tanto mais contraditérios os dados. Um ho- mem como éle, que traz na alma o universo, ndo pode absolutamente parecer o mesmo duas vézes. O génio que o vulgo considera excéntrico é como a pedra preciosa, cujas facétas refulgem diversamente, segundo a luz que nelas incide. Quem ousaria dizer: conhego-o, compreendo-o? X de Schopenhauer a sentenca cruel que desejo recordar: “A tortura do génio é a origem de obras imortais’. Nasceu Ludwig van Beethoven em 16 de dezembro de 1770, em Bonn sobre o Reno (Prancha 23), filho de um mediocre cantor que possuia mais vicios que virtudes ¢ de uma cozinheira, cuja meiguice foi téda a luz da sua infancia. Muito cedo, revela a inclinaczo musical ¢ jd em 1778 apresenta-o 0 pai como pianista ao piblico, e a propa ganda fala de uma “crianca de seis anos”, muito embora éle j4 conte mais de oito. Vé-se que o exemplo de Mozart calou fundo no espirito do pai de Beethoven. W2 4 esquerda: Franz Schubert (1797-1828). Retrato de W. A. Rieder. A direita: Schubert com a idade de 16 anos. Desenho de Leopold Kupelwieser. Aposento na casa de Franz Schubert, Viena, Nussdorferstrasse, PRANCHA 25 Uma noitada de Schubert na casa de Josef von Spaun, Ao lado de Schubert, o cantor de éperas Vogl. Desenho de Moritz von Schwind, por volta de 1868. Manuscrito da cangio “Margarida 4 Roda de Fiar" de Schubert, inspirada pelo Fausto de Goethe. PRANCHA 26 A esquerda: Antonio Vivaldi (1675? — 17412). 4 direita: J. P. Rameau (1683-1764), busto atribuido a Caffieri. Bibl. Sainte-Genevieve. 4 esquerda; Francois Couperin (1668-1738). Gravura de André Boiiys. 4 direita: Domenico Scarlatti (1685 Elipart, segundo um quadro de 57). Gravura de A. Weger. PRANCHA 27 Familia francesa. Desenho satirico de Th, Rowlandson (1756-1827) sobre a paixdo da danga. PRANCHA 28 Em 1783, publica Beethoven as suas primeiras composigées, resul- tado de sérios estudos realizados com um bom professor, Christian Neefe (1748-1798), que Ihe descortinou o maravilhoso mundo de Bach, ainda bastante desconhecido, e Ihe transmitiu as obras de Mozart, Haydn e Clementi. No frontispicio da edigio, continua o “engano” s6- bre a sua idade, e 0 mesmo se repete no antincio de jornal que Neefe manda publicar em favor do discipulo, a fim de obter os meios neces- sdrios para que éle empreenda uma viagem de estudos, (IE: ~ A 4 4 4p Fig. 51. A cangdo “Amo-te”. Manuscrito de Beethoven. Possuia Bonn uma sociedade culta e um bom teatro; a vizinhanca com a Franca permitia o répido contato com as novas idéias de 14 oriundas. Assim, Beethoven vive no pensamento a grande revolugao que o domina, bem como o ensinamento de Jean Jacques Rousseau “Voltemos para a naturezal”, que néle surte grande efeito. A partir de entio sera a democracia 0 seu ideal politico e encontra a sua mais profunda expresso na sua musica, visto como o que escreve se destina ao povo todo e nao especialmente a uma classe. Beethoven anela por musicar sentimentos e desejos da humanidade. & o primeiro artista livre e independente, na sua criagdo, de qualquer coacdo externa, e nao um simples servo musical do feudalismo, como Bach e Haydn. Atinge 0 alvo que Mozart nao conseguiu atingir, e é 0 primeiro que escreve musica tal qual a sente, desprezando regras sem nenhuma hes tacdo quando assim o exige a expresso dos seus sentimentos. Os insp 118 bis Historie Musico radores das suas obras sio profundos problemas humanos, distantes dos que representam a época das perucas empoadas. © seu ardente desejo de liberdade e verdade jé se exprime na sua juventude em Bonn, quando no diario grava o lema da sua vida: “Faze o bem onde puderes, ama a liberdade acima de tudo, e jamais negues a verdade, embora estejas na frente do trono”. © anuncio de Neefe logrou éxito e, assim, veremos Beethoven em- preender, em 1787, a sua primeira viagem as margens do Danibio. Viena, como j4 dissemos, ressoava em mtisica naquela época, € possuia orquestras e conjuntos de misica de camara que dela faziam 0 maior centro musical do mundo. A principio, Beethoven pouco vé; possivel- mente, Mozart 0 ouviu; mas antes de qualquer resolucio, é obrigado © nosso artista a voltar para Bonn, pela morte de sua querida mie. A situagio da casa torna-se ainda mais dificil e 0 sonho de uma carreira internacional deve ser abandonado. Beethoven prepara-se para ocupar um cargo qualquer na cidade de nascimento; mas o destino Ihe havia reservado coisa maior, mais dolorosa. Encontra-se com Haydn, como ja vimos, e tudo, sonhos e possibilidades, desperta novamente. Um aristocrata austriaco, de nobre espirito, 0 Conde Waldstein, facilita-Ihe segunda viagem a Viena, dé-lhe boas cartas de recomenda- 40, cujo surpreendente efeito nao tardaremos em descrever, e confia- Ihe linhas verdadeiramente proféticas: “Caro Beethoven. Dirijase para Viena, e cumpram-se os seus desejos por tao longo tempo sopitados. O génio de Mozart ainda chora a morte do discipulo; refugia-se no inesgot4vel Haydn, mas nfo encontra ocupagio; através déle, deseja unirse a alguém. Por esférco incessante, receba, Beethoven, o espirito de Mozart das maos de Haydn”. Estaré Beethoven a procura do espirito de Mozart? Com Haydn nGo o encontra, Um abismo separa aquelas duas gerages, e raras so as aulas que recebe do velho mestre. Mozart, pelo contrério, nao © superava na idade em mais de quatorze anos. Ter-se-iam compreen- dido? Gracas as recomendagées de Waldstein, Beethoven é cordialmente acolhido nas mais nobres casas de Viena, nos palacios que Haydn sé excepcionalmente, e Mozart e Schubert nunca pisaram. fle, o demo- crata, 0 revoluciondrio, o estrangeiro, o irritadico, arbitrario, excén- trico encontra ajuda moral e material nos circulos mais elevados e, mais ainda, verdadeiros amigos e devotos partidarios. ‘Apesar de tudo, nfo renega um instante as suas convicgdes. Certa vez diz ao seu discipulo, 0 Arquiduque Rodolfo: “A liberdade e o Progresso so a meta da arte e da vida”. Os grandes rebeldes sio os seus idolos; dedica uma ouverture a Prometeu, simbolo de todos os que lutam pela liberdade; a NapoleZo, heréi da revolugio, dedica a sua terceira sinfonia, a “Herdica". Mais tarde, risca furiosamente a dedica- téria, quando Napoledo cinge a coroa de imperador. “Esse também no passa de homem vulgar! Agora, certamente, pisar4 todos os direi- tos dos homens, e se guiard exclusivamente pela ambicao, erguendo-se 114 acima de todos, e transformando-se em tirano’ cidade imperial de Viena! (2). ‘Mas os seus amigos aristocratas se Ihe conservam fiéis, e se esforcam honestamente por compreendé-lo e ajud4-lo. Organizam concertos com lugares imediatamente reservados, e cotizam-se para dar ao prelo as suas novas composigoes. A partir do ano de 1800, o Principe Lichnovsky destina-Ihe uma pensao anual de 600 “gulden”; oito anos mais tarde, Lichnovsky, 0 Arquiduque Rodolfo e o Principe Kinsky aumentam a pensio para 4.000 “gulden”, sob a condicio de Beethoven permanecer em Viena e recusar 0 convite de Jeronimo Bonaparte para a corte de Kassel... Em 1795, Beethoven dé o seu primeiro concérto em Viena, mas jd no ano seguinte comeca a fazerse sentir a enfermidade que lhe rou- baria a tranqiiilidade pelo resto da vida, a tragédia que, cada vez mais, Ihe ensombraria o cardter j4 por si inclinado para a melancolia: a surdez. Depois da primeira crise, que quase 0 levou 4 loucura e ao suicidio, iniciou-se a uta contra o destino, a herdica resisténcia contra o desespéro. E éle conseguiu a maravilhosa vitéria: a sua obra. Parece incrivel, mas é assim: quase téda a obra de Beethoven, com excegao de poucas composicées dos primeiros anos, é obra de um criador surdo. 6 me sinto feliz quando vengo uma dificuldade”.... confia ao seu didrio; e, apesar disso, a crescente solidao que se ergue como um muro invisivel a separd-lo de todos é uma terrivel provacéo. Como todos os grandes solitdrios, anela por comunicar-se com os homens, e acumula dentro de si uma enorme montanha de amor sem alvo, de que nos dé claro testemunho o doloroso “Testamento de Heiligenstadt”, em 1802. Beethoven, diante de quem se abriram os brilhantes salées e que era venerado pela classe culta de Viena, afasta-se lentamente de téda vida social. Torna-se cada vez mais reservado, cada vez mais anti-social. Nao se trata da solidio de Mozart, causada por um vergonhoso esque- cimento da parte do mundo, nem da de Schubert que sempre viveu exclusivamente no seu mundo de sonhos, “Para ti, meu pobre Beetho- ven, nao ha felicidade vinda de fora; tens de criar tudo em ti préprio, € sé no mundo ideal ¢ que encontras amigos!” escreveu certa vez. Quantas tentativas — até demais — no foram feitas para se penetrar a vida sentimental de Beethoven, e explicar a sua posicio perante o problema feminino! Ele proprio quase nada nos legou que possa guiar- Nos os passos, a ndo ser uma anotacao no didrio de 1817, em que pede a Deus lhe conceda finalmente a ventura do verdadeiro amor, além das famosas palavras referentes 4 “amada imortal” que se veem na dedicatéria de uma composigio e trés cartas de amor cuja destina- taria se desconhece. Ha muita probabilidade de haver sido Teresa Brunswick 0 seu grande amor e nfo Julieta Guicciardi, como por al- Estranhas palavras na fa de Schindler, baseada no que the contaram Lichnowsky ¢ Ries, é evidente- rif. | perdeu-se. Uma partitura copiada, hoje nos’ arquivos da Gesellschaft der Musik(reunde” de Viena, revela que Beethoven riscou a tinta o titulo, substi- tuido por “Sinfonia eroica composta per festeggiare il sovvenire d'un grand” uomo", Eniretanio, numa Carta aos editéres Breitkopf & Hartel de Leipzig, datada de 26 ‘de agisto de’1804, muito depois da proclamacta de Bonaparte, Beethoven ainda se refere 2 “Eroica” como “intitulada Bonaparte” (N. do R.). 115 gum tempo se supés. Mas nenhuma dessas duas e nenhuma das outras que com éle tiveram qualquer ligagio se Ihe tornou verdadeira com- panheira; nenhuma teve a sorte de libertarlhe 0 corpo torturado pela dor e a alma incompreensivelmente grande, embora com o sacrificio da propria vida, como féz Senta com o holandés do “Navio Fantasma”. Fig. 52. Pégina caracteristica do caderno de anotagdes de Beethoven. Como todos 0s grandes solitarios, Beethoven ama a natureza com téda a alma. Em certos pontos, substitui-lhe a religido que éle sente de maneira assaz diversa da de Bach, por exemplo. Dilo éle mesmo com as palavras de Kant: “O céu sobre mim e a lei moral dentro de mim”. Ai esté a sua crenga; mas nunca discute a existéncia de Deus, contanto que ésse Deus nao tire da terra a luta e dos homens a luta consigo préprios. Certa vez, ao Ihe devolver um copista o “Fidélio”, encontra Beethoven na ultima pagina as habituais palavras: “Com a ajuda de Deus”, e acrescenta com amargura: “Homem, ajudate a ti mesmo...” 116 Longos passeios 0 conduzem aos verdes arredores da cidade onde, longe dos homens, encontra paz e inspiracio. Mal comeca o verao, abandona a morada e instala-se numa casinha A entrada dos bosques ou nas vinhas. Muitas das suas obras e também o “Testamento de Heiligenstadt”, de 6 de outubro de 1802, nasceram nessas estagées. A Sinfonia Pastoral sintetiza seu amor 2 natureza num grande qua- dro descritivo, completamente névo para aquela época; mas nao nos esquegamos de que as vozes da floresta, o murmiirio do riacho a que se mistura o gorjear das aves, j4 nao eram fatos imediatos e alegres im- presses mas triste lembranca de um tempo mais feliz, em que os ouvi- dos tudo lhe transmitiam. Os bidgrafos de Beethoven, como todos os dos grandes criadores, muitas vézes afirmaram a existéncia de estreita ligacio entre vida e obra, ou seja, que os trabalhos otimistas se originam de época cheia de éxito, de sauide, e as obras tragicas de um periodo de depressio preocupacées crescentes. Nao acredito nessa relacio. Onde estd ela, por exemplo, no caso da nona sinfonia de Beethoven? Nunca se ex- primiu musicalmente juibilo mais vivo que o da ultima parte dessa sinfonia, na qual, contrariando tédas as regras, a voz extatica humana se junta ao delirio dos instrumentos. Lemos uma comovedora anota- Go no calendario de 1823 de Beethoven justamente nos dias em que, sem diivida, trabalhou na gigantesca obra: “De | a 6 de junho... Tempo horrivel... Nada para comer. Nao! A relacio entre vida e obra é muito mais complicada. Mesmo que haja casos em que a felicidade, 0 éxito e o amor se transmudem imediatamente em sons, em versos, em céres, nfo podemos erigi-los como norma. A férga criadora do génio quase nunca se origina das imediatas circunstancias da vida, mas de uma segunda vida interna, na qual se unem milhares de imagens secretas. Essa segunda vida, independentemente da existéncia real, age as vézes como espécie de invélucro protetor da alma. Com isso nfo pretendemos dar a entender que o génio nao sofra ou nio se alegre. Em certos casos, éle pode ser até bastante sensivel, apesar de, por outros motivos, portar-se como qualquer mortal comum. Mas 0 que para éste é ponto final, para o génio é ponto de partida... para a obra. De ano a ano aumentam o sofrimento e a solidao de Beethoven. As guerras de NapoleZo provocam mudancas significativas na vida de Viena; a aristocracia segue o imperador para o exilio e a inflacio monetaria, conseqiiéncia de tédas as guerras, arruina intimeras velhas fortunas. Ambos os fatos interferem no destino de Beethoven, pela sua ligagio com a aristocracia. A morte, por sua vez, ja abriu varias lacunas no circulo dos seus amigos. Por outro lado, os novos ricos, outra conseqiiéncia inevitavel de anos atormentados, precisam de tempo para subir ao nivel cultural da classe antes dominante. O povo, mais louco por musica do que nunca — o que é também resultado dos fatos mencionados — adora a 6pera italiana e a valsa que a tudo inunda com o seu acalentador tempo de 8/,. Rossini, visitando Viena, vai A casa de Beethoven e 117 encontra um homem cansado, amargurado, surdo, que até parece le- var a mal ser o visitante celebrado pelo povo nas ruas como triun- fador. E os deuses locais chamam-se Johann Strauss e Lanner... A miséria penetra na casa de Beethoven, cujas notas nos falam tris- temente da pouca exatiddo dos copistas, da luta permanente com as criadas que, em certas ocasides, chegam a ser substituidas quase té- das as semanas, das desagradaveis vicissitudes em térno da tutela do sobrinho, de centenas de adversidades, da sua desconfianga para com todos os que o cercam, dos seus desgostos financeiros, dos seus proble- mas com a morada e as doencas. Mas as mesmas mios que nos transmitem noticias dessa tristeza did- ria, escrevem paginas sobre paginas de musica. Em cada uma rompe © autor outra corrente da tradicio, em cada.uma procura novos ca- minhos. As suas idéias jé se nao exprimem na forma cuidadosamente medida de Haydn e Mozart; Beethoven é a verdadeira ponte entre o rococé musical, ao qual pertencem ainda visivelmente as suas primei- ras obras, € o romantismo, em que um névo contetido cria novas for- mas. Mas é ainda mais: nao lhe pertence apenas o desenvolvimento da forma sinfénica, a inclusaéo da voz humana numa forma até ent&o exclusivamente instrumental, a criagéo de uma nova técnica pianistica, © aumento ou diminui¢ao arbitraria das partes de uma forma, sendo também a indicagdo do caminho para o abandono das leis basicas da musica em vigor por centenas de anos. Os seus ultimos quartetos para cordas, espécie de saudacdo de além-tumulo, sio, musicalmente falando, precursores do “Tristéo” e do completo abandono da harmo- nia, melodia e ritmo, no século XX. Jd Robert Schumann considera essas obras de musica de cimara, que ainda hoje representam os maio- res problemas, os limites maximos atingidos pela arte e fantasia hu- manas. Endo é sem razio que as compara a algumas obras de Bach cuja “interpretacio por palavras” deve “naufragar”. Também Biilow sente, de uma maneira ou outra, o parentesco existente entre os dois génios e explica: “O Cravo bem Temperado ¢ 0 Velho e as Sonatas de Beethoven o Névo Testamento. Devemos acreditar em ambos...” E Wagner, em cuja vida a “Nona” de Beethoven logrou um significado especial, disse certa vez: “Creio em Deus, Mozart e Beethoven. Os seus manuscritos sio, talvez, os mais intzressantes dentre todos os que examinamos dos grandes musicos. A enorme luta, realmente titanica, que éle sustentou consigo prdprio para exprimir as suas idéias, no mais puro dos estilos, e para a realiza¢io de tantas coisas quase inexprimiveis, est descrita em milhares de flhas. Creio que nao é exagerado supor que Beethoven escreveu, modificou, riscou, melhorou cada uma das suas obras vinte vézes, e que, em alguns casos, quase nada conservou da forma original na partitura terminada. © que foi para Mozart incompreensivel facilidade — escrevia em poucas horas numa noite de viagem, na diligéncia, sem jamais ter de mudar uma tinica nota — 0 que para Schubert parecia um ditado de séres sobre-humanos, é para Beethoven luta, amarga luta na qual 118 se disputa ferozmente cada centimetro de terreno. Mozart compunha com um sorriso nos labios, Schubert completamente arrebatado; Beetho- ven fugia do convivio dos semelhantes, escondia-se para levar a térmo, sdzinho com o intimo atormentado, a mao trémula e o rosto desfigu- rado pela dor, o empreendimento em que mister Ihe era vencer ou morrer... O seu trabalho é misso e obsessio ao mesmo tempo. Ainda em 1814, tenta esconder a doenga dos ouvidos. Nesse ano, com esférco inaudito, d4 o wiltimo concérto de piano em Viena. E oito anos mais tarde, verifica-se 0 que até o fim da vida lhe pesaria na alma, sendo a causa a sua unica épera “Fidélio", cuja estréia em 1805 se realizara sob estréla desfavoravel. Naquele tempo, os oficiais franceses compunham a maior parte do ptiblico e quase nada com- preendiam da idéia e da lingua. Beethoven, ja incerto quanto ao estilo de pera, mudou-a varias vézes no decorrer de muitos anos. A essas alteragées devemos as trés ouvertures de “Leonore” e a quarta, defi- nitiva, que tem o nome do trabalho. Em 1822, Beethoven deseja diri- gir o ensaio geral da ultima forma. Pretende desprezar a doenga ou, mais uma vez, enganar a todos sdbre o seu verdadeiro estado? Foi um caos completo: palco e orquestra desentenderam-se, e todos ficaram a olhar, temerosos, o mestre que continuava a dirigir. De repente, té éle a terrivel verdade na expresso dos que o cercam. O seu fiel amigo Schindler (que nos pinta a cena) escreveu-lhe estas linhas: “Por favor, ndo continue; explicar-Ihe-ei tudo em casa”. Mas a explicacio j4 nao é necessdria; alquebrado, Beethoven cai sdbre uma cadeira e por mui- tas horas é incapaz de levantarse... No inverno de 1826-1827 sente aproximar-se o fim, e sabe que nenhum médico poderd salvé-lo. Pronuncia, entio, as orgulhosas palavras: "A minha obra estd finda..." No dia 24 de marco de 1827 comega a ago- nia; dois dias depois, durante a tarde, enquanto I4 fora ruge a tem- pestade de neve que, de stibito — no instante exato da sua morte — € interrompida por um fulgido raio seguido de estrondoso trovao, aquela alma elevada deixa para sempre o pequeno corpo torturado. Deus pa- recia saudé-lo como saudara seu préprio Filho na sombria noite do Gélgota. O entérro de Beethoven contrasta fortemente com o de Mozart. Téda a cidade de Viena se movimenta, e milhares de civis se enfileiram, enquanto varios pelotées de tropas prestam a derradeira homenagem ao cidadao honorario. Oito ilustres misicos se encarregam de Ihe trans- portar o ataide. O maior poeta da Austria, Grillparzer, escreve a ora- Gao finebre declamada por famoso ator da cérte: “Foi artista, mas também homem, e homem no sentido mais elevado e completo. Por se afastar do mundo, chamaram-lIhe hostil, e por evitar o sentimento, chamaram-lhe frio. Ah, quem sabe que é inflexi- vel nfo foge! Sio sempre as.pontas mais finas que mais facilmente se embotam ou quebram. O excesso de sentimento foge ao sentimento! file fugiu do mundo por nao achar em sua alma cheia de amor meios com 0s quais se Ihe pudesse opor. Afastou-se dos homens depois de Ihes haver dado tudo e nada receber em troca. Ficou sdzinho, por 1g nao Ihe ser possivel encontrar outro “eu”. Mas até ao timulo con- servou um coracio humano para com todos, e foi paternal para os seus.” Entre a multiddo, achase um méco que passa freqiientemente os dedos pelos olhos, por trés das lentes dos éculos. Poucos 0 conhecem, no enorme séqilito, e ninguém sabe que naqueles dias se desvaneceu para éle o grande e sagrado sonho de conhecer a Beethoven e dizer-Ihe como o venerava, éle, o pequeno musico de arrabalde, Franz Schubert. “A minha obra esta finda...” Como é maravilhoso poder proferir tais palavras no fim de uma vida cujo lema foi: “Muito has de fazer nesta terra; nao pares! A sua obra! Hoje é evangelho de milhGes de criaturas no mundo inteiro e nas horas de confusdo. Nao é facil aproximar-se dela que sé se descerra em téda a sua grandeza ao porfiador honesto. Que mencio- naremos em primeiro lugar? As suas nove sinfonias? A sua obra féz do nove uma espécie de ntimero sagrado; nenhum mtisico posterior 0 ul- trapassou durante um longo século. Contava Beethoven trinta anos quando ecoaram os sons da sua primeira sinfonia, em Viena, no dia 2 de abril de 1800. E um trabalho que segue formalmente as regras de Haydn; apesar disso, vislumbra-se ca e 14 uma nova idéia que se afigura revoluciondria aos criticos da época. Que dirdo éles das futuras? As qua- tro partes da sinfonia j4 se haviam erigido regra intocdvel: a primeira, movimentada, as vézes alegre, outras herdica, fortemente ritmica e im- pregnada de fércas estimulantes, tem a forma de sonata por base, uma feitura bastante severa e complicada de uso corrente na sonata, na musica de camara e na sinfonia. Enquanto nos mestres do século XVIII a sonata ainda consta de apenas dois temas, vemo-la em Beethoven com trés. De acérdo com a regra natural de contraste, os trés temas empregados na primeira parte das sonatas (ou sinfonias) devem ser 0s mais diversos possiveis. O arcabouco da sonata, que j4 com Haydn e Mozart esta fixado nos seus grandes contornos, nfo sofre grandes modificages com Beethoven: continua a ser exposi¢éo (dos trés temas), desenvolvimento, volta dos temas ou reexposi¢ao, coda. Somente as medi- das é que se modificam, e nfo pouco, gracas ao temperamento dra- matico do nosso artista que prefere as partes que Ihe permitem maior liberdade de forma (o desenvolvimento e a prépria coda) e as quais con- cede duragio muito maior. A segunda parte da sinfonia nao tem forma determinada; hd sinfonias que empregam, nessa parte, a sonata, en- quanto outras preferem a forma mais simples da cangio. O cardter da segunda parte, dentro da obra ciclica a que chamamos sonata, quar- teto, sinfonia, também é conservada, nas suas linhas gerais, por Beetho- ven, € constitui o pdlo mais estavel da primeira, podendo as vézes ter- minar lentamente, como cangio, ser melancélica e sentimental. Mas Beethoven introduz importante novidade na terceira parte da sinfonia (o mesmo se da com as suas sonatas): modifica o minueto da cérte que sempre se encontia rras obras de Haydn e Mozart, e com o qual ja nfo condizem nem o seu cardter nem a sua época, num “scherzo” mais dramatico e vivo; as vézes, conserva-o no velho tempo de 3/, do 120 minueto, as vézes muda-o para 2/,. Finalmente, vem a iltima parte, a quarta, a mais répida, movimentadissima, alegre, tendo por forma, algumas vézes, a do rondé em que sempre volta um tema principal, interrompido por outros secundarios. Em certos casos, vemos também a quarta parte em forma de sonata. Fig. 53. Beethoven em Viena. Desenho de J. P. Lyser. Por conseguinte, Beethoven segue mais ou menos as regras no que diz respeito ao arcabouco externo da forma. Na “Nona” transfere a segunda parte para o lugar da terceira, e faz do minueto um “scherzo’ cujos temas contrastantes Ihe tiram qualquer cardter de musica de danca. Especialmente dentro da estrutura, leva a efeito mudangas de equilibrio, desprezando certas proporcdes empregadas por Haydn e Mozart. Com éle sucede, uma vez que outra, e em virtude do espirito dramitico, ser a “coda”, que antes era pequena ¢ insignificante, a parte mais importante da sonata, e tornar-se o desenvolvimento maior que a exposicdo e a repetico juntas. Algumas das suas sinfonias se iniciam com uma lenta introducao que ainda nao pertence & exposig¢ao dos temas, ou entdo esta é preparada com outras melodias muitas vézes mais vivas, como se vé na “Nona”. O que é névo nas Sinfonias de Beethoven é 0 contetido, tanto que em alguns casos podemos falar de verdadeiros “dramas musicais sem palavras” 121 A primeira Sinfonia, com excegio de pequeninos trechos, nio revela ainda o génio que se nos deparard nas restantes. Como poderia éle, ape- sar da sua impetuosidade, superar os seus precursores logo na pi meira experiéncia? Todo artista, inclusive o génio, comega com o modélo. A primeira Sinfonia é uma pega curta, pois nao dura mais do que 25 minutos; é em dé maior e Beethoven deu-the, entre as suas obras, o mimero 21. Em tempos recentes, ouve-se as vézes falar de uma sinfonia N.° 0, ou sinfonia de Jena, que se atribui a Beetho- ven. O caso nao esta esclarecido. Seja como fér, o proprio mestre nio a aceitou na série das suas sinfonias, numeradas por éle préprio de 1 a 9. Deve ser oriunda dos seus dias de mocidade em Bonn, e 0 manuscrito foi descoberto em Jena, em 1912. Nao possui grande valor na obra de Beethoven (1). Data de 1802 a segunda Sinfonia, em ré maior, que tem o mimero de opus 36. Aquéle foi um dos anos mais tristes da vida do artista: a épo- ca do testamento de Heiligenstadt. E nessa obra encontramos muito do anelo que aquelas palavras exprimem. Ela também, considerada no seu todo, nao passa de simples transi¢io. Foi ouvida pela primeira vez em 5 de abril de 1803, em Viena. Talvez interesse ao leitor saber © destino das Sinfonias de Beethoven: a primeira foi executada j4 em 1801 fora de Viena, no Gewandhaus de Leipzig, em 1807, em Paris, embora apenas pelos alunos do Conservatério, enquanto a primeira execucao publica regular se realizou, nessa cidade, em 1880. Em 1818 teve ela grande éxito em Londres. A segunda Sinfonia foi executada no mesmo ano de 1818, no dia da fundacao da Sociedade Filarménica, parecendo aos contemporneos coisa tio pesada que foi resolvido pro- porcionar-se ao piiblico meia hora de intervalo... Em 1821 foi ouvida pela primeira vez em Paris; a acolhida dividiu-se: 0 wnico que lhe teceu um hino de elogio foi Berlioz. O “verdadeiro” Beethoven das Sinfonias, a nosso ver, comeca com a terceira, a que éle proprio chama “Heréica”, em mi bemol maior, opus 55. A sua primeira idéia se origina sem divida do trégico més do Testamento de Heiligenstadt, outubro de 1802. J4 naquele tempo hhavia Beethoven anotado temas para a sua “Heréica”, apesar de estar ainda trabalhando na segunda. Pelos fins de abril e coméco de maio de 1803 terminou a gigantesca feitura da terceira, enveredando por caminhos inteiramente novos, ampliando dimensées e dando a uma sinfonia inteira, pela primeira vez, 0 caracteristico programatico. Cha- moulhe “Napoleio”, como j4 dissemos; mas éle préprio, enfurecido, mudou 0 titulo, quase rasgando o papel, para o de “Sinfonia Herdica”. Depois de dois compassos da orquestra, inicia-se imediatamente a obra com o tema principal — por conseguinte sem longa introdugio, usada por Beethoven na primeira e na segunda sinfonias. A segunda parte é a famosa “Marcha Fiebre”; parece-me, nado marcha, e sim prece de morte, comovedor queixume, um inteiro poema sinfonico (apesar (1) Em estudo publicado na “Music Review", maio de 1957, 0 jovem ¢ eminente musicélogo norte-americano H.C, Robbins Landon atribui a autoria da “Sinfonia de Jena” a0. violinista e compositor alemao Friedrich Witt (1770-1887). (N. do R.). 122 de nao existir naquele tempo essa expresso). A terceira parte é um “scherzo” ruidoso ¢ fantdstico, todo ritmo e o final um tema curto e marcante com grandiosas variagdes sobre um fundo bisico jubiloso, uma vez sé retido para um tempo mais contemplativo. Viena ouve a obra pela primeira vez, numa execucio particular, no dia 7 de abril de 1805; dois anos mais tarde, chega a Leipzig, em 1814 a Londres ¢ em 1828 a Paris. Na Russia, a terceira tornase a primeira Sinfonia de Beethoven a ser ouvida em publico, em 1833. Na Italia sé foi conhe- cida em 1866; entre os ouvintes estava Listz. A quarta Sinfonia, em si bemol maior, opus 60, data do ano de 1806. Apés lenta e pensativa introdugao, segue-se um tema principal, quase alegre, uma parte bastante curta de execugao. & como se Beethoven, depois dos incriveis progressos da “Heréica”, houvesse desistido de der- ribar a ponte para o passado. Em todo caso, a quarta é muito menos revoluciondria que a terceira e quinta o que nao significa, natural- mente, nada contra o seu valor musical: addgio como 0 que se encerra nessa sinfonia é raro até nas criagdes de Beethoven. A estréia dé-se em Viena, em 1807. A obra foi aceita com muito mais compreensio que a terceira; a sua duracao, de pouco mais de meia hora, pareceu ao publico muito mais natural que os cingiienta minutos da “Herdica”, sem diivida a mais longa sinfonia até entdo composta. Vem, depois, a quinta, hoje a mais ouvida, talvez. E em dé menor — pela primeira vez escolhe Beethoven uma variedade de tons menores como fundamento de sinfonia — e constitui 0 opus 67. Parece que Beethoven, apés terminar a terceira, pensou imediatamente na quinta, mas possivelmente um repentino impulso o levou a intercalar entre as duas gigantescas obras a quarta. Criou a quinta pelos fins de 1807 ‘¢ coméco do ano seguinte. A sua estréia verificou-se em 22 de dezem- bro de 1808; no programa, para nés, hoje, inexplicivelmente sobrecar- regado, constavam, além de duas novas Sinfonias do mestre (a quinta a sexta), uma fantasia para piano, a grande fantasia para cro, piano © orquestra, partes de missa e arias. O éxito foi bastante mediocre. Em 1809, 0 Gewandhaus de Leipzig corrigiu o érro, e desde entao essa sinfonia abre caminho muito mais rapidamente que suas irmas. Os primeiros compassos da “quinta” tornaram-se mundialmente famosos: S40 0s compassos que — diz-se que Beethoven o afirmou — ribombam como golpes do destino 4 porta. O “andante com moto”, a segunda parte, contém variacdes de uma belissima melodia; a terceira parte, apenas intitulada “Allegro”, mas pelo seu cardter um “scherzo” extraor- dinariamente dramatico, encerra um dos passos mais geniais do mes- tre; a transi¢do sem interrupcao para o final, lenta gradacao ininter- ruptamente dindmica, cujo desfecho no jubilo em dé maior da parte final é de efeito inimaginavel, impressionante. Como € diferente a sexta Sinfonia! Beethoven chamou-lhe “Pastoral”, e deu a cada uma das partes um titulo: “Despertar de alegres senti- mentos 4 chegada ao campo” é 0 da primeira parte, sem que o assunto mude a estrutura; a segunda parte, o andante idilico, intitula-se “Cena junto ao riacho”. As aves que ali cantam (e que Beethoven indica, no 123 texto, rouxinol, cuco € codorniz) fazem-no de maneira inteiramente irreal; é mais sentimento do que musica imitativa, como disse 0 proprio Beetho- ven. “Alegre reunido de camponeses” é 0 nome da terceira parte, com a ual 0 autor, quase imperceptivelmente, volta ao velho cardter de lanca da terceira parte das sinfonias. Beethoven continua com a mo- vimentada parte intitulada “Tempestade, Tormenta”, sem interrupcio, como se a danca campestre fdsse cortada pela furia da natureza. E novamente, sem pausa, passa o temporal. Com uma “Cangio Pastoral”, “Sentimentos alegres € gratos depois do vendaval”, termina a obra. O grande amor de Beethoven 4 natureza transparece nela, nos tons que eram novos nas suas obras e na sua época. Nova também era a forma, composta, pela primeira vez, de cinco partes. O proprio artista no se valeu mais da novidade, assim como, por muito tempo, nenhum dos seus sucessores. Sobretudo nova é a idéia de um programa extramusical, que nos anos seguintes conduziria ao poema sinfdnico. A estréia da “Pastoral” verificou-se no mesmo concérto ji mencionado (22 de dezem- bro de 1808). Londres ouviu-a trés anos mais tarde, Paris em 1829 e Nova York em 1853. Fig, 51. Uma das muitas centenas de félhas de anotactes de Beethoven para a “Afissa Solemnis” 0 “Dona nobis pacem” com a observacao: “Dona nobis pacem ainda em menor pois pede-se a paz, por isso a paz tratada separadamente, como se jd tivesse chegado.” A sétima Sinfonia, em Id maior, opus 92, foi chamada por Richard Wagner a “Apoteose da danca”. Com efeito, nenhuma outra Sinfonia do mestre contém tal abundancia de temas vibrantes e ritmos movi- mentados. Ja comecam éles na primeira parte, depois de lenta intro- dugio, detém-se um pouco na segunda parte para ceder o lugar a um andante amével, rugem particularmente furiosos no presto intitulado “scherzo” € chegam ao auge, numa verdadeira orgia do final. & com- preensivel que essa sinfonia tenha encontrado maior aceitagio por parte do piblico daquela época; a sua estréia se deu na universidade de Viena, em 8 de dezembro de 1813; foi repetida duas vézes durante © congresso, em 1814, executada em Leipzig em 1816, em Londres em 1817, em Paris em 1829, na Russia em 1840, na Espanha em 1866, ena Itdlia em 1874. 124 Sdmente poucos meses separam a sétima e a oitava Sinfonias; nesta ultima, Beethoven volta ao tom da “Pastoral”, fd maior, e o numero de opus é 0 que se segue imediatamente ao da sétima: 93. O que mais sur- preende o ouvinte da oitava Sinfonia é o alegre tema fundamental da obra. 1812? Serd o eco da sua viagem as estagées de agua da Boémia? Ser o eco de uma alegria? Os historiadores procuram raz6es externas € no as encontram, ou quase ndo as encontram. Sem duivida, porém, a “Oitava” é um caso raro na vida de Beethoven; em quase nenhuma ‘outra obra precisou éle de tio poucos planos e anotagées. E ja vimos com que afinco teve de lutar para criar os seus trabalhos. A oitava &é também sob outros aspectos uma excecao entre suas irmas: nao Ihe faltam apenas os passos melancélicos e muitas vézes tragicos, da maioria das outras; falta-Ihe também a expansao lirica. E a mais reduzida, a mais curta de tédas. E contém no lugar da terceira parte um verda- deiro minueto! Talvez seja a segunda parte a mais notdvel, cheia de espirito alegre e completamente despida de sentimentalismo. O seu ritmo imita o metrénomo, e 0 tema nasce de um gracejo dedicado por Beethoven ao inventor daquele instrumento, seu amigo Mael- zel (que também construiu varios instrumentos de audicgo para Bee- thoven). Apesar de tudo, nao foi grande o éxito do trabalho; em 27 de fevereiro de 1814 ouviu-se pela primeira vez a oitava em Viena; em 1818, mais uma vez Leipzig foi a primeira cidade alema a conhe- cer as sinfonias de Beethoven; em 1826, foi executada em Londres, em 1832 em Paris e em 1846 em Sao Petersburgo. De repente, irrompe como um raio, um terremoto, um dilivio, a “Nona”. A oitava e a nona nao parecem compostas pelo mesmo homem. Bem que dissemos noutra parte: o génio nunca € 0 mesmo. Entre a Ultima e a pentiltima sinfonias do nosso artista ha um grande inter- valo, 0 maior que separa duas das suas obras sinfonicas: onze anos. Em novembro de 1822 — é 0 ano em que Rossini, 0 famoso compo- sitor de dperas, chega a Viena e faz uma visita de cortesia ao grande mestre surdo, recebido, aliés, muito friamente por éste (1). A Filarmé- nica de Londres remeteu a Beethoven a importancia de cinquenta libra: Beethoven prometeu em troca, para o ano seguinte, uma nova sin- fonia. Mas precisou de muito mais tempo para a compor. Aos outros males, que j4 0 torturavam quase crénicamente naquele tempo, se acrescentou uma conjuntivite. Em fins de fevereiro de 1824 termina éle a gigantesca obra, com o titulo de “Grande sinfonia, escrita para a Sociedade Filarménica de Londres”. O manuscrito definitivo, porém, (1) Existe outra versio sibre éste encontro. Ao chegar a Viena, na primavera de 1822, Ros- sini procurou, no sem algum trabalho, entrevistar-se com Beethoven, fazendo-o gracas inter. Yencia do. abade Carpani O mestre,'surdo, enfermo, miseravel, produziu-Ihe. impressio. de “infinita tristeza”. Em mau italiano disse-Ihe: “Ah, Rossini! Sois 0 autor do “Barbeiro de Sevilha"? Felicito-vos, € uma excelente Spera "buffa". Li-a ‘prazerosamente e me rejubilei. Enquanto existir teatro lirico na Italia, “O Barbeiro” seré representado. Jamais tentai outra coisa a nio ser Opera comica. Seria forcar vosso destino”. Escrevendo a Freudenberg, em 1824, afirmava Beethoven: “Ros ‘sini € compositor talentoso e melidioso; sua miisica acompanha o espirito frivolo e sensual de seu tempo. Tamanha € sua produtividade que para compor uma épera necesita apenas de algumas semanas, 30 passo que ‘os alemies demandam, para tanto, alguns anos”. V. Lord Derwent, “Rossini and ‘Some Forgotten Nightingales", trad. Robert ‘Alos, Paris, Gallimard, 1937, pigs. HAB-140; John Ne Burk, "The Life He Works of Beethoven", New Work, 1946, pags. 27218. . do RB). 125 esti dedicado ao Rei da Prussia, e é classificado como opus 125. E em ré menor — a tinica sinfonia em tom menor, com excegao da quinta. Na nona, Beethoven destréi quase todos os lagos que o prendiam & habitual sinfonia. Esta dura muito mais do que uma hora, e nela 0 “scherzo” ocupa o segundo lugar; a parte lenta esta no terceiro; as. proporgées dentro das partes esto alteradas para maior efeito dram4- tico. A obra é coroada por uma inovacio: a inclusio da voz humana, solistas e coros, na estrutura da sinfonia. Muito se escreveu a respeito da nona sinfonia; os maiores musicos, entre éles Wagner, tentaram interpretacées. E todos, sem excecao, antepuseram o contetido humano ao contetido musical, o que significa que aqui foi dado 0 passo do tra- balho musical puro, absoluto, & expresso de uma idéia. Esta no podia ser maior: humanidade, fraternidade, amor, fé... tudo numa grande pala- vra: alegria. “Ode a alegria” de Schiller & 0 texto que serve de inspi- ragio a Beethoven. O artista teve a intencao de inicid-la com as se- guintes palavras na béca de um solista: “Cantemos a ode do nosso imortal Schiller!”, como se depreende das suas anotagdes. Mas na forma final, conseguiu efeito extraordinariamente dramatico: os componentes da orquestra comecam os temas das trés primeiras partes, um depois do outro, os quais, interrompidos, sio aparentemente abandonados. De stibito, ouve-se a voz do baritono: “Amigos, abandonemos ésse tom por outro mais agradavel, mais alegre!” E entio entoam, solistas e céro, 0 grande grito de jubilo: “Alegria, alegria, alegria, divina cen- telha, filha do Elisio! Quase que Viena perdeu a estréia da nona; mais uma vez, porém, todos os amigos se uniram para que tal nao sucedesse, ¢ a cidade imperial teve a gldria de ouvir pela primeira vez tédas as sinfonias de Beethoven. A “Nona”, executada e cantada em 7 de maio de 1824, foi, contrariamente a outras precursoras, acolhida com entusiasmo. O re- gente Umlauf teve de chamar a atencdo de Beethoven, j4 completamente surdo, para o aplauso ensurdecedor do piublico, sentado atras déle (}). Em 1826, ouviu-se a obra em Londres, e em 183] em Paris. Em 1842, Nicolai, fundador da Filarménica de Viena, organizou uma apresen- tacZo com 750 cantores e 450 misicos, ao passo que na estréia de 1824 nao devem ter ultrapassado 80 e 70, Em 1836, a Russia conheceu a nona sinfonia; em 1878 foi a vez da Italia (onde antes j4 haviam sido ouvidas as trés primeiras partes isoladas). Nova York deliciou-se com ela, pela primeira vez, em 1846. Poderiamos falar das sonatas de Beethoven tanto quanto falamos das suas sinfonias. Sao elas, se incluirmos apenas as obras numeradas por éle, trinta e duas. A variagio é maior, mais colorida e miltipla do que no caso das sinfonias. Freqiientemente sdo confissdes pessoais de Beethoven. Formalmente encontramos nelas tédas as possibilidades, desde as académicas, pequenas, 4 moda de Haydn, sonatas quase sona- | (1) Quem chamou a atengio de Beethoven foi a fabulosa “prima.donna" contralto Caroli Unger, a qual, juntamente com a soprano Henriette Sonntag, tenor Anton Hainzinger, 0 baritone. hGngaro Joseph’ Seipelt, compos 0 quarteto de solistas vocais, na memordvel noitada de extréia. (N. do Ro) 126 tinas, até 0 completo rompimento da forma e a sua aproximacio & fantasia livre. O numero das partes é varidvel, bem como o é a sua seqiiéncia. Muitas tém titulo: “Patética”, “Appassionata”, “Les Adieux”. Entretanto 0 titulo que se tornou t’o popular, “A Sonata ao Luar” em lugar de “Quasi una Fantasia”, opus 27, é uma qualificagao pos- terior € algo temerdria. E 0 que se nao poderia dizer da unica épera de Beethoven “Fidé- lio", elogio do amor conjugal e grito de batalha “In Tyrannis", ao mesmo tempo? Essa obra, cuja profunda ética a pée bem fora da épera comum, é 0 verdadeiro filho da dor de Beethoven; nela, apesar de dezenas de anos de trabalho, pouca alegria encontrou. Que dizer das maravilhosas paginas da “Missa Solemnis”, t4o pouco doutrindria e to profundamente religiosa? Beethoven intitulou-a com palavras que po- diam servir de moto para tudo quanto féz: “Do coragio... que volte para 0 coracio...” Que dizer da sua musica de cimara, da sua obra instrumental, dos ultimos quartetos que so um aceno do outro mun- do, muitas vézes incompreensiveis e terrificas na sua solidio? Que dizer dos cinco grandiosos concertos para piano, que repetem o mesmo desenvolvimento, a transigéo do classicismo para o romantismo, da feitura de musica para a expressio de idéias, a penetracao no terreno névo que fertilizou muitas geracdes. Apenas uma unica obra desejo ainda apontar, uma obra tio distante do mundo, to distante de tudo quanto é terreno e materialista como poucas outras no grande reino da arte: a segunda parte do concérto para violino. 127 16 SCHUBERT, OU A VIDA IRREAL Ha alguns anos, numa escola de Buenos Aires, foi feita interessante experiéncia: executou-se para as criangas de doze e treze anos uma sinfonia para que elas, a seguir, dessem as suas impresses. O resultado, como em tédas as experiéncias de tal natureza, foi surpreendente pela compreensio e pelo sentimento que as criangas demonstraram. Uma delas escreveu: “Na alma désse compositor deve ter imperado uma grande tristeza...” © compositor, cujo nome nio foi revelado as crian- gas, dissera 120 anos antes: “As vézes me invade uma incompreensivel melancolia...” A obra ouvida pelas criangas foi a “Sinfonia Inacabada”, eo tristissimo autor, Franz Schubert. E como falamos désse trabalho, ha em tal melancolia a explicagio do motivo pelo qual a sinfonia ficou inacabada (se é que realmente a sentimos assim). E-o certamente apenas sob 0 ponto de vista estilis- tico que exige de cada sinfonia daquela época quatro partes: a pri- meira forte, alegre ou ritmicamente assaz movimentada; a segunda lenta, lirica, muito melddica, e freqiientemente melancélica. Até aqui a “Inacabada” segue mais ou menos a norma classica, apesar de ja conter a primeira parte uma forte dose de melancolia. As duas partes, deveria seguir-se a terceira, alegre, dancante, quase sempre um minueto. (Sdmente Beethoven seguiu o seu proprio caminho e transformou o minueto de Haydn e Mozart num “scherzo” dramatico.) A quarta parte, por sua vez, devia ser a mais movimentada de tédas, turbulenta, arre- batadora, em certo sentido muito semelhante a “Stretta” da dpera italiana. (Nao foi sendo Tchaikovsky quem primeiro abandonou essa norma, com a parte final profundamente triste, lenta ¢ solene, a sua “Sinfonia Patética”.) Schubert compés as duas primeiras partes na idade de vinte e cinco anos; depois désse desabafo de melancolia, sentiu-se incapaz de acres- centar a essa obra téo dolorosa um minueto e um final alegre. Dei- xou-a, portanto, “inacabada” e enviou a partitura a um amigo em Graz. No legado déste foi ela encontrada muitos anos depois da morte de Schubert e somente entio revelada ao puiblico que a escolheu como sinfonia preferida, apesar de formalmente “inacabada”. Se Schubert tivesse sido um revolucionério como Beethoven, talvez possuissemos hoje a obra original terminada de uma maneira ou de outra. Mas éle foi tudo menos revoluciondrio; nao lutou contra o 128 4 esquerda: Luigi Cherubit A direita: Vincenzo Bellini (1801-1835). 60-1842). itografia de Julien. Quarto ato da “Norma”, de Bellini, no Scala de Milio. PRANCHA 29 ‘eatro Municipal de Estrasburgo. deménio na alma e tampouco contra o destino. A sua vida foi pro- vavelmente a mais tragica, mas éle nfo o sentiu. Haydn, Beethoven e Mozart conheceram o triunfo e viveram, pelo menos durante algum tempo, sem preocupagées materiais. Haydn e Mozart conheceram o amor; Schubert, porém, nunca teve lar nem cargos nem dinheiro, nunca foi amado quando amou e jamais gozou, a nao ser no circulo intimo de amigos, do prazer proporcionado pelo éxito. Uma fada bondosa Ihe deu duas vidas: uma terrena e pobre, mas alegre, e outra divina ou sobreterrena, rica, mas melancélica, que cons- tituiu o pais noturno dos seus sonhos e fantasias, donde a abundancia de melodias na sua alma. Fig. 55. Uma {6tha do livro de memérias de Schubert para Seraphine Schellmann, 1823(?). Gluck, Haydn, Mozart e Beethoven fixaram-se em Viena, atraidos pelo encanto dessa cidade e presos pela sua cultura e musica. Schubert nasceu em Viena. E talvez sua obra s6 possa ser perfeitamente com- la por aquéle que, em espirito, se transfira para a Viena de 1820, cujo povo como nenhum outro sabia mesclar alegria e melanco- lia. Cada melodia de Schubert é um pedaco dessa cidade, das suas velhas ruas e das verdes colinas de que Grillparzer, 0 maior poeta aus- tiaco, disse: “Olha a regio em volta de Kahlenberg e has de com- preender o que eu fui e 0 que escrevi”. © mesmo se pode dizer de Schubert. A cidade do Dantibio foi tudo para éle: bergo, ambiente e timulo. Mas nao foi nas elegantes ruas do centro, nem nos palacios em que viviam os amigos e mecenas de Beethoven que éle passou a sua curta 129 9 Histérla Misica existéncia: foi longe, muito longe num arrabalde. E como € dificil pretender conquistar, partindo dai, o centro de uma cidadel Para triunfar, € preciso vir de outros paises... Na vida foi Schubert um verdadeiro filho da sua cidade: alegre entre os amigos que merecem passar com éle para a posteridade, um boémio sem maldade, espirituoso. Chamavam-no carinhosamente “Franz]” ou “Bertl” (abreviagéo de Schubert) ou “Schwammerl” (“Cogumelinho”), © que era uma indireta ao seu corpo pequeno e gorducho sdbre o qual pousava enorme cabega. Havia entre os seus amigos artistas, como o ilustre pintor Moritz von Schwind, funciondrios sem importancia que escreviam poemas, cantores ou simples burgueses; mas todos eram uni- dos por um extraordinario entusiasmo pela arte e pelo afeto a Schubert no qual, com o instinto dos amantes da musica, pressentiam o génio. Como eram alegres e agradaveis as noitadas de musica e danga, e sem- pre solene o momento em que Schubert se sentava ao piano para exe- cutar as suas mais recentes melodias! E ninguém, nem os abastados burgueses, nem as formosas donzelas, que se enfeitavam cuidadosa- mente, chamavam a essas noites com outro nome senao o de “Schuber- tiadas” (Prancha 26). Como eram alegres os domingos, quando todos iam ao bosque de Viena e quando se misturavam melodias e poesias ao encanto do dia de verao e ao sorriso de criaturas felizes! Assim se passaram os brevissimos trinta e um anos da vida de Schu- bert. Mas bem diferente era o seu outro mundo, como que um deslum- bramento stibito, um flutuar sébre asas invisiveis da musica para um reino desconhecido, muito longe, onde havia tudo quanto nao havia na vida real... Mar e paisagens meridionais, montanhas de neve e cas- telos solitarios € inacessiveis, longinquos paramos, Oriente e Ocidente, céres, aromas maravilhosos, aventuras e viagens, € amor, muito amor. além de outras mil coisas que na realidade nao existem e nunca exis- tirdo... Assim, éle, modesto professor assistente do arrabalde de Liech- tenthal, perto de Viena, pobre e de aparéncia insignificante, tudo con- segue musicar, 0 que o mundo possui de belo, grande e sublime. F incrivel a forca com que irrompe o dom de criar em Schubert. Que oceano de criagées! Num unico ano — 1815 — nascem duas sinfonias, duas missas, quatro obras para o teatro, mais de 140 cangées, um quar- teto para cordas, duas sonatas para piano, coros, musica de igreja, € outras... E ainda ha estudiosos que buscam as causas da sua morte pre- matura! Aquéle homem s6 podia acabar no vulc4o do seu génio. Todo trabalho artistico é ato misterioso, milagre. E 0 trabalho de Schubert pertence, talvez, aos maiores milagres. Num determinado ins- tante ¢ loquaz, esté bem humorado e, com os amigos, espera que Ihe tragam a refeicio pedida; de repente, deslumbra-o uma forca divina, e éle vive a sua vida irreal e muito mais real ao mesmo tempo. Tudo, em volta déle, desaparece, e tudo néle se modifica; os seus olhos bri- lham, o rosto, habitualmente feio, ilumina-se com o reflexo da sua deusa, a musica. Melodia sébre melodia jorra do seu intimo, e imagem 130 sobre imagem Ihe enche a alma. As mfos procuram uma félha de pa- pel, a primeira que se Ihe apresenta, o cardapio, e imediatamente o cobre de notas... Quando Schubert volta de névo a si, come e fala, es- quece-se de tudo, e do papel também. Um amigo o pega, e 0 mundo conhece mais uma obra-prima: a “Stindchen” (Serenata) que hoje todos cantam. O mesmo Ihe sucede na sua atividade de professor quando, na pequenina escola paterna, deve ensinar as criangas a contar e escrever: © mesmo subitineo deslumbramento que faz com que éle se esqueca de tudo, 0 mesmo transbordamento de musica, e 0 mesmo descuido quanto a sorte da obra. Para éle a verdadeira felicidade esta no tra- balho, e nao no reconhecimento de um mundo que sempre lhe foi estranho. Maiores ambigées alimenta justamente nos trabalhos em que o éxito quase impossivel: deseja ver as suas dperas representadas em teatro. Mas os libretos, fracos demais, nao podem cooperar, além do que o seu talento pende mais para o elegiaco ¢ lirico do que para a épera, nao obstante Lieder de incrivel dramatismo. Certa vez, por intermédio de um amigo, examina um caderno de esbogos de Beethoven, seu idolo. E exclama, entSo, ingénuamente: e compor é to trabalhoso, prefiro nio comporl” Com éle, no entanto, 0 caso é diferente, porque 0 seu espirito criador se parece mais ao de Mozart. “Tal qual sinto escrevo, e basta”, séo palavras com as quais, ée préprio, ilustra a maneira pela qual compde. Nos anos maduros — nunca foi crianga-prodigio como Mozart — compés cérca de 1.250 obras de téda espécie. Jd falamos das suas Gperas que, apesar de todas as objecdes, contém partes valiosas. Deixou oito sinfonias; a nona foi interrompida pela morte (2). A sua musica para piano, as pecas para vio- lino, violoncelo e outros instrumentos sio verdadeiramente inspirada de melhor qualidade é a sua musica de cimara que, além de espléndi- dos quartetos ¢ quintetos, abrange um magistral octeto. A sua musica de igreja, profundamente religiosa, é sentimento puro e inocéncia in- fantil, sentimento puro, aparentemente sem técnica. E é justamente esse ponto que os seus criticos de todos os tempos comecam, censuran- do-o por “excesso de melodias” e “falta de contrastes”. Schumann, alma semelhante 4 déle, falou na extensdo “celestial” dos seus trechos de mtisica, enquanto o espirito popular dos vienenses sentenciava: “Jesus Cristo ‘teve muito trabalho para despertar Lazaro; Schubert torna a mato e f4-lo cantar eternamente...” (referiase ao oratério “Lazaro” de Schubert). Mas 08 louros, indiscutivelmente, cabem as suas cangées, os Lieder. Nessa forma mais intima e aparentemente tZo simples, cristalizase (1) "Schubert escreveu dex Sinfonias, Incerteza_nio_ existe relativamente as de n.°* 1-VL x€ maior (1813), si-bemol maior (1814-15), ré maior (1815), d6 menor (a “"Trigica’, 1816), si bemol maior (1816) e dé maior (1817-18). A correta seqi€ncia das quatro remanescentes € 2 seguinte: n° VII, Sinfonia em mi maior; n.° VIII, a “Inacabada"; n° 1X, 2 Sinfonia “Gmund: Gastein" (1825), 'cuja existéncia hoje é geralmente reconhecida; e’finalmente a Grande Sinfonia em dé maior, #' sumamente desconcertante deparar com a “Inacabada", correta ou fortuitamente numerada a “Oitava"-na Edigdo Completa, a0 passo que a Grande Sinfonia em dé maior, com: posta seis anos mais tarde, aparece como a ‘"Sétima” ~ Alfred Einstein, "Schubert", tad. David Ascoli, London, Cassell, 1951, pigs. 227-228. (N. do R.). 131 téda a grandiosidade das suas visdes. & impossivel analisar aqui as suas seiscentas cangées que éle compés entre 14 e 81 anos, as vézes varias num unico dia, Nem todas tém o auxilio de poesias de grandes artistas; ao lado de Goethe e Heine, inspiradores das mais grandiosas compos goes de todo o século XIX, e de Shakespeare, ha outros nomes hoje apenas lembrados por estarem unidos 2 musica de Schubert. Duas poesias de Goethe foram as primeiras que despertaram a fan- tasia do rapaz: “Der Erlkénig” (‘‘O Rei dos Elfos”) e “Margarida 4 Roda de Fiar” (Prancha 26). Schubert musicou-as e enviou-as a Weimar; mas a humilde dedicatéria parece nZo haver merecido o agradecimento do principe dos poetas... Numerosas cangdes de Schubert se agrupam em ciclos, como “A Bela Moleira” e a “Viagem de Inverno”; nesta ultima ja se percebe o pres- sentimento da morte; ali canta o artista 0 amor sem esperanga, domi- nado pela tristeza. Tudo est4 como que envolto em neve e solidio. Quando os amigos ouvem as cangées, estremecem, e talvez percebam pela primeira vez como dista déles e em que sombrios recantos peram- bula a alma do alegre “Cogumelinho”. A parte pianistica, que nas cangées dos precursores se limitava a simples apoio do canto, sem vida propria, ganha nas obras de Schubert decisivo significado e iguala-se na importancia a voz do cantor. Nela pinta o artista 0 murmirio do regato em centenas de variagdes, 0 sus- surro das {6lhas da tilia, o leve mergulho dos remos nas aguas placidas do lago, o jubilo da trombeta do postilhdo ao entrar a diligéncia na cidadezinha, 0 ruido da roda de fiar, sObre cuja monotonia se ergue a cangio dolente; ao piano cabem os majestosos acordes, com os quais a morte dissipa os temores da mocinha, a infinita soliddo do viandante que busca inutilmente a ventura, 0 vulto horrivel e fantastico do sésia na rua deserta, o inevitdvel caminho para a morte indicado pelo poste de itinerdrio fatidico. Os delicados sons de guitarra da “Serenata” no jardim noturno, a tranqiilidade sublime da noite estrelada, a melan- colia, a saudade, o amor, tudo cabe ao piano nas cangées de Schubert; possui éle centenas de matizes diferentes para a pintura de uma har- monia que nao tem paralelo, para o sol, para a primavera, para 0 vento de outono, para a neve, a solid3o dos campos, a noite de vero, a quietude dos bosques, e sempre para a Agua que o atrai misticamente, quer se trate de regato, de rio ou de mar. Nao é de estranhar que muitas das suas cangées tenham caido no dominio popular, visto que sairam do povo, da terra. Schubert é, entre os grandes miusicos da nova era, o primeiro, talvez, que, consciente, ou inconscientemente, explora a alma do povo. Mais uma vez cito Schumann: “Muitas vézes, quando contemplo Viena das alturas da montanha, vejo os olhos de Beethoven fitar certamente os Alpes, assim como os de Mozart, sonhadores, fitam o curso do Danubio, que parece sumir-se nos bosques, e Haydn sacudir a cabeca, incrédulo, diante da enorme altura de Santo Estévao, Unamos o Danubio, a Térre 132 de Santo Estévao, as distantes montanhas a um leve aroma de incenso catélico, e teremos a imagem de Viena; vibraro em nés cordas que, sem diivida, nunca vibrariam. Ouvindo a sinfonia de Schubert com a sua vida florescente ¢ romantica, aparece-me hoje a cidade muito mais vivamente, e compreendo porque é que nesse ambiente foi que tais obras puderam nascer”. ‘Até agora falamos da vida “irreal” de Schubert, da vida que deu ao mundo 1.250 obras, ¢ pouco ainda da real que, realmente, foi a irreal e que se desenrola com inaudita simplicidade e rapidez. Nada mais é, em suma, do que a encarnagio, 0 caminho para a misteriosa criagdo. “As vézes, pareceme nfo pertencer a éste mundo”, sio suas proprias palavras. Nasceu Franz Schubert em 81 de janeiro de 1797 no pobre mas alegre arrabalde de Viena denominado Liechtenthal. Naquele tempo, ja era Haydn famoso compositor, Mozart havia falecido cinco anos antes e 0 jovem e voluntarioso Beethoven era a sensaco dos saldes aristocraticos. ‘A casa em que veio 4 luz Schubert ainda existe em Liechtenthal, assim como a escola em que seu pai trabalhou e em que o préprio Franz, durante algum tempo, foi professor sem muito éxito; existe ainda a igreja na qual tocou érgio e, bem méco ainda, executou a sua primeira missa; nessa execugio uma bela jovem da vizinhanga, Therese Grob, cantou tao bem a parte do soprano que Schubert dela se enamorou, ndo podendo esquecé-la até A morte, apesar de haver a jovem contrafdo mipcias com um abastado burgués. No centro da cidade, erguese ainda a velha igreja dos jesuitas e a escola do convento anexo, em que Schubert foi acolhido quando, gracas A sua enorme musicalidade e A sua bela voz, conquistou um lugar gratis, éle, pobre filho de professor, entre filhos de burgueses ricos. Nas suas cartas do convento pede ao pai e ao irmio duas coisas: um pouco de dinheiro para nao ter que deitarse com fome no meio dos outros meninos, cuja mesada lhes permitia consideravel suplemento a parca refei¢do proporcionada pelo convento, e papel pautado. Quase nenhum outro grande misico viajou tio pouco como Schu- bert; nao conhecemos déle nenhuma viagem triunfal de concertos, nenhum convite para outras cidades ou cortes. Gerta vez, um famoso cantor de teatro de éperas de Viena, Vogl, que reconheceu o seu talento, levou-o 4s montanhas austriacas, onde, ocasionalmente também davam ‘concertos. Outra viagem leva o artista'A Hungria, as terras dos Esterhazys, descendentes do principe que firmou a fama de Haydn. Mas Schubert nfo passa a ser chefe de orquestra ou compositor do pa- lécio; nada mais é que o professor de piano da condéssa, durante um vero. Ter-se-4 enamorado dela, como afirmam alguns? “Quando quis cantar o amor, transformou-se éle em dor; e quando quis cantar a dor transformou-se ela em amor. Assim, de mim se apoderam o amor e a dor.” Pode descrever-se mais clara e comovedoramente 0 trdgico papel que o amor desempenhou na vida ¢ nas obras de Schubert? 133 Em 1827, vé éle a sua porta a realizacio de um sonho grandemente desejado: passar o verao na casa de amigos, e na companhia de Beetho- ven. Como aguarda o momento de poder conhecer pessoalmente o génio e mostrar-lhe, se possivel, alguns dos seus trabalhos tio insigni- ficantes, conforme éle cria. Talvez o mestre repetisse o que, segundo afirmam, disse ao ler um manuscrito de Schubert: “Este possui a divi- na centelha!” Mas o encontro nio se realizou; antes do fim da prima- vera de 1827, Beethoven deixava 0 mundo. No ano seguinte, Schubert adoece. No delirio da febre chama por Beethoven ansiosamente, busca-o. Em 19 de novembro de 1828 falece, na flor da mocidade, aos trinta e um anos. A familia satisfaz-Ihe o derradeiro desejo: estar, pelo menos na morte, perto de Beethoven: foi sepultado a alguns passos do grande artista. Se alguém, nos ultimos dias da sua vida, lhe tivesse dito que o século XX o incluiria entre os maiores mestres de todos os tempos, que as suas melodias viveriam nos labios de milhées de homens, e que as suas cang6es estariam sempre presentes no repertério de qualquer cantor, éle houvera respondido com um sorriso, creio eu, algo timido, algo incrédulo; ou talvez, como no dia em que uma jovem Ihe per- guntou: “Diga-me, senhor Schubert, sé escreve musica triste?”, houvesse retrucado com surprésa: “Haverd outra?” 134 7 A VALSA DO IMPERIO — O IMPERIO DA VALSA A danga é uma das fontes da musica. A sua histéria comeca com o inicio da humanidade e sé com ela acabara. A musica popular, idén- tica em grande parte 4 musica de danga, assume no decorrer dos séculos, em conformidade com a situagdo da ordem social, varias posigdes den- tro da arte. Na danca e na sua musica, mais que em qualquer outro terreno, € que se evidencia um reflexo fiel do tempo. As vézes, as duas tendéncias que chamamos musica popular e musica de arte se apro- ximam e se cruzam. A musica de danca e a musica culta percorrem, entio, paralelamente uma parte do caminho; a musica popular fecun- da a arte, podendo daf nascer alguma coisa de valiosissimo, artistico, ea arte faz 0 povo feliz. Durante longos séculos, no fim da Idade Média e no comégo dos tempos modernos, o abismo entre a musica popular e a misica artis- tica € tZo profundo como o abismo entre as dancas populares ¢ as da boa sociedade. A gavota e o minueto ainda sdo dangas exclusivas da sociedade, e grandes mestres — vimos alguns — escrevem musica com a mesma seriedade com que escrevem leve uma épera ou um con- cérto de cimara; transplantam até essas formas de dangas para obras sérias de musica, suites, sonatas, sinfonias e quartetos. Pelo contrério, as dancas populares nfo sio mencionadas na histé- ria da musica. Ainda no século XIX sao, na melhor das hipéteses, objeto de estudo por parte de alguns pesquisadores, mas despertam pouco interésse como, alids, tudo quanto vem do povo. E ainda a época em que a histéria sabe e fala muito dos poucos e pouco dos mui- tos, ou como se diz na “Opera dos Mendigos” de 1728, e talvez melhor na sua modernizacao, “Opera de trés tostdes” de 1928: “Uns estao no escuro e outros na luz; s6 se véem os que esto na luz, e nfo os que estio_no escuro...” A Revolucio Francesa muda repentinamente a ordem das coisas. Os que antes viviam na sombra passam a ver a luz; inicia-se a democra- tizacio e, com ela, penetram a musica e a danca populares nos saldes, para, logo em seguida, enveredarem pelas salas de concérto e teatros. A parede diviséria entre a danca da sociedade e a danca popular des- morona. A gavota e o minueto sao substitufdos por trés dangas de origem popular: a polca, a mazurca e a valsa. E esta ultima nio tar- dou em tornar-se simbolo de uma época inteira. A valsa é folclore vienense. Sem duvida, isso nao é inteiramente certo; 0 folclore sé nasce sobre o passado comum de uma populacio homogénea, e durante centenas de anos. Na valsa, porém, vé-se a alma 135 popular vienense; a danga de volteios passa a ser o simbolo de uma época feliz, de uma cidade que se entrega inteiramente ao prazer de viver, do talver ultimo idilio da histéria européia. O seu movimento giratério exprime a fusio das classes sociais, que se mesclam ao som de novas melodias ¢ ritmos embriagadores. Havia séculos que a danca no era tZo verdadeira manifestacio do cardter de uma época. Ao mesmo compasso de #/, dancam o aristocrata eo plebeu, o artista € 0 burgués, o segundo império francés e a jovem democracia norte- americana, os revoluciondrios de 1848 e a jovem Rainha da Inglaterra. Coisa semelhante sucede, embora em medida menor, as duas dancas de origem eslava ja mencionadas. Também elas penetram em todas as camadas sociais; € grandes compositores, como Chopin e Smetana, Ihes dao projecio mundial. Entre os mestres das valsas vienenses, encon- tramos importantes musicos, e entre os seus admiradores os grandes compositores do século. Fig. 56. Valsa do Margués de X. Os vienenses sempre tiveram predilec’o pela danca. Em 1786, um artista inglés nos descreve Viena como “atacada pela ftiria da danca”. Ja uma vez mencionamos o célebre Congresso, que reuniu as mais bri- thantes figuras da Europa. e cujo caracteristico foram principalmente as espléndidas festas, que o celebrizaram com o nome de “Congreso dan- ante” Justamente naquele tempo nasciam dois misicos que encaminharam o amor & danga e o entusiasmo musical dos vienenses por novas estra- das, dois mestres que comecaram a erguer a nova valsa A categoria de obra artistica. Trata-se de Lanner e Strauss. Mas entre os pais da valsa devemos também mencionar Schubert, e Weber que em 1819, em Dresden, publicou o seu “Convite A danga”, suite dangante com introdugao ¢ “coda”, portanto verdadeira antecipacdo da futura valsa de Viena. Também algumas dangas de Beethoven ja pressentem a valsa € nos mostram, assim como as de Schubert, o desenvolvimento da popular melodia que se deriva do “Landler” (danca campestre) 136 do “alemao”. Mas a verdadeira histéria da vitoriosa valsa vienense se inicia com Lanner e Strauss. Josef Lanner (1801-1843) era um homem sossegado, dotado de grande senso musical, cuja ambicao se restringiu a Viena. A sua orquestra de danga que tocava nos sales e, durante 0 vero, nos populares restau- rantes de jardim, tornou-se imediatamente tao conhecida como as suas composicées, entre as quais figuram nobres valsas como “Die Schén- brunner” (Os “schoenbrunenses”). Um dia, apareceu-Ihe como violinista um jovem misico, Johann Strauss (1804-1849). Mas o trabalho em conjunto dos dois nao durou muito, visto que o temperamento inquieto e, as vézes, violento do mais jovem nao podia submeterse; Johann Strauss formou a sua orquestra. Nas suas execugdes ao violino havia algo de cigano e no seu aspecto fisico algo de exético, atribuivel, tal- vez, 4 sua misteriosa ascendéncia espanhola. Strauss venceu. Os vienen- ses entusiasmaram-se com éle e as valsas, e o artista foi em breve cha- mado por outras cidades e outros paises. Alemanha, Franga e Ingla- terra aclamaram-no frenéticamente. Em Paris escreve Berlioz, o genial compositor e critico temido: “Nao tinhamos idéia nenhuma da perfei- (do, do fogo, da inteligéncia e do grande senso ritmico da orquestra de Strauss. Ougam bem, Senso ritmico! Todos os miusicos italianos e também os nossos sempre tiveram um falso ponto de vista quanto ao ritmo. As possibilidades ritmicas de combinacio sao, talvez, tao gran- des quanto as melédicas...” Em seguida, Berlioz compara Strauss a Gluck, Beethoven e Weber. (£ estranho deporem sempre os mais seve- ros criticos as armas diante da valsa: Hanslick, inimigo acérrimo de Wagner, torna-se partiddrio entusiasta de Johann Strauss.) Enquanto Strauss viajava, logrando extraordindrios triunfos, fazendo ouvir as suas mais belas valsas nas ceriménias da coroagdo da jovem Rainha Vitoria da Inglaterra, cresciam em sua casa vienense trés filhos que cedo revelaram invulgar talento musical. O pai distante, com ra- z6es particulares para no voltar, protestava contra o desejo que éles manifestavam de seguir a carreira musical. Quando, finalmente, regres- sou, era tarde: nZo péde proibir que o maior dos trés, também chama- do Johann, se dedicasse 4 arte escolhida. O sangue foi mais forte, € quando o pai abandonou definitivamente o lar, para um névo casa- mento, o filho viu-se livre para conquistar a meta. Um dia organizou uma orquestra e realizou a estréia, que pai e amigos tudo haviam feito para impedir. O filho vé-se, por fim, no estrado de um dos me- lhores locais de Viena; milhares de olhos sébre éle convergem. Palido, elegante e muito jovem, dirige a orquestra, enquanto mil ouvidos se preparam para o julgar ou condenar. £ 0 dia 15 de outubro de 1844. Nesse dia, comeca a histéria de um dos mais brilhantes compositores, Johann Strauss filho, cognominado “o rei das valsas”. Johann Strauss filho é t4o brilhante violinista como o pai, melhor regente e muito melhor compositor. A popularidade das suas obras € inconcebivel; provavelmente uma indagagaéo no mundo inteiro mos- traria nao haver peca musical mais popular que a sua valsa “No Belo 137 Danibio Azul”. Mas justamente essa valsa pouco éxito obtém, quando ouvida pela primeira vez em Viena, tao pouco que Strauss exclamou: “Va para o diabo a valsa! $6 tenho pena da “codal” Nessa “coda” de- monstrara éle téda a sua arte de compositor, assim como a demonstrou noutras valsas, especialmente nas introducées e nos finais ¢ nas “codas” que revelam mio de melodista genial e perfeito sinfonista. A valsa nio foi para o diabo; pelo contrario, parece que todos os anjos a cantam quando ela parte das trés notas ascendentes e desdobra as asas com graca tio inimitdvel a ponto de ser preciso admirar e invejar uma épo- ca que, tanto na arte séria como na alegre, possuia simetria tio per- feita que proporcionava a felicidade oriunda das coisas grandiosas. A valsa deu a volta ao mundo, desde o dia em que a exposicio mundial de Paris, em 1867, a aclamou, e isso com grande surprésa do criador que a concebera mais como simples mimero complementar de um programa. A partir de entio, ela, quase mais ainda que suas inimeras irmas, se torna simbolo de uma época, de uma cidade, de um mundo... Fig. 57. Valsa do Bardo de Z. Caricatura de Bertall. Varias centenas de valsas compés Johann Strauss filho e muitas delas se tornaram conhecidissimas como “Vozes da Primavera”, “Rosas do Sul”, “Vida de Artista”, “Vinho, Mulher e Cancio”, “Valsa Impe- rial”. A maioria dos titulos sairam apenas da imaginacio do criador e no tém ligacio nenhuma com a obra. Noutros casos, originam-se apenas da ocasido da estréia, como foi o da “Valsa das Félhas Matu- tinas” que nao reproduz o poético murmurio de um bosque matinal, mas que lembra apenas o mais prosaico baile dos jornais matutinos de Viena... Ha também, entre a obra de Strauss, musica puramente de programa, como a introduco da encantadora “Contos dos Bosques de Viena”, que mereceria, quase, ser chamada pequena sinfonia pastoral. No apogeu da gldria — a cidade de Boston pagou-lhe para dirigir alguns concertos monstros a quantia de cem mil délares — nasceu em Strauss uma nova paixdo: 0 teatro. Ao lado de outros compositores, como Ziehrer, Millécker e Suppé, torna-se criador da opereta vienense para ela contribuindo com o “Morcégo”, “O Bardo Cigano” (fig. 58) ¢ 138 “Noite em Veneza”. A opereta vienense é parente da comédia musical francesa que Offenbach criou e também um pouco da “zarzuela” es- panhola, Dessas duas formas falaremos em breve. A fama mundial de Johann Strauss obscureceu injustamente as esme- radas valsas de seu irmido mais méco, Josef, as quais, entre elas “Ando- rinhas da Austria”, “Musica das Esferas”, “Minha Vida € Amor e Alegria”, pertencem as melhores criagdes do género. A encantadora “Pizzicato-Polca” tem como autores os dois irmaos. Josef morreu cedo. O terceiro irmao, Eduard, incumbiu-se da diregio da orquestra Strauss, quando Johann se afastou para poder dedicarse mais 4 composicio. af dada Fad bobs ded: Fig. 58. Do manuscrito de Johann Strauss “O Barto Cigano”, 1885. “O meu ideal na vida é cerdo e toicinho”. Viena, Biblioteca Municipal. A popularidade da musica de Strauss se acrescenta o respeito que quase todos os grandes miisicos da época, e até posteriores, Ihe teste- munharam: Schumann, Mendelssohn, Liszt, Chopin. Para Wagner era ela o melhor que éle ouvira em Viena, E Brahms, 0 profundo e grave sinfonista, sentia-se irresistivelmente atraido pela alegria daquelas com- posicdes; éle proprio compés um ciclo “Valsas-Cangées de Amor”, para 139 quarteto vocal e piano e certa vez escreveu os primeiros compassos da “Valsa do Damibio” no leque de uma jovem criatura com a me- Jancélica dedicatéria: “Infelizmente, nao é minha. Johannes Brahms”. Extraordindrio é 0 mimero dos compositores que se inspiram nas valsas: Chopin, na sua maneira sonhadora e romantica, Gounod e Delibes com 0 espirito francés, Tchaikovsky com o seu amplo e meld- dico impulso na “Suite Quebra-Nozes”, na “Serenata para orquestra de cordas” e até na sua Quinta Sinfonia. Mahler, um dos ultimos gran- des sinfonistas, substituiu as vézes o minueto pela valsa; Richard Strauss faz da valsa simbolo e idéia fundamental da sua é6pera “O Cavaleiro das Rosas" e Ravel, o impressionista francés do nosso século, presta homenagem a Viena com a sua famosa “La Valse”. Faleceu Johann Strauss em 1899, aos setenta e quatro anos de ida- de. Talvez nao desejasse ver o século XX que lhe destruiu o seu mundo. Quando se mencionam Strauss e a valsa vienense, surge aos nossos olhos a visio maravilhosa de dias j4 passados, Embora se haja a valsa oposto 4s mudangas, aos ataques do jazz e A materializacio do mundo, é hoje uma espécie de rocha antiga num mar encapelado € bravio. Nela se concretiza uma época mais feliz, j4 faz muito perten- cente a histéria. E nés temos a impressio de um conto da carochinha: era uma vez. 140 18 A NATUREZA DO CONCERTO E O VIRTUOSISMO Deixemos por algum tempo o curso histérico dos acontecimentos, lancemos um olhar s6bre a vida musical da época, visto que a cria- cdo da misica e a vida musical exercem em todos os tempos uma in- fluéncia reciproca, Devemos saber que a forma hodierna da vida mu- sical foi criada aos poucos, e que o conceito de “publico” tdo corrente para nés nao é de modo nenhum antigo. Vimos aparecer 0 publico nas primeiras éperas italianas, e j4 falamos um pouco das mudangas que éle acarretou. Que havia antes? Cantavam os monges nos seus mosteiros: todos eram executantes € 0 publico nao existia; cantava o trovador nos ve- Ihos saldes dos castelos, e ali se apresenta a idéia de puiblico. Cantava © povo por ocasido de festas, e todos podiam colaborar; cantavam os mestres cantores, os sucessores burgueses dos trovadores; e todos po- diam ser executantes, desde que pertencessem a “guilda”, enquanto o “povo” sé tinha raras oportunidades de ouvir as suas representag6es € s6 de maneira assaz passiva, sem poder influir nem com aplausos nem com critica. Os membros da “sociedade” faziam musica nos pald- cios da Renascenga, do barroco e do rococé; todos tocavam um instr mento, cada um, de acérdo com a sua habilidade podia ser “executante”, ou entio, a seu bel-prazer, transformar-se em ouvinte, ‘Aos poucos, foi-se complicando a arte musical, bem como a vida em geral. A universalidade do homem culto da Idade Média cedeu lu- gar a especializacio do moderno; a técnica em marcha, os conheci- mentos cada vez maiores, a expansio em todos os ramos da ciéncia fize- ram do homem, até ento centro dos acontecimentos, um misero para- fuso, pequenino, igual a milhares de outros pobres parafusos na enorme maquina da cultura moderna, que nenhum individuo pode abranger com um relance de olhos. Na musica significa isso que as exigéncias aumentam todos os dias, que os repertérios, pela inclusio de novas obras e sem que as antigas, gracas A impressio, sejam esquecidas tio ra- pidamente como antes, crescem cada vez mais, que os instrumentos, gra- Gas ao constante aperfeicoamento, originam novos efeitos, que se torna maior o Ambito dos temas musicais, gracas 2 ampliagio da imagem filo- séfica, sociolégica e geogréfica do mundo, que a rivalidade entre o cres- cente ntimero de muisicos se faz cada vez mais forte, que a idéia de “arte” (mais nova do que se supée) exige dos discipulos um estudo continuo; € finalmente que os progressos puramente musicais sobre a nova har- 141 monia, melodia, técnica orquestral e muitas outras coisas crescem did- riamente. Forcosamente, chega o dia da separagio entre “executantes” e “pt- blico”. Enquanto os primeiros fazem da musica profissio 4 qual devem dedicar maiores estudos e esforcos no sentido de poderem concorrer com os rivais, tal qual fazem os membros de qualquer outra profissio dificil, exigente tanto técnica como mentalmente, 0 oposto passa a pre- ponderar lentamente no publico: o amador transforma-se cada vez mais em simples ouvinte. Fig. 59. Violoncelista. Desenho de Bernard Picart, 1701. O desenvolvimento continua. Inicialmente, 0 musico profissional ¢ ainda criador e intérprete ao mesmo tempo. Quando se exibe, fé-lo com os seus trabalhos. Mas a progressiva especializacio da vida, a diviséo do trabalho — na vida econémica moderna e em volta dela — também exige do artista uma especializagio cada vez maior. Ele deve escolher entre as suas varias habilidades a mais forte, e tratar de se aperfeicoar numa, sacrificando as outras. Hoje talvez tenhamos chegado ao ponto final désse desenvolvimento; a especializacao atingiu 0 maximo no virtuose, 0 conceito técnico das massas, nas grandes orquestras do nosso tempo. Num capitulo pos- terior voltaremos a tratar do presente estado. Aqui, limitar-nos-emos a falar dos problemas causados por tal desenvolvimento. Entre os exe- cutantes € 0 publico, abriu-se um f6ss0, e jd ndo é possivel qualquer troca de papéis. Maior que tal £6sso, porém, é 0 verdadeiro abismo cavado entre o criador de musica e o publico. O trovador era criador e intérprete ao mesmo tempo. Quem exigiria isso do virtuose de hoje? O piublico do nosso tempo nao exige precisamente o contrario, isto 142 &, que o virtuose Ihe interprete as obras com as quais se sente espe- cialmente identificado? A vida musical percorreu o mesmo caminho evolutivo que a vida econémica; em palavras mais simples, entre o produtor e o consumidor surgiu o intermediario, aqui chamado intér- prete. Sabemos que quantidade de problemas dai se originam? A obra que chega aos ouvintes é a mesma que o compositor criou? Qual é a posicio do artista “recriador” (que palavra interessante!) perante a obra? Sera objetivo? Que significa isso? Existe? Nesse caso, o intér- prete nao passaria de uma maquina? Sera subjetivo? Neste caso, rece- beremos a obra tal qual? Se essas perguntas ja s4o dificeis, em se tratando de trabalhos nos quais o intérprete e o criador pertencem a mesma geracdo, e talvez até ao mesmo circulo cultural, mais com- plexas se tornam, em se tratando de obras de épocas passadas e bem diversas da nossa! Poderemos interpretar hoje Bach, Palestrina, Mozart ou qualquer outro dos grandes j4 desaparecidos, como éles prdprios sentiam € queriam? Quantas vézes nao lemos nos jornais que o senhor X interpretou no mais puro estilo a mtsica do século XVIII Como 0 pode saber quem escreve? Muita tinta se gastou em térno do problema da interpretagéo musical: desde a “fidelidade absoluta” (que € impos- sivel) até a “compreensio pessoal” (muito interessante, mas perigosa), tudo foi defendido e tudo foi atacado. Citarei uma frase do grande regente Wilhelm Furtwingler: “A conservagiéo de um tesouro de in- concebivel valor — as obras musicais do passado — est nas mdos do executante, e no ha possibilidade de apelar para instancia mais alta, © nosso patriménio musical de hoje conserva vivo um tesouro de criagdes de mais de trés séculos. E com isso é claro que o intérprete se torna 0 centro, encontrando-se hoje no lugar que, noutros tempos, pertencia ao compositor. Este quase perdeu inteiramente o contato com 0 piblico, e a figura do artista “recriador” de tal maneira con- quistou o favor do publico que as varias interpretagdes de um trabalho, segundo os diversos virtuoses que as apresentam, interessam mais 20 publico que a prépria obra. Deixemos, agora, a teoria, deixemos a critica e a polémica que — in- dependentemente de tudo — ndo podem modificar a situagao dada, que é natural, e alegremo-nos com a abundancia e incontestdvel gran- diosidade da moderna vida musical. Vejamos como cresceu ela histd- ricamente. Os séculos XIV e XV foram ainda a época do érgio. Mas muito raramente é que se ouvia ésse instrumento fora dos templos; somente devagar foi que se desenvolveu a idéia do concérto de érgio, que na maior parte, por varios séculos ainda, consta de improvisagdes. Na sé- rie dos grandes virtuoses do érgio cabe muito provavelmente 0 pri- meiro lugar ao cego florentino Francesco Landino (13252-1397). Se- guem-se-lhe muitos dos mestres que j4 mencionamos em relagao 4 igreja de Sao Marcos de Veneza: os dois Gabrieli, Claudio Merulo sobretudo, € 0 ilustre Girolamo Frescobaldi (1583-1643) (Prancha 10), sob todos 143 0s pontos de vista musico extraordindrio; dizse que mais de 30.000 espectadores se reuniam para ouvir-lhe os concertos. Igualmente flores- cente é a arte organistica ao norte dos Alpes; em Niiremberg exerce a sua atividade o cego Conrad Paumann (14107-1473), bem como Johann Pachelbel (1653-1706), em Viena, Johann Jakob Froberger (1616-1667), em Innsbruck, Paul Hofhaimer (1459-1539); e finalmente em Liibeck, Dietrich Buxtehude (1637-1707) a cujos pés se sentaram dois jovens musicos: Bach ¢ Handel. Nas Flandres o mais ilustre organista é Jan Pieter Sweelinck (1562-1621). De acdrdo com o que ja dissemos, é claro que todos ésses mestres foram também — ou foram em primeiro lugar = criadores, compositores. Nao havia, ainda, separacio entre criador e recriador. ly’, Boe Sits . —— f Fig. 60. Esbéco de um “Capriccio” de Paganini, datado de 24 de maio de 1832. Pelo fim da Idade Média comegou a divulgar-se pela Europa inteira um instrumento que por longo tempo ocuparia posigéo importante. Haviam-no trazido do Oriente os mouros, ao invadirem a Espanha; os arabes chamavam-lhe “El oud”. O nome espanholizou-se em “el laud”, donde se originou o nosso vocdbulo “alaide”. £sse instrumento de mavioso som que podia representar, além do acompanhamento de uma cancio, dificeis frases polifénicas, tornou-se em pouco o preferido da sociedade, no havendo, praticamente, palicio da Renascenga em que nao fésse introduzido. As pecas destinadas ao alatide, assim como as destinadas ao érgio, foram anotadas nas “Tavolaturas”, e hoje pos- suimos copiosa literatura dos séculos XV e XVI cujos sons nos alegram os ouvidos. O alatide pertenceu, por varios séculos, a0 ntimero de instrumentos que integravam a orquestra de concérto; foi somente o 144 { esquerda: Francois-Adrien B 5. Pintura de Louis Leopold Boilly. 4 direita: Carl Maria von Retrato de Caroline Bardua. Niccolo Paganini (1784-1840). PRANCHA 33 A esquerda: Félix Mendelssohn (1809-1847). Quadro de Ed. Magnus. 4 direita: Hector Berlioz (1803-1869). Cena de “Benvenuto Cellini” de Berlioz, de acdrdo com uma gravura de 1852. PRANCHA 34 A esquerda: Frédéric Chopin (1810-1849). Pintura_de Delacroix (1838), Museu do Louvre. 4 direita: Franz Liszt (1811-1886). Desenho de Devéria, 1832. Robert Schumann (1810-1856). Clara Wieck (1819-1896). PRANCHA 35 de List. Litografia de Josef Ksiehuber, Viena, 1046 A esquerda, "Kriehuber, a direita, Ernst; de pé, Berlio, es Rapsédia Hungara, pintura de Rober PRANCHA 36 uso crescente do violao (guitarra) e sobretudo as grandes salas de con- certos que puseram cébro 4 sua importante posigéo na vida musical européia. O século XVII vé o crescente prestigio dos instrumentos de corda. © que naquela época produziram o artesanato e a inspiragéo genial, jamais se repetiu. Basta mencionar trés grandes nomes: Amati, Stradi- vari e Guarneri. Sao mais do que individuos; sio freqiientemente linhas de geracées, tradicio familiar e transmissio de conhecimentos; 0 que les criaram conserva até hoje som nobre e cheio, e nenhuma técnica moderna conseguiu descobrir o segrédo. Amati, Stradivari e Guarneri del Gesit viveram na mesma cidade, Cremona; mas também em Brés- cia, Mittenwald e em Absam, no Tirol, se construiram famosos instru- mentos que ocupam importantissimo lugar na histéria da misica, por- que a virtuosidade do violino, bem como o desenvolvimento de téda a literatura dos instrumentos de corda, nio teria sido possivel sem éles. Fig. 61. Barcarola. Desenho de Grandville. Mais uma vez sio grandes criadores 0s que mencionamos como vir- tuoses do violino. Comegaremos com Arcangelo Corelli (1653-1718), cognominado “maestro dei maestri”, e sepultado ao lado de Rafael; seguem-se-lhe Antonio Vivaldi (1675?-1741?) e Giuseppe Tartini (1692- 1770) que enriqueceram enormemente a técnica violinistica, assim como grande numero de outros, como Giovanni Battista Viotti, famoso na qualidade de menino-prodigio do violino, justamente na época em que a estréla de Mozart comegava a refulgir na Europa. O estilo de composigéo désses mestres da velha Italia se caracteriza por maravi- Ihosa nobreza de sentimentos; os trabalhos séo profundos e belos, apesar de a virtuosidade j4 comegar a acrescentar, as vézes, efeitos exteriores, Estreitas relagdes ligam, naquela época, o virtuosismo ita- liano ao alemao e ambos ao francés; da Franga sao Pierre Rode e Ro- dolphe Kreutzer, que continua a viver na imortal sonata de Beethoven. 145 1Obis Histéria Misico Nasce, finalmente, o maior dos violinistas, uma personalidade fasci- nante, virtuose arrebatador, figura envdlta no mistério, Niccold Paga- nini (1784-1840) (Prancha 38). To diabdlica ¢ a impressio que causa nos contemporaneos que todos desconfiam sériamente de um pacto com o dem6nio. Paganini descobriu um sem-numero de novos efeitos, aperfeigoou a execugio de dupla corda de maneira surpreendente, ¢ terminou dificilimo trecho numa unica corda, quando as outras trés, durante a representagio, arrebentaram. A sua vida cheia de aventuras, que, com certeza, nunca sera perfeitamente esclarecida, ¢ que no-lo apresenta as vézes como homem generoso e nobre, outras como intri- gante e mesquinho — eu, pessoalmente, me inclino para a primeira suposigio — abrange tédas as cidades e paises da Europa € todos os violinistas e musicos do seu tempo. Parece que foi ainda Paganini quem, pela primeira vez, num concérto, executou exclusivamente de meméria, dando inicio assim a uma regra indispensivel hoje. Vendo a sua interessante figura de virtuose — cabelos negros esvoacantes, fra- que préto bem ajustado, rosto pdlido, olhos negros sinistramente bri- Ihantes — esquecemo-nos as vézes de que Paganini (como nao podia ser de outra maneira nos artistas da época) era também compositor fértil ao qual se devem magnificos trabalhos. Assim como Chopin, seu contemporaneo, dedicou tédas as obras ao piano, Paganini sempre compés para 0 violino. O que tantas outras vézes aconteceu na historia da musica, nascerem ao mesmo tempo na Italia e na Alemanha famosos mestres do mesmo género, repetiu-se aqui, pois o genial genovés tem um notavel colega no Norte: Ludwig Spohr (1784-1859), virtuose ¢ compositor como éle. Finalmente, apossam-se do primeiro plano os instrumentos de te- clado; em primeiro lugar é 0 cravo no qual se exibem os primeiros virtuoses; a ésse instrumento chamam na Franca “clavecin”. E por isso que alguns artistas recebem 0 nome de “clavecinistas”; citemos em pri- meiro lugar Francois Couperin (1668-1733), cognominado “o grande” entre os musicos. E éle o representante tipico da arte galante de corte, mestre na miniatura musical; segue-se-Ihe Jean Philippe Rameau (1683- 1764) (Prancha 27) de cuja importancia j4 falamos. Na Itdlia, vemos Domenico Scarlatti (1685-1757), filho de Alessandro, brilhante virtuose. E agora, mais uma vez, teremos de mencionar quase todos os grandes mestres cuja vida narramos nos capitulos anteriores: Bach e Handel nao foram apenas virtuoses do érgéo, sendo também brilhantes cra- vistas; Mozart e Beethoven foram mestres désse instrumento, e quase tédas as crénicas mencionam sua surpreendente capacidade de impro- visagao que constituia uma das forgas principais dos virtuoses da época. Hoje em dia a improvisacio desapareceu dos concertos. De vez em quando, vemo-la ainda no érgio, mas nunca nos freqiientissimos con- certos de virtuoses do piano ou do violino. Para isso ha varias raz6es: primeiramente um bom improvisador deveria ser um bom compositor, e acabamos de verificar que nao é 0 que acontece no caso dos virtuoses do nosso tempo; em segundo lugar, compéem-se os concertos de hoje 146 de trabalhos que nfo so criagées do concertista, de maneira que uma improvisacao estaria fora do lugar; em terceiro lugar, o senso de im- provisagao decaiu muito atualmente, e nds mal a apreciamos. Mas como deve ter sido grandiosa! Como deve ter sido impressionante, no momento da inspiragao, ouvir os sons irromper, poderosos, do coragio e penetrar os ouvidos dos presentes, sem nenhuma transmissio, sem intérprete, sem pentagramas. E como devia ser misteriosa, visto que, uma vez evolada, nunca mais renascia na mesma forma... Entre os primeiros virtuoses do piano figuram Liszt e Chopin, dos quais falaremos pormenorizadamente. Aperfeicoam éles, com outros, 0 tipo hoje famoso de virtuose, do rei da sala de concertos, que viaja de uma cidade a outra, como meteoro, e€ cujos feitos, sobretudo no tocante a técnica, raramente so ultrapassados. Os sucessos de Liszt e Paganini sio legides; mas os de hoje (com poucas exce¢ées como Rachmaninov, Paderevski, Kreisler) apenas sao recriadores e nao criadores. Visto que © compositor se concentra na criagdo e o executante no concérto, éste Ultimo dispde de bastante tempo para manter os dedos em constante exercicio e obter, dessarte, efeitos técnicos que, ha cem anos, sdmente um pequenino escol conseguia imaginar. Fig. 62. Rondé. Desenho de Grandville. Uma conseqiiéncia da evolugio de que falamos é também o gigan- tesco acréscimo de trabalho para as necessidades do concérto; em Vi tude da expansao da atividade concertista, obras que originariamente se nao destinavam as salas de concertos (muitas vézes por nao haver ainda salas de concertos) para elas se encaminham. Liszt e Clara Wieck, a genial espésa de Schumann, parece terem sido os primeiros que fize- ram ouvir as sonatas de Beethoven em sala publica. O mestre havia-as destinado apenas & execucao intima, como fizera Schubert com as suas cangées. Mas também a canc&o conquista a sala de concertos e dai j4 nao pode ser expulsa. Finalmente, a propria misica de camara, cujo nome indica claramente o seu fim, abandona o recinto particular; em 1804 ouvimos em Viena, pela primeira vez, falar do concérto publico de quarteto de cordas; em 1808, em Praga, em 1814 em Paris. A sala publica monopoliza cada vez mais a musica; os “salées” da rica bur- guesia culta, que no século XIX se apoderaram da heranca dos pa- lacios aristocraticos, tornam-se cada vez mais raros. A musica con- 147 quista constantemente maiores massas, e penetra cada vez mais profun- damente no pais, em cidades cada vez menores, e em camadas sociais cada vez mais novas. O radio, o milagre do século XX, de que ainda falaremos, precipita a evolugio. Sem divida, o mais claro sinal do progresso técnico da vida musical e da sua evolucio, da arte de amador de pequenos circulos, préprios dos paldcios da Renascenga, para o grande espetaculo publico de hoje, nos é oferecido pela histéria da orquestra sinfénica. De um pequeno con- junto de no maximo doze misicos com poucos tipos de instrumentos, até a orquestra de 120 figuras da nossa época, que representa inesgota- vel reserva de sons e efeitos, que gigantesca ascensiol De mios dadas com ela, cresce a importancia do regente: ontem, simples musico que no cravo toca os acordes de enchimento, mais tarde primeiro violinista que, antes sentado, depois de pé, dé o tom e indica o inicio, hoje dominante personalidade da gigantesca maquina orquestral, bem acima dela, verdadeiro soberano. Mas com as ultimas consideragées, demasiadamente nos adiantamos no curso histérico. Voltemos, pois, a0 ponto em que deixamos de estu- dar a criagéo musical, ou seja, 4 aurora do século XIX. 148 19 A OPERA EM PLENO FLORESCIMENTO Durante alguns capitulos deixamos de lado o “enfant terrible” que é a épera. Nao quer isso dizer que, no século dos grandes mestres dos quais tratamos nos wltimos capitulos, tivesse sido a épera eclipsada ou diminuida pelas fugas de Bach, pelas sinfonias de Haydn ou Mozart, pelas sonatas de Beethoven, pelas cancées de Schubert. Nada disso! Beethoven, embora popularissimo em Viena, jamais conseguiu atingir a popularidade de Rossini ou de Cherubini. Sdmente a histéria — pelo menos nesse ponto — foi que féz justica, instituindo graus aproxima- damente exatos de grandeza. A histéria da épera segue o seu caminho tdo cheio de contradigées, tdo atraente e tao sensacional que nos leva mais a uma divagacao romantica do que a uma fria consideracdo histérica. Se eu fosse poeta, continuaria a desenvolver a imagem em que se compara a épera a uma jovem. A pera chega a ser mulher, perto da qual cada um, segundo 0 seu temperamento, encontra outros encantos € prerrogativas, mulher que aparece sob cem formas diversas, mulher caprichosa, sem- pre com o insacidvel desejo de submeter pessoas e coisas. Surge sob intimeros disfarces; é aristocratica, quando pretende conquistar as clas- ses elevadas, simples méca quando fala ao povo, borralheira e rainha, nobre e revolucioniria, realista e sonhadora, séria até a tragédia, ale- gre e irénica até o ridiculo; faz rir e chorar, é filoséfica e vulgar, complicada e simples... Acompanhamo-la durante os cento e cingiienta anos que durou a sua adolescéncia, por muitos paises, onde foi acolhida de bragos aber- tos, como algo de névo, colorido e interessante. Depois, apareceu Gluck para educd-la; mas ndo o conseguiu completamente, em virtude do caréter extravagante e superficial dela, que Ihe proporcionou enor- mes dificuldades. Justamente pelo fim da sua adolescéncia, nasceu um génio divino, Mozart, para quem nio existiam problemas, e que, arre- batado pelo exuberante prazer de criar musica, afogou em melodias tédas as fraquezas e todos os perigos do género operistico, ou, como © disse muito bem Wagner: “No “Figaro”, Mozart nao descobriu de modo nenhum a misica das intrigas; o que féz foi transformar as intrigas em musica”. Agora, veremos 0 coméco de uma idade mais madura, veremos a sua mocidade, época critica, como sempre. Ja se presente a futura personalidade, cujo cardter se vai lentamente cristalizando; mas os ca- minhos se afiguram, as vézes, labirintos onde imperam erros e enganos que, nao raro, se acercam de profundos abismos. Consideraremos trés ramos separadamente: a épera italiana, a fran- 149 cesa e a alemé, cada uma das quais possui os seus préprios caracteris- ticos € a sua propria historia, A dpera inglésa cessou de existir; mas nao tardarao em surgir novos ramos, quando, na histéria da misica, aparecerem novos povos. Jd travamos conhecimento com uma irma mais méca da Opera, a opereta vienense, que agora veremos como opereta francesa e “zarzuela” espanhola. E quando, num capitulo pos- terior, nos ocuparmos novamente da épera, ter ela deixado para trds a adolescéncia e a mocidade, e brilharé com todo o esplendor da sua beleza e da sua maturidade. Os italianos Os duzentos anos da épera italiana que ficaram atrés nao tiveram uma linha uniforme de evolucao: épocas de florescimento se alterna- ram com épocas de decadéncia. E foi precisamente numa destas ulti- mas, que veio ao mundo musical Mozart o qual, pelo seu estilo, figura na historia da dpera entre os compositores italianos, muito embora indicasse, ao mesmo tempo, o caminho da épera alemé com a sua ‘Flauta Magica”. Mas, ao passo que nas situag6es mais comuns dos seus trabalhos sentimos palpitar um coracao ardente, parecem-nos situa- Ges idénticas simplesmente frias e rotineiras nos seus contemporineos italianos que apresentam apenas técnica, grande técnica alids, visto como a parte puramente material da profisséo de tal modo se desen- volvera que nas partituras, por longos trechos, era impossivel distin- guir a mao de um compositor de categoria da de outro mediocre. As composigées de dperas tornaram-se tao impessoais como a maioria, provavelmente, dos cortesios de Luis XIV. De resto, costumavam famo- sos € atarefadissimos mestres pedir a discipulos ou a outros mtsicos menos conhecidos que escrevessem as partes dos recitativos. Sendo as- sim, deviam evidentemente ser frias e impessoais. Nao obstante, continuava de pé o prestigio da Opera italiana. Que triunfo nfo obteve em 1792, em Viena, o “Matrimonio Secreto”! Todos falavam do autor, Domenico Cimarosa (1749-1801) e ninguém de Mo- zart, que acabava de falecer. Cimarosa, compositor de dperas bufas da mais pura escola napolitana, colheu excelentes resultados concretos da sua gléria: nao houve juiz que ousasse condend-lo, quando éle par- ticipou de uma rebelido. Mas a gléria muito pouco Ihe sobreviveu, como pouco sobreviveu também ao seu rival Giovanni Paisiello (1740- 1816), autor de mais de cem éperas, e favorito de Napoledo; o seu “Barbeiro de Sevilha” era tio popular que o trabalho de mesmo nome, de Rossini, incontestdvel mestre da épera bufa italiana, nao logrou imporse na noite de estréia, em 1816. Foi ésse um dos poucos fracassos na vida do felicissimo Gioac- chino Rossini (1792-1868) (Prancha 31); assim mesmo, converteu-se em enorme éxito mundial. Rossini é um dos mais interessantes e geniais vultos da histéria da musica; e nao é apenas isso, é também mestre da arte de viver, no que, alids, muitissimo se distingue de outros gran- des mtsicos. 150 Na noite que se seguiu ao patente maldgro do seu “Barbeiro de Sevilha”, Rossini nao compareceu ao Teatro Argentina, parecendo nao dar grande importancia & sorte da segunda representacio. Subitamente, no meio da noite, acordou-o um tumulto na rua: 0 povo de Roma, entusiasmado, prestou-lhe, a luz de archotes, grandiosa homenagem. Raras vézes foi um juizo errado to rapidamente corrigido. Aos 21 anos, conheciam-no todos os teatros da Italia; com incrivel facilidade compunha dramas e comédias musicais, as vézes seis por ano. Em treze dias terminou o “Barbeiro de Sevilha”. Em 1822, a sua presenca leva ao delirio a cidade de Viena; na Inglaterra, ganha em cinco meses verdadeira fortuna; em Paris, oferecem-lhe o mais elevado pésto dos circulos musicais. Até af a sua carreira é extraordinaria, sem divida, mas nio singu- lar. O singular aparece em 1829 — conta éle 37 anos e j4 compés 37 dperas — quando, de stibito, sente-se aborrecido, cansado do folguedo, talvez até farto do névo pitblico que enche os teatros e que nao pode compreender o velho estilo, apesar de se divertir... & apés a triunfal estréia do seu “Guilherme Tell” que toma a repentina decisio de retirarse para sempre da atividade musical. Em primeiro lugar, regressa 4 cidade natal, imortalizada com 0 nome dado pelo mundo ao seu grande filho: “O Cisne de Pesaro”; em se- guida, ao notar que a revoluc&o ali também provoca distiirbios, vai a Paris, onde permanece até o fim, bastante remoto, da sua existéncia, cuidando de diversos afazeres, mas nao de miisica. Somente duas vézes rompeu o estranho juramento: a primeira, quando escreveu uma can- tata para a exposicio mundial, e a segunda, quando voltou a apre- sentar-se com uma obra importante. Seria uma nova épera, séria, cO- mica? Nada disso! O grande satirico deu ao mundo... um trabalho religioso, o “Stabat Mater”. Hoje, pouco é 0 que déle ainda vive nos palcos; mas isso é de se atribuir mais & mudanga do estilo que a éle préprio. O “Barbeiro de Sevilha”, no qual exprimiu todo o génio e temperamento da sua raca, figura entre as éperas alegres do repertério internacional. Na Italia, ainda se ouve, uma vez que outra, com prazer, a “Gazza Ladra”, a “Cenerentola”, a “Italiana in Algeri” e o “Guilherme Tell”, cujas brilhantes ouvertures sao, alids, ouvidas freqiientemente em concertos. O seu “Otelo” caiu no esquecimento, suplantado pela grandiosa épera de Verdi. Ao lado de Rossini figuram mais dois astros no firmamento da épera italiana, que naquele tempo atravessava 0 periodo mais brilhante do “bel canto”: Vincenzo Bellini (1801-1835) (Prancha 29) e Gaetano Do- nizetti (1797-1848). Déste vivem ainda, gracas a um sexteto realmente magistral e a belissimas arias, a “Lucia di Lammermoor” (1835) e, com mais frescor, as éperas cémicas “O Elixir de Amor”, “A Filha do Regimento” e “Don Pasquale”; portanto, apenas quatro dos seus ses- senta € quatro trabalhos. Das dperas de Bellini citaremos “La Sonnam- bula”, “I Puritani”, e particularmente “Norma” (Pranchas 29 e 30) com a sua maravilhosa dria “Casta Diva”, que hoje quase ninguém mais sabe 151 cantar. Muito das éperas de Donizetti e Bellini é, indubitavelmente, valioso e nobre, e foi escrito com perfeita compreensio para a voz hu- mana; se tivermos de névo outra época do “bel canto” — 0 que nfo nos parece provavel — ésses trabalhos hao de vir novamente ao primeiro plano e arrebatar os ouvintes inebriados de oe a Fig. 63. Partitura da “Elisabetta” de Rossini. Quarteto do primeiro ato. Pouco resta de Luigi Cherubini (1760-1842), quase nada mais do que o nome e a extraordindria veneragio a éle dedicada por Beetho- ven, O seu principal trabalho “O Carregador de Agua”, est tio esque- cido como os demais trabalhos seus, profundos e belos; a todos éles faltava impulso dramitico, de que também careceram as éperas de Schubert (). Quem se lembraria de Schubert, se tivesse apenas com. () A extraordinri na grande épera trigica “Me {erga dramftica de Cherubini acha-se guperativamente, documentada fea” (1797), que as sopranos Maria Callas ¢ Eileen Farrell celebri- Yaram_ universal 70s) fonogrificos. Mas ndo h4 esquecer uma austera € ‘monumental “Missa de Requiem” em dé menor (1816), composta para o 24,9 aniversirio da execugio de Luis XVI, Obta-prima da _milsica religiosa, ‘ac vada por Toscanini, Roger Wagner, Glulini, Toffolo. Conforme escreveuAdelino Damerini, “Cherubini integra ése grupo de miticos que devem aguardar o julgamento da posteridade’ para serem apreciados em seu justo valor. Foi mal compreendido em vida, e quase fica esquecido apés a morte, devido 2 Completa ‘mudanca que se verificou no espirito dos tempos. Entrando na histéria ‘da_misica quando dolororamente finava uma época e outra nascia com atitudes ¢ exigéncias totalmente diferentes, Cherubini intutivamente sentiy. necesidade de dar, expressto\ a. ise momento. Foi primeiros a repudiar 0 virtuosismo das. precedentes décadas e anunciou as exigéncias do ndiviualiane tomfatcg, N40 fol compreendibo por guantey inde egavams ab 6 facia So pasado; e mesmo aquéles que estavam sendo arrattados pelo turbilhio dos novos sentimentos io compreenderam 0 significado da sua tremenda energia. Somente uns poucos espiritos 1 periores perceberam a grandeza ea originalidade de suas composigies... Apesar das opiniGes 152 posto éperas? E quantos seriam os que conhecessem o nome de Bee- thoven, no mesmo caso? Também a Beethoven faltou vocacio ao teatro, indispensdvel para o éxito das dperas. Mas nao é 86 isso. Quem conhece hoje as obras de Gasparo Spon- tini (1774-1851), apesar de haver éle sido dotado de fortissima vocagio para o teatro? Pois Gasparo foi uma espécie de ditador musical na época em que viveu. As suas éperas “La Vestale” e “Fernando Cortéz” lograram enorme éxito em Paris; Napoledo entusiasmou-se com a se- gunda, embora o seu entusiasmo fésse mais pela violenta tendéncia anti-espanhola do que pelas qualidades musicais do trabalho. O Rei da Prussia chamou Spontini a Berlim que, assim pretendia o soberano, deveria tornar-se centro europeu da dpera; porém, nao obstante os extraordinarios gastos, o éxito nao chegou a ameacar o prestigio de Paris que, naquela época, ao lado da Italia, era a capital da épera. Rossini cala-se apés o “Guilherme Tell”, em 1829; Bellini morre, aos trinta e quatro anos, em 1835. Diante do seu tamulo chora Cho- pin, pressentindo a sua propria morte iminente. As mesmas velhas arvores do cemitério do Pére Lachaise abrigaram, sob a sua sombra, os ttimulos dos dois miisicos, até o dia em que os restos de Bellini, por ocasifio do centendrio de seu nascimento, voltaram para a sua orgulhosa cidade natal de Catania, na Sicilia. Poucos anos depois da morte de Bellini, cala-se também Donizetti; mas o seu siléncio é, dentre todos, o mais doloroso, o mais tragico; Donizetti perde a razéo. Morre o “bel canto”, morre a ebriedade orgiaca das vozes, morrem as elabo- radas curvas melodiosas que sé pretendiam ser harmonia. A dpera italiana, érfa, mais uma vez parece exposta aos ataques oriundos da Alemanha onde triunfa Weber, com o seu romantismo simples € po- pular, abrindo caminho a outro compositor maior, Wagner, que pos- sui forca suficiente para infligir o golpe decisivo. Mas a épera da Itlia é imortal; e para defendé-la vem ao mundo outro génio, Verdi. Quanto mais intensos forem os ataques — em comparacao dos quais nao passam de simples brincadeira as reformas de Gluck — tanto maior sera a resisténcia. Os franceses Em 1752 chegaram a Paris os bufonistas, a “troupe” de dpera ita- liana que tio violentas lutas originou, e que dois anos depois seria entusifsticas de Beethoven, Schumann, Berlior, Brahms, Puccini, etc., logo apés sua morte, Cherubini adquiriy reputacio de fro compositor académico, pedante, enfadonho. O. cardter austere reservado de Cherubini se reflete em sua miisica, juntamente com sua notoriedade Pedagégica, firmemente convencido da importincia de uma’ toa base contrapontistica, Ambas circunstancias respondem em parte por ésse_julgamento superficial, que, além disso, foi acrescido € consolidado pelo desprézo em que tombaram suas obras. Execugdes adequadas’ cada Yer mais raras, na Itélia tornou-o figura desconhecida. Bastou, porém, que a dpera Medea fesse encenada ‘num ambiente menos hostil para que os criticos percebesiem seu grande talento dramatico, varado num estilo pessoal, que atinge alto grau de intensidade tragica. Constatou-se que sua miisica de igreia possui firmera estrutural e, sem descer a. exagerado.sentimentalismo ‘ou. provocar apanas agradaveis combinagées sonoras, exprime a consciéncia que temo homem de sua alma. Em tédas suas composigdes, Cherubini € um classico que, num estilo altamente pessoal, vivifica as mais antigas formas da grande tradicio ¢ as inunda de emocio, de maneira mais rica que Haydn, que ja era bastante idoso quando Cherubini atingiu 0 apogeu de suas fércas. & também um’ romintico que nunca abandona seu estilo Ifrico, apesar da estrita obser: vVineia das convencées formais, embora nio adote a linguagem ardorosa’ dos ainda jovens Berlior € Schumann”. (N. do R.). 153 expulsa, Quando Gluck surgiu em Paris, renasceram os partidos da- quele tempo — referimo-nos is duas guerras de arte — dessa feita com os nomes de “gluckistas” e “piccinistas”. A “Serva Padrona”, épera cémica dos italianos, deixara profunda impressio, € foi com o desejo de imité-la que veio ao mundo a épera cémica francesa; muitos foram os teatros que a ela se dedicaram exclu- sivamente, sobretudo o que tem o nome de “Opera Comique” e é, ainda hoje, um dos principais centros da vida musical francesa. Pouco depois, inicia‘se também a histéria da opereta francesa, cujo primeiro teatro dirigido por Offenbach, até no seu titulo “bouffe”, demonstra a influéncia da dpera bufa italiana. Os primeiros compositores de éperas cémicas tém o destino de todos os desbravadores: um honroso esquecimento, Chamavam-se Egide Duny (1709-1775) e Pierre Monsigny (1729-1817). Os libretos, com o seu am- biente de pequena burguesia, j4 ndo despertam nenhum interésse hoje. Com a revolugao, os libretistas procuram evoluir, dramatizar os fatos do dia, engrandecer a reptiblica; por sua vez, também os compositores tratam de mostrar-se 4 altura da época. Nada Ihes falta, exceto o talento; nao é facil produzir lirica ou misica revolucionaria que so- breviva 4 revolucao. Na realidade o unico verdadeiro intérprete mu- sical da Revolucao Francesa foi Beethoven. André Ernest Grétry (1741-1813), um dos melhores miisicos daquela época, viu claramente o perigo e advertiu: “Parece que, desde a tomada da Bastilha, na Franca, s6 se compée mi: com tiros de canhiao. Eis ai um engano trégico que mina a inventiva, o gésto e a verdade da expressio melddica. Se no tomarmos cuidado, 0 ouvido e o gésto do povo nfo tardario em ser corrompidos e daqui a alguns anos ha- vera apenas fabricantes de ruido musical. Sem duivida, essa “arte” tre- menda sera o fim da verdadeira arte...” A época encontrou, falando em térmos de mtisica, uma geracio insig- nificante. Tédas as suas obras sio completamente esquecidas, sem es- peranga de que outra época as ressuscite. Grétry cantou, numa épera romantica, 0 destino do trovador real Ricardo, Coracgdo de Ledo. Se- guiu-selhe Etienne Méhul (1763-1817), famoso no seu tempo, o qual escreveu “José no Egito”, talvez a primeira épera sem figuras femininas. Francois Boieldieu (1775-1834) (Prancha 33) e Daniel Francois Auber (1782-1871) aproximam-se do nosso sentimento (mas ainda estao bem distantes). Boieldieu tornou-se popularissimo gracas & sua “A Dama Branca”; a “Muda de Portici”, de Auber, desencadeou nada menos que a revolugio belga de 1880: a massa humana, incitada por essa pera que, em forma simbélica descreve a opressio do pais, atirou-se as barri- cadas e conquistou a independéncia contra a Holanda. Auber compés © mesmo assunto que, mais tarde, serviria a Verdi para o seu “Ballo in Maschera”; além disso foi o primeiro que musicou uma “Manon”, muito antes de Massenet e Puccini. Hoje nenhum désses trabalhos é representado, com excecio talvez da graciosa épera cdmica “Fra Dia- volo”, Tampouco conhecemos hoje a épera que naquela época logrou grande éxito, “Zampa”, de Louis Joseph Hérold (1791-1833). De “Si 154 jétais roi", de Adolphe Adam (1803-1856), ouve-se hoje, as vézes, a ouverture; o seu “Postillon de Lonjumeau” poderd ainda ser salvo do naufrdgio, se um tenor de extraordindria altura quiser brilhar na dria que constituia as delicias de nossos avés. ‘Apesar de haver o tempo emitido um juizo assaz negativo sdbre os compositores franceses da época, Paris conseguiu fazer-se metrépole da 6pera; as numerosas obras dos musicos mencionados lograram imediato efeito popular, auxiliadas por outros fatéres, como a democratizacio e a liberdade que levaram ao teatro novas camadas da populacio e impeliram bom numero de conhecidos misicos da Europa a fixar-se na cidade do Sena. No coméco do século XIX, ali viviam quase todos os grandes compositores de dpera, rivalizando uns com os outros. Eis um pequeno resumo do registro de estréias naquela cidade: em 1825, “A Dama Branca” de Boieldieu; em 1828, “A Muda de Portici”, de Auber; em 1829, “Guilherme Tell” de Rossini; em 1831, “Norma” de Bellini. No mesmo ano, estréia-se a obra de um névo misico, Gia- como Meyerbeer (1791-1864), recém-chegado da Alemanha, mas disci- da escola italiana e rapidamente aclimado em Paris: trata-se de “Roberto, o Diabo”. Cada estréia constituia estrondoso éxito. ‘Talvez seja uma das mais dolorosas e impressionantes a decadéncia de Meyerbeer, o mais famoso compositor de éperas e verdadeiro reno- vador dessa arte, como pensavam seus contemporaneos, para simples buscador de efeitos de segunda categoria, como hoje o consideram muitos. Assim como a sua época o valorizou demais, 0 valoriza a nossa de menos. Tinha éle genuino talento dramatico; também a sua facul- dade de inventar melodias foi considerdvel, e no menos a sua arte de instrumentagio. Mas nao pode serthe atribuida exclusivamente a enorme extensdo, a ostentacdo, a exagerada sentimentalidade; o que Meyerbeer féz foi apenas realizar o que a época da restauracio exigia tanto déle como dos seus contempordneos. Os seus maiores triunfos que, durante anos, se mantiveram em todos os palcos, foram “Os Huguenotes” (1836), “O Profeta” (1849) e “A Africana” (1865); varios belos trechos de musica se encontram néles e nas demais obras do artista. A sua mestria técnica era incontestdvel e foi admirada até por Wagner. A verdadeira “Grande épera” francesa, de que Meyerbeer foi o mais puro representante, passou, como passam tédas as modas. Mas, tal qual a moda, poderd inesperadamente voltar. Ao lado de Meyerbeer aparecem outros dois nomes na histéria désse género: Jacques Halévy (1799-1862) que conquistou significative éxito com a sua “Judia”, e Berlioz, de que falaremos mais adiante. O seu talento pendia muito mais para a sinfonia do que para o teatro, e © seu romantismo se aproximava muito mais do da Alemanha que do da sua patria. Berlioz foi um Meyerbeer as avessas. A incompreen- so que, durante a sua vida, acolheu quase tédas as suas obras, esten- deu-se também as éperas “Benvenuto Cellini” (1838), (Prancha 34), “Beatrice e Benedetto” (1862) e “Os Troianos” (1869). Foi um compositor nascido na Alemanha que deu a Franca a grande 6pera, e foi outro musico alemZo que Ihe deu a opereta: Jacques 155 Offenbach (1819-1880) (Prancha 31). Desde o inicio, a opereta francesa incluiu boa parte de satira e parddia, e nisso foi Offenbach mestre inex- cedivel. Compés ritmos fulgurantes e melodias arrebatadoras, entusias- mantes; por isso, todos esquecemos freqiientemente do vivo sentimen- to de pequeninas melodias populares que éle dispersou imperceptivel- mente nas suas obras, Quase ninguém houvera suspeitado em Offenbach, © rei da opereta de Paris, mimado pelo éxito, o melancélico roméntico reconhecido apés a sua morte, quando, ao lado das suas brilhantes operetas “Orfeu no Inferno”, “A Bela Helena”, “O Noivado sob a Lanterna”, “A Cangio de Fortinio”, “A Ilha Tulipatan”, “Barba Azul”, “A Jovem de Elizondo”, Vida Parisiense”, “A Princesa de Trape- zunt”, “La Périchole” e muitas outras, foi encontrada uma verdadeira pérola, uma dpera péstuma. Depois de tantas sdtiras, de tanta alegria exuberante e de tanta vibracéo dancante, foi a vez de nobres drias de amor, dor de morte, misteriosa acéo entre sonho e realidade: “Os Contos de Hoffmann”, que contém a imortal melodia da barcarola, cujo nascimento € cercado por uma coroa de lendas. Haja, ou nao, verdade nisso, 0 certo € que nenhuma outra obra foi tio perseguida pela desventura. Desde a morte do criador que nao péde terminé-la até o medonho incéndio do “Ringtheater” de Viena, na noite da es- tréia, misteriosa corrente de trégicos eventos rodeia uma das mais romanticas melodias de amor que o mundo conhece: “Belle nuit, o nuit d’amour...” Os alemaes A 6pera alem, considerada cronoldgicamente, é a segunda; mas por muito tempo nao conseguiram os seus criadores ultrapassar uma fama simplesmente local, enquanto os seus trés maiores mestres do século XVIII se indinavam para outros estilos: Gluck escreveu as suas maio- res éperas no estilo francés, e Handel e Mozart pertencem a escola italiana, o primeiro na Inglaterra, o segundo na Austria. Nao obstante, teremos agora de fazer de Mozart o ponto inicial da épera alem4 no seu maior século, o século XIX. Entre as suas numerosas obras para teatro, sobressaem, como ja vimos, algumas em lingua alema. Aqui deveremos citar particularmente duas, nao somente alemas na lingua senZo, e muito mais, no espirito: “O Rapto do Ser- ralho” e “A Flauta Magica”. Chamou-lhes Mozart, como se fazia na- quele tempo, “pecas cantadas” (Singspiele) e no dperas, o que indica, além de uma simplicidade de aco, 0 estilo musical em que se intercala sempre, entre os diversos niimeros musicais, um didlogo falado: estava ali uma quebra de estilo, insuportavel para os italianos. (E é por isso que éles, nas suas obras, cantam também o texto intermedidrio, sob a forma de recitativo.) Os alemies, porém, conservam o didlogo e che gam, assim, 4 “Nummernoper” (dpera de mimeros), que sé Richard Wagner elimina completamente. Na opereta conserva-se ainda hoje ésse caracteristico de estilo. Também a Franca, em muitas das suas dperas, empregava 0 didlogo falado entre nimeros musicais, como por exem- plo na forma original da “Carmen” de Bizet. 156 Sem diivida, dentre tédas as obras de Mozart, a que maior éxito obteve foi “A Flauta Magica”; mas fora exagéro datar de 1791 a inde- pendéncia da épera alema. A pera italiana continuou soberana por muito tempo ainda, também nos paises de fala alema. O “Fidélio” de Beethoven — um passo 2 frente nesse caminho — em nada alterou a situago, Schubert sonhou com a pera roméntica, isto é, com a forma na qual a épera alemi alcanga realmente a vitéria, mas j4 vimos como e porque nao conseguiu compé-la com éxito. Kitftiy Pawttih » fine, cmp 418 flit Fm SSS TY Ree ee —— aT art [= Fig. 64. A “Cangdo da Espada", baseada no poema de Theodor Kérner, manuscrito de Weber, datado de 13 de setembro de 1814, Tonna. Foi o seu contemporaneo Carl Maria von Weber (Prancha 38), nas- cido em Eutin (Alemanha do Norte) em 1786, que realizou o grande desejo. A sua vida inquieta, eternamente apressada, e 0 seu corpo torturado pela enfermidade formam estranho contraste com o tran- qiiilo sentimento das suas melodias, com o lirismo popular, inteira- mente saudavel, das suas obras. Weber encontra os sons musicais capazes de reproduzir o anelo romantico que naquele tempo, como renovagi alema oriunda da alma popular, se postava diante dos olhos dos espi- ritos mais elevados; e tornou-se pintor dos sons dos bosques animados por fadas e vultos lendarios ¢ iluminados pelo sol, retratador de cenas populares com fé e supersticao. Apés longas jornadas através da Alemanha e da Austria, Weber fixou-se como regente de éperas em Praga, onde apresentou o “Fidé- 157 lio” de Beethoven que, assim, pela primeira vez, foi representado fora de Viena. O jovem misico j4 havia terminado trés éperas de sua autoria; mas a sua fama nio se originou delas; nasceu, brilhantissima, no de- correr de uma unica noite, a de 18 de julho de 1821. Nessa noite — memoravel na histéria do drama musical alemaéo — foi o seu “Frei- schiitz” (Franco-atirador) ouvido pela primeira vez e calorosamente aplaudido. Weber tornou-se de um dia para outro chefe dos composi- tores alemdes de épera, € os seus trabalhios passaram a ser ansiosamente aguardados. Enquanto, porém, no “Freischiitz” musicou um libreto real- mente ingénuo mas verdadeiramente popular que, musicalmente, con- tinha cenas interessantissimas, valeu-se para “Eurianta” e “Oberon” de libretos to fracos e desconexos que as proprias melodias, belas e ele- vadas, nado puderam salvar os trabalhos. Em muitas novidades, sobre- tudo nas grandiosas descrigées da natureza, Weber ja aqui, especial- mente no “Oberon”, direto precursor de Wagner. Weber faleceu muito méco, em 1826, em Londres, e o seu desaparecimento constituiu ver- dadeiro luto para a jovem épera alema. Os outros compositores dessa escola, apesar de talvez individualmente importantes, so simples marcos de uma estrada que conduz ao mestre de Bayreuth. Ludwig Spohr (1784-1859) foi talentoso misico. O seu “Fausto” esta substancialmente mais proximo do de Goethe que o de Gounod, que o féz cair no esquecimento. Heinrich Marschner (1795- 1861) compos uma pera que logrou grande éxito mas que hoje esta completamente esquecida, “O Vampiro”; no seu “Hans Heiling” ante- cipa um pouco 0 motivo favorito de Richard Wagner, a salvacao pelo amor. Nos nossos teatros ainda vemos hoje, as vézes, a engracada épera “Martha” de Friedrich Flotow (1812-1883), cujo estilo hesita entre o da Franga e o da Alemanha e que inclui a linda cangio irlandesa “Ultima Rosa do Verao” na {ungao de “Leitmotiv", como se diz no caso de Wag- ner. A viva e talentosa 6pera cémica “As Alegres Comadres de Windsor”, de Otto Nicolai (1810-1849), conserva o seu frescor, apesar do “Falstaff” de Verdi que se tundamenta no mesmo assunto. Mas o seu “Alessandro Suradella”, no qual descreve a romantica vida do compositor italiano, esta esquecido, como esquecido esta “O Acampamento Noturno de Granada” de Konradin Kreutzer (1780-1849) e 0 insuportavelmente agucarado “Trombeteiro de Sickingen”, de Nessler e muitos outros. Lugar especial merece Albert Lortzing (1801-1851), musico de fino espirito e melodia popular e simples; foi éle, ao mesmo tempo, autor dos libretos e compositor das 6peras que lograram muito éxito “Czar e Carpinteiro”, “Ondina”, “O Armeiro”, “O Cagador Furtivo” e outras que nunca atravessaram as fronteiras, mas que em terras de lingua ale- m4 se tornaram imensamente populares. A “Zarzuela” espanhola A “zarzuela” é a irma espanhola da opereta francesa € vienense; nas suas formas mais exigentes se aproxima evidentemente da dpera cOmica, tal qual em Paris e Viena. Mas a sua historia, quase desconhe- 158 cida fora da peninsula ibérica, é muito mais velha que a de suas irmas francesa e vienense. Talvez se inicie com as famosas “‘glogas” de Juan del Encina, que viveu durante o reinado dos soberanos catélicos € foi, por conseguinte, contemporineo de Colombo e Magalhies. A seguinte, mais importante etapa na histéria da “zarzuela” é 0 drama do grande poeta Lope de Vega “La Selva sin Amor”, representada em Madrid com acompanhamento musical de autor desconhecido. © nome “zarzuela” possui curiosa etimologia. Originase de uma quinta do mesmo nome, nas vizinhangas de Madrid, usada por Filipe IV como residéncia de verdo, desde 1634. Para 1A se dirigiam conjuntos artisticos que representavam pequenos trabalhos musicais. A tais festas se deu o nome de “Fiestas de Zarzuela”, ou, mais tarde, simplesmente “zarzuelas”. Os pequenos trabalhos parece terem atingido, quer musi- calmente, quer poéticamente, consideravel altura; talvez se haja desen- rolado na quinta 0 mesmo que descrevemos sucintamente a respeito do Palazzo Pitti de Florenga: a criacio de um névo género para satis- fazer uma classe culturalmente assaz elevada. Em todo caso, uma das primeiras obras que conhecemos, “El Golfo de las Sirenas” foi escrita por Calderén de La Barca. Nessa peca cantante (a uma pega désse género é que convém comparé-la) pela primeira vez se uniu um tema nacional 4 musica popular do pais, formando-se, dessarte, estranha mescla de elementos aristocrticos e elementos populares. A tendéncia déstes ultimos torna-se cada vez mais forte; a musica origina-se cada vez mais claramente das miltiplas e ricas fontes do povo espanhol, intercala coros e dangas, cenas de pescadores, marinheiros e campo- neses, € imimeros costumes das varias regides da Espanha, sobretudo de Madrid e Andaluzia. Mas talvez isso se tenha verificado apenas quando com a “zarzuela” se deu o mesmo que a 6pera italiana, ao ser transplantada do ambiente aristocratico para o teatro pitblico. Em pouco tempo, tornou-se ela franca favorita do povo; as suas melo- dias nao eram menos populares que na Itdlia as da épera déste pais. A “zarzuela” adotou como caracteristico 0 mimero de dois atos, s6 pas- sando muito depois para o de trés; como a opereta, mistura figuras sé- rias e jocosas, cangdes e dangas, palavras faladas e cantadas. Mas as cenas que a opereta prefere fazer desenrolar em paises estrangeiros, na zarzuela desenrolam-se sempre na Espanha. Calderén de La Barca, com Cervantes, 0 maior poeta da Espanha da época cldssica, trabalhou também como libretista, escrevendo libre- tos de épera, sem que, todavia, aparecesse néles a palavra “dpera”. Esse vocibulo, internacional, s6 aparece na Espanha, em 1698; apesar disso, numerosos trabalhos, representados nos tradicionais teatros da velha Madrid, antes dessa data, pertencem na realidade mais ao dominio da 6pera que ao da “zarzuela”. Com a progressiva popularizacao, envereda a “zarzuela” por mau caminho, e passa por um periodo de decadéncia que dura até boa parte do século XIX. Mas continua a constituir o centro da musica espanhola; nem a 6pera, nem a missica de concérto conseguem expulsdla da alma do povo. Pode dizerse que no houve misico espanhol do século passado 159 que se nao exercitasse nesse género. Nem os mundialmente famosos Isaac Albéniz e Manuel de Falla fazem excecdo. Citemos, embora levemente, alguns dos musicos caracteristicos da peninsula. A obra de um déles, Vicente Martin y Soler, cruzou-se com a de Mozart. Nascido em Valéncia, por volta de 1756 (ano em que também nasceu o grande salzburgués), dedicou-se, como todos os misicos ambiciosos, & dpera italiana. Compés também uma “Itigénia em Aulis”; mas conquistou fama com uma épera cémica, apresentada em 1786, em Viena. Intitulada “Una Cosa Rara”, 0 seu éxito obscure- ceu o “Figaro” de Mozart, aparecido na mesma época. Hoje quase ninguém se Jembra da “Una Cosa Rara”, a nao ser quando se repre- senta 0 “Don Giovanni” de Mozart, porque nesta, a qual se seguiu ao “Figaro”, o autor faz tocar pela orquestra que, no palco, executa a musica do banquete do ultimo ato, uma melodia de “Una Cosa Rara” sobre a qual a figura alegre da obra de Mozart, Leporello, costuma fazer uma observacao espirituosa ao diretor de orquestra: “Che cosa rara?” (Que é raro?) ou “E melhor alguma coisa de Mozart, maestro! E uma pequenina vinganga musical. Mas a “Una cosa rara” foi no- tével por mais de um motivo: nela aparece um pequeno trecho dan- gante no tempo de 2/,, gracioso e embalador, um precursor da valsa, muitos anos antes do aparecimento desta, e origindrio da Espanha... Em 1778 um dos melhores musicos da Itdlia juntou-se aos composi- tores da “zarzuela”: foi Luigi Boccherini (1743-1805). O destino levou-o a Madrid, onde a sua grandeza nao foi reconhecida e éle morreu na solidio. Hoje a sua Zarzuela “Clementina” estd esquecida, mas sua maravilhosa musica de cimara e outras obras instrumentais celebram uma bem merecida ressurreicao. Dos compositores de “zarzuelas” do século XIX mencionaremos mais Francisco Asenjo Barbieri e Emilio Arrieta. Particularmente a “Ma- rina” déste ultimo, dada ao publico em 1855 e transformada em 1871 numa dpera de trés atos, até hoje nada perdeu do seu primitive en- canto. Agora, vem a mais brilhante época da “zarzuela”, ligada a nomes que, fora da Espanha e da América Espanhola, nao so conhecidos, mas cujos trabalhos ocupam 1d o lugar do “Morcégo” e da “Bela Helena” e talvez sejam até mais populares. Mencionaremos apenas os cinco compositores mais conhecidos: Federico Chueca, Ruperto Chapi, Je- ronimo Jiménez, José Serrano e especialmente Amadeo Vives (1871- 1982), Entre as obras déste ultimo tiguram “Maruxa”, “Los Bohemios” e “Donia Francisquita”. Incluamos também um dos mais ilustres musicos espanhdis, cuja atividade abrange “zarzuelas” ¢ dperas: é€ Tomas Breton (1850-1923). "Los Amantes de Teruel” e “La Dolores” sio os seus principais tra- balhos no terreno da 6pera séria; mas perderam muito com o éxito sem-par da sua “zarzuela” “La Verbena de la Paloma”. Essa encan tadora obra, além de invadir todos os recantos da Jbéria, foi também representada em Buenos Aires, pelo fim do século, durante meses a fio, em cinco teatros ao mesmo tempol 160 4 esquerda: Miguel Ivanovitch Glinka (1804-1857). Gravura de Alfred Lemoine, A direita: Modest P. Mussorgsky (1839-1881). Pintura de Repin. Galeria Tretiakov de Moscou. PRANCHA $7 A Opera de Sao Petersburgo no século XVIII. Gravura de Dubois, segundo Courvoisier. © velho teatro da corte (Burgtheater) em Viena, inaugurado em 1778. Gravura de Karl Postt. PRANCHA 39 © tenor Lauritz Melchior (1890) em “Tristiéo e Isolda” PRANCHA 40 a na 20 O TRIUNFO DO ROMANTISMO Como poderoso caudal, irrompeu 0 romantismo na vida artistica do século XIX. Muito provavelmente, o inicio se deu com a poesia que pode refletir imediatamente a vida. “Deve existir”, escreveu Emile Zola, “um acérdo entre 0 movimento social, que é a causa, € a expresso literdria, que é 0 efeito”. Zola poderia ter dito: “... a expressio artis- tica”, porque tédas as artes sio uma apenas. Facamos ainda outra alteragio, e em lugar de “Deve existir um acérdo”, digamos “existe um acérdo, sempre e onde quer que seja”. Que acontecera? Politicamente, verificarase profunda revolucio: uma nova classe de homens surgia no primeiro plano, a burguesia; a0 mesmo tempo, anunciavase outra, mais nova, o proletariado. Dera-se um desencadeamento. Romperam diques. Destruiram-se regras, despre- zaram-se tradigées. De um mundo aparentemente firme — com prazer para uns e dor para outros, ambos inalteréveis — desprendeu-se de stibito um pedaco, e ruiram por terra as proporgées. Tudo se tornou inseguro para todos. Inicia-se, por um novo alvo, por novas formas de vida, por novas filosofias, por uma nova arte, uma luta que ainda hoje continua e cujo fim ninguém pode predizer. O desencadeamento, transportado para o terreno artistico, chama-se romantismo, Em lugar das velhas e rigidas regras, surge uma nova li- berdade, como tédas as novas liberdades, incerta, vaga, indefinida. £ como se num velho paldcio entrasse excesso de luz, em virtude do des- moronamento de uma parede. A principio cegaria, até que sobrevivesse o habito; iluminaria recantos dantes escuros, mostraria coisas das quais nada se sabia, e para as quais até o excesso de luz nao faria bem. Cada um se veria em todos os espelhos, € por todos os lados. No co- méco, seria uma novidade interessante, excitante; cada um a descre- veria ao outro, falaria de si, e revelaria segredos que, durante centenas de anos, jamais haviam sido sequer tocados naquele recinto. A poesia romantica, seguem-se imediatamente a musica romantica, a pintura romantica, a filosofia romantica. Como as definiremos? Os proprios teéricos do romantismo no séo muito explicitos na sua defi- nico. O romantismo é, talvez, a irrupgao do eu, a busca do fantéstico, do irreal possivelmente ligado a realidade de maneira misteriosa, o desejo de céres variadas, de sons distantes e encantadores, a confissio do que ha de mais intimo, a confraternizagio com a natureza, a unio mistica com 0 seu lado sombrio, 0 exagéro de sentimentos € paixées, 161 11 Histérla Masica o mergulho na mistica, na magica, nos recantos mais ocultos da alma humana e das suas relagées maravilhosas com 0 todo, o despedaca- mento dos grilhdes do costume, das convengées, 0 sacrificio em prol de um ideal, a busca de coragGes fraternais. Disse certa vez Thomas Mann: “O romantismo é 0 desejo de perambular e, simultaneamente, amor @ patria”. Sim, 0 romantismo é um impulso em diregio aos paramos distantes, e uma ternura pelo torrdo natal, porque é saudade, € anelo em tédas as formas... Tudo isso é 0 romantismo, e mais ainda. O romantismo € aquilo que nao pode ser explicado a quem o nao sente... Fig. 65. O contrabaixo dell’Occa. Desenho do misico e poeta E. T. A. Hoffmann. Que significa isso na arte? No classicismo, as formas sdlidamente constituidas restringem ¢ modelam o contetido; no romantismo, a idéia, © contetido da obra artistica destréi tédas as formas, para de novo formé-las, Em cada artista ~ e provavelmente em cada homem sen- sivel — € inato o romantismo; e talvez téda verdadeira obra-prima se componha de dois elementos: 0 classico visando 4 forma nobre, e o romantico com o anelo pela mais elevada expressio. Onde comega, pois, 0 romantismo na musica? Eis outra pergunta de dificil resposta, H4 muita coisa na miisica da Idade Média que se nos afigura romintica; talvez sejam também rominticas a mistica de Bach, sua fraternal familiaridade com a morte; romantica é, indu- bitavelmente, a intima identificagio de Beethoven com a onipoténcia da natureza, ¢ romanticos sio os gritos de desespéro de sua alma tor- turada, que representam a maxima confissio pessoal até hoje musicada. E na opiniio de E. T. A. Hoffmann, importante critico da misica 162 romantica, profundamente romantica é também a musica operistica de Mozart, para nés exemplo escolar de classicismo. Mas ja dissemos: téda obra-prima é cldssica, ou melhor classica e romantica ao mesmo tempo. Naturalmente, sio desiguais as partes dos dois elementos com- ponentes; com o coméco do século XIX, a mistura se inclina cada vez mais para o romantismo; cada vez mais forte é a inclinagdo, até o dia em que desaparecem de vez os derradeiros restos do classicismo. Mas isso também € o fim do romantismo. Falaremos mais pormenori- zadamente s6bre ésse ponto, quando estivermos na histéria da misica do século XX. ® claro que uma arte tio pronunciadamente sentimental como a romantica corre, as vézes, o risco de degenerar em pieguice. Se o classicismo exagerado sufoca dentro da rigidez das suas férmulas, 0 romantismo exagerado, ou sem talento, atola-se no ouropel. Basta folhear antigas partituras ou velhos poemas esquecidos do século ro- mntico. O perigo estava préximo em demasia para que nao sucum- bissem fracas personalidades. Nenhum dos “cldssicos” da musica, é claro, se sentia tal; foi a pos- teridade que assim os classificou, nesse conceito exprimindo ao mesmo tempo um principio formal e um exemplo. Mas os romanticos sen- tiram-se rom4nticos, e, mais ou menos cénscios, formaram uma verda- deira escola, uma confraternidade, certos de serem arautos de uma nova arte, em prol da qual pelejavam com a palavra escrita, a polé- mica, € os seus trabalhos. Enquanto entre Haydn, Mozart e Beethoven existiu apenas um contato superficial, quase ocasional, e nenhum en- tre Bach e Handel, muitos dos mais famosos musicos roménticos foram amigos no sentido mais elevado da palavra: cada um déles féz 0 que péde para que as obras dos outros lograssem éxito, Foi realmente uma época rara na conturbada histéria da musica. Schubert situa-se, talvez, entre os classicos e os romanticos; com éle a balanga, que jd com Beethoven comegara a oscilar fortemente, incli- nou-se pela primeira vez para o lado do romantismo. Mas Schubert nao o sabe ainda; sé sente que a sua transbordante fantasia procura cada vez mais destruir a moldura dos seus precursores. E contudo, quando Beethoven e éle morreram, ja f6ra composta uma obra verda- deiramente romantica: a “Sinfonia Fantdstica” de Berlioz. Com o ro- mantismo surge no primeiro plano a musica programatica, diria quase a misica pictérica, enquanto a absoluta, nica soberana até entdo, vai cada vez mais desaparecendo. Assim, a cangio, que no classicismo desempenhava apenas papel secundério, torna-se agora com o névo colorido sonoro do romantismo, uma das formas prediletas da nova escola; nas maos de Schumann, Loewe, Franz, Brahms, Wolf, Strauss, dos russos, dos tchecos, dos franceses, romanticos tardios j4 levemente impressionistas, atinge ela o cume que a vidéncia de Schubert Ihe havia indicado. Estreitam-se as relagdes entre as artes; novos lagos unem a misica e a pintura, que se inspiram mituamente. E a musica nao se liga apenas 2 poesia na can¢ao, sen3o também aos trabalhos teatrais de Wagner, até a ultima conseqiiéncia. Quo estreito é o lago entre 163 essas duas artes na época romantica constatamos até nos titulos dos trabalhos musicais: 0 “poema sinfénico” substitui a sinfonia, e as for- mas menores chamam-se de preferéncia “cancao sem palavras”, “balada”, “f6lha de album”, “rapsdédia”, No coméco de um capitulo sobre o romantismo na musica, nao podemos deixar de dizer algumas palavras em térno do estranho vulto que jd mencionamos, Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822). Apesar de esquecido pela posteridade, esquecido mui depressa, foi Hoff- mann um dos vultos mais caracteristicos da sua época, pintor talen- toso, poeta e muisico ao mesmo tempo. Criou a fantastica figura do regente Kreisler, representante do musico romantico, sempre em luta com a realidade, e genial até os limites da loucura. Um ou outro artista, dos quais falaremos nos capitulos seguintes, possuem algo do regente Kreisler; a propria figura de Hoffmann continua viva na épera romantica de Offenbach, “Contos de Hoffmann”, que inclui trés ma- gicos episédios da sua vida repleta de aventuras. Agora, devem desfilar perante nds as vidas romanticas. Como séo breves varias delas! Nao haverd uma ligacdo secreta entre o tempera- mento romantico e a duracdo da vida? Afogard antes do tempo a sentimentalidade exagerada, a exaltacio, 0 choque permanente com uma humanidade tantas vézes desprovida de sentimento, essas almas sensibilissimas, de maneira que o préprio invdlucro terreno perca qual- quer possibilidade de resistencia? Ou talvez a alma sonhadora e dis- tante da terra dos romanticos nao condiga com a férrea energia de um Hindel, de um Beethoven, que venceram a morte, o deménio 0 proprio coracao, ou com o tranqiiilo temor de Deus, que prolon- gou a vida de um Bach e de um Haydn? Nao ha certamente regra sem excecao: Mozart, classico, sé atingiu trinta e cinco anos, a0 passo que Wagner, romantico, foi uma natureza fortissima. Nao pretendemos estabelecer regras, mas a triste lista ¢ indelével: Schubert viveu ape- nas 31 anos, Bellini 34, Bizet 37, Mendelssohn 38, Chopin e Weber 39, Mussorgsky 42, Hugo. Wolf 48, Schumann 46 (e apenas 44, se for- mos sdmente até a sua morte mental). Outra coisa esquisita € talvez mais comovente: nao sio poucos os musicos romanticos que transpu- seram a fronteira que o homem médio estabelece entre a normalidade ea loucura: Donizetti, Schumann, Smetana, Wolf, Duparc. Varios ou- tros se aproximam désse limite, e todos éles freqiientemente nos seus momentos criadores! G segrédo mais profundo da alma humana! 6 cruel pobreza da concepgao humanal... A cortina levanta-se: num periodo de oito anos nascem os grandes muisicos que, continuando Beethoven e Schubert, imprimiram ao ro- mantismo musical a sua forma definitiva. Sao éles Berlioz, em 1803; Mendelssohn, em 1809; Schumann e Chopin, em 1810; Liszt, em 1811. E dois anos mais tarde, em 1813, Verdi e Richard Wagner, que a ter- minaram, coroaram e venceram. 164 US. SORES i DE LORCHESTRE Fig. 66, Berlioz. Caricatura de E. Carjat. Hector Berlioz Entre os primeiros compositores romanticos figura um francés, ho- mem esquisito, extravagante, verdadeiro musico do tipo de Kreisler, Hector Berlioz (Prancha 34). Nasceu éle em 11 de dezembro de 1803, na CéteSt-André, no Delfinado; 27 anos mais tarde, apés grandes dificuldades com que teve de haver-se para abracar a profissio, conquistou 0 cobicado “Prix de Rome” do Conservatério de Paris, 0 qual garante uma bélsa de estudos na Cidade Eterna. Obteve-lhe o prémio uma cantata “Sardanapalo”, e no a sua obra principal, j4 escrita, a “Sinfonia Fantdstica” que despertara o entusiasmo dos roman- ticos alemies. Esse trabalho, que tem por subtitulo “Episédios da vida de um artista”, descreve, com vivas cOres, embriaguez amorosa, sonhos apaixonados, céu e inferno de um sentimento avassalador, torturante e cruel. Nessa obra de mocidade, sem diivida retrato da sua vida desenfreada e apaixonada, grandes progressos realizou a musica descritiva, picto: 165 Fig. 67. Berlioz, Do manuscrito da Sinfonia “Romeu e Julieta”. Inicio da cena de dor de Julieta. rica. Quando Berlioz esbogou a sinfonia, Beethoven vivia ainda! Tam- bém a arte de instrumentagao enveredou por um caminho completa- mente névo. A enorme imaginacio de Berlioz no tocante aos sons félo pressentir ¢ experimentar novas possibilidades e combinacées, com as quais nenhum dos seus contemporaneos ousara sonhar. JA exigia Berlioz massas sonoras que sé tornaremos a ver na oitava sinfonia de Mahler, nas “Gurrelieder” de Schénberg e em outras pouquissi- mas obras do nosso século, mas nao nas do século déle: séo centenas de mitisicos e cantores cujo trabalho em conjunto, particularmente no seu 166 “Réquiem”, produz extraordindrio efeito. Com téda a razdo é que se pode chamar a Berlioz pai da moderna orquestra; 0 seu tratado de instrumentacao é até hoje a obra fundamental para o conhecimento da orquestra, e foi mais tarde apenas completado mas nao modificado (por Richard Strauss). A vida de Berlioz ¢ uma seqiiéncia de desilusées na arte, e de paixées na vida particular. O seu cardter extremamente complexo, que um seu contemporaneo nos descreve como “violento, ingénuo, insensato, desenfreado, mas sobretudo franco”, poucos momentos tranqiiilos, con- tentes ou felizes Ihe proporcionou. Era provavelmente um déstes, quando Paganini, que assistira a um dos seus concertos, Ihe mandou entregar, no dia seguinte, uma carta in- cluindo a quantia de 20.000 francos, suficiente para salvar uma vida. Berlioz quis agradecer ao generoso doador, dedicando-Ihe a sua mais bela obra “Romeu e Julieta” (fig. 67). Mas Paganini morreu na Ité- lia, antes que a pega estivesse concluida. Na Franca, nenhuma das criagdes de Berlioz logrou éxito, enquanto éle viveu, ocupando um pésto ridiculamente insignificante ao servico do Estado, um pésto que, além do mais, nada tinha que ver com misica. Mas seu nome viu-se aureolado pela fama no resto da Eu- ropa. Somente depois da morte — Berlioz faleceu em Paris, no dia 8 de marco de 1869 — foi que a sua misica venceu na patria, e os mes- mos que antes o apedrejavam comegaram a elogid-lo, como bem se pode ver numa caricatura da época. Os seus trabalhos foram sendo compreendidos, as éperas menos que as sinfonias € os poemas sinfé- nicos, e a linda e interessante lenda “Condenacéo de Fausto” (que, entre outras coisas, encerra a entusidstica marcha huingara de Rakoczy); © entusiasmo de todos estendeu-se também as grandiosas sonoridades do seu “Réquiem”. A influéncia de Berlioz sébre os demais miusicos romanticos foi grande. Wagner enviou-lhe, em 1860, uma das primeiras partituras do “Tristéo”, com a seguinte dedicatéria: “A Romeu e Julieta, Tris- to e Isolda, reconhecidos”. Foi um gesto raro de Wagner, o que nao impediu, porém, que Berlioz o criticasse severamente por ocasiio dos concertos de Wagner em Paris. Naquele tempo, alguém criou a acer- tadissima expressio “os dois irmaos inimigos da musica do futuro”. Felix Mendelssohn-Bartholdy Mendelssohn (Prancha 84) nasceu aos 3 de fevereiro de 1809 em Hamburgo; dois anos depois, sua familia, composta de ricos banquei- ros, vai a Berlim. Felix tem todos os dons da crianga prodigio, e lembra estranhamente Mozart. Também tem uma irma, dotada de excepcional talento que, sem duivida, se houvera tornado a primeira —e uma das pouquissimas — mulheres com génio criador na musica, 167 se 0 pai a nao tivesse convencido da opinido geral da época, de que a arte para as mulheres s6 podia ser adérno e passatempo, mas nunca profissao. © nome de Felix parece-nos um simbolo: a vida de Mendelssohn foi extraordinariamente feliz. Na casa dos pais, reunia-se 0 escol espi- ritual em concertos semanais; foi numa dessas ocasiées que o rapaz de dezessete anos dirigiu a sua ouverture do “Sonho de uma Noite de Verio”, de Shakespeare, dando prova de talento de primeirissima cate- goria. Os meios financeiros do pai permitiram que Felix viajasse, para estudo, pela Europa; dessas viagens, possuimos impressées musicais, bem como grande ntimero de desenhos. Herska I athe Ea arr? Fig. 68. Carta de Mendelssohn a sua irma Fanny. Nao sio profundas as impressdes que Mendelssohn colhe no Sul, e que depois registra na sua “Sinfonia Italiana”; talvez seja _mdco demais para penetrar o cardter latino até o Amago; vé apenas sol e muita alegria. Muito mais sériamente o impressiona a sua viagem ao Norte: a sombria paisagem da Escécia, o Palacio de Holyrood, onde a infeliz Mary Stuart exalou 0 derradeiro suspiro, tudo isso vemos descrito na sua sinfonia chamada “Escocesa”. A Gruta de Fingal, 0 168 fendmeno das colunas sonoras de basalto, inspiralhe a bela ouverture de mesmo nome. Mendelssohn compés um total de quatro sinfonias e uma sinfonia- cantata. Entre as suas melhores criagdes figuram o concérto para vio- lino € a suite para o “Sonho de uma Noite de Verao” de cuja ouver- ture ja falamos; o seu “Scherzo”, “Nocturne” e “Marcha Nupcial incluem-se entre as obras mais executadas da literatura romantica; igualmente inspiradas sio a “Danca das Silfides” e a “Marcha Fine- bre”. Verdadeira profundidade — que nfo encontramos em tédas as criagées dessa vida talvez demasiadamente feliz — revelam os grandes oratérios religiosos “Paulus” e “Elias”. Conseguiu o mtisico compor algumas lindas cangdes em tom popular verdadeiro e bem sentido, o que logrou também nos seus coros; néles, tornou-se realmente cantor do romantismo alemio, dos bosques alemaes, do caminhante de alforje as costas e do naméro com as belas das aldeias... Grande e valiosa foi a atividade de Mendelssohn como regente e organizador da vida musical. Com vinte anos demonstra invulgar ta- lento artistico, ao redescobrir a “Paixio segundo Séo Mateus” de Bach para devolvé-la ao mundo. Em 1835, fazse regente dos concertos do Gewandhaus de Leipzig ¢ firmathes a fama mundial. Oito anos mais tarde, funda na mesma cidade o conservatério, do qual um dos pri- meiros professéres foi Schumann, e onde estudaram varios ilustres muisicos. A sua vida, livre de grandes empecilhos, de duvidas cruéis e de lutas extenuantes, mas repleta de gentileza, nobres sentimentos ¢ fran- cas simpatias, terminou em Leipzig, aos 4 de novembro de 1847. Robert Schumann Se Mendelssohn foi a despreocupac&o, Schumann (Prancha 35) foi a tragédia, Néle se retine tudo quanto indicamos como caracteristico do romantismo: uma alma exuberante, mérbidamente sensivel, uma ansie- dade infinita, intranqiilidade, jubilo, desespéro, e a transposicio do limite, a entrada na soturna regiio que, para além da normalidade, se estende sem fim... O trabalho mais genial produziu-o Schumann entre 1850 e 1854, ja sob a horrivel influéncia da doenca mental que, de dia para dia, mais o afasta da vida: 250 cancées, grandiosas pintu- ras psicoldgicas, imersas em dor profunda como um abismo. No entanto, o que é de estranhar, a sua vida nao foi triste. Humi- nou-a maravilhosa estréla, e nela reinou um anjo, uma musa, uma companheira ideal, como raramente teve ao seu lado um criador, um lutador. Foi Clara Wieck (Prancha 35). Quantos anos nfo teve éle de sofrer para poder chamé-la sual O pai de Clara, seu professor de piano, nao aprovava aquéle casamento, apesar de sentir inclinacao para com o jovem Schumann, Pressentiria, talvez, a enorme desventura que em breve cairia sobre éle? O amor, porém, foi mais forte, e 0 herofsmo de Clara, com o qual assistiu posteriormente ao espéso, 169 quando as depressdes € os ataques o horrorizaram e levaram ao deses- péro, bastaria para assegurar-lhe um titulo de gléria na histéria da musica, mesmo que nfo tivesse sido uma das mais brilhantes pianistas do século. Quando Schumann morreu, Clara sé viu pela frente uma missio: tocar para o publico, durante os quarenta anos que sobre- viveu ao marido, a misica do espéso. pen Ff Fig, 69, Manuscrito dos “Dois Granadeiros”, de Schumann, sdbre versos de Heine. ‘A breve existéncia de Schumann ndo conheceu repouso: o artista serviu & sua £é artistica com as suas obras e os seus escritos. A revista musical dirigida por éle foi uma verdadeira fortaleza do romantismo. A meterica ascensio de Chopin é principalmente mérito de Schu- mann, assim como 0 ¢ 0 feliz éxito das obras de Berlioz contra encar- nigada resisténcia; foi éle que admitiu Brahms, jovem e completa- mente desconhecido, através de um artigo sumamente elogioso, a0 circulo dos mestres rominticos, predizendo-lhe duras lutas e feridas, mas também o triunfo definitive. Schumann sentiuse penetrado da sua miso; serviu no espirito (e na realidade) a uma confraternidade da nova musica, cujo principal objetivo muitas vézes identificou a luta contra os filisteus. Foi éle um Davi, e a confraria dos mtisicos romAnticos a “Liga dos Companheiros de Davi”. como éle a chamava freqiientemente, € até no titulo de uma obra para piano. 170 Nasceu Schumann em 8 de junho de 1810 em Zwickau, Saxdnia. Depois de, a contragosto, estudar por algum tempo Direito, volta-se definitivamente para a misica, a fim de fazerse pianista. Mas 0 des- tino queria-o diferente, e déle exigia coisa superior; uma paralisia dos dedos, em conseqiiéncia de exercicios demasiadamente complicados, félo encaminhar-se para a composicao. O piano continuou a ser o seu instrumento predileto, e a éle dedi- cou grande mimero das suas obras, entre as quais as primeiras 23 composigées. Pode ser considerado verdadeiro renovador da técnica pianistica, colocando sempre o virtuosismo ao servico da mais elevada idéia artistica. E 0 que demonstram “Papillons”, “Davidsbiindles (“Companheiros de Davi”), “Carnaval”, “Cenas Infantis”, “Kreisleriana” (outra referéncia a fantdstica figura de E. T. A. Hoffmann), e sobre- tudo os grandiosos “Estudos Sinfénicos”. Também a parte pianistica das suas cangées é mais poderosamente desenvolvida que em qualquer outro mestre, e as vézes, em valor, ultrapassa a da voz humana. Désse verdadeiro didlogo tira Schumann inimagindveis possibilidades para © esbéco da expressiio poética Como é explorado 0 profundo e torturante contetido poético de Heine no ciclo de cang6es “Amor de Poeta”; com que perfeicio néo complementa a musica os belos versos de Eichendorff no “Ciclo de Cangées”, e o elevado éxtase de Chamisso em “Amor e Vida de Mu- Iher"! Entre intimeras outras pérolas, escolho arbitririamente apenas algumas: “Dedicacio”, com a sua intima vibracio, “A Nogueira”, com a sua descric¢éo do ambiente, “Tu és como uma Flor”, aprofundando-se na intimidade do texto, afetuoso como o das cangées populares, “Noite de Lua”, com a sua maravilhosa expressdo do anelo noturno da alma. “Pequenina Cancao Popular”, com a sua malicia, e finalmente a gigan- tesca pintura dos “Dois Granadeiros”; como se forma a grandiosa visio de Napoledo com os lamentos dos dois legiondrios da “Grande Armée” aniquilada na Russia, como faz o fantastico apélo da Marselhesa sobre © campo de batalha ressuscitar os mortos, armados e de névo prontos para seguirem o imperadorl... E uma coisa comovente, sinistra e arre- batadora. Jamais se produziu coisa maior, em matéria de arte, concen- trado em menor lapso do tempo, pois a obra de Heine e Schumann se executa em apenas trés minutos (fig. 69). Schumann escreveu quatro sinfonias: sio musica bela e nobre, sem, talvez, alcancar o valor das obras de Beethoven ou Brahms. Impor- tantes sio os oratérios que nos legou: “O Paraiso e a Peri”, e “Pere- grinagio da Rosa”. Schumann, como tantos outros mestres, sentiu-se profundamente impressionado pelo mundo ideal de Goethe e escre- veu, poucos anos antes da morte, as “Cenas Extraidas do Fausto”. Par- ticularmente belo € 0 seu concérto para piano e orquestra, que figura entre as obras do género mais executadas. Muito menos conhecido, po- rém, é 0 concérto para violino, também maravilhosa, comovente pin- tura de alma, que o proprio autor nao mais ouviu. 171 Mais ou menos a partir de 1840, apoderouse de Schumann uma melancolia cada vez mais avassaladora. Dominado por terriveis ansie- dades, sofre inexplicaveis ataques de desespéro. Em 1854, num acesso de loucura, atira-se ao Reno. Salvo — se é que foi salvagio — inter. naram-no na casa de satide de Endenich, perto do lugar em que nas. ceu Beethoven que éle tanto venerava. Ali morreu na mais completa deméncia, aos 29 de julho de 1856. A sua confissio de fé est4 contida numa sentenca que éle, certa vez, anotou: “Sem entusiasmo, nada de certo se alcanca na arte”. E déle € ainda outra que deveria ser anotada no dirio de todos os compo: sitores: “Enviar luz & profundeza do coragio humano é dever do artista”. Franz Liszt Uma brilhante carreira, um coragao nobre, uma vida feliz, superior a qualquer mesquinhez, eis Franz Liszt (Prancha 35). Nasceu éle em 22 de outubro de 1811, em Raiding, aldeia do Burgenland, paisagem entre duas culturas, que ja fora o berco de Haydn. Mas no caso de Liszt a parte huingara foi muito mais forte; 0 seu temperamento é magiar e vem A tona em muitas das suas obras, apesar de éle quase nao viver na patria. Liszt, representante do seu povo, nao é apenas o romintico da mais pura escola alema; é também um dos mais brilhantes exemplos do “cidadao cosmopolita”. A religido da sua vida é a musica, apesar de vestir o habito sacerdotal na velhice; o Imperador da Austria deu- Ihe titulo de nobreza, mas a sua verdadeira nobreza esta no coracao. E muito embora as mulheres de toda a Europa Ihe admirem a esplén- dida aparéncia masculina, a sua verdadeira beleza est na alma. Liszt foi rei dos virtuoses; foi mais, porém: foi um criador. Mal o notou a sua época. Wagner, que de Liszt recebeu a gléria, a espdsa € nao poucas idéias musicais, obumbrou-o, como a todos. E Liszt, o desinteressado paladino do éxito alheio, nada féz para conquistar fama com as suas préprias composicoes. Durante a vida inteira foi infatigdvel assistente e conselheiro de quantos déle necessitavam, vivo incentivador, nao sdmente dos musicos do seu circulo mais intimo, sendo também de intimeros compositores de além-fronteira, de quase todos os talentos do seu tempo; muito contribuiu para a gléria das obras de Schubert e Schumann; Smetana, Borodin, Mussorgsky, Berlioz devem-Ihe coisas decisivas. Comovedora foi a sua amizade por Chopin, 0 qual, visto sob o prisma superficial nada mais era do que um “rival”; como € belo o livro que Liszt, apés a morte de Chopin, publicou s6bre a sua vida e os trabalhos do grande pianista! Foi, além disso, descobridor de César Franck, e profetizou a grandeza de Richard Wagner. Durante muitos anos, teve Liszt na Condéssa d’Agoult companheira ideal. A condéssa, impelida pela paixio ao grande artista, apés sepa- 172 Fig. 70. Fim do manuscrito de uma composigéo para piano de Listt na idade de dezessete anos. 178 rar-se do marido viajou com o compositor. Num tranqiiilo recanto dos magnificos lagos da Itdlia do Norte, nasceu Césima, filha désse grande amor e futura espdsa de Wagner. Anos mais tarde, e depois do fim ja- mais completamente explicado da ligacio com Marie d’Agoult, Liszt en- controu na Princesa Karoline Seyn-Wittgenstein uma companheira es- piritual que exerceu decisiva influéncia sdbre a sua vida e o seu tra- balho. Longas foram as lutas para que a princesa conseguisse divor- ciar-se do marido. Finalmente, o caminho para o casamento ficou livre, mas jd tarde. O artista, velho, tornara-se 0 Abade Liszt... Fig.71. Franz Liszt. num concérto. Caricatura de Janko, A esquerda: “Sutileza de Hamleto, Torturas de Fausto; as teclas tremem e suspiram. A direita: Inferno de Dante; os condenados € 0 piano gemem”, Em 1848, quando Liszt j4 era um dos mais famosos musicos da Europa, incumbe-se da direcio do Teatro de Weimar; com isso, a ci- dade de Goethe e Schiller transformase em importante centro musi- cal. Podemos ver o descortino de Liszt na escolha do repertério: estréias de “Tannhauser” e “Lohengrin”, de Wagner, “Benvenuto Cellini”, de Berlioz, “Manfred” e “Genoveva”, de Schumann, “Euriante”, de Weber, “Ernani”, de Verdi, e as mais importantes éperas de Mozart. Em con- certos dirige as nove sinfonias de Beethoven, a “Sinfonia Fantistica”, de Berlioz, e 0 “Fausto”, de Schumann. Ao mesmo tempo luta, por cartas, artigos e livros, em prol désses trabalhos, defende as tendéncias da jovem escola romantica, é uma espécie de entroncamento no inter- cambio dos jovens musicos de todos os paises, ¢ dedica-se entusidstica- mente ao preparo de vocagées artisticas. Mas, apesar de tudo, so poucos os que Ihe conhecem as composi- g6es. Quando éle, e com éle a gléria, deixa Weimar, j4 estavam quase tédas prontas: “Tasso”, “Hamleto”, “Dante”, “Fausto”, “Mazeppa”, “Les Préludes”, poemas sinfénicos. Com essas composicées, e de acdrdo com Berlioz, dé nova musica programatica a sua forma definitiva. 174 Também a idéia do “Leitmotiv” j4 aparece com Liszt; Wagner limi- tou-se a aperfeicod-la e adaptéla aos seus fins dramaticos. A reserva, e até a indiferenca com que 0 piblico acolheu as com- posigdes de Liszt a quem, ao mesmo tempo, celebrava delirantemente como virtuose do piano, fizeram com que o artista se afastasse aos poucos dos concertos, Entre as suas cangdes algumas ha de grande sentimento; os seus oratérios “Cristo” e “Lenda de Santa Isabel” sio verdadeiramente grandiosos. Sobremaneira rica é a sua obra pianistica: dois concertos para piano, a “Fantasia Hungara”, as Rapsddias, dentre as quais a segunda conquistou imensa popularidade, os Estudos, as Lendas e outras pegas no estilo livre. Nao podemos esquecer a Sonata em si menor dedicada a Schumann. Quando Liszt chega a Genebra, numa das suas intimeras viagens pela Europa, assim se registra no hotel: Profissi0: musico-filésofo. Nascido: no Parnaso. Oriundo: das divi das. Com destino: a verdade... Realmente procurou sem descanso a verdade, e empregou-a onde pode. H4 poucos vultos tio nobres quanto éle na histéria das artes. Morreu em 81 de julho de 1886, em Bayreuth, cidade de seu ilustre genro Richard Wagner, a quem o que acabamos de dizer se aplica muito menos... 175 al O DESPERTAR MUSICAL DOS POVOS Nao hé povo que nao tenha a sua musica. Foi o que dissemos no coméco déste livro. Nao significa, porém, que tédas as nagdes, em tédas as épocas, devam ter os seus representantes na Histéria da Musica. No caso de muitas delas, a musica fica por longos periodos no estado pri- mitivo sem dar 0 passo decisivo (para nés) no progresso da arte. Por isso, o exame dos tiltimos séculos se restringiu a um mimero bastante pequeno de paises: Italia, Alemanha, Austria e Franga. Foram essas as nagdes que, durante © classicismo, ocuparam o primeiro plano. Reconhecamos que @ses povos, no “concérto” da Europa, que cada vez mais se expande, foram os tnicos membros visiveis. No século XIX, outros povos ocupam os lugares ainda vazios na orquestra; muitos déles sio novatos e exer- cem a sua atividade pela primeira vez no grande conjunto; outros ainda, como a Inglaterra e a Espanha, voltam depois de longa ausén- cia, a ocupar os antigos lugares. E claro que nem todos podem desem- penhar as fungées de primeiro violinista, 0 que alias ¢ desnecessario, se pretendermos continuar com a nossa imagem de uma grande orques- tra. Na moderna orquestra todos os instrumentos sdo importantes, € nao somente os primeiros violinos, como no passado. Tal expansio da vida musical tem, além de outras razdes_psicolé- gicas, dois principais motivos. Um puramente material (na medida em que podem ser materiais as coisas déste mundo): estradas de ferro, navios a vapor e, mais tarde, as linhas telegraficas aproximam os povos, 0 intercambio cultural cresce de dia para dia, e cada vez mais dificil se torna a um povo permanecer na inatividade artistica, com vizinhos que progridem cada vez mais ripidamente. O segundo motivo é 0 romantismo. Vimos como se tornou o laco espiritual do século; por meio déle, vém 4 tona velhissimas riquezas: lendas, usos, sagas, melo- dias que dormiam havia tempos inimagindveis, revivem, cultivadas pe- los espiritos mais elevados. O romantismo cuida carinhosamente dessa riqueza; a sua poesia apresenta figuras populares, a sua musica em- prega melodias folcléricas, ritmos populares, simples harmonias de tér- Gas ¢ sextas, cantadas pelas mécas nos campos, e pelos rapazes nas dangas. As tendéncias nacionais apdiam a arte popular como manifes- tagao do cardter nacional; os movimentos revoluciondrios de fundo social véem no romantismo excelente arma para a luta de classes. © triunfo da mtsica nacional contra a internacional — na maioria dos paises representada pela dpera italiana — constitui muitas vézes, consciente ou inconscientemente, um ato de vinganga de povos subju- gados ou uma vitéria das classes humildes contra a classe dominante. 176 Richard Wagner (1813-1883). 4 esquerda: Desenho de Franz von Lenbach: @ direita: Fotografia de Grosz. Wagner em seu lar. Sentado a janela, Liszt, ¢, & sua frente, Césima, Pintura de W. Beckmann, 1880, PRANCHA 41 Creptisculo dos Deuses". Pintura de Robert Riggs. Brunhilda chora na pira funeréria de Siegfried. PRANCHA Giuseppe Verdi (1818-1901). PRANCHA 43 Corte longitudinal da Opera de Paris. Desenho de Karl Fichot e Henry Meyer. Gravura de F. Méaulle. PRANCHA 44 Mas no mundo das estradas de ferre, e do trafico que cada vez mais rapido se faz, nao pode mais o nacionalismo construir barreiras me- dievais, e é precisamente na musica que vemos assaz claramente como surge nova internacionalizacao a eliminar o nacionalismo musical. Através de rapidas ligagdes técnicas, portanto, e com o descobrimento romantico da arte popular, abre-se um névo caminho para os novos povos, os quais, na sua entrada na historia musical, se estribam em antigas riquezas populares, melodias e ritmos que Ihes pertencem, tanto que, ouvindo-os, se estabelece imediatamente a ligagéo de idéias. A Europa até entao nada disso conhecia; e a novidade provoca sensagio. exotismo torna-se moda e, como qualquer outra moda, passa a ser imitado por téda parte; ndo tardam os italianos em compor a chinesa, e os franceses em anelar pelo orientalismo. Em breve, de além-mar, chegam outras vozes: a América faz-se ouvir pela primeira vez, a prin- cipio timidamente, como qualquer caipira que pise um teatro da ci- dade pela primeira vez. O que importa, porém, é 0 aparecimento; e no século XX, 0 concérto europeu, de cujo florescimento vamos falar agora, se transforma em concérto mundial. Um punhado de terra polonesa: Frédéric Chopin Ha criadores de melodias imortais, que nos inspiram respeito € admiragio; ha outros com os quais simpatizamos desde o primeiro momento. Entre éstes tltimos figura Chopin (Prancha 35). ‘A misica eslava viveu separada da européia durante séculos, até 0 dia em que da infeliz Polénia, do pais das subjugacdes sangrentas e historia desventurada, saiu um cometa que féz 0 mundo arregalar 0s olhos e deixou em todos os coracées uma saudade infinita, quando se extinguiu repentinamente. Frédéric Chopin tornou-se o simbolo do seu pais, como homem e como muisico. Liszt no-lo descreve, com o seu sorriso meigo, nunca amargurado, a delicada transparéncia da sua pele branca de flor, a perfeita harmonia da sua personalidade. ‘Aos seus ouvidos soaram desde a infancia as cangées da sua terra, as melancélicas cangdes das jovens camponesas e os fortes ritmos de botas a bater o chdo, em encantadoras dangas. Genuino filho da Po- Inia, nasceu em Zelazowa Wola, nos arredores de Varsévia, aos 22 de fevereiro de 1810. A sua mocidade e época de estudos transcorreu num dos mais duros periodos de servidio da patria, e, na mesma me- dida em que irrompe o seu extraordindrio talento musical, cresce-lhe no coragio 0 amor 2 patria e o desejo ardente de vé-la livre. Nao tardam em chamé-lo os centros musicais da Europa. Mas éle hesita, ndo querendo abandonar os amigos que se preparam para a luta de libertagio. Finalmente, viaja, acompanhado pelo seu fiel mes- tre Elsner, a quem tanto deve; e quando a diligéncia deixa o distrito da cidade de Varsévia, os amigos apresentam-he um pequenino vaso de prata, que se tornaré a sua maior reliquia, e da qual nunca mais 177 12 bis Histéria Mésica Fig.72. Facsimile do autdgrafo da “Marcha Funebre” de F. Chopin. se ha de separar, nem na morte, Contém o vaso um punhado de terra polonesa. Viena acolhe bem a Chopin, mas nio de acérdo com o que merecia © seu génio. No momento de partir para Londres, recebe a noticia da rebelido dos amigos, das suas sangrentas lutas de barricadas contra os dominadores russos e do seu fim desesperado e herdico. Sabe, entao, que nao poderd voltar a patria, e que a sua musica cabe prosseguir a luta em que seus irmaos tombaram; sabe, mais, que deve conquistar coragdes para a Polénia e a sua justa causa. No seu passaporte, uma pequena anotacéo o autoriza a passar por Paris, Mas Paris torna-se a sua segunda patria, se nos é licito empre- gar tal expresso, em se tratando de Chopin, Alguns anos depois, diria dle, sorrindo, aos amigos de Paris: “Estou apenas de passagem...” Pen- saria na morte iminente? Ou pretenderia dizer que a sua alma delicada s6 de passagem é que poderia encontrar-se em determinado lugar? Na cidade-luz o seu éxito é enorme. Os seus concertos enchem salas e sales, as suas composigdes sio disputadas por editéres e comprado- res, e as mulheres adoram-no. Mas, no obstante, Chopin nio é feliz. ‘A alma vive-lhe longe, e, nao raro, tortura a mais negra ansiedade. Nas suas cartas de 1830 — contava éle entéo 20 anos — lemos: “Pa- reco alegre, particularmente no circulo dos meus compatriotas; mas 178 sinto em mim uma coisa que me ha de matar: sdo negros pressenti- mentos, intranqiiilidade, insonia, anelo, indiferenga por tudo; num determinado instante tenho vontade de viver; imediatamente depois, s6 desejo morrer...” Nasce melodia sébre melodia, quando os seus dedos improvisam no teclado do piano querido: melodias sonhadoras, carinhosas, tristes, saudosas, mas também revolucionarias, arrebatadoras, das quais dizia Schumann serem “canhées ocultos por fléres”. Na sua musica vibra a alma da Poldnia... O piano é a base da vida e das obras de Chopin. Aparece em tddas as suas composigées, € a maioria destas pertence exclusivamente a éle, tratese de baladas, mazurcas, valsas, prelidios, noturnos, estudos, “scherzos”, “polonaises", ou “impromptus”, que percorrem o mundo inteiro. Até quando Chopin introduz a orquestra, como nos dois con- certos para piano, éste continua a ser o elemento predominante. Para © piano viveu Chopin como virtuose e como criador. Quanto mais sensivel é um artista, tanto mais ansiosamente procura uma companheira; mas quanto mais sensivel, tanto mais dificilmente a encontra. Chopin deixou na Polénia um amor da adolescéncia. Mais tarde conheceu em Paris a mulher que desempenharia o principal papel feminino na sua vida, George Sand, a famosa e excéntrica escri- tora que tantos homens geniais soube prender. Foi o anjo ou o demé- nio de Chopin? Ninguém sabera responder com seguranga; provavel- mente, as duas coisas, como tantas vézes se verifica nos grandes améres. Ela é independente, enérgica, talvez egoista; éle ¢ fraco e doente, e por- tanto dependente, meigo, sentimental. Poderiam compreender-se? Em todo caso se amavam... Em 1838, viajam juntos para o Sul; Chopin es- pera curar a tuberculose que jd o mina. Mas em Valdemosa, em Maior- ca, uma das Ilhas Baleares, onde se hospedam ambos no velho Convento de La Cartuja, 0 seu estado piora consideravelmente; tudo o oprime, os grossos muros que Ihe parecem os de uma prisdo, com as suas pequeni- nas janelas, os corredores sombrios, 0 vento que sopra sem cessar ea chuva que cai ininterruptamente. Aumenta a sua ansiedade, e muitas vézes éle empalidece mortalmente, quando George Sand, que é forte e sadia, volta de um passeio e o encontra imerso em visdes, enquanto os seus dedos, sobre 0 teclado, reproduzem a chuva ou o vento, ou talvez os sinos distantes da sua querida Varsévia. Abre-se entre os dois aman- tes um abismo que se torna cada vez mais profundo. Um ente perfeita- mente sadio, e outro doente, mas desesperadamente agarrado a vida, por pressentir a proximidade da morte: o amor devia ser muito maior para desfazer aquéle abismo. Por volta de 1847, separam-se definitivamente. Chopin procura o es- quecimento em novos éxitos e colhe-os abundantemente na Inglaterra, cujo clima muito lhe piora o estado. Voltando a Paris, ali morre em 17 de outubro de 1849. Enterram-no num recanto idilico do velho cemitério de Pére Lachaise, entre Bellini e Cherubini, pouco distante de Heine, outro exilado que costumava chamar a Chopin “o Rafael da musica”. 179 Sobre o tumulo espalharam os amigos o punhado de terra que sem- pre o acompanhara. Tiraram-lhe 0 corago e levaram-no — ou foram por éle levados? — a patria. Assim, apds longa peregrinagio, voltou Chopin & terra natal. A alma tcheca: Bedrich Smetana Outra vida de sofrimento, dor e tragédia, mas infinitamente rica e fértil na arte. Bedrich Smetana (1824-1884) foi o bardo da sua nagio, cujas ricas melodias populares, conseguiu harmonizar com o roman- tismo europeu. As suas obras personificam a alma da sua terra, que canta ha séculos e sempre foi patria de musicos talentosos. ‘As melodias tchecas sio menos melancélicas que as dos poloneses e menos misticas que as dos russos. Como a paisagem amiga e alegre com as suas verdes colinas, os seus limpidos regatos, os seus campos férteis, as suas lindas aldeias, sio as cangoes e as dangas, muito embora, as vézes, se ouga uma melodia sombria, triste, comum a todos os eslavos. Smetana, o simples filho do seu povo, canta a histéria, as lendas, as alegrias e as dores da patria. & autor de uma das melhores dperas cémicas, “A Noiva Vendida”; nela, ergueu o ritmo popular da polca ao mesmo nivel artistico a que Chopin ergueu a mazurca, e a que Johann Strauss ergueu a valsa. Infelizmente, as suas dperas sérias, ‘Dalibor” e “Libusa”, entre outras sio pouco conhecidas no estrangeiro. Todo o seu amor 4 patria transparece no grandioso hino “Minha Patria”, obra composta de seis poemas sinfénicos. “Vysehrad”, 0 pri meiro, é um retrato do tempo dos velhos reis da Boémia; “O Moldava”, o segundo e mais conhecido, descreve o percurso do pitoresco rio, passando por aldeias em festa, parando para ouvir o canto noturno das ondinas, e por fim saudando solenemente a velha Praga que, tes- temunha de uma riquissima histéria, se ergue as suas margens. “Sarka” nos leva a época lendaria dos bardos, “Bosques e Campos da Boémia” € uma encantadora paisagem; em “Tabor” ressoam os motivos hussiti- cos dos dias histéricos das guerras religiosas; e “Blanik” coroa a obra inteira, como um hino de vitéria e de fé no ressurgimento da na- gao tcheca. Grande contraste com essa obra constitui 0 seu belissimo quarteto de cordas, “Da Minha Vida”, tranqiiilo e comovente quadro psicoldgico. A vida de Smetana foi triste, e admirdvel foi a energia, que féz com que vencesse tédas as dificuldades e seguisse, sem hesitar, o seu caminho. Em virtude da tendéncia nacionalista dos seus primeiros tra- balhos, tornou-se suspeito is autoridades austriacas que trataram de suprimir qualquer veleidade de separatismo tcheco; 0 pior, todavia, foi para éle a incompreensio do seu proprio povo. No estrangeiro, s6 um homem o compreendeu, Liszt, que pressentiu sempre a grandeza. Smetana, em 1856, abandona a terra natal e fixa-se na Suécia. Mas como se o seu espirito continuasse a trabalhar na patria, ocorre ali 180 uma transformacio: 0 povo inteiro contribui para a construgio de um teatro nacional tcheco. E Smetana, que o sonhara por tio longo tempo, é nomeado primeiro diretor. Em 1866, dé-se a solene inauguracio. S40 poucos, contudo, os anos felizes de Smetana, pois o acomete e aniquila a tragédia de Beethoven e a de Schumann: surdo desde 1874, morre louco em 1884. Com a sua morte nfo se apaga, porém, a tocha da musica tcheca, como se deu com a mtisica polonesa, ao falecer Chopin. Foi 0 préprio Smetana que ensinou o seu vitorioso sucessor: Antonin Dvorak. O Oriente infinito e desconhecido: A Russia A Russia € um mundo em si, a estenderse entre o Ocidente e 0 Oriente. Encerra os mil e um segredos da Asia misteriosa, os primi- tivos mistérios da humanidade. Centenas de povos, linguas e racas, costumes e hdbitos ali se aglomeram constituindo, de um modo ou de outro, uma unidade. Das velhas rochas brotam as centenas também as suas fontes de musica. Muito antes que na Russia surgisse a muisica artistica, havia musica popular e religiosa. A origem da primeira perde-se na noite dos tempos; mas a origem da mitsica religiosa énos bem conhecida. A igreja ortodoxa russa continua 0 que recebeu de Bizincio; assim, a sua musica tem parentesco com o coral gregoriano, o canto liturgico judaico e talvez com um sem-ntimero de melodias asidticas anteriores ao cristianismo. A musica popular russa revela, como a dos demais eslavos, profundos sentimentos que, as vézes, raiam o exagéro. Sio seus sinais caracteristicos a melancolia e a fuiria repentina; a melan- colia, sinal tipico das cancdes de povos subjugados, parece ser, neste caso, 0 reflexo da paisagem, das estepes infindas, dos grandes rios, das florestas e dos pAntanos impenetraveis, das desalentadoras extensdes de neve. As cancées das planicies sio sempre tristes... © russo é profundamente musical; a musica alterna constantemente com a vida. H4, na Russia, abundancia de vozes, sobretudo baixos que, descendo mais que os baixos de outros paises (com excecio, tal- vez, dos negros), parecem verdadeiros érgios. As dangas so muito caracteristicas, e estimuladas por um ritmo assaz forte, parecem as vézes mais atos cultuais que dancas, no sentido europeu da palavra. Tudo na Russia é diferente do resto da Europa. Chopin e Smetana, também eslavos, personificam, contudo, a Europa, mas 0s russos, de cuja entrada na histéria da mtsica falaremos agora, sio asidticos, sio 0 Oriente. E so pouquissimas as pontes entre ésses dois mundos, cabendo & mitisica funcio das mais importantes. Apesar de tudo, 0 que os europeus conseguem imitar — e 0s compositores russos tém encontrado intimeros imitadores — so as formulas, a veste, muito raramente 0 corpo e nunca a alma. A alma da Riissia é como um mar: sé quem vive néle é que © conhece. O europeu pode perceber na mtsica varias coisas, porque ela reflete a alma russa, assim como os raios do sol penetram um 18] pouco no mar. E vé, entdo, um povo torturado, silencioso, paciente, ou furiosamente revoltado, um povo reservado e comunicativo, talen- toso e apatico, cruel e bondoso, pagio e crente, tudo combinado na maneira mais extremada e contraditdria. No século XIX, aparece pela primeira vez a musica artistica russa que, como em téda parte alids, é a principio uma reacio contra a pera italiana, a qual cem anos antes entrou nas principais cidades; ao mesmo tempo, é uma rea¢o social contra a cérte e as camadas aristocraticas, que apdiam tudo quanto é estrangeiro e desprezam toda tentativa de musica nacional, considerando-a “musica de cocheiro”. ~ 2. tn Cumann pt S Lip weap Ci toe ia Ae om Fig. 73. Marcha ¢ céro triunfal de “Uma Vida para o Czar”, manuscrito de Glinka, 1852, A primeira musica nacional russa é uma 6pera, talvez para com- bater os italianos no seu préprio terreno, talvez por nao haver outro modélo. Assim, Michael Glinka (1804-1857) compés, animado pelo de- sejo “de escrever alguma coisa tipicamente Tussa, conhecida de todos os a épera “Uma Vida para o Czar”, acolhida em 1836 com entusiasmo. ‘Tanto nessa dpera, como na seguinte “Ruslan e Ludmilla”, emprega Glinka com extraordindria habilidade melodias populares russas, além de dancas e coros. O despertar da musica russa foi facilitado e apoiado por extraordi- nario florescimento simultaneo da literatura nacional, com personali- dades do porte de Puchkine, Dostoievsky, Gogol e Tolstoi, cujas obras serviram repetidas vézes de base para trabalhos musicais, especialmente os dramas e versos de Puchkine, que tornaremos a encontrar neste livro. Ao lado de Glinka, depara-se-nos um forte talento, Alexander Dargo- misky (1813-1869), animado pelo mesmo desejo da musica russa. As suas melhores obras sao as dperas “Russalka” e “O Héspede de Pedra”, como o titulo indica, pardfrase do eterno tema de Don Juan, aqui 182 remanejado por Puchkine, a quem, digamo-lo jd, devemos também os libretos de “Boris Godunov”, de Mussorgsky, “Pique Dame” e “Eugen Oniegin”, de Tchaikovsky. Glinka e Dargomisky sio seguidos por uma geracio igualmente interessante sob 0 ponto de vista artistico e humano. Sao cinco ami- gos, cinco amantes de musica, Alexandre Borodin (1884-1887), César Cui (1835-1918), Mili Balakirev (1837-1910), Modest Mussorgsky (1839- 1881) e Nicolai Rimsky-Korsakov (1844-1908). Todos éles sao talento- sissimos, e dois s40 génios: Rimsky-Korsakov e Mussorgsky, sendo éste ultimo um dos maiores compositores de todos os tempos. Nenhum dos cinco se destinava originariamente & musica. Borodin, © mais velho, era médico e quimico, e irénicamente a si proprio cha- mava de “rmisico domingueiro”, modesto apelido para o criador de trés interessantissimas sinfonias, bela musica de cimara, cancdes senti- mentais, das “Dancas Polovetsianas” que esto inclufdas no “Principe Igor” e do nao menos brilhante poema sinfénico “Nas Estepes da Asia Central”! A sua preferéncia pelos temas orientais exerceu grande influéncia s6bre os seus colegas e, mais tarde, sobre intimeros compo- sitores europeus e até americanos. Balakirev, a alma do grupo, foi, apesar do seu temperamento apai- xonado, um bom organizador. Quando em 1859 chegou a Sao Peters- burgo para estudar com Glinka, travou amizade com Cui que, naquele tempo, freqiientava a academia militar e, aos poucos, conseguiu reunir em térno de si, nZo apenas o grupo dos cinco — que gostava de cha- mare, como uma espécie de auto-ironia “a poderosa turbazinha”, mas também grande parte da musica ndvo-russa. (Como oposicionista existe apenas o circulo formado ao redor dos irmaos Rubinstein; Tchaikovsky, antes, féz parte déste grupo, mas, apesar de diferencas técnicas, era amigo dos “cinco”). Dentre as suas composi¢6es citaremos o forte poema sinfonico “Russia”, que inclui temas populares de grande beleza, e “Thamar” de tendéncia oriental, para a qual contribuiu com éxito Balakirev também com a sua peca para piano “Islamey”. Cui, que chegou a ser alta patente militar, mas que pertenceu de corpo e alma & musica, escreveu a sua primeira épera sobre um tema russo do fértil Puchkine, “O Prisioneiro do Caucaso”, para mais tarde tratar de temas internacionais, como “William Ratcliff” e “Henrique VIII”. De téda a sua obra musical pouco foi o que transpés as fron- teiras da p4tria (por exemplo a bela “Melodia Oriental”). E agora passemos a Mussorgsky (Prancha 37) um dos mais atraen- tes vultos da histéria da musica. Poderia ser protagonista de um dos romances de Dostoievsky, a “alma desnuda da Russia” como o chamou alguém com acérto. Depois de alegre mocidade, enceta a carreira mili- tar, seguindo o caminho dos jovens nobres da época; envergando o brilhante uniforme do exército czarista, freqiienta os saldes e trans- forma-se em favorito de todos, com os seus expressivos olhos azuis € a sua maneira de tocar piano. De repente, domina-o uma coisa esqui- sita, sente o vacuo, a mentira daquela vida, o absurdo da sua pro- fissio, e © leve verniz de uma sociedade apodrecida, B ota, entao, 183 poderosamente a sua verdadeira vocacio: nfo apenas misico, mas voz do povo, dos dominados, dos pobres. Desliga-se do exército e aban- dona tudo quanto constituira até ento a sua vida. Sem nunca ter estudado profundamente a musica, tortura-o indizi- velmente nao poder dar forma artistica as suas idéias, copiosas; as visées cercam-no dia e noite, e éle ouve ininterruptamente sons mis- teriosos. Tenta fixé-los, anota, faz planos... e, no seu desespéro, busca no Alcool o esquecimento. Rimsky-Korsakov, que com éle viveu du- rante longos anos, conta-nos a vida de Mussorgsky que, A medida que passam os dias, se aproxima cada vez mais do abismo e da geniali- dade. Cada vez mais breves sao os intervalos entre os excessos alcodli- cos; mas bastam poucas horas de lucidez para fazer nascer, como que por encanto, uma obra incompreensivelmente grandiosa, melodias pujan- tes € majestosas, ternas e tristes, como sé muito raramente foram escri- tas mais comovedoras e espontaneas. Nelas, misturam-se realidade e sonho, popularidade e arte, ingenuidade e misticismo, diletantismo e maior genialidade. Mussorgsky deu ao seu pafs, com “Boris Godunov”, a maior dpera, um espetaculo de massas, no qual o verdadeiro heréi € 0 povo, (Pran- cha 88), a saténica, fantdstica visio da “Nojte no Monte Calvo” o maravilhoso ciclo plastico dos “Quadros de uma Exposicao”, origi- nal para piano e mais tarde transcrito para orquestra com mestria por Maurice Ravel, as encantadoras “Cenas de Quarto de Crianca”, outras éperas com espléndidas melodias e grandiosas situagdes como “Kho- vantchina”, e “A Feira de Sarotchinki”, as fantdsticas “Cancgdes e Dan- cas da Morte” e outras intimeras cangdes, um verdadeiro mundo de inesgotavel riqueza, do qual sé pequena parte o Ocidente conhece. Em 1881, Mussorgsky foi encontrado caido na rua sob a influéncia aniquiladora do dlcool; e morre justamente no seu quadragésimo-se- gundo aniversdrio, num misero dormitério de hospital, rodeado de esfarrapados pelos quais, muitos anos antes, renunciara a uma vida calma € aos quais ergueu, com a sua musica, um monumento imortal. Rimsky-Korsakov é 0 mais jovem, mas técnicamente o mais maduro e disciplinado dos amigos conhecidos na histéria pela alcunha de “Grupo dos Cinco”. Oficial de marinha, varias vézes percorreu o mundo, entrando em contato com diferentes culturas, apesar do inega- vel caracteristico russo da sua musica, é éle, por vézes, um pouco mais cosmopolita que os amigos, mais préximo dos seus compatriotas Tchaikovsky e Glazunov. A sua obra inclui todos os ramos: éperas de grande beleza como “Sadk6é”, “Czar Saltan”, “Snegurotchka” e “Lenda da Cidade Invisivel de Kitech”, pecas para orquestra, como sinfonias, uma “Sinfonietta”, os poemas “A Grande Pascoa Russa”, “Noite de Natal”, e a encantadora “Scheherazade”, em que ressuscitam todos os contos das Mil e Uma Noites. Além disso, muitas cangdes inspiradas e melodiosas. Nao estd ainda esgotada a obra de Rimsky-Korsakov. Escreveu éle um interessante Tratado de Instrumentagao, com valiosos exemplos. E gastou horas a fio para rever e corrigir os trabalhos dos amigos. 184 Assim, por exemplo, a “Terceira Sinfonia” e a épera “Principe Igor” de Borodin foram, depois da morte do artista, encontradas incom- pletas, proporcionando ao jovem Alexander Glazunov (1865-1936) a oportunidade de conquistar os seus primeiros galardées musicais. Quanto a Rimsky-Korsakov teve oportunidade de empregar os seus excelentes conhecimentos de orquestracdo. Muitas obras do seu cfrculo de amigos foram por éle retocadas, polidas, instrumentadas, sem ne- nhum alarde. Sémente num caso o seu procedimento desinteressado provocou protestos e grandes discusses e justamente no caso do seu melhor amigo, Mussorgsky. E uma verdade incontestével que o “Boris Godunov”, tal qual 0 conhece hoje 0 mundo, difere bastante do ori- ginal de Mussorgsky; talvez tenha exagerado a mao ordenadora de Rimsky-Korsakov, talvez 0 seu academismo tenha conformado dema- siadamente as regras as liberdades de um génio. Mas de outro lado, & duvidoso que a representacio na forma original, se realizada, hou- vera logrado tornarse conhecida. O retoque é um dos problemas mais discutidos da musica e de qualquer outra arte. Muito raramente se harmoniza 0 temperamento do criador com o do retocador! No caso das sinfonias de Bruckner, veremos logo um paralelo na musica de orquestra. Rimsky-Korsakov deixou mais uma obra, um documento de grande valor, a sua autobiografia, intitulada “Minha Vida Musical”. Nesse livro, conta-nos com palavras simples e sem vaidade a histéria como- vente daquela rara amizade, da alegria e do sofrimento, dos trabalhos e dos sonhos, das derrotas e das vitérias dos “Cinco”. O Setentriao canta a sua solidéio: Edvard Grieg Talvez figure a misica popular escandinava entre as mais velhas da Europa. $6 podemos suspeitar a sua existéncia nos tempos longin- quos, quando os bravos homens do norte enfrentavam o oceano e certamente atingiam a América; 0 descobrimento de antiqitissimos ins- trumentos de s6pro, os “Luren”, confirma o amor que ésse povo dedi- cava a misica. Apesar disso, pouca musica artistica ultrapassou as fronteiras da Es- candindvia até o século XIX. Na Suécia, viveu Johann Helmich Roman (1694-1758), contemporaneo de Handel, a quem se parece também bas- tante no estilo; tratase de um compositor barroco, considerado “pai da misica sueca”. A vida musical dinamarquesa ligava-se fortemente & alemi; é 0 que se depreende do fato de o grande Buxtehude, que Bach visitou, ser dinamarqués de origem, ao passo que o hino nacional da Dinamarca foi escrito por um alemio, Friedrich Kuhlau (1786-1832), 0 qual viveu em Copenhague e ali, no tempo de Beethoven, escreveu numerosas éperas. No romantismo, a Escandindvia produziu algumas interessantes personalidades musicais, como o sueco Franz Adolf Ber- wald (1796-1868) que escreveu nove grandes sinfonias, no estilo de Beethoven. Na Dinamarca, Johann Peter Emil Hartmann (1805-1900) cria pecas de teatro assaz representadas, além de cantatas € mtisica 185 sinfOnica no estilo romAntico. Mas s6 seu genro Niels W. Gade (1817- 1890) € que se torna célebre na Europa. Apesar de as suas obras quase nunca mais aparecerem hoje, o seu nome se encontra nos anais do Gewandhaus de Leipzig, onde exerceu por longos anos, a sua atividade como regente, a0 lado de Mendelssohn. Mencionemos finalmente, 0 dinamarqués Peter Lange-Miiller (1850-1926) que se tornou bastante popular com uma comédia lenddria (“Era uma vez”) e muitas cancées. Frlon 4 () Fig. 74. Autégrafo com assinatura de Niels W. Gade. Hoje, a fama musical da Escandinavia se concentra numa tnica fi- gura do século XIX, Edvard Grieg (1843-1907) (Prancha 47), orjundo de Bergen, cidade da Noruega. A sua f6rca reside, além da técnica extremamente elegante, habil, européia, na elaboracio magistral do interessante material da sua patria. Na musica de Grieg hd o roman- tismo daquelas regiées solitarias, dos fiordes melancélicos, dos majes- tosos cumes cobertos de neve; e tédas as velhissimas lendas de deuses € herdis, andes e gnomos revivem em melodias e ritmos que, antes déle, ninguém soube compor. A principal obra de Grieg ¢ a bela musica para o drama do seu grande compatriota Henrik Ibsen, “Peer Gynt”; alguns dos trechos riquissimos de melodia, como “A Morte de Ase”, “Danga de Anitra” e “Cangéo de Solvejg”, popularizaram-se no mundo inteiro. Muito conhecido é 0 seu Concérto para piano, um dos mais brilhantes do género, magistral combinagdo de melodias regionais e técnica universal. Em 1871, fundou Grieg uma sociedade de mtsica, de grande importan- cia, em Cristidnia (Oslo); 0 govérno da Noruega concedeu-lhe uma pen- sio vitalicia que Ihe permitiu passar 0s tltimos anos inteiramente dedica- do ’s composigées, na cidade natal de Bergen. Ali, sonhando com os navios que singram os mares do mundo, morreu tranqiiilo e famoso. Mencionemos ainda outros dois compositores noruegueses: Johann Svendsen (1840-1911) e Christian Sinding (1856-1941), cuja fama cor- reu mundo, embora nfo alcancassem a categoria de Grieg. Halfdan 186 Wyss Ws = ~ 7 Fig. 75. “Niipcias em Troldhaugen”, de Grieg. Manuscrito do autor. Kjerulf foi outro compositor talentoso de belas cangées, muito apre- ciado por Grieg. O mais interessante, porém, continua quase desconhe- cido do mundo: Rikard Nordraak (1842-1866), que foi um dos génios que se consumiram no préprio fogo; morreu aos vinte e quatro anos, como arauto da musica nacional norueguesa. O hino do seu pais é fruto do seu entusiasmo; muito provavelmente fora inimagindvel um Grieg sem ésse infeliz precursor, 187 22 WAGNER Mozart, ou o divino; Haydn, ou a alegria; Beethoven, ou a revolu- co; Chopin, um punhado de terra polonesa; Smetana, a alma tcheca... Que designacio servira para Wagner? Como poderemos definir um homem em quem uma época inteira atinge o seu apogeu e se esgota? Mago, profeta, tirano? Filésofo, poeta, musico? Ou, somando tudo, génio universal? A bibliografia de Wagner é ainda maior que a de Beethoven. Mas enquanto esta, com raras excecdes, testemunha a veneracdo geral, a de Wagner apresenta, na sua maioria, violentas polémicas. Wagner despertou entusidsticos hinos de jubilo, mas também furiosos cantos de édio, téo ardorosos ambos que nenhum outro vulto da histéria da miisica chegou a despertar iguais. Wagner é uma daquelas gigantescas figuras sébre a qual se pode escrever em qualquer forma imaginvel, menos uma: a indiferente. Foi éle um dos artistas mais discutidos de todos os tempos. Nao foram apenas o publico e os criticos que a luta sdbre o artista arreba- tou, foi a época inteira, inclusive politicos e filésofos. Os seus par- tid4rios viam néle um deus; os adversdrios chamavam-lhe desleal, egois- ta, vaidoso, sem cardter. A luta em térno da sua obra foi violenta, sem paralelo, separou amigos, ergueu barreiras dentro de familias ¢ de cidades, separou mestres e alunos, criou novas frentes em t6das as artes, Em Paris, um empresdrio viu-se obrigado a rogar ao ptblico antiwagneriano que aguardasse pelo menos o fim da peca, para dar inicio 4 infernal celeuma e ao ensurdecedor concérto de assobios; em compensagio, os partiddrios do musico alemao se obrigariam a nao pedir, mediante os aplausos, repeticao de trechos... Muitos anos depois, na mesma cidade que j4 desempenhara um papel na histéria de Wag- ner, com a escandalosa derrocada do “Tannhiuser”, e na qual, geral- mente, as lutas artisticas provocam paixdes mais violentas que em qualquer outra, desenrolou-se sangrenta luta durante a estréia de “Lohengrin”... 7 JA dissemos que na obra de Wagner chega ao apogeu a miisica de uma época. Foi éle que despedacou os uiltimos grilhées que resistiam A revolugio de Beethoven. Foi éle que transformou as melodias que possuem medida e simetria infinitas que se ramificam como regatos, desaparecem as vézes quase completamente, se expandem, tornam-se mais velozes, desviam-se de empecilhos e, finalmente, desaguam, mas 188 no terminam... Na obra de Wagner, completase, esgota-se, a sua época. Todos os musicos foram como que ofuscados por éle e, depois da sua morte, todos os caminhos se viram soterrados. O seu legado, como 0 de qualquer ditador, foi o caos. Continuam vivas tédas as suas obras, com a insignificante excegio de algumas tentativas da mocidade, o que constitui caso wnico na histéria da musica e, entre os compositores sinfonicos, apenas igualado por Beethoven. Desde “Rienzi” até “Parsifal", coroa dos seus trabalhos, tédas as suas obras, onze grandes dramas, fazem parte do repertério dos teatros do mundo inteiro; comovem-nos, como nos comoveram ontem pela paixdo verdadeira e torturante da sua musica, e fascinam- nos, como antes, pelos eternos problemas que nos apresentam. Wagner é, ao mesmo tempo, poeta e compositor das suas obras, e em ambos misteres perfeito; excede, assim, os demais compositores de éperas que devem procurar, com esférgo, 0 que a éle toi dado pela natureza: a unidade artistica. Wagner penetra as mais profundas questdes da humanidade. O que Beethoven fixou no seu maravilhoso mundo abstrato de sons, fixa Wagner no teatro de trés dimensdes. E 0 estranho néle é que sabe de tal forma enredar nao sémente o amador que desconhece inteiramente a técnica da composigio, embria- gando-o com um mar de visdes poéticas e musicais, como também 0 espirito eleito que, além das imagens movimentadas e das melodias extaticas, pressente a abundancia de elevadas idéias que, desde o prin- cipio, movem a humanidade; finalmente, entusiasma 0 técnico que admira o mosaico perfeito dos seus “Leitmotive” e das suas infinitas melodias. Sentir Wagner é facil; compreendé-lo, dificil. A dificuldade de com- preenséo esta menos na musica do que na idéia fundamental e na sua veste lingiiistica. Apesar da monumental construgao, a andlise mu- sical é relativamente simples, tendo Wagner facilitado o caminho pela introdugao do “Leitmotiv” que orienta o ouvido e estimula o pensa- mento. Por “Leitmotiv” entendemos as breves frases musicais indissoli- velmente ligadas a determinadas pessoas, idéias e coisas de importancia na peca. Tais frases, necessariamente tao simples que, a0 aparecerem nas vozes ou nos instrumentos, devem ser reconhecidas sem perda de tempo, tornam-se cada vez mais freqiientes na obra de Wagner e cons- tituem no “Anel do Nibelungo” o sdélido arcabougo de idéias mu- sicais de que se compéde o gigantesco drama. Assim, ha nessa obra, além de muitos outros, os seguintes motivos principais: para Siegfried, Wotan, Hagen, Alberich e a Valquiria; motivo para o Anel, 0 fogo, © ouro, o Castelo Walhall dos deuses, os gigantes, os dragées; e outros, para a renuncia do amor, a maldigdo do amor, e a fora das leis, sim- bolizada pela langa de Wotan. Cada um désses motivos é musical- mente muito simples e caracteristico; Wagner consegue que o ouvinte, © qual lhe compreendeu o sentido, siga o desenrolar, e mais ainda, que siga o conteudo da pega, o que, evidentemente, lhe proporciona consideravel estimulo mental. Eis dois exemplos: 189 Na “Valquiria”, na segunda noite do grande drama que acabamos de mencionar, assistimos a entrevista entre Siegmund e Sieglinde, os dois irmaos que, sem o saberem, voltam a encontrar-se apés longos anos. Sieglinde conta ao irm4o que, para ela é ainda um desconhecido, a sua triste vida, como se viu forcada a desposar Hunding, como, durante o festim das nupcias, um misterioso anciio entrou na casa, e, terrivel para todos, menos para ela cravou uma espada no tronco da drvore que suporta o teto. Ninguém conhece o estranho héspede; mas Wagner, acompanhando as palavras de Sieglinde, faz ressoar, meiga € ternamente, um motivo que revela ao ouvinte a identidade do mis- terioso vulto: Wotan, o deus. Assim, jd sabe o espectador o que as personagens do drama ainda no sabem. Outro exemplo, tirado do mesmo drama, é o da cena em que Sieg- mund cai morto pela langa de Wotan. A valquiria que, com 0 coragio em sangue, teve de ver o resultado da luta, corre para a semidesfale- cida Sieglinde a fim de salvar da furia do deus a irma e amante de Siegmund, culpada e inocente ao mesmo tempo. Sieglinde, completa- mente desfeita, s6 deseja a morte. Mas uma frase da valquiria a obriga a mudar de idéia: “... porque, 6 mulher, tu é que trazes no seio o mais ilustre heréi do mundo...” Passar-se-o meses, e Sieglinde, sozinha na floresta, dard a luz o filho; transcorrerao anos e o rapaz receber4 um dia dos lébios da valquiria o nome: Siegfried. Mas o espectador sabe a concatenacio, no mesmo instante em que Brunilda canta aque- las palavras: na orquestra brilha herdicamente o motivo de Siegfried: s6 éle é que pode ser “o mais ilustre herdi do mundo”, profetizado pela valquiria. Assim, poderiamos dar intimeros exemplos dessa técnica que, embora nfo inventada diretamente por Wagner, por éle foi desenvolvida e se tornou a pedra fundamental do drama musical. Comparo tal técnica a am grandioso mosaico cujas pedrinhas sAo os “‘Leitmotive”; quanto a0 ouvinte, como o observador de um mosaico, admira a obra téda ou as minticias que a compoem. Nasceu Richard Wagner em 22 de maio de 1813, em Leipzig. Ini- cia-se a sua carreira como a de qualquer outro regente de orquestra alemio, com a atuagio nos teatros de provincia. Shakespeare e Beetho- ven sao as suas duas primeiras e fortes impressdes, e talvez tenham contribuido para que éle sentisse cada vez mais a torturante estreiteza do seu circulo de atividade, cuja deprimente rotina nao lhe possibilita o desenvolvimento de suas forcas criadoras, Assim, foge 0 nosso artista, em 1839, abandonando o pésto em Riga, cruza num veleiro 0 Mar Baltico eo Mar do Norte, passa alguns dias em Londres e chega final- mente, sem um niquel no bélso, 4 Franga. A tempestuosa viagem ma- ritima amadureceu néle a sua primeira obra realmente pessoal, o “Na- vio Fantasma”. Caiu-lhe por acaso entre as maos uma versio de Heine da antiga lenda maritima do navio fantasma de velas pretas, que sin- gra os mares, e do seu capitao condenado, por forca de uma maldicio, a percorrer incessantemente os mares até o fim dos tempos. Heine, ro- 190 mintico, acrescentou um traco profundamente poético que Wagner nao hesitou em adotar e que se tornaria um dos seus melhores temas: a salvagio pelo amor. O infeliz navegante desembarca cada sete anos, para procurar, sempre em vao, uma mulher que esteja pronta a ama- lo, embora conhe¢a o seu terrivel segrédo. Eis ai o conteudo do “Navio Fantasma”. O navegante conhece Senta que, num pressentimento mis- tico, estivera a esperd-lo; mais tarde, julga-a infiel e volta para o mar. Mas ela do mais alto rochedo da costa salta atrds déle, gritando-lhe jubilosa o nome querido. Naquele momento, a luz vara as nuvens, e dois vultos felicissimos, salvos, voam para o céu... (Prancha 42). Wagner comegou febrilmente a musicar o drama; para isso imaginou nova linguagem musical, desde o preltidio, com o bramir do oceano, até o sombrio e fantastico mondélogo do holandés, desde a balada de Senta até o fim apotedtico. Tudo escreveu éle durante os deprimentes meses de Paris, que nunca mais Ihe sairam da lembranca por causa das suas preocupagées financeiras, da sua humilhacdo artistica e da sua falta de esperanga. Sejamos justos: Wagner era, quando chegou a Paris, um jovem musico completamente desconhecido, falando mal o francés, e a espera de que todos se inclinassem diante déle. Pressentia a sua futura fama, como fazem muitos génios; mas exigir que os outros também o pressentissem, era forte pretensio. Apesar de tudo, encontra em Meyerbeer poderoso estimulo, e a éle se deve a apre- sentacio de “Rienzi”, em Dresden em 1842, constituindo o seu pri- meiro e lidimo grande éxito. Essa épera, escrita em Riga — aqui ainda se justifica a denominacio de épera, o que ja se nao da mais tarde em relagio as demais obras — abriu caminho para o “Navio Fantasma’, varios meses depois representado no mesmo teatro, e firmou a posi¢ao do compositor de tal maneira que éle abandonou o exilio de Paris e se fixou como regente de orquestra em Dresden. Em 1845, verifica-se a estréia de “Tannhauser”. Nesse drama, va- lendo-se da liberdade do poeta, mescla Wagner dois temas indepen- dentes: a saga popular da deusa do amor, Vénus, cujo reino subter- réneo éle transpée para as montanhas da Alemanha Central e a competicao dos “Minnesinger” (trovadores alemies), de que j4 falamos num dos capitulos anteriores. Tannhauser, o heréi do drama de Wag- ner (e da citada lenda) passa alguns anos no reino noturno da deusa do amor, onde nao ha tempo, nem primavera, nem sinos. Atrai-o, po- rém, mais uma vez a terra — mortal comum que é, nao foi feito para o deleite eterno — e quando Vénus, finalmente, apés longa resisténcia, Ihe concede a liberdade, vé-se éle de repente na floresta luminosa, nao longe do Wartburgo, para onde volta, guiado pelo amigo Wolfram. Ali, realiza-se a competigio que tem como tema o amor ¢ & qual assiste Elisabeth, a sobrinha do landgrave que, durante téda a auséncia de Tannhiuser, evitou as festas. Os “Minnesinger” celebram 0 amor em palavras castas, chamando-lhe delicada planta, espiritual, nobre vit- tude cavalheiresca. As recordagées acossam Tannhauser que, apés ter- rivel luta intima, no podendo calar por mais tempo, empunha a 191 Fig. 76. “Tannhéuser”. Gena do Wartburg, na representacéo do teatro da corte, de Dresden, aos 19 de outubro de 1845. Leipziger Illustrierte, 1846. harpa e canta apaixonadamente o elogio de Vénus, do amor embria- gador, aniquilador... A sala parece um campo de batalha; os ca- valeiros avancam, de espada desembainhada, contra o blasfemador. Mas Elisabeth interpde-se entre o coracio de Tannhiuser e as armas; ninguém foi mais ferida do que ela, que o ama, € é por isso que os seus rogos tém férca redobrada; Tannhiuser segue em piedosa pere- grinagio para Roma, a fim de solicitar do Santo Padre perdao para 0 seu pior pecado. O terceiro ato mostra o regresso de um Tannhauser alquebrado, trazendo a maldicao do papa de que nunca mais se salva- ria, assim como nunca mais reverdeceria 0 bordao de peregrino arran- cado & drvore... O blasfemador procura um tnico caminho: o da volta A Montanha de Vénus, para o eterno prazer. Fazem-se ouvir de ndvo os sons sensuais, vibrantes, que acompanhavam a cena da Montanha de Vénus, e uma luz rosada penetra a floresta noturna de outono. Wol- fram, que presencia a cena, profere o nome de Elisabeth, e o fantasma desaparece. Lenta e solenemente, aproxima-se do castelo o séqiiito com © esquife de Elisabeth. Sdbre o cadaver daquela que morreu, espe- rando-o, Tannhauser tomba sem vida. Mas Deus € maior do que os seus servos terrenos: 0 bordao de peregrino reverdece. £ a vitéria do amor divino sobre o amor terreno, e € mais uma vez o tema preferido de Wagner: a salvagio pela mulher. “Lohengrin” é a obra seguinte de Wagner, talvez mesmo a mais romantica. As suas fontes si as antigas lendas do cavaleiro do cisne e do Gral, 0 vaso sagrado que recolheu o sangue de Cristo no Gélgota. Ao redor do vaso sagrado, conservado numa montanha distante, reine-se um grupo de cavaleiros dispostos a combater a injustica e a defender a pureza. O cavaleiro do Gral, Lohengrin, recebe a incumbéncia de enfrentar o falso acusador Telramund no reino dos Brabantes, que 192 Charles Frangois Gounod (1818-1893). Georges Bizet (1838-1875). César Franck (1822-1890). Camille Saint-Saéns (1835-1921). PRANCHA 45 “Fausto”, de Gounod, 5.° ato. Segundo uma gravura de “L'Illustration” (2-4-1859). Primeira representacio no Teatro Lirico de Paris, © ballet da noite dos bruxos, em “Fausto” de Gounod, Teatro Municipal de Zurique. PRANCHA 46 Fdvard Grieg (1843-1907). Gabriel Fauré (1845-1924). Jules Massenet (1842-1912). Johann Strauss (filho) (1825-1899). PRANCHA 47 PRANCHA 48 muito importuna a legitima herdeira Elsa. No duelo, 0 cavaleiro do Gral vence-o, e torna-se marido de Elsa. Mas jd na primeira noite, quebra a espdsa a solene promessa de jamais querer saber 0 nome e a origem do espéso, e a ventura termina, Diante do rei e do povo, Lohengrin deve no dia seguinte, de manha, dar a resposta que é ao mesmo tempo a sua despedida: “Num longinquo pais, impenetravel 0S Vossos passos, situa-se um castelo chamado Montsalvat... O eleito para servir o Gral recebe uma forca superior... Por isso, nao duvideis do cavaleiro; se o reconhecerdes, éle terd que deixar-vos... Ouvi, poi como recompensa a pergunta proibida: pelo Gral fui enviado a vés. Meu pai, Parsifal, leva a sua coroa; seu cavaleiro, eu, chamo-me Lohen- grin...” O cisne, que trouxe Lohengrin para terra num barco, leva-o de névo para longe, muito, muito Tonge. Enquanto Wagner trabalha nesse drama, aproxima-se o agitado ano de 1848. Revoluciondrio desde a mocidade, embora mais no sentido artistico do que no politico, e republicano convicto, Wagner tem aco- Thida em rodas anarquistas. Quando a revolta irrompe e é abafada, éle deve fugir. Durante doze anos vive exilado. Mas ja nao esté sozinho. Descobre-o a vista profética de Liszt. Para éle, em Weimar, foge Wagner; em seguida, prossegue, auxiliado por Liszt, para a Suica. Entretanto, Liszt se incumbe de abrigar as obras de Wagner no seu teatro de Weimar, e, além de fazer triunfar “Tannhiuser”, apresenta pela primeira vez “Lohengrin”. Em Zurique, Wagner encontra mais do que asilo, um verdadeiro lar e um grande amor, Mathilde Wesendonck. Essa paixao, simultanea- mente feliz e infeliz, inspira-lhe 0 maior monumento musical ao amor: “Tristio e Isolda”. A obra, baseada em antiqiiissima lenda celta, que Godofredo de Estrasburgo, por volta de 1210, transformou em epopéia, torna-se com Wagner um hino de amor, em que a realidade se faz irreal e o anelo melodia. & a epopéia do maior prazer do amor e da maior dor do amor, o choque simbdlico entre a ofuscante luz do dia e a maravilhosa noite azul, a transicao invisivel e sem dor da terra para os campos elisios do amor eterno. © contetido do drama é narrado em poucas linhas, mas nenhum livro basta para lhe esgotar a beleza, os segredos ¢ o significado. Tristdo, cavaleiro ao servico de seu tio Marke, mata em luta o chefe inimigo, noivo da bela rainha dos irlandeses, Isolda. Anos depois, regressa 4 Irlanda a fim de pedir a mio da rainha para o velho Rei Marke. O primeiro ato se desenrola no navio, em que Tristao conduz Isolda e sua fiel criada Brangine ao pais do Rei Marke. Mas Isolda tem sombrios projetos: manda chamar Tristio e déle exige peniténcia pela morte do noivo. Brangtine estd encarregada de preparar a bebida da morte, Tristéo e Isolda, porém, nao sorvem a morte, e sim o amor, © amor que, nio confessado, ardia no coracéo déles e que agora sobre éles se abate poderosamente. Cambaleante e arrebatada, Isolda apro- xima-se do futuro espéso. O segundo ato, que se passa no jardim do castelo, une os amantes, enquanto a cérte vai A cacada. Um dueto 193 13° Hist6rla Masico de divinal beleza, ode A noite e ao olvido, é repentinamente inter- rompido pelo regresso do rei que fica aténito perante o feito incom- preensivel do mais fiel dos seus servidores. Tristao, desesperado, atira-se contra Melot que o traiu, e é ferido. O tiltimo ato nos leva a uma ilha isolada onde, semidesmoronado, se vé o Castelo de Tristao; uma melancélica melodia de um pastor langa os seus queixumes ao mar. Tristaéo olha, cansado, para o ponto de onde lhe pode vir a salvacio, para o lugar em que se encontra Isolda. Nenhum navio? Nenhuml res- ponde a melodia. Lentamente cai a noite sobre a terra, e cai a noite também para Tristéo que esta mortalmente ferido. De repente... um naviol E outro... No éxtase extremo, Tristéo aproximase cambaleante da salvadora, e a ultima palavra que profere, j4 moribundo, é: “Isol- dal”... Depois, tomba sem vida entre os bracos da amada. O segundo navio langa Ancoras, e o fiel servidor Kurwenal luta em vio contra os invasores, nio sabendo que o Rei Marke veio, depois de ter sabido tudo, perdoar e unir para sempre os amantes... Mas a unido terrena nada mais importa: Isolda subtraiuse aos apelos déste mundo. Sob 0s raios do sol poente, atasta-se cada vez mais, como se estivesse sobre uma ponte de ouro, em direcao a eternidade. Enquanto a alma se une a de Trist4o, 0 corpo, lentamente e sem dor, tomba sébre o do amado. Foi em Veneza, num velho paldcio do Canal Grande, que Wagner terminou o “Tristdo”, depois do triste fim do idilio com Mathilde. Mathilde foi o seu grande e torturante amor, depois de ter sido a pri- meira espésa, Minna Planer, longa e constante paixdo, e antes de Cosima que, por fim, lhe deu a trangililidade. Mathilde no inspirou apenas o grande artista; estimulou-o a uabalhar e a pensar — muitos dos seus notaveis escritos tedricos nasceram naqueles anos — e ela propria compés os versos para cinco cangdes de Wagner que sao estu- dos preparatorios para o “Tristo”, e das quais se tornaram conhecidas sobretudo “Dores” e “Sonhos”. Para onde deveria éle voltar, depois dos anos criad res do exilio? Paris parece abrir-se-lhe; 0 proprio imperador ordena uma represen- tagio de “Tannhiuser”. Wagner decide-se com diticuldade, seguindo © conselho de amigos, e, satisfazendo o desejo dos parisienses, com- pleta a primeira cena da bacanal, da Montanha de Vénus, com a in- trodugao de um ballet. Quem ouve com atengao a segunda forma da obra, a chamada forma parisiense, reconhece o progresso de Wagner durante os anos de intervalo: a bacanal apresenta claramente sinais do “Tristao”, e j4 aponta o “Anel”. Mas o esforgo de Wagner foi inutil: existe entre ée e Paris misteriosa aversio. Em linguagem simples: os grandes senhores do Joquei Clube que constituem a parte principal do publico parisiense nao surgem, por principio, antes do segundo ato, em que qualquer dpera inclui um ballet. O maldgro foi ruidoso € humulhante. Vara onde ir? Na Alemanha fora proclamada uma anisua. Wagner podia regressar. Mas na patria sé o aguardavam desilusdes e amargu- 194 ras. Nenhum teatro Ihe aceita as obras; dizse que “Tristdo” nao é representavel. Durante trés anos luta até que, desesperado, se dé por definitivamente vencido, Nesse momento, verifica-se 0 milagre. Wagner encontra‘se, como se fora um fugitivo, em Stuttgart, numa pequena estalagem que pretende deixar no dia seguinte de manha por outra igualmente pobre, noutra cidade. De sibito, alguém bate & porta: é um enviado do jovem Rei da Baviera, Luis II, e da béca déle Wag- ner, j4 envelhecendo, sabe que em Munique um jovem soberano, de forte pendor romintico, procura personificar-se em tédas as figuras dramiticas do compositor, manda erguer castelos em cumes inacessiveis € nesses seus Montsalvats reine, em mesa redonda, cavaleiros da Idade Média, que sé existem na sua imaginacao. Mas sabe também que ésse soberano tem um tinico desejo: trazer Wagner, 0 criador de todos os seus sonhos, para seu lado, a fim de que éle possa pérlhe aos pés tédas as possibilidades do seu reino. Da noite para o dia, um vencido, um aniquilado se torna triunfa- dor, pois o belo rei, entusiasmado, honra a promessa, e abate a resis- téncia de conselheiros e ministros. E nao é pouco o que Wagner exige: teatros para representar os seus trabalhos com os melhores artistas € as maiores orquestras, luxo pessoal, que sempre anelara, grandes salas com cortinas de céres e tapétes valiosos vindos de longe (Prancha 41). & incrivelmente apaixonado por tecidos e céres, e durante horas € ca- paz de cuidar das menores particularidades. E perfumes... Precisa de perfumes para a inspiracio, gasta-os, manda-os vir de todos os cantos do mundo, mistura-os, experimenta-os € aspira-os com verdadeira vo- lipial “Tristdo” obtém ruidoso éxito em Munique. Wagner ja prepara “Os Mestres Cantores de Niiremberg”, seu unico trabalho alegre, amével visio da época dos mestres cantores em Niiremberg, com os gritos do guarda-noturno, uma rixa na noite de S40 Jodo e um brilhante cor- tejo de festa popular; e muito mais ainda: na maravilhosa figura de Hans Sachs, retratou-se a si proprio empregando freqiientemente pro- fundos pensamentos sobre a arte, as suas regras as suas relagées com © povo. Também ésse trabalho, o mais vivo, terreno e menos compli- cado de Wagner, logra brilhante éxito. O soberano e o artista sonham coisas maiores. Luis II que, solitario no seu camarote, chorando de emogio, assiste A representagio de “Tris- tao”, compreende ¢ apdia a idéia de Wagner que pretende erguer um teatro longe da agita¢do da cidade, um teatro em que os homens nao tenham pressa, em que ponham de lado as preocupacées cotidianas, em que o lugar da orquestra (fig. 77) esteja em plano inferior ao da platéia e o regente fique invisivel, para que a ilusio no seja per- turbada, em que os maiores artistas da nacdo encontrem abrigo para servir 2 arte, e em que, como num templo, nenhum ingresso comprado profane o ambiente, em que tenham entrada livre todos os peregrinos entusiastas da arte. Uma proclamagio a tédas as regides alemas pede dinheiro para o Santuario nacional da arte. O éxito é assaz escasso. Mais uma vez, po- 195 rém, o Rei Lujs realiza o sonho de Wagner. Em Bayreuth, constrdi-se © teatro e em 1876 — acontecimento mundial — inaugurase com a presenga de imperadores e reis, e 0 ciclo completo do “Anel do Nibe- lungo”. La estava também Liszt, que por longo tempo cortara relagdes com Wagner, em virtude de haver Césima, sua filha, abandonado o marido, 0 excelente musico e ardente wagneriano Hans von Bitlow, para poder seguir a Wagner. Liszt, compreendendo a profunda dor de von Biilow, por muito tempo nao quis conceder o perdao. Finalmente, rumou para Bayreuth: Wagner e Césima, j4 casados e felicissimos, de- ram-lhe pouca atengio, no meio de tio grande numero de brilhantes héspedes... Quase trinta anos trabalhou Wagner no “Anel do Nibelungo”. Di- videse a monumental obra numa “Véspera”, 0 “Ouro do Reno”, e em trés “Noites": “A Valquiria”, “Siegfried” e “Crepisculo dos Deuses' £ o resumo da sua obra, o espelho da sua evolucio e a expressio artistica da sua filosofia da vida. Fig. 77. Seco do recinto invisivel da orquestra na Casa dos Festivais de Bayreuth. O simbolismo da obra obscuro e deu origem a numerosas tenta- tivas de interpretagao. A histéria da sua origem é significativa para as transformagées da alma de Wagner. No comégo, a figura de Sieg- fried prendeu-lhe a imaginaco, e Wagner viu nela a maxima ex- pressio de pureza e brilhante heroismo, imagem ideal da futura hu- manidade, cheia de amor, livre de médo e pronta a aceitar a luta contra o supremo mal do ouro. Quando éle planejou a sua obra, estava imbuido de idéias socialistas. Naquela época nao pensava ainda em nenhuma tetralogia, mas num drama unico; quando finalmente o féz representar, foi o ponto final de uma enorme tragédia de mul- tiplas ramificagdes, de deuses, homens, gigantes e andes, O grande trabalho, por conseguinte, nfo nasceu com o plano da “Véspera” ou do drama inteiro, mas com a sua ultima parte, o “Crepisculo dos Deuses”, que contém a morte de Siegfried. E 0 desmoronamento do Walhall, que se segue, é talvez o sonho de Wagner, de 1848, de desaparecer 0 mundo apodrecido num mar de chamas, donde surgi vitorioso, 0 névo. 196 Lentamente, porém, apodera-se do primeiro plano da imaginacio de Wagner outra figura do drama: Wotan, o deus supremo. A figura luminosa e simples de Siegfried perde em significado perante o deus trégico que vé diminuir o seu poder, que é escravo das suas préprias leis, até quando reconhece a sua injustica, e que, no Amago do cora- do, nada mais deseja que a ruina, a libertacio do constrangimento. O caminho de Wagner conduz do super-homem de Nietzsche ao pro- fundo pessimismo de Schopenhauer, mas éle a tudo reveste com o seu proprio simbolismo e ideolos Tudo esté repleto de profundos simbolos nesse trabalho; 0 roubo do ouro das profundezas do Reno, a maldicio de amor do anio, a luta dos gigantes pelo tesouro, Wotan que dd vida a Siegmund ¢ Sieglinde e os faz cometer, num abraco ardente, o duplo crime do adultério e do incesto (quanto 4 mistica dessa idéia falaremos mais tarde), e que, depois de longa conversacio com sua espésa Fricka, protetora do casamento, e de refletir muito, decide matar Siegmund com a sua prépria arma, visto que a valquiria Brunilda se recusa a obedecer-Ihe, pela primeira vez; mas, apesar de tudo, nfo pode evitar que da unio amorosa dos dois irmaos nasca Siegfried que, filho do maior e mais doloroso amor, cresce numa floresta impenetrvel ao lado de um anio o qual pretende empregi-lo na conquista de poder terreno; Siegfried funde novamente os pedacos de espada partida de seu pai, aniquila o dragio que guarda o enorme tesouro de ouro, en- carnacio do veneno do mundo, fica apenas com um anel e€ 0 capuz que © torna invisivel, ndo conhecendo o valor que a humanidade dvida d4 ao brilhante metal, e, sem o saber, com o anel que perso- nifica 0 poder do mundo, entra no circulo da maldigio, e mata © ano, ao reconhecer a deslealdade déste. De repente, encontra na floresta um viandante que pretende impedir-Ihe 0 caminho ao elevado rochedo de onde Ihe cantou docemente o passaro da floresta, e, com a espada que acabou de refazer, despedaca a lanca do viandante. Nao suspeita Siegfried o significado daquilo, no suspeita que é 0 proprio Wotan quem o enfrenta, ndo suspeita que espada e Ianca se encon- tram pela segunda vez e que dessa feita a espada abate a lanca sagrada que Ihe matou o pai. E nfo suspeita que naquele momento comeca © creptisculo dos deuses, 0 desmoronamento das antigas leis, de que nada sabe. Continua a caminhar, alegre e bem disposto, e encontra no rochedo maravilhosa mulher adormecida por trés de uma parede de fogo. Mais uma vez aparece um simbolo, pois éle, que nunca teve médo, estremece ao beijar a adormecida, a primeira mulher que se Ihe depara na vida; com isso, Brunilda tornase sua e a punicio de Wotan — que a condenara, em vista da desobediéncia, a abandonar © seu estado semidivino de valquiria e a tornar-se simples mulher da terra, présa do homem que a encontrasse e acordasse — transforma-se em alegre ventura; Siegfried, desejoso de aventuras ¢ jurando a Bru- nilda fidelidade eterna, segue novamente caminho mundo afora. Pin- tada pela orquestra em céres alegres ¢ vivas, seguimos-Ihe a viagem 20 longo do Reno, onde Gunther Ihe dé as boas-vindas na sua cérte; 197 Hagen, filho do ano do Nibelungo, forja um sombrio plano: Sieg- fried bebe, servida por Gutrune, 0 néctar do esquecimento que lhe extingue téda a vida anterior, apaixona-se por Gutrune, irma de Gun- ther, e conquista-a com uma traic¢ao terrivel e inocente ao mesmo tempo; mais uma vez atravessa 0 fogo do rochedo da valquiria para conquistar Brunilda mas dessa vez, para Gunther, e sob o aspecto déste, conferido a éle pelo capuz... Organizase uma cacada noturna, e Sieg- fried, que fica sem présa, permanece por longo tempo na margem do Reno e ouve as ondinas cantar coisas estranhas. Pensativamente, depois, volta 4 fogueira do campo e, como em sonho, lembra-se de trechos da sua vida € conta-os aos que o ouvem. Os episddios se entre- lacam cada vez mais, e Siegfried relembra: aparece a floresta distante, © ano, o dragao, o passaro da floresta... E, de repente, como se se The desvendassem os olhos, revé Brunilda. Naquele momento, a lan¢ca de Hagen vara o ar e fere Siegfried entre os ombros, no lugar em que, muito tempo antes, quando se banhou no sangue do dragio que © tornou invulner4vel, caiu uma félha. A prépria Brunilda revelou o segrédo, para vingar-se da incompreensivel e cruel traicio de Siegfried, e talvez para que éle nao viva na desonra. Agora, na hora da morte, vaise a forca do néctar do esquecimento: majestosa, achase Brunilda diante da alma de Siegfried moribundo. Os homens, levantando-o, levam-no solenemente para o paldcio. Wagner compés aqui uma mt- sica ftinebre, acabrunhadora, estonteante na sua grandiosidade. A lua penetra as nuvens e ilumina sinistramente o ambiente; Gutrune espera © regresso com médo, e Brunilda com majestosa tranqitilidade. Ne- nhum ser terrestre deve saber como sofre. Hagen aproxima-se do corpo para lhe tirar o anel tao ambicionado; mas a mao do morto levanta-se acusadoramente e poe em fuga o filho das trevas. Brunilda apodera-se do anel, e devolve-o 4s aguas do Reno donde saiu e onde agora o guardarao para sempre as filhas do rio. Em seguida, manda preparar grande pira e a esta atirar o corpo do marido. Finalmente, ela pré- pria, valquiria montando a cavalo, salta sébre as chamas que atingem © castelo e a terra inteira, inclusive o Walhall, a cidadela dos deuses nas nuvens. Tudo acaba, desmorona e submerge... Nao ha térmo As reflexes que o drama desperta. E inacreditével o que se féz da simples Ienda do Nibelungo da Idade Média. Sdmente algumas das figuras se salvaram na forma de Wagner, ou melhor, apenas os nomes. O resto é criacio do artista, gigantesca construcao que encerra filosofia e misticismo, e que toca segredos dos velhos tempos. Nao costumavam velhas civilizacées desaparecidas enterrar com seus grandes mortos tudo quanto haviam querido em vida, armas, mulher e cavalo? Nao se originard a morte de Brunilda dessa antiga fonte? Nao houve civilizacdes pré-histéricas em que o chefe s6 podia desposar uma mulher, sua propria irma, visto que nenhuma outra lhe era igual? Nao se originaré dai por misteriosa ligacdo, a uniio de Siegmund e Sieg- linde da qual nasce 0 tipo ideal de homem? No seu ultimo trabalho teatral, Wagner desce as mais recénditas profundezas da mistica religiosa. Também a base de “Parsifal” é¢ uma 198 velhissima lenda ja cantada por trovadores franceses e depois por Wol- fram von Eschenbach, numa grande epopéia. A idéia désse drama jd se presente no “Lohengrin”, quando se fala no Gral. Mas “Parsifal” trata de questio completamente outra, mais profunda que a de “Lohen- grin”, obra da mocidade de Wagner. O eterno feminino, personificado na estranha figura de Kundry, meio sedutora diabélica, meio penitente arrependida, a eliminagZo de um mal pela mesma arma que o causa, a superioridade do homem ingénuo, que desconhecendo as leis do mundo — névo Siegfried — tem de achar sézinho 0 caminho da puri- ficagao, para fazer-se digno da sua sagrada missio. oH ae eee | FS fe Pi fale = — Ses Vee 78. “Parsifal”, Manuscrito de Wagner: “Palavras de introducdo” da cena da ceia. © drama mistico “Parsifal”, para o qual Wagner compés a mais sublime musica da sua vida, musica de pureza divinal e harmonia paradisiaca, foi destinado ao teatro de festivais de Bayreuth, onde estreou em 1882. Mas, assim como o mundo destréi tantos sonhos de ar- tistas e idealistas, do mesmo modo também sucedeu com algumas dispo- sigées de Wagner. Bayreuth nao tardou em transformar-se numa emprésa comercial em que se devia pagar ingresso, como em qualquer outro teatro; além disso, quando se esgotou o prazo que as leis estipulam em favor dos direitos de autor, todos os teatros importantes se preci- pitaram sébre o “Parsifal” que, segundo a vontade do mestre, sé devia ser representado em Bayreuth. Sendo diferentes nos diversos paises os prazos dos direitos autorais, Nova York, j4 em 1904, pdde dar uma representago, 0 que provocou uma tempestade de protestos. Mas quando o teatro norte-americano de épera propés desistir da re- presentacio, sob condigao de fazerem a mesma coisa os teatros euro- peus, éstes, por sua vez, se recusaram a aceitar a medida. Assim, 199 “Parsifal”, depois de 1913 — trinta anos constituem na maioria dos paises 0 periodo de defesa dos direitos autorais — tornou-se, como as demais de Wagner, pera do repertério na maioria das nacdes. & curioso, porém, observar que todos os teatros adotaram a lei de Bay- reuth que proscrevia os aplausos; os esnectadores ouvem “Parsifal”, como se realmente se tratasse de obra religiosa, com a mais profunda emocdo e sem manifestacdes de aplauso. Falta em Bayreuth um homem que odeia “Parsifal”, que odeia Wag- ner com a mesma férca com a qual antes o amou: Friedrich Nietzsche. Vira éle em Wagner o renovador da arte, apreciara-Ihe a obra, as idéias, sentira em Siegfried a formacio artistica do seu “super-homem” e f6ra um dos mais entusiastas profetas de Bayreuth, até o dia em que se deu o regresso, até o dia em que comecara a sentir em Wagner aquilo que éle reprova no seu “O caso Wagner”: fingimento, falsi- dade, fraqueza, “desmoronamento diante da cruz”... Finalmente, pro- fere Nietzsche a mais cruel palavra contra téda a sua época, a pa- lavra “decadéncia”. “Sou, como Wagner, filho desta época. isto é um “decadente”. mas eu o compreendi e me defendi.” Ser4 verdade? Ouem ousard decidir? Nao ser4 todo o século XIX um século de “decadéncia"? Mas, como téda época de decadéncia, nao terA produzido maravilhosa arte? Sdbre a de um Beethoven, de um Wagner, ser4 sempre conve- niente repetir o juizo de Thomas Mann: “A palavra sé pode elogiar a beleza material, mas nao pode reproduzi-la”. Vira, mais tarde, o dia em que se esclareceré o aue foi a “decadéncia” e onde comecou. Pelo fim do verao de 1882, quando “Parsifal” foi representado pela tiltima vez naquela temporada, Wagner, antes da cena final desceu ao recinto da orquestra, empunhou a batuta e dirigiu pessoalmente o solenissimo final. Nenhum dos presentes teve a menor suspeita do que acontecera, visto que a invisibilidade da orquestra € perfeita em Bay- reuth. Terd pressentido Wagner o seu fim? Terd sido aquela a sua despedida do teatro de festivais, das verdes colinas que o rodeavam, da sua obra, da sua vida? JA idoso, sente-se atrafdo pelo Sul, e Veneza no inverno, torna-se 0 seu lugar preferido. Muito antes, fugindo aos bracos de Mathilde Wesen- donck, ali se refugiara para terminar “Trist&o”... Agora, estd ao seu lado Césima; e éles sio felizes, porque ela tudo The perdoa, 0 passa- do e o presente. No Palazzo Vendramin do Canal Grande passam ambos 0 inverno de 1882-1883. E no velho paldcio, sob o céu limpido da Itdlia, morre Wagner aos 13 de fevereiro de 1883. Encerra-se na- quele momento um ciclo de trés séculos de arte dramético-musical que da Itdlia saiu e A Itélia voltou. Talvez identifique um futuro estudo da musica o fim de uma época cultural com a morte de Wagner. No parque sombreado do seu palacete de Bayreuth, chamado com palavra genuinamente wagneriana “Casa Wahnfried” — “onde a minha imaginacdo encontrou paz” — ergue-se um timulo simples, que nao tem — ultima concepcfo teatral wagneriana — nem cruz nem epitifio. 200 23 VERDI ou “O Cantor do seu Povo” A luta em térno de Wagner invadiu todos os recantos da Europa. E quando o artista morreu, vencera. O mundo ecoou-lhe a fama, € uma juventude entusidstica se féz seu porta-estandarte. Ninguém se Ihe podia comparar. Nido poderia realmente ninguém comparar-se a éle? Enquanto Wag- ner, como nenhum outro compositor antes, envolvia o mundo musical num encanto hipnético, outro génio, mais quieto, menos conhecido fora da patria, galgava os mais altos degraus da arte dramdtica: Giu- seppe Verdi (Prancha 48). Néle se personifica a épera italiana, velha de séculos, no seu maior esplendor e com vitalidade ininterrupta, a 6pera com as suas inegaveis fraquezas, mas também com as suas melo- dias arrebatadoras, inebriantes € imortais. Naquele tempo, era preciso tomar partido: por Wagner que odiava a épera e pretendia dar-lhe o golpe mortal com o seu drama musical, combinagio ideal de palavra e som e muitas outras inovagées, ou por Verdi, em quem mais uma vez florescia o encanto sensual da melodia e do “bel canto”, e que, mediante longo e persistente trabalho, criava uma forma amadurecida da dpera italiana. Hoje ésse conflito, que durou meio século, perdeu sua violéncia; podemos contemplar os dois grandes compositores com a mesma veneragio, podemos admirar- Ihes a pureza da vontade, o vigor do trabalho, o entusiasmo que os domina. Aqui Wagner, ali Verdi... grito de batalha j4 esquecido; aqui Wagner, ali Verdi, antagonismo superado. Por certo, ainda hoje possuem Wagner e Verdi efeitos diferentes; mal se pode encontrar dois criadores mais opostos. Talvez seja Wag- ner mais 0 espirito, a filosofia, a razo, o que Schiller chama de artista sentimental; pelo contrario, Verdi é ingénuo, é a franqueza, a naturali- dade, a simplicidade, a boa e fértil terra de sua patria. “Sou camponés de Réncole, e continuarei a sé-lo para sempre...” Mas também Wagner tinha os seus momentos de “canto até o esgotamento”, onde a melodia a tudo cobre; Verdi, em varios momentos, aproxima-se do drama mu- sical mais do que éle préprio suspeita. Tudo depende do ponto pelo qual observamos a questao; em tudo é possivel achar coisas comuns e em tudo contrastes. No mesmo ano nascem os dois génios da arte dramitica. Um é filho da cidade e de um circulo intelectual. Réncole, onde veio ao mundo © outro, em 10 de outubro de 1813, esta perdida na planicie da Lom- bardia, perto de Busseto, pouco distante de Parma; na aldeia, ergue-se 201 uma igreja com campandrio, érgio e 0 misterioso fluido que destina um filho de camponeses & musica. Wagner costumava falar do seu génio como de seu deménio; Verdi no gostava de frases altissonan- tes, mas sentia o mesmo, a mesma irresistivel forga que o levava a criar melodia sobre melodia, e 0 obrigava, como faz com todos os que a ela se submetem, a servir a arte, como razio da sua vida. Aos dezenove anos quer entrar no Conservatério de Mildo, mas rejeitam-no. Nao faz mal! Assimila o material necessdrio de outra ma- neira: haverd melhores mestres que as partituras de Rossini, Bellini, Donizetti, os insuperdveis mestres do “bel canto”? Verdi, rude filho de camponeses, decide-sse pela dpera séria, tragica; um unico trabalho da sua mocidade, hoje esquecido, “Un Giorno di Regno”, é a sua palida tentativa no terreno da dpera cOmica; € 0 wnico, até 0 acon- tecimento que sé podemos definir como “milagre de Verdi”, e que se chama “Falstaff”, mas somente muito mais tarde. Quando Verdi comeca a compor dperas, pouco sabe de regras dra- maticas, e de misica, tanto como qualquer outro compositor italiano de éperas que, na longa cadeia de mais de duzentos anos, se tenha dedi- cado jovem a essa profissio. Longo e repleto de espinhos foi o caminho que teve de percorrer até 0 amadurecimento. Shakespeare, com o seu drama forte e muitas vézes sangrento, é 0 que mais o interessa; © segundo lugar ocupa-o Manzoni, o poeta da sua terra, a quem mais tarde erigiria maravilhoso monumento com o seu “Réquiem”. Verdi escreveu vinte e oito dperas, ou mais exatamente vinte € nove; mas deu as chamas o “Rei Lear”, antes que alguém o visse ou ouvisse. As primeiras éperas estio quase tédas esquecidas; uma delas, porém, “Nabuco”, encerra um trecho que penetrou o coraco do povo, o “Va pensiero sull’ali dorate...”, comovente cro de escravos judeus. A me- lodia exprime de certo modo 0 anelo dos italianos da ¢poca, e quando Verdi, noutras obras, especialmente em “I Lombardi” empregou o tema nacional, reconheceu 0 povo néle o seu profeta, o compositor da grande uniao nacional, cuja musica chamou a multidao & luta para a unigo da nova Itdlia. As cinco letras do seu nome pareciam simbo- lizar tal miss&o, dando-se-Thes curiosa interpretacao, V(ittorio) E(mma- nuele) Re) D’I(talia), que constituia o grito de guerra da geracio. Verdi, simbolo da Itilia pelo nome e pela musica, estava fadado a tornar-se deputado, estranho mister para o homem mais taciturno do pais... ‘As suas quatro primeiras éperas foram apresentadas em Miléo, de 1839 a 1848, e atrairam-Ihe o interésse geral. Incontestavel foi o éxito obtido pelo “Ernani” em Veneza, em 1844, enquanto em Roma “I Due Foscari” lograva éxito muito menor. Escreve Verdi dez éperas nos seis anos seguintes, mas com nenhuma delas obtém mais do que um simples éxito mediocre. Verdi, o mais severo critico das suas préprias obras, nfio cria ilusdes e sabe que elas sdo fracas. Quando hoje estudamos tais partituras, percebemos aqui e acold trechos que revelam o futuro titi da pera italiana. Mas que libretos absurdos! Verdi, um dramatista nato, como Mozart e Weber, como éles falha por culpa dos libretistas 202 que, com indescritivel irresponsabilidade, “fabricam” cenas tiradas de Schiller e Shakespeare que raiam o ridiculo. uisa Miller”, que em 1849 logrou boa aceitacio em Napoles, apresenta grandes progressos; mas foi o dia 11 de marco de 1851 que assegurou a imortalidade de Verdi. Nesse dia brilhou como um raio em Veneza o “Rigoletto”; dois anos mais tarde, 0 “Trovatore” em Roma e “La Traviata” em Veneza. A vitéria de Verdi foi definitiva. Fig.79. Fétha manuscrita de Verdi: “Rigoletto”. Quarteto do tiltimo ato Neste tltimo trabalho, descobre éle uma nova e intima linguagem musical para um moderno drama social. E ali se revela também, mais forte do que nunca, a capacidade de Verdi para uma afetuosa lingua- gem que constitui maravilhosas pausas no entrecho dramatico. Essa peculiaridade apareceré mais ainda nas éperas seguintes e atingiré o auge em “Otelo” e “Aida”. 203 “Rigoletto”, “Trovatore” e “La Traviata” erguem-no imediatamente acima dos seus contempordneos italianos; Rossini, que ainda vive em Paris, hd um quarto de século nada produz; Bellini e Donizetti esto mortos. Agora, somente Verdi defende ainda a velha tradicio; seu coracio transborda de melodias, que sabe por fim adaptar a qualquer situacio dramatica, e com isso fazer viver cada uma das frases. A escolha dos libretos nao é ainda muito criteriosa, como o caso de “Trovatore” seria facil provar, mas sua sublime mestria em formar grandes cenas musicalmente dramaticas, em dar as vozes melo- dias de grande vibrac&o e as cenas de massas ritmos extasiantes, faz ca- lar tédas as objegées. F o verdadeiro dramaturgo de instinto seguro, que até melodias banais como “La donna é mobile” do duque em “Rigo- letto” e a “Stretta” de Manrico no “Trovatore”, sabe intercalar com tal perfeicio nos enredos que seu efeito dramitico nfo poderia ser maior. O seu trabalho subseqiiente destina-se a um grande teatro fora da Italia, o Opera de Paris. Trata-se de “Les Vépres Siciliennes” que nao péde contudo sustentar-se, apesar de um bom éxito inicial. Seguem-se depois, em breves intervalos, seis obras de desigual valor: “Simone Boccanegra” (1857), “Aroldo” (1857), “Un Ballo in Maschera” (1859), o maior drama de Verdi desde a “Traviata”, “La Forza del Destino” (1862) com muito boa misica, mas libreto fraquissimo, “Macbeth” (1865) em nova versio, e “Don Carlos” (1867) repleto de arias esplén- didas, do mais nobre cunho italiano. Verdi conta 56 anos de idade; sua fama na Italia é enorme, mas ali também penetram lentamente as idéias wagnerianas; as discuss6es sdbre o mestre alemZo estdo na ordem do dia. “Para que compor outras éperas?” pergunta Verdi acrescentando amargamente: “Para que me digam que entendo de arte dramdtica menos que ésse Wagner, ou, pior ainda, que o imito?” Em 1869, chega as maos de Verdi um estranho convite do quediva do Egito para compor uma dpera destinada aos solenes festejos da inauguragio do Canal de Suez. Verdi recusase: para que abandonar a paz da sua propriedade de Sant’ Agata, e enfrentar novamente as gran- des estréias? Para que lutar mais uma vez contra atores, maestros, pri- ma-donas, empresdrios, para que convencer, persuadir, abrandar? Nao, de modo algum! Mas o destino muda-lhe a decisio. Um dia, entrega-lhe © correio uma carta selada, o entrecho de uma dpera egipcia, rica de espléndidas cenas e repleta de ardentes paixdes. Verdi poe de lado a hesitagio e volta para o teatro, o seu querido teatro. Assim nasce “Aida” a épera mais grandiosa que a Italia conheceu até ent&o. Cheia de cenas de massas, de Arias e duetos arrebatadores, e tudo coroado por uma melodia divinamente bela “6 terra, addio”, compardvel apenas a uma cena de “ésse Wagner”, a da morte de Tris- tio e Isolda; aqui também hd completa desmaterializagio, duas vozes angelicais e um violino que as conduz ao paraiso... 204 ¥L . we Tu ie Fig. 80. “Celeste Aida”, dria de Radamés, manuscrito de Verdi, da pera “Aida”. 205 Na véspera do Natal de 1871, “Aida” estréia no Teatro da Opera do Cairo perante um ptiblico seleto de todos os paises, que acorre ao historico evento mundial da inauguracdo do canal. Téda a imprensa mundial se retine, pela primeira vez, por ocasiao de uma estreia de Verdi. A fanfarra da marcha tiunfal compdese de homens de cér, € mais de trezentos arabes participam do cortejo; naquela noite, a pera italiana do século XIX conquista o seu maior triunfo internacional. Falta apenas 0 autor, que ndo suporta viagens maritimas. Poucas semanas depois, a 8 de fevereiro de 1872, Verdi assiste A estréia no “Scala” de Mildo, e tem a maior satisfagio da sua vida. Um publico entusiasmado, de pé, agita lengos, atira fléres e prorrompe em aclamagoes infindaveis. Verdi, comovido, compreende que se havia tornado realmente o cantor do seu povo, mas vé também que seria dificil, se nao impossivel, compor outra dpera cujo éxito superasse 0 da “Aida’ Passam-se quinze anos. Verdi vive famoso, mas longe do teatro, nos seus queridos campos. Ninguém pensa mais sériamente em nova obra que possa ser composta pelo ancio de mais de sessenta anos. Em 1874, aparece éle ainda ao ptiblico na Igreja de Sao Marcos de Veneza para dirigir o seu “Réquiem”. Em seguida, essa obra, dedicada 4 me- méria de Manzoni pelo primeiro aniversirio da sua morte, foi exe- cutada no “Scala” e ali aplaudida, como se se tratasse de uma épera € no de um trabalho religioso. Verdi era religioso? Nao é facil responder a tal pergunta. Creio que sim, com aquéle puro instinto que todos os homens ligados a terra possuem, com a profunda fé que todos os puros sentem em face da natureza. Por isso, 0 seu Deus podia ser venerado por todos os meios (inclusive por éperas profanas), com timbales € darins, efeitos de massas e matizes sonoros; e por isso o seu “Réquiem”, verdadeiramente grandioso, ndo é menos profundo, nem menos reli- giosamente sentido que qualquer outro trabalho sacro. Contudo, pelos meios e pela idéia artistica, que distancia de Mozart, com o seu divinal “Lacrimosa”! Duas épocas.. Mais uma vez Verdi se cala, E a época decisiva na vida de Wagner, a concretizagio de Bayreuth. E Verdi no é menos forte e sio que Wagner, seu coetineo. Entristecidos, contemplam-no os amigos que o visitam em Sant’Agata, e Giulio Ricordi exprime o que todos éles sentem: “Como é triste ver um homem assim, em cujos sessenta anos ninguém acredita, que nunca tem dor de cabega, que come com o apetite de um jovem, que trabalha diariamente de trés a quatro horas, sob um sol abrasador, nos seus campos... recusar-se a escrever uma tinica nota que sejal” Uma noite, em Sant’ Agata, cai novamente a conversagao sobre Shakes- peare e sobre Arrigo Boito, poeta e musico italiano, que Verdi nao co- nhece pessoalmente, mas cujo “Metistolefe” o impressionou profunda- mente. Nao tarda Boito em fazer uma visita ao grande artista em Sant’Agata e transformar-se, com prejuizo da sua atividade musical, no Unico libretista de Verdi digno de sua musica. Em wés dias termina éle 206 os planos cénicos do “Otelo”; Verdi nfo quer ainda demonstrar seu interésse novamente despertado. Em 1884 continua indeciso. Entre- tanto, Boito melhora o libreto do “Simone Boccanegra”, para uma representagio no “Scala”. Mas em primeiro de novembro de 1886, recebe de Verdi noticia que Ihe provoca enorme alegria: “Otelo é finito”. Verdi conta mais de 73 anos. x we lu \ ears te er Araryhopy ON Kink ! fem, eR, Geek Qk Cee (oa CL FRA as fer re Pree one. Browtote tin bricene, Cerrar este vee, pete mary ever Derge, ~~ Komp : a olan oe “- 1 es (Cn a ~“, Lid, To — Fig. 81. Anotacéo de Verdi depois de terminar “Falstaff”. Diz o texto: “As iltimas notas de Falstaff. Tudo acabou: Vai, vai, velho John... Segue 0 teu caminho, enquanto puderes... Divertido tipo de malandro, eternamente vivo, sob mdscaras diversas, @ qualquer hora, em qualquer lugar: Vai... vai.. Caminha, caminha. Adeus!” Pela primeira vez na sua longa carreira, sente o artista a dor de separar'se da sua obra; pela primeira vez sente que o autor perde a sua obra, ao dé-la ao ptiblico... Mas deve fazé-lo, e em 5 de fevereiro de 1887, um publico respeitoso, surpréso, conhece no “Scala” de Milao 207 outro Verdi, completamente ndvo, muito mais amadurecido. Outros artistas, nessa idade, repetem éxitos anteriores e se apegam ao esque- ma de obras passadas; mas no Verdi: o seu “Otelo” é algo de inédito. Esta superado o tipo de dpera-numero; um tnico sopro dramatico vive em cada um dos quatro longos atos. Continua o dominio da voz cantante — nisto Verdi, italiano, nao ha de modificar-se, sem negar-se — mas a orquestra conquista nova importancia, A caracterizagio dos trés tipos centrais, Otelo, Desdémona e Iago, ¢ musicalmente tio clara que se pode falar realmente de um “drama musical”, sem porém ad- mitir, por um momento, que Verdi, como tantas vézes se afirmou, tenha imitado consciente ou inconscientemente Wagner. Nao. “Otelo” est exatamente na linha de desenvolvimento de Verdi. Foi preciso apenas que éle chegasse aquele ponto. Que beleza indizivel nao possui o dueto de amor do primeiro ato: Otelo e Desdémona, perdidos na noite do pais do sul, 4 margem do mar sussurrantel... Obra-prima é por si sé 0 quarto ato com o seu sombrio pressentimento da morte, a sua triste cancio popular do salgueiro, a enlevada “Ave Maria”. ghd = Wn RM es ee coe ey get ene ces te aren ey ' 4 ; AA DAAC 76 So aye tom eee a Fig. 82. Esbéco de Verdi para a cena do jardim do “Falstaff”, numa carta datada de 18 de setembro de 1892. Sdbre éle escreveu o artista: “Basta apenas um grande e verdadeiro jardim com aléias, arbustos ¢ plantas que tornem possiveis ocultamentos, aparecimentos e desaparecimentos” Ainda vive em Verdi a antiga forca criadora de melodias, mas j4 agora num plano elevado e espiritual. Apagar-se-4, por fim, a chama criadora do grande compositor? Nao. Falta ainda a maior maravilha. Rossini dissera certa vez, muitos anos antes, falando de Verdi: “& um musico de cardter sério; nunca podera compor uma 6pera alegre...” Rossini tinha, aparentemente, razio. Verdi, porém, aos oitenta anos, provou o contrario ao mundo, e de modo 208 Anton Bruckner (1824-1896). Johannes Brahms jovem (1833-1897) Pjotr Iijitch Tchaikovsky (1840-1893). Antonin Dvorak (1841-1904) PRANCHA 49 Leslie Caron (1981), ex-primeira bailarina da Opera de Paris, numa cena de bailado do filme “Papai Pernilongo”. PRANCHA 51 Os dangarinos da Bésnia (Iugoslivia) com sua prépria banda. Um déles usa o grande tambor como plataforma de danca. PRANCHA 52 indiscutivel. A sua fantasia f6ra sempre melancdlica, e 0 estimulo dos seus trabalhos, a paixio. A velhice dissipou a névoa: a vida é agora alegre e brilhante, 0 mundo cheio de sol. Verdi, através de grande luta silenciosa, chegou a ultima filosofia: a do sorriso. Boito, mais uma vez baseado em Shakespeare, preparou um libreto genial. O mundo recebe a noticia, e um murmtrio circula pelos cen- tros musicais da Europa: que se poderia esperar ainda do mestre que jd conta oitenta anos? No entanto, veio a mais alegre das comédias, © mais cristalino espirito, a ultima prova de mestria: “Falstaff” (fig. 81), cuja estréia se verificou em 9 de fevereiro de 1893, no “Scala”, no meio de indescritivel delirio. Pouco falamos ainda da vida de Verdi, do “camponés de Réncole”. a vida mais simples possivel. Casou-se, jovem, com a filha do seu primeiro benfeitor, Anténio Barezzi, que Ihe facilitou o estudo da misica. Mas ndo tardou a morte em Ihe roubar a espdsa e os dois filhos. Foi a unica tragédia da sua vida, que éle terminou ao lado da segunda espésa, a célebre cantora Giuseppina Stepponi, sua verda- deira e ideal companheira. Da sua bela propriedade campestre, Verdi 86 se afastou a contragosto, para a estréia das suas dperas, ou para diri- gir-se a Milo, onde vivia seu editor. Certa vez, no inverno de 1882, rumou para Veneza, onde, ao cair da noite, ao que dizem, Richard Wagner rodeado de amigos, numa géndola, Ihe cruzou o caminho. Conta-se também que Verdi, apés muito lutar consigo préprio, deci- diu visitar o rival, mas chegou um dia atrasado. O que é certo é que os dois grandes mestres no se conheceram pessoalmente; e se 0 tives- sem feito, nao se teriam compreendido... Verdi péde saudar o século XX. Em 14 de maio de 1900, féz o tes- tamento, pelo qual destinou a maior parte dos bens a um asilo para miusicos velhos e doentes. Em 27 de janeiro de 1901 a morte vence, finalmente, a incrivel vitalidade do ancido de 88 anos. O entérro trans- forma-se em enorme manifestacio de amor e de gratidio de um povo inteiro; os compositores italianos formam a guarda de honra do esquife; a cérte e os grandes do reino inclinam-se diante do gigante do império universal da musica. Todo aquéle cerimonial pouco teria, alids, co- movido o velho camponés de Réncole; mas os seus olhos claros e bondosos se teriam marejado de lagrimas, ao ouvir éle o canto entoado pela gigantesca multiddo; alguém comecou a melodia, lenta, solene- mente, e ela passou de boca em béca, num céro comovente de milha- res de vozes: “Va, pensiero, sull’ali dorate..” Era a melodia que o “Maestro” escrevera meio século antes, simples, despida de adérno e honesta como tudo quanto fizera e compusera em vida, O seu mote fora sempre: “Na arte e no amor, devemos ser, acima de tudo, sinceros”. 209 VAbis Histéria Masica 24 OS ULTIMOS ROMANTICOS A Maturidade da Opera A histéria da arte dramdatico-musical concentrou-se, na segunda me- tade do século XIX, nas duas grandes figuras, Wagner e Verdi, os quais deviam, consciente ou inconscientemente, ofuscar os demais com- positores dos seus paises. Néles atinge a composicéo musico-teatral a maturidade, a 6pera com Verdi, e o drama musical — unica forma verdadeiramente alema da épera, com Wagner. Essa maturidade es- plende s6bre todos os compositores dramaticos da Europa, durante a vida dos dois grandes e apos a morte déles. Na Alemanha, a influéncia de Wagner foi tao despética que quase todos os contempordneos, que se dedicaram A pera, tentaram imitar- Ihe o estilo; mas, como todos os epigonos e ecléticos, estio hoje esque- cidos. Dois compositores merecem, todavia, ser mencionados: Peter Cornelius (1824-1874) pela sua delicada e poética dpera comica “O Barbeiro de Bagda”, que se mantém relativamente livre da influéncia de Wagner, e Hermann Goetz (1840-1876) que compés encantadora 6pera baseada na “Megera Domada”, de Shakespeare. De Cornelius tornaram-se também conhecidas algumas cancées de grande sentimento; mas éle pertencia aos tranqiiilos talentos sem sorte. Menos ainda temos de dizer da Italia, até a grande onda do verismo, que tomard posse da heranga de Verdi. Em contraste, a épera de outros paises oferece coisas de extraordi- nario interésse. J4 falamos de Mussorgsky, Rimsky-Korsakov e Smetana. Acrescentemos, aqui, outros nomes. Em 1848, realizou-se a estréia, em Varsévia, da épera nacional polonesa “Halka”, de Stanislav Moniuszko (1820-1872); e pouco mais tarde, apareceu o hungaro Karl Goldmark (1880-1915), com trabalhos que tiveram éxito, e dos quais “A Rainha de Saba” alcangou renome internacional. De enorme riqueza é a producao francesa daquela época. A Franca no somente cria uma escola talentosa cujas obras se mantém até hoje nos teatros do mundo inteiro, sendo também uma obra-prima, do mesmo nivel das de Wagner e Verdi, “Carmen”, do infeliz George Bizet (1838-1875), prematuramente falecido. “Carmen”, cujo ambiente espanhol é focalizado com mestria, apesar de Bizet jamais ter pdsto os pés fora da patria, é dpera repleta de verdadeira paixao, e dotada de excelente libreto. Nao hi nela nenhum ponto fraco, nenhuma lacuna dramatica, nenhuma melodia insignificante. 210 os ae wnt Dub. Fig. 83. Da partitura de “Carmen”. Manuscrito de Bizet. Bizet, (Prancha 45), j4 havia revelado seu talento; mas o destino nao lhe foi favoravel. Nas suas éperas “A Formosa Donzela de Perth”, “Djamileh” e sobretudo “Os Pescadores de Pérolas”, bem como na sua musica para o drama de Daudet “L’Arlésienne”, abundam belas € espirituosas melodias que bastariam para tornar famoso qualquer com- positor mais feliz. Bizet era conhecido e estimado; mas nada mais. Final- mente, apés todo o seu coragio no trabalho que, a 8 de marco de 1875, foi representado pela primeira vez em Paris, Téda a sua vida estava em “Carmen”. Aconteceu, porém, 0 incompreensivel, cruel: 0 pliblico mantevese frio e indiferente, e a dpera mais genial escrita por francés foi acolhida com indiferenga. Bizet nao sobreviveu a tio duro golpe € morreu no mesmo ano, contando apenas 37 anos de idade. Depois, 0 destino corrigiu o érro: “Carmen” conquistou 0 ptiblico do mundo inteiro, mas o seu criador nao teve a ventura de ver tio brilhan- te éxito. Mais de meio século apés sua morte, e de sua autoria, achouse uma pera desaparecida, “Iva, o Terrivel”; porém, é duvidoso possa figurar nos repertérios. Resta-nos de Bizet uma carta elucidativa, que exprime a sua posicao no tocante a Wagner; era o problema da época, que agitava todos os musicos do mundo. Confessa-se entusidstico partidario de Wagner e, apesar de Ihe reconhecer tédas as fraquezas humanas, chama-o de encarnagio do espirito alemfo, e a sua musica de a mais perfeita expressio do carinho, amor e sensualidade. “Wagner nio me causa preocupagées”, assim termina éle, “porque est4 muito acima de todos os que vivem; depois déle, respeito Verdi e Gounod, que julgo os mais talentoso 211 Bizet considerava Charles Gounod (1818-1893), (Prancha 45), o mais talentoso dentre os seus contempordneos franceses, e a histéria lhe deu razio, se pusermos Bizet de lado. O “Fausto” de Gounod é uma bela épera, embora esteja longe do espirito de Goethe; contém cenas gratas, doces melodias e capta com habilidade a romantica atmosfera do drama de amor. O éxito de Gounod foi incomparavelmente maior que 0 do genial Bizet; a sua dpera “Romeu e Julieta” constituiu, du- rante dezenas de anos, uma das pecas de maior éxito. As suas nume- rosas outras pecas aparecem ainda, de vez em quando, na Franca, bem como a sua musica sinfénica e os seus oratérios. Mais freqiientemente se uve a sua musica religiosa e, dentre as suas intimeras cangdes a que se ouve especialmente é a (muitissimo discutivel) “Ave Maria” baseada num preludio de Bach. Goethe foi o inocente estimulador de outras éperas; por exemplo de “Mignon” que até hoje salvou o seu compositor Ambroise Thomas (1811-1896) do esquecimento; arias de grande efeito provam a mio de um bom musico e de um melodista dotado de recursos. Também Camille Saint-Saéns (1835-1921), (Prancha 45) deve ser aqui mencionado; é um dos melhores musicos franceses do século romantico; com Bizet e Edouard Lalo (1823-1892), talentoso composi- tor da “Sinfonia Espanhola”, fundou em Paris a Sociedade Nacional de Musica, que contribuiu poderosamente para o florescimento da arte sinfonica francesa. Dentre as obras de Saint-Saéns, além de uma expres- siva sinfonia com érgao, sobrevive a grande épera “Sansio e Dalila”; ésse trabalho de habil orientalismo e sentimento verdadeiramente dra- matico, acentuado por excelente manejo da orquestra, também se conservou nos repertorios internacionais, pois oferece aos meio-sopra- nos, a maioria das vézes condenados a papéis de segunda ordem ou bastante antipaticos, brilhante oportunidade sob 0 ponto de vista de canto € representacao. Graca, melodia genuinamente francesa e muita técnica possui Leo Delibes (1836-1891), que figurou entre os mais bem sucedidos musicos do seu tempo. A sua épera “Lakmé” — com belos trechos de bravura para sopranos-ligeiros — foi representada inmeras vézes e, com os encantadores ballets “Coppelia” e “Silvia” dominou, por muito tempo, © repertério désse género. Também algumas das suas cangdes como “Les filles de Cadix” e “Bonjour, Suzon” sao ainda bastante ouvidas. Extraordinariamente grande foi o éxito de Gustave Charpentier (1860-1956) com a sua épera “Louise”, que em 1900 se revelou, em certo sentido, uma rea¢ao nacional contra a influéncia alema, especialmente ‘Wagner, e, a0 mesmo tempo, um entusidstico hino a Paris; Charpentier nunca mais atingiu a beleza musical ali obtida. Apesar de muito mais moderno nos seus meios, pertence Jules Mas- senet (1842-1912), (Prancha 47) aos wltimos roménticos. Possui exce- lente técnica de orquestracio e€ genuina inventiva melédica, além de certo dom emocional que para os autores teatrais é indispensdvel. Duas das suas obras se conservam vitoriosamente nos teatros: “Ma- non”, que em muitos paises expulsou a “Manon Lescaut” de Puccini, 212 e “Werther”, baseado na tragédia de Goethe. O seu “Pelotiqueiro de Notre-Dame”, “Tais” e “Cid” aparecem mais raramente nos repertérios internacionais. Compés uma pera, “Don Quichote”, para o insigne baixo Chaliapin; mas desde a morte déste ficou ela érfa. Dois miisicos de Deus: César Franck e Anton Bruckner Como duas criaturas de outros tempos, de outros mundos, surgem em plena era da motorizagio, da pressa ¢ do materialismo sem con: deracio fronteiras, dois musicos de nacionalidade diversa e sem mtituo contato pessoal, mas irmios no espirito, dotados de uma afini- dade mais elevada, também possuida, em séculos diferentes, por Bach e Palestrina. Um bidgrafo criou para Bruckner a bela expressio de “O musico de Deus”; parece-me justo estendéla também a Franck. Na sua qualidade de misicos de Deus, trangitilamente confiantes no Todo-Poderoso e infatigavelmente dedicados ao trabalho que nao bus- cava éxitos sensacionais, viveram Bruckner e Franck quase desperce- bidos pelo mundo a maior parte de sua vida. César Franck (1822-1890), (Prancha 45), nasceu em Liége na Bél- gica, e viveu quase sempre em Paris, onde ganhava dificilmente o sus- tento didrio ensinando sem cesar, com excecio de duas horas apenas, das 5 as 7 da manha, que éle dedicava ao seu trabalho, Nesses momen- tos de criagdo nascem com lentid’o e grande senso critico excelentes composigées, sem que 0 mundo de nada suspeite. Vieram a luz, assim, uma bela sinfonia, profundos e grandiosos oratérios — “Rédemption”, “Les Béatitudes”, “Ruth” — e copiosa musica para érgio, piano ¢ cimara, Mencionemos especialmente uma obra a qual poucas sio as que se comparam em imortal beleza: a sonata para violino e piano; Ysaye, o famoso violinista, deu-a a conhecer ao mundo, mas nenhum reflexo do triunfo caiu sobre a pobre vida do autor, organista des- conhecido do publico, que exercia a sua profissio obscura e modesta- mente em N. S.* do Loreto e, mais tarde, em Sta. Clotilde, que néo so absolutamente centros da brilhante vida de Paris (1). So. poucos os que sentem t6da a grandiosidade da sua musica. Liszt ouviu-o tocar os seus proprios trabalhos e comoveu-se profundamente; depois de calar por longo tempo, disse: “Pensei que estivesse ouvindo Johann Sebastian Bach!” Haveré maior elogio para qualquer miisico? Nao quis, porém, a Providéncia que a sua obra, e por conseguinte © seu nome, féssem esquecidos. Em térno da sua venerdvel figura, uniram-se discipulos em brilhante circulo musical, entre os quais sobres- sairam Vincent d’Indy (1851-1931), e Gabriel Pierné (1863-1937) que (1) Franck em vida obteve gr cordas (1878-79), executado por Sai \de_sucesso com 9 Quinteto em fi menor, para piano tSaéns na "Société Nationale” de Paris,’ “Les Djinns poema sinfOnico ‘para piano ¢ orquestra (1884), “Variations Symphonianes” (1885), amas por Louis Diémer como solista; a Sonata para piano e violino, na execucio de Ysaye em Tournal (1890) e, n0 mesmo ano, 6 Quarteto em ré maior, para cordas. (N. do R.). 213 np € - Fig. 8. Primeiro esbéco de Bruckner do “Scherzo” da primeira sinfonia, 1865. Substituiu-o, mais tarde, por outro, Viena. Biblioteca Nacional. Ihe seguiram fielmente o caminho (!). Ndo € pequena a influéncia que Franck, por intermédio do seu discipulo argentino, Alberto Wil- liams, exerceu sobre varias gerages sul-americanas de compositores. A existéncia de Bruckner oferece muita semelhanca com a vida e 0 cardter de César Franck; em ambos se nos depara a mesma piedade, 0 tardio reconhecimento do mundo, a preferéncia pelo érgio, a profissio de mestre-escola, o lento e orginico desenvolvimento das forcas criadoras. Jé mencionamos uma vez Bruckner nestas paginas, Aproximamoo, pelo carater, ao grande organista da Igreja de Santo Tomés, € dissemos haver dedicado um dos seus trabalhos “ao bom Deus” (em que o bom Deus se encontra na companhia de alguns soberanos terrenos e de Richard Wagner). Para a alma infantil e pura de Bruckner, Deus no era o ser infinito, terrivel senhor do Juizo Final, que certamente impe- (Q) Entre 0s discipulos do “Pater Seraphicus", como alguém apelidon César Franck, distin guiram se compositores. de primeirissima ordem. Ernest Chausson (1855-1899), _premaiuramente falecido, deixon obras:primas: 0 drama. lirico “Le Roi Artis", 0 poema sinfonico “Viviane” (1882)," a monumental Sinfonia em si-bemol_ maior (1890),.""Botme” para violin ¢ orques. tra (1896), Concérto para violino, piano, quarteto de cordas,’ “Pome de l'amour et de 1a mer” (1882.92), para canto e orquestra, além de varias melodias vocais. Guillaume Lekeu (1870-1804), deixou boa copia de musica vocal e_ instrumental. Dupare (1848-1933) deve-se pre? cioso floriiégio das mais lindas melodias em lingua francesa, como “Invi voyage”, Vague et I cloche”, “Le Manoir de Rosemonde", "Chanson triste”, “La Vie ante “Extase", ete, (N. do R-). 214 rava na alma de muitos miusicos. Nao. Bruckner com Fle dialogou téda a vida, como se estivesse falando com um irmao mais velho, bondoso conselheiro e companheiro ideal. As monumentais construgdes das sinfonias de Bruckner sao como catedrais sonoras, espléndidos mo- numentos de estilo barroco, nos quais o que se vé é sempre segu- ranga, trangiiilidade, infinito, abundancia, enlévo, forca e grandeza, anelo pelo elevado, pelo dominio de tudo quanto é terreno, pela glo- rificagao do que é divino, — eis os “Leitmotive” de Bruckner; se sofreu internas torturas como Beethoven, a quem perseguiam terriveis diividas sobre tudo, se sofreu a mais negra melancolia como Schubert, se sofreu a tormentosa e incessante ansiedade por um ideal que fdsse o supremo e pela derradeira verdade, como Gustav Mahler, seu discipulo, se so- freu as dores, enfim, que sempre acompanham as obras-primas, soube vencé-las sem que 0 mundo, a posteridade o percebesse. Como gigan- tescos macicos se erguem hoje as suas criacdes perante nés, e nds nada sabemos das erupcées vulcdnicas a que elas devem a sua forma e a sua grandeza. Anton Bruckner (Prancha 49) nasceu em 1824, filho de um pobre mestre-escola da Alta Austria. Quando os pais morreram, foi conduzido a St. Florian; o maravilhoso mosteiro tornou-se a sua verdadeira patria © 0 repouso da sua vida, da sua alma. Assim como a visio de Meca vive no coragio de cada muculmano, assim também do mundo interior de Bruckner no sai por um instante sequer a imagem do seu santud- rio, do magnifico érgao do Mosteiro de St. Florian. Para 14 vai éle, quando seu corac&o necesita de tranqiiilidade, e quando quer falar com Deus. Sio pobres as suas condicées de vida: assistente de mestre-escola em distantes e desconhecidos lugarejos da sua provincia natal — sabe- ria alguém da existéncia de Windhaag, se nao fésse por Bruckner? — estuda com dificuldade e sozinho. Longe das cidades, longe da vida musical, assimila todos os conhecimentos de harmonia € contraponto, composi¢io € instrumentacao. Em 1855 vence brilhantemente 0 con- curso para o cargo de organista da catedral de Linz, Ali nascem as suas primeiras obras importantes que ainda esto longe, contudo, de firmar-se; e dali Bruckner vai uma vez ou outra a Viena, para estudar com Sechter, cujos livros j4 antes haviam constituido o seu material Naquele tempo, era Viena um terreno quente; falaremos disso com maior minuciosidade na vida de Brahms. Quando Bruckner, em 1868, foi para 14 chamado como organista da cérte e, a0 mesmo tempo, como professor de érgao, contraponto e composicao no conservatério, entra o musico ingénuo e bondoso num mundo totalmente oposto, em que muito iria sofrer. No ano seguinte — Bruckner j4 conta 44 anos de idade — ouve-se pela primeira vez uma das suas sinfonias, mas em Linz. Viena teré de esperar ainda alguns anos. $6 muito tarde é que éle se torna famoso na Europa, quando jé tem quase 60 anos. Defenderam-no alguns dos melhores muisicos do seu tempo: Levi (0 grande regente de Bayreuth), Hans Richter, Jahn, Schalk, Mahler. An- tagonizaram-no Hanslick e todos os antiwagnerianos. 215 Mas Hanslick nao era um simples critico musical; mesmo quando nao via bem claramente, era sempre um espirito extraordindrio. O que censurava em Bruckner — deixemo-lo falar: “... efeitos orquestrais wagnerianos, como o “tremolo” dos violinos divididos na mais alta posicao, “arpeggios” de harpa sdbre surdos acordes de trombone, tudo aliado A mais recente conquista das tubas wagnerianas... imediato para- lelismo de rigido contraponto académico e imoderada exaltacao...” — foi pelo menos exato. O préprio Bruckner nunca negou_tivesse sofrido a influéncia de Wagner; mas, nao obstante, seria desconhecer- Ihe inteiramente o espirito, se pretendéssemos defini-lo como simples imitador de Wagner, sé por haver adotado a arte de instrumentaco déste. O mundo de idéias e formas de Bruckner é completamente diverso, e outras séo também as fontes do seu trabalho. Muito se escreveu e se debateu em térno do estilo monumental de Bruckner, pre- tendendo-se apontar-Ihe faltas essenciais de forma; mas por longos anos ninguém soube que as suas Sinfonias nao foram apresentadas de acérdo com 0 original, sen3o com retoques fundamentais, somente no nosso século eliminados. Bruckner é 0 autor dos grandes trabalhos; poucos compositores se dedicaram tao exclusivamente as grandes formas. Escreveu trés Missas, € nove é 0 niimero das suas Sinfonias; mas ndo quis o destino, aparente- mente, surgisse outra “Nona Sinfonia", depois da de Beethoven, que por t6da parte irradia o seu esplendor, e Bruckner morreu pouco antes de a terminar. A sétima foi a primeira que abriu caminho fora de Viena, sendo apresentada por Nikisch em Leipzig, em 1884; a mais conhecida é a quarta, a “Romantica”, titulo que, se considerarmos a esséncia e numerosos tracos individuais, muito bem se ajusta a téda a musica de Bruckner. A sua obra ainda hoje se expande, e cada vez mais a acolhem os paises, até os que, espiritualmente, muito longe se acham do magnifico barroco que ela encarna. Quer dizer que, atras da forma, hd um contetdo eterno que todos os homens sentem. “Bruckner é a cangao da Grande Montanha; néle se reflete a magni- ficéncia do nascer do sol, o frémito do distante e do profundo, e a glo- rificagdo vespertina sdbre a qual se estende um céu estrelado...” Assim o descreve Ernst Decsey, um dos bidgrafos que mais carinhosamente 0 tratou. Citarei, ainda, as palavras do Dr. Adolf Exner, reitor da Uni- versidade de Viena, proferidas em 1891 ao ser conferido a Bruckner 0 titulo de doutor honoris causa: “No ponto em que a ciéncia para, por se Ihe defrontarem limites intransponiveis, comeca 0 reino da arte que pode exprimir o que para a ciéncia ha de sempre ficar oculto. Eu, “Rector Magnificus” da Universidade de Viena, inclino-me perante 0 antigo mestre-escola assistente de Windhaag!” Bruckner vai ficando velho e doente; cada vez mais raras se tornam as suas viagens ao Mosteiro de St. Florian onde se encontra o seu querido érgao, e cada vez maior a sua ansiedade por éle. Morre em Viena, em 1896, iniciando a derradeira viagem, tao esperada. Aos pés do seu drgio descansa éle, ouvindo-o certamente no seu sono eterno. 216 Johannes Brahms Durante varias dezenas de anos, a pura forma sinfénica nao produ- ziu obra digna de ser comparada aos trabalhos de Beethoven, que ini- ciou o século de Schubert, seu contemporaneo. Somente quando 0 ro- mantismo comegou a decair é que mais uma vez floresceu essa forma de arte em alguns paises, por uma breve época de esplendor. JA falamos do austriaco Bruckner e do belga Franck; na mesma época estavam em atividade Brahms, alemio, que escolhera Viena como segunda pitria, Tchaikovsky, russo, que constitui a ponte musical entre o seu pais e a Europa, e Dvorak, tcheco e primeiro importante compositor que entra em contato com a musica americana e, na sua obra, adota alguns dos seus motivos. J4 por essa curta mencao se com- prova que as fronteiras do nacionalismo musical comecam a desapa- recer; as melodias de um povo misturam-se a técnica de outro, as idéias de um pais se ligam A forma de expresso de outro. Iniciase o grande processo de uniformizacio que chegara ao auge durante 0 nosso século. A sinfonia foi a forma preferida do classicismo. Todos os seus mes- tres criaram em tal género os seus principais trabalhos, com exceco talvez de Mozart com quem atinge o mesmo significado a obra dra- mitica. Com o romantismo, o interésse se dispersa por varias formas, e na arte orquestral substitui o poema sinfénico, mais livre, a severa construcao da sinfonia. Talvez sentissem alguns romAnticos posteriores como se Ihes desmoronava entre as maos a velha forma sinfénica e i sonata, instituidas de acérdo com as regras de uma arte elevada, e como cada vez mais desaparecia a musica absoluta para dar lugar & progra- mitica. Talvez seja 0 névo lampejo da composigio sinfénica uma der- radeira tentativa do século XIX para resistir 4 decomposi¢a’o0 cada vez mais forte, cujas conseqiiéncias catastréficas, é verdade, ainda nao po- diam ser previstas. Mencionemos aqui um misico que o tempo tratou cruelmente: Max Bruch (1838-1920). As suas sinfonias sio esquecidas € 0 nome apenas se liga ainda a um magnifico concérto de violino, cuja parte lenta canta tédas as saudades do romantismo. Schumann, pouco antes de, na sua loucura incipiente, pretender suicidar-se, defendeu com o nobre entusiasmo que Ihe era tio peculiar um jovem musico em quem pressentia névo génio: Johannes Brahms. Schumann, que via na musica um lago de fraternidade, predisse ao jovem confrade elevada reputacao, muitas feridas e nao poucos éxitos. Tinha razio, embora os louros chegassem tarde, e tivessem de cobrir muitas feridas. Johannes Brahms (Prancha 49), filho da Alemanha do Norte, nasceu em 1833, em Hamburgo. Mas néle vive, como em tantos outros, 0 anelo pelo Sul: viaja para a Italia, escreve valsas em homenagem a Viena e compde as suas famosas “Dancas Hungaras”, atraido pelo exético encanto désse folclore. Finalmente, fixa-se em Viena e na me- trépole do Dantibio vive até o ultimo dia. Passou, todavia, numerosas 217 Fig. 85. Manuscrito de Brahms: partitura das “Variages para orquestra, sdbre wn tema de Haydn”, op. 56, 1873. Viena, Biblioteca Nacional. semanas de férias na Suica, cuja natureza grandiosa o atrafa; grande mimero dos seus trabalhos nasceu em Riischlikon, perto de Zurique e em Thum, e o seu “Réquiem Alemio” teve a primeira edigio em Winterthur (*). Nao é apenas no amor a Viena que Brahms se parece a Beethoven; 0 seu préprio cardter apresenta surpreendente paralelo com o mestre de Bonn. Sério e pesado de corpo e de alma, ocultou sob uma capa de rudez um coracao terno e bondoso, um profundo amor para os homens e a natureza. Em longos passeios percorreu os mesmos caminhos que Beethoven, e em sua vida reinou a mesma solidao. Nao pode, assim, surpreender-nos a forma da sua misica: nio é amdvel, nao é elegante, nio é facilmente acessivel; muito séria e, as vézes, deprimente, encerra o mais alto valor ético e musical e, além (1). As trés primeiras partes do “Réquiem Alemio" foram executadas a 1.0 de derembro de 1867, num concérto da “Gesellschaft der Musikfreunde” de Viena, sob a batuta de Johann Herbeck, na “Grosse Redoutensaal”. Execugfo na integra na Catedral de Sio. Pedro, Bremen, Sexta-Feira Santa, 10 de abril de 1868, sob a regéncia do proprio compositer, que posteriormente acrescentou & partitura uma quinta parte, a divinal aria para soprano, coro e orquestra, "Ihr habt nun ‘Traurigkeit”. Convém esclarecer que nJo se traa de um “Réquiem” litdrgico. Nenhuma oracio ritual ai se encontta, Brahms extraiu da versio luterana da Biblia os textos referentes morte. £ uma espécie de grande ode funebre, de concepcio essencialmente.protestante, em lingua alema. — V. Claude Rostand, “Brahms", Paris, Plon, 1955, 1, 77-100. (N. do R.). disso, abundancia de amor e carinho. No entanto, ha nela, que a principio se nos afigura tio sombria, varios trechos alegres. Nas cangdes € que vemos mais facilmente o carater do criador € das suas obras. Nelas se refletem a vida e o coracio. Muitas versam a solidéo, o amor tragico, o anseio da morte; ali segue Brahms o caminho dos seus grandes precursores liricos, Schubert e Schumann especialmente. Um contemporineo imaginoso disse, referindo-se & tris- teza das suas melodias: “Quando Brahms esta alegre, compde “O ti- mulo é a minha alegria”. Citemos ao acaso algumas das mais belas cangées da longa série, que tém por base profunda melancolia: “Ah, quem me dera saber o caminho de volta!” (Klaus Groth), “A morte a noite infinda e fria” (Heine), “E cada vez mais leve 0 meu sono” (Hermann Lingg), “Noite de Maio” (Ludwig Hélty), “Ao Rouxinol” (Ludwig Hélty), “Ode Safica” (Hans Schmidt). Escolhamos, agora, entre as que descrevem a inquebrantavel forca do amor, “Amor Eterno” (baseada em texto popular eslavo) e “Fidelidade de Amor” (Robert Reinick). Lembremo-nos da magnifica voz da natureza, cheia de tran- qiiilidade e enlévo, na “Solidao dos Campos” (Hermann Almers) e do idilio mais terreno “Na Soliddo dos Bosques” (Karl Lemcke); re- cordamo-nos da peca que se tornou mundialmente famosa pela sua de- licada expresso, “Cangio do Berco” (Karl Simrock). E mencionemos alguns exemplos de fino humor: “O Cacador” (Friedrich Halm), "Se- renata Baldada” (baseada num texto popular da Rendnia). Quem co- nhece as cangdes de Brahms nao o conhece apenas na misica, senao também na escolha dos textos, tio freqiientemente caracteristicos para o misico, Dentre os poetas cujos nomes indiquei ao lado de cada cangio, a maioria est4 certamente esquecida hoje; mas foram os seus versos que inspiraram imortais melodias. Muito mais dificil é 0 caminho em diregdo as obras puramente instrumentais de Brahms: quatro grandiosas sinfonias, graves e se- veras, magistrais no todo e nas partes, Brahms foi contemporineo de Bruckner... e, no entanto, que diferencal Percorrem diariamente as mesmas ruas da cidade, mas quando compéem, estdo inconcebivel- mente distantes um do outro... Mais dificil ainda, com téda proba- bilidade, € compreender perfeitamente o sentido dos Concertos de Brahms, os dois Concertos para piano, grandes na estrutura, que exi- gem muito do solista, mas que também Ihe proporcionam grande satisfacio; 0 Concérto para violino (como o de Beethoven, tinico na sua obra, e também em ré maior), € 0 duplo Concérto para violino e violoncelo. O seu “Réquiem Alemao” merece realmente ser considerado ex- traordinario. Ja se distingue por seu texto em alemao e nao em latim. Néle, como nas “Quatro Cangées Sérias”, ligadas de certo modo ao “Réquiem”, e que constituiram o canto do cisne do com- positor, exprime-se comovedoramente 0 profundo estilo de Brahms, e revela-se, em geral dolorosamente oculta, a melancolia que se nos depara em tédas as suas obras, talvez até nos trechos em que éle, aparentemente, consegue vencé-la. 219 Com o tempo, tornou-se figura popularissima em Viena; pequenino ¢ gorducho, grande cabeca, longa barba e longos cabelos, era o cliente preferido dos cafés que em Viena, como em nenhuma outra cidade, foram o centro dos artistas e literatos. Somente alguns dos seus amigos mais intimos sabiam que éle, que nao era casado, nutria fort{ssimo afeto por Clara Schumann, vitiva do grande misico ¢ pianista, a qual. apés a morte do marido, se dedicava com afinco a divulgar-lhe a obra. Parece que Brahms amou Clara por meio século, sem jamais confes- sar-lhe o seu amor. Quando, em 1896, se viu diante do témulo aberto da mulher querida, previu que também estava préximo seu fim, Len- tamente ia diminuindo de intensidade a luta que, durante longos anos, agitara o ambiente musical de Viena, os partidos a favor ou contra Wagner. A contragosto, participara da contenda; Hans- lick, que j4 mencionamos, classificou-o como o antipapa antiwagne- riano (alids, com certa razio, como tudo quanto Hanslick fé) e, dessarte, fé-lo antipoda de todos os misicos do partido wagneriano, entre 0s quais se encontravam, em primeiro plano, Bruckner e Hugo Wolf. Finalmente a luta cessou, sem vencedores e sem vencidos, como sempre sucede, quando se enfrentam génios. Exteriormente, porém, triunfou o espirito de Bayreuth; mas nao era possivel abalar as obras de Brahms, que sobreviveu a Bruckner e a Clara apenas um ano, pois faleceu aos 3 de abril de 1897. Os vienenses sepultaram-no com 0 ca- rinho que sempre dispensaram aos seus artistas preferidos, quer natos, quer vienenses adotivos”. A Flor do Romantismo: A Cangao Talver seja a cangZo a mais Mdima flor da misica romantica, Nu- merosos compositores a cultivaram, desde a época de Schubert, ou melhor, pouquissimos foram os que o nao fizeram. Da intimidade do lar, do circulo de amigos nos salées do principio do século é que saiu a cangio, invadindo palcos e salas de concérto. E ali, onde tudo con- jurava contra ela, sé lograram firmarse verdadeiras obras-primas. A cangio é 0 oposto da dpera, e é por isso, provavelmente, que 6 raras vézes foi um misico capaz de grandes trabalhos nas duas formas. Na época de Haydn, Mozart e Beethoven, nao tinha ainda a cangio 0s seus tracos caracteristicos; Schubert, Schumann, Mendelssohn e Liszt sio os seus primeiros grandes criadores, e nenhum déles figura bem na histéria da épera. Pelo contrario, Richard Wagner compés apenas cinco cangdes (com palavras de Mathilde Wesendonck) que, afinal, nada mais so que estudos preparatérios para os seus dramas. Verdi nao escreveu nenhuma. Mas nao ha regra sem excecio, e a exceco parece estar constituida por alguns compositores eslavos, como Mussorgsky, Rimsky-Korsakov e Tchaikovsky e, entre os musicos do século XX, principalmente Richard Strauss. Quando falamos das dperas, dissemos que existiam cérca de 42.000. £ facil ver que o numero de cangdes deve ser dez, vinte e até cem 220 q Fig. 86. Manuscrito de Hugo Wolf: “Os Espiritos do Mummelsee”, cangdo baseada em Morike. Viena, Biblioteca Municipal. vézes maior; € no entanto, quéo poucas merecem o nome de “cancio de mestre”, para empregarmos a expressiio de Wagner! A principio, foi a cancio artistica planta puramente alema; em seguida, na época do nacionalismo musical, todos os paises tentaram adapté-la as suas condigées peculiares. Na segunda metade do século romantico, j4 era cultivada por todos os povos. 221 Tivemos a oportunidade de mencionar Peter Cornelius, cujas “Can- des da Noiva” foram muito cantadas; devemos, agora, citar tam- bem o talentoso Robert Franz (1815-1892), que, no estilo, se parecia a Schumann, e Karl Loewe (1796-1869), criador de 368 expressivas baladas, cada uma das quais constituia um pequeno drama musical; 0 seu éxito foi enorme e ainda, uma vez que outra, ouvimos “O Reldgio”, ‘Archibald Douglas", “O Principe Eugénio”, “Revista Militar Notur- na”, “Tom, o Rimador”, “Nock” (espirito das aguas), ¢ outras interes- santes cangées (?). Demos as cangdes de Brahms o lugar de honra que Ihes cabe. Fala- remos agora de um dos mais geniais criadores de canc6es, a0 mesmo tempo um dos mais tragicos vultos da histéria mundial da musica: Hugo Wolf. Téda sua fOrca criadora se concentra na cangio, assim como a de Chopin se concentrou no piano, e a de Paganini no violino. Nas- ceu éle em Windischgraz, no Steiermark austriaco, em 1860. Desde a infancia, revela téda sua melancolia; depois de confusa mocidade, segue-se a maturidade, também sacudida por lutas intimas, terriveis depressdes, miséria e pobreza. E aos 43 anos, apaga-se para sempre a sua estranha vida, num hospital de alienados. Wolf era critico de musica em Viena; ardoroso wagneriano, entrou imediatamente em conflito com as rodas oficiais de musica, tornando- se-lhe quase impossivel fazer ouvir as suas composicées, nascidas na solidao das noites em misera morada; as suas cangdes sao inteiramente revolucionarias e diferentes, e excedem tudo quanto antes se compés: a declamagio — segundo o espirito wagneriano — chega dramatica- mente ao extremo, e cada palavra, cada idéia tem exatamente a sua cadéncia prépria; 0 acompanhamento pelo piano, ja de todo indepen. dente da voz que canta, limitase apenas a colorir, a indicar, como veremos de névo no impressionismo. Dentre as suas centenas de can- Ges, citaremos somente algumas, apesar de tddas elas merecerem lugar de honra entre as mais belas da literatura mundial: as “Cangées de Eichendorff”, as “Cangées de Mérike”, as cangdes com palavras de Goethe € Miguel Angelo. Os seus dlbuns “Cancioneiro Espanhol” “Cancioneiro Italiano” revelam inacreditével adaptacao ao espirito dos paises que 0 seu pobre corpo nunca pisou. Wolf, 0 “Génio da Dor”, nao péde ver pessoalmente o seu éxito; nem com as cangées nem, muito menos, com a bela dpera “O Corre- gedor” conseguiu despertar o interésse dos contemporaneos. Poucos foram os amigos que lhe compreenderam o carter dificil e timido. A noticia da sua morte, a 22 de fevereiro de 1903, entre as sombrias pa- redes de uma casa de alienados de Viena, quase nao despertou €co... (1) Em_ 1817, Loewe compés “Der Erlkonig" (O rei dos elfos"), sébre balada dramécica homénima de Goethe, que Schubert pusera em misica dois anos antes. Wagner considerava a gbra de Loewe musicalmente superior, “uma balada muito mais genuina que a de Schubert £ wratada e desenvolvida ao climax dentro io arcabouco de uma forma estrofica, muito mals “nérdica” em sua énfase. Teria contentado melhor a0 poeta. Entretanto, a partitura de Schubert aleangou triunfo absoluto aos olhos dos coevos e da posteridade, em virtude do. tratamento descritivo diteto, apaixonadamente dramitico". — Alfred’ Einstein, “Schubert”, London, Cassell, 1951, pig. 113."(N. do R.). 222 Assim como se deu com a épera, nasce, com a cangio, significativa escola francesa que, partindo do romantismo dos iltimos tempos, mar- cha imperceptivelmente para o impressionismo. Entre os mais fortes representantes de tal escola figura Henri Duparc (1848-1933) que, ainda muito jovem, participou do tragico destino de Schumann e Wolf, a deméncia a qual, apés seus brilhantes éxitos, © condenou & mais completa inatividade. Entre suas belas cancées € notavel a “Chanson Triste” que percorreu o mundo inteiro. Ao seu lado mencionaremos Ernest Chausson (1855-1899) e Gabriel Fauré (1845- 1924), cujos trabalhos “Aprés un Réve” e “Les Berceaux” constituem belos exemplos de pronunciado senso musical e do tratamento melé- dico da voz por parte désses mestres franceses. Também Reynaldo Hahn (1874-1947) est incluido entre os misicos franceses, apesar de nascido em Caracas (Venezuela). Foi éle discipulo de Massenet, e compés ainda para o teatro ¢ o ballet. Entre as suas mais belas cangées, muitas das quais baseadas em magnificos versos de Verlaine, figuram: “Chansons Grises”, “Fétes Galantes”, “Chanson d’Automne”, “Offrande”, “Dune Prison”, “L’heure exquise”; a sua obra, tal qual a dos colegas, esta entre o romantismo dos wltimos tempos e o impressionismo de Debussy, constitui uma fuga do cotidiano, uma musica distante de téda a realidade, muito delicada, melancélica e... — como diremos? — um pouco cansada. Era o cansago do corago, dos coragées... era o “fin du siecle”. Entre os “novos” povos, o elemento folclérico desempenha impor- tante papel na criagio de cang6es, 0 que é natural com compositores que, seguindo 0 romantismo, se aprofundam na alma do povo e dela tiram forga e originalidade. Assim, entre as cangées de Dvorak, depa- ramsse-nos melodias tipicamente tchecas e algumas polcas amaveis. Como sio lindas as “Cangées Ciganas”, como sio profundas as “Cangées Biblicas"! Também Zdenek Fibich (1850-1900) e Vitezslav Novak (1870-1949) compuseram belas melodias. A Russia foi a pé- tria de grande mimero de impressionantes cangées: ja mencionamos as dos “Cinco”; as mais conhecidas das de Tchaikovsky (“$6 quem conhece a saudade”, com palavras de Goethe, e “Durante o Baile”) voltam-se muito mais para o ocidente, sem duivida; mas encontramos no rico tesouro de cangdes de Alexander Gretchaninov (1864-1956) nu- merosas formas tipicamente russas (“Minha Patria”, “Cangao do Berco”, “Sobre as Montanhas’, e talvez a mais bela “A Estepe que se estende a minha frente”), assim como as melodias do famoso pianista Sergei Rachmaninov (1878-1943), de delicada inspiragio, que se voltam a maioria das vézes para a patria ("A Mulher do Soldado”, “Os Lirios”, “A Manha”, “O Crepusculo”). Também as cangées de Grieg como, por exemplo, “Cangio de Sol- veig” e “No Mar”, possuem, cd e ld, tendéncias populares, menos for- tes nas cangGes internacionais “Amo-te” e “Um Cisne”. A Hungria e a Polénia tém o seu repertério: falaremos, daqui a pouco, mais por- menorizadamente da Espanha e da Inglaterra. Na jovem mtsica ame- ricana, a cangio constitui uma das primeiras formas de composicio. 223 Assim, tornou-se a cangio a verdadeira expressio do romantismo internacional, e 0 que Schubert iniciou no seu restrito ambiente se transformou, antes do fim do século, na forma artistica em que o mundo inteiro exprime os seus sentimentos. Dois Grandes Roménticos Eslavos: Tchaikovsky e Dvorak A terra eslava, tio rica de substancia musical, produz outros cria- dores, depois da primeira geracio que atraiu os olhos do mundo para © Oriente. Anton Rubinstein (1830-1894), que figurou entre os mais famosos vultos da musica, perde cada vez mais no juizo da historia a sua fama de compositor; o seu trabalho de tao grande éxito na época, “O Deménio”, assim como as suas sinfonias e os seus oratérios, todos técnicamente dtimos e de construcio monumental, estio hoje mais ou menos esquecidos. Ssmente uma ou outra pequena melodia nos lembra o homem, cujos merecimentos na vida musical da Russia sio extraordindrios, entre éles a fundagio do Conservatério de Sao Petersburgo, uma das melhores instituigdes do género. Evolucao oposta se nos depara no caso de Peter Ilitch Tchaikovsky (1840-1893), (Prancha 49). A sua obra vai conquistando diariamente novos partidarios, e grande parte, como os ballets e as tltimas trés sinfonias, figuram hoje entre as pecas musicais mais populares. Tchai- kovsky, que viveu muitos anos no estrangeiro, combina a tematica russa com a técnica internacional, e os seus trabalhos formam uma ponte entre a alma oriental e a civilizagio ocidental. Nasceu num longinquo rincio do Ural, ¢ nao tardou em mudar-se para Sio Petersburgo, a cidade das noites brancas, a fim de seguir a carreira de funciondrio; mas num gesto bem russo, que ja vimos em Mussorgsky, abandona de repente tudo e entrega-se & musica. Seguem-se tempos amargos, uma luta desesperada pela existéncia, dias de pro- fundo abatimento moral. Ocupa pequeno cargo de professor de teoria na filial do conservatério imperial, fundada pouco antes por Nicolau Rubinstein; aconteceu, entdo, o milagre da sua vida. Uma vitiva, imensamente rica, entusiasta de musica, Nadechda von Meck, propor- ciona-Ihe, sem conhecé-lo, uma renda perpétua, que o livra de té- das as preocupagées materiais. Assim comeca talvez a mais estranha amizade de que desfrutou um misico, e que podemos acompanhar numa correspondéncia muito viva. Quase nunca foram a um composi- tor prestados tantos cuidados por uma mulher — e certamente nunca por mulher que éle (conforme acérdo tacito) jamais viu na vida... Agora Tchaikovsky viaja, para onde Ihe apraz — de preferéncia no Lago de Genebra e em Florenga — e sé volta A Russia para apresentar uma nova obra. A sua gloria cresce ripidamente. O doutorado honoris causa de Oxford, concertos em muitas cidades, uma tournée na Amé- rica, sio provas externas na vida de um misico que, muito tarde, conseguiu vencer a misantropia verdadeiramente doentia, Em 1885 224 A esquerda: Alexandre N. Skrjabin (1872-1915). A direita: Claude Debussy (1862-1918). Pintura de M. executada em Roma em 1884, Museu de Versailles. Maurice Ravel (1875-1937). Edward Elgar (1857-1934). PRANC PRANCHA 54 \ VN) Gustav Mahler (1860-1911). Jan Sibelius (1865-1957). Max Reger (1873-1916). Richard Strauss (1864-1949). PRANCHA 55 5 a 2F ti Fig. 87. Introdugdo do ballet “Lago dos Cisnes”. Manuscrito de Tchaikousky. volta definitivamente 4 patria e compra uma casa de campo (hoje trans- formada em museu de Tchaikovsky). Ali trabalha na sexta Sinfonia a qual, contrariando tédas as regras clissicas, dé um final triste, como- vedor lamento de plangentes violinos. Parece a despedida da vida. Apresenta-a e nao a compreendem. Poucas semanas depois, morre de uma epidemia de célera que assola a cidade. Entre as suas obras j4 mencionamos as trés ultimas Sinfonias, impres- sionantes. A quarta contém um terceiro movimento assaz interessante, tocado apenas pelas cordas sempre em “pizzicato”. A quinta possui, na primeira e na ultima partes, temas fortemente russos, uma segunda parte poderosamente desenvolvida, em que um melancédlico solo de trompa repete a melodia principal, e uma terceira parte em forma de graciosa valsa, que sempre atraiu bastante Tchaikovsky. A sexta Sin- fonia tem uma primeira parte sombria, cuja linha melédica sobe len- tamente, como que saindo das profundezas da terra, e uma segunda parte alegre, no invulgar compasso de 5/,; apés uma marcha esplén- didamente estruturada, arrebatadora, vem o final de que jd falamos, © qual contraria tédas as regras da sinfonia ¢ é a comovente despedida de um grande misico. De efeito seguro e, por isso mesmo freqiientemente tocado, ¢ 0 Con- cérto para piano em si bemol menor, o primeiro, com o tumultuante tema de introdugio; mais nobre, talvez, seja 0 Concérto para violino. Entre as suas numerosas ouvertures, “Romeu e Julieta” contém belas ¢ ternas melodias, e “1812” é um grandioso retrato das guerras napoledni- 225 15 Histéria Masica cas. Com enorme plastica, descreve-se nela a campanha russa do grande corso, em que a Marselhesa caracteriza os franceses, enquanto uma cangio popular russa assinala os defensores de Moscou. A obra ter- mina com 0 festivo repicar dos sinos de Moscou que abafa os sons da Marselhesa, dilacerada pelo troar dos canhées; apesar de todas as objecées contra ela erguidas pela critica, é empolgante. Para orques- tra de cordas, criou Tchaikovsky, entre outras, uma encantadora Se- renata; 0s seus mais conhecidos ballets sio “Lago dos Cisnes” (fig. 87), “Quebra-nozes” ¢ “A Bela Adormecida”. Com pendor também para a épera, produziu, entre outros, dois belos trabalhos “Eugénio Oniegin” e “Pique Dame” (Prancha 50). Anatol Liadov (1855-1914), Sergei Liapunov (1859-1924) e Alexander Glazunov (1865-1936) sio outros nomes importantes da época musical russa que, de um modo ou de outro, tém contato com o romantismo europeu. Liadov foi um delicado imitador de sons naturais, cujas “Oito Melodias Populares Russas” sio verdadeiras pequenas obras-primas; Glazunov tornou-se, apés iniciar-se no ambiente da nova escola russa, forte sinfonista, empregando freqiientemente material eslavo ligado A escola européia; mencionaremos oito Sinfonias, alguns poemas sinfé- nicos (entre os quais “Stenka Rasin”), um belo Concérto para violino € interessante musica de camara. ‘A misica tcheca, que vimos nascer tao brilhantemente com Smetana, encontra em Antonin Dvorak (1841-1904) (Prancha 49) outro repre- sentante nfo menos talentoso. Dvorak era filho de camponeses, nas- cido em Kralup; bem cedo aprende a tocar violino e exibe-se, como verdadeiro musico da Boémia, por ocasiao de casamentos e festas. Com ésse ganha-pio rumou para Praga a fim de estudar. Mediante grandes sacrificios e muita energia, assimila invulgares conhecimentos. Smetana convida-o para violinista da Opera Nacional, e imediatamente reco- nhece o seu talento de compositor; no estrangeiro quem o apresenta é, mais uma vez, Liszt que néle pressente um futuro génio. Em 1878, um dos seus hinos obtém grande éxito; a partir de en- to, sobe rapidamente. Doutor “honoris causa” em Praga, Oxford e Cambridge, exerce a sua atividade como professor do Conservatério; em 1892, recebe um convite interessante: dirigir o instituto de mu- sica em Nova York. £ 0 primeiro grande compositor europeu a entrar em contato com a musica americana; e a influéncia sente-se claramente na sua obra. Assim, por exemplo, o maravilhoso tema do segundo tempo da quinta sinfonia, a que éle dA significativamente o titulo de “Névo Mundo”, é uma verdadeira melodia de negros com téda a sua milenar melancolia. Nessa melodia confrangedora o bairro negro de Harlem canta por intermédio de um corne inglés, suave e grave, enquanto os instrumentos de corda, harmonizando, murmuram como as drvores das florestas da Boémia, 0 Mississipi e 0 Moldava ao mes- mo tempo. Os povos, quando cantam, compreendem-se; quando can- tam sfo um 6... 226 Em 1895 regressa Dvorak 4 patria; a sua fama ainda cresce na Eu- ropa; na Alemanha, estima-o particularmente — apés a morte de Liszt — Brahms. A sua obra inclui todos os géneros: oito éperas que sd se popularizaram na patria, as famosas “Dangas Eslavas”, obras sinfénicas e musica religiosa, particularmente um belo “Stabat Mater”, além das j4 mencionadas cangdes. Em 1904, Praga dedica aos seus grandes mu- sicos Smetana, Fibich e Dvorak um ciclo de execugdes dos seus tra- balhos; foi a ultima satisfagio de Dvordk que, de pobre menino que era, chegou a ser um dos primeiros compositores da época. Poucos dias depois, cerrou os olhos para sempre. O Novo Despertar da Espanha Durante alguns capitulos perdemos de vista a musica espanhola que, nos ultimos tempos da Idade Média, figurou dentre as mais espléndi- das da Europa. Talvez por decair a fdrca criadora da misica na Peninsula Ibérica, o que, alias, significaria um paralelismo com as demais artes, que também ultrapassaram 0 seu século de ouro, talvez pela sensivel diminuigio da importincia politica da Espanha na Eu- ropa, certo € que entre os grandes mestres do classicismo e do roman- tismo no figura até agora nenhum espanhol. Mas {dra engano supor que na Espanha o amor a musica tivesse decrescido; com’ excegio da Russia, ndo hd provavelmente outro pais to rico de vivaz musica popular como ésse, onde a mescla de elemen- tos latinos e arabes dé origem a melodias, ritmos estranhos € tipicos. E até ouvimos falar em bons compositores do século XVIII, como por exemplo Mateo Albéniz e Antonio Soler, muito embora nao hajam as suas obras ultrapassado os Pireneus. Somente pelo crepiisculo do romantismo, no fim do século XIX, é que surgem na Peninsula dois criadores de fama mundial: Isaac All niz (1860-1909) e Enrique Granados (1867-1916). Ambos catales, receberam ensinamento de um grande mestre, Filipe Pedrell (1841-1922), verdadeiro profeta da nova misica espanhola; ambos foram excelentes pianistas e dedicaram ao piano os seus melho- res trabalhos, e ambos morreram com 48 anos de idade. Albéniz é uma natureza de aventureiro, cuja vida, sobretudo a mocidade, mais parece um romance, Aos quatro anos d4 o seu primeiro concérto de piano; pouco depois, foge de casa e sustenta-se, dando concértos ca e 14, na Peninsula; finalmente, quando a policia pretende leva-lo de volta para casa, embarca clandestinamente num navio rumo a América. Repetira outras vézes essa aventura. Assim viaja por largas regioes da América Latina, e dd concertos de Cuba a Buenos Aires, ganhando muito, muito gastando, e nao se fixando em parte nenhuma. Ja executa suas préprias composicées, ainda pequenas e de escassa importancia. Em 1888, realiza-se a grande mudanga da va vida; sob a abengoada influéncia da jovem espésa, renuncia a vida cle aventuras, comeca a 227 estudar sériamente composigio € ouve os ensinamentos de Pedrell, que © introduz no romantismo e nos primeiros passos do impressionismo francés; ambos se tornam de grande importincia para Albéniz, pois no seu temperamento ultra-espanhol se mesclam romantismo e impres- sionismo com melodias e dancas da sua patria. Com a pera cémica “Pepita Giménez”, oferece Albéniz boa con- tribuigio 4 épera espanhola; o seu concérto para piano, com motivos sevilhanos, é, a0 lado das “‘Noites nos Jardins da Espanha” de de Falla, a obra mais importante do género no pais. A sua arte, porém, faz-se genial, quando descreve paisagens, o azul do céu, as noites limpi- das e repletas de musica de Granada e Sevilha, as coloridas festas da ardente Andaluzia, e as exdticas dancas do bairro cigano. “Ibéri se denomina a coletanea dessas maravilhosas miniaturas, cada uma das quais tem brilho diferente, e é, ao mesmo tempo, melancélica e apaixonada. O mundo recebeu a mensagem da Espanha como grande promessa. Debussy declarou que antes nunca pudera a musica captar to diversas e coloridas impressdes. Mas 0 corpo de Albéniz, enfraque- cido pelos sébre-humanos esforgos da mocidade, sucumbiu antes de poder continuar a obra, mediante a qual revelou ao mundo um pedaco da alma espanhola. Enrique Granados, nascido em Lérida, em 1867, possui temperamento bastante diferente. As jornadas no o atraiam; quanto as viagens mari- timas, causavam-lhe invencivel averséo. Apds estudar em Paris, fixa-se em Barcelona, e j4 goza de boa reputagdo como pianista e compositor tipico de melodias € dangas espanholas. Granados ¢ 0 que, além dos Pireneus, se chama um romantico; vive um pouco fora do tempo e, sonhador, transpée-se para a brilhante época de Goya; nas suas composig6es tenta captar o encanto do passado de Madrid com as suas figuras e dancas tipicas. Nasce, désse modo, o ciclo “Goyescas”, que, a seguir, transforma em épera. Durante a primeira guerra mundial, pede-lhe a Opera Metropoli- tana de Nova York a estréia dessa dpera. Nao foi apenas a primeira estréia em lingua espanhola no famoso teatro; foi também a primeira estréia de obra de ambiente espanhol nos Estados Unidos. Granados, vencendo a aversio as viagens maritimas, assiste A estréia, que logrou imenso éxito. Grande entusiasmo provoca especialmente 0 Intermezzo, breve peca para orquestra, de muito efeito, composta apenas alguns dias antes da estréia, a fim de satisfazer 0 pedido do ensaiador, que Ihe solicitara mais tempo para a mudanca de cendrios, Semanas de- pois, Granados regressa com a espésa; j4 em Aguas européias, 0 navio € torpedeado por um submarino alemio e afunda. Para os que acre- ditam em simbolos, h4 aqui um profundo significado: a desgraca que, com guerras e revolugées, fome e ddio, tomba sébre a Europa, mata também o Ultimo dos romanticos, Chocavam-se naquele momento duas épocas. 228 SEGUNDO INTERMEZZO © apogeu ficou para trds, € esto findos os dois séculos de ouro. O segundo marco da nossa jornada constitui um ponto critico. O século XX, repleto de dificilimos problemas, é sacudido por crises febris. O céu ainda brilha claro e alegre, mas 0 observador atento percebe cA e 1d sinais de alarma, ribombos subterraneos, raios distantes. O sol brilha ainda, embora a noite esteja préxima; a sua luz imprime as céres matizes fortes e vivos, mas jd nao aquece. Provavelmente, as préprias culturas se esgotam. Assim como um fér- til campo se exaure ao cabo de fartas colheitas, assim também se cansa, creio eu, a cultura que produziu numerosas geragdes criadoras. Ainda nascem na Europa mestres, grandes mestres até, ainda cria ela obras de imortal valor. Mas nao sao fléres de uma nova primavera; sio, pelo contrario, os derradeiros frutos de uma copiosa e altiva co: Iheita. Cai s6bre a civilizagio européia 0 outono, com os seus vendavais € as suas tormentas; e um dia tudo estard coberto pelo alvo manto da neve. Os vendavais, as tormentas formam grande parte do contetido desta terceira parte da minha obra, cujo limiar nos aprestamos a cruzar, € que nos traz a nota final, a descida, e o caminho para a incerteza. Ja nio nos falaré de calmas evolucdes, de transig6es imperceptiveis, de trabalhos esperancosos e de confianca no futuro. A Europa, brilhante centro de uma cultura de quase dois mil anos, parece pressentir a sua préxima hora fatal; 0 continente e o século que se atribuem a mais desenvolvida das civilizagdes conhecidas, afogam as suas obras em cau- dais de médo, sangue e lagrimas. Disso nao nos esquecamos, diante da arte moderna. Uma época enférma nunca pode produzir arte sa. No entanto, houve épocas malsis que produziram arte maravilhosa; os trabalhos que terminam uma era diferem muito dos que a iniciam, mas podem ser igualmente belos. A cultura no morre, desde que haja um wnico homem que deseje salvd-la. E 0 desejo de cultura e de arte é forte nos nossos dias. A técnica féz da superficie terrestre um sé terreno cultural; o desenvol- vimento social fara de todos os homens uma sé massa cultural. As correntes espirituais irradiam-se hoje, com inimagindvel rapidez, do centro para todos os pontos, por mais distantes. E a semente da cultura e da arte européia caiu, levada por ventos favoraveis, na forte e vir- gem terra da América. Lembra-se, com certeza, o leitor de que no inicio comparamos o nosso livro a uma jornada. Agora deixamos atras 0 pico sébre o qual batem ainda os derradeiros raios do sol. Do vale sobem até nds, lenta- mente, as sombras. O céu ainda continua claro, refletindo um longo 229 ¢ espléndido dia, e os viajantes ainda Ihe contemplam as céres arden- tes. Mas quando olham para baixo, para o caminho que se Ihes abre a frente, tém impressio de cegar com tanta luz, e a treva que déles se aproxima ainda mais negra e mais impenetravel se torna. A inquietacao domina-os. Tremeluzem cd e 14 pequeninas chamas. Fogos-fatuos, to- chas? Reina confusio. Cada um segue uma chama, cada um acredita estar na vereda certa, através da noite, em direcéo a um névo cume. Lutam uns contra 0s outros em defesa do seu fogo-fatuo, e perdem-se no pantano ou no abismo. Procuram destruir a luz do préximo, e gritam cada vez mais, porque se sentem cada vez mais solitdrios, e pro- ferem palavras cada vez mais vazias. Depois, reconhecem que ja se no entendem, que j4 se ndo compreendem; e impera uma nova Babi- lénia, em que cada um fala sua prdpria lingua, a lingua criada pelo seu egofsmo. Talvez vivam nessa noite alguns que, iluminados pelo reflexo de um verdadeiro ideal, atravessam a escuriddo por um estreito atalho, e vejam a nova aurora. Os outros estio condenados a pere- cer: serdo uma retaguarda dispersada ou desconhecidos desbravadores? Quem sabe? Quando o sol desaparece numa regio da terra, o dia, radioso, surge noutra, distante. 230 Terceiro Livro O CAMINHO PARA A INCERTEZA A terra floresce na primavera, tudo reverdece, eternamente azul € 0 céu, por t6da parte ¢ para sempre, sempre, sempre... (Poesia chinesa de Mong Kao Yen ¢ Wang Wal, nna forma que The deu Gustav Mabler, na "Canglo da Terr 3) O NOVO SECULO A Europa satida, jubilosa, o névo século. Por téda parte reina bem-estar, paz e otimismo. Como se perdem na distancia os problemas inquietantes! A civilizagio burguesa chegou ao auge. Sdmente as artes & que do o alarma; nos palcos e nos livros, os Dostoievskys e Haupt- manns, Strindbergs, Zolas € Ibsens de todos 0s paises lancam ao rosto da sociedade o seu “Eu Acuso!” Na tela pictérica surgem novas figuras, luzes estranhas, alarmantes perspectivas. E a musica ¢ atacada por pro- funda inquietacdo e ansiosa busca. A morte de Wagner foi o grande sinal de adverténcia no caminho da musica. Wagner afastou conscientemente a arte de tudo quanto era corriqueiro, e colocou a mtsica no império da fantasia. O seu génio, fortissimo, fascinou-nos com vultos lendarios, deuses, herdis, gigantes, anes, pogdes magicas e simbolismos. Para onde se dirigiram os suces- sores? Seguiriam ao acambarcador de todo o romantismo? Tentam fazé-lo alguns, entre os quais o proprio filho de Wagner, Siegfried (1869-1930), e outros, que ainda encontraremos. Mas os pés da maio- ria eram demasiadamente pequenos para as amplas pegadas wagneria- nas, e éles nao passaram de palidos sucessores. Portanto, urgia afastar-se de Wagner! Ir contra Wagner! Foi ésse o grito de guerra de muitos, até de quantos, inconscientemente, muita coisa déle adotaram. Abaixo Wagner! Pode significar bastante. Na 6pera, conduz para o verismo italiano (que imediatamente se internacionaliza), e que corresponde ao naturalismo das demais artes: a repentina volta a realidade, & imagem da vida cotidiana, sem disfar- ces, nua e crua. Em térmos puramente musicais, significa a tendéncia antiwagneriana o abandono do seu ansioso cromatismo, dos seus “Leit- motivs”, das suas melodias sem fim, da sua majestosa orquestra, do seu simbolismo musical; numa palavra, significa o caminho em direcio a algumas das correntes que se nos deparam no nosso século, como 0 neoclassicismo ou o expressionismo. Escolhemos o exemplo da obra musical cénica para melhor esclarecer a questéo, mas exatamente a mesma evolucao se realiza na musica sinfénica, na cangdo, na musica de camara. Essa evolugio se assenhoreia tanto da técnica como dos temas; com relacdo a éstes, veremos como a busca do material realista leva 4 incluso de temas citadinos e a exaltagao de fabricas, maéquinas, obras técnicas e outros simbolos da vida moderna. Um dos caminhos levou os homens para longe de Wagner. O outro, pelo contrario, conduziu-os, sem que éles o percebessem, mais além ainda de Wagner. Foi a extrema conseqiiéncia do ideal roméntico, no 238 Fig. 88. Atitudes cldssicas de regentes. Desenho de Schliessmann no “Lustige Blatter”, 1906. seu esforco de se afastar da crua realidade, e levou 4 suprema perfeicio do simbolismo. Foi o caminho do chamado impressionismo, o qual, na pintura, confundiu perspectiva, desenho e contornos numa impressio de conjunto de grande unidade; o impressionismo faz-se cor, impres- so, efeito na poesia de Baudelaire ou de Verlaine, 0 exético boémio de Montmartre. Na misica, desfazem-se os elementos principais, melo- dia, harmonia, ritmo, dissolvem-se como os elementos bisicos da pin- tura na arte de Cézanne, Renoir, Monet, e cedem lugar a novos ideais. Tudo se torna irreal, sonho, distancia, como 0 pilido brilho de um sol de inverno sébre a lagoa coberta de folhas murchas. A misica passa a ser mais aérea, mais etérea que nas mais etéreas cenas wagne- rianas, amontoado de nuvens de verio num céu que nao tem fim; restos de melodias se estendem em melancédlicas seqiiéncias por sobre ligagdes harmonicas suaves e sonhadoras, das quais, apesar de tédas as dissonancias, foram tiradas as asperezas; e quando nés cerramos os 234 olhos, atinge os nossos sentidos e envolve-os um doce perfume de longinquos jardins... Claude Debussy (Prancha 58) é 0 representante do impressionismo na sua mais pura forma. Nasceu éle em 1862, em St. Germain-en-Laye (Franga). Com 22 anos conquistou do Conservatério de Paris o ambi- cionado prémio de viagem a Roma. Por um momento, téda a atenco se concentra na nova esperanca oficial da Franca, na sua viagem & Cidade Eterna. Mas a ouverture que éle 14 compée e que, segundo © costume, envia ao jtri parisiense, desperta preocupacées com a sua personalissima linguagem musical. Debussy procurou um caminho, para além ainda de Wagner, em combinacées que excediam a ousadia de “Tristio”, e isso numa época em que a obra wagneriana ainda nao havia penetrado a consciéncia francesa. A ouverture de Debussy, com- pletamente em desacérdo com o habitual, nao foi executada, e o nome do jovem musico caiu no esquecimento. Debussy distanciou-se cada vez mais do mundo; por muito tempo o artista pitoresco e extraordi- nariamente interessante viveu apenas para si préprio, ouvindo as suas vozes internas e construindo um névo mundo musical apenas perten- cente a éle. De 1892 a 1902, trabalha numa unica obra, a maior da sua vida, o drama musical “Pelléas et Mélisande”, para o qual se sen- tiu inspirado pelo profundo poema do belga Maurice Maeterlinck. Esse trabalho nfo permite comparagdes com qualquer outra épera, € ocupa lugar distinto na literatura do drama musical. Talvez se trate da tnica tentativa frutuosa de combinar dois mundos, opostos: impres- sionismo e teatro. Nem o proprio Debussy foi capaz de repetir a ten- tativa, pois espécie de mistério medieval é o seu outro trabalho teatral, “O Martirio de Sao Sebastido”, baseado no texto de Gabriele D'Annun- zio, em que praticamente todo o drama fica substituido por musica inebriante, inaudita. Grande é a semelhanga entre a arte de Debussy e 0 mundo de idéias dos seus colegas impressionistas da pintura; muitos dos temas sio idén- ticos: doces paisagens desvanecendo-se como em neblinas e acima de tudo a Agua, pela qual Debussy sente mistica atracio. Est ela presente sob centenas de formas na sua musica, desde a fonte que constitui © constante “Leitmotiv” em “Pelléas et Mélisande”, passando pelos “Reflets dans I’Eau”, pelos “Jardins sous la Pluie” até as “Nuages” e “Sirénes”, a velhissima lenda da Bretanha, sébre a “Cathédrale Engloutie”, submersa no oceano, e chega ao auge no grandioso poema sinfénico “La Mer”; Debussy recorre constantemente & dgua, e des- cobre novos tons e matizes para o misterioso elemento que noutros tempos estimulou a fantasia de Schubert. Na arte sinfénica, nas possibilidades cada vez maiores da moderna aparelhagem sonora, encontra campo inesgotavel o impressionismo de Debussy. “L’Aprés-midi d’un Faune” composto para o famoso danca- tino russo Nijinsky, os trés “Nocturnes” (“Nuages”, “Fétes”, “Sirénes”), no wiltimo dos quais acrescenta & orquestra o misterioso efeito de um cio feminino sem palavras, “Ibéria”, repleta de verdadeira vida es- panhola, apesar de o autor nunca haver pisado a Espanha — assim 235 como nunca a pisou Bizet, quando escreveu “Carmen”, e Emanuel Cha- brier (1814-1894), o talentoso compositor da rapsddia sinfénica “Espafia” —e finalmente “La Mer”, o apogeu da arte orquestral de Debussy com as suas partes “O Mar do Nascer do Sol ao Meio-dia”, “Jégo das Ondas” e “Didlogo entre o Vento e o Mar”. Em cada uma dessas obras surge perante os nossos olhos uma verdadeira imagem, as quais se submetem tédas as leis da musica. Também no reino incomparavelmente mais restrito do piano atinge Debussy tons feiticeiros e completamente novos: na “Suite Bergamas- que” que encerra o maravilhoso “Clair de Lune”, nos “Arabescos”, nos coloridos “Préludes”, no magnifico “Children’s Corner” que conduz ao ritmicamente movimentado “Golliwog’s Cakewalk” j4 contendo o elemento jazz. © emprégo do impressionismo na cancio produziu, como era de esperar, felizes resultados. A melodia, como que a pairar, suspensa, atinge, apoiada em versos de poetas do mesmo estilo, a expressio de uma beleza mais elevada, mais madura, de colorido mais suave e de profunda sabedoria. O névo estilo j4 fora pressentido pela arte de Duparc, Fauré, Hahn; Debussy condu-lo as iltimas conseqiiéncias: “Fétes Galantes” e “Ariettes Oubliées”, ambos ciclos baseados nos melancélicos versos de Verlaine, “Cinco Poesias de Baudelaire” e “Ba- ladas de Francois Villon”, constituem os seus pontos mais altos. Debussy passou, durante a sua vida solitéria de trabalhador, por varios desenvolvimentos intimos, como se sua alma estivesse sempre a viajar. E ela encontrou um ponto de repouso numa civilizacao lon- ginqua, a malaia, indonésica. Debussy nao estéve 14 numa encarnacio, no; as vézes, ouviam-se em Paris orquestras javanesas e outros grupos musicais do Oriente, E éle entreviu, como outros artistas europeus dés- te século indagador, a existéncia de segredos milenares, dos quais nao tinha a menor idéia a ciéncia musical européia. A primeira guerra mundial, precursora do apocalipse, encheu de horror 0 coragio de todos os artistas; Debussy retirou-se para a sua casa 4 beira-mar, perto da fronteira espanhola. Durante dias ficou a contemplar o elemento eterno, como que dialogando com éle; em seguida escreveu incessantemente dia e noite. Torturavam-no as mui- tissimas obras nfo escritas, a éle que sé compunha devagar. Sabia que nao conseguia termind-las, e seu corpo foi definhando. Em marco de 1918 faleceu em Paris, enquanto os canhées alemaes bombardea- vam a cidade. Depois de Granados, é 0 segundo grande misico que nao sobrevive 4 catdstrofe mundial. Também a Russia e a Alemanha tiveram suas vitimas. Scriabin e Reger, sem mencionarmos os numerosos talen- tos jovens que, como Rudi Stephan (1887-1915), pereceram nas trin- cheiras € cujos nomes se léem no rol dos “herdis tombados”, em lugar de o serem na histéria da musica. Um dos caracteristicos da arte moderna é perder cada vez mais 0 caréter nacional. Assim como se parecem cada vez mais as cidades cosmopolitas do nosso século, gracas As construgées por téda parte 236 semelhantes, assim também se iguala o estilo musical. A civilizagao moderna, com suas estradas de ferro, seus avides, ¢ 0 radio, contribui em grande parte para isso. Os limites das tendéncias musicais j4 ndo coincidem, como no século romantico, com as fronteiras nacionais; antes era facil distinguir musica alem§, italiana, polonesa, escandinava; hoje a linha diviséria dos diversos estilos musicais do século XX. passa entre grupos individuais do mesmo pais, de maneira que, por exem- plo, um impressionista francés se sente muito mais préximo dos im- pressionistas da Inglaterra, Espanha, Itdlia ou Russia, do que dos veristas, expressionistas, neoclassicistas do seu proprio povo. Para tal evolucdo contribui também o fato da completa eliminacéo, como base da misica, do caracteristico nacional que para os romAnticos era tudo; pelo menos, isso é verdade na Europa. Veremos, contudo, que na cons- trugio da jovem musica americana tal caracteristico volta a ocupar pésto importante. Muito embora Debussy nao possa ser chamado chefe de escola — pois foi excessivamente individualista e solitério — o impressionismo expande-se pelo mundo, como que correspondendo a um profundo anelo da época. Nao obstante, mal se pode falar de um estilo “domi: nante” no século XX; a divisdo e desuniao, na vida e na arte, jd néo permitem qualquer unidade. ‘A Russia contribui para o impressionismo através a interessante figura de Alexander Scriabin (1872-1915); mas ésse genial eslavo expande a idéia até os limites da musica. Na sua imaginacio ilimitada se mes- clam mistica, magia, fanatismo com melancolia e devaneio préprios do impressionismo, e produzem obras estranhas. Também em Scriabin se véem principios de Wagner e Chopin, como sucede com Debussy. Tal- vez possamos considerar obra caracteristica de Scriabin 0 seu “Prome- teu”; aqui, o homem é simbolizado pelo piano, enquanto a orquestra representa o mundo; um céro misto encarna os chamados mais re- cénditos da humanidade; mas 0 compositor nao se satisfaz com efeitos sonoros; na imaginacéo se Ihe misturam impresses acisticas e dpticas, Ja se tem idéia, cd e 14, de uma relagao oculta entre sons e cores, € jd existem quadros inteiros dedicados a essa idéia. O {4 me- nor é vermelho ou roxo? Naturalmente, é pueril qualquer discussio a respeito, por nao poder existir opinido undnime, porquanto nisso nao reside a esséncia do pensamento. Mas nao hd diivida de que certas espécies de tons e combinagées de sons provocam no homem determinadas impressdes sentimentais; as palavras “claro” ¢ “sombrio” tém emprégo também no terreno da misica. Citemos dois exemplos: Beethoven usa a tonalidade dé menor como expressio de uma tristeza mais sombria, mais fatal (na marcha finebre da “Heréica”, na sonata “Patética” para piano, na primeira parte da Quinta Sinfonia), e Wagner emprega a mesma tonalidade na marcha funebre de Siegfried (no “Creptsculo dos Deuses”). O 14 maior é, sem diivida, uma tonali- dade “clara”: (a “‘Sétima” de Beethoven, a “Italiana” de Mendelssohn, e a ouverture de “Lohengrin” de Wagner, tantas vézes cognominada “celestial”). Poderiamos citar outros exemplos, 4 vontade, 0s quais nos 237 levariam a um terreno assaz interessante, o da psicologia do tom. Mas voltemos a Scriabin. Mandou éle construir um fotopiano ou piano de cdres que, se gundo os tons, projetava numa tela eleitos de luz e de cores. Esse estranho instrumento, naquela época discutidissimo e nunca mais re- petido, exceto em experiéncias semelhantes de Schonberg, coopera em varias obras de Scriabin, tirando-as, assim, do plano puramente acustico. Outro interessante trabalho tem o titulo signiticativo de “Poema do Extase”; também ali procura Scriabin exprimir, por todos os meios disponiveis, 0 que dormita na causa primeira do ser, da terra e do homem. Apoiadas num temperamento ardente so também suas com- posigdes para piano, entre as quais dea sonatas inundam a antiga forma de um conteido completamente nédvo, revoluciondrio, como ja indicam dois dos titulos: “A Missa Negra” e “A Missa Branca”. Pela primeira vez so transportadas para a linguagem musical a magia € 0 ocultismo. Dentre os seus Estudos, passou a ser o “‘Patético” o mais conhecido. Hoje, seus trabalhos est&éo quase esquecidos; além disso, quase se ndo sente mais a grande influéncia que exerceu sbre a geracio seguinte, entre outros, 0 jovem Stravinsky. Voltemos a Franga, onde veremos em Maurice Ravel (1875-1937) (Prancha 58) nao somente o mais forte sucessor de Debussy, sendo também um dos mais geniais compositores do nosso século. Ravel sen- tiu-se particularmente atraido pela danga artistica, pelo ballet e criou, com o nao menos genial coredgrafo russo Sergei Diaghilev (1872-1929) uma série de valiosos poemas coreogralicos. A nova e estreita liga entre as duas artes irmas foi benética para ambas as partes, e talvez tenha salvo o impressionismo musical do perigo da abstracao e inércia cada vez mais fortes, proporcionando-Ihe novos impulsos com os ritmos, fazendo com que os dancarinos observassem mais rigidamente certas regras comuns a ambas as artes, e pusessem de lado um pouco da arbitrariedade que por longos anos demonstraram perante a musica, a qual, para éles, nada mais era que um “mal necessario’ Nascem, assim, as encantadoras “Ma Mére l'Oye” € “Daphnis e Chloé”. Muitos outros trabalhos de Ravel sao avivados pelo ritmo da danga: “La Valse”, homenagem do artista a cidade de Johann Strauss, 0 famoso “Boléro”, em que um simples motivo de musica popular espanhola é, pela requintada arte da instrumentacio, levado de uma delicada melodia, em “crescendo” ininterrupto e tumultuoso, a um hino trovejante. Ravel apresenta-se mestre da orquestra moderna — sinal de todos os modernos compositores, filhos de uma época técnica — na ja mencionada instrumentagio dos “Quadros de uma exposicio” de Mussorgsky. Encantadoras € cheias de belissimos efeitos sonoros si as duas pequenas dperas “L’heure espagnole” e “L'enfant et les sorti- leges”. No “Tombeau de Couperin”, Ravel homenageia 0 estilo dos grandes cravistas dos séculos XVII e XVIII de maneira muito comum naquele tempo (1917); na maravilhosa “Pavana para uma infanta morta” continua a pintura sentimental de Debussy; em numerosas cangoes (gregas, hebraicas, malgaxes, melodias sérias e alegres baseadas 238

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