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Eni P. Orlandi ANALISE DE ~ DISCURSO * Principios Procedimentos Pontes I. 0 DISCURSO A Linguagem em Questo Ha muitas maneiras de se estudar a linguagem: concentrando nossa atengio sobre a lingua enquanto sistema de signos ou como sistema de regras formais, e temos entio a Lingifstica; ‘oucomo normas de bem dizer, por exemplo, e temos a Gramética normativa, Além disso, a propria palavra gramética como a palavra lingua podem significar coisas muito diferentes, por isso as graméticas e a maneira de se estudar a lingua sio diferentes em diferentes épocas, em distintas tendéncias e em autores diversos. Pois & justamente pensando que hé muitas maneiras de se significar que os estudiosos comegaram a se interessar pela linguagem de uma maneira particular que é a que deu origem & Anilise de Discurso. A Anilise de Discurso, como seu préprio nome indica, nao trata da lingua, nfo trata da gramatica, embora tadasessas coisas Ihe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prética de linguagem: com 0 estudo do discurso observa-se © homem falando. Na anilise de discurso, procura-se compreencer a lingua fazendo sentido, enquanto trabalho simb6lico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua histéria. Por esse tipo de estudo se pode conhecer melho: aquilo que faz do homem um ser especial com sua capacidade de significar € significarse. A Andlise de Discurso concebe a linguagem ia entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediagao, que € 0 discurso, torna possivel tanto a permanéncia e a continuidade quanto o deslocamento e a transformagio do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbélico do discurso est na base da produgao da existéncia humana. Assim, a primeira coisa a se observar & que a Andlise de Discurso nio trabalha com a lingua enquanto um sistema 15 abstrato, mas com a lingua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produgao de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. Levando em conta 0 homem na sua hist6ria, considera os Processos e as condigdes de produciio da linguagem, pela andlis da relagdo estabelecida pela lingua com ca eujeltos a0 A fn € as sitagdes em que se produz o dizer. Desse modo, para encontrar as regularidades da linguagem em sua produgao, 0 analista de discurso relaciona a linguagem a sua exterioridade. Tendo em vista esta finalidade, ele articula de modo particular conhecimentos do campo das Ciencias Sociais e do dominio da Lingiistica. Fundando-se em uma reflexiio sobre a histéria da epistemologia e da filosofia do conhecimento empitico, essa articulagéo objetiva a transformagio da prética das ciéncias sociais e também a dos estudos da linguagem, Em uma proposta em que 0 politico € o simbélico se confrontam, essa nova forma de conhecimento coloca questies para a LingUifstica, interpelando-a pela historicidade que ela apaga, do mesmo modo que coloca questdes para as Cigncias Sociais, interrogando a transparéncia da linguagem sobre a qual elas se assentam. Dessa maneira, os estudos discursivos visam pensar o sentido dimensionado no tempo e no espago das priticas do homem, descentrando a nogio de sujeito e relativizando a autonomia do objeto da Lingiifstica. Em conseqiiéncia, ndo se trabalha, como na Lingiifstica, com a lingua fechada nela mesma mas com o discurso, ae um objeto s6cio-hist6rico em que o lingiistico intervém como pressuposto, Neme trabalha, por outro lado, com a hist6ria ea sociedade como se elas fossem independentes do fato de que elas significam, Nessa confluéncia, a Anilise de Discurso critica a pratica das Ciencias Sociais ¢ a da Lingiifstica, refletindo sobre a maneira como a linguagem est materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na lingua. 16 Partindo da idéia de que a materialidade especifica da ideologia € 0 discurso e a materialidade especifica do discurso éa lingua, trabalha a relagio Iingua-discurso-ideologia. Essa relagao se complementa com o fato de que, como diz M. Pécheux (1975), néo ha discurso sem sujeito e nao hé sujeito sem ideologia: o individuo € interpelado em sujeito pela ideologia ¢ € assim que a lingua faz sentido. Conseqiientemente, o discurso € 0 lugar em que se pode observar essa relagio entre lingua ¢ idcologia, compreendendo-se como a lingua produz sentidos por! para os sujeitos. Um Novo Terreno e Estudos Preliminares Embora a Anilise de Discurso, que toma o discurso como seu objeto préprio, tenha seu inicio nos anos 60 do século XX, Oestudo do que interessa a ela - 0 da lingua funcionando para a produgdo de sentidos e que permite analisar unidades além da frase, ou seja, o texto - jd se apresentara de forma nfo sistematica em diferentes épocas e segundo diferentes perspectivas. ‘Sem pensarmos na Antigiiidade e nos estudos retéricos, temos estudos do texto, em sua materialidade lingiistica, em M.Bréal, por exemplo, no século XIX, com sua semantica hist6rica. Situando-nos no século XX, temos os estudos dos formalistas russos (anos 20/30), que j4 pressentiam no texto uma estrutura, Embora 0 interesse dos formalistas fosse sobretudo literdrio, os seus trabalhos, buscando uma I6gica interna do texto, prenunciavam uma anélise que nao era a anéilise de contetido, maneira tradicional de abordagem. A aniilise de contetido, como sabemos, procura extrair sentidos dos textos, respondendo a questio: o que este texto quer dizer? Diferentemente da andlise de contetido, a Andlise de Discurso considera que a linguagem nao é transparente. Desse modo ela no procura atravessar o texto para encontrar um sentido do outro lado. ‘A questo que ela coloca é: como este texto significa? 1 Ha af um deslocamento, jé prenunciado pelos formalistas Tussos, onde a questo a ser respondida nao é 0 “o qué” mas 0 “como”. Para responder, ela nao trabalha comos textos apenas como ilustragdo ou como documento de alge que ja esta sabido em outro lugar € que o texto exemplifica. Ela produz um ‘conhecimento a partir do proprio texto, porque o vé como tendo uma materialidade simbélica propria e significativa, como tendo ‘uma espessura semantica: ela o concebe em sua discursividade. Ainda em termos de precursores, outra forma de andlise bem sucedida, que ja pesquisava o texto, é a do estruturalista americano Z. Harris (anos 50). Com seu método distribucional, ele consegue livrar a anélise do texto do vigs conteudista mas, para fazé-lo, reduz.o texto a uma frase longa. Isto é, caracteriza sua prética te6rica no interior do que chamamos isomorfismo: estende 0 mesmo método de anilise de unidades menores (morfemas, frases) para unidades maiores (texto) e procede a ‘uma analise lingiistica do texto como o faz na instdncia da frase, perdendo dele aquilo que ele tem de especifico. Como sabemos, © texto ndo é apenas uma frase longa ou uma soma de frases, Ele € uma totalidade com sua qualidade particular, com sua natureza especifica, Considerando 0 texto como unidade fundamental na andlise da linguagem, temos no estruturalismo europeu 0 inglés M.A.K.Halliday. Ele considera 0 texto como uma Passagem de qualquer comprimento que forma um todo unificado, pensando a linguagem em uso. Segundo sua Proposta, que trata 0 texto como unidade semantica, o texto do € constitufdo de sentengas, cle é realizado por sentengas, © que, de certo modo, inverte a perspectiva lingilistica. Suas Contribuigdes so valiosas mas, & diferenca da Anilise de Discurso, ele nao trabalha com a forma material, ou com a ideologia como constitutiva ¢ estaciona na descrigao, Filiagdes Teéricas Nos anos 60, a Anilise de Discurso se constitui no espago de questdes criadas pela relagdo entre trés dominios disciplinares que so ao mesmo tempo uma ruptura com o século XIX: a Lingiifstica, o Marxismo e a Psicanilise. AA Lingtistica consttui-se pela afirmagzio da nfo-transparéncia da linguagem: ela tem seu objeto préprio, a lingua, e esta tem sua ordem propria. Esta afirmagao ¢ fundamental para a Anélise de Discurso, que procura mostrar que a relagio linguagem/ pensamento/mundo nio é univoca, no é uma relagdo direta que se faz termo-a-termo, isto €, ndo se passa diretamente de tum a outro. Cada um tem sua especificidade. Por outro lado, a Anélise de Discurso pressupde 0 legado do materialismo hist6rico, isto é, o de que hé um real da hist6ria de tal forma que 0 homem faz histéria mas esta também nio Ihe é transparente. Dai, conjugando a lingua com a histéria na producdo de sentidos, esses estudos do discurso trabalham 0 que vai-se chamar a forma material (nfo abstrata como a da Lingiistica) que é a forma encamada na histéria para produzir sentidos: esta forma € portanto lingiiistico-histérica, Nos estudos discursivos, ndo se separam forma e contetido e procura-se compreender a lingua no s6 como uma estrutura mas sobretudo como acontecimento. Reunindo estrutura e acontecimento a forma material € vista como 0 acontecimento do significante (lingua) em um sujeito afetado pela historia. Ai entra entio a contribuigdo da Psicandlise, com 0 deslocamento da nogdo de homem para a de sujeito. Este, por sua vez, se constitui na relagao com o simbélico, na hist6ria, Assim, para a Andlise de Discurso: a. a lingua tem sua ordem propria mas s6 é relativamente aut6noma (distinguindo-se da LingUfstica, ela reintroduz.a nogo de sujeito e de situagiio na andlise da linguagem); b. a histéria tem seu real afetado pelo simbélico (os fatos reclamam sentidos); 19 . 0 sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da lingua e também pelo real da hist6ria, ndo tendo o controle sobre 0 modo como elas 0 afetam, Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia As palavras simples do nosso cotidiano ja chegam até nés carregadas de sentidos que nao sabemos como se constitufram € que no entanto significam em nés e para nds. Desse modo, se a Andlise do Discurso é herdeira das trés regides de conhecimento - Psicandlise, Lingiiistica, Marxismo - noo é de modo servil e trabalha uma nogio - a de discurso - que nao se reduz ao objeto da Lingiifstica, nem se deixa absorver pela Teoria Marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicandlise. Interroga a Lingiiistica pela historicidade que ela deixa de lado, questiona © Materialismo perguntando pelo simbélico e se demarca da Psicandlise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada a0 inconsciente sem ser absorvida por ele. As nogdes de sujeito e de linguagem que esto na base das, Cigneias Humanas ¢ Sociais no século XIX ja nao tém atualidade ap6s a contribuicao da Lingiiistica e da Psicanélise. Por outro Jado, tampouco a nogdo de lingua (como sistema abstrato) pode ser a mesma com a contribuigio do Materialismo, A anilise de discurso, trabalhando na confluéncia desses ‘campos de conhecimento, irrompe em suas fronteiras e produz um novo recorte de disciplinas, constituindo um novo objeto gue vai afetar essa formas de conhecimento em seu conjunto: este novo objeto € 0 discurso. Discurso A nogio de discurso, em sua definigdo, distancia-se do modo como 0 esquema elementar da comunicagio dispGe seus elementos, definindo 0 que € mensagem. Como sabemos esse esquema 20 elementar se constitui de: emissor, receptor, cOdigo, referente € ‘mensagem. Temos entio que: 0 emissor transmite uma mensagem (nformagao) ao receptor, mensagem essa formulada em um e6digo referindo a algum elemento da realidade ~ o referente. Cujo esquema é: Mensagem ig0 Bi= = GR Referente dlise de Discurso, ndo se trata apenas de transmissio, deinformagio, ‘nem hi essa linearidade na disposigao dos elementos dda comunicagio, como se a mensagem resultasse de um processo assim serializado: alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em um cédigo, ¢ 0 receptor capta a mensagem, decodificando-a. ‘Na realidade, a lingua nao é s6 um cédigo entre outros, nic hé essa separagiio entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa seqiiéncia em que primeiro um fala e depois 0 outro decodifica etc. Eles estiio realizando ao mesmo tempo o processo de significagdo e nao esto separados de forma estanque. Além disso, a0 invés de mensagem, 0 que propomos é justamente pensar af 0 iscurso. Desse modo, diremos que niio se trata de transmissiio de informacao apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que poe ‘em relagio sujeitos e sentidos afetados pela lingua e pela hist6ria, temos um complexo processo de constituigao desses sujeitos € producio de sentidos endo meramente transmissfio de informagao. Sio processos de identificagzio do sujeito, de argumentagio, ig subjetivago, de construgdo da realidade ete, Por outro lado, tampouco assentamos esse esquema na idéia de comunicagio. linguagem serve pra comunicareparanio comunicar. As relapses de Tinguagem so relagGes de sujeitos ede sentidose seus efeitos io miiltiplos e variados, Daf a definigdio de discurso: 0 discurso| ‘feito de sentidos entre locutores. Também nao se deve confundir discurso com “fala” na continuidade da dicotomia (lingua/fala) proposta por F. de a Saussure. O discurso nai corresponde & nog de fala pois nao se trata de opd-lo a lingua como sendo esta um sistema, onde tudo se mantém, com sua natureza social e suas constantes, Sendo 0 discurso, como a fala, apenas uma sua ocorréncia casual, individual, realizagao do sistema, fato hist6rico, a-sistematico, com suas varidveis etc. © discurso tem sua regularidade, tem seu funcionamento que é possivel aprender se no opomos 0 Social € 0 hist6rico, 0 sistema e a realizagao, o subjetivo a0 objetivo, o processo ao produto, A Andlise de Discurso faz um outro recorte teérico relacionando lingua e discurso. Em seu quadro teérico, nemo discurso € visto como uma liberdade em ato, totalmente sem condicionantes lingifsticos ou determinagées hist6ricas, nem a Iingua como totalmente fechada em si mesma, sem falhas ou equivocos. As sistematicidades lingiifsticas — que nessa Perspectiva nio afastam 0 semantico como se fosse externo — So as condi¢des materiais de base sobre as quais se desenvolvem os processos discursivos. A lingua é assim condigao de possibilidade do discurso. No entanto a fronteira entre Itngua e discurso € posta em causa sistematicamente em cada prética discursiva, pois as sistematicidades acima referidas, ndo existem, como diz M. Pécheux (1975), sob a forma de um bloco homogéneo de regras organizado 8 maneira de uma maquina légica. A relagdo € de recobrimento, nao havendo Portanto uma separaciio estivel entre eles, 22 SUJEITO, HISTORIA, LINGUAGEM 23

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