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e00008e8 jacques Reece oeratey ISBN §52050300. 3 vt id Ld s @ Ca 'e e e e CZ 4 e J CJ td C2 id ° C4 Cd e cd » JacquEs DERRIDA Géneses, genealogias, géneros e 0 génio Tradugao de Eliane Lisboa AKO DER_ @ MébiaTHéQue MaisondeFrance BS Editora Sulina Titulo original: Généses, Bénéalogies, genres et le génie © Editions Galiléé, 2003 © Editora Meridional/Suliha, 2005 Tradugio: Eliane Lisboa Capa: Fosforografico / Vitor Hugo Turuga Projeto grifico ¢ editoracao: Daniel Ferreira da Silva Revisio: Gabriela Koz Editor: Luis Gomes Dados Intemnacionsis de Catalogago na Publicacto ( CIP ) Diltecria. Response: Cinamars Lime 5. Pato CRB 10/120 DaB8g Dera, eques ‘Gineses, genelogas, neces eo gai Jacques Derr adhgto do fants Eliane Lisbon, — Porto ‘Alegre: Selina, 2008. ap s2i em ISBN: §5.205.0399.3, 1, Flocfia Francesa Contmparines. 2. Enso Francés. 3. PSs. Eututalismo™ Flosofia, © Crngio Lierria © Artes. Lisboa ane. ital, I Géeeses,géataogies, genres te genie cop: 64891 bu: B40 BS Todos os direitos desta edigdo reservados A Eprrora Merioionat. Lipa. Av. Osvaldo Aranha, 440 cj. 101 Cep: 90035-190 Porto Alegre-RS Tel: (OxxS1) 3311-4082 Fax:(Oxx51) 3264-4194 wwweditorasulina.com.br e-mail: sulina @editorasulina.com.br Tulho/200S Impresso No BrastL/PainteD iN BRazit cer eee armmieraneret tonne RSS Um génio, o que é!? O que dizer do génio? O que dizer deste nome comum que pretende no- mear 0 que ha de menos comum no mundo? Supde-se que o nome “génio” nomeie o que jamais cede alguma coisa A generalidade do nomedvel. A genialidade do génio, se ela existe, com efeito nos leva a pensar no que subtrai_uma singularidade idade do comum, & generalidade ou a genericidade do género "Transcrigdo da conferéncia pronunciada na abertura do coléquio “Helene Cixous: Géneses, genealogias, géneros”, organizado por Mireille Calle-Gruber, que aconteceu na Biblioteca Nacional de Franga, de 22 a 24 de maio de 2003 3 ,O000 2 portanto do partilhavel. Pode-se facilmente considerar |.0 génio generoso, ele no poderia ser geral nem genéri- e as vez co. Pretendeu jue ele consiste em formar | —dizer qué ele excede qualquer tipo de generalidade ou a” genericidade de qualquer género. Outra maneira de as- sinalar que ele excede qualquer lei do género, 0 que se chama © género nas artes, por exemplo o os géneros lite- ririos, ou do que Se chama o gémiero Sexual, a diferenga _ dos sexos. Sem falar do género humano em geral, por- que alimenta-se a suspeita, cada vez que se artisca a palavra “génio”, de que alguma forga sobre-humana, até mesmo monstruosa, vem exceder ou perturbar a or- dem da espécie ou a lei do género. Certo, certo, esta questo (“o que é um génio?” uu “que dizer do génio?”), antes de tentar, muito miais tarde, apds muitas voltas, responder a isso a minha maneira, eu comegaria por inverté-la. Trés ou quatro . vezes ao menos. Nao mais 0 que é um génio? o que < pois? 0 que do génio? Mas quem é, wm génio? quem pois? Depois, segunda conversao, quem é, 0 génio? ( Nao wm génio, mas o génio? Depois, j4 entao, terceira converstio, como ousar hoje, destronando a virilidade de um artigo definido (“o génio”) declinar este nome no feminino? Enfim, em lugar de me voltar para a terceira pes- soa (quem é, 0 (a) tal génio?) no masculino ou no femi- nino, eu me dirijo, eu préprio, por razées que nao reve- “Mas essa € uma outra maneira de | larei no momento & segunda pessoa: “Génio, quem és tu?” Eu te coloco a questo, génio, tu escutas, escutas. Certo, tudo o que eu direi serdis “tu” Aqui-agora, com todo o desejo de honrar 0 aqui- agora do que temos a chance tnica de partilhar neste lugar, eu me disporei pois a sustentar, como se diz su- perficialmente, um discurso.) Quanto se ncnscins se necessita para preten- der sustentar um discurso, eu/Ihes perguato. Esta afluén- cia ou este impulso discursivo, cursivo, furtivo e fugiti- vo que se chama correntemente 0 caminho de um dis- curso, como se deixaria ele jamais sustentar? Reter? Conter? Como manter um discurso aqui agora? Como nao renunciar, de imediato, a sustentar esta fera, a sus- tentar um discurso? Ora eu cometerei, claro, a louca imprudénéia de ndo renunciar, em todo caso de fingir sustentar nao re- nunciar a isso ~e ainda por cima, eu me disporei a fazer de tudo para nele fazer se sustentar uma palavra insus- tentavel. Bsta palavra insustentével, & qual até hoje ja-, i usaria admitir sustentar um instante, se- im de génio. Aqui apostrofado em to- dos os géneros (ei tu, quem és tu), no masculino, claro, mas sobretudo no feminino. Este nome, “génio”, sabemos muito bem que ele in- comoda. De fato. Ha muito tempo. Com freqiiéncia tem- se razdo de suspeitar nele uma abdicag&o obscurantista diante dos inc6modos, justamente, uma concessao 4 gené- tica do ingenium ou, pior, a um inatismo criacionista, em uma palavra, na linguagem de um outro tempo, a cumpli- cidade duvidosa de algum naturalismo biologizante e de uma teologia da inspiragio extética. De urna inspiraciio irresponsdvel e décil, até a embriaguez, de uma escrita di- tada. As musas jamais estiio longe. Na conce: nor legitimidade a palavra “génio”, assina-se uma abdica- ‘fo de todos os saberes, das explicagées, das interpreta- Ges, das leituras, das decifragdes — em particular no que prontamente denominamos a estética das artes e das le- tras, supostamente mais propicias & criacao. Uma tal abdi- ago seria mistica, mistic6ide. Estar-se-ia admitindo uma adoragdo muda frente ao inefaivel disso que, no valor cor- rente da palavra “génio” , associa com freqliéncia o dom ao nascimento, o segredo.ao sacrificio. Mas nao nos prec pitemos em revelar todo 0 segredo. Se “mistico”, em gre- go, remete sempre a segredo, teremos talvez necessidade de recorrer mais uma vez a esta palavra, mistic io da me- Genialidade de quem? Quem €? Quem és tu? Ainda que ele sempre sinalize ramo a um nasci- mento, rumo a uma concepeo e uma criagao, quem ou- sari inflectir a partir daqui este nome de génio para a feminidade de uma origem do mundo? Porque eis aqui uma palavra de nossa lingua nacional que ainda nao ingressou no feminino no dicionrio académico ou em nossa Biblioteca Nacional. Nem mesmo outra singula- ridade gramatical, para designar uma tinica pessoa, no plural. Talvez se possa dizer, no maximo, de uma tinica pessoa, homem ou mulher, que ela é wm génio, ou que ela-tern géni d que ela é ou que ela tem, no plur 2 um génio. A singularidade hist6rica, semantica e pragmatica deste substantivo, €, pois, que sempre 0 reservamos ao masculino como ao singular. Jamais, que eu saiba, se reconheceu, no feminino, os génios de uma mulher. O futuro dessa palavra torna-se portanto mais es- tranho que o destino singular de seu passado. Se este futuro nos € legado, devemos responder a ele. E com esta responsabilidade que eu gostaria de ter a temerida- de de me confrontar hoje. O que vai acontecer com o proprio génio desta palavra? Ao optar por inscrevé-lo em meu titulo, eu jogo, talvez vocés se digam, com deixé-los imaginar que, sem dtivida, sob 0 nome co- mum, eu antecipo a idéia de um nome préprio:.o nome €0 sobrenome feminino, Héléne Cixous, para quem tamos hoje, aqui agora voltados. Mais de um génio em uma, Bis quem merece, claro, em todo caso rodeios € justificacio. Porque eu creio fazer outra coisa aqui que jogar. Jogar o qué, alias, e com quem? Primeiro, poder-se-ia acreditar, jogar com a auséncia de uma palavra, da pa- lavra “génio” precisamente, na linhagem dos substanti- vos de mesma familia em g (géneses, genealogias, 26- neros) que Mireille Calle-Gruber judiciosamente esco- Iheu para a bela armoria do colquio ao qual ela fez-me a honra de convidar. Nao, eu no apenas observei um siléncio prudente, compreensfvel e sem diivida motiva- | do, a falta, 0 lapso, eu nao diria 0 lapsus, mas talvez a elipse que, com sua auséncia flagrante, como 0 efeito denunciador de uma falha, abre um buraco na paisa- A gem seméntica de toda uma geragio de vocabulos. Gé- neses, genealogias, géneros, no plural. $6 faltaria, ai da no plural, génios. Je Muito depois, se eu tivesse que propor algo seme- Ihante a uma tese, eu tentaria mostrar em que 0 concei- to de génio, em se tratando de tal, deve se libertar de seu sentido corrente e mesmo de sua concernéncia, no entanto evidente ¢ verossimil & série homogénea, ho- mogenética, genética, geracional ¢ genérica (gén: genealogia, género). Subtrair-se a isso e até mesmo per- turbar-lhe a. ordem. ~ ‘Acabo de evocar “a linhagem das palavras de mes- ma familia em g”, para atrair sem demora sua atengio sobre um fenémeno a virias vozes. Uma espécie de cru- zamento ou de um coro, se quisermos exercer nossas memérias gregas, de Bdipo a Antigona, das Euménidas ( a Helena. Tal fenémeno a mais G8 una voz deveria in- ~ quieiar entretanto, por séculos, a vigilancia insone dos leitores, intérpretes, fildlogos, decifradores de todo tipo, psicanalistas, fildsofos, dramaturgos, historiadores, ar- quivistas, amantes da literatura que se inclinardio, como 10 se diz, sobre este fundo sem fundo, obra e além obra, que & Biblioteca Nacional da Franga Héléne Cixous lega generosamente ~ a generosidade, eis uma outra palavra da mesma familia em g, muito perto de géneses, genealogias, géneros —e de génio. Ou melhor, precisa- rei logo a seguir para colocar-me junto a esse enigma, este fundo sem fundo de que Héléne Cixous faz dom; — ou empréstimo — a esta instituigao nio menos generosa € enigmética que se chama a Biblioteca Nacional da Franga. Tratar-se-A, de fato, de um dom e um contra- dom generoso? E se sim, ou se no, em que sentido? E para expor.o dom, a doadora ¢ os donatédrios, a que pe- tigos, a que ne responsabilic: ides arriscadas, eis uma das. intiméras ¢ quest5es que Os esperam, ¢ para as quais as “Tespostas™ qe [He eu tentaréi servo tudo salvo tranqililizan- tes ¢ wandUlilizadoras. Tais questdes deveriam girar em torn da esSéncia, em torno do destino, da vocacao e do futuro de uma instituigao tao extraordinéria quanto uma Biblioteca Nacional da Franca, assim como em torno do arquivo (obra e além-obra) de Héléne Cixous, na data em que vém a se estabelecer em confianga recfpro- ca 0 comprometimento miituo e a alianga quase testamental que serdo esta noite meu tinico tema. E meu Yinico tema, porque me imporei como regra estrita ex- cluir de meu propésito tudo o que nao se referir direta e legivelmente ao que acontece neste lugar, a0 aqui-ago- ra, 8 experiéncia do acontecimento ao qual nds estamos todos associados — e solicitados a refletir. iL Um fendmeno a vias vozes, eu dizia, to, coro e plurivocidade, ~ Acontece, primeiramente, que 0 que se trava € se joga, nesta familia de palavras em g (géneses, genealo- gias, géneros) € também uma dramaturgia da familia, da origem, do nascimenta e da Tiliagad do nome. Ora, af se encontra também, como seus leitores ¢ leitoras 0 omo seus leitores ¢-Ieitoras 0 ruzamen- sabem bem, a intriga poderosa, constante, reunida, aco- fedora e recolhida da obra de Héléne Cixous, sua intri- ga a mais Intfiganl, irradiadora através dos raios de suas cerca de cingilenta ¢ cinco obras e dezenas de mi- Ihares de paginas inéditas, cartas, sonhos ou documen- tos de toda género. Se o fenOmeno se dobra e se multiplica, é pois também, em segundo lugar, porque encontra-se que (¢ eu me arrisco a dizer elipticamente que uma genialida- de consiste talvez sempre em se encontrar, nao apenas encontrar a si mesmo, descobrir-se ou inventar-se, cair ou recair sobre si mesmo, mas se encontrar, entre tantos acontecimentos, de modo quase aleatério aqui ou 14, em lugar do outro, como © outro no lugar do outro), esta mesma famflia lexical — génese, género, genealo- gia, generosidade — e 0 génio, etc. - dobra-se em dois. Ela se reflete, esta familia de palavras, ela prépria dela propria, ela se vira e revira para encontrar a si propria para dizer precisamente alguma coisa da famflia, do nas- cimento ¢ da fi Esta i familia nomeia pois também os nomes de familia. Bla satida a heranca 12 do nome: génese, género, genealogia, generosidade — © génio. Acontece, em terceiro lugar, que tudo parece vol- tar a literalidade de uma letra. Tudo parece sustentar-se na letra g (pronunciada ge, como em génio, generosi- dade e genealogia, talvez. como no langar que langa, como no lance do lance de dados por exemplo)*. A le- tra g inscreve, tal um Jogos que estaria, proverbialmen- te, no comego de tudo, a inicial absoluta de um nome proprio. Tal o nome de Deus, titulo do primeiro livro de Héléne Cixous, este nome préprio precede, guarda e cuida de toda iniciagio a obra. Nome que se encontra ser, na vida como nos livros, 0 nome de um paie de um filho, na verdade, Georges, nome tao aleatério quanto destinal (encontra-se ser assim), nome, primeiro nome do qual se diria que ele é interpretado, arriscado, dispu- tado, posto em jogo, posto em cena e posto em onda como a obra-prima da obra. Nome dade como-na ficgi inspira tudo, imiscui-se em tudo, vela sobre tudo, cuida _até do inconsciente dos sonhos mas sem a malevolén- ‘cia de'tim génio maligno. A presenga desse génio bom presente na reali- Ele assiste a tudo, assiste tudo, sequer causa incémodo, ela é discreta como uma som- bra espectral, silhueta. mais do que viva e diferente de ? Le jet qui jette... le jet du coup de dés. O autor abre aqui as observagdes sobre os cruzamentos em jet (jato, lance, jorro), jeter (jorrar, langar) e depois je (eu) que surgem ao longo da obra de Cixous. (NT) 13 morta, justo o que é preciso para portar um nome que povoa todos os livros mas se presta tio generosamente a mil e uma metamorfoses, metempsicoses e metonimias anagramaticas de qus icticio de Gregor, numa das mais recentes ficgdes ditas ficticlamente autobio- um exemplo entre tantos e tantos outros, que & que se Ié, no encarte® desse livro publica- do ha menos de um ano mas que teria podido ser o pri- meiro, e mesmo 0 pré-primeiro? Inicialmente como o vemor de terra entre 0 corpo do corpus literério e o corpo de sua proto-historia, talvez de sua pré-histéria, cae o arquivéyel ea arqui-arguivayel de um pré- arquivavel, talvez de um inarquivavel que hesita ele proprio entre a ficgdo e a memoria, a imaginacfio e a dita realidade, uma realidade que duvida de si mesma no instante preciso de ser dita, a dita realidade. Porque, a julgar pela data a que ali se faz referéncia, 1964, esses acontecimentos da suposta vida real aos quais o livro diz se referir so anteriores & publicagao de qualquer livro por Héléne Cixous. De modo que 0 préprio encarte deste livro de 2002, Manhattan, subintitulado Lettres dela préhstoire, justifica-se ao anunciar que o que se passa ni © (isto 6, os acy modo de fice literati) sao na =~ somente exteriores mas * O termo francés € “priére d’inserer”, que identifica todo encarte impresso sobre uma obra que é juntado a ela nos exemplares diti- gidos a critica, (N.T.) 14 relatados a_ anterigres a qualquer literatura, a toda a obra literdria assinada Héléne Cixous. E de uma certa maneira inegé- vel, mas isso néo deve inibir nossos questionamento. Serd assim to simples? O favor inserir declara: ‘Tudo se passa no antes da obra, estacaio pré-his- t6rica onde os personagens apaixonados pelos gran- des autores mortos ja se véem em sonhos transforman- do-se em livros, volumes, aproximam-se da “Obra” sonhada a passos de lobos, a passos de loucos...* Um extra-obra, uma espécie de exergo, 6 encarte, nos lembra assim que a histéria do que se passa em re- alidade no livro, “ _Passa-se no a antes da obra” — e eis uma tarefa e quanto prazer em perspectiva para os bid- grafos e esses bibliotecdrios arquivistas legitimamente preocupados, mas no mesmo sentido quiio despreocu- pados, em distinguir entre antes da obra eo além da obra, o fora da lei da obra. Os depositarios do arquivo correm o risco de se ver, pela estrutura retorcida do arquivo, desprovidos de qualquer poder e autorida- de sobre ele. O arquivo nao se deixa levar, parecer re- sistir, da trabalho, fomenta uma revolucio contra 0 pré- prio poder ao qual simula se entregar, emprestar-se & mesmo doar-se. Mas sobretudo, estamos a partir de ent&o avisa- dos, pelo préprio encarte: ele nos lembra que a grande obra, « * Héléne Cixous, Manhattan. Lettres de la préhistoire, Galilée. 2002, encarte, p. 3 sinfometonimia dos nomes em g vai iniciar-se por uma ‘cena primitiva, como essa manha, numa biblioteca. Na Biblioteca. Com um grande B. Esta Biblioteca de Ma- nhattan encontra-se entao escrita, erigida, monumen- talizada, maiusculizada. Ela representa a alegoria da Biblioteca absoluta, ao mesmo tempo timulo e monu- mento conservatério, adeus e saudagao, saudagao a Li- teratura e salvacio da Literatura, sobrevivéncia e so- brevida de uma Literatura, “Oni-poténcia-outra”, como a nomeia e define Héléne Cixous. “Oni-poténcia-ou- tra”, expressio a tracos de unido que se encontra ela também escrita, como a Biblioteca, com a maitiscula de um singular geral (a Biblioteca, a Literatura, a “Oni- poténcia-outra”), portanto com uma maitiscula tam- bém apropriada aos nomes préprios em g, por exem- plo Gregor ou Georges. Nas poucas linhas que agora vou citar, trés pala- vras em b também se encontram majestosamente engrandecidas com uma maitiscula: Baleia, Banimento, Biblioteca, Blas mereceriam varios volumes de exegeses para dar conta do papel que representam em Manhattan e em toda a obra de Héléne Cixous. Renuncio a isso como a tantas glosas necessérias com as quais nao abar- rotarei 0 espago e 0 tempo que nos concede tao gracio- samente esta grande Biblioteca Nacional da Franga que ainda nfio sabe dos problemas que a esperam com o corpus que ela esté a ponto de pretender, como a Ba- ee leia, engolir e guardar consigo: 16 | | | | Entre todos os Jonas em busca da Baleia em cujo ventre cumprir os ritos do Banimento, encon- va-se (ela também diz, vocés acabam de ouvir, “en- ‘contrava-se” e o personagem biblico de Jonas, assim como o nome Jonas, pertence a familia e a obra Ci- xous, & génese, A genealogia e as obras de todo géne- ro de Héléne Cixous; Jonas est4 af 4 vontade em qual- quer lugar, como acabava de lembra-lo, uma linha antes, um pardgrafo que fazia, ele proprio, alusfio a0 livro precedente, Benjamin & Montaigne. Il ne faut pas le dire: “...0 personagem de Amerika de Kafka de quem Benjamin Jonas, irmio menor de minha av6, era o grande companheiro...”) entio um Gregor, per- sonagem realmente fabuloso ¢ ir stdvel desta tentativa de relato. ~ —_ Um dia de 1964, em Manhattan, na virada de um destino bem jovem e j4 marcado pela repeticio da morte de seres queridos sempre de nome Georges, entre a jovem mulher que amava acima de tudo no mundo a literatura e 0 jovem de espirite caleado nas obras mais enfeiticantes da Biblioteca, produz-se o Acidente mortal a 7 aaa A fatidica cena primitiva, « do “mau olhado” se / produz na realidade (exatamente como se ela tivesse | sido escrita por Edgard Poe) na biblioteca tumbal de Yale. / Suspendo por um instante minha citacaio. Desta vez acontece que uma biblioteca particular institui o teatro, delimita um recinto teatral préprio a dar lugar. Tal biblioteca, € fato, tera dado lugar. Metonfmia ou 17 alegoria de qualquer biblioteca universal, portanto j4 maior do que ela, uma biblioteca singular coloca-se, presta-se ou se dé, como lugar, ao acontecimento que se passa, ao que, nos dizem, acontecera “na realidade”. Essa biblioteca que da lugar, nao é nem uma biblioteca universal nem uma biblioteca nacional, somente uma biblioteca entre outras — ela propria localizada na Amé- rica, em Connecticut, e nominada sem maitiscula. Sem diivida a biblioteca de Yale permanece uma imensa excegiio, e Sobretudo a Beinecke aqui evocada; conhe- go bem esse célebre ediffcio de paredes de pedra translticida que deixam uma luz inofensiva e natural iluminar de fora, vinda do sol, 0 arquivo de tantos en- tre os maiores escritores da “outra Todo-poderosa” que € a Literatura mundial. No recinto mamifero dessa bi- blioteca Beinecke, a autora nos diz ter lido, em varias linguas, trés Ulysses ag mesmo tempo, o de Homero, ode de Shakespeare eode Joyce. Ca Cada um desses Ulysses, cada uit de“Seus geniais criadores € potencialmente incomensuravel frente a qualquer biblioteca que su- postamente deva abrigé-los, classificd-los, ordené-los. Maiores ¢ mais poderosos que as bibliotecas que fin- gem ter a capacidade de abrigé-los, ainda que virtual- mente, eles perturbam todos os espagos de arquiva- mento e de indexagio pela desmesura da memoria potencialmente infinita que condensam de acordo com procedimentos de escrita indecidiveis dos quais ainda nao existe qualquer formulagio completa. Passa-se 0 18 mesmo com a obra imensa de Héléne Cixous, daqui a pouco direi inclusive porque, conforme penso, isso vale Para cada um de seus livros, talvez mesmo para cada uma de suas cartas. Por mais insubstituivel que ela seja pelo que ali se passou, nos diz a narradora, “na realidade”, essa biblio- teca singular, a Beinecke, nfio passa de uma representa- ¢4o exemplar mas infinitamente ampla da rande Bi blioteca alegérica. Esta é a situagio de leitura que nos € feita: contam-nos e pedem que acreditemos, numa fic- ¢fo, levando em conta, sobretudo, a insisténcia visfvel dos itdlicos, que o que se passou ld aconteceu na reali- dade. Mas esta é também a lei da Oni-poténcia-outr ‘a, portanto da Literatura, jamais nos sera permitido deci dir, nesse caso como no das grandes ficgées literdtias, as de Poe em particular, se 0 “na realidade” nao dissi- mula um simulacro suplementar. Apesar dos itélicos que Parecem querer desafiar a ficgio, ou rasgar o véu, ape- sar desses caracteres que vestem os itdlicos como a mascara de um personagem de teatro ou de um coro de tragédia vindo Ihe advertir — “Ouga, saiba-o, isto acon- teceu “na realidade”~ resta impossfvel decidir se este ng realidade € ainda imanente A ficgao, tal um tremor da sobrecarga ficcional, um efeito aaa dain- vengio, seja da flagao autobiogrition.s e.ainds sso ute al Segredo, nao é uma: ‘Substancia, uma ene: gia impessoal ou natural, é também alguém. A maitis- cula pde em cena desta vez a prosopopéia. Nao de uma mascara ou de um rosto falante mas de alguém que, sabendo calar-se, ¢ ser calado, um calado devotado ao siléncio do inconfessdvel, se habilita a guardar um se- "0 termo francés para parteira, sage-femme também nos oferece a possibilidade de mulher sabia. (N.T.) ae gredo ou a determinar desde sua Oni-poténcia-outra, ainda que tacitamente, sem dizer palavra, o imperativo categérico do segredo incondicional: Segunda-feira 2 de abril de 200] {a passagem em itélico comega assim por uma data que interrompe 0 calendario do relato citado, ou seja o que se teria passa- do na realidade em 1964 para voltar ao presente, aqui- agora, do relato relatando ou da escrita se escrevendo], a antipatia pela palavra Sacrificio me despertou {ela dormia, ela acabou portanto de acordar, de ser acorda- da, ao amanhecer, pela palavra Sacrificio que ela tam- bém, como o “Segredo”, se alegoriza de uma maitiscu- la], a palavra sacrificio volta todas as manhas, ela é a primeira no papel as sete horas (portanto o sacrificio ‘ou melhor, em todas as letras, 0 nome “sacrificio” & todas as manhas, as sete horas, o primeiro a levantar, 0 primeiro a se acordar e a acordar, na vida da autora. O que entfio se acorda e acorda, é 0 sobressalto de uma palavra, 0 “sacrificio”, o substantivo “sacrificio” numa palavra, 0 vocdbulo “sacrificio” em fissiio, em fisstio de fios e de filiacdo gritante], é a festa no mundo vivo, os passaros procedem a celebragdo, assumindo 0 canto na ordem cada um a seu tumno e com algumas notas ‘marcando sua presenga no caderno do mundo neste dia, exemplo de respeito e de alegria que nds, os nao-pds- saros, os agitados humanos, ndo temos a possibilidade Jfebril de acompanhar as sete horas no caderno do mun- do a paz é assinada pelos pdssaros, mas sob minha plu- ma é a palavra Sacrificio que se langa®, viscosa de *® V, Nota 2. (NT) 40 sangue fervithante de vermes. (Dit-se-ia que a palavra _Sacrificio se langa sob sva pluma como sob um auto: 6 despedacada, “mével para se dar a mo: S Verde, numa espécie de atentado-suicida auto- sacrificial que vai pér o proprio szcrificio, a palavra sacrificio, em farrapos, decompondo-a ou desarticulan- do-a, n&o para desarticular a linguagem mas para, a0 contrario, rearticulé-la, a partir de seus membros esparsos, numa frase exclamativa.] A forca de escuta- Ia esfregar seus élitros fiinebres no meu silex, eu.a en- tendo e anoto suas notas. Ah! Isto grita: filhos! Tu le- vaste tempo nisso eu me digo. [Q gtito dos filhos esté or todo lado na obra de Cixous, o filho af € gritant iembrar 86 das duas obras imediatamente precedentes, eu reenvio numa palavra ao irmao denominado no final de Benjamin & Montaigne, 0 “filho fugitivo””, e sobre- tudo a Le jour oft je n’étais pas 1a cujo filho perdido talvez tenha alguma relagiio de contigilidade sincrénica, a0 menos ~ eu entrego esta sugestao criptada aos arqui vistas —, com o Gregor da biblioteca.] E eu me inclinei diante das Forgas (maitiscula] impressionantes que nos levam: a forca da surdez, voluntéria, a forga da recusa, involuntéria, a forca da fuga, involuntaria, ea forgado Segredo [maitiscula] que é paciéncia infinita, total re- sisténcia ao tempo. Ele é indesalojével. Ele se faz de morto. Mas é um falso morto: ele néio se decompée. Ele se aloja fora de nds em nds morre durante dezenas de anos inalteravelmente. Ele governa imdvel a totalida- de de nossa peca de teatro e n&o savemos nada disso. " Benjamin @ Montaigne. I ne faut pas le dire. Galilée, 2001, p.249. 41 Ele é causa de todos as nossas escolhas e néio-esco- thas, razdo de nossas loucuras, autor de nossos desgarramentos e de descobertas. (p.29-30) Ela escreve portanto, € preciso dizé-lo, ao desper- tar. Ela escreve, certo, ao despertar,o que se deve en- tender sob essas palavras? Que ela escreve no momen- to de acordar, claro, como acabamos de ter o exemplo (“a antipatia pela palavra sacrificio me acordou, a pala- vra sacrificio volta todas as manhis”); ela escreve a0 acordar, ao amanhecer, ela escreve ao acordar, com a ajuda do acordar, como se diz, e é verdade, ela escreve a mio, na beira da cama para anotar seus sonhos. Ela escreve sempre a m4o, acontega 0 que acontecer, ela escreve com o instrumento — l4pis ou caneta —, isto é sem méquina nem maquina-instrumento; sem maquina de escrever ou maquina de tratamento de texto. Coisa atualmente bastante rara e decisiva para o imenso ar- quivo de que falamos, ¢ eu teria amado consagrar algu- mas 1eflexdes, entre todas as que se imporiam, a feno- menal manuscritura de Héléne Cixous, a sua forma, suas linhas, seu ritmo e & economia de suas abreviagGes qua- se estenotipicas, a seu corpo grafico e as implicagées arquivisticas que nisso se encontram comprometidas. Quem nao viu a prépria linha de sua escrita manual per- derd alguma coisa de essencial naquilo que comunica ao corpo do texto publicado essa vida inspirada e essa animalidade, essa manualidade suave da pena, essa ace- lerago paciente da letra, fina, viva, 4gil, segura, econé- 42 mica, clara, legivel, levada por uma cursividade inin- terrupta e inimaginavelmente curiosa, isto é, preocupa- da em encontrar rapido, em nao perder um instante e encontrar antes mes! lo, Sabemos que ela o procura ha séculos e sabe desde sem- pre onde tem que procurar 0 que ela acaba de encontrar no lugar certo, no Angulo de um certo ramo. Sua escrita me faz pensar em todos os esquilos do mundo. Portanto, desde sempre ela escreve ao despertar, a mo, na beira da cama, num dos mil ou dez mil cader- nos que herdaré a BNF. Ela escreve ao acordar para anotar seus sonhos. Mas com freqtiéncia, como no pa- ragrafo que acabamos de ler, o proprio sonho é que in- terrompe o sono. O sonho desperta. O sonho velae ele vela a enderegar injung6es inflexiveis & vigilia, a cons- ciéncia vigilante ainda na meméria do sonho — uma memiria inaudita, de que no conhego outro exemplo. O sonho determina ent&o a ordem de escrever, de ano- tar, talvez até de comecar a analisé-lo, a ele, 0 sonho. Que guarda em si a forga, a iniciativa e o segredo, ja que elé faz uso desmedido déss esse poder que exerce so- bre ela, sobre uma escrita qi pois sé entender somente como “ela escreve no momento do despertar”, mas também como “ele escreve a lépis, ele escreve a tinta, ela escreve a mao”, ela escreve ao despertar do sonho, ela escreve consumindo a energia 43 onfrica do despertar, como se diria de um foguete que ele se propulsa, por exemplo, € se move & energia at6- mica, Sua escrita entra em funcionamento ao despertar, no momento do despertar, mas também gragas a ener- gia do despertar, ela funciona ao despertar, queima a energia de um despertar que é também a ordem do so- nho, 2 ordem do sonho mas no da ordem do sonho, & ordem do sonho que também ordena, ativa e passiva- mente, sua prépria interrupgo. O sonho interrompe a si proprio. Como € possfvel? Ele se cala fazendo falar dele, em seu lugar. Ele € calado. Mas o despertar, este primeiro despertar vela j4, vela com todas as suas for- cas, vela sem medida, cuida, vela ainda sobre o sonho, ele sonha despertar todas as poténcias do sonho inter- rompido. Do sonho que vem de se calar, porque ele aca- ba de se calar, ele vem, ele provém do fato mesmo que ele se cala ao falar. O despertar se mantém na beira do sonho calado, como se 0 sonho passado permanecesse ainda a vir ou a voltar. (Ocasiao de aflorar aqui, muito rapido, de passagem, o enigma insondavel de uma es- pécie de desfiliagao, na grande lingua da Franca, entre duas familias que se julgaria serem aparentadas®. Fago aqui alus&o a uma surpreendente dissociagio etimolé- gica entre as palavras sonho (devaneios, pesadelo) ouo verbo sonhar de um lado, de origem aparentemente in- determindvel, puramente francesa, sem primos em ne- °° A observagao justifica-se no francés, dada a semelhanga das palavras réver (sonhar) réveil (despertar), e seus derivados. (N.T.) 44 nhuma outra lingua, e, de outro lado, a vigilancia da vigflia, da véspera, do acordar ou do despertar, Iéxico cuja filiacao latina é rica e bem evidente. Entre sonho e despertar, em suma, nenhuma relag%o, nenhum Lago de familia, como deve set e como se 0 tiltimo, o despertar, niio tivesse nada a ver com o primeiro, 0 sonho.) Escre- ver ao despertar, € entregar-se de corpo e alma, todas as manhis, a uma cena de ressurreigao e de adoragtio. Ora- co A beira da cama, palavra de prece amorosamente enderegada, como uma carta escrita tio corpo do sonho, no corpo de sonho, mas também no préprio corpo de um sonho j4 desperto, senao satisfeito. Mas também uma palavra escrita ao despertar, enderegada e destinada ao Aespextar. Como se 0 despertar, ao sair do sonho, em seu ae stivesse ainda na vigilia do sonho. De um sonho J¥sorhado que entretanto espera ainda ser sonhado de novo, desperto e revelado a si proprio, em sua verdade. Como sob a autoridade de um veredicto cujo veredictum, cuja verdade exigird ser dita, o sonho, por mesmo, pée fim a si proprio enquanto se guarda: intacto e ao mesmo tempo transfigurado, as vezes criptado em sua transcrigao. Escritos as pressas, mas com aplicacao, com a ajuda de um sistema de abrevia- gées e de iniciais mais cursivas do que munca, todas essas anotagdes de sonhos sobre-vivem, transitivamen- te sem duivida, a cor, a intensidade afetiva e 0 trago des- acc ao mesmo tempo inaudito € cotidiano sonh mper a ste, para o tempo do sonho, em inten 45 si mesmo, mal retomando seu fOlego, todas as manhas bem cedo (porque h4 muito tempo ela se deitou bem cedo e portanto levantou-se cedo, como para cultivar essa alquimia do sonho e dar luz a esse nascer da escrita ao despertar). Ao intertomper a si proprio, sonho guar- da no despertar 0 trago da interrupgiio assim como o traco do que ter sido assim interrompido. Dezenas de milhares de anotagGes de sonhos exigirfio séculos de decifraces ~ sobretudo na trama enredada que os liga a obra publicada e dita literdria, ficcional, teatral, até mesmo diddtica (porque a obra institucional, do mes- mo modo criativa, de Héléne Cixous, como seu traba- Iho universitdrio de pesquisa e de ensino, apesar de suas exigéncias proprias, especfficas, separadas, disciplina- das, deixa um arquivo monumental sobre suportes di- versos — anotages em papel, Audio e videocassetes — que também esto, eu diria, numa cumplicidade essen- cial, como de inteligéncia, com todo o resto do corpus = literario, ficcional piblico ou nao, incluindo-se af o corpus nao compreendido, nao compreensivel dos $0- nhos). Mas escrever ao despertar, isso subentende ain- da outra coisa. Hino enderegado ao despertar, talvez, mas sobretudo, o que é toda uma outra coisa, e todo um outro despertar, a escrita ao despertar marca uma ruptu- ra absolutamente heterogénea. Pode-se, se se quiser, chamar a isso de consciéneia literdria. Mas € uma consci- @ncia mais que consciente e cuja heterogeneidade est também em situacao de obediéncia heterondmica ao 46 olhar da Oni-poténcia-outra da literatura, Dessa vez, a cesura do outro despertar nao se inscreve mais entre o tempo do sonho ¢ o primeiro tempo do despertar, mas ela faz 0 salto de uma interrupgao na interrupgio que inaugura 0 trabalho da escrita vigilante, o tempo diurno da operagao propriamente literdria. EsttAindla manten= do milagrosamente o fio do sonho (porque para mim, af esté o milagre), a genialidade da escrita, corta-o entre- tanto instantaneamente e transfigura sabiamente todos os dados,.levando em conta, para incorpord-los tanto quanto para suplanté-los, todos os recursos de uma enor~ me experiéncia literdria, de uma ciéncia incompardvel da lingua, das mil ¢ uma bibliotecas da literatura uni- versal para criar acontecimentos absolutamente sem precedente, e sem continuidade, sem escolas possfveis, 14 onde, eu o precisarei em breve, a genialidade consis- te necessariamente em fazer chegar, em dar lugar, em dar simplesmente, em dar nascimento A ohra como acon- tecimento, rompendo paradoxalmente com qualquer genealogia, qualquer génese e qualquer género. F af, eu me-explicarei_melhor mais a frente, que a genialidade dos_génios de qualquer género deixam de pertencer a. familia homogénea da_génese, do género e da genealogia. Poder-se-ia encontrar um exemplo dessa cee ruptura, mas dentro da prépria ficgao, em Manhattan, ainda, quando, apés a passagem transcrita em itélico, na data da segunda-feira, 2 de abril de 2001 (a respeito da palavra sacrificio e da “forga’ do Segredo”), ela en- 47 cadeia, em romano: “A noite de Certes eu observei”, etc., palavras seguidas, como no inicio do livro e desse primeiro capitulo intitulado “Certes um Sacrificio”, por um impressionante trabalho sobre a palavra lado, de lado ou ao lado do irmao. O livro comega por uma frase que merece, com tantas outras, a imortalidade: “Eu nao que- ria ir a Certes e ali ia eu lado a lado com meu irmao eu fago sempre 0 que eu nao queria fazer eu pensava...”. O top6nimo Certes, sob sua forma adverbial e ainda desta vez maiusculizada, € o anagrama ou o cripténimo de Segredo™, No titulo “Certes, um sacrificio”, nao se sabe se a maitiscula designa a primeira letra da frase ou um nome préprio. Em seguida, pode-se compreender, se estamos atentos, que Certes, com maitiscula, é um dos intimeros criptos, a transformacao em nome préprio de um advérbio. Certes é um dos personagens mais fantés- ticos, como lugar, isto é, no sentido ret6rico, como fi- gura ou tropo, e como a destinagiio — ou o destinatario — secreta, 0 alguém que guarda a forca do Segredo, seu anagrama. A menos que ela, a forca do segredo, no o guarde, Cada vez que disse “certo”, talvez vocés 0 te- nham observado, e foi freqiiente, eu murmurava em se- gredo, segredo, 0 avesso de um segredo bem guardado. Esse despertar ao despertar € portanto a extrema vigilancia da mais refinada e mais habil, mais audacio- 21 Jogo de palavras com certes (certo) ¢ secret (segredo/secreto) (WT) 48 sa mas também a mais vigiada, vigilante consciéncia literdria, aquela que sabe como nenhuma utilizar-se do segredo da literatura, esta poténcia criptopoética que pe tudo sob selos, os selos ¢ as chancelas da lite- ratura universal na nova lingua francesa, tudo o que « “ no se deve dizer. Ela pde sob selos, ela condena, como se condena uma porta ou como se condena 0 leitor a nao ler o que ele 1é ou a ler 0 que ele nao sabe ler. A ficar diante da porta condenada andando infinitamen- te no labirinto que o atravessar a porta supde. Tudo 0 que Héléne Cixous dé a BNF permaneceré sob selos, legivel ilegivel, isto é sob o signo ou 0 yeredicto dessa condenag&o que nao apenas jamais impediu alguém de ler, mas abre ao contrério um campo infinito A lei- tura e a sua frui¢&o — ao amor da Oni-poténcia-outra da Literatura. A porta esté condenada mas entre assim mesmo. Que cada um sofra as conseqiiéncias disso. Recordo 0 subtitulo de Benjamin & Montaigne: néo se , deve dizer, e o subtitulo, entre parénteses, da mais po- / derosa peca de teatro que eu tenha jamais visto, LHistoire (que nao se conhecerd jamais). / ~~ que separa a genialidade de tudo o que poderia ligé-la continuamente a uma génese, a uma genealogia ou a um género, nao € pois esse acontecimento absolu- to que designa o limite indizivel entre 0 segredo ¢ 0 fendmeno do segredo, entre o segredo e o aparecer fe- nomenal do segredo como tal? E af que a genialidade dos acontecimentos geniais comunica-se com a Litera- 49 tura, com sua Oni-poténcia-outra. Porque esse limite indecidivel, a Literatura o traga no instante de dissimu- lara vocés em sua cifra 0 segredo que ela guarda, certo, mas que ela guarda absolutamente em seu poder, en- quanto Ihes dé a re-ver, sem Ihes deixar a menor chance de apropriarem-se dele, isto é, privando-os do poder ou do direito de optar entre a realidade e a ficgdo, entre a ficgao que é sempre um acontecimento real, como 0 & também a imaginaga ue sem “Corte 0 tisco de Hao ser mais do que ficgaio. E assim ao menos que interpreto a palavra “ou- tra” na nomeagao que Cixous reserva a Literatura, “Oni- poténcia-outra”. Nao insisto, por té-lo feito longamen- te em outro lugar, no que ela faz acontecer com a pala- vra “poténcia” na lingua francesa. Em troca, gostaria de tentar explicar a outra, o atributo outra, na expressio “Oni-poténcia-outra”. Esse poder préprio da literatura consiste em dar-lhes (é um dom, genial e generoso), em dar-lhes « ler ao mesmo tempo privando-Ihes disso ou melhor gragas ao poder, gracas A graca que Ihes é feita de retirar-Ihes ou de denegar-Ihes 0 poder e 0 diteito de decidir, de optar entre realidade e ficgao, testemunho e inven¢do, concretude e imaginacao, imaginagao do acontecimento e acontecimento da imaginagao, etc. Essa poténcia que os mantém sob sua lei, dé-lhes e retira- ® Seria interessante saber em que outro lugar... Puissance (poder, Ppoténcia). (N.T.) 50 dita realidade que sempre. Ihes 0 poder, ela Ihes dé 0 poder e 0 direito de ler pri- vando-os de qualquer soberania, submetendo-os a ela. E pois, para falar propriamente, uma poténcia de hete- ronomia. E uma lei que nés no nos damos de modo completamente aut6nomo. Ela nos submete & experién- cia do tudo-outro como poder do tudo-outro ou Oni- poténcia-outra. Mas herdeira perjura, nisso, das santas Escrituras, herdeira ao mesmo tempo mais que fiel imperdoavelmente blasfematéria de todas as Biblias, & literatura resta lugar absoluto do segredo mesmo des- ta heteronomia, do segredo como experiéncia da lei vin- da do outro, da lei cuja legisladora nao ¢ outra sen’o a_ prdpria vinda do outro, nesse desafio da hospitalidade incondicional que nos submete a isso antes mesmo de qualquer condigio, qualquer regra, qualquer norma, qualquer conceito, qualquer género, qualquer concer néncia genérica e genealégica. A hospitalidade incon- dicional desse dom singular nos submete a isso e dis- poe de nds antes mesmo que imaginemos propor, exor tar ou esperar 0 que quer que seja-de determinado. Eu digo “nos submete a isso”, deveria precisar “nos langa nisso”, porque esta expresstio volta com freqtién- cia (como agora ha pouco a respeito da “palavra sacrifi- cio que se langa”, mas se poderiam encontrar milhares de outros exemplos).O que € 0 lancar disso que nos lan- ¢a, € que, por definigiio, acontece ser mais poderoso que nds — mas mais poderoso que nés em nés? Isso se parece, esse langar, ao mesmo tempo com o movimento 51 Pel Jegiio. poder: \Tas subterraneamente com o nome do pai em g, e com ou os batimentos de um pulso, de um impulso, de uma pulséo compulsiva e irresistivel que nao pode deixar de ir como se por si prépria a frente do todo outro mais perigoso, mas que se dé também, se consagra, se langa como um rio no mar, como uma crianga vulnerdvel e desamparada, no desafio de um abandono (Geworfe- nheit) onde 0 jato do se langar™ encontra-se A mercé do poténcia-outra, chamado pelo outro, ima- ginado pelo outro antes de qualquer reflexividade, até mesmo suicida. Quando alguém se langa ao outro, seja para o amor ou para o assassinio, sempre se encontra com o langamento do outro, que acontece ter sido lan- gado ali a sua frente Mas a sflaba “jet”, antes de estar comprometida, ou até mesmo de ser retirada de uma palavra, esta sila- ba “jet” da qual acabo de explorar tantos recursos, lati- nos € filos6ficos (sujeito, objeto, projeto, ob-jegao e ab- a acrescentar subjéetil) para comnnicé- um idioma alemao tao presente na genealogia de Cixous, por sua mae germanéfona, portanto com o pensamento heideggeriano do ser-langado como Geworfenheit, mas também com a tradugdo do Gegengstand, desse objeto do qual se dizia também outrora, antes de Kant, Gegenwurf (0 que é langado a frente, de encontro), e portanto de tudo 0 que vem de encontro ou ao encontro ™V, nota 13, (NT) na cadeia poético-semantica de que Celan rejustifica e reconfigura o pensamento em Le Méridien (gegen, con- tra, Gegend, a regiio, 0 Gegenwort, a contrafala da Lucila de Bi chner, 0 Gegenwart, 0 aqui-agora, ¢ a Begegnung, 0 encontro), esta extraordinéria sflaba triliteral em jet, € preciso lhe reconhecer ao menos dois alcances (no sentido de pauta musical ou de postura genitora ou matricial), ou ainda dois destinos extraor- dinérios.* Por um lado, ela abarca e mexe com toda a histéria do que, no pensamento, o pensamento filos6fico ou 0 pensamento da filosofia em particular, tal como ele me parece, em seus avangos mais inéditos, ser questionado nessa obra, encontra-se antes de mais nada configurado pela imagem do jet (objeto, sujeito, projeto, objegiio, ab- jecdo, Gegenwurf, Entwurf, Geworfenheit) e pela ima- gem do jorrar-langar no lance, 0 aleatério do lance de dados, isto é, 0 pensamento do acontecimento, da cheganga do que ou de quem chega, do outro como o ‘ue se passa, pensamento que niio se dissociar4 jamais da experiéncia ao longo da qual os dados sf langados.. Mas, por outro lado, esta poderosa formalizagao do “jet”, que compreende a maior generalidade da bi- blioteca Cixous, que forma seu elemento no sentido de “meio” geral , eis que ela se encontra também dissemi- > A palavra francesa € portée que abarca estes dois sentidos, 53 nada como particula atémica, fonema ou grafema qua- se insignificante, como elemento no sentido esta vez do stoikheion dos atomistas, no sentido da letra ou da com- posi¢ao minimal de letras na sflaba, na palavra ou frag- mento de palavras. Como um jorro das palavras por exemplo, eu limitarei meus indicios a um certo sonho de 25 de margo de 1997, a aparecet em Sonho, je te di Sem a cartografia de todos os itinerdrios que se poderia seguir através dessa pégina to densa, eu privilegio a linha vermelha de um incéndio, o incéndio de ardente que abrasa todo 2 son voedbuio. Gato, jorran cut adoro, eu mentos desse so sonho: eB ees ee frag Nesta feira imensa como uma cidade de um di ‘tudo nos separa € nos retine. O milagre, ou a sorte ga! nha, € que chegamos a nos encontrar e a langar as pa- lavras de fogo apesar de tudo. [...] assim que na imen- sa mullidav da exposigao, tomados pela febre de amor, eu_me encontro junto ati num va uperlotado [...] Na parada, de repente, tua voz colada a miniia, como se fosse a minha, grita sem um som, em meu ser, eu te adoro eu te adoro ew te adoro. Ao rufdo das maquinas e do mundo as palavras sio grita- das docemente, um pouco inquietas, é o presente de Deus e enquanto as portas automaticas me empurram. para fora eu grito eu também porque eu no posso pro- * Conjunto de homonimias em Jet, jeter, je t’adore, jet". (N.T.) 54 nunciar outra coisa. Entéo transbordante deste fogo & de urgéncia, eis que retrocedo para meu quarto onde devo me preparar a fim de te encontrar publicamente um pouco mais tarde. [...] Nada me terd sido poupado Mas de todo modo & noite eu pude me juntar a ti. E tuas palavras ardenzes estZio em minha vida, eu t’ adoro eu Vadoro euta eut™ (p.136-138). Eu sublinho). Nao se sabe, € certo, se essas palavras ou essas silabas so dela ou do outro, do outro enquanto vindas do outro ou do outro enquante dirigidas ao ou- tro, a ti (“E tuas palavras ardentes esto em minha vida, eu t’adoro eu Vadoro euta eut””). Estas palavras febris, estas palavras de fogo ou de estado febril que se redu- zem pouco a pouco como papel queimado cuja cinza s6 deixa ler, no fim, tiltimo arquivo ofegante, no instante suspenso de uma expiragiio de um tltimo suspiro mas também de uma apéstrofe, a sflaba triliteral “jet” — se- guida justamente de uma apéstrofe supensiva, je t' adore intecrompida para ser repetida sem félego. Um suspire € contido quando se trata, como estava dito desde a pri- meira frase, de “langar as palavras de fogo apesar de tudo”. Este “‘jet” (que se pode apenas ler porque ele é impronunciavel, entre “jet” e “je t”) nao € apenas 0 jato ou o génio da escrita; ele é 0 duplo elemento do corpus, seu elemento como teoria do conjunto, set theory ou jet theory, mas também um elemento atémico, uma espé- cie de célula genética ou de elo da cadeia DNA, um dos 26 V. Nota 25. (N.T.) 55 menores elementos de escrita possivel, mas também um petigre capaz de morder tudo, de engolir o todo, um menor maior do que o maior. Quem desejasse fazer a taxinomia e a indexacaio de um corpus tio paradoxal deveria ao mesmo tempo con- ignar ou contra-signar toda a lingua francesa, todos os g. da lingua francesa. E portanto confessar 0 inconfessavel: isto 6, que a tarefa do saber é impossivel. Para aprender a Saber ler, 0 que é de fato indispensdvel, como 0 préprio saber, e como a pesquisa € o ensino sem fim, € preciso primeiro ler, tudo, ¢ tudo reler e reler, isto 6, primeiro lan- gar-se ao texto sem reserva. No texto do outro, em sua Oni-poténcia-outra. Aprender a saber ler, 1é-Ia, creio que isto ainda nao aconteceu fora de raras excecées. Hi, certo, uma celebridade inegével, uma aura ¢ uma notoriedade mundial de Héléne Cixous. Mas elas vao junto, curiosa- mente, com um desconhecimento profundo, e sobretudo neste pais. Isso mereceria andlises longas e diferenciadas, Elas levariam em conta em primeiro lugar a escrita ou a poética, claro, um tratamento da lingua cuja intraduzibili- dade, ainda que ela se enraize no idioma francés, resiste por isso mesmo, por paradoxal que isso parega, aos c6di- Os € aos usos prevalecentes na lingua e na literatura fran- cesas. Ela Ihes resiste, pode-se dizer que ela encontra af uma resisténcia encarnada, temerosa, ameagada, negada. As mesmas anélises deveriam articular essas resistencias com as das pessoas e poderes que dominam a cultura fran- cesa, sua universidade, suas escolas, seus media sobretu- 56 do. O que a obra'de Héléne Cixous provoca nesses c6di- gos € uma tempestade to imprevisivel e to intoleravel que esté fora de questiio que ela neles faca escola. A rari- dade dos leitores formados por essa obra ou nessa obra toma ainda mais significante a hospitalidade hicida, bri- Ihante e premonitéria que a BNF Ihe concede hoje. E a esta instituigdo que se deve hoje a mais excepcional ho- menagem. Devemos nela reconhecer a prestigiosa e tinica depositéria de todas as publicages em cepésito legal, cer to, e sobretudo de uma quantidade de obras ja legitimadas € de arquivos consagrados. Mas acontece que esta guardia de nobres herangas do passado é também, através de sua tradicionalidade mesmo, a anteguardia audaciosa e profé- tica, se posso dizer, de obras-primas 4s quais, apesar de todas as resisténcias de que eu falava, 0 futuro est4 prome- tido. Uma tal anteguardia é vital para a Oni-poténcia-outra da literatura, j4 que, sem nacionalismo, essa literatura liga, neste pafs, seus acontecimentos ao corpo da lingua dita francesa de quem ela assegura a vida e a sobrevivéncia: numa palavra, o futuro. Minha gratidao pela BNF, eu a divido, estou certo, com todos os admiradores de Héléne Cixous, masela é devida, em primeiro lugar, é evidente, & pessoa dé Marie-Odile Germain. Melhor que ninguém, nesse sentido, ela sabe da interminavel e terrivel tarefa que assume com uma generosidade, um devotamento ¢ uma competéncia ha muito tempo demonstradas. O que abordarei numa tentativa de redefinir 0 gé- nio nfio deixa de ter relagio com esta heteronomia que 57 nos remete, na literatura, ao que Héléne Cixous denomi- na, portanto, a “Oni-poténcia-outra”. Os dois tragos de unio eritre essas trés palavras parecem destinados a mar- car que essas trés Siunifoagoes, 0 shgolusa.a potenciae a alteridade so no fundo a mesma coisa, a mesma Cause Ursache, como ela o precisa com freqiiéncia), e a mes- ma lei — enquanto literatura. Estariamos enganados ao pensar que essa experiéncia do génio 6 apenas a da leitu- ra obediente e passiva, ela se experimenta na resist@ncia que nos langa na escrita. E se esta palavra poténcia, de poténcia outra da literatura, est4 ligada, num mesmo elo, com 0 que definirei gradualmente, mas de outro modo, como 0 génio, o génio da literatura ou os gé1 ne Cixous, é que se trata af de uma palavr: de recente ingresso na velha nova lingua TanceSa por uma operagiio da qual mostrei em outro lugar como Hé- Iéne Cixous forgou a gramética a partir de um uso inusi- tado do subjuntivo presente (possa) e do quase-partici- pio presente “possando”™*’ que se poria a dele derivar de repente, demonstragio que devo apontar mas que no quero reproduzir aqui. Preciso deixa-la de lado, com ra- 240, como tudo o que, nesta demonstragao, conceme in- dissociavelmente ao léxico, & légica e & topologia para- doxal da costae do lado™ ** na obra de Cixous. *' Proposta de jungo de dois tempos verbais do verbo poder, pos- sae podendo, numa nova forma, que em francés, com puisse € pouvant daria origem ao puissant. (N.T.) ** Em francés céte e cété (N.T.) 58 Que esta Oni-poténcia-outra nos priva, sob o nome de literatura, do direito ou do podér dé decidir entre doe na histSria da humanidade. As conseqiiéncias e as implicagGes sfo tremendas. Nao apenas na ordem juri- dica (porque est4 implicada aqui a propria génese da lei). Os dados so assombrosos e apaixonantes para uma grande Biblioteca nacional 4 qual sao confiados, em ntimero equivalente de desafios, arquivos dos quais, com freqiiéncia, é dificil decidir se dizem respeito ou nao A literatura, se o que estd legitimamente classificado, por depésito legal, sob a categoria de “literatura”, abriga ou nao refer IIS a0 que se passou “naFealidade”, do historiador ou do bidgrafa,/talvez de ambos, por uma homoniimia que sempre corre 0 risco de ser enganosa, com realidades indexadas como tais em outros documentos de tipo testemunhal ou testamen- trio. Nao sera facil para o arquivista bibliotecdrio de- cidir se o referente de tais textos e documentos é real ou ficticio, ou quem sabe, no caso de textos de sonhos, ainda mais indefinido entre realidade e ficgao, materi- ais sem uso, se posso dizer, ou materiais ainda nao-lite- rarios em vista da literatura, disponfveis para a literatu- ra, explicita ou implici trucdo literéria, portant literdrios, etc. Os que, g leitores ou admiradores, j4 tém alguma familiaridade 59 com o arquivo de Héléne Cixous sabem a que ponto tais problemas sao e serio sempre mais agudos neste caso singular do que em qualquer outro, talvez para sem- pre insoltiveis, cooperando assim, de modo de no coraciio mesmo da ind vo, ‘idibilidade, com a proble- matizacao, a elaboragao, a transformacao e a renovagao de todas essas questdes. S40 questdes praticas, sem dtivida, praticas no sentido antes de mais nada récnico do termo (classificacao, datagao, categorizagao, ficha- mento, delimitagées internas do corpus), mas também quest6es prdticas no sentido ético ou deontoldgico do termo (0 que temos 0 direito de classificar como ficgaio literaria ou como documento nao-literdri 02 Quem auto- ‘Secreto numa obra literaria publica? Quem autor quem ¢ com qué autoridadé para permiir Fdivulgacao de uma dada filiagao identificavel na génese da obra a partir de documentos nio-literarios privados (sonhos ou correspondéncias, por exemplo) dos quais se tera esta- belecido por contrato que eles jamais pertencerfio ou no antes de décadas ao dominio ptiblico, etc?). Por isso precisei vincular minha primeira citagao da palavra “biblioteca”, as palavras “biblioteca tubal”. Estas palavras fazem pensar numa instituigao quase muda, votada ao siléncio de morte de uma tumba que se fecha sobre 0 génio, isto 6, sobre a vida (porque o génio, seu nome o indica, testemunha sempre para o- resto da vida). Uma tumba fechar-se-ia sobre o génio, 60 isto obre a vida dos segredos que ela guarda; por- que, desta alusio a biblioteca de Yale, como lugar dos acontecimentos que se teriam passado na realidade, pode-se dizer que ela jé dava forma, como 0 abismo no fundo da tumba, a todos os problemas desta biblioteca, como se a palavra “biblioteca”, no lugar que Ihe é dado na frase citada, j4 contivesse em si o espaco eo futuro desta biblioteca aqui; como se a palavra fosse jé infini- tamente maior, de modo abissal, que 0 conservat6rio ao qual se pensa confié-la como uma pequena parte do corpo de seu corpus. Tudo que se passa aqui agora hoje 4 Jerd sido antecipado, entrevisto, dito, predito, até pré- £crito ou prescrito na biblioteca de Yale em 1964. Data, tive a sorte inusitada de encontrar Héléne Cixous que entao ainda no havia publicado nada. A proximidade desse encontro no Balzar esté alids registrada na pagina 55 de Manhattan, numa “lista dos incipit”. Posso pois. atestar sob juramento, é certo, que o fato aconteceu “na Calidade”, numa realidade que ultrapassa a ficgao, ain- da que Héla suarde a responsabilidade de uma AValiagHo_apocaliptica disso. Ela ve~c. i “Como a primeira vez em que ela tinha ‘visto’ [aspas , em ‘visto’] J. Derrida no café Balzar. E do mesmo modo \ quando ela encontra Gregor na Biblioteca, Apocalipses | que-nao sabem_o-que sao”. ~ ~~ |" Esse acontecimento apocaliptico da Biblioteca de \ Yale merece hoje ter sido assim nomeado, renomeado, 61 apelidado por Héléne Cixous de “cena primitiva”: “A fatidica cena primitiva [...] se produz na realidade [...] na bilbioteca tumbal de Yale”. A topo-légica atépica, louca (aropos quer dizer “louco”, “extravagante” em grego), a impensdvel geo- metria de uma parte maior do que o que a inclui, de uma parte mais poderosa que o todo, de uma frase fora de propore%o com 0 que € 0 quem do que a contém e de quem quer que a compreenda, a atopia e a aporia de um elemento aparentemente atémico que inclui por sua vez, dentro de si, 0 elemento que o ultrapassa e do qual ele empreende uma espécie de fisséo em cadeia, uma ver- dadeira explosio atémica, nao vou nem mesmo insistir nisso no momento de retomar a citacao interrompida. Se alguma coisa nao esta clara, talvez seja a goncernéncia literdria da frase citada e interrompida, referéncia 4 Biblioteca de Yale e a cena primitiva dita real exatamente 14 onde ela pode ter sido imaginada. ‘orque essa frase foi extrafda do que se chama em fran-. és, ainda na gramética estranha de um género masculi- no, o “encarte”” de Manhattan. As Edigdes Galilée sio talvez as tinicas hoje a no se contentarem com a “quar- ta capa”, outra probleméatica masculina®, e a manter a elegante tradigao do “encarte”. Saudemos um dos pri- ® Em francés a expresso priere d'inserer jé aparece em dicions- rios atuais como comum de dois géneros. » Justifica-se a observacao somente em francés, para le quatriéme de couvertures. (N.T.) 62 vilégios e das honras dessa singular instituigfo editorial € uma das intimeras razGes para associar Michel Delorme a este acontecimento, O encarte forma um dos preciosos presentes de Michel Delorme a BNF. As Edi- goes Galilée publicam encartes como ja nio se fazem mais, encartes assinados pelos autores, encartes que nao fazem parte intrinseca da obra A qual introduzem mas que as vezes tém um grande valor literério e constituem géneros por si 56, verdadeiras obras ou opdisculos. O encarte que acabei de citar € notéria e legivelmente as- sinado por Héléne Cixous. Mas ele nao pertence estatutariamente a Manhattan, a obra de ficcao dita au- tobiografica ¢ intitulada Manhatan, que ele deveria EntaF Gu Tetonimizar, Ele coloca, renova e sim- boliza portanto portato problema juridico das mar- gens que evocamos ha pouco. O que esté fora e 0 que é que, de fora, encontra-se também inclufdo dentro? Eu lembro que Au-Dedans" foi também o titulo de um dos primeiros livros de Héléne Cixous: publicado em 1969, agraciado com 0 prémio Médicis, apareceu em duas ou- tras editoras, entre elas Editions des femmes; se eu in- sisto nesses dados editoriais, é porque o estudo a vir da vida e da obra, como de todo 0 arquivo de Héléne Cixous (obra ¢ fora da obra) deverd reconhecer um lugar sig- nificativo ao que nao é apenas uma circunstancia editorial enyolvendo a obra, mas sim uma histéria da edigio * Dentro. (N.T.) 63 das politicas editoriais deste pafs, portanto, na verdade, de toda sua cultura, de sua cultura politica sobretudo, durante 0 tiltimo meio-século. (Paréntese. Na grande e incrivel atopolégica da sez theory que analiso aqui com obstinagao, acabo de mais uma vez fazer uso da expresso “encontrar-se”. Para su- blinhar que alguma coisa do de fora, enquanto que de fora, exterior a um conjunto dado, encontra-se também inscrita dentro, o maior encontrando-se assim pré-com- preendido num menor sempre maior que o maior, etc. Anteriormente, cu tinha recorrido centenas de vezes & expressdo encontrar-se. Este sintagma, encontrar-se, in- teressa-me duplamente. Primeiro em raz3io de um uso francés bastante idiomitico, talvez intraduzivel, como. acontece aliés com um idioma, de encontrar-se sendo assim ¢ nao assado, de modo aparentemente Conlingen= lg. Em seguida; em Tazdo ae els entre a genialidade e a imprevisibilidade evenemencial do “isso se encontra as- sim”, a genialidade consistindo em encontrar-se encon- trar Gnyeatat criat, inaugurar, revelat. descobrir) © que se encontra lé onde ninguém o tinha ainda encontrado. Eu acreditava entiio fazer uma observagao quase origi- nal e me dotar de um meio quase inédito de dizer algo de quase novo sobre o texto de Cixous. Acreditava ingenu- amente surpreendé-la, de algum modo, mesmo se, de passagem, eu ja tivesse observado, vocés talvez se recor dem disso, que acontece, de ela propria fazer uso, rapi- damente, aqui ou 4, desta estranha locugaio de nossa lin- 64 gua, “encontrar-se”. Lembro-me de ter até mesmo dado um exemplo que podia parecer banal e, de sua parte, no tematizado, nao calculado, gracioso, quase espontaneo. Alias, nela o mais calculado parece sempre espontaneo e graciosamente arranjado, como se se encontrasse 14, no caminho, por acaso. Ora, uma vez mais (uma vez mais porque eu com freqiiéncia tenho encontrado nela, jé vis- tas, entendidas, lidas e escritas por antecipagdo, tantas coisas que eu tinha o sentimento inocente de encontrar sozinho, como um adulto, pela primeira vez, e que des- cobria de fato para mim, pela primeira vez, mas, sem 0 saber, com muita freqiiéncia, bem depois-dela), jé no fi- nal da preparagtio desta conferéncia, tendo-a quase que total e definitivamente escrita, a uma releitura de Or acon: feceu-me de me deparar, na sua antepentiltima pagina, encontrg” que aparece nao s6 repetida como sublinhada. Como se a narradora, com uma ocorréncia de “eu de repente paralisada diante deste idioma, nos convidas- se a pensar nele, a medir todo 0 seu génio todos os seus recursos lexicais, semanticos e gramaticais, o “encontrar- se” podendo consistir em encontrar-se, descobrir-se, en contrar-se reflexiva, especular e transitivamente a si-mes- ‘mo (encontrar-se a si-mesmo), mas também a ser passiva trovador da Thgua, na vertiginosa histéria semantica da 65 } palavra encontrar, do sintagma encontrar-se, de sua trépica, de suas etimologias reconhecidas ou casuais, entre 0s tropos grego ou latino eo alemao de encontro (treffen), contentar-me-ei em ler algumas frases, bem do final de Or. A narradora esta em éxtase diante da escrita das car- tas do pai, seria preciso ler todas as entrelinhas do que eu seciono: “Eu nao esperava por esta graca [...] € uma bele- za. Esta sintaxe altiva. A retidio deste passo bem coloca- ~sio. O ritmo me € familiar, é 0 da afirmacio antiga do ser [...] aquiescéncia vital. (...] Fico maravilhada: trata-se de um espago elevado imenso impessoal onde eu me encon- tro [onde eu me encontro encontra-se entio escrito desta | vez, para se fazer bem remarcar, em itélico]. Sem dor, | _sem lembranga sem esquecimento sem peso Sém\riim Ke {as Enquanto alegria sublime. Eu me enconiro [uma Sey gunda vez sem itélico ¢ sem registro de lugar: nao é 14 onde ela se encontra, mas simplesmente ela se encontra, ela se encontra pela primeira vez. ou se reencontra enfim: ela se encontra, € isto, completamente, ela mesmal; eu flutuo sobre os labios das cartas como um sorriso [por- tanto, se, finalmente, ela se encontra num lugar qualquer, ela se encontra completamente, reflexivamente, certo, mas ainda se encontrando em um lugar, diz. apenas a frase seguinte, flutuando “sobre os labios das cartas como um sorriso”]. Ha a promessa de um texto sem criticas”. ~~ O encontrar-se € pois 40 mesmo tempo localiza- go e acontecimento, 0 acontecer de uma inocéncia ab- soluta, de uma afirmago antiga do ser como um “as- 66 sentimento vital” sem faltas, antes de qualquer falta, qualquer culpabilidade, qualquer ressentimento e qual- quer reatividade. Sim, eu me encontro, sim, eis onde e como eu me encontro. E também, devo dizé-lo, o senti- mento que eu proprio experiment, ele é tinico e eu 0 recebo como uma graca de afirmacao, de confirmagao ¢ de consentimento, de assentimento, cada vez que en- contro que ela encontrou antes de mim o que eu acredi- tava encontrar-me sendo o primeiro a ter encontrado, isso ou aquilo, sozinho, 14 onde me encontro, eu, e isso se sabe, em um lugar e no decurso de uma hist6ria infi- nitamente diferente das suas, onde me acontece encon- ontrou, ela, no lugar em que ela se “Nad me sinto entio com qualquer obriga- trar o que ela ja encontra, el cdo, qualquer divida, qualquer culpa, qualquer incémo- do, qualquer ressentimento. O que quer que ela me dé, ~o que quer que Ihe acontega encontrar antes que nao me (Q\) Loy dcontega encontré-lo por minha vez. eu nfo Ihe devo )iada. Considero 0 fato bastante raro. minha vida onde no esperava por esta g mo paréiitese, confiar-Ihes-ei uma outra experiéncia andloga que desde entdo fica para mim insepardvel da i preparagao desta conferéncia. Eu j4 tinha escrito, ousa- ria mesmo dizer elaborado, formalizado da melhor for- ma, € mesmo impresso tudo o que vocés ouviram agora ha pouco a respeito de toda a efervescéncia do jet, do ge-, do jet’, da letra g, etc., da Geworfenheit e do jato quando, durante uma releitura de Manhattan, caio so- o7 bre uma passagem que, analisando a “combinagao ale- atria de poténcias-outras”, observa 0 “segredo”, é ain- da sua a palavra, dos “condutos ps{quicos e das nave- gagGes ao longo de vasos nucleotideos de que nao sus- peitava em ditego ao ponto aleatorio do encontro onde 0 acidente se produziria em minha sensibilidade” (p.121). Bla registra dois, ¢ antes daquele que reconduz & doenga precoce e 4 morte precipitada pela via pulmo- nar, eis o que escreve: “1. A letra G; a associagiio entre os nomes — elementos ternamente amados dos Georges € 0 nome néo reconhecido de Gregor; a impossibilida- de em que ainda me encontrava em 1964 de dizer as palavras j’ai” e todas as outras palavras-anjos em j'ai, 86, jet, gel, etc., eu tentava sempre instintivamente evi- tar qualquer contato incémodo com G mas ela est dis- fargada por todo lado na Iingua francesa.” Outro exemplo de uma divida que nao me endivi- da em nada: apés ter associado, por minha prépria ini- ciativa, acreditando ter razio, no inicio, o que nela ex- cede as vezes o género sexual e o género literdrio, en- contrei, como se pela primeira vez, eu juro, esta pa gem em itélico, em Manhattan ainda, que diz assim: (mas uma leitura digna deste nome deveria reconstituir todo o contexto — na verdade uma tarefa infinita): oS Tudo talvez se (jogue) 14 dentro na indecidivel definic&io da cadeira de preguiga, imagem discreta e * Bu tenho. Ver também nota 2. (N.T.) 68 na mesma medida insidiosa da hermafrodita; na trans- gressdo do género literdrio; na transgressiio do género sexual. Eu deveria reconhecer o deménio na cadeira de preguica (p.127) E logo depois, isto também merece ser destacado, ando ao romance, o relato pée a palavra “génio”, pas usada de modo mais leve e irdnico, na boca de Eva, a mae: —Eram teu ponto fraco as cartas diz minha mae, enquanto que eu o génio que me enviou cartas especi- ais em que falava desde Londres, [...] enquanto eu es- tava erh Berlim em 1933 na fracdo de um segundo rom- pi com ele todas as relag6es. (Loc. cit.) Em outro lugar, Eva ainda lucidamente previne contra 0 génio: Entre um génio e um mentiroso tu nao podes distinguir. Enquanto que en nem sequer as leio as car- tas do génio duvidoso. (p.196) Vocés acabam de escutar Eva, a mae, abordar a palavra génio. Ela a toma com pingas. Eva desconfia dos génios, ela aprendeu a suspeitar dos homens ditos génios. Na verdade, esses homens ditos génios nao pas- sam de pretensos génios, eles se tomam, cles se fazem passat por génios. O génio ent&o consiste em aplicar em vocés 0 golpe do génio. Nao o golpe de génio, mas © golpe do génio. Como Gregor. Que aliés € acusado pela narradora de ter tido a astiicia diabélica do génio 69 esperto, de Ihe ter aplicado um “golpe de génio”, justa- mente, ao escolher um certo hotel: “A escolha do Hotel (desde a insignia até a mala imitagdo [de crocodilo]) por cendrio € um golpe de génio. A pequena mala de crocodilo é inesquecivel” (p.163.) Preocupado, no que me diz respeito, em garantir a sorte improvavel de uma genialidade digna desse nome, que deveria eu fazer, a modo de catarse, para purificar a genialidade que me interessa, para livré-la de todos os génios maus e malignos, de todos os génios inauténticos, se quiserem. Ser-me-ia necessério primeiro destacar, a0 menos em Manhattan, todas as ocorréncias dessa pala- vra. Blas sao surpreendentemente numerosas e diver- sas. Sem poder dar conta dessa pesquisa, de modo exaus- tivo, contentar-me-ei em assinalar por exemplo a de- niincia de um Gregor que, tossicando para imitar os gran- des escritores pulmonares, leva a narradora a dizer: “. 0 pulmo nao faz o génio, eu pensei...” (p.93). Na pagi- na seguinte, a mesma seqiiéncia consagrada, digamos, a tuberculose literaria, faz alusao ao leitor que “ s6 ama a tuberculose” (doenca mortal de Georges, o pai, eu o lembro), “Ié Keats por Koch” e nao pode “desejar a cura do autor porque seria querer estrangular 0 génio”. Mais acima, ja havia a evocagao de um simulacro durante o qual o jovem levava a trapaga até a “declamagio” de um poema de Mandelstam desconhecido da narradora, com, diz esta, “um tal génio que eu teria dificuldade em diferenciar a criagao da interpretagao” (p.88). 70 | Insinua-se, pois, por toda parte a idéia do falso | génio. © genio se falsifica, mas hé também um génio | da falsificacdo. H4, claro, um “génio da juventude” \ (p.135) e a palavra “génio” conota sempre a origem, 0 nascimento, a natureza, a natividade, a nacdo, o surgimento do comego. O génio é sempre jovem, por esséncia. Ele nao envelhece. Mas Gregor € uma espé- cie de falso jovem, 0 tipo ideal do génio falso e falsifi- cador. Ha também nisso uma verdade vertiginosa, uma ‘esséncia, do génio mais verdadeiro: ou seja, 0 risco sempre aberto de uma falsificagao indecidivel. Gregor € amado por seu génio, mas por um génio que, posto a prova (que prova!) revela-se falso, enquanto que ele teria amado, Gregor, ser amado por si mesmo, isto 6, nao como falso génio, mas como génio, falsificador Nao génio de moeda falsa mas falsificador de moeda de génio. A narradora o diz melhor que ninguém: “Eu © amava por seu falso génio, ele teria amado ser ama- do por seu outro génio, o génio falsificador.” (p.231). Terrivel sentenga. Escrita no dltimo capitulo, intitulado Depois do fim, e apés uma Ultima declaragio de amor pela Literatura (“Eu tinha um tal amor pela Literatura...”), ela parece pér fim, por causa da literatu- ra, a qualquer hipstese de genialidade, Bla o teria ama- do por seu génio falso, acreditando assim cegamente num génio que Gregor teria conseguido falsificar (como génio esperto que era), mas ele, ele teria gostado dé Ser amado em falsificador de génio, portanto em génio es- MED! ¥ i @x TaTHEeQUE laisondeFrance perto enquanto tal, conseguindo por asticia e uma astti- cia admiravel tanto quanto amével, fazer-se passar por um génio e fazer-se amar como um génio bom e belo, um génio auténtico. © génio esperto seria o que conse- | Suisse mais do que qualquer outro, fazer-se passar e \ fazer-se amar como um génio bom e belo.) Fim desse paréntese que me servira entretanto de premissa para 0 que eu gostaria de dizer do “génio”, 14 onde ele se encontra, 14 onde ele tem lugar, se o tem, ¢ lé onde ele dé origem a um acontecimento que, longe de se inscrever na série, na seqtiéncia homogénea (6 0 caso de dizé-Io) ou na filiag&o continua de uma génese, de uma genealogia ou de um género, faz advir a mutacio absolu- ta e a descontinuidade do inteiramente outro. De que modo? Tentarei precisé-lo concluindo, sempre do ponto de vista do arquivo bibliotecério mas desta vez ligando- © no apenas ao acontecimento incisivo da ruptura mas a aporia de um dom que da mais do que ele nao dé e do que nao Ihe € dado saber, tanto do lado do doador ou da doadora quanto do lado dos donatérios: 0 dom sem co- nhecimento, sem conhecimento de causa e portanto sem reconhecimento, um dom que jamais aparece como tal, como genial, e portanto nao pede nenhuma gratidao nem qualquer consciéncia de dar. O génio é um dom que ja- mais aparece como tal, assim como 0 que ele da. Af esta- ria sua outra dimensao de segredo. Daf a ironia que faz com que 0 génio falso e falsificador nao seja o pior colo- cado para fazer pensar no génio. 72 Ultimo retorno & minha citagio do encarte de Manhattan, no ponto em que a havia interrompido. J4 se viam entio multiplicarem-se os paradoxos toponimicos e topolégicos que vém complicar essa es- pécie de teoria dos conjuntos invocada pelo corpus arquivavel de Héléne Cixous. O que nomeio a partir de ent&o corpus comportaré obras publicadas a titulo de literatura e textos de todo tipo que nao sao dependentes nem independentes da obra literdria stricto sensu e como tal. Uma teoria dos conjuntos desse corpus deveria re- querer 0 que se poderia considerar como axiomas de incompletude, um sistema cuja determinagao permane- ce insaturvel dado que a presenca de um elemento num conjunto jamais exclui a inclusao deste mesmo conjun- to (o maior) no elemento que supGe-se ele contenha.(o menor). O menor est carregado do maior, o pequeno & maior que o maior, 0 petigre é capaz co tigre, ele pode o tigre. Jonas é maior que a Baleia, e 0 corpus resta des- mesuradamente mais extenso que a biblioteca que se supée vai arquivé-lo..O mal de arquivo, é também isso._ Como a lei do género que éu tinha, ha cerca de vinte e cinco anos, durante uma leitura de La Folie du jour, de Blanchot, tentado demonstrar, num texto intitulado “A Lei do género”, que o que eu chamava entao “a cléusula do género”, “anunciava o fim da genealogia ou da genericidade”, pois que a “mengao de género simples- “menité a0 faz parte do corpus”, e que um “axioma de no-fechamento ou de incompletude cruza nele a con- 73 dic&o de possibilidade ¢ a condigdo de impossibilidade de uma taxinomia’”, Temos um exemplo perfeito na seqiiéncia da cita- 80 interrompida. Vamos destacar, sublinhando-o, ao jogo das letras e das sflabas na lei do engendramento dos no- mes préprios e dos nomes comuns. As letras da silaba sao or, 0 nome comum € garganta™, os nomes prdprios sao Gregor e Georges. Entre todos os Jonas a procura da Baleia no ven- tre da qual cumprir os ritos do Banimento, encontra- va-se entéio um Gregor, personagem realmente fabu- loso ¢ ininterpretavel desta tentativa de relato, Um dia de 1964 em Manhattan, na virada de um destino muito jovem e j4 marcado pela repeticao da mor- te de seres queridos sempre chamados Georges, entre a Jovem que amava acima de tudo no mundo a literatura e ‘© jovem de espirito calcado nas obras mais enfeiticantes da biblioteca, produz-se o Acidente mortal. Zé fatidica cena primitiva, a do “mau olhado” se ppoduz na realidade (exatamente como se tivesse sido escrita por Edgar Poe) na biblioteca tumbal de Yale. As yezes, por um cisco no olho, o mundo esta perdidd- @ aan a ee ee Pe “Em Paragens, Galilée, 1986, p.264-265 (2003, nova edigfo au- mentada): “A cldusula ou a eclusa do género desclassifica 0 que ela permite classificar. Ela anuncia o fim da genealogia ou da genericidade as quais ela no entanto faz vir & luz”. Em francés gorge. (N. i 74 Em seguida tudo acontece muito rapido, porque como os Amantes, o taxi dos loucos desaba pela la- deira que leva ao Inferno mais rapido do que a agua que se joga na garganta. A Literatura enquanto que Oni-poténcia-outra. Enearte, p.2) Nesta passagem, a silaba or orquestra pois e orga- niza, a partir do mesmo évulo de escrita sonora ou da mesma cadeia DNA, a filiagio Georges, Gregor e gorge™. Primeiro a garganta: a0 mesmo tempo origem oracular, oralidade da sonoridade proferente e orificio profundo no qual se precipita, se langa, tomba a mise en abime, e se perde o mundo (“o mundo esté perdido” e “se produz 0 Acidente mortal”). Or; em seguida, uma mintiscula sflaba, condensa, 14 ainda (hance horam e Cixous é uma escritora grande pensadora da hora), sim, ainda, uma pequena pepita incomensuravelmente mai- or que tudo porque sua mais valia nao arquiva apenas a lembranga de um livro extraordindrio que leva este titu- lo (Or: Les lettres de mon pére, 1997) que & j4 um imenso poema sobre o arquivo recentemente exumado (toda uma biblioteca) das cartas do pai, Georges, & sua mae. Or’ nomeia também a poténcia alquimica de uma substancia que, ao mesmo tempo, indecidivelmente, autentifica o valor nao representavel, nao substituivel, * Ver nota 13. (N.T.) * Em francés encore. (N.T) *” Or, em francés ora ou ouro. (N.T.) 75 sem falsificag&o possfvel do que eu gostaria de chamar aqui de genialidade e, simultaneamente, na mesma liga e na mesma alianca, solda-a de maneira aparentemente continua a série homogeneizante da génese, da genealogia e do género. Isso é 0 que eu gostaria de explicar, tio esquematicamente quanto possfvel, para concluir. Génio quem és tu. O génio que és tu, creio que é preciso dissocié-lo, € certo, das poténcias homogeneizan- tes, da génese, da genealogia e do género, mas também da generosidade do dom quando ela aparece enquanto tal. Com freqliéncia afirma-se que 0 génio é um dom e que ele dé generosamente no ato ou no fiat de uma cria- Ao. Mas se fosse assim, o dom logo se anularia na circu- laridade econémica. Ele se reapropriaria — com ou sem demora. Um génio que fosse um dom natural nao seria um génio. Um génio que desse por generosidade natural nao daria nada. Um dom que soubesse 0 que dé a quem soubesse 0 que recebe também nao daria. Ele se reapro- priaria portanto e se anularia na consciéncia e na grati- dao, no sfmbolo, 0 contrato, a circulagao econdmica, 0 simbélico. O génio que tu és excede 0 simbélico eo ima- gindrio, ele est4 em luta com o impossivel. O génio dé sem saber, acima do saber, da consciéncia do que dé e do fato, do acontecimento performativo que constitui o dom, se ele existe. E os que dele recebem (sujeitos individuais ou sujeitos institucionais) nao sabem, nem devem saber o que recebem, e que é sempre mais, sempre outra coisa, e mais antiga e mais imprevisivelmente nova, mais mons- 76 truosamente inaudita e inesgotdvel, mais inapropridvel que tudo o que se pode representar na consciéncia. O que quis sugerir até aqui, € também que no dom feito 4 BNF e por esta demandado, recebido, cultivado, contra-dado, a doadora é incapaz de saber e de medir o que dé, até mesmo gue ela d4 — ou confia, e a BNF, por seu lado, com todas as competéncias distinguidas, com os saberes incompardveis do leitorado que ela representa por sécu- Jos, restara sempre em esséncia incapaz de determinar, ¢ a fortiori de se apropriar do que ela acolhe, hospeda, pro- tege, disto a que ela tem a insigne virtude de oferecer a hospitalidade. E esta bem assim. Talvez af exista, se existe, se se encontra, alguma genialidade dada e doadora. Af, no corag&o da alianga, da liga, da parecenca e da seme- Thanga homogénea, 0 fio estd cortado, e € 0 corte de fio de génio, entre todos os G. No lugar de propor uma longa demonstracio teérica, prefiro mais uma vez citar algumas linhas de Manhattan: Eu nao o olhava, Eu estava comovida com a semelhanga onomés- tica entre seu nome ¢ o de meu filho morto mas logo repeli esta aparéncia de semelhanca, nada mais dis- tante fonicamente que Gregor de Georges, naquele instante ele chamou a atenc&o para o anagrama dizen- do que até o momento tinham se chamado Georges de pai a filho na famflia, falando da sua e que ele tinha nascido para cortar 0 fio. Eu sou 0 que cuida de cortar 7 0 fio diz ele. Faltava-lhe um dente no lado em cima, so mal se via. Gregor? Eu devia té-1o olhado. Pensava em meu filho cujo nome € terrenal (Georges, nome ge6rgico ou geotro- pico: 0 corpus de Héléne Cixous , so suas terras, € vamos encontrar af um texto intitulado “Vistas sobre minha terra”™* ; poder-se-ia sonhar de geogenealogia ou de geotropismo, e falar de uma geografia geral de sua escrita; seu génio é propriamente, por tantas lin- guas em uma, e da Argélia na Franca, em argelianga, geogréfico] cujo desaparecimento ainda est bem pr6- ximo e jd to afastado com o que resta de seguranga trémula as mies érf’is que querem fazer de conta que nao temem a explosio da saudade. Logo depois eu parei de me voltar para trés, me levantei, fui para a Biblioteca. (p.89-90.) A respeito dessas poucas linhas, para ser breve como convém, limitar-me-ei a dois sonhos finais — ou duas suputacdes. A primeira, por certo a mais temerdria, avangaré ao mesmo tempo em duas direg6es: na de uma situacao do génio ¢ na do lugar sempre paradoxal de seu enunci- ado. Ou seja, para seu enderego, o “tu” de seu endere- co. Por um sobrelango secreto, por uma hipérbole de ironia que torna as coisas mais indiziveis do que nunca, © que se encaminha certamente, a meu ver, para uma apreensio aguda, nao-genética, ndo-genérica e nao- % Em Héléne Cixous. Cruzadas de uma obra, Galilée, 2000. 78 genealégica, n&o-geneanalégica, no homogénea do génio, sera que isso nao se encontra descrito, sem duivi- da sem que ele prdprio saiba disso, pelo mais falso e mais falsificador dos génios, ou seja, Gregor? Esta é minha idéia; Minha suputagao. Gregor, 0 dito génio, diz, sem sabé-lo, 0 génio. Como se coubesse a falsa moeda do génio oferecer a leitura, cara ou coroa, a au- tenticidade, 0 ouro do génio, como uma homenagem do vicio & virtude que deixaria para sempre indecidido, do ponto de vista do saber e do enunciado teérico, a esséncia auténtica do génio. Como dizia Eva, “entre um génio e um mentiroso tu nao podes distinguir”. Quando Gregor declara, num propésito relatado, formulado, in- terpretado pela narradora, que ele é 0 que “cuida de cortar o fio” (em itélico), seré que ele n&o pensa, ao menos em sonho, na irredutibilidade do génio & nature- za, & physis, & vida, & genética, a genealogia, ao homo- géneo, & anagenealogia, & filiaciio mesmo, e isto no de- curso de acontecimentos de corte absolutamente singu- lares, inaugurais, instituintes, sem passado e sem imita- co possiveis? Sem pai nem mae? Sem filho, sem nome e sem heranga, sem escola, mesmo se tudo isso, de que ele se corta ou de que ele corta assim o fio se encontra. recosido no acontecimento inédito e indecidivel? Genial nao € um_sujeito, nem um sujeito imaginario, ném-um~ /Sujeito da lei ou dd\simbélico, um sujeito possivel, mas 9 que acontece. Genial é 0 tinico de uma cheganga im- possfvel2 qual nos dirigimos que nao passa do destino 79 improvavel do dirigir—e é sempre “tu” o instante do retorno eterno. Alids, a imagem do fio cortado, cuja iniciativa é aqui ficticiamente emprestada a Gregor por uma narra- dora que sabe 0 que diz, o que faz dizer e 0 que deixa dizer, este fio cortado parece ser, na sua propria pala- ra, a relagdo privilegiada, a senha, o cartio de ps Um instante tu, | Este fio cortado, ela propria tinha falado ‘dele hé muito | tempo, muitas paginas atrds. Entre eles, hd a0 mesmo | tempo o fio cortado e a substituigao identificatéria: “G., ela diz, isto é, aquele que eu sempre chamei Gregor, eu no podia chamé-lo [portanto aquele a quem ela chama Gregor -, ela nao pode chamé-lo, mas na verdade trata- se de chamada telefénica, da telefonia sem fio cujo fio pode sempre ser imaginariamente cortado e do qual eu mostrara em outro momento que ele era, este telefone, / de todos os cortes, de todos os génios de todos os | golpes de génio da obra como da vida de Hélene | Cixous], entre duas Cidades, e nada de telefone, 0 fio/ cortado de um lado ou do outro, eu imaginava seu esta- do, eu acreditava me pér em seu lugar...” p-41). Minha segunda reflexo, minha tiltima suputagio, para concluir enfim sobre o fim do pardgrafo citado ha um instante, € que Manhattan é um livro sobre 0 arqui- vo, e antecipadamente, expressamente destinado, & ver dade, 4 BNF, a verdade da BNF; eu quero dizer um livro feito para falar, entre outras coisas, da BNF a BNF, para 80 dizer-Ihe seu feito e sua obra, num momento em que a autora j@ sabia da alianga destinal que jé se havia estabe- lecido entre a BNF e ela. Manhattan € um livro pré- e p6s-BNF, e é uma das raz6es, além da caréncia de tempo e da necessidade de sacrificio, pelas quais eu hoje tao visivelmente privilegiei esse livro do ano passado. O pardgrafo que citei agora ha pouco se conclufa com 0 retomno & Biblioteca. E ela faz esse retorno sem se voltar: Logo depois eu parei de me voltar para tras, me levantei, fui para a Biblioteca. Nao apenas toda a obra, desde a pré-hist6ria de 1964, engendra-se, vem ao mundo e ganha vida saindo da que é centena de vezes chamada a “Biblioteca ne- cropolitana” (p.43), a “Biblioteca compardvel a uma Necrépole”, esta “Beinecke onde tantos volumes dao. iho de doenca e de agonias” (p.92), mas tudo 0 passa, a propria Causa, a Ursache, a coisa de origem esta desde entao destinada a uma outra bibliote- ca a vir: “O que se passa: em toda a extenso da zona em torno do impacto (nao se sabe exatamente onde e em que instante 0 Diabo de Deus se colocou), centenas de milhares de rastos esto depositados como numa es- pécie de biblioteca” (p.111). A Biblioteca de Columbia & também evocada (p.169), e, noutro lugar, ela descre- e “o que me surgiu pela primeira vez nas muralhas da biblioteca” (p.85). Nao € Hamlet segurando um livro, mas Hamlet parado em cima de muralhas de livros, na 81 arquitetura de uma biblioteca em desconstrugao. Manthattan esta assaltado pelo arquivo e sobretudo obcecado, certo, pelo segredo do arquivo, isto é, ainda, pela experiéncia do jorrar, do jato, do que no se deve jogar fora, mesmo se 0 que nao se joga, nao se deva di- zer. Por exemplo, esta confiss4o ou esta concessao de Manhattan sobre a paixdo contrariada do arquivo: Por que eu nunca joguei fora “as pecas de con- vicgao”? Eu nunca boto um pé no pordo ou no sétio, eu temo os papeles, as caixas, os envelopes, os ani- mais aleg6ricos compactos do tamanho de uma gran- de lagosta ou de uma tartaruga comprida de ventre ajaezado de branco com a cabega acompanhada de an- tenas telefOnicas, as velhas malas de retardagio que parecem tanto com atatides portéteis, 0 sabonete mi- niatura do tamanho de uma caixa de fosforos ainda branco de marfim sem diivida embrulhado em sua ca- miseta de papel acetinado amarelado com a insignia do King’s Crown Hotel. Por que eu nunca joguei fora as “peas de con- vicgiio”, eu me pergunto, eu escrevi esta questo como ela vinha, eu anotava a expressiio “pegas de convic- go” € nao tocava nela. Isso é uma questo, é um fato. Ou bem eu deveria me perguntar por que eu guardara ou eu guardei as “pecas”? Isso demandaria uma reflexao minuciosa, uma andlise A qual deveria- mos nos entregar em algurn momento. Dizer que eu guardei seria exagerado, eu nado salvei, nao protegi, jamais tive qualquer idéia disso. 82 Por outro lado, jamais tive a idéia de jogar fora. Isso € fato: ha na pequena pega em forma de tiinel que ora chamamos porio, ora sétdo e ora arquivo, algu- Aas caixas de papelao contendo os restos, vestigios, | pecas de prova, caixas de papelfio cue contiveram gat- | Fafas de vinho 10 infeio contendo ao final terviveis segredos. Trata-se de imtimeras cartas, de desenhos, de intimeras bandas magnéticas, as da primavera de y 965 assim como algumas fitas cassetes. Provavelmente ha também objetos? Cofrezinhos de bugigangas pelos quais eu daria dez anos de minha vida, os dez Ultimos anos? O fato de que as pegas do dossié tenham perma- necido é por si sé um fato consideravel. (p.74-75) Minha tiltima suputagao gira em torno da gé- nese de Manhattan, de seu tempo, da duragao de sua concepeao e de sua data de nascimento, de sua genealogia e de seu género, se quiserem. A paciéncia impaciente de sua escrita foi, eu o suputo, obsediada pela BNF, ela habita na verdade estes arcanos passados da genialidade literéria francesa que nao dormem mais © sobre os quais vela a BNF, ¢ sobre a qual vela sobre- tudo, para 14 de seu passado, o futuro da BNE. As tare- fas a vir da BNF jd atormentam 0 arquivo de Manhattan. Permitam-me confiar-Ihes de passagem, a esse respeito, uma conjectura, outro nome para especulago ou suputagaio. Assumirei sem diivida ultrajantemente a Tesponsabilidade disso. Trata-se, primeiro de que, dado 83

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