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COLECÇÃO BIBLIOTECA 70

01. O MISTtRIO DA SAÚDE, llans-Geo rg Gadamer

0 2 . AS RELA~'OES INTERNACIONA IS DESDE 19·>5, Maurire a'isse


0!1. ACTOS DE S!Gl\:IFICADO. Jcromc Bruncr (
26
O f . CONCEITOS SOCIOLÓGICOS F U ND.\MENTAIS, Max W<jber

05. AS HELA~'OES 1:--JTERNACIONAIS DE 191 8 A 1999, PicrreiMilza


OG. TEMPOS CATIVOS, AS CR I ~\NÇ'AS TV, Lilianc Lurçat
07. IIERANGA E FUTURO DA EUHOI'A, llans-Georg Gadamcr
OH. INTHODU(,'ÃO À PSICOLOGIA SOCIAL MODERNA, Gio'·imni Gocci e Laura Occhini
0 9 . O PROCESSO DA EDUCAÇ..\0, Jc1·ome llruncr

10 . QUESTOES DE RETÓRIC\, LINGUAGE:\.1, RA ZAO E SEDUÇAO, Michel Meyer

11. O PAHOX ISTA INDIFI::RENTE, Jean Baudrillard

12. O MÉDICO NA EHA DA TÜ' t\ICA, l{arl Jaspcrs


1:J. A EVOLU~'ÃO PSICOLÓGICA DA CHI ANÇA, Hem·i Wallon
!
I

1k REVO LUÇÃO INDUSTR IAL E CRESCIMENTO ECONÓM CO 1\:0 SÉC. XIX, Chantal Beauduilllll
15 . AS RELAÇ0ES INTER:'\ACIONAIS DE 1871 A 19H, Picrre'Milza
16. I~TRODUÇÃO À SOCIOLOGIA, 1\orbcrt Elias
17. O. NASCIMENTO DO TEMPO, llya Prigoginc
18. A FILOSOFIA DA EDUCAÇAO, Oii,·icr Rcboul

19. AS HELAÇ0ES INTERNACIONA IS DE 1800 A 1871 , Beno!t•Pcllistrandi

Émile Durkheim
20. PSICANÁLISE E HELIGIÃO, Erich Fro mm

21 . A INTEHPRETAÇÃO DAS AFASIAS, Sig mund Frcud


22. PARA UMA SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA, Pierrc Bourdicu

2~. ESBOÇO PARA UMA AUTO-ANALISE, Picrrc Bourdicu


21. O QUE É O OCIDENTE>, Plrillipc Ncmo

25. II ISTÓRIA DA GEOGRAFIA. Paul Cla,·al


26. EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA, Émile Durkheim
Educação
e Sociqlogia

..
ISBN 978-972-44-1385-3

11 11111
9 . 789724 413853
I
Título original:
Éducation et Sociologie

© desta tradução, Edições 70

Tradução: Nuno Garcia Lopes

Revisão: Ruy Oliveira

Capa: FBA.

Depósito Legal n.0 261601/07

Impressão e acabamento:
Émile Durkheim
Educação
GRÁFICA DE COIMBRA
para
EDIÇÕES 70, LDA.
Julho de 2007

ISBN: 978-972-44-1385-3
ISBN da 1." edição: 972-44-1095-1 e Sociologia
EDIÇÕES 70, Lda.
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Telefs.: 213 190240- Fax: 2 13190249
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Prefácio

Famoso como sociólogo, Émile Durkheim é ao mesmo


tempo um dos «clássicos» da pedagogia francesa. Marcou-
-a, enquanto viveu, através do ensino; depois agiu sobre ela
através dos seus livros: Education et sociologie, L'éducation
morale e finalmente L' évolution pédagogique en France, que
foram publicados após a sua morte graças aos cuidados do
seu discípulo Paul Fauconnet. É pois natural e necessário
que os educadores de hoje possam reportar-se facilmente aos
textos mais importantes de Durkheim, e devemos regozijar-
-nos pela iniciativa da Presses Universitaires de France de
reeditar, quarenta anos após a sua publicação em 1922,
Education et sociologie, há muito esgotado nas livrarias .
Este pequeno mas precioso volume, constituído por qua-
tro estudos datados dos primeiros anos do nosso século, ofe-
rece ao leitor a vantagem de ser breve e de fácil abordagem.
Mas possui sobretudo o grande mérito de expor as ideias
mestras de Durkheim. Beneficia,finalmente, de uma longa e
excelente introdução de Fauconnet. Se não cheguei a cónhe-
cer Durkheim,falecido em 1917,fui aluno do seu discípulo,
a quem pretendo prestar homenagem. Também ele sociólogo,
e encarregue de um curso de Pedagogia na Sorbonne após
a Primeira Guerra Mundial, Paul Fauconnet abordava os

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PREFÁCIO

problemas da educação com uma simpatia penetrante e sociedade «cria no homem um novo ser». Tantas afirmações
lúcida. Eu admirava a agilidade e a fineza do seu espírito. retumbantes do sociólogo, constantemente repetidas. Discu-
Era uma das inteligências mais compreensivas que já tidas, também. Porque Durkheim se opunha, através delas,
conheci. Morreu prematuramente. Aqueles que seguiram os às teorias tradicionais. Chocava uma larga fatia da opinião
seus ensinamentos devem-lhe a descoberta da obra pedagó- pública entre os seus contemporâneos, mas ao mesmo tempo
gica do seu mestre, e, através dela, a da reflexão sociope- abria novas vias para a reflexão e para a investigação edu-
dagógica. cacionais.
É verdade que podemos hoje não partilhar todas as suas
* ideias, e por exemplo as suas reticências face à psicologia,
herdadas de Auguste Comte e que encontramos, ainda acres-
Como todos os clássicos, Durkheim é antes de mais, em cidas, em Alain; ou a sua maneira de definir a pedagogia
larga medida, um representante do seu tempo. A sua doutrina como «uma teoria prática» ,fórmula que continua a ser muito
testemunha a época em que viveu, a da/// República, da lai- enigmática apesar das explicações do autor; ou ainda o seu
cização do ensino público, dos progressos da grande indús- injusto desdém quanto à literatura utópica em pedagogia.
tria e do desenvolvimento das ciências humanas. De modo Mas também não poderemos esquecer, ao lê-lo, quantas
que poderemos aplicar às suas concepções o que ele próprio mudanças se produziram desde que estes textos foram redi-
dizia dos trabalhos dos pedagogos: não são modelos a imi- gidos. Por um lado, os acontecimentos esmagadores como as
tar, mas antes documentos sobre o espírito do tempo. A sua duas guerras mundiais, por outro, uma evolução acelerada
obra definia perfeitamente um momento importante na his- da economia industrial sob o efeito das invenções técnicas de
tória do pensamento pedagógico. E, sem dúvida, o sociólogo todo o género que transformaram profundamer;te as condi-
historiador que foi Durkheim teria gostado deste elogio, ele ções da nossa existência. As ciências humanas, que Durkheim
que não cessou de sublinhar a evolução, no decurso dos julgava enquanto ainda estavam apenas a nascer, fizeram
séculos, das concepções e das instituições pedagógicas, sob indiscutíveis progressos. O conflito entre a psicologia e a
o efeito de causas que eram antes de mais sociais. Esta rela- sociologia em que participava está hoje ultrapassado. A psi-
tividade que o ponto de vista histórico introduz na reflexão cologia não é mais, simplesmente, como ele acreditava, «a
'•
parece-me ser um dos dois princípios essenciais da doutrina ciência do indivíduo»; reconhecemos-lhe, pelo menos, uma
pedagógica de Durkheim. «dimensão social». A sociologia, por seu lado, desligou-se de
O outro é, já o sabemos, a importância que atribui às certas teorias durkheimianas, como a «consciência colectiva»
realidades e às necessidades sociais. Reagiu vigorosamente e as «representações colectivas», por exemplo; a nossa época
contra a concepção individual da educação que descobria vê de modo diferente dele as relações da natureza e da cul-
nos seus antecessores, Kant e Herbart, Stuart Mill e Spen- tura. A pedagogia, enquanto investigação científica, tomou
cer. Considerava, pelo contrário, a educação como «Coisa uma direcção diferente da que era encarada por Durkheim:
eminentemente social». Definia-a como «uma socialização abandonou o estudo dos processos históricos, trocando-os
da jovem geração pela geração adulta». A escola é, para ele, pela dinâmica de grupo e pela medida do rendimento esco-
«um microcosmos social». Não hesita em escrever que a lar com a ajuda dos métodos experimentais. O próprio vaca-

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PREFÁCIO

bulário se modificou, ao mesmo tempo que a óptica dos inves- hoje soluções verdadeiramente satisfatórias? Acontece o
tigadores. Finalmente, o próprio clima intelectual já não é o mesmo quando analisa «a crise» do nosso ensino secundá-
mesmo: um leitor moderno, habituado à inquietude, ao jorro rio, sublinha a necessidade e os perigos da especialização
de ideias e ao resumo, arrisca-se a ficar surpreendido perante dos estudos, delineia um programa de formação de educa-
um pensamento que expõe, avança lentamente, metodica- dores. Diversos assuntos entre muitos outros que são estuda-
mente, com uma espécie de segurança tranquila, mas que lhe dos neste Education et Sociologie e que mantêm uma inces-
pode parecer um pouco formal. sante actualidade.
É o que acontece a todas as obras clássicas: o tempo, ape-
sar de tudo, cava-lhes algumas rugas. Não resta mais do que *
o contributo, ao mesmo tempo histórico e sociológico, de Dur-
kheim, o qual representa qualquer coisa de muito importante Relendo hoje este livro, apercebemo-nos que certas con-
em pedagogia, uma aquisição tão importante talvez como a cepções de Durkheim que podiam chocar aquando da sua
da psicanálise de Freud. É verdade que a época actual tomou publicação - que efectivamente me chocaram na minha
cada vez mais consciência da importância dos fenómenos de juventude -perderam o seu poder de choque. Tornaram-se-
socialização em todos os domínios da vida, mesmo nos mais nos familiares. O carácter cortante, por vezes polémico, das
individuais; o lugar do «colectivo» nos regimes marxistas é teses que defendia, atenuou-se aos nossos olhos. Tendo
aquilo que o ilustra com mais evidência. É igualmente um agora o distanciamento necessário para melhor apreciar o
facto que temos hoje uma consciência mais aguda da rápida seu pensamento, somos sensíveis sobretudo a uma espécie de
evolução da nossa civilização, e que vivemos sob o signo da sabedoria, talvez um pouco severa, mas razoável e optimista,
mudança. E, quer se queira quer não, a educação que damos do autor. E gostamos de reflectir com Durkh?im sobre as
aos jovens deve ter em conta estes factos fundamentais. questões pedagógicas. Este clássico não é, ou pelo menos
Repondo as coisas numa outra perspectiva, o tempo acabou não é mais, um mestre imperioso a quem obedecemos. É um
em larga medida por dar razão a Durkheim. O que era uma amigo que consultamos porque tem sempre bons conselhos.
inovação doutrina[ incorporou-se em nós e faz parte, dora-
vante, do nosso património pedagógico. MAURICE DEBESSE
É, no fundo, o privilégio dos clássicos, conservar um inte-
resse sempre actual, pelos problemas que abordaram e que
não deixaram de nos preocupar. Quando Durkheim escreve:
«as transformações profundas que sentiram ou que estão a
sentir as sociedades contemporâneas necessitam de trans-
formações correspondentes na educação nacional», como é
que não sentiremos todos que nos diz respeito? E quando
acrescenta: «mas se temos consciência de que as mudanças
são necessárias, sabemos mal o que é que devemos fazer»,
quem ousará sustentar seriamente que foram encontradas até

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Introdução
A obra pedagógica de Durkheim

Durkheim ensinou Pedagogia toda a vida, ao mesmo


tempo que Sociologia. Na Faculdade de Letras de Bordéus,
entre 1887 e 1902, deu sempre Pedagogia em aulas semanais
de uma hora. Os seus alunos eram, sobretudo, professores do
ensino primário. Fez o mesmo na Sorbonne, na cadeira de
Ciência da Educação, onde em 1902 é assistente e ein 1906
sucede a Ferdinand Buisson. Até à sua morte, reservou à peda-
gogia um terço, e frequentemente dois terços, do seu ensino:
aulas públicas, conferências para os professores do ensino pri-
mário, aulas aos alunos da Escola Normal Superior. Esta obra
pedagógica está quase inteiramente inédita. Nenhum dos seus
alunos, sem dúvida, a conseguiu compreender na sua totali-
dade. Pretendemos apresentá-la aqui em resumo.

Durkheim não repartiu o seu tempo nem o seu pensa-


mento entre duas actividades distintas, ligadas uma à outra de
uma forma acidental. Aborda a educação pelo lado em que ela

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

constitui um facto social: a sua doutrina da educação é um ele- da nossa vida pessoal. É o que poderemos chamar o ser indi-
mento essencial da sua sociologia. «Sociólogo que sou», diz vidual. O outro é um sistema de ideias , de sentimentos, de
ele, «é principalmente enquanto sociólogo que vos falarei de hábitos que exprimem em nós, não a nossa personalidade,
educação. Aliás, em vez de, ao proceder assim, corrermos o mas o grupo ou grupos diferentes de que fazemos parte; são
risco de ver e mostrar as coisas por um prisma que as deforma, as crenças religiosas, as crenças e as práticas morais, as tra-
estou convicto, pelo contrário, de que não há método mais dições nacionais ou profissionais , as opiniões colectivas de
apropriado para colocar em evidência a sua verdadeira natu- qualquer gênero. O seu conjunto forma o ser social. Consti-
reza». A educação é uma coisa eminentemente social. tuir este ser em cada um de nós, tal é o fim da educação.»
Prova-o a observação. Antes de mais, em cada sociedade, 1 Sem a civilização, o homem não seria mais do que um ani-

existem tantas educações especiais quantos os diferentes mal. Foi através da cooperação e da tradição sociais que o
meios sociais. 1E mesmo nas sociedades igualitárias como as homem se fez homem. Moralidades, linguagens, religiões,
nossas, que tendem a eliminar as diferenças injustas, a edu- ciências são obras colectivas, coisas sociais. Ora, é através da
cação varia e deve necessariamente variar, segundo as pro- moralidade que o homem forma em si a vontade, que ultra-
fissões. Sem dúvida, todas estas educações especiais se fixam passa o desejo; é a linguagem que o eleva acima da pura sen-
sobre uma base comum. Mas esta educação comum varia de sação; é nas religiões , primeiro, depois nas ciências, que se
uma sociedade para outra. Cada sociedade possui um deter- elaboram as noções cardeais de que é feita a inteligência
minado ideal de homem. É este ideal «que é o pólo da edu- humana propriamente ditã:" «Este ser social não aparece com-
cação». Para cada sociedade, a educação é «O meio pelo qual pleto na constituição primitiva do homem ... Foi a própria
prepara no coração das crianças as condições essenciais para sociedade, à medida que se formou e consolidou, que tirou
a sua própria existência». Assim, «cada tipo de povo tem a do seu próprio seio as grandes forças morais .. . A criança, ao
sua educação que lhe é própria e que pode servir para a defi- entrar na vida, não traz consigo mais do que a sua natureza
nir da mesma forma que a sua organização moral, política e de indivíduo. A sociedade encontra-se, pois, por assim dizer, a
religiosa». A observação dos factos conduz pois à seguinte cada nova geração, na presença de uma tábua quase rasa sobre
definição: «A educação é a acção exercida pelas gerações a qual é necessário começar a construir de novo. É necessá-
adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida rio que , pelas vias mais rápidas, ao ser egoísta e a-social que
social. Tem por objecto suscitar e desenvolver na criança um acaba de nascer, ela junte um outro, capaz de levar uma vida
certo número de estados físicos, intelectuais e morais que lhe social e moral. 'Eis a obra da educação.» A hereditariedade
exigem a sociedade política no seu conjunto e o meio ao qual transmite os mecanismos instintivos que asseguram a vida
se destina particularmente.» Em resumo, «a educação é uma orgânica e, entre os animais que vivem em sociedades, uma
socialização ... da jovem geração». vida social muito simples. Mas não é suficiente para trans-
Mas por que é que é necessariamente assim? É que «em mitir as atitudes que supõe a vida social do homem, atitudes
cada um de nós, pode dizer-se, existem dois seres que, ape- muito complexas para poderem «materializar-se sob a forma
sar de apenas serem separáveis por abstracção, não deixam de predisposições orgânicas». A transmissão dos atributos
por isso de ser distintos. Um é feito de todos os estados men- específicos que distinguem o homem faz-se por uma via que
tais que apenas têm a ver connosco e com os acontecimentos é social, como eles são sociais: é a educação.

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

Para um espírito habituado a olhar as coisas por este geralmente que o seu carácter abstracto falseou, em larga
prisma, esta concepção sociológica da natureza e do papel da medida, a especulação política do século XVIII, por exemplo:
educação impõe-se com a força da evidência. Durkheim individualista em excesso, muito desligada da história, legisla
chama-lhe: um axioma fundamental. Digamos mais exacta- frequentemente para um homem convencional, independente
mente: uma verdade de experiência. Vemos claramente, de todo o meio social definido. Os progressos realizados, no
quando pensamos como historiadores, que a educação em século XIX, pelas ciências políticas, sob a influência da his-
Esparta é a civilização lacedemónia preparando os Esparta- tória e das filosofias inspiradas na história, progresso segundo
nos para a cidade lacedemónia; que a educação ateniense, no o qual se orientam, no fim do século, todas as ciências morais,
tempo de Péricles, é a civilização ateniense preparando deve ser realizado, por sua vez, pela filosofia da educação.
homens conformes ao tipo ideal de homem, tal como é con- A educação é uma coisa social, isto é, coloca em contacto
cebido por Atenas nesta época, para a cidade ateniense e, ao a criança com uma sociedade determinada, e não com a socie-
mesmo tempo, para a humanidade, tal como Atenas a repre- dade in genere. Se esta proposição é verdadeira, não requer
senta nas suas relações com ela. Basta-nos antecipar o futuro apenas a reflexão especulativa sobre a educação, deve fazer
para compreender como os historiadores interpretarão a edu- sentir a sua influência sobre a própria actividade educativa.
cação francesa do século xx: mesmo nas suas tentativas mais De facto, esta influência é incontestável; em direito, é fre-
audaciosamente idealistas e humanitárias, a educação é um quentemente contestada. Examinemos algumas das resistên-
produto da civilização francesa; consiste em transmiti-la; em cias que a proposição de Durkheim levanta, quando é enun-
resumo, procura preparar homens de acordo com o tipo ideal ciada.
de homem que implica esta civilização, preparar homens para Começamos por nos aperceber do protesto que podemos
a França, e também para a humanidade, tal como a França a chamar universitário ou humanista. A educação censura à
representa nas suas relações com ela . . sociologia encorajar um nacionalismo limitado, e mesmo de
No entanto, esta verdade evidente foi geralmente mal imolar os interesses da humanidade aos do Estado, ou, pior
conhecida, em especial nos últimos séculos. Filólogos e peda- ainda, aos interesses de um regime político. Durante a guerra,
gogos estão .de acordo em ver, na educação, uma coisa emi- frequentemente , opôs-se a educação germânica à educação
nentemente individual. «Para Kant», escreve Durkheim, latina, aquela puramente nacional e totalmente em benefício
«para Kant como para Mill, para Herbart como para Spencer, do Estado, esta liberal e humana. Sem dúvida, ter-se-á dito,
a educação teria antes de mais por objectivo realizar, em cada a educação cria a criança para a Pátria, mas também para a
indivíduo, mas elevando-os ao máximo da perfeição, os atri- Humanidade. Em suma, de diversas formas, estabeleceu-se
butos constitutivos da espécie humana em geral» . Mas este um antagonismo entre estes termos: educação social, educa-
acordo não é uma presunção de verdade. Porque sabemos que ção humana, sociedade e humanidade. Ora, o pensamento de
a filosofia clássica se esqueceu quase sempre de considerar o Durkheim aguenta bem objecções deste género. Ele nhnca
homem real de um tempo e de um lugar, o único observável, teve a intenção, enquanto educador, de fazer prevalecer os
para especular sobre uma natureza humana universal, produto fins nacionais sobre os fins humanos. Dizer que a educação
arbitrário de uma abstracção feita, sem método, sobre um é uma coisa social não é formular um programa de educa-
número muito restrito de espécimes humanos. Admite-se hoje ção; é verificar um facto. Durkheim tem este facto como ver-

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r~.fl\lEf;.:~rnt~,tJE fEDf.J-t.,~L !){) PAfV
HH:\UOTf.CA CENTRAL
EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

dadeiro, por toda a parte, qualquer que seja a tendência que ção do indivíduo aparecem como o traço dominante do pro-
prevaleça, aqui ou noutro lugar. O cosmopolitismo não é grama da civilização, a exaltação da pessoa humana, como
menos social que o nacionalismo. Há civilizações que impe- seu termo actual. E esta filosofia da história conduz a esta
lem o educador a colocar a Pátria acima de tudo, outras que regra moral: distingue-te, sê uma pessoa. Como é que, então,
o impelem a subordinar os fins nacionais aos fins humanos, uma doutrina como esta verá, na educação, não sei que pro-
ou melhor, a harmonizá-los. O ideal universalista está ligado cesso de despersonalização? Se actualmente o objectivo da
a uma civilização sintética que tende a combinar todas as educação é fazer uma pessoa, e se educar é socializar, con-
outras. Por outro lado, no mundo contemporâneo, cada nação cluamos pois que, segundo Durkheim, é possível individua-
tem o seu cosmopolitismo, o seu humanismo próprio, em que lizar socializando. Tal é o seu pensamento. Pode discutir-se
se reconhece o seu génio. Qual é, de facto, para nós, Fran- o modo como ele concebe a educação da individualidade.
ceses do século xx, o valor relativo dos deveres perante a Mas a sua definição de educação é de um pensador que em
Humanidade e dos deveres perante a Pátria; como podem momento algum menospreza ou subestima o papel e o valor
eles entrar em conflito; como podemos conciliá-los? Nobres do indivíduo. E é necessário indicar aos sociólogos que é na
e difíceis questões, que o sociólogo não resolve em proveito sua análise da educação que aperceberão melhor a essência
do nacionalismo, ao definir, como o faz, a educação. Quando do pensamento de Durkheim, acerca das relações da socie-
abordar estes problemas , terá as mãos livres. Reconhecer o dade e do indivíduo e do papel dos indivíduos de escol no
carácter social que pertence realmente à educação nada progresso social.
decide quanto à forma como analisaremos as forças morais Por fim, em nome do ideal, sucede que se resiste ao rea-
que solicitam o educador em direcções diversas ou opostas. lismo de Durkheim. É acusado de ter humilhado a razão e
A mesma resposta é válida contra as objecções indivi- desencorajado o esforço, como se se fizesse apologista sis-
dualistas. Durkheim define a educação como uma socializa- temático do que é, ficando indiferente ao que deve ser. Para
ção da criança. Mas então, pensam alguns, qual será o fut~r.o compreender como, pelo contrário, este realismo sociológico
do valor da pessoa humana, da iniciativa, da responsablh- lhe parece apto a dirigir a acção, vejamos que ideia fez da
dade, do aperfeiçoamento próprio do indivíduo. Estamos tão pedagogia.
acostumados a opor a sociedade ao indivíduo, que toda a dou-
trina que faz um uso frequente da palavra sociedade nos
parece sacrificar o indivíduo. Também aqui nos equivocamos. 11
Se houve um homem que foi realmente um indivíduo, uma
pessoa, em tudo o que o termo implica de originalidade cria- Todo o ensinamento de Durkheim responde a uma neces-
dora e de resistência aos arrebatamentos colectivos , foi Durk- sidade profunda do seu espírito, que é a exigência essencial
heim. E a sua doutrina moral corresponde tão bem ao seu pró- do próprio espírito científico. Durkheim sente uma verdadeira
prio carácter que não enunciaríamos qualquer paradoxo s.e repulsa pelas construções arbitrárias, pelos programas de
déssemos a esta doutrina o nome de individualismo. A sua pn- acção que traduzem apenas as tendências do seu autor. Tem
meira obra, La division du travail social, propõe uma filoso- necessidade de reflectir sobre um dado, sobre uma realidade
fia da história, onde a génese, a diferenciação, a emancipa- observável, sobre aquilo a que chama uma coisa. Considerar

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UNl'VEHS1DADf. FEDERAl DO PAPJ.
Blf\!JOTECr, CENlllAl
EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

os factos sociais como coisas, tal é a primeira regra do seu o factor educação apenas por uma das suas duas facetas. Por-
método. Quando tomava a palavra acerca dos assuntos da que a psicologia é evidentemente incapaz, quando se trata de
moral, víamo-lo apresentar factos, coisas; e a sua própria afirmar, não já que é a criança que recebe a educação, a sua
mímica assinalava que, ainda que se tratasse de coisas espiri- maneira própria de a assimilar e de reagir a ela, mas a pró-
tuais, não materiais, não se limitava a analisar conceitos, mas pria natureza da civilização que a educação transmite e a dos
antes a interpretar, mostrar, manear as realidades. A educação utensílios que emprega para a transmitir. A França do século
é uma coisa, ou, por outras palavras, um facto. Com efeito, xx tem quatro graus de ensino: primário, secundário, supe-
em todas as sociedades há uma educação. De acordo com as rior e técHico, cujas relações não são exactamente as mesmas
tradições, os hábitos, as regras explícitas ou implícitas, num que na Alemanha, Inglaterra ou Estados Unidos. O seu
determinado enquadramento de instituições, com mecanismos ensino secundário versa o francês, as línguas clássicas, as
próprios, sob a influência de ideias e de sentimentos colecti- línguas vivas, a história, as ciências; por volta de 1600 dedi-
vos, em França, no século XX, os educadores educam, as cava-se exclusivamente ao latim e ao grego; na Idade Média,
crianças são educadas. Tudo isto pode ser descrito, analisado, à dialéctica. O nosso ensino dedica uma parte ao método
explicado. A noção de uma ciência da educação é pois uma intuitivo e experimental; o dos Estados Unidos uma parte
ideia perfeitamente clara. Tem por único papel conhecer, com- muito maior; a educação medieval e humanista era exclusi-
preender o que é. Não se confunde nem com a actividade efec- vamente livresca. Ora, é claro que as instituições escolares,
tiva do educador, nem mesmo com a pedagogia, que visa diri- as disciplinas, os métodos, são factos sociais. O próprio livro
gir esta actividade. A educação é o seu objectivo: entenda-se, é um facto social; o culto do livro, o declínio deste culto,
não que ela tende aos mesmos fins da educação, mas pelo dependem de causas sociais. Não vemos como a psicologia
contrário, que ela a considera, pois que a estuda. as poderá conhecer. A educação física, moral, intelectual,
Durkheim não contesta de modo algum que esta ciência dada por uma sociedade, num momento da sua história, é
seja, em larga medida, de ordem psicológica. É que só a psi- manifestamente da competência da sociologia. Para estudar
cologia, com o apoio da biologia, desenvolvida pela patolo- cientificamente a educação, como um facto dado à observa-
gia, permite compreender porque é que a criança humana ção, a sociologia deve colaborar com a psicologia. Sob um
necessita de educação, em que é que ela difere do adulto, dos seus dois aspectos, a ciência da educação é uma ciência
como se formam e evoluem os seus sentidos, a sua memória, sociológica. É por este prisma que Durkheim a aborda.
as suas faculdades de associação, de atenção, a sua imagina- Ao fazê-lo, trilha uma nova via, impelido pela lógica
ção, o seu pensamento abstracto, a sua linguagem, os seus interna do seu próprio pensamento, precursor, e não imita-
sentimentos, o seu carácter, a sua vontade. A psicologia da dor, de doutrinas hoje muito em voga, que a sua ultrapassa
criança, ligada à do homem adulto, completada pela psicolo- em clareza e fecundidade. A Alemanha criou o termo Sozial-
gia própria do educador, eis uma das vias pelas quais a ciên- piidagogik, os Estados Unidos o termo Educational Socio-
cia pode abordar o estudo da educação. A ideia é universal- logy, que marca seguramente a mesma tendência. Mas, sob
mente aceite. estas palavras, misturam-se ainda frequentemente coisas bem
Mas a psicologia é apenas uma das duas vias de acesso distintas: por um lado, por exemplo, uma orientação mais ou
possíveis. Quem a siga exclusivamente arrisca-se a abordar menos incerta no sentido do estudo sociológico da educação,

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

tal como Durkheim a concebe, e, por outro, um sistema de pouco disposta a deslizar para formas técnicas de métodos
educação que se preocupa mais particularmente em preparar concertados; se dá grande crédito às faculdades de intuição,
o homem para a vida social, em formar o cidadão. A ideia de tacto, da iniciativa dos mestres; se respeita a evolução livre
americana da Educational Sociology aplica-se confusamente da criança; se ela própria resulta, na maior parte, não da acção
ao estudo sociológico da educação e, ao mesmo tempo, à sistemática dos mestres, mas da acção difusa e não voluntá-
introdução da sociologia nas aulas, como matéria de ensino. ria do meio, temos aí um facto, que tem as suas causas, e que
A ciência da educação, definida por Durkheim, é sociológica, responde, em alto grau, às condições de existência da socie-
numa acepção mais clara do termo. dade francesa. A pedagogia, inspirada pela sociologia, não
Quanto ao que ele entende por Pedagogia, não é nem a arrisca pois a fazer-se apologista de um sistema aventuroso,
actividade educativa em si mesma, nem a ciência especula- ou de aconselhar uma mecanização da criança, que iria con-
tiva da educação. É a reacção sistemática da segunda sobre trariar o seu desenvolvimento espontâneo. Assim, caem por
a primeira, a obra da reflexão que procura, nos resultados da terra as objecções de pensadores eminentes, que se obstinam
psicologia e da sociologia, os princípios para a continuidade a opor Educação e Pedagogia, como se reflectir sobre a acção
ou para a reforma da educação. Concebida deste modo, a que se exerce fosse necessariamente condenar-se a alterar
pedagogia pode ser idealista, sem cair na utopia. essa acção.
·Ainda que grande número de ilustres pedagogos tenham Isto não quer dizer que a reflexão científica seja pratica-
cedido ao espírito do sistema, atribuindo à educação um fim mente estéril, e que o realismo seja o feito do espírito con-
inacessível ou escolhido arbitrariamente, propondo procedi- servador, que aceita tudo preguiçosamente. Saber, para prever
mentos artificiais, Durkheim não só não o faz como nos alerta e providenciar, dizia Auguste Comte da ciência positiva. De
melhor do que qualquer outro contra o seu exemplo. A socio- facto , quanto melhor conhecemos a natureza das coisas, maio-
logia combate aqui o inimigo que costuma encontrar pela res possibilidades temos de as utilizar eficazmente. O educa-
frente: em todos os domínios, na moral, na política, até na dor é obrigado, por exemplo, a gerir a atenção da criança.
economia política, o estudo científico das instituições foi pre- Ninguém negará que ele a gerirá melhor, se conhecer mais
cedido por uma filosofia essencialmente artificialista, que exactamente a sua natureza. A psicologia comporta, pois, apli-
pretendia formular receitas para assegurar aos indivíduos e cações práticas, de que a pedagogia formula as regras para a
aos povos o máximo de felicidade, sem conhecer suficiente- educação. Da mesma forma, a ciência sociológica da educa-
mente, de antemão, as suas condições de existência. Nada é ção pode comportar aplicações práticas. Em que consiste a lai-
mais contrário aos hábitos intelectuais do sociólogo do que cização da moralidade? Quais são as suas causas? De onde
dizer de imediato: eis como se deve educar a criança, fazendo provêm as resistências que provoca? Que dificuldades a edu-
tábua rasa da educação que realmente se lhe dá. Enquadra- cação moral tem de vencer quando se dissocia da educação
mentos escolares, programas de ensino, métodos, tradições, religiosa? Problema manifestamente social, problema actual
hábitos, tendências, ideias, ideais dos mestres, são estes os para as sociedades contemporâneas: como negar que o seu
factos com que a pedagogia procura descobrir porque é que estudo desinteressado possa conduzir à formulação de regras
são o que são, em vez de começar por pretender modificá- pedagógicas, nas quais o professor primário francês do século
-los. Se a educação francesa é em larga medida tradicional, xx terá vantagem em se inspirar, na sua prática educativa?

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

As crises e os conflitos sociais têm causas: isso não quer dizer mente: meio social, instituições, hábitos, tradições, tendências
que seja proibido procurar as suas saídas e os remédios para colectivas. A pedagogia, enquanto dependente da sociologia,
eles. As instituições não são nem absolutamente flexíveis, é a preparação racional destas escolhas.
nem absolutamente refractárias a qualquer modificação deli- Durkheim atribuía a maior importância, não apenas como
berada. Adaptá-las prudentemente ao seu papel respectivo, erudito, mas como cidadão, a esta concepção racionalista da
adaptá-las umas às outras e cada uma delas à civilização onde acção. Hostil à agitação reformista, que perturba sem melho-
se incorporam: eis um bom campo de acção para uma polí- rar, sobretudo às reformas negativas, que destroem sem subs-
tica racional, e, se se trata de instituições de educação, para tituir, tinha todavia o sentido e o gosto da acção. Mas, para
uma pedagogia racional nem conservadora nem revolucioná- que a acção fosse fecunda, queria que ela incidisse sobre o
ria, eficaz nos limites em que a acção deliberada do homem que é possível, limitado, definido, determinado nas condições
pode ser eficaz. sociais em que se exerce . O seu ensino pedagógico, dirigido
Assim se podem conciliar o realismo e o idealismo. Os ideais aos educadores, teve sempre um carácter imediatamente prá-
são realidades . Com efeito, a França contemporânea, por tico. Absorvido pelos seus outros trabalhos, não teve tempo
exemplo, tem um ideal intelectual; concebe um tipo ideal de de se aplicar a investigações puramente especulativas sobre
inteligência que propõe à criança. Mas este ideal é complexo a educação. Nas suas aulas, os temas eram abordados segundo
e confuso. Os publicistas, que pretendem exprimi-lo, apenas o método científico definido no momento. Mas a escolha dos
conseguem mostrar, geralmente, uma das facetas, um dos ele- assuntos era ditada pelas dificuldades práticas que o educa-
mentos: elementos de origem, de idade, e, por assim dizer, de dor encontrava na França contemporânea, e era a conclusões
orientação diversas, solidários uns com certas tendências pedagógicas que o professor chegava.
sociais, outros com tendências diferentes ou mesmo opostas.
Não é impossível tratar este ideal complexo como uma coisa,
quer dizer, analisar os seus componentes, determinar a sua 111
génese, as suas causas e as necessidades a que corresponde.
Mas este estudo, antes de mais completamente desinteres- Durkheim deixou o manuscrito, completamente redigido,
sado, é a melhor preparação para a escolha que uma vontade de um curso em dezoito lições sobre a Éducation morale à
razoável se pode propor fazer entre os diversos programas de l'école primaire. Vejamos a sua ordenação geral. A primeira
ensino concebíveis, entre as regras a seguir para a aplicação lição é uma introdução sobre a moral laica. Durkheim defi-
do programa escolhido. Podemos repetir a mesma coisa, niu aí a tarefa moral que, na França contemporânea, cabe ao
mutatis mutandis, acerca da educação moral, e das suas ques- professor primário: trata-se, para ele, de dar uma educação
tões de pormenor, bem como dos problemas mais gerais. Em moral laica, racionalista. Esta laicização da moralidade impõe-
suma, a opinião pública, o legislador, a administração, os pais, -se por todo o desenvolvimento histórico. Mas é difícil.
os professores têm, constantemente, de fazer escolhas, quer A religião e a moralidade estiveram tão intimamente unidas
se trate de reformar profundamente as instituições quer de na história da civilização que a sua necessária dissociação
fazê-las funcionar no dia a dia. Ora, eles trabalham com uma não poderá ser uma operação simples. Se nos contentarmos
matéria resistente, que não se deixa manipular arbitraria- em expurgar a moralidade de todos os conteúdos religiosos,

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

mutilamo-na. Porque a religião exprime, à sua maneira, numa observação inaplicável. Eis o prisma pelo qual Durkheim
linguagem simbólica, coisas verdadeiras. Estas verdades não aborda este assunto. A educação moral tem, sem dúvida, o
se devem deixar perder, com os símbolos que se eliminam; é papel de iniciar a criança nos diferentes deveres, de suscitar
necessário recuperá-las, projectando-as no plano do pensa- nela as virtudes particulares, tomadas uma a uma. Mas tem
mento laico. Os sistemas racionalistas, sobretudo os istemas também o papel de desenvolver nela a aptidão geral para a
não metafísicos, têm geralmente uma ideia muito simplifi- moralidade, as disposições fundamentais que estão na raiz da
cada da moralidade. Tornando-se sociológica, a análise moral vida moral, constituir nela o agente moral, pronto para as ini-
pode dar um fundamento racional, nem religioso nem meta- ciativas que são condição do progresso. Quais são, de facto,
físico, a uma moralidade também complexa, mais rica na sociedade francesa contemporânea, os elementos do tem-
mesmo, sob certos aspectos, que a moralidade religiosa tra- peramento moral cuja realização é o fim para o qual deve ten-
dicional, e recuar até às nascentes de onde brotam as forças der a educação moral em geral? Estes elementos, podemos
morais mais enérgicas. descrevê-los, compreender a sua natureza e o seu papel. E é,
As lições que se seguem agrupam-se em duas partes bem em suma, esta descrição que forma o conteúdo das morais
distintas, e este plano ilustra o que dissemos da contribuição ditas teóricas. Cada filósofo define, à sua maneira, estes ele-
que, a sociologia, por um lado, a psicologia, por outro, dão mentos fundamentais . Mas constrói-os, mais do que os define.
à pedagogia. A primeira parte estuda a moralidade em si Podemos refazer o mesmo trabalho, tomando por objecto, não
mesma, quer dizer, a civilização moral que a educação trans- o nosso ideal pessoal, mas o ideal que é, de facto, o da nossa
mite à criança: é uma análise sociológica. A segunda estuda civilização. Assim, o estudo da educação moral permite-nos
a natureza da criança que deverá assimilar esta moralidade: discernir, nos factos, as realidades a que correspondem os
aqui a psicologia está em primeiro plano. conceitos muito abstractos empregues pelos filósofos. Coloca
As oito lições que Durkheim consagrou à análise da a ciência dos costumes em posição de observar o que é a
moralidade são o que deixou de mais completo s bre este moralidade, nos seus caracteres mais gerais, porque, na edu-
assunto, pois que a morte o interrompeu no momento em que cação, apercebemos a moralidade no momento em que ela se
redigia, para publicação, os prolegómenos da sua Morale. transmite, no momento em que, por conseguinte, se distingue
Devemos cotejar as páginas que apareceram no Bulletin de mais nitidamente das consciências individuais, na complexi-
la Société française de Philosophie sobre «La détermination dade em que está habitualmente envolvida.
du fait moral». Não trata aí os diversos deveres , mas antes Durkheim resume a três estes elementos fundamentais da
os caracteres gerais da moralidade. É o equivalente, nele, ao nossa moralidade. São o espírito de disciplina, o espírito de •f

que os filósofos chamam a Moral teórica. Mas o método que abnegação e o espírito de autonomia. Indiquemos, a título de
aplica renova este assunto. exemplo, que plano segue Durkheim na análise do primeiro
Concebemos facilmente que a sociologia possa estudar, elemento. O espírito de disciplina é, ao mesmo tempo, o sen-
de facto, a família, o Estado, a propriedade, o contrato. Mas, tido e o gosto da regularidade, o sentido e o gosto da limita-
quando se trata do Bem e do Dever, parece que temos neces- ção dos desejos, do respeito da regra, que impõe ao indiví-
sidade de conceitos puros, não de instituições , e que um duo a inibição dos impulsos e o esforço. Porque é que a vida
·método de análise abstracta se impõe aqui, à falta de uma social exige regularidade, limitação e esforço? E como é que

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGfA INTRODUÇÃO

o indivíduo é levado a aceitar, por fim, estas exigências peno- nas podem ser parcialmente fundidas numa síntese harmo-
sas como condições da sua própria felicidade? Responder a niosa, riqueza tal que nenhum indivíduo, por grande que seja,
estas questões é dizer qual é a função da disciplina. Como é pode aspirar a ter em si, no mais alto grau de desenvolvi-
que a sociedade está apta a impor a disciplina e, nomeada- mento, todos estes elementos e, assim, a realizar integral-
mente, a despertar no indivíduo o sentimento do respeito mente, só nele mesmo, a moralidade inteira. Pessoalmente,
devido à autoridade como imperativo categórico, que surge Durkheim, como Kant havia sido, foi antes de mais um
como transcendente? Responder a esta questão é tratar da homem de vontade e de disciplina. Da moralidade, é o
natureza da disciplina e do seu fundamento racional. Final- aspecto kantiano que vê primeiro e mais nitidamente. Houve
mente, porque é que a regra pode e deve ser concebida como quem quisesse fazer da coacção a única acção que exercia,
independente de todo o simbolismo religioso e mesmo meta- segundo ele, a sociedade sobre o indivíduo. A sua verdadeira
físico? Em que é que esta laicização da disciplina modifica o doutrina é infinitamente mais compreensiva, e talvez não haja
próprio conteúdo da ideia de disciplina, o que ela exige e o filosofia moral que esteja ao mesmo nível. Demonstrou cla-
que ela permite? Aqui, ligamos a natureza e a função da dis- ramente, por exemplo, que as forças morais, que constrangem
ciplina, não às condições da civilização em geral, mas às con- e violentam mesmo a natureza animal do homem, exercem
dições particulares de existência da civilização em que vive- também, sobre o homem, uma atracção, uma sedução, e que
mos. E procuramos saber, nós,.Franceses, se o nosso espírito é a estes dois aspectos do facto moral que respondem as duas
de disciplina é realmente o que devia ser, se não está patolo- noções do dever e do bem. E demonstrou que, entre estes dois
gicamente enfraquecido, e como é que a educação, respei- pólos, se orientam duas actividades morais distintas, das quais
tando as suas características próprias, pode melhorar a nossa nem uma nem outra é estranha ao agente moral bem consti-
moralidade nacional. tuído, mas que, segundo prevalece um ou outro, distinguem
Uma análise simétrica aplica-se ao espírito de abnegação. os agentes morais em dois tipos diferentes, o homem senti-
Que é, para que serve, quer do ponto de vista da sociedade, mental, apaixonado, no qual domina a aptidão para se dar, e
quer do ponto de vista do indivíduo? Quais são os fins, aos o homem voluntarioso, mais frio e mais austero, no qual o
quais, nós, Franceses do século XX, nos devemos devotar? sentido da regra é dominante. O eudemonismo, o hedonismo
Qual a hierarquia destes fins, de onde provêm, como se têm eles próprios lugar na vida moral: é necessário, dizia
podem conciliar os seus antagonismos parciais? As mesmas Durkheim certa vez, que haja epicuristas. Assim, os dispara-
questões se colocam para o espírito de autonomia. A análise tes, mesmo os opostos, fundem-se na riqueza da civilização
deste último elemento é particularmente fecunda, porque se moral, riqueza que a análise abstracta dos filósofos se con-
trata aqui de um dos traços mais recentes da moralidade, do dena geralmente a empobrecer, porque ela quer, por exemplo,
traço mais característico da moralidade laica e racionalista deduzir a ideia do bem da do dever, conciliar os conceitos de
das nossas sociedades democráticas. obrigação e de autonomia, e reduzir assim ao jogo lógico de
Estas indicações sumárias são suficientes para marcar algumas ideias simples uma realidade muito complicada.
uma das principais superioridades do método seguido por As nove lições que formam a segunda parte do curso
Durkheim. Ele consegue mostrar toda a complexidade, toda abordam exactamente o problema pedagógico. Temos vindo
a riqueza da vida moral, riqueza feita de oposições que ape~ a enumerar e definir os elementos da moralidade que, do

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

nosso ponto de vista, se devem constituir na criança. Como dade inteira; como é que são formadas e transformadas; que
é que a natureza da criança se presta a recebê-la, que recur- acção exercem sobre o indivíduo e que papel é que ele aí
sos, que motivações, mas também que obstáculos encontra aí desempenha. Das aulas que deu diversas vezes sobre este
o educador? Os títulos das lições são suficientes para indicar Ensino da moral na escola primária, não temos mais do que
o percurso do seu pensamento: a disciplina e a psicologia da esboços de redacção ou planos de lições. Durkheim mostra aí
criança, para começar, a disciplina escolar, as penalizações aos professores primários como é possível traduzir, para os
e as recompensas escolares; depois o altruísmo na criança colocar ao alcance das inteligências infantis, os resultados
e a influência do meio escolar na formação do sentido social; daquilo a que chama «Psicologia do direito e dos costumes».
finalmente, a influência geral do ensino das ciências, das É a vulgarização da ciência dos costumes, à qual, aliás, con-
letras, da história, da própria moral, e também da cultura sagrou a maior parte das suas obras e das suas aulas.
estética, na formação do espírito de autonomia.
A autonomia é a atitude de uma vontade que aceita a
regra, porque a reconhece com um fundamento racional. IV
Supõe a aplicação, livre mas metódica, da inteligê~cia. no
exame das regras que a criança começa por receber, mtetra- A Educação intelectual na escola primária é objecto de
mente, da sociedade em que cresce, mas que, longe de as uma aula, completamente redigida, também ela, paralela à da
aceitar passivamente, deve, pouco a pouco, aprender a enco- educação moral e construída aproximadamente sobre o
rajar, a conciliar, a aperfeiçoar os seus elementos caducos, a mesmo plano. Durkheim estava menos satisfeito: sentia a difi-
reformá-los, para os adaptar às condições da existência, sem- culdade de focar o seu trabalho. É que o ideal intelectual da
pre dinâmicas, da sociedade de que se torna um memb:o nossa democracia está menos definido que o seu ideal moral,
activo. É, diz Durkheim, a ciência que confere a autonomta. o seu estudo científico está menos preparado, a matéria é mais
Apenas ela aprende a reconhecer o que está fundado na natu- recente.
reza das coisas, natureza física, mas também moral, o que é Também aqui, duas partes com diferentes orientações:
inelutável, o que é modificável, o que é normal, quais são pois uma observa o fim visado, a outra os meios empregues; a pri-
os limites de acção eficazes para melhorar a natureza, natu- meira pede à sociologia para definir o tipo intelectual que a
reza física, natureza moral. Todo o ensino tem, deste ponto nossa sociedade se esforça para realizar; a outra questiona à
de vista, um destino moral, o das ciências cosmológicas , mas lógica e à psicologia qual a quota-parte fornecida por cada
principalmente o ensino do próprio homem, pela história e disciplina, que motivações, que resistências apresenta o espí-
pela sociologia. E é assim que a educação moral completa rito da criança ao educador que trabalha com este método.
reclama, hoje, um ensino da moral: duas coisas que Durkheim Entre as lições puramente psicológicas, assinalemos apenas
distingue claramente, ainda que a segunda sirva para com- aquelas que tratam da atenção: testemunham o que Durkheim
pletar a primeira. Parece-lhe indispensável, mesmo na esc~la podia fazer quando se dedicava à psicologia.
primária, que o professor ensine à criança o que são as socte- Para marcar à educação intelectual primária um fim deter-
dades onde ela é chamada a viver: família , corporação, nação, minado, Durkheim estuda as origens do ensino primário e
comunidade de civilização que tende a incorporar a humani- investiga como é que ele tem, de facto, tomado consciência

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

da sua natureza e do seu papel. Desenvolveu-se posterior- mática ou a história, por exemplo, cooperam, também elas, e
mente ao ensino secundário e definiu-se, em certa medida, por ao mais alto grau, na formação do entendimento.
oposição a ele. É em dois dos seus principais iniciadores , Como tantos grandes pedagogos, Durkheim dedica-se
Comenius e Pestalozzi, que Durkheim procura o seu ideal em então a procurar aquilo a que chama, grosseiramente, a cul-
formação. Ambos se questionaram como é que um ensino tura formal : formar o espírito, e não enchê-lo; não é espe-
pode ser simultaneamente enciclopédico e elementar - dar cialmente pela utilidade que têm que os nossos conhecimen-
uma ideia do todo, formar um espírito justo e equilibrado, tos são valiosos. Nada menos utilitário que esta concepção da
quer dizer, capaz de apreender completamente o real, sem instrução. Mas o seu formalismo é original e opõe-se clara-
desconhecer nenhum dos seus elementos essenciais - mas mente ao de um Montaigne, ao dos humanistas. Com efeito,
também dirigir-se a todas as crianças sem excepção, das quais a transmissão, do professor ao aluno, de um saber positivo, a
grande parte se deve contentar com noções sumárias, fáceis assimilação pela criança de uma matéria, parece-lhe ser con-
de assimilar rapidamente. Através da interpretação crítica das dição de uma verdadeira formação intelectual. Percebemos a
tentativas de Comenius e de Pestalozzi, Durkheim elabora a razão: a análise sociológica do entendimento arrasta consigo
sua determinação do ideal a realizar. Como a moralidade, a consequências pedagógicas. A memória, a atenção, a facul-
intelectualidade requerida aos Franceses contemporâneos dade de associação são disposições congénitas na criança, que
exige a constituição, no espírito, de um certo número de apti- o exercício desenvolve, apenas no campo da experiência indi-
dões fundamentais. Durkheim chama-lhes categorias, vidual, qualquer que seja o objecto a que estas faculdades se
noções-mãe, centros de inteligibilidade, que são os quadros e apliquem. As ideias directrizes elaboradas pela nossa civili-
os utensílios do pensamento lógico. Entenda-se por catego- zação são, pelo contrário, ideias colectivas que é necessário
rias não apenas as formas mais abstractas do pensamento, a transmitir à criança, porque ela não saberá elaborá-las sozi-
noção de causa ou a de substância, mas as ideias, mais ricas nha. Não refazemos a ciência, pela nossa experiência própria,
. de conteúdo, que presidem à nossa interpretação do real, à porque ela é social e não individual; aprendêmo-la. Sem
nossa interpretação actual: a nossa ideia do mundo físico, a dúvida, ela não se transvasa de um espírito para o outro: é o
nossa ideia da vida, a nossa ideia do homem, por exemplo. próprio recipiente, quer dizer, a inteligência, que se trata de
Estas categorias, não nos parece que sejam inatas ao espírito modelar, pela e para a ciência. Assim, ainda que as ideias
humano. Têm uma história; foram-se construindo, pouco a directrizes sejam formas, não é possível transmiti-las vazias.
pouco, no decurso da evolução da civilização e, na nossa civi- Auguste Comte dizia já que não se pode estudar a lógica sem
lização, pelo desenvolvimento das ciências físicas e morais. a ciência, o método das ciências sem a sua doutrina, iniciar-
Um bom espírito é aquele no qual as ideias mestras, que -se no seu espírito sem assimilar alguns dos seus resultados.
regem o exercício do pensamento, estão em harmonia com as Durkheim, como ele, pensa que é necessário apreender as coi-
ciências fundamentais, tal como estão actualmente constituí- sas, adquirir saber, abstraindo mesmo do próprio valor mos
das: assim munido este espírito pode mover-se na verdade, conhecimentos, porque os conhecimentos estão necessaria-
tal como a concebemos. É pois necessário ensinar à criança mente implicados nas formas constitutivas da inteligência.
os elementos das ciências fundamentais , melhor dizendo, das Para nos apercebermos de tudo o que Durkheim retira des-
disciplinas fundamentais, para marcar claramente que a gra- tes princípios, seria necessário entrar nos detalhes da segunda
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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

parte do curso. Aí, estuda sucessivamente a didáctica de a partir do qual se apertará sucessivamente a trama. Em
alguns tipos de ensino fundamentais: a matemática e as suas seguida, fazer sentir que o ponto inicial da era é convencio-
categorias de número e de forma; a física e a noção de reali- nal, que há outras eras, outras histórias, para além da nossa,
dade; a geografia e a noção de meio planetário; a história e as que estas eras flutuam elas próprias numa duração à qual a
noções de duração e de desenvolvimento históricos. A enu- cronologia humana não se aplica, cujos primórdios nos esca-
meração é incompleta. Por outro lado, Durkheim tratou da pam, etc. Quantos, entre nós, se podem lembrar de ter rece-
educação lógica das línguas. Deu alguns exemplos. A cola- bido dos seus professores de história lições inspiradas em
boração dos especialistas seria, por seu turno, necessária para princípios semelhantes? Adquirimos, a longo prazo, as noções
seguir, com detalhe, todas as consequências didácticas dos de que se trata; não podemos dizer que, salvo alguma excep-
princípios colocados . ção, tenham sido metodicamente constituídas. Um dos resul-
Considere-se, por exemplo, a noção de duração histórica. tados essenciais do ensino histórico é pois quase obtido, de
A história é o desenvolvimento, no tempo, das sociedades facto, sem ser claramente apercebido nem desejado. Ora, a
humanas. Mas este tempo ultrapassa infinitamente as dura- brevidade do ensino primário exige que se vá directo ao
ções que o indivíduo conhece, de que tem experiência directa. objectivo, se este ensino quer obter a sua eficácia plena.
A história não pode ter sentido para um espírito que não pos- Podemos dizer que, até aos nossos dias, o ensino grama-
sua uma certa representação desta duração histórica; um bom tical e literário é o único que tem tido plena consciência do
espírito é, notoriamente, um espírito que a possui. Ora, a seu papel lógico: ensina para formar; os conhecimentos que
criança não pode construir sozinha esta representação, cujos transmite são voluntariamente utilizados para a constituição
elementos não lhe são fornecidos pela sensação, nem pela da inteligência. Em certa medida, o ensino matemático tem o
memória individual. É pois necessário ajudá-la a construí-la. mesmo papel: no entanto, aqui, a função educativa, criadora
Com efeito, é uma das funções que executa o ensino histó- das consciências, é frequentemente perdida de vista e os
rico. Mas que executa, podemos dizê-lo , sem expressamente conhecimentos apreciados em si mesmos . Vemos que a didác-
o querer. É notável que o professor raramente sinta a vacui- tica de Durkheim se aparenta, renovando-a, à de Herbart.
dade das datas e a necessidade de trabalhar sistematicamente Colocado no seu lugar na história das doutrinas pedagógicas,
para lhes dar um significado. Ensina-se às crianças: batalha parece resolver o conflito do formalismo e do seu contrário,
de Tolbiac, 496. Como é que a criança ligará esta data a um a oposição do saber e da cultura. Fornece o princípio único
sentido preciso, quando a representação de um passado, que permitirá resolver as dificuldades com que se debatem os
mesmo próximo, lhe é tão difícil? É necessário todo um tra- nossos ensinos primário e secundário, colocados entre as aspi-
balho, cujas etapas podem ser as seguintes: dar a ideia de um rações enciclopédicas e o justo sentimento dos perigos que
século, juntando, umas às outras , a duração de três ou quatro fazem nascer. Cada uma das disciplinas fundamentais implica
gerações; a da era cristã, explicando porque é que o nasci- uma filosofia latente, quer dizer, um sistema de noções car-
mento de Cristo foi escolhido como origem. Entre o ponto de deais, que resumem os caracteres mais gerais das coisas, tal
partida e a época actual, balizar a duração através de pontos como os concebemos, e que comandam a nossa interpretação.
de referência concretos, biografias de personagens ou acon- É esta filosofia, fruto do trabalho acumulado de gerações, que
tecimentos simbólicos. Constituir assim um primeiro esboço é necessário transmitir à criança, porque constitui o próprio

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

esqueleto da inteligência. Filosófico e elementar não são ter- tir metodicamente, sob a direcção de um mestre, acerca da
mos que se excluam. Pelo contrário: o ensino mais elemen- natureza e da função próprias da instituição que fazem viver.
tar deve ser o mais filosófico. Mas é da sua própria natureza E nesse dia a aula de Durkheim surgirá como o guia mais
que aquilo a que aqui chamamos filosofia não deve ser seguro para essa reflexão. O seu autor considerava insufi-
exposto de forma abstracta. Deve libertar-se do ensino mais cientes, em diversos pontos, as investigações que empreen-
familiar, sem nunca se formular. Mas, para se libertar assim, dera, a documentação sobre a qual se apoiara. Não esqueça-
é preciso que antes o inspire. mos, antes de julgar a obra, que não consagrou a este assunto
imenso mais do que um, dois anos de trabalho. Do mesmo
modo, este curso é um modelo incomparável do que pode dar
v a aplicação, às questões da educação, do método sociológico.
É o único exemplo acabado que Durkheim pôde deixar da aná-
A educação intelectual elementar diz respeito a dois tipos, lise histórica de um sistema de instituições escolares.
o ensino primário para a massa, o ensino secundário para a Para saber o que é o ensino secundário actual em França,
elite. É a educação da elite que levanta, na França contempo- Durkheim observa como é que é formado. Os quadros datam
rânea, os problemas mais embaraçosos. Após mais de um da Idade Média, que viu nascer as Universidades. Foi no seio
século, o nosso ensino secundário atravessa uma crise, cujo da Universidade, pela integração progressiva, nos colégios,
desenlace é ainda incerto. Podemos falar, sem exagero, da do ensino ministrado na Faculdade das Artes, que o ensino
crise social do ensino secundário. Qual é exactamente a sua secundário nasceu, diferenciando-se do ensino superior. Assim
natureza e qual é o seu papel? Que causas determinaram a se explicam as suas afinidades: um prepara o outro. O ensino
crise, em que é que consiste exactamente, como podemos pre- dialéctico é, na Idade Média, a propedêutica geral, porque a
ver que terminará? Foi a estas questões que Durkheim consa- dialéctica é então o método universal; ensino formal, cultura
grou uma das suas mais belas aulas, sobre A evolução e o geral ministrada com a ajuda de uma disciplina muito espe-
papel do ensino secundário em França, aula que proferiu cial, tem já as características que manterá, ao longo de toda a
diversas vezes e da qual deixou duas redacções terminadas. sua história, o ensino secundário. Mas, se os quadros estão
Empreendeu-a a pedido do reitor Liard, quando este quis orga- constituídos desde a Idade Média, a disciplina educativa
nizar, pela primeira vez, um ensino pedagógico para utiliza- mudou no século XVI: à lógica substituíram-se os humanistas
ção dos futuros professores do ensino secundário. Destinado greco-latinos. Originário do Renascimento, o humanismo, em
a todos os candidatos a exercer este grau de ensino, tanto na França, foi posto em prática principalmente pelos jesuítas.
área científica como literária, tem por fim, segundo o pensa- Eles imprimiram-lhe a sua marca pessoal; e, ainda que os seus
mento de Durkheim, despertar, simultaneamente, em todos, o rivais, Oratoire, Port Royal, Universidade, tenham temperado
sentimento da tarefa comum: sentimento indispensável, se se o seu sistema, foi o humanismo , tal como o entendiam \.os
quiser que as diversas disciplinas concorram para um ensino jesuítas, o educador por excelência do espírito clássico fran-
que, tal como o espírito que o forma, deve ter a sua unidade. cês. Em nenhuma sociedade europeia a influência do huma-
É verosímil que os futuros professores do ensino secundário nismo foi tão exclusiva: o nosso espírito nacional, nalgumas
venham a sentir um dia, eles próprios, a necessidade de reflec- das suas características dominantes, aí se exprime e ao mesmo

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO

tempo, daí resulta, com as suas qualidades e os seus defeitos. Em seguida, Durkheim trata principalmente das doutrinas
Mas a partir do século XVIII, sobretudo, outras tendências se enquanto factos, e é a educação do espírito histórico que
manifestam: a pedagogia, dita realista, ataca em força o huma- entende seguir, estudando-as. É precisamente ao contrário
nismo. Começa por produzir doutrinas, sem acção imediata que, em geral, as abordamos. Tomemos, por exemplo, os
sobre as instituições escolares. Depois cria, com as escolas livros de Gabriel Compayré, manuais clássicos de história da
centrais da Convenção, um sistema completamente novo, cuja Pedagogia, familiares a todos os nossos professores primá-
duração é efémera. E o século XIX põe em confronto, sem rios. Apesar do seu nome, não se trata propriamente, de his-
conseguir eliminar nem um nem outro, nem conciliá-los defi- tória. Sem dúvida, prestam serviços. Mas lembram, deplora-
nitivamente, o antigo e o novo sistemas. E é deste conflito que velmente , uma certa concepção da história da filosofia,
ainda procuramos sair. Permitindo-nos compreendê-lo, a his- felizmente caída em desuso. Parece que os grandes pedago-
tória dá-nos as armas para o resolver. gos, um Rabelais, um Montaigne, um Rollin, um Rosseau, aí
aparecem como os colaboradores do teórico que, actualmente,
procura fixar a doutrina pedagógica. Diríamos que há uma
VI verdade pedagógica eterna, universalmente válida, à qual pro-
puseram aproximações. Na sua doutrina, procura-se separar o
O ensino pedagógico dá, em geral, uma grande atenção à trigo e o joio, reter os preceitos utilizáveis actualmente pelos
história crítica das doutrinas da educação. Durkheim reconhece mestres, rejeitar os seus paradoxos e os seus erros. A crítica
o interesse deste estudo. Aplicou-se a ele durante longo tempo. dogmática toma o passo da história, o elogio ou a reprovação
Nos dois cursos sobre a educação intelectual, primária e secun- acerca da explicação das ideias. O resíduo e o proveito inte-
dária, há espaço para a história das doutrinas: a de Comenius, lectuais são muito fracos. Não é pela confrontação dialéctica
entre outras, prendeu a sua atenção. Deixou planos de lições e das teorias do passado, teorias muito mais ricas de intuições
notas que formam uma história das principais doutrinas peda- confusas que cientificamente construídas, que teremos opor-
gógicas, em França, após o Renascimento. La Revue de tunidade de elaborar uma doutrina sólida e de aplicação prá-
Métaphysique et de Morale publicou o plano desenvolvido das tica fecunda. É ideia comum que os pedagogos de segunda
suas lições sobre Jean-Jacques Rousseau. Finalmente, redigiu ordem, eclécticos, moderados e muito servilmente razoáveis,
integralmente um curso, de um ano inteiro, acerca de Pesta- resistem muito melhor a esta crítica que os espíritos de pri-
lozzi e de Herbart. Apontemos aqui apenas o método seguido. meira ordem. A sabedoria de um Rollin opõe-se com vanta-
Antes de mais, distingue a história das teorias da educa- gem às extravagâncias de um Rosseau. Se a pedagogia fosse
ção, claramente, da história e da própria educação. A confu- uma ciência, a sua história teria este carácter estranho: o génio
são é frequente. São, no entanto, duas coisas tão distintas a teria frequentemente conduzido ao erro, e a mediocridade
como a história da filosofia política e a história das institui- mantido no caminho da verdade. ~
ções políticas. Seria desejável que os nossos educadores Seguramente, Durkheim concebe que se possa procurar
conhecessem melhor a história das nossas instituições esco- esclarecer, através de uma discussão crítica, os elementos de
lares e não acreditassem, como é costume, apercebê-la atra- verdade contidos numa doutrina. No prefácio que escreveu
vés de Rousseau e Montaigne. para o livro póstumo de Hamelin, Le systeme de Descartes,

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forneceu a fórmula de um método de interpretação, ao mesmo trina original e vigorosa. Para os sociólogos, ilumina, nalguns
tempo histórico e crítico. E ele próprio o aplicou ao estudo de pontos essenciais, as concepções que Durkheim expôs em
Pestalozzi e de Herbart. Gostava do pensamento forte e rico diversos locais: ligações entre o indivíduo e a sociedade, liga-
destes grandes iniciadores, e, longe de lhes menosprezar a ções entre a ciência e a prática, natureza da moralidade, natu-
fecundidade, questionava-se mesmo se não lhes devia algumas reza da inteligência. Educadores ou sociólogos, são numero-
das ideias através das quais acreditava reconhecer neles os sos os que pedem que esta obra pedagógica não continue
primeiros esboços. Mas, qualquer que pudesse ser o seu valor inédita. Esforçar-nos-emas por publicar os principais cursos.
dogmático, Durkheim pede especialmente às doutrinas que O pequeno volume que hoje apresentamos servir-lhes-á
revelem as forças sociais que animam um sistema de educa- de introdução. Reimprimimos aqui os únicos estudos peda-
ção ou trabalham para o modificar. A história da Pedagogia não gógicos que o próprio Durkheim publicou(!). Os dois pri-
é uma história da educação, uma vez que os teóricos não expri- meiros reproduzem os artigos «Educação» e «Pedagogia» do
mem exactamente o que se passa, e não anunciam exactamente Nouveau Dictionnaire de pédagogie et d'instruction primaire,
o que se passará. Mas as ideias também são factos, e, q':ando publicado sob a direcção de F. Buisson, Paris, Hachette, 1911;
têm ressonância, factos sociais. O prodigioso sucesso de Emile o terceiro é a lição de abertura, feita por Durkheim, quando
tem outras causas para além do génio de J.-J. Rousseau: mani- tomou posse da sua cátedra, na Sorbonne, em 1902; apareceu
festa tendências confusas, mas enérgicas, da sociedade euro- na Revue de Métaphysique et de Morale, número de Janeiro
peia do século XVIII. Há pedagogos conservadores, tais como de 1903; o último é a lição de abertura do curso organizado
um Jouvency, um Rollin, que reflectem o ideal pedagógico dos para os candidatos aos concursos para o magistério secundá-
jesuítas ou da Universidade do século xvm. E, sobretudo, na rio; realizada em Novembro de 1905, esta lição apareceu na
medida em que vemos as grandes doutrinas desenvolverem-se Revue politique et littéraire (Revue bleue), número de 20 de
nas horas de crise, há pedagogos revolucionários que traduzem Janeiro de 1906.
as coisas colectivas que é necessário ao observador alcançar, Algumas páginas são repetições; há mesmo, nos dois pri-
e que são quase impossíveis de alcançar directamente: aspira- meiros casos, empréstimos textuais ao terceiro. Pensamos que
ções, ideias em vias de formação , rebeliões contra as institui- os retoques teriam tido mais inconvenientes do que algumas
ções tornadas caducas. Durkheim, por exemplo, estudou deste repetições.
ponto de vista as ideias pedagógicas do Renascimento e dis-
tinguiu, melhor do que o haviam feito antes dele, as duas gran- PAUL FAUCONNET
des correntes que as dominavam, aquela que atravessa a obra
de Rabelais, e a outra, muito diferente, apesar do seu cruza- (')Mencionemos todavia: 1.0 o artigo «Enfance», no Dictionnaire de
mento parcial, que atravessa a de Erasmo. Pédagogie , que Durkheim assinou, em colaboração com o Sr. Buisson;
É assim, nas suas grandes linhas, a obra pedagógica de 2.0 A comunicação sobre a Educação sexual, feita à Societé française..de
Durkheim. Esta breve exposição é suficiente para marcar qual Philosophie (Bulletin), que se liga sobretudo aos trabalhos de Durkheim
sobre a familia e o casamento.
o seu entendimento e as ligações estreitas que mantém com O estudo póstumo sobre o Emite , aparecido na Revue de Métaphysi-
o conjunto da sua obra sociológica. Aos educadores, trans- que et de Morale, t. XXVI, 1919, p. 153 , não pode ser separado do estudo
mite, acerca dos principais problemas pedagógicos, uma dou- sobre O contrato social (na mesma revista, t. XXV, 1918).

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Capítulo I

A educação, a sua natureza e o seu papel

1. As definições da educação:
exame crítico

A palavra educação foi por vezes empregue num sentido


muito lato para designar o conjunto de influências que a natu-
reza ou os outros homens podem exercer, seja sobre a nossa
inteligência, seja sobre a nossa vontade. Abarca, diz Stuart
Mill, «tudo aquilo que nós próprios fazemos e tudo o que os
outros fazem por nós com o objectivo de nos aproximar da
perfeição da nossa natureza. Na sua acepção mais lata,
abrange mesmo os efeitos indirectos produzidos sobre o
carácter e sobre as faculdades do homem por coisas cujo
objectivo é muito diferente: pelas leis , pelas formas de
governo, pelas artes industriais, e até mesmo por factos físi-
cos, independentes da vontade do homem, como o clima, o
sol e a posição local». Mas esta definição envolve factos com-
pletamente díspares e que não podemos reunir sob um mesmo
vocábulo sem nos expormos a confusões. A acção das coisas
sobre os homens é muito diferente, pelos seus processos e
pelos seus resultados, daquela que é proveniente dos próprios

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL

homens; e a acção dos contemporâneos sobre os seus con- dúvida, esta especialização não exclui um certo fundo
temporâneos difere daquela que os adultos exercem sobre os comum, e, por conseguinte, um certo equilíbrio das funções
mais jovens. É apenas esta última que nos interessa aqui e, tanto orgânicas quanto psíquicas, sem o qual a saúde do indi-
por conseguinte, é para ela que convém reservar a palavra víduo seria comprometida, ao mesmo tempo que a coesão
educação. social. Mas nem por isso se pode inferir que uma harmonia
Mas em que consiste esta acção sui generis? Respostas perfeita possa ser apresentada como o fim último da conduta
muito diferentes têm sido dadas a esta pergunta; podem resu- e da educação.
mir-se em dois tipos principais. Ainda menos satisfatória é a definição utilitarista segundo
Segundo Kant, «O objectivo da educação é desenvolver a qual a educação teria por objecto «fazer do indivíduo um ins-
em cada indivíduo toda a perfeição de que ele é capaz». Mas trumento de felicidade para si mesmo e para os seus seme-
que se deve entender por perfeição? É, disse-se frequente- lhantes» (James Mill), pois que a felicidade é uma coisa essen-
mente, o desenvolvimento harmónico de todas as faculdades cialmente subjectiva que cada um aprecia à sua maneira. Uma
humanas. Levar ao ponto mais elevado que possa ser atingido tal fórmula deixa pois indeterminado o fim da educação, e, por
por todas as potencialidades que temos em nós, realizá-las tão conseguinte, a educação em si mesma, uma vez que a aban-
completamente quanto possível, mas sem que se prejudiquem dona à arbitrariedade individual. Spencer, é verdade, tentou
umas às outras, não é um ideal acima do qual não poderá definir objectivamente a felicidade. Para ele, as condições da
haver outro? felicidade são as da vida. A felicidade completa é a vida com-
Mas se, em certa medida, este desenvolvimento harmo- pleta. Mas que é que se deve entender pela vida? Se se trata
nioso é, com efeito, necessário e desejável, não é integral- unicamente da vida física, pode dizer-se que sem isso ela seria
mente realizável; pois que se encontra em contradição com impossível; implica, com efeito, um certo equilíbrio entre o
uma outra regra da conduta humana que não é menos impe- organismo e o seu meio, e, pois que os dois termos relaciona-
riosa: aquela que estabelece que nos consagremos a uma dos são dados definíveis, assim deve ser também para a sua
tarefa especial e restrita. Não podemos e não devemos dedi- relação. Mas apenas podemos exprimir desse modo as neces-
car-nos todos ao mesmo género de vida; temos , segundo as sidades vitais mais imediatas. Ora, para o homem, e sobretudo
nossas aptidões, funções diferentes a desempenhar, e deve- para o homem de hoje, esta vida não é a vida. Pedimos mais
mos colocar-nos em harmonia com aquela que nos incumbe. à vida que o mero funcionamento o mais normal possível dos
Não somos todos feitos para reflectir, é necessário homens de nossos órgãos. Um espírito culto prefere não viver a renunciar
sensibilidade e de acção. Por outro lado, é necessário que haja aos prazeres da inteligência. Mesmo do ponto de vista mera-
quem tenha a tarefa de pensar. Ora, o pensamento só se pode mente material, tudo o que ultrapassa o estritamente necessá-
desenvolver quando se desliga do movimento, quando se con- rio escapa a qualquer determinação. O standard of life, o estilo
centra em si mesmo, quando é afastada da acção exterior a de vida, como dizem os Ingleses, o mínimo abaixo do qual não
pessoa que a ele se entrega totalmente. Daí uma primeira dife- nos parece que se possa consentir descer, varia infinitamente
renciação que é acompanhada de uma ruptura de equilíbrio. segundo as condições, os meios e os tempos. O que conside-
E a acção, por seu lado, como o pensamento, é capaz de tomar rávamos ontem suficiente, parece-nos hoje abaixo da digni-
uma grande quantidade de formas diferentes e especiais. Sem dade humana, tal como a sentimos presentemente, e tudo leva

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a crer que as nossas exigências neste ponto terão tendência a deve ser a educação ideal, abstraindo completamente do
crescer cada vez mais. tempo e do lugar, é porque se admite implicitamente que um
Tocamos aqui no erro geral em que incorrem todas estas sistema educativo não tem nada de real em si próprio. Não
definições. Elas partem do postulado que existe uma educação se vê aí um conjunto de práticas e de instituições que se orga-
ideal, perfeita, válida para todos os homens indistintamente; nizaram lentamente ao longo do tempo, que são solidárias
e é esta educação universal e única que o teórico se esforça com todas as outras instituições sociais e que as exprimem,
por definir. Mas a verdade é que, se se considerar a história, que, por consequência, não podem ser mudadas mais facil-
não se encontra nada que confirme tal hipótese. A educação mente que a própria estrutura da sociedade. Parece, sim, um
variou infinitamente conforme os tempos e as regiões. Nas conjunto de conceitos realizados; desta forma parece depen-
cidades gregas e latinas, a educação preparava o indivíduo para der apenas da lógica. Imagina-se que os homens de qualquer
se subordinar cegamente à colectividade, tomar-se a coisa da época o organizam voluntariamente para realizar um fim
sociedade. Hoje, esforça-se por construir uma personalidade determinado; que , se esta organização não é a mesma em
autónoma. Em Atenas, procurava-se formar espíritos delicados, todo o lado, é porque se enganaram na natureza quer do fim
avisados, subtis, animados pela moderação e pela harmonia, pretendido, quer dos meios que permitem alcançá-lo. Deste
capazes de apreciar o belo e as alegrias da pura especulação; modo , as educações do passado aparecem como uns tantos
em Roma, queria-se antes de mais que as crianças se tomas- erros, totais ou parciais. Não existem, pois , quaisquer dúvi-
sem homens de acção, apaixonados pela glória militar, indife- das: não nos devemos solidarizar com as falhas de observa-
rentes ao que tinha a ver com as letras e com as artes. Na Idade ção ou de lógica que os nossos antepassados possam ter feito;
Média a educação era antes de mais cristã; no Renascimento, mas podemos e devemos colocar-nos o problema, sem nos
tomou um carácter mais laico e mais literário; hoje a ciência ocuparmos das soluções que lhe foram dadas, ou seja, dei-
tende a tomar o lugar outrora ocupado pela arte. Diremos que xando de lado tudo o que foi, apenas nos devemos interro-
o facto não é o ideal; que se a educação variou, é porque os gar sobre o que devia ter sido. Os ensinamentos da história
homens se enganaram acerca do que ela devia ser? Mas se a podem quando muito servir para nos evitar reincidir nos erros
educação romana tivesse reproduzido um individualismo com- já cometidos.
parável ao nosso, a cidade romana não teria podido manter-se; Mas, com efeito, cada sociedade, considerada num mo-
a civilização latina não teria podido constituir-se nem, por con- mento determinado do seu desenvolvimento, tem um sistema
seguinte, a nossa civilização moderna, que é, em parte, sua de educação que se impõe aos indivíduos com uma força
descendente. As sociedades cristãs da Idade Média não teriam geralmente irresistível. É inútil pensarmos que podemos criar
podido sobreviver se tivessem dado ao pensamento racional o os nossos filhos como queremos. Há costumes com os quais
lugar que hoje lhe é dado. Há pois necessidades inelutáveis de temos de nos conformar; se os infringimos, eles vingam-se
que é impossível abstrairmo-nos. A quem pode interessar ima- nos nossos filhos. Estes,. uma vez adultos, não estarão em
ginar uma educação que seria mortal para a sociedade que a condições de viver no meio dos seus contemporâneos, com
colocasse em prática? os quais não se encontram em harmonia. Quer tenham sido
Este postulado tão contestável contém em si mesmo um criados com ideias muito arcaicas ou muito prematuras, não
erro geral. Se se começar por questionar deste modo qual importa; num caso como noutro, não são do seu tempo e, por

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL

conseguinte, não estão em condições de vida normal. Há pois, vilégio estaríamos mais bem esclarecidos no que diz respeito
em cada momento do tempo, um tipo regulador de educação à função educativa? Responderão que, evidentemente, ela
de que não nos podemos desligar sem chocar com as vivas tem por função instruir as crianças. Mas isso é apenas colo-
resistências que reprimem as veleidades dos dissidentes. car o problema errt termos diferentes; não é resolvê-lo . É pre-
Ora, os costumes e as ideias que o determinam, não fomos ciso dizer em que consiste esta instrução, para que é que
nós, individualmente, que os fizemos. São o produto da vida tende, a que necessidades humanas responde . Ora, apenas se
em comum e exprimem as suas necessidades. São até, na pode responder a estas questões começando por observar em
maior parte, obra das gerações anteriores. Todo o passado da que é que consistiu, a que necessidades respondeu no pas-
humanidade contribuiu para fazer este conjunto de máximas sado. Assim, quanto mais não seja para constituir a noção
que dirigem a educação actual; toda a nossa história lhe dei- preliminar de educação, para determinar a coisa que assim
xou traços, e até mesmo a história dos povos que nos prece- denominamos , a observação histórica aparece como indis-
deram. É assim que os organismos superiores trazem em si pensável.
como que o eco de toda a evolução biológica de que são o
resultado. Quando estudamos historicamente a maneira como
são formados e desenvolvidos os sistemas de educação, aper- 2. Definição da educação
cebemo-nos do que eles dependem da religião, da organiza-
ção política, do grau de desenvolvimento das ciências, do Para definir a educação é necessário pois considerar os
estado da indústria, etc. Se os desligamos de todas estas cau- sistemas educativos que existem ou que existiram , aproximá-
sas históricas, tornam-se incompreensíveis. Como é que , -los , destrinçar as características que lhes são comuns. O con-
desde logo, o indivíduo pode pretender reconstruir, através do junto destas características constituirá a definição que pro-
único esforço da sua reflexão privada, o que não é obra do curamos.
pensamento individual? Não se encontra face a uma tábua Determinámos já, de passagem, dois elementos. Para que
rasa na qual pode edificar o que quer, mas sim frente a reali- haja educação, é necessário termos em presença uma geração
dades existentes que não pode criar, nem destruir, nem trans- de adultos e uma geração de jovens, e uma acção exercida
formar à vontade. Não pode agir sobre elas senão na medida pelos primeiros sobre os segundos . Resta-nos definir a natu-
em que aprendeu a conhecê-las , a saber qual a sua natureza reza desta acção .
e as condições de que dependem; e não pode sabê-lo sem ir Não há sociedade onde o sistema educativo não apresente
à sua escola , começando por as observar, como o físico um duplo aspecto: é , ao mesmo tempo , uno e múltiplo.
observa a matéria bruta e o biólogo os corpos vivos . É múltiplo . Com efeito, num certo sentido, podemos dizer
Aliás, como proceder de outro modo? Quando queremos que há tantos tipos diferentes de educação como meios dife-
determinar apenas pela dialéctica o que deve ser a educação , rentes nessa sociedade. É ela formada por castas? A educa-
devemos começar por verificar que fim deve ter. Mas o que ção varia de uma casta para a outra; a dos patrícios não era a
é que nos permite afirmar que a educação tem determinados dos pleb'eus; a do Brâmane não era a do Xudra. Do mesmo
fins mais do que outros? Não sabemos a priori qual é a fun- modo, na Idade Média, que diferença entre a cultura que rece-
ção da respiração ou da circulação no ser vivo. Por que pri- bia o jovem pajem, instruído em todas as artes da cavalaria,

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL

e a do aldeão que ia aprender à escola da sua paróquia alguns dizer que não se bastam a si mesmas; onde quer que as obser-
magros elementos de cálculo, de canto e de gramática! Não vemos, não divergem umas das outras senão a partir de um
vemos nós ainda hoje a educação variar com as classes sociais certo ponto aquém do qual se confundem. Repousam todas
ou mesmo com os habitats? A da cidade não é a do campo, numa base comum. Não há povo onde não exista um certo
a do burguês não é a do operário. Dir-se-á que esta organi- número de ideias, de sentimentos e de práticas que a educa-
zação não é moralmente justificável, que apenas podemos ver ção inculca a todas as crianças indistintamente, seja qual for
aí uma sobrevivência destinada a desaparecer? A tese é fácil a categoria social a que pertençam. Da mesma forma, quando
de defender. É evidente que a educação das nossas crianças a sociedade está dividida em castas fechadas entre si, há sem-
não deve depender do acaso que as faz nascer aqui ou ali, de pre uma religião comum a todas, e, por conseguinte, os prin-
uns pais em vez de outros. Mas então, mesmo que a cons- cípios da cultura religiosa, que é então fundamental, são os
ciência moral do nosso tempo tivesse recebido neste ponto a mesmos para o entendimento de toda a população. Se cada
satisfação que espera, a educação não se tornaria por isso casta, cada família, tem os seus deuses especiais, há divinda-
mais uniforme. Então, mesmo que o percurso de uma criança des gerais que são reconhecidas por todos e que todas as
não fosse, em grande parte, predeterminado por uma heredi- crianças aprendem a adorar. E como estas divindades encar-
tariedade cega, a diversidade moral das profissões não dei- nam e personificam certos sentimentos, certas maneiras de
xaria de arrastar consigo uma grande diversidade pedagógica. conceber o mundo e a vida, não se pode ser iniciado no seu
Cada profissão, com efeito, constitui um meio sui generis que culto sem adquirir, da mesma forma, toda uma série de hábi-
reclama aptidões particulares e conhecimentos especiais, tos mentais que ultrapassam a esfera da vida puramente reli-
onde reinam certas ideias, certos usos, certas maneiras de ver giosa. Da mesma forma, na Idade Média, servos, aldeões, bur-
as coisas; e como a criança deve ser preparada tendo em vista gueses e nobres recebiam igualmente uma mesma educação
a função que será chamada a desempenhar, a educação, a par- cristã. Se é assim em sociedades onde a diversidade intelec-
tir de uma certa idade, não pode mais continuar a ser a mesma tual e moral atinge este grau de contraste, com quanto mais
para todos os assuntos a que se aplica. É por isso que vemos razão o é nos povos mais avançados onde as classes, ainda
que, em todos os países civilizados, tende cada vez mais a que permaneçam distintas, são no entanto separadas por um
diversificar-se e a especializar-se; e esta especialização torna- abismo menos profundo! E onde estes elementos comuns de
-se cada vez mais precoce. A heterogeneidade que assim se toda uma educação não se exprimem sob a forma de símbo-
produz não assenta, como aquela de que acabámos de cons- los religiosos, não deixam todavia de existir. Ao longo da
tatar a existência, em desigualdades injustas; mas não é nossa história, constituiu-se todo um conjunto de ideias
menor. Para encontrar uma educação absolutamente homo- acerca da natureza humana, acerca da importância respectiva
génea e igualitária, será necessário retroceder até às socieda- das nossas diferentes faculdades, acerca do direito e do dever,
des pré-históricas, no seio das quaís não existe nenhuma dife- acerca da sociedade, do indivíduo, do progresso, da ciênci ,
renciação; e mesmo estes tipos de sociedades não representam da arte, etc., que estão na própria base do nosso espírito nacio-
mais do que um momento lógico na história da humanidade. nal; toda a educação, tanto a do rico como a do pobre, aquela
Mas, qualquer que seja a importância destas educações que conduz às carreiras liberais como a que prepara para as
especiais, elas não são toda a educação. Podemos mesmo funções industriais, tem por objecto fixá-las nas consciências.

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL

Resulta destes factos que cada sociedade tem um certo ções essenciais para a sua própria existência. Veremos adiante
ideal de homem, do que ele deve ser tanto do ponto de vista como é que o próprio indivíduo tem interesse em se subme-
intelectual, como do físico ou do moral; que este ideal é, em ter a estas exigências.
certa medida, o mesmo para todos os cidadãos; que a partir Chegamos pois à fórmula seguinte: A educação é a acção
de um certo ponto se diferencia consoante os meios particu- / exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não
lares que cada sociedade compreende no seu seio. É este ideal, estão maduras para a vida social. Tem por objecto suscitar
ao mesmo tempo uno e diverso, que é o pólo da educação. e desenvolver na criança um certo número de estados físicos,
Ela tem, pois, por função suscitar na criança: 1.0 Um certo intelectuais e morais que lhe exigem a sociedade política no
número de estados físicos e mentais que a sociedade à qual seu conjunto e o meio ao qual se destina particularmente.
pertence considera não deverem estar ausentes de nenhum dos
seus membros; 2.° Certos estados físicos e mentais que deter-
minado grupo social (casta, classe, família, profissão) consi- 3. Consequência da definição precedente:
dera igualmente que se devem encontrar em todos aqueles que carácter social da educação
o formam. Assim, é a sociedade, no seu conjunto, e cada meio
social particular, que determinam este ideal que a educação Resulta da definição precedente que a educação consiste
realiza. A sociedade só pode subsistir se existir entre os seus numa socialização metódica da jovem geração. Em cada um
membros uma homogeneidade suficiente; a educação perpe- de nós, podemos dizê-lo, existem dois seres que, apesar de
tua e reforça esta homogeneidade fixando com antecedência apenas poderem ser separáveis por abstracção, não deixam de
na alma da criança as similitudes essenciais que a vida colec- ser distintos. Um é feito de todos os estados mentais que ape-
tiva exige. Mas, por outro lado, sem uma certa diversidade, nas se ligam a nós mesmos e aos acontecimentos da nossa vida
qualquer cooperação será impossível: a educação assegura a pessoal: é o que podemos chamar o ser individual. O outro é
persistência desta diversidade necessária ao diversificar-se e um sistema de ideias, de sentimentos e de hábitos que expri-
especializar-se ela própria. Se a sociedade chegou a um grau mem em nós, não a nossa personalidade, mas o grupo ou os
de desenvolvimento em que as antigas divisões em castas e grupos diferentes de que fazemos parte: as crenças religiosas,
em classes não podem mais manter-se, prescreverá uma edu- as crenças e as práticas morais, as tradições nacionais ou pro-
cação mais una na sua base. Se, no mesmo momento, o tra- fissionais, as opiniões colectivas de todo o género. O seu con-
balho está mais diversificado, provocará nas crianças , sobre junto forma o ser social. Constituir este ser em cada um de nós,
um primeiro fundo de ideias e de sentimentos comuns , uma tal é o fim da educação. ,/
mais rica diversidade de aptidões profissionais. Se vive em Assim se mostra, aliás, a importância do seu papel e a
estado de guerra com as sociedades envolventes, esforça-se fecundidade da sua acção. Com efeito, este ser social não só
por formar os espíritos com base num modelo fortemente não surgiu completo na constituição primitiva do homem; mas
nacionalista; se a concorrência internacional toma uma forma também não resultou de um desenvolvimento espontâneo.
mais pacífica, o tipo de educação que procura realizar é mais Espontaneamente, o homem não estava inclinado a submeter-
geral e mais humano. A educação não é pois para ela mais que -se a uma autoridade política, a respeitar uma disciplina moral,
o meio pelo qual prepara no coração das crianças as condi- a devotar-se e sacrificar-se. Não havia nada na nossa natureza

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL

congênita que nos predispusesse necessariamente a tomarmo- as aptidões de todo o gênero que a vida social pressupõe são
-nos servidores de divindades, emblemas simbólicos da socie- muito mais complexas para se poderem encarnar, de qualquer
dade, a prestar-lhes um culto, a privarmo-nos para as honrar. maneira, nos nossos tecidos, e materializarem-se sob a forma
Foi a própria sociedade que, à medida que se foi formando e de predisposições orgânicas. Daqui se depreende que elas não
consolidando, extraiu do seu próprio seio estas grandes forças se podem transmitir de uma geração para outra através da
morais diante das quais o homem sentiu a sua inferioridade. hereditariedade. É pela educação que se faz a transmissão .
Ora, se nos abstrairmos das vagas e incertas tendências que Todavia, dir-se-á que, se é possível conceber, com efeito,
podem ser devidas à hereditariedade, a criança, ao entrar na que as qualidades propriamente morais, porque impõem pri-
vida, apenas leva consigo a sua natureza de indivíduo. A socie- vações ao indivíduo, porque constrangem os seus movimen-
dade encontra-se, pois, a cada nova geração, em presença de tos naturais, apenas podem ser suscitadas em nós por uma
uma tábua quase rasa sobre a qual é preciso construir tudo de acção vinda de fora, não há também outras que todo o homem
novo. É preciso que, pelas vias mais rápidas, ao ser egoísta e está interessado em adquirir e procura espontaneamente? Tais
a-social que acaba de nascer, ela acrescente outra, capaz de são as qualidades diversas da inteligência que lhe permitem
levar uma vida moral e social. Eis a obra da educação, e aper- apropriar melhor a sua conduta à natureza das coisas. Tais são
cebemo-nos de toda a sua grandeza. Ela não se limita a desen- também as qualidades físicas, e tudo o que contribui para o
volver o organismo individual no sentido marcado pela sua vigor e para a saúde do organismo. Para aquelas, ao menos,
natureza, a tomar aparentes as potencialidades escondidas que parece que a educação, desenvolvendo-as, não faz mais do
só pedem para ser reveladas. Ela cria no homem um novo ser. que avançar adiante do próprio desenvolvimento da natureza,
Esta virtude criadora é, aliás, um privilégio especial da levar o indivíduo a um estado de perfeição relativa em direc-
educação humana. É completamente diferente aquela que ção à qual tende por si próprio, ainda que lá possa chegar mais
recebem os animais, se podemos aplicar este nome ao treino rapidamente graças à colaboração da sociedade.
progressivo a que são submetidos por parte dos seus pais . Mas o que demonstra bem, apesar das aparências, que
Pode apressar o desenvolvimento de certos instintos que estão aqui como noutro ponto, a educação responde antes de mais
adormecidos no animal; mas não o inicia numa vida nova. às necessidades sociais, é que há sociedades onde estas qua-
Facilita o jogo das funções naturais; mas não cria nada. Ins- lidades não foram minimamente cultivadas, e que em todo o
truído pela sua mãe, o filhote aprende mais rapidamente a caso foram entendidas muito diferentemente consoante as
voar ou a fazer o seu ninho; mas não aprende quase nada com sociedades. Seria necessário que todas as vantagens de uma
os seus pais que não pudesse descobrir pela sua experiência sólida cultura intelectual tivessem sido reconhecidas por
pessoal. É que os animais ou vivem fora de qualquer estado todos os povos. A ciência, o espírito crítico, que hoje coloca-
social ou formam sociedades muito simples , que funcionam mos tão alto, foram durante muito tempo olhados com sus-
graças a mecanismos instintivos, que cada indivíduo traz em peição. Não conhecemos uma grande doutrina que proclama
si, completamente constituídos, desde o seu nascimento. A edu- felizes os pobres de espírito? Devemos acautelar-nos e não
cação não pode pois acrescentar nada de essencial à natu- acreditar que esta indiferença pelo saber tenha sido artificial-
reza, uma vez que esta é suficiente para tudo, para a vida do mente imposta aos homens violando a sua natureza. Eles não
grupo como para a do indivíduo. Pelo contrário, no homem, possuem por si próprios o apetite instintivo de ciência que fre-

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quente e arbitrariamente lhes atribuem. Apenas desejam a belos à vista; no tempo dos cavaleiros , pedia-se-lhe que for-
ciência na medida em que a experiência lhes ensinou que não masse guerreiros ágeis e submissos; nos nossos dias, não tem
podem passar sem ela. Ora, no que diz respeito ao aperfei- mais do que um fim higiênico, e preocupa-se principalmente
çoamento da sua vida individual, só têm de o fazer. Como já em conter os efeitos perigosos de uma cultura intelectual
dizia Rosseau, para satisfazer as necessidades vitais, a sensa- muito intensa. Assim, mesmo as qualidades que parecem, à
ção, a experiência e o instinto poderiam ser suficientes como primeira vista, tão espontaneamente desejáveis, apenas são
o são para o animal. Se o homem não tivesse conhecido outras procuradas pelo indivíduo quando a sociedade o convida, e
necessidades para além daquelas, muito simples, que têm as este procura-as da maneira que ela lhe prescreve.
suas raízes na constituição individual, não teria procurado a Estamos assim em condições de responder a uma ques-
ciência, tanto mais que ela só foi adquirida após laboriosos e tão que se sobrepõe a todas as precedentes. Ao demonstrar-
dolorosos esforços. Só conheceu a sede do saber quando a mos o aperfeiçoamento da sociedade, de acordo com as
sociedade a despertou nele, e a própria sociedade só a des- necessidades, os indivíduos parece que sofreriam dessa forma
pertou quando ela própria sentiu a sua necessidade. Esse uma insuportável tirania. Mas, na realidade, eles próprios
momento chegou quando a vida social, sob todas as suas for- estão interessados nessa submissão; pois o ser novo que a
mas, se tomou demasiado complexa para poder funcionar de acção colectiva, por via da educação, edifica assim em cada
outro modo que não baseando-se no pensamento reflectido, um de nós, representa o que há de melhor em nós, o que há
quer dizer, no pensamento iluminado pela ciência. Então, a em nós de verdadeiramente humano. O hom~m, com efeito,
cultura científica tomou-se indispensável, e é por isso que a só é um homem porque vive em sociedade. É difícil, no
sociedade a reclama dos seus membros e lha impõe como um decurso de um artigo, demonstrar com rigor uma proposição
dever. Mas, na origem, enquanto que a organização social era tão geral e tão importante, e que resume os trabalhos da socio-
muito simples, muito pouco variada, sempre igual a si pró- logia contemporânea. Mas, antes de mais, podemos dizer que
pria, a tradição cega bastava, como o instinto ao animal. Por- é cada vez menos contestada. Até porque não é impossível
tanto, o pensamento e o livre-arbítrio eram inúteis e mesmo lembrar sumariamente os factos que a justificam.
perigosos, pois só serviam para ameaçar a tradição. Por isso Para começar, se há hoje um facto historicamente estabe-
foram proscritos. lecido , é que a moral está estreitamente relacionada com a
O mesmo se passou em relação às qualidades físicas . Que natureza das sociedades, pois que, como demonstrámos de
o estado do meio social incline a consciência pública para o passagem, ela muda quando as sociedades mudam. Quer dizer
ascetismo, e a educação física será relegada para segundo que resulta da vida em comum. É a sociedade, com efeito,
plano. É um pouco o que aconteceu nas escolas da Idade que nos extrai de nós mesmos, que nos obriga a contar com
Média; e este ascetismo era necessário, pois a única maneira outros interesses além dos nossos, é ela que nos ensinou a
de se adaptar à rudeza daqueles tempos difíceis era apreciá- dominar as nossas paixões, os nossos instintos, a conceder-
-la. Da mesma forma, consoante a corrente de opinião, esta lhe a autoridade, a privarmo-nos, a sacrificarmo-nos, a subor-
mesma educação será entendida nos sentidos mais diversos. dinar os nossos objectivos pessoais a objectivos mais eleva-
Em Esparta, tinha sobretudo por objecto endurecer os mem- dos. Todo o sistema de representação que mantém em nós a
bros até à fadiga; em Atenas era um meio de fazer corpos ideia e o sentimento da regra, da disciplina, tanto interna

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como externa, é a sociedade que o instituiu nas nossas cons- Vemos por estes exemplos ao que se reduziria o homem
ciências. É assim que adquirimos esta potencialidade de resis- se lhe retirássemos tudo o que contém da sociedade: cairia na
tirmos a nós próprios, este domínio sobre as nossas tendên- categoria do animal. Se conseguiu ultrapassar o estado em
cias que é um dos traços distintivos da fisionomia humana e que se encontram os animais , foi antes de mais porque não se
que está tanto mais desenvolvido quanto nós mais plenamente restringiu ao fruto dos seus esforços pessoais, mas coopera
somos homens. regularmente com os seus semelhantes; o que reforça o ren-
Não devemos menos à sociedade do ponto de vista inte- dimento da actividade de cada um. E em seguida, e princi-
lectual. É a ciência que elabora as noções cardinais que domi- palmente, porque os produtos do trabalho de uma geração não
nam o nosso pensamento: noções de causa, de leis, de espaço, são perdidos por aquela que se segue. Do que um animal pôde
de número, noções dos corpos, da vida, da consciência, da aprender ao longo da sua existência individual, quase nada lhe
sociedade, etc. Todas estas ideias fundamentais estão perpe- pode sobreviver. Pelo contrário, os resultados da experiência
tuamente em evolução: é que elas são o resumo, o resultado humana conservam-se quase integralmente e mesmo em deta-
de todo o trabalho científico, longe de serem o seu ponto de lhe, graças aos livros, aos monumentos figurados , aos utensí-
partida como acreditava Pestalozzi. Não representamos hoje lios, a todo o género de instrumentos que se transmitem de
o homem, a natureza, as causas, o próprio espaço, como eram geração em geração, à tradição oral, etc. O solo da natureza
representados na Idade Média; é que os nossos conhecimen- cobre-se assim de um rico aluvião que cresce sem cessar. Em
tos e os nossos métodos científicos já não são os mesmos. vez de se dissipar de cada vez que uma geração se extingue
Ora, a ciência é uma obra colectiva, pois que supõe uma vasta e é substituída por outra, a sabedoria humana acumula-se sem
cooperação de todos os sábios, não só de uma mesma época, fim, e é esta acumulação incessante que eleva o homem acima
mas de todas as épocas sucessivas da história. -Antes que as do animal e acima de si próprio. Mas, da mesma forma que a
ciências fossem constituídas, a religião executava o mesmo cooperação de que falámos, esta acumulação só é possível na
ofício; pois que toda a mitologia consiste numa representa- e pela sociedade. Porque, para que o legado de cada geração
ção, já muito elaborada, do homem e do universo. A ciência, possa ser conservado e reunido aos outros, é necessário haver
aliás, foi a herdeira da religião. Ora, uma religião é uma ins- uma personalidade moral que subsista sobre as gerações que
tituição social. - Ao aprender uma língua, aprendemos todo passam, que as ligue umas às outras: é a sociedade. Assim, o
um sistema de ideias, distintas e classificadas , e herdamos antagonismo que se admitiu frequentemente entre a sociedade
todo o trabalho de onde saíram essas classificações que resu- e o indivíduo não tem qualquer correspondência com os fac-
mem séculos de experiências. Mas há mais: sem a lingua- tos. Longe de se oporem e de só se poderem desenvolver em
gem, não teríamos, por assim dizer, ideias gerais; pois é a sentido inverso um do outro, estes dois termos implicam-se.
palavra que, fixando-os, dá aos conceitos uma consistência O indivíduo, querendo a sociedade, quer-se a si próprio.
suficiente para que possam ser manuseados comodamente A acção que esta exerce sobre ele, nomeadamente por via da
pelo espírito. Foi pois a linguagem que nos permitiu ele- educação, não tem de modo algum por objecto e por efeito
varmo-nos acima da mera sensação; e não é necessário comprimi-lo, diminui-lo , deformá-lo , mas, pelo contrário,
demonstrar que a linguagem é, em primeiro lugar, uma coisa engrandecê-lo e fazer dele um ser verdadeiramente humano.
social. Sem dúvida que ele só pode engrandecer-se esforçando-se.

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL

Mas é que o poder de se esforçar voluntariamente é precisa- lante para obrigar a acção pedagógica a exercer-se num sen-
mente uma das características mais essenciais do homem. tido social, esta colocar-se-ia necessariamente ao serviço de
crenças particulares, e a grande alma da pátria dividir-se-ia e
decompor-se-ia numa quantidade incoerente de pequenas
4. O papel do Estado em matéria de educação almas fragmentárias em conflito umas com as outras. Não se
pode ir mais completamente contra o objectivo fundamental
Esta definição da educação permite resolver facilmente a de qualquer educação. É preciso escolher: se damos algum
questão, tão controversa, dos deveres e dos direitos do Estado valor à existência da sociedade - e acabamos de ver o que ela
em matéria de educação. representa para nós - é necessário que a educação assegure
Opõem-se-lhe os direitos da famflia. A criança, diz-se, é entre os cidadãos uma comunhão de ideias e de sentimentos
antes de mais dos seus pais: é pois a eles que pertence dirigir, sem os quais qualquer sociedade é impossível; e para que
como entenderem, o seu desenvolvimento intelectual e moral. possa produzir este resultado , é ainda necessário que não seja
A educação é então concebida como uma coisa essencialmente abandonada totalmente à arbitrariedade dos particulares.
privada e doméstica. Quando nos colocamos neste ponto de Uma vez que a educação é uma função essencialmente
vista, tendemos naturalmente para reduzir ao mínimo possível social, o Estado não pode desinteressar-se dela. Pelo contrá-
· a intervenção do Estado na matéria. Este deverá, diz-se, limi- rio, tudo o que seja educação deve ser, de alguma forma , sub-
tar-se a servir de auxiliar e de substituto das famílias. Quando metido à sua acção. Não quer dizer com isto que deva neces-
estas não estão em condições de cumprir os seus deveres, é sariamente monopolizar o ensino. A questão é demasiado
natural que o Estado se encarregue disso. É até natural que ele complexa para que seja possível tratá-la assim de passagem:
lhes entregue a tarefa mais fácil possível, colocando à dispo- entendemos reservá-la. Pode entender-se que os progressos
sição escolas para onde possam, se o quiserem, enviar as escolares são mais fáceis e mais rápidos onde seja deixada
crianças. Mas o Estado deve conter-se estritamente dentro des- alguma margem às iniciativas individuais; porque o indivíduo
tes limites, e evitar qualquer acção positiva destinada a impri- é mais facilmente inovador do que o Estado. Mas se o Estado
mir uma orientação determinada ao espírito da juventude. deve, no interesse público, deixar abrir outras escolas para
Porém, é necessário que o seu papel se mantenha dessa além daquelas de que é directamente responsável, não quer
forma. Se, como acabamos de estabelecer, a educação tem, dizer que deva manter-se alheio ao que aí se passa. Pelo con-
antes de mais, uma função colectiva, se ela tem por objecto trário, a educação que aí é ministrada deve manter-se sub-
adaptar a criança ao meio social onde está destinada a viver, metida ao seu controlo. Não é mesmo admissível que a fun-
é impossível que a sociedade se desinteresse de uma tal ope- ção do educador possa ser substituída por qualquer um que
ração. Como poderá ela estar ausente, uma vez que é o ponto não apresente garantias especiais que só o Estado pode jul-
de referência a partir do qual a educação deverá dirigir a sua gar. Sem dúvida que os limites nos quais se deve conter esta'
acção? É pois a ela que pertence lembrar constantemente ao intervenção podem ser frequentemente incómodos , mas o
professor quais são as ideias , os sentimentos que é preciso princípio da intervenção não terá contestação. Não há escola
imprimir à criança para a colocar em harmonia com o meio que possa reclamar o direito de ministrar, livremente, uma
no qual deverá viver. Se não estivesse sempre presente e vigi- educação anti-social.

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É, todavia, necessário reconhecer que o estado de divisão atingir esse objectivo, quer dizer, como e em que medida
em que se encontram actualmente os espíritos, no nosso país, pode a educação ser eficaz.
torna este dever do Estado particularmente delicado, ao A questão foi sempre muito controversa. Para Fontenelle,
mesmo tempo, aliás, que mais importante. Não pertence ao «nem a boa educação faz o bom carácter, nem a má o destrói».
Estado, com efeito, criar essa comunidade de ideias e de sen- Pelo contrário, para Locke, para Helvétius, a educação é toda-
timentos sem a qual não existe sociedade; ela deve constituir- -poderosa. Segundo este último, «todos os homens nascem
-se por si própria, e o Estado apenas pode consagrá-la, mantê- iguais e com iguais aptidões; só a educação faz as diferenças».
-la, torná-la mais consciente para os particulares. Ora, é A teoria de Jacotot aproxima-se da precedente. -A solução
infelizmente incontestável que, entre nós, esta unidade moral que se dá ao problema depende da ideia que se faz da impor-
não é, sob todos os aspectos, o que deveria ser. Estamos divi- tância e da natureza das predisposições inatas, por um lado, e,
didos entre concepções divergentes e por vezes até contradi- por outro, da capacidade dos meios de acção de que dispõe o
tórias. Há nestas divergências um facto impossível de negar educador.
e que é necessário ter em conta. A escola não poderá ser per- A educação não cria o homem do nada, como crêem
tença de um partido, e o professor falta aos seus deveres Locke e Helvétius; aplica-se a disposições que encontra fei-
quando usa a autoridade de que dispõe para arrastar os seus tas . Por outro lado, pode admitir-se que de um modo geral
alunos no trilho dos seus próprios ideais, por mais justifica- estas tendências congénitas são muito fortes, muito difíceis
dos que lhe possam parecer. Mas , apesar de todas as dissi- de destruir ou de transformar radicalmente; porque dependem
dências, tem havido até hoje, na base da nossa civilização, um de condições orgânicas em relação às quais o educador pouco
certo número de princípios que, implícita ou explicitamente, pode fazer. Por conseguinte, na medida em que têm um
são comuns a todos, que poucos, em todo o caso, ousam negar objectivo definido, em que inclinam o espírito e o carácter
abertamente e face a face: respeito pela razão, pela ciência, para maneiras de agir e de pensar estreitamente determina-
pelos ideais e sentimentos que estão na base da moral demo- das , todo o futuro do indivíduo se encontra predeterminado,
crática. O papel do Estado é esclarecer esses princípios essen- e não resta muito a fazer à educação.
ciais, fazê-los ensinar nas suas escolas, velar para que em Mas, felizmente, uma das características do homem é que
nenhum lugar as crianças os ignorem, e para que em todo o as predisposições inatas são nele muito gerais e muito vagas.
lado se fale deles com o respeito que lhes é devido. Há, sob Com efeito, o tipo de predisposição assente, rígida, invariá-
este aspecto, uma acção a exercer que será talvez tanto mais vel, que não deixa qualquer espaço à acção de causas exte-
eficaz quanto menos agressiva e menos violenta, e que melhor riores , é o instinto. Ora, podemos perguntar-nos se existe no
se saiba conter em limites ajuizados. homem um só instinto propriamente dito. Falamos algumas
vezes de instinto de conservação; mas a expressão é impró-
pria. Porque um instinto é um sistema de movimentos deter-~
5. Poder da educação - os meios de acção minados, sempre os mesmos, que, uma vez desencadeados
pela sensação, se encadeiam automaticamente uns nos outros
Após termos determinado o objectivo da educação, pre- até que chegam ao seu termo natural , sem que a reflexão
cisamos de determinar como e em que medida é possível intervenha em momento algum; ora, os movimentos que exe-

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL

cutamos quando a nossa vida está em perigo não têm mini- gerais; é um tanto de atenção, uma certa dose de perseverança,
mamente esta determinação nem esta invariabilidade auto- um juízo saudável, imaginação, etc. Mas cada uma destas
mática. Mudam consoante as situações; adaptamo-los às cir- faculdades pode servir para todo o género de fins diferentes .
cunstâncias; quer dizer que não se desenrolam sem uma certa Uma criança dotada de uma imaginação muito viva poderá,
escolha consciente, ainda que muito rápida. O que chamamos segundo as circunstâncias, segundo as influências que se farão
instinto de conservação não é, definitivamente, mais do que sentir sobre ela, tomar-se um pintor ou um poeta, ou um enge-
um impulso geral para fugir à morte , sem que os meios atra- nheiro de espírito inventiva , ou um arrojado financeiro. Odes-
vés dos quais a procuramos evitar sejam predeterminados de vio é pois .considerável entre as qualidades naturais e a forma
uma vez por todas . Podemos dizer outro tanto do que cha- especial que elas devem tomar para serem utilizadas durante
mamos, por vezes, o instinto maternal, o instinto paternal, e a vida. Quer dizer que o futuro não está estreitamente prede-
mesmo o instinto sexual. São impulsos numa direcção; mas terminado pela nossa constituição congénita. A razão é fácil
os meios através dos quais estes impulsos se actualizam de compreender. As únicas formas de actividade que podem
mudam de um indivíduo para o outro, de ocasião para oca- ser transmitidas hereditariamente são aquelas que se repetem
sião. Resta pois um largo espaço reservado às experiências, sempre de uma maneira muito idêntica para poderem fixar-se
às acomodações pessoais, e, por conseguinte, à acção de cau- de uma forma rígida nos tecidos do organismo. Ora, a vida
sas que só podem fazer sentir a sua influência após o nasci- humana depende de múltiplas condições, complexas e, por
mento . Ora, a educação é uma destas causas. conseguinte, mutáveis; é pois necessário que ela própria mude
Pretendeu-se, é verdade , que a criança herdaria por vezes e se modifique sem cessar. Daí que seja impossível que se
uma tendência mais forte para um acto definido, como o sui- cristalize de uma forma definida e definitiva. Apenas dispo-
cídio, o roubo, o assassínio, a fraude, etc. Mas estas asserções sições muito genéricas, muito vagas, exprimindo caracteres
não estão minimamente de acordo com os factos. Por muito comuns a todas as experiências particulares, podem sobrevi-
que o tenham dito, não se nasce criminoso; ainda menos se ver e passar de uma geração a outra.
está votado, desde o nascimento, a um ou outro género de Dizer que os caracteres inatos são, na sua maioria, muito
crime, o paradoxo dos criminologistas italianos já não conta, genéricos, quer dizer que são muito maleáveis, muito flexí-
hoje em dia, com muitos defensores. O que é herdado é uma veis, uma vez que podem receber determinações muito dife-
certa falta de equilíbrio mental , que toma o indivíduo mais rentes. Entre as virtualidades indecisas que constituem o
refractário a uma conduta ordenada e disciplinada. Mas um homem no momento em que ele nasce e a personagem muito
tal temperamento não predestina mais um homem para ser um definida em que se deve tomar para desempenhar na socie-
criminoso do que um explorador apaixonado por aventuras, dade um papel útil, a distância é pois considerável. É esta dis-
um profeta, um inovador político, um inventor, etc. Podemos tância que a educação deve fazer percorrer à criança. Vemos
dizer o mesmo de todas as aptidões profissionais. Como que um vasto campo está aberto à sua acção.
salienta Bain, «O filho de um grande filólogo não herda um Mas, para exercer esta acção, terá ela meios suficiente-
único vocábulo; o filho de um grande viajante pode, na escola, mente enérgicos?
ser ultrapassado em geografia pelo filho de um mineiro». Para dar uma ideia do que constitui a acção educativa e
O que a criança recebe dos seus pais são faculdades muito mostrar a sua força, um psicólogo contemporâneo , Guyau,

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL

comparou-a à sugestão hipnótica; e a relação não deixa de ter hipnótica. Se, então, a acção educativa tem, mesmo em menor
fundamento. grau, uma eficácia análoga, é permitido esperar mais dela,
A sugestão hipnótica supõe, com efeito, as duas condições desde que nos saibamos servir dela convenientemente. Longe
seguintes: 1.0 O estado em que se encontra o sujeito hipnoti- de ficarmos desencorajados pela nossa incapacidade, deve-
zado caracteriza-se pela sua excepcional passividade. O espí- mos principalmente sentir-nos assustados com a extensão do
rito está quase reduzido ao estado de tábua rasa; uma espécie nosso poder. Se professores e pais sentissem, de uma forma
de vazio foi criado na consciência; a vontade está como que mais constante, que nada se pode passar diante da criança
paralisada. Por conseguinte, a ideia sugerida, não encontrando sem deixar nela alguma marca, que o moldar do seu espírito
nenhuma ideia contrária, pode instalar-se com um mínimo de e do seu carácter depende destes milhares de pequenas acções
resistência. 2.0 Todavia, como o vazio nunca é absoluto, é insensíveis que se produzem a cada instante e aos quais não
necessário que a ideia sugerida tenha ela própria uma força de prestamos atenção por causa da sua insignificante aparência,
\

acção particular. Para isso, é necessário que o hipnotizador fale como zelariam mais pela sua linguagem e pela sua conduta! ''

num tom de comando, com autoridade. É preciso que diga: Seguramente, a educação não pode chegar a grandes resulta-
Quero; que indique que a recusa de obedecer não é concebí- dos quando procede por safanões bruscos e intermitentes.
vel, que o acto deverá ser concluído, que a coisa deve ser vista Como diz Herbart, não é admoestando a criança com vee-
como ele a mostra, que não pode ser de outra forma. Se fra- mência de tempos a tempos que se pode agir fortemente sobre
queja, vemos o sujeito hesitar, resistir, por vezes recusar-se ela. Mas quando a educação é paciente e contínua, quando
mesmo a obedecer. Se entra em discussão, é por causa do seu não procura os sucessos imediatos e aparentes, inas prosse-
poder. Quanto mais a sugestão vai contra o temperamento natu- gue lentamente num sentido bem determinado , sem se deixar
ral do hipnotizado, mais o tom imperativo será indispensável. desviar por incidentes exteriores e circunstâncias estranhas,
Ora, estas duas questões encontram-se nas relações que dispõe de todos os meios necessários para marcar profunda-
o educador sustenta com a criança submetida à sua acção: mente as almas.
1.0 A criança está naturalmente num estado de passividade Ao mesmo tempo vemos qual é a força essencial da acção
completamente comparável àquele em que o hipnotizado se educativa. O que faz a influência do hipnotizador é a autori-
encontra artificialmente colocado. A sua consciência não con- dade que tem sobre os circunstantes. Por analogia, podemos
tém ainda mais do que um pequeno número de representações dizer que a educação deve ser, essencialmente, objecto de
capazes de lutar contra aquelas que lhe são sugeridas; a sua autoridade. Esta importante proposição pode, aliás, ser esta-
vontade é ainda rudimentar. É também facilmente sugestioná- belecida directamente. Com efeito, vimos que a: educação tem
vel. Pela mesma razão, está muito acessível ao contágio do por objectivo sobrepor, ao ser individual e a-social que somos
exemplo, muito inclinada para a imitação; 2.0 O ascendente à nascença, um ser inteiramente novo. Deve levar-nos a ultra-
que o professor tem naturalmente sobre o seu aluno, na sequên- passar a nossa natureza inicial: é através desta condição que"
cia da superioridade da sua experiência e da sua cultura, dará a criança se tomará um homem. Ora, só podemos elevar-nos
naturalmente à sua acção a força eficaz que lhe é necessária. acima de nós mesmos através de um esforço mais ou menos
Esta comparação mostra quanto é necessário que o edu- penoso. Nada é mais falso e enganador que a concepção epi-
cador esteja sereno; porque sabemos toda a força da sugestão curiana da educação, a concepção de um Montaigne, por

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL

exemplo, segundo a qual o homem pode formar-se brincando imperativo com que fala às consciências, o respeito que ins-
e sem outro estímulo que a atracção do prazer. Se a vida não pira às vontades e que as faz inclinar-se desde que começa a
tem nada de obscuro e é criminoso escurecê-la artificialmente falar. Por conseguinte, é indispensável que uma impressão do
aos olhos da criança, é todavia séria e importante, e a educa- mesmo género se liberte da pessoa do professor.
ção, que prepara a vida, deve participar desta importância. Não é necessário demonstrar que a autoridade assim
Para aprender a conter o seu egoísmo natural, a subordinar- entendida nada tem de violento nem de coercivo: consiste
-se a fins mais elevados, a submeter os seus desejos ao domí- inteiramente num certo ascendente moral. Supõe realizadas
nio da sua vontade, a contê-los dentro de limites justos, é no professor duas condições principais. É preciso, primeiro,
preciso que a criança exerça sobre si própria uma forte con- que tenha vontade. Porque a autoridade implica a confiança,
tenção. Ora, nós apenas nos constrangemos, nos violentamos, e a criança não pode confiar em qualquer um que veja hesi-
por uma ou outra destas razões: porque é preciso por uma tar, tergiversar, voltar atrás nas suas decisões . Mas esta pri-
necessidade física, ou porque o devemos fazer moralmente. meira condição não é a mais essencial. O que importa, antes
Mas a criança não pode sentir a necessidade que nos impõem de mais, é que a autoridade que deve mostrar, o professor a
fisicamente estes esforços, porque não está imediatamente em sinta realmente em si. Constitui uma força que ele não pode
contacto com as duras realidades da vida que tomam esta ati- manifestar se não a possuir efectivamente. Ora, de onde pode
tude indispensável. Ainda não está envolvida na luta; apesar ela vir? Será do poder material de que está investido, do
do que Spencer tenha dito, não a podemos deixar exposta às direito que tem de punir e de recompensar? Mas o medo do
rudes reacções das coisas. É preciso que esteja já formada, castigo é uma coisa muito diferente do respeito pela autori-
em grande parte, quando as abordar a sério. Não é pois sob a dade. Só tem valor moral se o castigo for reconhecido como
sua pressão que podemos contar para a determinar a conter justo por aquele que o sofre: o que implica que a autoridade
a sua vontade e a adquirir sobre si própria o domínio neces- que pune é já reconhecida como legítima. O que coloca uma
sário. questão. Não é de trás que o .professor pode trazer a autori-
Resta o dever. O sentimento do dever, eis, com efeito, dade, é de si próprio; ela só pode vir de uma força interior.
qual é para a criança, e mesmo para o adulto, o estímulo por É preciso que ele creia, não em si, sem dúvida, não nas qua-
excelência do esforço . O amor-próprio logo o pressupõe . Por- lidades superiores da sua inteligência ou do seu coração, mas
que, para ser sensível, como convém, às punições e às recom- na sua tarefa e na grandeza da sua tarefa. O que faz a autori-
pensas, é preciso ter já consciência da sua dignidade e, por dade de que é colorida frequentemente a palavra do padre, é
conseguinte, do seu dever. Mas a criança apenas pode conhe- a elevada ideia que ele faz da sua missão; porque fala em
cer o dever através dos seus professores ou dos seus pais; nome de um deus em que acredita, de que se sente mais pró-
apenas pode saber o que é através da forma como lho reve- ximo que a multidão dos profanos. O professor laico pode e
lem, pela sua linguagem e pela sua conduta. É pois conve- deve ter algo deste sentimento. Também ele é a voz de umà:
niente que aqueles sejam, para ela, o dever encarnado e per- grande pessoa moral que o ultrapassa: é a sociedade. Da
sonificado. Quer dizer que a autoridade moral é a qualidade mesma forma que o padre é o intérprete do seu deus, ele é o
mestra do educador. Porque é pela autoridade que tem em si intérprete das grandes ideias morais do seu tempo e dos seu
que o dever é o dever. O que ele tem de sui generis é o tom país. Esteja ele ligado as estas ideias, sinta toda a sua gran-

68 69
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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA

deza, e a autoridade que há nelas e de qu~ tem consciência,


e elas não podem deixar de se comunicar à sua pessoa e a
tudo o que dela emana. Numa autoridade que decorre de fonte
tão impessoal, não será possível entrar nem orgulho, nem vai-
dade, nem pedantismo. É completamente feita do respeito que
tem pelas suas funções e, se assim podemos dizer, pelo seu
ministério. É este respeito que, através do canal da palavra,
do gesto, passa da sua consciência para a consciência da
criança.
Tem-se oposto a liberdade e a autoridade, como se estes
dois factores da educação se contradissessem e se limitassem Capítulo II
um ao outro. Mas esta oposição é artificial. Na realidade, estes
dois termos implicam-se, em vez de se excluírem. A liberdade
é filha da autoridade, evidentemente. Porque ser livre, não é Natureza e método da pedagogia
fazer o que nos apetece; é sermos responsáveis por nós pró-
prios, é sabermos agir pela razão e cumprirmos o nosso dever.
Ora, é justamente para dotar a criança deste domínio de si pró- Têm sido frequentemente confundidas as palavras educa-
pria que a autoridade do professor deve ser exercida. A auto- ção e pedagogia, que exigem, no entanto, ser cuidadosamente
ridade do professor é apenas um aspecto da autoridade do distinguidas.
dever e da razão. A criança deve pois exercitar-se a reconhecê- A educação é a acção exercida sobre as crianças pelos
-la na palavra do educador e a submeter-se ao seu ascendente; pais e pelos professores . Esta acção acontece constantemente
é através desta condição que saberá, mais tarde, encontrá-la e é geral. Não há um instante na vida social, não há mesmo,
na sua consciência e aí se lhe conformar. por assim dizer, um instante ao longo do dia em que as jovens
gerações não estejam em contacto com os seus predecesso-
res, e em que, por conseguinte, não recebam destes últimos a
influência educadora. Porque esta influência não se faz sen-
tir apenas nos instantes muito curtos em que os pais ou os pro-
fessores comunicam conscientemente, e através de um ensi-
namento propriamente dito, os resultados da sua experiência
àqueles que vieram após eles. Há uma educação inconsciente
que nunca pára. Pelo nosso exemplo, pelas palavras que pr~­
nunciamos, pelos actos que realizamos, formamos de uma
maneira contínua a alma das nossas crianças.
Com a pedagogia é completamente diferente. Esta con-
siste, não em acções, mas em teorias. Estas teorias são manei-

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA NATUREZA E MÉTODO DA PEDAGOGIA

ras de conceber a educação, não maneiras de a praticar. Por que o podemos apontar, de qualquer forma, marcar o lugar
vezes, distinguem-se de tal forma das práticas usuais que se que ocupa no conjunto da realidade;
lhes opõem. A pedagogia de Rabelais, a de Rousseau ou a 2.0 É necessário que estes factos apresentem entre si uma
de Pestalozzi, estão em oposição à educação do seu tempo. homogeneidade suficiente para poderem ser classificados
A educação não é pois mais que a matéria da pedagogia. Esta numa mesma categoria. Se forem irredutíveis uns para os
consiste numa certa forma de reflectir nos factos da educação. outros, haverá, não uma ciência, mas tantas ciências diferen-
É o que faz com que a pedagogia, pelo menos no passado, tes como espécies distintas de factos para estudar. Acontece
seja intermitente, enquanto que a educação é contínua. Há com frequência às ciências em vias de nascer e de se consti-
povos que não tiveram pedagogia propriamente dita; ela ape- tuírem abraçarem confusamente Qma pluralidade de objectos
nas aparece numa época relativamente avançada da história. diferentes; é o caso, por exemplo, da geografia, da antropo-
Só a encontramos na Grécia depois da época de Péricles, com logia, etc. Mas nunca passa de uma fase transitória no desen-
Platão, Xenofonte, Aristóteles. Quase não existiu em Roma. volvimento das ciências;
Nas sociedades cristãs, apenas no século XVI produziu obras 3.° Finalmente, a ciência estuda estes factos para os conhe-
importantes; e o desenvolvimento que teve então afrouxou no cer, e apenas para os conhecer, de uma maneira absolutamente
século seguinte, para retomar todo o seu vigor somente no desinteressada. Servimo-nos propositadamente desta palavra
decurso do século XVIII. É que o homem não reflecte sempre, genérica e um pouco vaga conhecer, sem especificar de outro
· mas apenas quando tem necessidade de reflectir, e que as con- modo em que pode consistir o conhecimento dito científico.
dições da reflexão não se encontram sempre e em todo o lado. Pouco importa, com efeito, que o sábio se dedique a consti-
Posto isto, precisamos procurar saber quais são os carac- tuir tipos em vez de descobrir leis, que se entregue à descri-
teres da reflexão pedagógica e dos seus produtos. Deve ver- ção ou que procure explicar. A ciência começa desde que o
-se aí doutrinas realmente científicas e devemos dizer da saber, qualquer que seja, é procurado em si mesmo. Sem
pedagogia que é uma ciência, a ciência da educação? Ou con- dúvida que o sábio tem consciência de que as suas descober-
vém dar-lhe um outro nome, e qual, nesse caso? A natureza tas serão verosimilmente susceptíveis de ser utilizadas. Pode
do método pedagógico será entendida de forma muito dife- mesmo deduzir-se que dirige de preferência as suas investi-
rente, consoante a resposta que dermos a esta questão. gações para um ou outro ponto porque pressente que serão
I.- Que os factos da educação, considerados de um certo assim mais proveitosas, que permitirão satisfazer necessidades
ponto de vista, possam ser o objecto de uma disciplina que urgentes. Mas enquanto se dedica à investigação científica,
apresenta todos os caracteres das outras disciplinas científi- desinteressa-se das consequências práticas. Diz o que é; cons-
cas, é, antes de mais, o que é fácil de demonstrar. tata o que são os factos, e contém-se por aí. Não se preocupa
Com efeito, para que possamos chamar ciência a um con- em saber se as verdades que descobre são agradáveis ou des-
junto de estudos, é necessário e suficiente que apresentem os concertantes, se é bom que as ligações que estabeleceu se
seguintes caracteres: mantenham como estão, ou se antes queria que fossem de
1.0 É necessário que assentem em factos adquiridos, rea- outro modo. O seu papel é exprimir o real, não julgá-lo.
lizados, observáveis. Uma ciência, com efeito, define-se pelo Posto isto, não há razão para que a educação não se torne
seu objecto; supõe, por conseguinte, que esse objecto existe, o objecto de uma investigação que satisfaça todas estas con-

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA NATUREZA E MÉTODO DA PEDAGOGIA

dições e que, por conseguinte, apresente todos os caracteres ideias e em sentimentos deste género que repousam as práti-
de uma ciência. cas educativas. São pois coisas distintas de nós, porque nos
Com efeito, a educação, em uso numa sociedade deter- resistem, realidades que têm por si próprias uma natureza
minada e considerada num momento determinado da sua evo- definida, adquirida, que se nos impõe; por conseguinte, pode
lução, é um conjunto de práticas, de maneiras de fazer, de cos- haver possibilidade de observar, de procurar conhecê-la só
tumes que constituem factos perfeitamente definidos e que com o fim de a conhecer. Por outro lado, todas as práticas
têm a mesma realidade que os outros factos sociais. Não são, educativas, quaisquer que elas sejam, por maiores que sejam
como acreditámos durante muito tempo, combinações mais as diferenças entre si, têm um carácter essencial: resultam
ou menos arbitrárias e artificiais, que apenas devem a sua sempre da acção exercida por uma geração sobre a geração
existência à influência caprichosa de vontades sempre con- seguinte, com vista a adaptá-la ao meio social no qual é cha-
tingentes. Constituem, pelo contrário, verdadeiras instituições mada a viver. São pois, todas elas, modalidades diversas desta
sociais. É impossível fazer com que uma sociedade tenha, relação fundamental. Por conseguinte, são factos de uma
num dado momento, um outro sistema de educação que não mesma espécie, pertencem a uma mesma categoria lógica; I
aquele que está implicado na sua estrutura, da mesma forma podem pois servir de objecto a uma só e mesma ciência, que '
'i
l
que é impossível a um organismo vivo ter outros órgãos e seria a ciência da educação. •I
I
outras funções que não aquelas que estão implicadas na sua Não é impossível indicar desde já, com o único objectivo I

constituição. Se, a todas as razões dadas e apoiadas nesta con- de precisar as ideias, alguns dos principais problemas que esta
cepção, é necessário juntar outras, basta tomar consciência ciência teria de tratar.
da força imperativa com a qual estas práticas se nos impõem. As práticas educativas não são factos isolados uns dos
É inútil acreditarmos que criamos os nossos filhos como que- outros; mas, para uma mesma sociedade, estão ligadas num
remos. Somos forçados a seguir as regras reinantes no meio mesmo sistema em que todas as partes contribuem para um
social em que vivemos. A opinião impõe-no, e a opinião é mesmo fim: é o sistema de educação próprio de um lugar e
uma força moral cujo poder constrangedor não é inferior ao de um tempo. Cada povo tem o seu, como tem o seu sistema
das forças físicas. Os usos aos quais presta a sua autoridade moral, religioso, económico, etc. Mas, por outro lado, os
são por isto mesmo subtraídos, em larga medida, à acção dos povos da mesma espécie, quer dizer, os povos que se asse-
indivíduos. É claro que podemos infringi-los , mas então as melham pelas características essenciais da sua constituição,
forças morais contra as quais nos insurgimos reagirão contra devem praticar sistemas de educação comparáveis entre si.
nós, e é difícil que, devido à sua superioridade, não sejamos As similitudes que apresenta a sua organização geral devem
vencidos por elas. Porque nós podemos perfeitamente revol- necessariamente arrastar outras, da mesma importância, na
tar-nos contra as forças materiais de que dependemos; pode- sua organização educativa. Por conseguinte, podemos certa-
mos tentar viver de outro modo, que não implique a natureza mente, por comparação, libertando as semelhanças e elimi-
do nosso meio físico; mas, então, a morte ou a doença tor- nando as diferenças, constituir os tipos genéricos da educa-
nam-se a sanção da nossa revolta. Da mesma forma, estamos ção que correspondem às diferentes espécies de sociedades.
mergulhados numa atmosfera de ideias e de sentimentos Por exemplo, no regime da tribo, a educação tem por carac-
colectivos que não podemos modificar à vontade; e é em terística essencial ser difusa; é ministrada por todos os mem-

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA NATUREZA E MÉTODO DA PEDAGOGIA

bros do clã indistintamente. Não há professores determinados, des, entre o Estado e a família. Nada de casta sacerdotal. É o
nem responsáveis especializados para a formação dos jovens; Estado que propõe a vida religiosa. Por conseguinte, como
são todos os anciãos, é o conjunto das gerações anteriores não há necessidades especulativas, como está todo orientado
que desempenha este papel. Quando muito, acontece que para para a acção e a prática, é em volta dele, por consequência
alguns ensinamentos particularmente fundamentais, certos também em volta da religião, que a ciência nasce quando a
anciãos são especialmente designados. Noutras sociedades, necessidade se faz sentir. Os filósofos , os sábios da Grécia,
mais avançadas, esta difusão termina, ou pelo menos é ate- são particulares e laicos. A própria ciência tem aí, rapida-
nuada. A educação concentra-se nas mãos de funcionários mente, uma tendência anti-religiosa. De onde resulta que, do
especiais. Na Índia, no Egipto, são os sacerdotes que estão ponto de vista que nos interessa, a instrução, também ela,
encarregues desta função. A educação é um atributo do poder desde que aparece, tem um carácter laico e privado. O «gram- r.
sacerdotal. Ora, esta primeira característica diferencial con- mateus» de Atenas é um simples cidadão, sem ligações ofi- '

duz a outras. Quando a vida religiosa, em vez de se manter ciais e sem carácter religioso. 'I
dispersa como estava na origem, cria um órgão especial É inútil multiplicar estes exemplos, que apenas têm um i
encarregado de a dirigir e administrar, quer dizer, quando se interesse ilustrativo. São suficientes para mostrar como, com- Ir
i
forma uma classe ou uma casta sacerdotal, o que há de ver- parando as sociedades do mesmo género, poderemos consti-
dadeiramente especulativo e intelectual na religião tem um tuir tipos de educação, da mesma forma que constituímos
desenvolvimento até então desconhecido. Foi nestes meios tipos de família; de Estado ou de religião. Esta classificação
sacerdotais que apareceram os primeiros pródromos, as for- não colocará, aliás, os problemas científicos que se podem
mas primordiais e rudimentares da ciência: astronomia, mate- colocar ao tema da educação; limita-se a fornecer os ele-
mática, cosmologia. É um facto que Comte há muito salien- mentos necessários para resolver um outro, mais importante.
tou e que se explica facilmente. É perfeitamente natural que Uma vez estabelecidos os tipos, haverá que explicá-los, quer
uma organização que tem por efeito concentrar num grupo dizer, procurar de que condições dependem as propriedades
restrito tudo o que existe então de vida especulativa, estimule características de cada um deles, e como é que saíram uns dos
e desenvolva esta última. Por conseguinte, a educação não se outros. Obter-se-iam assim as leis que dominam a evolução
limita, como no princípio, a inculcar práticas à criança, a pre- dos sistemas de educação. Poderemos aperceber então em que
pará-la para certas maneiras de agir. Há desde logo matéria sentido a educação se desenvolveu, quais são as causas que
para uma certa instrução. O sacerdote ensina os elementos determinaram este desenvolvimento e que o justificam. Ques-
destas ciências que estão a formar-se. Só que esta instrução, tão completamente teórica, seguramente, mas cuja solução,
estes conhecimentos especulativos, não são ensinados por si entrevemo-lo facilmente, será fecunda em aplicações práticas.
mesmos, mas em função das relações que têm com as cren- Eis já um vasto campo de estudos aberto à especulação
ças religiosas; têm um carácter sagrado, estão cheias de ele- científica. E, porém, há ainda outros problemas que poderiam
mentos verdadeiramente religiosos, porque se formaram no ser abordados no mesmo espírito. Tudo o que temos vindo a
próprio seio da religião e são inseparáveis dela. Noutras dizer tem a ver com o passado; tais investigações teriam por
regiões, como as cidades gregas e latinas, a educação conti- resultado fazer-nos compreender de que maneira se consti-
nua repartida, segundo uma proporção, variável com as cida- tuíram as nossas instituições pedagógicas. Mas podem ser

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA NATUREZA E MÉTODO DA PEDAGOGIA

consideradas de outro ponto de vista. Uma vez formadas, mos métodos. O seu objectivo não é descrever nem explicar o
funcionam, e poderíamos investigar de que modo funcionam, que é ou o que foi, mas determinar o que deve ser. Não são
quer dizer, que resultados produzem e quais são as condições orientadas nem para o presente, nem para o passado, mas para
que fazem variar estes resultados. Para isso, seria necessária o futuro . Não se propõem exprimir fielmente as realidades
uma boa estatística escolar. Em cada escola há uma disci- dadas, mas promulgar preceitos de conduta. Não nos dizem:
plina, um sistema de castigos e de recompensas. Como seria eis o que existe e porquê, mas antes o que é necessário fazer.
interessante saber, não apenas sob a forma de impressões Da mesma forma, os teóricos da educação falam geralmente
empíricas, mas através de observações metódicas, de que das práticas tradicionais do presente e do passado com um des-
modo funciona este sistema nas diferentes escolas de uma dém quase sistemático. Assinalam sobretudo as imperfeições.
localidade, nas diferentes regiões, nos diferentes momentos Quase todos os grandes pedagogos, Rabelais, Montaigne ,
do ano, nos diferentes momentos do dia; quais são os deli- Rousseau, Pestalozzi, são espíritos revolucionários, insurgidos
tos escolares mais frequentes; como varia a sua proporção no contra os usos dos seus contemporâneos. Apenas mencionam ·~
conjunto do território, ou segundo as regiões, como depende os sistemas antigos ou existentes para os condenar, para decla-
da idade da criança, do seu estado familiar, etc.! Todas as rar que não têm fundamento na natureza. Fazem mais ou !\;I
questões que se colocam a propósito dos delitos do adulto, menos completamente tábua rasa do que os precedeu e entre- li

podem colocar-se aqui com não menor utilidade. Há uma cri- gam-se à construção de qualquer coisa inteiramente nova.
minologia da criança, como há uma criminologia do homem Se, pois , queremos entender-nos, é preciso distinguir com
feito. E a disciplina não é a única instituição educativa que cuidado estas duas formas tão diferentes de especulação .
poderá ser estudada segundo este método . Não há método A pedagogia não é a mesma coisa que a ciência da educação.
pedagógico cujos efeitos não possam ser medidos da mesma Mas então é o quê? Para fazer uma escolha consciente, não nos
forma, supondo, bem entendido, que o instrumento necessá- basta saber o que não é, precisamos de saber em que consiste.
rio para um tal estudo, quer dizer, uma boa estatística, tenha Diremos que é uma arte? A conclusão parece impor-se;
sido instituído. porque geralmente não vemos intermediário entre estes dois
II. - Eis assim dois grupos de problemas cujo carácter extremos e damos o nome de arte a qualquer produto da refle-
puramente científico não pode ser contestado. Uns estão rela- xão que não é ciência. Mas isso é entender o sentido da pala-
cionados com a génese, os outros com o funcionamento dos vra arte ao ponto de aí incluir coisas muito diferentes.
sistemas de educação. Em todas as investigações, trata-se Com efeito, chama-se igualmente arte à experiência prá-
simplesmente de descrever coisas presentes ou passadas, ou tica adquirida pelo professor primário no contacto com as
de procurar as causas, ou de lhes determinar os efeitos . Cons- crianças e no exercício da sua profissão. Ora, esta experiên-
tituem uma ciência; eis o que é, ou melhor, eis o que será a cia é manifestamente uma coisa muito diferente das teorias
ciência da educação. do pedagogo. Um facto de observação corrente toma muit€>
Mas do próprio esboço que acabamos de traçar sobressai sensível esta diferença. Pode ser-se um perfeito educador e
com evidência que as teorias a que chamamos pedagógicas são no entanto ser completamente incapaz para as especulações
especulações de um género completamente diferente. Com da pedagogia. O professor hábil sabe fazer o que faz , sem
efeito, nem têm um mesmo objectivo, nem empregam os mes- poder sempre justificar as razões que justificam os procedi-

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA NATUREZA E MÉTODO DA PEDAGOGIA

mentos que emprega; inversamente, ao pedagogo pode faltar de agir sobre as coisas ou sobre os seres segundo modos
qualquer habilidade prática; não confiaríamos uma aula nem determinados, reflectimos sobre os procedimentos de acção
a Rousseau nem a Montaigne. Mesmo Pestalozzi, que toda- que são assim empregues, tendo em vista, não conhecê-los e
via era um homem do ofício, podemos dizer que apenas muito explicá-los, mas apreciar o que valem, se são o que devem
incompletamente devia possuir a arte do educador, como o ser, se não é útil modificá-los e de que maneira, e mesmo
provam os seus repetidos insucessos. A mesma confusão se substituí-los totalmente por procedimentos novos. Estas refle-
encontra noutros domínios. Chamamos arte à habilidade do xões tomam a forma de teorias; são combinações de ideias ,
homem de Estado, especialista em tratar dos assuntos públi- não combinações de actos, e, por isso, aproximam-se da ciên-
cos. Mas dizemos também que os escritos de Platão, de Aris- cia. Mas as ideias que são assim combinadas têm por objecto,
tóteles, de Rousseau, são tratados de arte política; e é certo não exprimir a natureza das coisas dadas, mas sim dirigir a
que não podemos ver neles obras verdadeiramente científicas, acção. Não são movimentos, mas estão próximas do movi-
pois que o seu objecto não é estudar o real, mas construir um mento, que têm por função orientar. Se não são acções, são, I
ideal. E, no entanto, existe um abismo entre os esforços men- pelo menos, programas de acção, e, por isso, aproximam-se
r
tais que implica um livro como o Contrato Social e aqueles da arte. Tais são as teorias médicas, políticas, estratégicas, 'i
que supõe a administração do Estado; Rousseau teria sido ao etc. Para exprimir o carácter misto destes tipos de especula- 'i

que parece tão mau ministro como mau educador. É também ção, propomos chamar-lhes teorias práticas. A pedagogia é
assim que os melhores teóricos das coisas médicas não são, uma teoria prática deste género. Não estuda cientificamente
naturalmente, os· melhores clínicos. os sistemas de educação, mas reflecte tendo em vista forne-
Há pois interesse em não designar por uma mesma pala- cer à actividade do educador ideias que o orientem.
vra duas formas de actividade tão diferentes. É preciso, cre- III. - Mas a pedagogia assim entendida expõe-se a uma
mos, reservar o nome arte para tudo o que é prática pura sem objecção cuja gravidade não podemos dissimular. Sem
teoria. É assim que todos nos entendemos quando se fala da dúvida, dizemos, uma teoria prática é possível e legítima
arte do soldado, da arte do advogado, da arte do professor pri- quando se pode apoiar numa ciência constituída e incontes-
mário. Uma arte é um sistema de maneiras de fazer que se tada da qual não é mais do que a aplicação. Neste caso, com
ajustam a fins especiais e que são o produto, quer de uma efeito, as noções teóricas de que são deduzidas as conse-
experiência tradicional comunicada pela educação, quer da quências práticas têm um valor científico que se comunica às
experiência pessoal do indivíduo. Apenas podemos adquiri- conclusões que tiramos. É assim que a química aplicada é
-las colocando-nos em contacto com as coisas sobre as quais uma teoria prática que não é mais do que a execução das teo-
se deve exercer a acção e agindo por nós próprios. Sem rias da química pura. Mas uma teoria prática vale tanto quanto
dúvida que se pode admitir que a arte seja esclarecida pela as ciências às quais vai buscar as suas noções fundamentais.
reflexão, mas a reflexão não é um elemento essencial para ela, Ora, em que ciências se pode a pedagogia apoiar? Deverá
porque pode existir sem ela. Do mesmo modo, não existe uma começar pela ciência da educação. Porque, para saber o que
única arte onde tudo seja reflectido. a educação deve ser, será necessário antes de mais saber qual
Mas entre a arte assim definida e a ciência propriamente a sua natureza, quais as condições diversas de que depende,
dita, há lugar para uma atitude mental intermediária. Em vez as leis segundo as quais evoluiu na história. Mas a ciência da

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educação apenas existe em estado de projecto. Restam, por não pode ter sucesso. Nada é tão vão como as tentativas para
um lado, os outros ramos da sociologia que poderão ajudar a dar uma vida artificial e uma autoridade aparente a institui-
pedagogia a fixar o objectivo da educação com a orientação ções envelhecidas e desacreditadas. O fracasso é inevitável.
geral dos métodos; por outro, a psicologia cujos ensinamen- Não podemos abafar as ideias que estas instituições contradi-
tos poderão ser muito úteis para a determinação, detalhada, zem; não podemos mandar calar as necessidades que melin-
dos procedimentos pedagógicos. Mas a sociologia é uma ciên- dram. As forças contra as quais empreendemos lutar não
cia que acaba de nascer; conta apenas com muito poucas pro- podem deixar de ter algo superior.
posições estabelecidas, se é que as tem. A própria psicologia, Devemos, pois, meter corajosamente mãos à obra, pro-
ainda que se tenha constituído antes das ciências sociais, é curar as mudanças que se impõem e realizá-las'. Mas como
objecto de todo o género de controvérsias; não há questões descobri-las sem a reflexão? Apenas a consciência reflexiva
psicológicas sobre as quais não se mantenham ainda as teses pode suplantar as lacunas da tradição, quando esta falta. Ora,
mais opostas. Assim, que podem valer as conclusões práticas que é a pedagogia senão a reflexão aplicada o mais metodi-
que assentam em dados científicos ao mesmo tempo tão incer- camente possível às questões da educação, tendo em vista
tos e tão incompletos? Que pode valer uma especulação peda- regular o seu desenvolvimento? Sem dúvida que não temos
gógica a que faltam todas as bases, ou cujas bases, quando entre mãos todos os elementos que seriam desejáveis para
não estão totalmente ausentes, não têm solidez suficiente? resolver o problema; mas isso não é razão para não tentar
O facto que assim evocamos para recusar qualquer crédito resolvê-lo, uma vez que precisa de ser resolvido. Não há, pois,
à pedagogia é, em si mesmo, incontestável. É verdade que a outra coisa a fazer que não seja coligir o mais possível os fac-
ciência da educação está muito mais avançada do que a socio- tos instrutivos que temos , interpretá-los com o máximo de
logia e a psicologia. Se, pois, nos fosse permitido esperar, seria método que aí pudermos colocar, a fim de reduzir ao mínimo
prudente e metódico ter paciência até que estas ciências ti ves- as possibilidades de erro. É este o papel do pedagogo. Nada
sem feito progressos e pudessem ser utilizadas com mais segu- é tão vão e estéril como esse puritanismo científico que, sob
rança. Mas o que acontece, precisamente, é que a paciência o pretexto de que a ciência não está feita, aconselha a abs-
não nos é permitida. Não somos livres de nos colocar o pro- tenção e recomenda aos homens que assistam como testemu-
blema ou de adiá-lo: ele é-nos posto, ou mais ainda imposto, nhas indiferentes, ou pelo menos resignadas , à marcha dos
pelas próprias coisas, pelos factos, pela necessidade de viver. acontecimentos. Ao lado do sofisma da ignorância, há o
A questão não está completa. Embarcámos e é preciso seguir sofisma da ciência que não é menos perigoso. Sem dúvida,
em frente. Em muitos pontos, o nosso sistema tradicional de ao agirmos nestas condições , corremos riscos. Mas a acção
educação não está em harmonia com as nossas ideias e com implica sempre riscos; a ciência, por mais avançada que possa
as nossas necessidades. Não temos escolha senão entre os dois estar, não saberá suprimi-los. Tudo o que nos podem pedir é
seguintes partidos: ou tentar manter as práticas que o passado para colocar quanto temos de ciência, por imperfeita que seja,
nos legou, ainda que não respondam às exigências da situa- e quanto temos de consciência, a prevenir estes riscos. E é
ção, ou empreender resolutamente a tarefa de restabelecer a precisamente nisto que consiste o papel da pedagogia.
harmonia perturbada procurando as modificações necessárias . Mas a pedagogia não será somente útil nestes períodos
Entre estes dois partidos, o primeiro é irrealizável e o segundo críticos em que é preciso, com toda a urgência, colocar um

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA NATUREZA E MÉTODO DA PEDAGOGIA

sistema escolar em harmonia com as necessidades da época; educador se dá conta dos métodos que emprega, do seu objec-
hoje, pelo menos, tomou-se um auxiliar constantemente indis- tivo e da sua razão de ser, encontra-se em estado de os julgar
pensável para a educação. e, por conseguinte, pronto a modificá-los se se convencer de
É que, com efeito, se a arte do educador é feita, antes de que o objectivo a atingir não é mais o mesmo ou que os meios
mais, de instintos e hábitos tomados quase instintivos, é a empregar devem ser diferentes. A reflexão é, por excelên-
porém necessário que a inteligência não se retire daí. Poderá cia, a força antagonista da rotina, e a rotina é o obstáculo aos
parecer que a reflexão não tem aí lugar, mas ela não poderá progressos necessários.
passar sem a reflexão, pelo menos a partir do momento em É por isso que, se é verdade, como dissemos no princí-
que os povos atingiram um certo grau de civilização. Com pio, que a pedagogia apenas aparece na história de uma
efeito, uma vez que a personalidade individual se tomou um maneira intermitente, é preciso todavia acrescentar que tende
elemento essencial da cultura intelectual e moral da humani- cada vez mais a tomar-se uma força contínua da vida social.
dade, o educador deve ter em conta o embrião de individua- A Idade Média não precisava dela. Era uma época de con-
lidade que há em cada criança. Deve, por todos os meios pos- formismo em que todos pensavam ou sentiam da mesma ti
síveis, procurar favorecer o seu desenvolvimento. Em vez de maneira, em que todos os espíritos eram como que fundidos )i
aplicar a todos, de uma forma invariável, a mesma regula- no mesmo molde, em que os dissidentes individuais eram
I'

mentação impessoal e uniforme, deverá, pelo contrário, diver- i'


raros, e aliás proscritos. Assim, a educação era impessoal; o ,j
sificar os métodos segundo os temperamentos e as caracte- professor, nas escolas medievais, dirigia-se colectivamente a
rísticas próprias de cada inteligência. Mas, para poder todos os seus alunos sem que tivesse a ideia de adequar a sua
acomodar com discernimento as práticas educativas à varie- acção à natureza de cada um. Ao mesmo tempo, a imutabi-
dade de casos particulares, é necessário saber para onde é que lidade das crenças fundamentais opunha-se a que o sistema
tendem, quais são as razões dos diferentes procedimentos que educativo evoluísse muito rapidamente. Por estas duas
os constituem, os efeitos que produzem nas diversas circuns- razões, este tinha menos necessidade de ser guiado pelo pen-
tâncias; é necessário, numa palavra, tê-los submetido à refle- samento pedagógico. Mas, no Renascimento, tudo muda: as
xão pedagógica. Uma educação empírica, maquinal, não pode personalidades individuais desligam-se da massa social ohde
deixar de ser compressiva e niveladora. Por outro lado, à estavam, até aí, absorvidas e confundidas; os espíritos diver-
medida que avançamos na história, a evolução social toma- sificam-se; ao mesmo tempo , o desenvolvimento histórico
-se mais rápida; uma época não se assemelha àquela que a acelera; uma nova civilização se constitui. Para responder a
precedeu; cada tempo tem a sua fisionomia. Novas necessi- todas estas mudanças, a reflexão pedagógica acorda e, ainda
dades e novas ideias surgem sem cessar; para poder responder que não venha a brilhar sempre com a mesma claridade, não
às mudanças incessantes que surgem assim nas opiniões e nos mais se extinguirá por completo.
costumes, é preciso que a própria educação mude, e, por con- IV.- Mas, para que a reflexão pedagógica possa produ~
seguinte, fique num estado de maleabilidade que permita a zir os efeitos úteis que temos o direito de esperar dela, é pre-
mudança. Ora, o único meio de a impedir de cair sob o jugo ciso que seja submetida a uma cultura apropriada.
do hábito e degenerar em automatismo maquinal e imutável, 1.0 Vimos que a pedagogia não é o mesmo que educação
é mantê-la sempre na expectativa pela reflexão. Quando o e que não saberia ocupar o seu papel. O seu papel não é subs-

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t iNfVEK5iDADE f':DERAL DO PAf_.,
f.~l8.tJüTEC/~ Cttfffu\t
EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA NATUREZA E MÉTODO DA PEDAGOGIA

tituir-se à prática, mas guiá-la, clarificá-la, ajudá-la, em caso 2. 0 Mas este sistema escolar não é feito unicamente de
de necessidade, a preencher as lacunas que venham a surgir, a práticas estabelecidas, de métodos consagrados pelo uso,
remediar as insuficiências que sejam constatadas. O pedagogo herança do passado. Encontra-se nele, além disso, tendências
não tem, pois, que construir com todas as suas peças um sis- para o futuro, aspirações com vista a um novo ideal, mais ou
tema de ensino, como se ele não existisse já antes de si; mas é menos claramente entrevisto. Estas aspirações, importa
preciso, pelo contrário, que se aplique, antes de mais, a conhe- conhecê-las bem para poder decidir que lugar lhes convém
cer e a compreender o sistema do seu tempo; é com esta con- dar na realidade escolar. Ora, elas vêm exprimir-se nas dou-
dição que estará habilitado a servir-se dele com discernimento trinas pedagógicas; a história destas doutrinas deve pois com-
e a julgar o que aí possa encontrar de defeituoso. pletar a do ensino.
Mas, para poder compreendê-lo, não basta considerá-lo Pode crer-se, é verdade, que para atingir um fim útil, esta
tal como é hoje, porque este sistema de educação é um pro- história não precise de ir até muito longe no passado e pode,
duto da história que só a história pode explicar. É uma ver- sem inconveniente, ser muito curta. Não basta conhecer as
dadeira instituição social. Além disso é aqui que toda a histó- teorias entre as quais se dividem os espíritos dos contempo-
ria do país vem integralmente ressoar. As escolas francesas râneos? Todas as outras, as dos séculos anteriores, estão hoje
traduzem, exprimem o espírito francês. Não podemos, pois, ultrapassadas e não têm mais, parece, que um interesse de
entender para que são, o fim a que aspiram, se não soubermos erudição.
o que constitui o nosso espírito nacional, quais são os seus Mas este modernismo apenas pode, cremos, rarefazer
diversos elementos, quais os que dependem de causas per- uma das principais fontes nas quais a reflexão pedagógica se
manentes e profundas, e aqueles, pelo contrário, que se devem deve alimentar.
à acção de factores mais ou menos acidentais e passageiros: Com efeito, as doutrinas mais recentes não nasceram
tudo questões que apenas a análise histórica pode resolver. ontem; são a sequência daquelas que as precederam, sem as
Discute-se frequentemente que lugar deve ter a escola primá- quais, por consequência, não podem ser compreendidas; e
ria no conjunto da nossa organização escolar e na vida geral assim, pouco a pouco, para descobrir as causas determinan-
da sociedade. Mas o problema é insolúvel se ignorarmos tes de uma corrente pedagógica de qualquer importância, é
como é formada a nossa organização escolar, de .onde vêm os preciso geralmente andar muito para trás. É aliás através desta
seus caracteres distintivos, o que determinou, no passado, o condição que teremos alguma segurança de que as novas
lugar que foi dado à escola básica, quais as causas que favo- perspectivas que mais apaixonam os espíritos não são apenas
receram ou entravaram o seu desenvolvimento, etc. brilhantes improvisações, destinadas a cair rapidamente no
Assim, a história do ensino, pelo menos do ensino nacio- esquecimento. Por exemplo, para poder compreender a ten-
nal, é a primeira das propedêuticas para uma cultura pedagó- dência actual para o ensino pelas coisas, a que se pode cha-
gica. Naturalmente, se é de pedagogia primária que se trata, mar o realismo pedagógico, não basta limitar-se a ver comô
é a conhecer a história do ensino primário que de preferência é que ela se exprime neste ou naquele contemporâneo; é pre-
nos dedicamos. Mas, pela razão que acabamos de indicar, este ciso recuar até ao momento em que nasceu, quer dizer, a mea-
não pode ser desligado completamente do sistema escolar dos do século XVIII, em França, e até ao fim do século XVII,
mais vasto do qual é apenas uma parte. nalguns países protestantes. Apenas por se encontrar assim

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA NATUREZA E MÉTODO DA PEDAGOGIA

ligada às suas origens primordiais, a pedagogia realista apre- coisas existente não é realizável, porque não tem raízes na
sentar-se-á com um aspecto completamente diferente; melhor realidade. Aliás, é claro que o passado tinha as suas razões de
nos daremos conta que tem causas profundas, impessoais, ser; não teria podido perdurar se não tivesse respondido a
laboriosas, em todos os povos da Europa. E, ao mesmo necessidades legítimas que não poderiam desaparecer total-
tempo, estaremos em melhores condições para perceber quais mente de um dia para o outro; não se pode pois fazer dele tão
são estas causas, e, por conseguinte, para ajuizar do verda- radicalmente tábua rasa sem conhecer as suas necessidades
deiro alcance deste movimento. Mas, por outro lado, esta cor- vitais. Eis a razão pela qual a pedagogia não tem sido fre-
rente pedagógica constitui-se em oposição a uma corrente quentemente mais do que uma forma de literatura utópica.
contrária, a do ensino humanista e livresco. Não se poderá, Lastimamos as crianças a quem fossem aplicados rigorosa-
pois, apreciar sensatamente a primeira sem conhecer também mente os métodos de Rousseau ou de Pestalozzi. Sem dúvida
a segunda; e eis-nos obrigados a retroceder bem para trás na que essas utopias puderam desempenhar um papel útil na his-
história. Esta história da pedagogia, para dar todos os seus tória. O seu próprio simplismo permitiu-lhes tocar mais viva-
frutos, não deve, aliás, ser separada da história do ensino. mente os espíritos e estimulá-los para a acção. Mas, para
Ainda que as tenhamos distinguido na exposição, são, na rea- começar, estas vantagens não deixam de ter inconvenientes;
lidade, solidárias uma com a outra. Porque, em cada para mais, para esta pedagogia de todos os dias, de que cada
momento, as doutrinas dependem do estado do ensino, que professor tem necessidade para esclarecer e guiar a sua prá-
reflectem então, mesmo que reagindo contra ele, e, por outro tica quotidiana, é preciso menos arrebatamento passional e
lado, na medida em que exercem uma acção eficaz, contri- unilateral, e, pelo contrário, mais método, um sentimento mais
buem para o determinar. presente da realidade e das dificuldades múltiplas às quais é
A cultura pedagógica deve, pois, ter uma base amplamente necessário fazer face. É este sentimento que dará uma cultura
histórica. É através desta condição que a pedagogia poderá histórica bem entendida.
escapar a uma censura que lhe tem sido feita frequentemente 3.0 Só a história do ensino e da pedagogia permite deter-
e que prejudicou em muito o seu crédito. Demasiados peda- minar os fins que a educação deve seguir em cada momento.
gogos, e entre os mais ilustres, edificaram os seus sistemas Mas, para quem demanda os meios necessários para a reali-
abstraindo-se do que tinha existido antes deles. O tratamento zação destes fins, é na psicologia que os deve procurar.
a que Ponócrates submete Gargântua antes de o iniciar nos Com efeito, o ideal pedagógico de uma época exprime
novos métodos é, neste ponto, significativo: purga-lhe o cére- antes de mais o estado da sociedade na época considerada.
bro «com éléboré d'Anticyre» de modo a fazê-lo esquecer Mas, para que este ideal se tome uma realidade, ainda falta
«tudo o que tinha aprendido com os seus antigos preceptores». adequar-lhe a consciência da criança. Ora, a consciência tem
Quer dizer, sob uma forma alegórica, que a nova pedagogia as suas leis próprias que é preciso conhecer para as poder
não deve ter nada em comum com a que a precedeu. Mas isso modificar, se, pelo menos, se pretende evitar, tanto quanto pos-
é, de uma só vez, colocar-se de costas para as condições do sível, os ensaios empíricos que a pedagogia tem precisamente
real. O futuro não pode ser evocado a partir do nada: só pode- por objectivo reduzir ao mínimo. Para poder estimular a acti-
mos construí-lo com os materiais que nos foram legados pelo vidade a desenvolver-se numa certa direcção, é preciso ainda
passado. Um ideal que se constrói em contrapé ao estado de saber quais são os meios que a movem e qual a sua natureza;

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA NATUREZA E MÉTODO DA PEDAGOGIA

porque é nesta condição que será possível aplicar-lhe, com bater alguns, e de utilizar os outros. Seguramente, esta ciên-
conhecimento de causa, a acção que convém. Trata-se, por cia está ainda na infância. Todavia, tem, até agora, um certo
exemplo, de despertar ou o amor da pátria ou o sentimento da número de proposições que importa não ignorar.
humanidade? Saberemos tanto melhor moldar a sensibilidade São estas as principais disciplinas que podem despertar e
moral dos alunos num ou noutro sentido, quanto tivermos cultivar a reflexão pedagógica. Em vez de procurar decretar,
noções mais completas e mais precisas acerca do conjunto dos para a pedagogia, um código abstracto de regras metodológi-
fenómenos a que chamamos tendências, hábitos, desejos, emo- cas- tarefa que, num modo de especulação tão compósita e
ções, etc., acerca das condições diversas de que dependem, tão complexa, não é de modo algum realizável de forma satis-
acerca da forma que apresentam na criança. Conforme virmos fatória - pareceu-nos preferível indicar de que maneira o
nas tendências um produto de experiências agradáveis ou pedagogo nos parece dever ser formado. Uma certa atitude
desagradáveis que possam ter influenciado o comportamento, de espírito em face dos problemas que lhe competem resol-
ou antes, pelo contrário, um facto primitivo anterior aos esta- ver encontra-se, por ela mesma, determinada.
dos afectivos que acompanham o funcionamento, deveremos
utilizar maneiras muito diferentes para regular o seu funcio-
namento. Ora, é à psicologia e, mais especificamente, à psi-
cologia infantil que compete resolver estas questões. Se ela é,
então, incapaz para fixar o fim -pois que o fim varia con-
soante os estados sociais - não há dúvida de que não tem um
papel útil a desempenhar na constituição dos métodos. Aliás,
como nenhum método se pode aplicar da mesma forrria às
diferentes crianças, é ainda a psicologia que deverá ajudar-nos
a reconhecermo-nos no meio da diversidade de inteligências
e de caracteres. Sabemos, infelizmente, que nos encontramos
ainda longe do momento em que esteja verdadeiramente em
estado de nos satisfazer neste desideratum.
Há uma forma especial da psicologia que tem para o
pedagogo uma importância muito particular: é a psicologia
colectiva. Uma turma, com efeito, é uma pequena sociedade,
e não se deve conduzi-la como se não fosse mais do que um
mero aglomerado de indivíduos independentes uns dos
outros. As crianças, numa turma, pensam, sentem e agem de
modo diferente do que quando estão isoladas. Produzem-se
numa turma fenómenos de contágio, de desmoralização
colectiva, de superexcitação mútua, de efervescência salutar,
que é necessário saber discernir a fim de prevenir ou de com-

90 91
Capítulo III

Pedagogia e sociologia

Meus senhores,

É para mim uma grande honra, e de que sinto vivamente


todo o valor, substituir nesta cátedra o homem de alta razão
e de firme vontade a quem a França deve, em larga medida,
a renovação do seu ensino primário . Em contacto íntimo com
os professores das nossas escolas desde que há quinze anos
professo a pedagogia na Universidade de Bordéus, pude ver
de perto a obra à qual o nome do Sr. Buisson continuará defi-
nitivamente ligado e de que conheço, por conseguinte, toda a
grandeza . Principalmente quando nos lembramos do estado
em que se encontrava este ensino no momento em que foi
empreendida a reforma, é impossível não admirar a impor-
tância dos resultados obtidos e a rapidez dos progressos con-
seguidos. As escolas multiplicadas e materialmente transfor-
madas , os métodos racionais substituindo as velhas rotinas de
outrora, um verdadeiro impulso dado à reflexão pedagógica,
uma estimulação geral de todas as iniciativas, tudo isto cons-
titui certamente uma das maiores e mais felizes revoluções
que foram produzidas na história da nossa educação nacio-

93
EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

nal. Foi, pois, para a ciência uma enorme fortuna quando o lhe dos factos e que se vê como aplicá-lo. Mas o que é pos-
Sr. Buisson, julgando concluída a sua tarefa, renunciou às sível desde já, é dar-vos uma ideia do conjunto; indicar-vos
suas absorventes funções para comunicar ao público, pela via as principais razões que o devem fazer aceitar, desde o início
do ensino, os resultados da sua incomparável experiência. da investigação, a título de presunção provisória e sob reserva
Uma prática tão ampla das coisas, esclarecida aliás por uma das verificações necessárias; é, enfim, marcar a sua impor-
profunda filosofia, ao mesmo tempo prudente e curiosa com tância ao mesmo tempo que os seus limites, e este será o
todas as novidades, devia necessariamente dar à sua palavra objecto desta primeira lição.
uma autoridade que viesse ainda realçar o prestígio moral
ligado à sua pessoa e a recordação dos serviços prestados em
todas as grandes causas a que o Sr. Buisson consagrou a sua I
vida.
Não vos trago nada que se assemelhe a uma tão particu- É tanto mais necessário chamar desde já a vossa atenção
lar competência. E teria oportunidade de me sentir assustado para este axioma fundamental, na medida em que ele é geral-
diante das dificuldades da minha tarefa, se não me tranquili- mente ignorado. Até estes últimos anos - e as excepções
zasse um pouco pensar que problemas tão complexos podem podem ainda ser contadas e) -
os pedagogos modernos esta-
ser utilmente estudados por espíritos diferentes e de pontos vam quase unanimemente de acordo em ver na educação uma
de vista diferentes . Sociólogo que sou, será principalmente coisa eminentemente individual e fazer, por conseguinte, da
enquanto sociólogo que vos falarei de educação. Aliás, longe pedagogia um corolário imediato e directo apenas da psico-
de ao procedermos assim nos expormos a ver e a mostrar as logia. Para Kant como para Mill, para Herbart como para
coisas por um prisma que as deforme, estou convicto, pelo Spencer, a educação teria antes de mais por objecto realizar,
contrário, do que não há método mais apto a colocar em evi- em cada indivíduo, mas elevando-os ao máximo da perfeição,
dência a sua verdadeira natureza. Considero, com efeito, os atributos constitutivos da espécie humana em geral. Colo-
como o próprio postulado de toda a especulação pedagógica, cava-se como uma verdade evidente que há uma educação, e
que a educação é uma coisa eminentemente social, quer pelas uma só, que, por exclusão de qualquer outra, convém indife-
suas origens, quer pelas suas funções, e que, por conseguinte, rentemente a todos os homens, quaisquer que sejam as con-
a pedagogia depende mais estreitamente da sociologia do que dições históricas e sociais de que dependam, e é este ideal
de qualquer outra ciência. E porque esta ideia domina todo o abstracto e único que os teóricos da educação se propunham
meu ensino, como dominava já o ensino similar que eu minis- determinar. Admitia-se que há uma natureza humana, cujas
trava recentemente numa outra universidade, pareceu-me que
convinha empregar este primeiro encontro a mostrá-la e a pre- (2) A ideia foi expressa por Lange, numa lição de abertura publicada
cisá-la de modo a que possais seguir melhor as aplicações nos Monatshefte der Comeniusgesellschaft, Bd III, p. 107. Foi retomada por'-
ulteriores . Não é que se possa fazer uma demonstração Lorenz von Stein na sua Verwaltungslehre, Bd V. À mesma tendência se
expressa no decorrer de uma única lição. Um princípio tão ligam Willmann, Didaktik als Bildungslehre, 2 vol., 1894; Natorp, Social-
paedagogik, 1899; Bergemann, Soziale Paedagogik, 1900 . Assi nalaremos
geral e cujas repercussões são tão amplas, apenas se pode igualmente G. Edgard Vincent, The social mind and education; Eslander,
verificar progressivamente, à medida que se avança no deta- L'éducation au point de vue sociologique, 1899.

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

formas e propriedades são determináveis de uma vez por formada por castas? A educação varia de uma casta para a
todas, e o problema pedagógico consistia em procurar de que outra; a dos patrícios não é a mesma dos plebeus, a do Brâ-
maneira a acção educativa deve ser exercida sobre a natureza mane não é a mesma do Xudra. Do mesmo modo, na Idade
humana assim definida. Sem dúvida, ninguém terá pensado Média, que abismo entre a cultura que recebia o jovem pajem,
alguma vez que o homem seja de imediato, desde que entra instruído e~ todas as attes da cavalaria, e a do vilão que ia
na vida, tudo o que pode e deve ser. É evidentemente mani- aprender à escola da sua paróquia alguns magros elementos
festo que o ser humano apenas se vai constituindo progressi- de cálculo, de canto e de gramática! Não vemos ainda hoje a
vamente, no decurso de um lento movimento progressivo que educação variar com as classes sociais ou mesmo com os habi-
começa à nascença e apenas termina na maturidade. Mas tats? A da cidade não é a mesma do campo, a do burguês não
supunha-se que este movimento não fazia mais do que actua- é a mesma do operário. Dir-se-á que essa organização não é
lizar virtualidades, colocar em dia energias latentes que exis- moralmente justificável, que não se pode ver nela senão uma
tiam, sempre pré-formadas, no organismo físico e mental da sobrevivência destinada a desaparecer? A tese é fácil de defen-
criança. O educador não tinha, pois, nada de essencial a jun- der. É evidente que a educação das nossas crianças não deve
tar à obra da natureza. Não criaria nada de novo. O seu papel depender do acaso que as faz nascer aqui ou ali, destes pais
limitar-se-ia a impedir que as virtualidades existentes não se ou daqueles. Mas então, mesmo que a consciência moral do
atrofiassem por inacção, ou não se desviassem da sua direc- nosso tempo tenha recebido neste ponto a satisfação que pre-
ção normal, ou não se desenvolvessem com demasiada lenti- tende, a educação não se toma por isso mais uniforme. Então,
dão. Desde logo, as condições de tempo e de lugar, o estado mesmo que a carreira de cada criança não seja mais predeter-
em que se encontrasse o meio social, perderiam todo o inte- minada, pelo menos em grande parte, por uma herança cega,
resse para a pedagogia. Porque o homem é portador de todos a diversidade moral das profissões não deixará de desencadear
os gérmens do seu desenvolvimento, é ele e apenas ele que é em consequência uma grande diversidade pedagógica. Cada
necessário observar quando se empreende determinar em que profissão, com efeito, constitui um meio sui generis que
sentido e de que maneira este desenvolvimento deve ser diri- reclama aptidões particulares e conhecimentos especiais, onde
gido. O que importa é saber quais são as suas faculdades nati- reinam certas ideias, certos usos, certas maneiras de ver as
vas e qual a sua natureza. Ora, a ciência que tem por objecto coisas; e como a criança deve ser preparada tendo em vista a
descrever e explicar o homem individual, é a psicologia. função que será chamada a desempenhar, a educação, a partir
Parece, pois, que ela deveria ser suficiente para todas as de uma certa idade, não pode manter-se a mesma para todos
necessidades da pedagogia. os indivíduos aos quais se aplica. É por isso que a vemos, em
Infelizmente, esta concepção da educação encontra-se em todos os países civilizados, tendendo para se diversificar e
contradição formal com tudo o que nos ensina a história: não especializar: e esta especialização toma-se cada vez mais pre-
há um povo, com efeito, em que tenha alguma vez sido posta coce. A heterogeneidade que se produz assim não se baseia,
em prática. Antes de mais, longe de haver uma educação uni- como aquela de que verificamos constantemente a existência,
versalmente válida para todo o género humano, não existe, por em desigualdades injustas; mas não é menor. Para encontrar
assim dizer, sociedade onde sistemas pedagógicos diferentes uma educação absolutamente homogénea e igualitária, seria
não coexistam e não funcionem paralelamente. A sociedade é necessário recuar até às sociedades pré-históricas, no seio das

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

quais não existia nenhuma diferenciação, e este tipo de socie- um certo grau de desenvolvimento, há e deve haver necessa-
dades não representa mais que um momento lógico na histó- riamente homens que se consagram exclusivamente a estas,
ria da humanidade. que apenas se dedicam a pensar. Ora, o pensamento não se
Ora, é evidente que estas educações especiais não são pode desenvolver senão desligando-se do movimento, incli-
minimamente organizadas tendo em vista fins individuais. nando-se sobre ele, desviando da acção o sujeito a ela sub-
Sem dúvida, acontece por vezes terem como efeito o desen- metido. Deste modo se formam essas naturezas incompletas
volvimento no indivíduo de aptidões particulares que lhe são nas quais todas as energias da actividade estão, por assim
imanentes e que não esperavam outra coisa senão entrar em dizer, convertidas em reflexão, e que, no entanto, por muito
acção: neste sentido, podemos dizer que ajudam a realizar a mutiladas que estejam por alguns lados, constituem os agen-
sua natureza. Mas sabemos como estas vocações estreitamente tes indispensáveis do progresso científico. Nunca uma aná-
definidas são excepcionais. Geralmente, não estamos predes- lise abstracta da constituição humana teria permitido prever
tinados pelo nosso temperamento intelectual ou moral a uma que o homem era capaz de alterar assim o que passa por ser
função bem determinada. O homem médio é eminentemente a sua essência, nem que era necessária uma educação que pre-
flexível; pode ser igualmente utilizado em empregos muito parasse estas úteis alterações.
variados. Se, pois, ele se especializa, e mais de uma forma que Todavia, qualquer que seja a importância destas educa-
de outra, não é por razões que lhe são interiores; não é impe- ções especializadas, ninguém contestaria que elas não são
lido pelas necessidades da sua natureza. Mas é a sociedade toda a educação. Podemos mesmo dizer que não são auto-
que, para poder subsistir, precisa que o trabalho se divida entre -suficientes; onde quer que se encontrem, não divergem umas
os seus membros, e de uma forma mais do que de outra. É por das outras senão a partir de um determinado ponto, abaixo do
isso que prepara com as suas próprias mãos, pela via da edu- qual se confundem. Baseiam-se todas num tronco comum.
cação, os trabalhadores especializados de que precisa. É pois Não há povo, com efeito, no qual não exista um certo número
para ela e através dela que a educação é tão diversificada. de ideias, de sentimentos e de práticas que a educação deve
Mas há mais. Longe de nos aproximar necessariamente inculcar a todas as crianças indistintamente, qualquer que seja
da perfeição humana, esta cultura especial não funciona sem a categoria social a que pertençam. É mesmo esta educação
uma perda parcial, e isto mesmo que se encontre em harmo- comum que passa geralmente por ser a verdadeira educação.
nia com as predisposições naturais de cada indivíduo. Porque Apenas ela parece merecer plenamente ser chamada por esse
não podemos desenvolver com a intensidade necessária as nome. É-lhe concedida sobre todas as outras uma espécie de
faculdades que implicam especialmente a nossa função, sem proeminência. É pois principalmente dela que importa saber
deixar as outras entorpecerem na inacção, sem abdicar, por se, como se pretende, está completamente implicada na noção
consequência, de toda uma parte da nossa natureza. Por de homem e se daí pode ser deduzida.
exemplo, o homem, enquanto indivíduo, não é menos feito A bem dizer, a questão não se coloca, mesmo para tudo
para agir que para pensar. Aliás, uma vez que é antes de mais o que diz respeito aos sistemas de educação que a história nos
um ser vivo e que a vida é a acção, as faculdades activas são- fez conhecer. Estão tão ligados a sistemas sociais determina-
-lhe talvez mais essenciais que as outras. E, todavia, a partir dos que são inseparáveis deles. Se, apesar das diferenças que
do momento em que a vida intelectual das sociedades atingiu separavam o patriciado da plebe, havia em Roma uma edu-

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

cação comum a todos os Romanos, esta educação tinha por E, no entanto, não será uma espécie de milagre que a edu-
característica ser essencialmente romana. Implicava toda a cação, após ter tido durante séculos e em todas as sociedades
organização da cidade ao mesmo tempo que era a sua base. conhecidas todos as características de uma instituição social,
E o que dizemos de Roma poderia repetir-se para todas as tenha podido mudar tão completamente de natureza? Uma tal
sociedades históricas. Cada tipo de povo tem a sua educação transformação parecerá mais surpreendente ainda se pensar-
que lhe é própria e que pode servir para defini-lo da mesma mos que o momento em que se teria concluído é precisamente
forma que a sua organização moral, política e religiosa. É um aquele em que a educação começou a tornar-se um verdadeiro
dos elementos da sua fisionomia. Eis porque variou a educa- serviço público: porque é depois do fim do século passado que
ção tão prodigiosamente consoante as épocas e os lugares; a vimos, não apenas em França, mas em toda a Europa, ten-
porque, aqui, habitua o indivíduo a abdicar completamente da der para se colocar cada vez mais directamente sob o controlo
sua personalidade entre as mãos do Estado, enquanto que e a direcção do Estado. Sem dúvida que os fins que ambiciona
além, pelo contrário, se esforça por fazer dele um ser autó- se desligam cada vez mais das condições locais ou étnicas
nomo, legislador da sua própria conduta; porque era ascética que a particularizavam outrora; tomaram-se mais gerais e
na Idade Média, liberal no Renascimento, literária no século mais abstractos. Mas não se tomaram menos essencialmente
XVII, científica nos nossos dias. Não é que, numa sequência colectivos. Não é, com efeito, a colectividade que no-lo
de aberrações, os homens tenham desprezado a sua natureza impõe? Não é ela que nos leva a desenvolver antes de mais
de homens e as suas necessidades, mas sim que as suas neces- nas crianças as qualidades que lhes são comuns a todos os
sidades variaram, e variaram porque as condições sociais de homens? Mas há mais . Não só exerce sobre nós, por via da
que dependem as necessidades humanas não se mantiveram opinião, uma pressão moral, para que entendamos assim os
as mesmas. nossos deveres de educador, mas dá-lhes um tal valor que,
Mas, por uma inconsciente contradição, o que admitimos como acabo de lembrar, encarrega-se ela mesma da tarefa.
facilmente no passado, recusamos admitir no presente e, mais É fácil de ver que, se chega a este ponto, é porque se sente
ainda, no futuro. Todos reconhecem sem dificuldade que em interessada nela. E, com efeito, apenas uma cultura larga-
Roma, na Grécia, a educação tinha como único objectivo mente humana pode dar às sociedades modernas os cidadãos
fazer Gregos e Romanos e, por conseguinte, estava solidária de que necessita. Porque cada um dos grandes povos europeus
com todo um conjunto de instituições políticas, morais, eco- cobre um imenso habitat, porque se recruta nas raças mais
nómicas e religiosas. Mas comprazemo-nos em crer que a diversas, porque o trabalho é aí dividido até ao infinito , os
nossa educação moderna escapa à lei comum, que, no pre- indivíduos que o compõem são de tal modo diferentes uns dos
sente, ela está menos directamente dependente das contin- outros que não há quase mais nada de comum entre eles , a
gências sociais e que é chamada a libertar-se completamente não ser a sua qualidade de homem em geral. Não podem pois
delas no futuro. Não repetimos sem cessar que queremos manter a homogeneidade indispensável a todo o consensu·
fazer das nossas crianças homens antes mesmo de fazer delas social a não ser na condição de serem tão semelhantes quanto
cidadãos, e não parece que a nossa qualidade de homem seja possível pelo único lado em que todos se assemelham, ou seja,
naturalmente subtraída às influências colectivas porque lhes enquanto seres humanos que todos são. Noutros termos, em
é logicamente anterior? sociedades tão diferenciadas, não pode haver outro tipo colec-

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

tivo para além do tipo genérico do homem. Perca qualquer compreende a educação comum deverá necessariamente res-
coisa da sua generalidade, deixe-se enfraquecer por qualquer tringir-se e , em consequência, o tipo humano empobrecerá nas
retomo do antigo particularismo, e veremos estes grandes suas características. Antigamente, a cultura literária era consi-
Estados dissolverem-se numa quantidade de pequenos grupos derada um elemento essencial de toda a cultura humana; e eis
parcelares e decomporem-se. Assim, o nosso ideal pedagógico que nos aproximamos de um tempo em que ela própria não será
explica-se pela nossa estrutura social, tal como o dos Gregos talvez mais do que uma especialidade. Da mesma forma, se
e dos Romanos apenas se podia compreender pela organiza- existe uma hierarquia reconhecida entre as nossas faculdades,
ção da cidade. Se a nossa educação moderna não é mais estrei- se as há às quais atribuímos uma espécie de precedência e que
tamente nacional, é na constituição das nações modernas que devemos, por essa razão, desenvolver mais que as outras, não
devemos procurar a razão. é que esta dignidade lhes seja intrínseca; não é que a própria
Não é tudo. Não só foi a sociedade que elevou o tipo natureza lhes tenha, por toda a eternidade, assinado esta posi-
humano à dignidade de modelo que o educador se deve esfor- ção eminente; mas é porque têm para a sociedade um mais alto
çar por reproduzir, mas é ainda ela que o constrói, e constrói-o valor. Do mesmo modo, como esta escala de valores muda
à medida das suas necessidades. Porque é um erro pensar que necessariamente com as sociedades, esta hierarquia nunca se
ele seja completamente inato na constituição natural do homem, mantém a mesma em dois momentos diferentes da história.
que não seja preciso mais que descobri-lo através de uma obser- Ontem, era a coragem que estava em primeiro plano, com todas
vação metódica, além de o embelezar em seguida através da as faculdades que implica a virtude militar; hoje, é o pensa-
imaginação levando pelo pensamento ao mais alto desenvolvi- mento e a reflexão; amanhã, será talvez a fineza de gosto, a sen-
mento todos os gérmens que aí se encontram. O homem que a sibilidade para as coisas da arte. Assim, no presente como no
educação deve realizar em nós, não é o homem tal como a natu- passado, o nosso ideal pedagógico é, até aos seus detalhes, obra
reza o fez, mas tal como a sociedade quer que ele seja; e ela da sociedade. É ela que nos traça o retrato do homem que deve-
quer que seja tal como o reclama a sua economia interior. O que mos ser, e neste retrato vêm reflectir-se todas as particularida-
o prova é a maneira como a nossa concepção do homem tem des da sua organização.
variado segundo as sociedades. Porque os antigos, também eles,
criam fazer dos seus filhos homens, tal como nós. Se se recu-
savam a ver no estrangeiro um seu semelhante, é precisamente 11
porque aos seus olhos apenas a educação da cidade podia fazer
seres verdadeira e propriamente humanos. Concebiam a huma- Em resumo, longe de ter por objecto único ou principal o
nidade apenas à sua maneira, que não é mais a nossa. Qualquer indivíduo e os seus interesses, a educação é antes de mais o
mudança com alguma importância na organização de uma meio pelo qual a sociedade renova perpetuamente as condi-
sociedade tem como contrapartida uma mudança da mesma ções da sua própria existência. A sociedade apenas pode sub-
importância na ideia que o homem faz de si mesmo. Que, sob sistir se existe entre os seus membros uma suficiente homo-
a pressão da concorrência acrescida, o trabalho social se divida geneidade. A educação perpetua e reforça essa homogeneidade
mais, que a especialização de cada trabalhador seja, ao mesmo fixando de antemão na alma da criança as similitudes essen-
tempo, mais marcada e mais precoce, e o círculo de coisas que ciais que a vida colectiva supõe. Mas, por outro lado, sem uma

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

certa diversidade, qualquer cooperação será impossível. A edu- de novo e com novos custos. É necessário que, pelas vias mais
cação assegura a persistência dessa diversidade necessária rápidas, ao ser egoísta e a-social que acaba de nascer, ela junte
diversificando-se e especializando-se ela própria. Consiste um outro, capaz de levar uma vida social e moral. Eis qual é
pois, sob um ou outro dos seus aspectos, numa socialização a obra da educação e aperceber-vos-eis de toda a sua grandeza.
metódica da jovem geração. Em cada um de nós, pode dizer- Não se limita a desenvolver o organismo individual no sentido
-se, existem dois seres que, apesar de apenas serem separáveis marcado pela natureza, a tomar aparentes as potencialidades
por abstracção, não deixam por isso de ser distintos. Um é escondidas que apenas pedem para ser reveladas. Cria no
feito de todos os estados mentais que apenas têm a ver com homem um homem novo e este homem é feito de tudo o que
nós mesmos e com os acontecimentos da nossa vida pessoal. há de melhor em nós, de tudo o que dá valor e dignidade à
É o que poderemos chamar o ser individual. O outro é um sis- vida. Esta virtude criadora é, aliás, um privilégio especial da
tema de ideias, de sentimentos, de hábitos que exprimem em educação humana. É completamente diferente aquela que
nós, não a nossa personalidade, mas o grupo ou grupos dife- recebem os animais, se podemos aplicar este nome ao treino
rentes de que fazemos parte; são as crenças religiosas, as cren- progressivo a que são submetidos por parte dos seus pais. Pode
ças e as práticas morais, as tradições nacionais ou profissio- apressar o desenvolvimento de certos instintos que estão ador-
nais, as opiniões colectivas de qualquer gênero. O seu mecidos no animal; mas não o inicia numa vida nova. Facilita
conjunto forma o ser social. Constituir este ser em cada um de o jogo das funções naturais; mas não cria nada. Instruído pela
nós, tal é o fim da educação. sua mãe, o filhote aprende mais rapidamente a voar ou a fazer
É por aí, aliás, que se mostra melhor a importância do seu o seu ninho; mas não aprende quase nada com os seus pais que
papel e a fecundidade da sua acção. Com efeito, não apenas não pudesse descobrir pela sua experiência pessoal. É que os
este ser social não aparece completo na constituição primitiva animais ou vivem fora de qualquer estado social ou formam
do homem, mas também não resulta de um desenvolvimento sociedades muito simples, que funcionam graças a mecanis-
espontâneo. Espontaneamente, o homem não estava inclinado mos instintivos, que cada indivíduo traz em si, completamente
a submeter-se a uma autoridade política, a respeitar uma dis- constituídos, desde o seu nascimento. A educação não pode
ciplina moral, a devotar-se, a sacrificar-se. Não havia nada na pois acrescentar nada de essencial à natureza, pois que esta é
nossa natureza congênita que nos predispusesse a tomar-nos suficiente para tudo , para a vida do grupo como para a do indi-
servidores de divindades, emblemas simbólicos da sociedade, víduo. Pelo contrário, no homem, as aptidões de todo o gênero
a prestar-lhes um culto, a privar-nos para as honrar. Foi a pró- que a vida social pressupõe são muito mais complexas para se
pria sociedade, à medida que se formou e consolidou, que tirou poderem encarnar, de qualquer maneira, nos nossos tecidos, e
do seu próprio seio essas grandes forças morais diante das materializarem-se sob a forma de predisposições orgânicas.
quais o homem sentiu a sua inferioridade. Ora, se nos abs- Daqui se depreende que elas não se podem transmitir de uma
trairmos das vagas e incertas tendências que podem dever-se geração para outra através da hereditariedade. É pela educa-
à hereditariedade, a criança, ao entrar na vida, não traz con- ção que se faz a transmissão.
sigo mais do que a sua natureza de indivíduo. A sociedade Uma cerimónia que se encontra numa grande quantidade
encontra-se pois, por assim dizer, a cada nova geração, em pre- de sociedades põe bem em evidência este traço distintivo da
sença de uma tábua quase rasa sobre a qual é preciso construir educação humana e mostra mesmo como o homem a sentiu

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

muito cedo. É a cerimónia da iniciação. Tinha lugar uma vez alcança mais rapidamente graças ao concurso da sociedade.
terminada a educação; geralmente concluída num período em - Mas o que mostra bem, apesar das aparências, que aqui como
que os anciãos terminavam a instrução do jovem revelando- em qualquer lugar a educação responde antes de mais às neces-
-lhe as crenças mais fundamentais e os ritos mais sagrados da sidades externas, quer dizer sociais, é que há sociedades onde
tribo. Uma vez completa, o indivíduo que a suportou sobe na estas qualidades não foram de todo cultivadas e que, em todo
escala social; deixa as mulheres, no meio das quais passara o caso, elas são entendidas muito diferentemente segundo as
toda a infância; tem daqui por diante o seu lugar marcado entre sociedades. É necessário que as vantagens de uma sólida cul-
os guerreiros; ao mesmo tempo, toma consciência do seu sexo, tura intelectual sejam reconhecidas por todos os povos. A ciên-
do qual tem desde logo todos os direitos e deveres. Toma-se cia, o espírito crítico, que colocamos hoje tão alto, foram
um homem e um cidadão. Ora, é uma crença universalmente durante muito tempo vistas com suspeição. Não conhecemos
reproduzida em todos os povos, que o iniciado, pelo próprio uma grande doutrina que proclama felizes os pobres de espí-
facto da iniciação, se toma um homem inteiramente novo· rito? E devemos evitar acreditar que esta indiferença pelo saber
muda de personalidade, toma outro nome, e sabe-se que o' tenha sido imposta aos homens em violação da sua natureza.
nome não é considerado como um simples signo verbal, mas Por si próprios, eles não tinham então nenhum desejo de ciên-
como um elemento essencial da pessoa. A iniciação é consi- cia, muito simplesmente porque as sociedades de que faziam
derada como um segundo nascimento. O espírito primitivo parte não sentiam minimamente a sua necessidade. Para pode-
representa simbolicamente esta transformação imaginando que rem sobreviver, tinham antes de mais necessidade de tradições
um princípio espiritual, uma espécie de alma nova, se veio fortes e respeitadas . Ora, a tradição não desperta, mas tende
encarnar no indivíduo. Mas se desviarmos desta crença as for- principalmente a excluir, o pensamento e a reflexão. Acontece
mas míticas nas quais se envolve, não encontramos nós no o mesmo com as qualidades físicas. Que o estado do meio
símbolo esta ideia, obscuramente entrevista, que a educação social incline a consciência pública para o ascetismo, e a edu-
teve como efeito criar no homem um novo ser? É o ser social. cação física será espontaneamente colocada em segundo plano.
Dir-se-á, no entanto, que se podemos conceber que as qua- É um pouco o que aconteceu nas escolas da Idade Média. Da
lidades realmente morais, que impõem privações ao indivíduo, mesma fotma, segundo as correntes de opinião, esta mesma
porque tolhem os seus movimentos naturais, apenas podem ser educação será entendida nos sentidos mais diversos. Em
suscitadas em nós por uma acção vinda de fora, não há outras Esparta, tinha principalmente por objecto endurecer os mem-
que qualquer homem esteja interessado em adquirir e procurar bros até à fadiga; exp. Atenas era um meio de fazer corpos belos
espontaneamente? São as qualidades diversas da inteligência à vista; no tempo dos cavaleiros, pedia-se-lhe que formasse
que lhe permitem apropriar melhor a sua conduta à natureza guerreiros ágeis e submissos; nos nossos dias, não tem mais
das coisas. São também as qualidades físicas, e tudo o que que um fim higiénico, e preocupa-se principalmente em con-
contribui para o vigor e a saúde do organismo. Para essas, pelo ter os efeitos perigosos de uma cultura intelectual muito
menos, parece que a educação, desenvolvendo-as, não faz mais intensa. Assim, mesmo as qualidades que parecem, à primeira
do que ir adiante do próprio desenvolvimento da natureza, que vista, tão espontaneamente desejáveis, apenas são procuradas
levar o indivíduo a um estado de perfeição relativa segundo o pelo indivíduo quando a sociedade o convida a isso, e este pro-
qual ele se encaminha por si próprio, ao mesmo tempo que o cura-as da maneira que ela lhe prescreve.

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

Vedes até que ponto a psicologia por si só é um recurso 111


insuficiente para o pedagogo. Não só, como vos mostrei logo
de início, é a sociedade que traça ao indivíduo o ideal que ele Mas, se o papel da sociologia é preponderante na deter-
deve realizar pela edl,lcação, mas também, na natureza indi- minação dos fins que a educação deve procurar, terá ela a
vidual, não há tendências determinadas, estados definidos que mesma importância no que se refere à escolha dos meios?
sejam como uma primeira aspiração segundo este ideal, que Aqui, é incontestável que a psicologia retoma os seus
possam ser vistos como a forma interior e antecipada. Não é, direitos . Se o ideal pedagógico exprime antes de mais as
sem dúvida, que não existam em nós atitudes mais gerais sem necessidades sociais, apenas pode, todavia, realizar-se com e
as quais ela será evidentemente irrealizável. Se o homem pelos indivíduos. Para que seja algo mais que uma simples
pode aprender a sacrificar-se, é porque não é incapaz de sacri- concepção de espírito, uma vã injunção da sociedade aos seus
fício; se pôde submeter-se à disciplina da ciência, é porque membros, é necessário encontrar o meio de lhe adequar a
não lhe era imprópria. Apenas pelo facto de fazermos parte consciência da criança. Ora, a consciência tem as suas leis
integrante do universo, estamos ligados a outra coisa que não próprias que é necessário conhecer para poder modificá-la, se
apenas a nós próprios; há assim em nós uma primeira impes- pelo menos queremos evitar os tacteamentos empíricos que a
soalidade que predispõe para o altruísmo. Da mesma forma, psicologia tem precisamente por objectivo reduzir ao mínimo.
pelo simples facto de pensarmos, temos uma certa inclinação Para poder estimular a actividade a desenvolver-se numa
para conhecer. Mas entre estas vagas e confusas predisposi- direcção determinada, é necessário ainda saber quais são os
ções, misturadas, aliás, com todo o género de predisposições recursos que a movem e qual a sua natureza; porque é com
contrárias, e a forma tão definida e tão particular que tomam esta condição que será possível aplicar-lhe, com conheci-
sob a acção da sociedade, há um abismo . É impossível, mento de causa, a acção conveniente. Trata-se, por exemplo,
mesmo à análise mais penetrante, perceber de antemão nes- de despertar ou o amor da pátria ou o sentimento da humani-
tes gérmens indistintos aquilo que serão chamados a ser uma dade? Saberemos tanto melhor orientar a sensibilidade moral
vez que a colectividade os tenha fecundado. Porque esta não dos nossos alunos num ou noutro sentido na medida em que
se limita a dar-lhes o relevo que lhes faltava; junta-lhes mais tenhamos noções mais completas e mais precisas sobre o con-
qualquer coisa. Junta-lhes a sua energia própria e, através junto de fenómenos a que chamamos tendências, hábitos,
disso mesmo, transforma-os e retira efeitos que não estavam desejos, emoções, etc., sobre as condições diversas de que
aí primitivamente contidos. Assim, mesmo que a consciência dependem, sobre a forma que apresentam à criança. Segundo
individual não tivesse para nós mais mistérios, mesmo que a vemos nas tendências um produto das experiências agradáveis
psicologia fosse uma ciência completa, não saberia ensinar ao ou desagradáveis que a espécie pôde fazer, ou, pelo contrário,
educador qual o objectivo que este devia prosseguir. Apenas um facto primitivo, anterior aos estados afectivos que lhe
a sociologia pode, seja ajudar-nos a compreendê-lo , ligando- acompanhem o funcionamento, dever-se-á proceder de m0do
-se aos estados sociais de que depende e que exprime, seja muito diferente para lhe regular o desenvolvimento. Ora, é à
ajudar-nos a descobri-lo, quando a consciência pública, tur- psicologia e, mais especialmente, à psicologia infantil que per-
vada e incerta, não sabe mais o que deve ser. tence resolver estas questões. Se ela é incapaz para fixar o fim,
ou melhor, os fins da educação, não há dúvida de que tem um

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

papel útil a desempenhar na constituição dos métodos. Aliás, exemplos. É que, com efeito, como a vida escolar é apenas o
como nenhum método se pode aplicar da mesma maneira às gérmen da vida social, como esta é apenas a sequência e o
diferentes crianças, é ainda a psicologia que nos deverá aju- desenvolvimento daquela, é impossível que os principais pro-
dar a reconhecer-nos no meio da diversidade de inteligências cedimentos pelos quais uma funciona não se encontrem na
e de caracteres. Sabe-se, infelizmente, que estamos ainda outra. Pode pois esperar-se que a sociologia, ciência das insti-
longe do momento em que ela esteja verdadeiramente em con- tuições sociais, nos ajude a compreender o que são ou a con-
dições de satisfazer este desideratum. jecturar o que devem ser as instituições pedagógicas. Quanto
Não será, pois, questão de menosprezar os serviços que a melhor conhecermos a sociedade, melhor poderemos dar-nos
ciência do indivíduo pode prestar à pedagogia, e saberemos, aliás, conta de tudo o que se passa neste microcosmos social que é
dar àquela o seu valor. Todavia, mesmo no círculo de problemas a escola. Pelo contrário, vedes com que prudência e com que
em que pode esclarecer utilmente o pedagogo, é necessário que moderação convém utilizar os dados da psicologia, mesmo
ela possa ser ultrapassada pela contribuição da sociologia. quando se trata da determinação dos métodos. Por si mesma,
Primeiro, porque os fins da educação são sociais, os meios não saberá fornecer-nos os elementos necessários para a cons-
pelos quais estes fins podem ser atingidos devem necessaria- trução de uma técnica que, por definição, tem o seu protótipo,
mente ter o mesmo carácter. E, com efeito, entre todas as ins- não no indivíduo, mas na colectividade.
tituições pedagógicas, não há talvez uma que não seja análoga Aliás, os estados sociais de que dependem os fins peda-
a uma instituição social da qual reproduz, de forma reduzida gógicos não limitam a sua acção. Afectam também a con-
e como que em resumo, os traços principais. Há uma disciplina cepção dos métodos: porque a natureza do fim implica em
na escola como na cidade. As regras que fixam ao estudante parte a dos meios. Oriente-se a sociedade, por exemplo, num
os seus deveres são comparáveis àquelas que prescrevem ao sentido individualista, e todos os procedimentos da educação
homem feito a sua conduta. Os castigos e as recompensas que que possam ter como efeito violentar o indivíduo, menospre-
estão ligados aos primeiros não deixam de se assemelhar aos zar a sua espontaneidade interna, aparecerão como intolerá-
castigos e recompensas que sancionam os segundos. Ensina- veis e serão reprovados. Pelo contrário, se, sob a pressão de
mos às crianças ciência feita? Mas a ciência que se faz tam- circunstâncias duráveis ou passageiras, ela sentir a necessi-
bém se ensina. Não fica confinada ao cérebro daqueles que a dade de impor a todos um conformismo mais rigoroso, tudo
concebem, mas apenas se toma verdadeiramente activa na con- o que possa provocar outra medida à iniciativa da inteligên-
dição de se comunicar aos outros homens . Ora, esta comuni- cia, será proscrito. Com efeito, todas as vezes que o sistema
cação, que coloca em acção toda uma rede de mecanismos dos métodos educativos foi profundamente transformado, foi
sociais, constitui um ensinamento que, para se dirigir ao adulto, sob a influência de qualquer uma das grandes correntes
não difere na natureza daquele que o aluno recebe do seu pro- sociais que a acção fez sentir toda a extensão da vida colec-
fessor. Não se diz, aliás, que os sábios são mestres dos seus tiva. Foi apenas na sequência das descobertas psicológicas
contemporâneos e não se dá o nome de escolas aos grupos que que o Renascimento opôs todo um conjunto de métodos
se formam em redor delese)? Poderíamos multiplicar os novos àqueles que a Idade Média praticava. Mas a verdade é
que, na sequência das mudanças acontecidas na estrutura das
e) V. Willmann, op. cit., I, p. 40. sociedades europeias, uma nova concepção do homem e do

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EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA PEDAGOGIA E SOCIOLOGIA

seu lugar no mundo acabou por surgir. Da mesma forma, os os colocar em prática, e são dificuldades que a psicologia ~ode
pedagogos que, no final do século XVIII ou no começo do resolver. Não pretendo afirmar-vos que esta segurança mte-
século XIX empreenderam substituir o método intuitivo pelo lectual e moral seja do nosso século; é ao mesmo tempo a sua
método abstracto, eram antes de mais o eco das aspirações do grandeza e a sua miséria. As trans~ormações profunda~ que
seu tempo. Nem Basedow, nem Pestalozzi, nem Froebel eram sentiram ou estão a sentir as soc1edades contemporaneas
grandes psicólogos. O que exprime principalmente a sua dou- necessitam de transformações correspondentes na educação
trina é esse respeito pela liberdade interior, esse horror a nacional . Mas se sentimos claramente que são necessárias
qualquer compressão, esse amor pelo homem e, consequen- mudanças, sabemos mal quais devem ser. Quaisquer que pos-
temente, pela criança, que estão na base do nosso individua- sam ser as convicções particulares dos indivíduos ou dos par-
lismo moderno. tidos, a opinião pública continua indecisa e ansiosa. O pro-
Assim, sob qualquer aspecto que a educação seja conside- blema pedagógico não se coloca pois por nó~ com a mes~a
rada, apresenta-se-nos sempre com o mesmo carácter. Trate-se serenidade com que o era pelos homens do seculo XVII. Nao
dos fins que procura ou dos meios que emprega, é sempre a se trata mais de pôr em acção ideias adquiridas, mas de encon-
necessidades sociais que responde; são ideias e sentimentos trar ideias que nos guiem. Como descobri-las se não nos des-
colectivos que exprime. Sem dúvida que o próprio indivíduo locarmos até à própria fonte da vida educativa, quer dizer, até
encontra aí o seu proveito. Não reconhecemos nós próprios à sociedade? É pois a sociedade que é preciso interrogar, são
expressamente que devemos à educação o melhor de nós mes- as suas necessidades que é preciso conhecer, porque são as
mos? Mas é que o melhor de nós mesmos é de origem social. suas necessidades que é preciso satisfazer. Limitar-nos a olhar
É preciso, pois, voltar sempre ao estudo da sociedade; apenas para dentro de nós próprios, será desviarmos os noss_os olha:
aí o pedagogo pode encontrar os princípios da sua especulação. res da própria realidade que precisamos de conhecer; 1sso se~a
A psicologia bem lhe poderá indicar qual é a melhor maneira colocarmo-nos na impossibilidade de compreender o movi-
de os utilizar para aplicar à criança os seus princípios, uma vez mento que conduz o mundo à nossa volta e nós própr~os com
colocados, mas não poderá facilmente fazer-nos descobri-los. ele. Não creio, pois, obedecer a um simples preconceito ~e~
Acrescento, para terminar, que se houve um tempo e um ceder a um amor imoderado por uma ciência que cultlVel
país onde o ponto de vista sociológico se impôs de uma forma durante toda a minha vida, ao afirmar que nunca uma cultura
particularmente urgente aos pedagogos, foi certamente o nosso sociológica foi mais necessária ao educador. Não é que a
país e o nosso tempo. Quando uma sociedade se encontra num sociologia nos possa colocar nas mãos procedimentos co~­
estado de estabilidade relativa, de equilíbrio temporário, como, pletamente preparados e de que não tenhamos que fazer n:ms
por exemplo, a sociedade francesa do século XVII; quando, em nada senão servirmo-nos. Algo o faz, aliás, desta mane1ra?
seguida, se estabelece um sistema de educação que, igual- Mas pode mais e pode melhor. Pode dar-nos aquilo de qu~ p: e-
mente durante algum tempo, não é contestado por ninguém, cisamos mais instantaneamente, quer dizer, um corpo de 1de1as
as únicas questões prementes que se colocam são questões de directrizes que sejam a alma da nossa prática e que a _suste-
aplicação. Nenhuma dúvida grave se coloca nem sobre o fim nham, que dêem um sentido à nossa acção , e que nos ~1gue~
a atingir, nem sobre a orientação geral dos métodos; não pode, a ela; o que é a condição necessária para que esta acçao seJa
pois, haver aí controvérsia senão sobre a melhor maneira de fecunda.

112 113
Capítulo IV

A evolução e o papel do ensino secundário


em França(4)
1. O meu papel, senhores, não é ensinar-vos a técnica do
vosso trabalho: ela apenas se pode aprender através da expe-
riência e é pela experiência que a aprendereis no próximo
ano(S) . Mas uma técnica, qualquer que seja, degenera depressa
num vulgar empirismo se aquele que dela se serve nunca tiver
sido levado a reflectir no seu objectivo e nos meios que
emprega. Encaminhar a vossa reflexão para as coisas do
1

ensino e ensinar-vos a aplicá-las com método, eis precisa-


mente qual será a minha tarefa. Um ensino pedagógico deve,
com efeito , propor-se, não comunicar ao futuro praticante um
certo número de procedimentos e de receitas, mas dar-lhe uma
plena consciência da sua função.

4
( )Esta lição de abertura fora precedida de uma primeira sessão em
que o Sr. reitor Liard, o Sr. Lavisse e o Sr. Langlois, director do Mu eu
Pedagógico, tinham colocado os estudantes ao corrente das medidas toma-
das para organizar a sua preparação profissional. A alocução do Sr. Lan-
glois apareceu na Revue bleue, número de 25 de Novembro de 1905 .
(5) Durante o segundo ano de preparação, os candidatos à agregação
faziam um estágio nos liceus de Paris .

115 , · ~11\'E\r,,~,m:~Df:.
FEDET'li\1.. DO PARI'
.,rp,UOTEt"- CENTR}',l
EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA O ENSINO SECUNDÁRIO EM FRANÇA

Mas, precisamente porque este ensino tem necessaria- duta humana em que se introduz a reflexão, vê-se, à medida
mente um carácter teórico, alguns duvidam que possa ser útil. que ela se desenvolve, a tradição tornar-se mais maleável e
Não é que s.e .vá até ao ponto de defender que a rotina possa mais acessível às novidades. A reflexão , com efeito, é o anta-
ser auto-suflctente e que a tradição não tenha necessidade de gonista natural, o inimigo nato da rotina. Apenas ela pode
ser guiada por uma reflexão informada e advertida. Num impedir os hábitos de se fixarem de uma forma imutável,
tempo em que, em todas as esferas da actividade humana se rígida, que os desvia da mudança; apenas ela os pode manter
vê a ciência, a teoria, a especulação, quer dizer, em sum~, a em forma, conservar no estado de adaptabilidade e de flexi-
reflexão, penetrar mais e mais na prática e esclarecê-la seria bilidade necessários para que possam variar, evoluir, adaptar-
muito estranho que a actividade do educador, apenas ela,' fosse -se à diversidade e à mobilidade das circunstâncias e dos
excepção. Sem dúvida, é possível criticar severamente o meios. Inversamente, quanto menor é a reflexão, maior é o
em~rego que muitos pedagogos fizeram da sua razão; pode imobilismo. Ora, acontece que o ensino secundário é mar-
f~cilmente perceber-se que os seus sistemas, tão artificiais, cado, não por um apetite imoderado de novidades, mas por
tao abstractos, tão pobres aos olhos da realidade, não têm um verdadeiro rnisoneísmo. Veremos, com efeito, como em
grande utilidade prática. No entanto, não é motivo suficiente França, enquanto tudo mudou, enquanto o regime político,
para que a reflexão pedagógica seja proscrita para todo o sem- económico, moral, se transformaram, houve todavia qualquer
pre e declarada sem razão de ser; e é reconhecido facilmente coisa que se manteve relativamente imutável: foram as con-
com efeito, que esta conclusão seria excessiva. Só que se julg~ cepções pedagógicas que estão na base do que se convencio-
que, por um verdadeiro favor da situação, o professor de liceu nou chamar o ensino clássico. Salvo algumas adições, que não
não tem necessidade de ser especialmente treinado e exerci- tocam no fundo das coisas, os homens da minha geração
tado nesta forma particular de reflexão. Passa ainda, diz-se, foram ainda criados a partir de um ideal que não diferia sen-
pelos professores das nossas escolas primárias! Por causa da sivelmente daquele em que se inspiraram os colégios de jesuí-
cult~ra mais limita~a que receberam, pode ser necessário pro- tas no tempo do grande Rei. Não há nele verdadeiramente
voca-los para meditarem na sua profissão, explicar-lhes as nada que permita pensar que o espírito crítico e de reflexão
r~zões dos métodos que empregam, a fim de que possam ser- desempenhou na vida escolar um papel considerável. ·
VIr-se deles com discernimento. Mas com um professor do É que, com efeito, não é verdade que se esteja apto a
ensin? sec~ndário cujo espírito foi, primeiro no liceu, depois reflectir sobre uma ordem determinada de factos, apenas por
na umversidade, aguçado de todas as maneiras, aberto a todas se ter ocasião de exercer a reflexão num círculo de coisas
as grandes disciplinas , todas estas precauções só podem ser diferentes. Muitos são os grandes eruditos que ilustraram a
tempo perdido. Coloquêmo-lo em frente dos seus alunos e sua ciência e que, no entanto, para tudo o que rodeia a sua
logo a pujança da reflexão que adquiriu ao longo dos s~us · especialidade, são ingénuos como crianças. Estes intrépidos
estudo~ se aplica~á naturalmente à classe, mesmo que não inovadores comportam-se, aliás, como simples rotineiros \:jlJe
tenha sido submetida a nenhuma educação prévia. não pensam nem agem de forma diferente do vulgar igno-
Há no entanto um facto que não parece testemunhar muito rante. A razão é que os preconceitos que entravam o desen-
em f~vo~ desta aptidão nata para a reflexão profissional que volvimento da reflexão diferem segundo a ordem das coisas
se atnbm ao professor do liceu. Em todas as formas da con- às quais se ligam; pode pois acontecer que alguns tenham

116 117
. · ·~u~.~'Ei~S~D/~D l fE.DEft}\L r)O !~!~Ri\!
~~.; ~.LlOTECA CEMTRitl.
EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA O ENSINO SECUNDÁRIO EM FRANÇA

cedido enquanto os outros defendem toda a sua força de resis- trabalho pedagógico e que se desenvolve mais a cada dia que
tência, que um mesmo espírito se tenha libertado num ponto, passa, modificando a velha fisionomia dos nossos liceus e
enquanto que no outro continua em dependência. Conheci um levantando uma grave questão de que nos ocuparemos num
grande historiador, de que guardo fiel e respeitosamente a outro dia. Através de que milagre poderá a unidade resultar
memória, e que, em matéria de ensino, se manteve, ou pouco desta diversidade? Como é que estes ensinamentos se pode-
faltou, no ideal de Rollin. Aliás, cada categoria de factos pro- rão coordenar uns com os outros, completar-se de maneira a
cura ser reflectida à sua maneira, segundo os métodos que lhe formar um todo, se aqueles que os ministram não têm o sen-
são próprios; e estes métodos não se improvisam, mas devem tido desse todo e da maneira como cada um deve actuar.
aprender-se. Não é, pois, suficiente ter reflectido nos primo- Ainda que não estejamos actualmente em condições de defi-
res das línguas mortas, ou nas leis da matemática, ou nos nir o objectivo do ensino secundário - questão que apenas
a_cont~cimentos da história, seja antiga, seja moderna, para poderá surgir utilmente no fim da aula- podemos, todavia,
ficar lpso facto em estado de reflectir metodicamente nas coi- dizer que no liceu não se trata de formar um matemático, nem
sas do ensino. Mas esta forma determinada de reflexão cons- um literato ' nem um naturalista, nem um historiador, mas de
.
titui _uma especialidade que reclama uma iniciação prévia; 0 formar um espírito através das letras , da história, da mate-
segmmento desta aula será a prova disso. mática, etc. Mas como é que cada professor poderá cumprir
2. Não apenas nada justifica o privilégio que se entende a sua função, na parte que lhe cabe no conjunto da obra, se
conferir assim aos professores do ensino secundário; não ape- não sabe qual é esta obra, como é que os seus colaboradores
nas não se percebe porque será inútil despertar neles a refle- cooperam com ele, de maneira que os seus esforços se reu-
xão pedagógica por uma cultura apropriada, mas, sob certos nam aos deles?
aspectos, ela é-lhes mais indispensável do que aos outros. Muito frequentemente, é verdade, raciocinamos como se
Em primeiro lugar, o ensino secundário é um organismo tudo isto andasse por si, como se este fim comum não tivesse
com uma complexidade diferente do ensino primário. Ora, nada de obscuro, como se todos soubessem o que é formar
u~ ser, ~uanto mais complexo é e mais complexa a vida que um espírito. Mas, na realidade, esta vaga fórmula está vazia
VIve, mais necessita de reflexão para se poder conduzir. Numa de qualquer conteúdo positivo; e é por isso que a posso
escola elementar, cada turma, pelo menos em princípio, está empregar em qualquer momento sem influenciar em nada os
nas mãos de um só e único professor; por conseguinte, 0 resultados que darão as nossas investigações ulteriores. Tudo
ensino que ele ministra sente-se que tem uma unidade com- o que enuncia é que não é preciso especializar o~ espíritos;
pletamente natural e muito simples; é a própria unidade da mas não nos ensina por isso sobre que modelo devem ser for-
pessoa que ensina. Como tem sob os olhos a totalidade do mados. A maneira como se formava um espírito no século
ensino, é-lhe relativamente fácil dar a cada disciplina a sua xvn não seria conveniente nos nossos dias; forma-se também
parte, ajustá-las umas às outras e fazê-las concorrer todas para um espírito na escola primária, mas de modo diferente do
um mesmo fim. Mas é completamente diferente no liceu liceu. Se, pois, os professores apenas tiverem por ponto de
onde os di versos ensinamentos, recebidos simultaneament~ concentração adágios tão imprecisos, é inevitável que os seus
por um mesmo aluno, são geralmente ministrados por dife- esforços se dispersem e se paralisem no seguimento desta
rentes professores. Aqui, existe uma verdadeira divisão do dispersão.

118 119
· ; ' i (Vt~mPt~\OE FtDEil.AL 00 P.Al~ ··
r;;:~ tJ OTECA CEl'f!1LAL
EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA O ENSINO SECUNDÁRIO EM FRANÇA

E, frequentemente, é este espectáculo que nos dá o ensino sem injustiça, menosprezar a importância dos resultados obti-
dos nossos liceus. Cada um professa aí a sua especialidade dos: o antigo sistema abriu-se a novas ideias; está em vias de
como se ela fosse um fim em si mesma, ao passo que não é se constituir um novo sistema que parece pleno de juventude
mais do que um meio tendo em vista um fim ao qual deve estar e de ardor. Mas será excessivo dizer que ele ainda se tenta
ligada em cada momento. No tempo em que eu ensinava nos encontrar, que não tem de si próprio mais do que uma cons-
liceus, um ministro, para lutar contra esta fragmentação anár- ciência ainda incerta, e que foi temperado de felizes conces-
quica, instituiu assembleias mensais onde todos os professo- sões, mais do que renovado? Um facto toma particularmente
res de um mesmo estabelecimento deviam ir conversar sobre sensível a confusão em que se encontram, neste ponto, as nos-
as questões que lhes são comuns. Infelizmente, estas assem- sas ideias. Em todos os períodos anteriores da nossa história
bleias nunca foram mais do que vãs formalidades. Deslocá- podia definir-se com uma palavra o ideal que os educadores
vamo-nos ali com deferência, mas depressa pudemos consta- se propunham realizar nas crianças. Na Idade Média, o pro-
tar que não tínhamos nada a dizer uns aos outros, porque nos fessor da Faculdade das Artes queria antes de mais fazer dos
faltava qualquer objectivo comum. Como poderia ser de outra seus alunos dialécticos. Após o Renascimento, os jesuítas e
forma se, na universidade, cada grupo de estudantes recebia o os regentes dos nossos colégios universitários dedicaram-se
seu ensino preferido numa espécie de compartimento estan- ao objectivo de fazer humanistas. Hoje, falta qualquer expres-
que? O único meio de prevenir este estado de divisão, é levar são para caracterizar o objectivo que deve ser procurado pelo
todos estes colaboradores de amanhã a reunirem-se e a pen- ensino dos nossos liceus; porque este objectivo, apenas con-
sarem em comum na sua tarefa comum. É necessário que, num fusamente vemos qual deva ser.
dado momento da sua preparação, sejam colocados em posi- E que não julguemos resolver a dificuldade, dizendo que
ção de poderem abarcar com o olhar, em toda a sua extensão, o nosso dever é muito simplesmente fazer dos nossos alunos
o sistema escolar na vida do qual serão chamados a participar; homens! A solução é apenas verbal; porque se trata precisa-
é necessário que vejam o que faz a unidade, quer dizer, qual mente de saber que ideal devemos fazer do homem, nós,
é o ideal que tem por função realizar, e de que modo todas as Europeus, ou, mais especialmente ainda, nós, Franceses do
partes devem cooperar para esse objectivo final. Ora, esta ini- século xx. Cada povo teve, em cada momento da sua histó-
ciação apenas se pode fazer através de uma aprendizagem, de ria, a sua concepção própria do homem; a Idade Média teve
que determinarei na altura certa o plano e o método . a sua, o Renascimento teve a sua, e a questão é saber qual
3. Mas há mais. O ensino secundário encontra-se hoje em deve ser a nossa. Esta questão, aliás , não é específica do nosso
condições muito especiais que tomam esta cultura excepcio- país. Não há um grande Estado europeu a que não se colo-
nalmente urgente. Desde a segunda metade do século XVIII que e em termos quase idênticos. Por todo o lado, pedagogos
que atravessa uma crise muito grave que ainda não chegou e homens de Estado têm consciência que as mudanças ocor-
ao seu desenlace. Todos se dão conta que não pode continuar ridas na organização material e moral das sociedades con-
a ser o que foi no passado: mas não se vê com a mesma cla- temporâneas necessitam de transformações paralelas e não
reza o que deverá ser. Estas reformas que, desde há perto de menos profundas nesta parte especial do nosso organismo
um século, se sucedem periodicamente, atestam, por si, a difi- escolar. Por que é que é principalmente no ensino secundário
culdade e urgência do problema. É verdade que não podemos, que a crise causa estragos com esta intensidade? É uma ques-

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tão que iremos examinar um dia; para já, limito-me a cons- nosso ensino secundário. Porque, é impossível dissimular-se,
tatar o facto, que não é contestável. no seguimento da completa desorganização intelectual em que
Ora, para sair desta era de confusão e incerteza, não pode- se encontra, incerto entre um passado que morre e um futuro
remos contar apenas com a eficácia dos decretos e dos regu- ainda indeterminado, o ensino secundário não manifesta mais
lamentos. Qualquer que seja a autoridade, regulamentos e a mesma vitalidade nem o mesmo ardor de viver de outrora.
decretos nunca são mais do que palavras que apenas se podem O reparo pode ser feito livremente, porque não implica
tornar realidade com o apoio daqueles que estão encarregues nenhuma crítica que se dirija às pessoas; o facto que constata
de os aplicar. Se pois, vós, que tereis por função fazê-los exis- é o produto de causas impessoais. Por um lado, o antigo entu-
tir, apenas os aceitais a contragosto, se vos submeteis a eles siasmo pelas letras clássicas, a fé que inspiravam, estão irre-
sem lhes aderir, continuarão a ser letra morta e sem resulta- mediavelmente comprometidos. É verdade que não se poderá
dos úteis; e, segundo a maneira como os entendais, poderão esquecer o glorioso passado do humanismo, os serviços que
produzir efeitos completamente diferentes e mesmo opostos. prestou e continua até a prestar; todavia, é difícil livrar-se da
Não são mais que projectos cuja sorte dependerá sempre, em impressão que se servia a si próprio. Mas, por outro lado,
última instância, de vós e do vosso estado de opinião. Como nenhuma nova fé veio ainda ocupar aquela que desapareceu.
é importante, por conseguinte, colocar-vos em condições de Daí resulta que o professor se pergunte frequentemente com
ter uma opinião esclarecida! Enquanto houver indecisão nos inquietude para que serve e para onde tendem os seus esfor-
espíritos, não há decisão administrativa que lhe possa pôr fim. ços, que não veja claramente como as suas funções se ligam
Não se decreta o ideal, é necessário que ele seja cumprido, às funções vitais da sociedade. Daí uma certa tendência para
amado, querido por todos aqueles que têm o dever de o rea- o cepticismo, uma espécie de desencantamento, uma verda-
lizar. É necessário, numa palavra, que o grande trabalho de deira inquietação moral, numa palavra, que não se pode
reflexão e de reorganização que se impõe seja a obra do pró- desenvolver sem perigo . Um corpo docente sem fé pedagó-
prio corpo que é chamado a refazer-se e a organizar-se. É pois gica, é um corpo sem alma. O vosso primeiro dever e o vosso
necessário fornecer-lhe· todos os meios necessários para que primeiro interesse será pois criar uma alma no corpo no qual
possa tomar consciência de si próprio, do que é, das causas deveis entrar; e apenas vós o podeis fazer. Seguramente, para
que o solicitam a mudar, do que deve querer ser. Percebe-se vos colocar em estado de executar esta tarefa, não será muito
facilmente que, para obter um tal resultado, não é suficient~ um curso de alguns meses. Competir-vos-á trabalhar nisso
preparar os futuros professores na prática da sua profissão; é toda a vossa vida. Mas é preciso começar por despertar em
preciso, antes de mais, provocar da sua parte um enérgico vós a vontade de o empreender e por vos colocar nas mãos os
esforço de reflexão, que devem seguir durante toda a sua car- meios necessários para o executardes. Tal é o objecto do
reira, mas que deve começar aqui, na universidade; porque ensino que hoje inauguro.
apenas aqui encontrarão os elementos de informação sem os 4. Conheceis agora o fim que pretendo atingir em con-
quais as suas reflexões sobre a matéria não serão mais do que junto convosco. Pretendo colocar perante vós o problema do
construções ideológicas e fantasias sem eficácia. ensino secundário na sua totalidade, e isso por duas razões:
E é com esta condição que será possível estimular, sem primeiro, para que possais ter uma opinião segura sobre o que
nenhum procedimento artificial, a vida um pouco lânguida do esta cultura deve vir a ser; depois, para que, desta pesquisa

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feita em comum, se retire um sentimento comum que facilite Mas sabemos hoje tudo o que há de quimérico e mesmo
a vossa cooperação futura. E agora, assim colocado o objec- de perigoso nestes ardores de iconoclastas. Não é possível
tivo, procuremos o método pelo qual pode ser atingido. nem desejável que a organização presente se desmorone num
Um sistema escolar, qualquer que seja, é formado por instante; vivereis nela e fá-la-eis viver. Mas, para isso, é pre-
duas espécies de elementos. Há, por um lado, todo um con- ciso conhecê-la. E é preciso conhecê-la também para a poder
junto de disposições definidas e estáveis, de métodos estabe- mudar. Porque as criações ex nihilo são igualmente impossí-
lecidos, numa palavra, de instituições; porque há instituições veis na ordem social como na ordem física. O futuro não se
pedagógicas como há instituições jurídicas, religiosas ou polí- improvisa; apenas se pode construí-lo com os materiais que
ticas. Mas, ao mesmo tempo, no interior da máquina assim temos do passado. As nossas inovações mais fecundas con-
constituída, há ideias que a agitam e que lhe pedem que mude. sistem frequentemente em fundir ideias novas em moldes
Salvo, talvez, raros momentos de apogeu e de acalmia, há antigos, que é suficiente modificar parcialmente para os colo-
sempre, mesmo no sistema mais imutável e mais bem defi- car em harmonia com o seu novo conteúdo. Aliás, o melhor
nido, um movimento em direcção a outra coisa além do que meio de realizar um novo ideal pedagógico é utilizar a orga-
existe, uma tendência em direcção a um ideal mais ou menos nização estabelecida, retocando-a secundariamente, se for
claramente entrevisto. Olhado de fora, o ensino secundário útil, para a submeter aos novos fins que deve servir. Quantas
apresenta-se-nos como um conjunto de estabelecimentos cuja reformas são fáceis de realizar, sem que seja necessário per-
organização material e moral é determinada; mas, por outro turbar os programas e os planos de estudo! Basta saber apro-
lado, esta mesma organização abriga em si aspirações que se veitar aqueles que estão em vigor, animando-os de um novo
procuram. Sob esta via fixada, consolidada, há uma outra via espírito. Mas, para se poder servir assim das instituições peda-
em movimento que, por estar mais encoberta, não é minima- gógicas que existem, é necessário também que não se ignore
mente negligenciável. Sob o passado que perdura, há sempre em que consistem. Apenas se age eficazmente sobre as coi-
algo novo que se faz e que tende a ser. Face a estes dois aspec- sas na medida em que se conhece a sua natureza. Apenas se
tos da realidade escolar, qual será a nossa atitude? pode dirigir a evolução de um sistema escolar se se começar
Do primeiro, os pedagogos geralmente desinteressam-se. por saber o que ele é, do que é que é feito, quais as concep-
Podem importar-lhes estas disposições diversas que o pas- ções que estão na sua base, as necessidades a que responde,
sado nos legou: o problema, tal como o colocam, dispensa~ as causas que o suscitaram. E assim, qualquer estudo cientí-
-os de lhe dar qualquer importância. Espíritos eminentemente fico e objectivo, mas cujas consequências práticas não são
revolucionários, pelo menos na sua maior parte, a realidade difíceis de perceber, aparece como indispensável.
presente não tem interesse aos seus olhos; apenas a supor- É verdade que, geralmente, este estudo não parece ser
tam com impaciência e sonham libertar-se dela para edificar muito complexo. Como uma longa prática nos familiarizou
com todas as peças um sistema escolar inteiramente novo em com as coisas da vida escolar, elas parecem-nos muito simples
que se realize adequadamente o ideal a que aspiram. Assim, e de natureza que não levante nenhuma questão que reclame,
que importância podem ter as práticas, os métodos, as insti- para ser resolvida, uma grande máquina de investigação. Após
tuições que existiam antes deles? É no futuro que têm os longos anos, conhecemos, sob o nome de secundário, um
olhos fixos, e crêem poder evocá-lo a partir do nada. ensino intermédio entre a escola primária e a universidade;

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vimos sempre, junto a nós, escolas, e nas escolas, turmas, e, os ver agir. Longe de nos basearmos em colocar como evi-
por conseguinte, fomos levados a crer que toda esta ordem dente a noção que trazemos em nós, devemos, pelo contrário,
acontecia por si própria e que não havia necessidade de a estu- suspeitar dela; porque, produto da nossa experiência restrita
dar longamente para saber de onde vem e a que necessidades de indivíduo, função do nosso temperamento pessoal, apenas
responde. Mas, desde que, em vez de olharmos para as coisas pode ser truncada e enganadora. É preciso fazermos dela tábua
no presente, as consideramos na história, a ilusão dissipa-se. rasa, obrigarmo-nos a uma dúvida metódica, e tratarmos este
Esta hierarquia escolar em três graus não existiu sempre, mundo escolar, que é necessário explorar, como uma terra des-
mesmo entre nós; até há tempos bem recentes, o ensino secun- conhecida onde há verdadeiras descobertas a fazer. O mesmo
dário era indistinto do ensino superior; hoje, a solução de con- método se impõe para todos os problemas, mesmo os mais
tinuidade que o separava do ensino primário tende a apagar- especiais, que pode levantar a organização educativa. De onde
-se. Os colégios, com o seu sistema de turmas, não apareceram vem o nosso sistema de emulação (porque é de facto muito
antes do século XVI e veremos que na época revolucionária simples imputar toda a sua responsabilidade aos jesuítas)? De
houve um momento em que este sistema desapareceu. Mas onde vem o nosso sistema de disciplina (porque sabemos que
ainda que correspondam a uma espécie de necessidade eterna! variou consoante as épocas)? De onde vêm os nossos princi-
É pois porque estas instituições tendem, não para as necessi- pais exercícios escolares? Tantas questões ao lado das quais
dades uniyersais do homem chegado a um certo grau de civi- passamos sem sequer as pressentir, quando nos fechamos no
lização, mas para causas definidas, para estados sociais muito presente, e cuja complexidade apenas aparece quando as estu-
particulares que apenas a análise histórica nos pode revelar. damos no contexto histórico. Veremos, por exemplo, como o
Ora, é apenas na medida em que chegarmos a determiná-los lugar tomado e conservado nas nossas classes pela exegese dos
que saberemos verdadeiramente o que é o ensino. Porque saber textos, sejam antigos, sejam modernos , está ligado a um dos
o que é não é simplesmente conhecer a forma exterior e super- traços essenciais da nossa mentalidade e da nossa civilização;
ficial; é saber qual o seu significado, que lugar ocupa, que e é estudando o ensino medieval que seremos levados a fazer
papel desempenha no conjunto da vida nacional. esta constatação.
Evitemos acreditar que basta um pouco de senso e de cul- 5. Mas não basta conhecer e compreender a nossa máquina
tura para resolver de ânimo leve questões como esta: escolar, tal como está organizada presentemente. Como é cha-
«0 que é um ensino secundário, o que é uma escola, o que é mada a evoluir sem cessar, é necessário poder apreciar as ten-
uma turma?» Podemos, através de uma análise mental, dis- dências para a mudança que a agitam; é necessário poder deci-
cernir com muita facilidade a noção que fazemos pessoal- dir, com conhecimento de causa, o que deve ser no futuro. Para
mente de uma ou de outra destas realidades. Mas que interesse resolver esta segunda parte do problema, o método histórico e
pode ter esta concepção completamente subjectiva? O que pre- comparativo será igualmente indispensável?
cisamos de esclarecer é a natureza objectiva do ensino secun- Pode, à primeira vista, parecer supérfluo. Qualquer
dário, as correntes de ideias de que resulta, as necessidades reforma pedagógica não tem como objecto final fazer com que,
sociais que levaram à sua existência. Ora, para os conhecer, de algum modo, os alunos sejam mais homens do seu tempo?
não basta olharmos para nós próprios; porque é no passado que Ora, para saber o que deve ser um homem do nosso tempo,
produziram os seus efeitos, é no passado que precisamos de que podemos aprender, dir-se-á , no estudo do passado? Não é

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na Idade Média, nem no Renascimento, nem no século XVII escola pedagógica corresponde a uma destas correntes de opi-
ne~ no XVIII que encontraremos o modelo humano que o nião que temos tanto interesse em conhecer, e revela-no-la.
ensmo actual deve ter por objectivo realizar. São os homens Torna-se pois necessário todo um estudo que terá por objecto
d~ hoje que o fazem considerar; é de nós próprios que é pre- compará-las, classificá-las e interpretá-las.
Ciso tomar consciência; e, em nós, é sobretudo o homem de Mas não chega conhecer estas correntes; é preciso poder
amanhã que é preciso tentar aperceber e libertar. apreciá-las; é preciso poder decidir se há lugar para as seguir
Mas, antes de mais, é preciso que seja fácil saber quais ou para lhes resistir, e, no caso de ser conveniente arranjar-
são as exigências da hora actual. As necessidades que sente -lhes um lugar na realidade, sob que forma. Ora, é claro que
uma grande sociedade como a nossa são infinitamente múl- apenas estaremos em estado de apreciar o seu valor se as
tiplas e complexas, e um olhar, mesmo atento, deitado a nós conhecermos na sua expressão mais recente. Apenas as pode-
e ao que nos rodeia, não será suficiente para no-las fazer des- mos avaliar por comparação com as necessidades reais, objec-
cobrir na sua integridade. Do pequeno meio em que cada um tivas, que as provocaram, e pelas causas que fizeram desper-
de nós está colocado, apenas podemos aperceber-nos daque- tar essas necessidades. Segundo o que sejam as suas causas,
las que nos tocam de mais perto, daquelas que o nosso tem- segundo as razões que tenhamos ou não para as crer ligadas
peramento e a nossa educação nos preparam melhor para à evolução normal da nossa sociedade, deveremos ceder à sua
compreender. Quanto às outras, apenas as vendo de longe e influência ou evitá-la. São pois causas aquilo que precisamos
confusamente, não temos delas mais que sensações débeis e de encontrar. Mas como chegar a elas, senão reconstituindo
somos levados, por isso, a não as ter em conta. Somos homens a história destas correntes, recuando até às suas origens, pro-
de acção, vivemos num meio de negócios? Estamos inclina- curando de que maneira e em função de que factores é que
dos a fazer dos nossos filhos homens práticos. Somos apai- se desenvolveram? Assim, para poder antecipar o que o pre-
xonados pela especulação? Elogiaremos as vantagens da cul- sente deve vir a ser, tal como para poder compreendê-lo, pre-
tura científica, etc. Quando, pois, praticamos este método, cisamos de sair dele e recuar até ao passado. Vereis, por
caímos fatalmente em concepções unilaterais e exclusivas que exemplo, como, para nos darmos conta da tendência que nos
s~ negam mutuamente. Se queremos escapar a este exclusi- leva hoje a constituir um tipo escolar diferente do tipo clás-
vismo, se queremos ter uma noção mais completa do nosso sico, deveremos recuar, por cima das controvérsias recentes,
tempo, é preciso sairmos de nós mesmos, alargarmos o nosso até ao século XVIII e mesmo até ao século XVII. E, só por si,
ponto de vista e empreendermos todo um conjunto de inves- o próprio facto de se estabelecer que este movimento de
tigações tendo em vista compreender estas aspirações tão ideias dura desde há perto de dois séculos, que, desde o
diversas que a sociedade sente. Felizmente, ainda que sejam momento em que apareceu, tem vindo a tomar cada vez mais
pouco intensas, elas vêm traduzir-se no exterior sob uma força, demonstrará melhor a necessidade que pode ter de
forma que as torna observáveis. Tomam corpo nestes projec- todas as controvérsias dialécticas do mundo.
t?s de reformas, nestes planos de reconstrução que inspiram. Aliás, para poder conjecturar o futuro com um mínimo de
E lá que é preciso procurá-las. Eis nomeadamente para que riscos, não basta abrirmo-nos às tendências reformadoras e
servem as doutrinas edificadas pelos pedagogos. São instru- tomar metodicamente consciência delas. Porque, apesar das
tivas, não como teorias, mas como factos históricos. Cada ilusões que alimentam frequentemente os reformadores , não

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é possível que o ideal de amanhã seja original em todas as que a ciência das coisas humanas pode servir para guiar util-
suas peças; mas entrará aí, certamente, muito do nosso ideal mente a conduta humana. Para bem se conduzir, diz um
de ontem, que importa, por conseguinte, conhecer. A nossa ditado antigo, é preciso conhecer-se bem. Mas sabemos hoje
mentalidade não vai mudar totalmente de hoje para amanhã; que, para bem se conhecer, não basta prestar atenção à parte
é preciso pois saber o que foi na história, e, entre as causas superficial da nossa consciência; porque os sentimentos, as
que contribuíram para a criar, quais são aquelas que conti- ideias que aí vêm aflorar, não são, estão longe disso, aqueles
nuam a agir. É tanto mais necessário proceder com esta pru- que têm mais eficácia na nossa conduta. O que é preciso atin-
dência quanto um ideal novo se apresenta sempre como que gir são os hábitos, as tendências que se constituíram pouco a
num estado de antagonismo natural com o ideal antigo que pouco ao longo da nossa vida passada, ou que nos foram lega-
aspira a substituir, ainda que não seja mais, com efeito, do das pela hereditariedade; estão aí as verdadeiras forças que
que a sua sequência e desenvolvimento. E, no decurso deste nos conduzem. Ora, elas dissimulam-se no inconsciente. Não
antagonismo, é sempre de recear que soçobre completamente; podemos pois chegar a descobri-las senão reconstituindo a
porque as ideias novas, tendo a força e a vitalidade da juven- nossa história pessoal e a história da nossa família. Da mesma
tude, destroem facilmente as concepções antigas . Veremos forma, para podermos executar, como convém, a nossa fun-
como uma destruição deste género se produziu no Renasci- ção num sistema escolar, qualquer que seja, é preciso
mento, no momento em que se constituiu o ensino humanista: conhecê-lo, não por fora, mas por dentro, quer dizer, através
do ensino medieval, não restou quase nada, e é muito possí- da história. Porque só a história pode penetrar para além do
vel que esta abolição total tenha deixado uma grave lacuna revestimento superficial que o cobre no presente; só ela pode
na nossa educação nacional. Importa que tomemos todas as fazer a sua análise; só ela nos pode mostrar de que elemen-
precauções possíveis para não voltar a cair no mesmo erro, e tos é formado, de que condições dependem cada um deles, de
que se, amanhã, devermos fechar a era do humanismo, sai- que maneira estão compostos uns com os outros; só ela, numa
bamos guardar o que deva ser mantido. Assim, seja qual for palavra, nos pode fazer assistir ao longo encadeamento de
o ponto de vista em que nos coloquemos, apenas poderemos causas e de efeitos de que foi o resultante.
conhecer com alguma segurança o caminho que nos resta per- Tal será, senhores, o ensino que aqui recebereis. Este será,
correr se começarmos por considerar com atenção aquele que no sentido próprio da palavra, um ensino pedagógico, mas que,
se estende para trás de nós. pelo método empregue, diferirá singularmente do que chama-
6. Torna-se claro, agora, o que significa o título que dei mos habitualmente por este nome, pois que os trabalhos dos
a este curso. Se me proponho estudar convosco a maneira pedagogos serão, para nós, não modelos a imitar, não fontes de
como se formou e desenvolveu o nosso ensino secundário, inspiração, mas documentos sobre o espírito do tempo. Espero
não é para me entregar a investigações de pura erudição; é pois que a pedagogia, assim renovada, acabará enfim por se
para chegar a resultados práticos. Certamente, o método que erguer do descrédito, em parte injusto, em que tombou; espero
seguirei será exclusivamente científico; é aquele que empre- que saibais libertar-vos de um preconceito que durou muito
gam as ciências históricas e sociais. Se pude falar logo de fé tempo, que compreendais o interesse e a novidade desta tarefa,
pedagógica, não é que tenha a intenção de pregar alguma; e que me concedais, por conseguinte, a colaboração activa que
manter-me-ei, aqui, um homem de ciência. Só que acredito vos peço e sem a qual não serei capaz de fazer obra útil.

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Índice

Prefácio.............................................................................. 7
Introdução.......................................................................... 13
Capítulo I. .......................................................................... 43
1. As definições da educação: exame crítico........... 43
2. Definição da educação.. ....................................... 49
3. Consequência da definição precedente: carácter
social da educação .. .. .. .. .. .. ................ ...... .. ...... .. ... 53
4. O papel do Estado em matéria de educação ....... 60
5. Poder da educação - os meios de acção ............. 62
Capítulo II .......................................................................... 71
Capítulo m ...... ............. .... .............................. ............... .... 93
Capítulo IV ........................................................................ .115
Émile Durkheim, sociólogo francês ( 1858-
1917), foi o fundador da escola sociológica
francesa, que conferiu à disciplina o seu
estatuto de ciência, e é aj usto tít ulo con-
siderado um dos principais teóricos do
pensamento sociológico. Fundou também
em 1898 a publicação L'Année Sociologique,
ainda hoje activa e onde colaboraram no-
mes insignes da sociologia.

N.Cham. 370 D963e


Autor: Durkheim, Émile, 1858-1917
·· · Título:·Educaç.ão e sociologia I

l ~l l l l l l l l l l l l l l l l l ll l l l · .
375407
158506

Ex.2 UFPA BC .

Bem adquirido com recursos oriundo:


BR I L _ OP AS I FADESP - CURSO DE ENFERMA
Financiador: ORG.PAN AMERICA
Bem': EDUCACA O E SOCIOLOGIA I DURKHEIM, EI\1ILF. .
ED. MELHORAMENTO, ULTIMA EDICAO

Quant.: de 3
Identificação: 2082 . 15 ,19- 12-07 TR-04958
Projeto FADESP: 1854

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