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Prefacio Bianca Santana Na cozinha de ladrilhos verdes da C aleitu racoletiva de Caliba e a bruxa. Era 2014, €o livro langado dez anos antes ainda no havia sido traduzido para portugués*. Parte do grupo lia em inglés, parte, em espanhol. Fazia pouco mais de um ano que haviamos concretizado esse espago na 0, Zona Oeste de S40 Paulo, na intencao de experimentar e debater o que seriam 0 trabalho e a aco politica a partir de uma perspectiva feminista, antipatriarcal, que percebe 0 cuidado e a reprodugao como centro das transformacdes por nés sonhadas. Em junho de 2013, estivéramos nas ruas, e tomar as rédeas das mudancas nos ia uma urgéncia, Ler e debater a andlise histérica de Silvia Federici nos permitiu momentos de epifania e se mostrou um divisor de aguas para mui tas de n6s. A discriminacao contra mull assim como mo, € estruturante no capitalismo desde sua origem— e € Ze a bruxa: mulheres, corpo e acumulagdo primitva (rad. Coletivo Elefante, 2017 [2004)).(N-E) 10 ‘A sua consolidacdo. A hist6ria da emergéncia da modernidade na Europa que haviam nos contado, enaltecendo a superacao do feu- dalismo como um modo de organizagio terrivel para quem nao ‘era nobre, omitia a vida e a organizagao social das mulheres. A luz jogada no feudo, depois no Estado e no mercado, ofuscava a im- portancia da comunidade e da partilha de recursos como funda- mentais a organizagao da vida. Pela primeira vez, liamos que 0 trabalho de cuidado nao era necessariamente menor fora do capitalismo. Que mulheres co- zinhando, limpando, plantando, cuidando coletivamente ~ nao cada uma isolada em uma casa ~ organizavam-se em termos polt- ticos e dividiam poder com os homens. Que na Europa e nas ¢ol0- rias do chamado Novo Mundo dos séculos XVI e XVII muitas delas, talvez por isto chamadas bruxas, resistiram de diversas formas ao confinamento e a subordinacao exigidos pela nova ordem. Foi-nos omitida a resisténcia das mulheres a invasdo europeia nos territérios latino-americanos, a colonizacao, aos cercamentos de terras, a imposi¢do da familia nuclear, a apropriacao e a destrui- ‘¢do de seu corpo e seus saberes. Nao tinhamos detalhes de como haviam sido acusadas de bruxas as parteiras, as que organizavam protestos contra 0 preco dos grdos, as que conheciam a cura pelas fervas, as que nao aceltavam a escravizacao ou o intenso processo de pauperizagao, as que continuavam a exercer sua sexualidade como bem entendessem. Milhares de mulheres, ventenas de mi- Ihares, foram torturadas, presas ou queimadas em praca pablica, Silvia Federici nos permite ver um quadro mais completo de como esse exterminio est diretamente relacionado ao desenvol- vimento das relacées capitalistas. A caca as bruxas ~ assim como 6 trafico transatlantico, a escravizagao negra, 0 exterminio de povos indigenas e a colonizacao das Américas ~ foi essencial 3 acumulagdo primitiva do capital. Marx nao deu atengao a esse de- talhe. E Silvia, mais que preencher uma lacuna, se soma as pensa- doras dedicadas a escrever a hist6ria das mulheres. Uma hist6ria omitida, apagada, silenciada. Enquanto liamos Caliba na cozinha de ladrilhos verdes, que- riamos espalhar essa outra verso da hist6ria da Europa e do co- lonialismo para todo mundo! Talvez fosse uma ideia si quem aconselhou Silvia, durante anos, a escrever um simples que Calibd e a bruxa na tentativa de alcangar um pablico mais amplo. No segundo semestre de 2018, Mulheres e caca as bruxas foi publicado com esse propésito ~ e eis aqui, traduzido para o portugu@s, um ano depois. Nao 6 possivel escrever sobre perseguigdo a bruxas no sécu- lo XVIII sem mencionar a pesquisa de mestrado de Carolina Ro- cha, 0 sabé do sertdo*. Carolina nos apresenta aspectos da caga as bruxas do Brasil colonial ao analisar as dendincias de Joana e Custédia, mulheres negras escravizadas por um padre jesufta, & Inquisigao de Lisboa. Reproduzo um trecho, deixando a forte reco: mendagao do livro todo. As praticas magicas na col6nia cumpriam sua funcao social através dos conflitos entre vizinhos, do surgimento de doencas sem explicacdo, das intempéries da natureza, da escravidao, da saudade dos parentes, {da miséria e das angdstlas e Incertezas day camadas populares. A In- quisicdo portuguesa e o esforco catequeético esforcaram-se para enqua- dar as populagdes coloniais e europeias na ortodoxia crista. A figura ‘do deménio foi destacada no seio das praticas magicas e no folclore © Carolina Roche, 0 sabd do sertd:feitceras, demdnios e jesuftas no Pat colonial (a7so-1758)(dissertacdo de metrado em histria social, UF, Niter6l, 2013). (NE) u 2 popular. 0 olhar erudito julgava grande pstte das crencas populares como incompreensivels e interpretava segundo seus esquemas men- tais certas manifestacdes, que foram isolad8s © | ‘demonizadas.* Pela importdncia atribuida a registrar a mem6ria — juizo de va- lor que compartilho com Silvia -, relato 0 momento em que co- nheci o trabalho de Carolina. Estavamos ambas, com mais uma centena de mulheres, no I Seminario de Feminismo do Instituto de Estudos Sociais e Politicos (lesp), da Uerl, no Rio de Janeiro. Por indicagao de companheiras da March3 Mundial das Mulheres, eu havia sido convidada a apresentar noevento uma perspectiva ista do comum. Silvia Federici foi minha principal referéncia te6rica, seguida por bell hooks. Era 13 de maio de 2016, aniversario ¢ falsa abolicao, e vivia- mos dias decisivos do golpe de Estado airda em curso. A presiden- ta Dilma Rousseff acabara de ser afastad? do cargo, por 180 dias, depois da votagao no Senado que abrirs0 processo chamado de impeachment. As estudantes do lesp fize™ uma abertura-protes- to com megafone e faixas, a qual se seguit 0 choro da plateia. Depois que falei da queima as bruxasta Europa e da persegul- do as mulheres latino-americanas que'esistiram & dominacao ‘espanhola, Carolina contou da pesquis' corelata que focou no Ambito brasileiro. Fiquei muito interessal# ne livro e comecei a lé- -lo na manha seguinte. E, além de mais #feréncia teérica, ganhel duas amigas naquele dia. Carol e Marid® Franco, que havia de- fendido sua dissertacdo de mestrado nalFF dois anos antes e en- saiava sua possivel candidatura a verear@. Meses mais tarde, em ‘outubro, Carol e Mari conheceram Silvia m atividades promovidas Toidem, p. 193. (NE) no Rio. Das referéncias e dos afetos compartilhados com as duas, dou destaque a luta feminista e antirracista e a Silvia Federi Nascida em Parma, na Itélia, em 1942, Silvia Federici teve uma Infancia marcada pelas lembrancas da Segunda Guerra Mundial, do fascismo e, também, da resisténcia. Acordava ouvindo “Bella ciao” e admirava trabalhadores com cravos vermelhos na lapela no 18 de Maio. Crescera em um mundo dividido, ouvindo as histé- rias que os pais contavam, testemunhando retaliacdes aos fascis- tas e desconfiando do Estado. A mae de Silvia, dona de casa tipica, se ressentia de nao ter 0 préprio trabalho valorizado. € por muito tempo Silvia s6 percebeu ( que havia de aprisionador e opressivo na vida da mae. Foi ape- nas recentemente que se deu conta de como as memérias e os afe- tos eram compartilhados nos momentos de preparar a massa ou a geleia. O problema nao é necessariamente o trabalho doméstico e de cuidados, mas 0 lugar ocupado pelo trabalho de reproducao da vida no capitalismo. Em 1965, finalizou a graduacao em filosofia na Universidade de Bolonha e ingressou no mestrado. Em 1967, recebeu uma bol- sa para finalizar sua pesquisa na Universidade de Buffalo, nos Estados Unidos, onde viveu por trés anos. L4 péde conviver com ativistas antiguerra que tentavam escapar do recrutamento para 0 Vietna e com liderangas da comunidade negra e dos principais movimentos feministas. De volta a Itélia, fez doutorado em litera- tura e linguas modernas antes de se mudar mais uma vez para os Estados Unidos, onde finalizou doutorado em filosofia, em 1980. Anos depois, tornou-se professora na Universidade de Hofstra, em Nova York, onde segue como professora emérita. 3 4 J4 na primeira ida aos Estados Unidos conheceu os escritos de Mariarosa Dalla Costa e Selma James sobre o trabalho doméstico, como trabalho de reproducao (em oposicao ao trabalho produti- vo). Para ir as fabricas produzir, trabalhadores precisam comer, ter {as roupas limpas e costuradas, descansar em ambientes limpos. ‘Muito trabalho & necessario para que a classe trabalhadora se re- produza e, no capitalismo norte-americano e europeu, essa era uma fungdo exercida por mulheres, que nao recebiam remunera- ‘¢40, poder politico nem qualquer forma de reconhecimento. Com as duas, Silvia ajudou a fundar o Coletivo Internacional Feminista, que batathou por salérios para trabalhos domésticos. Cabe explicitar que em pafses com passado colonialista, como 6 0 caso do Brasil, 0 trabalho de reproducao é feito por mulheres negras e pobres ~ heranca do perfodo escravocrata que se atuali- za diariamente nas casas das classes médias e das elites, mesmo naquelas em que se Ie Silvia ou bell hooks. Em 2016, na primeira vez em que Silvia Federici esteve no Brasil, tive a oportunidade de entrevisté-la para a revista Cult e perguntei-the sobre sua percep- 40 do trabalho reprodutivo por aqui. Foi enféttica. Ha uma difeenga importante entre o regime que o capitalismo impés 4 classe traalhadora na Europa e o colocado nos lugares onde exis tiu escravidéo. Na Europa, foi consituida essa classe de esposa-ta balhadora en tempo integral. Mesmo que muitas mulheres também trabathassem fora de caza, era entendido que o trabalho primordial ra cuidar dos trabalhadores. Isso foi parte de um projeto capitalsta de invest na classe trabalhadora dando a ela uma casa e um salério para que fosse mais produtiva, Na Africa e na América Latina, essa realidade sempre foi bem diferente. Porque o Estado nunca esteve preocupadoem investi nos trabalhadores, mas sim em consumi-os. Entéo, a tarefa das mulheres nunca foi reproduzir sua comunidade, mas reproduzir a vida dos ricos.* Silvia compreende a questao racial como poucas autoras ndo negras. Em sua percepgao, todos os movimentos feministas norte- -americanos foram criados no século XIX, depois dos movimentos abolicionistas. E, na década de 1970, o feminismo se fortaleceu a partir da atuaco dos black panthers. A proximidade com ativis- tas negras e negros norte-americanos certamente influenciou seu olhar, assim como 0 periodo de trés anos em que foi professora na Universidade de Port Harcourt, na Nigéria. Ir & Africa foi uma experiéncia reveladora para ela. Descobri que muitas pessoas vivem no mundo sem se submeter as leis do capitalismo, como se elas fossem naturais. [..] Isso nao é ver- dade, e na Africa é menos verdade ainda, porque existe uma forte re- sisténcia, que vem dessa conexdo com a terra, que nao é s6 0 melo de produ¢do, mas a conexdo com sua ancestralidade, com a natureza, € © espaco para o trabalho coletivo e [6] geradora de indimeras relades de solidariedade. A terra 6 tudo.** Na Nigéria, Silvia percebeu que, apesar do colonialismo, mui: tas pessoas vivem em comunidade e que a base material das las rurais € 0 comum: a terra comum para o cultivo. Dos ataques histéricos aos comuns, na Africa do fim dos anos 1980, inicio dos 1990, Silvia viu a pressao da divida externa, de crises econdmicas, ‘0 Banco Mundial tentando convencer os governos e as pessoas em * “Entrevista de Bianca Santana, “Silvia Federici: ocapitalismo tenta destruir as nos. sas memorias". Revista Cult, 2 jun. 2017. Dispontvel em: chitps://revstacult.uol.com. bi/home/silvia-federic-o-captalismo-tenta-destrulrmemarias/>; acesso em: jul 5 16 relacdo a privatizacao da terra. Ela testemunhou também a resis- téncia a essas promessas falaciosas de desenvolvimento, Neste livro, Silvia mostra como o atual processo de cercamento € privatizacao de terras cria o ambiente e as motivacdes sociais para que mulheres engajadas na preservacao dos comuns sejam acusadas, em todo 0 mundo, de bruxaria. Além disso, discute a relacdo entre a caca as bruxas e o cercamento dos corpos das mu- heres por meio do controle de nossa sexualidade e nossa auto: nomia reprodutiva. Silvia trabalha, ao menos, com dois tempos. 0 dos séculos XVII e XVIII, quando mulheres foram perseguidas como bruxas nao s6 pela Igreja e pela Inquisicao, como por suas préprias comunida- des, e 0 da perseguicéo atual a mulheres sob a acusacdo de bru- aria. Essa nova fase de persegui¢ao, segundo a autora, tem raizes nna caga as bruxas do passado e é também justificada pela religido e pela misoginia, Assim como relata sobre pafses europeus, afticanos e a: cos, sabemos que no Brasil ha casos explicitos de perseguicao e assassinato de mulheres acusadas de bruxaria; um exemplo é 0 caso de Fabiane Maria de Jesus, de Guarujé, litoral de Sao Pau- {o, em 2014. A mulher de 33 anos de idade teria sido confundida com outra que sequestraria criangas para rituais de magia e foi linchada por cerca de cem pessoas no bairro onde vivia Em fevereiro de 2019, a Comissao Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) manifestou preocupacao quanto ao elevado né- mero de assassinatos de mulheres no Brasil j4 no inicio do ano. Segundo a comissao, 126 foram assassinadas em razao de seu gé- nero e outras 67 sofreram tentativas de homicidio. E os dados de io, assassinato de mulheres pelo fato de serem mulhe- res, explicitam quem so os principais alvos do édio as mulheres ‘no Brasil. Entre 2003 e 2033, a taxa de hor s entre negras aumentou 54%, enquanto a vinculada a brancas diminuiu 9,8% Tratar as mulheres como um grande grupo universal nao nos per- mite compreender as diferencas e as desigualdades vivenciadas entre diferentes ragas e classes, por exemplo. Leis e politicas pUblicas importantes, ao desconsiderarem tais diferencas, tém sido pouco efetivas para as mulheres que mais necessitam delas. A Lei Maria da Penha, internacionalmente pre- miada, tem-se mostrado irresoluta para mulheres negras. Eneces- sério investigar a fundo os motivos, compreendendo que muitas dessas mulheres nao percebem o Estado como instituigao que protege a vida delas. Ao contrério, assim como o crime organizado as milicias, 0 Estado também 6 uma ameaca. Escrevo estas linhas quinhentos dias depois da execugao de Ma- rielle Franco. A vereadora do Rio de Janeiro, defensora dos direitos humanos, mae de Luyara, companheira de Ménica, filha de Anto- nio e Marinete, irma de Anielle, foi alvejada com quatro tiros no rosto depois de sair de uma atividade pablica no centro do Rio. Até hoje nao sabemos quem mandou matar Marielle. E 0 Estado ndo tem se mostrado engajado na investigagao. Ao contrario, repre- sentantes do Estado, incluindo familiares do presidente da Repa- blica, tém relacao explicita com os executores de Marielle. ‘Assim como as mulheres, os comuns tém sido atacados dura- mente no atual governo: territ6rios indigenas e quilombolas amea- ¢ados e invadidos; fortalecimento do agronegécio e liberagao de agrot6xicos proibidos em diversos paises do mundo; previdéncia 7 18 privada, saiide piblica e outras politicas sociais desmontadas. Defensoras e defensores dos direitos humanos e dos comuns as- sassinados, perseguidos e encarcerados. Preta Ferreira e outras li- derancas do movimento de moradia presas, acusadas de extorsao a partir de uma denGincia anénima e sem provas. Além da perseguigao de mulheres militantes, pode-se tracar um paralelo entre as dentincias e as andlises de Silvia e os epi- sédios cada vez mais frequentes de racismo religioso. Em 2017, sete homens armados invadiram um terreiro de candomblé em Nova Iguacu, no Rio de Janeiro, e obrigaram a ialorixd, uma mu- Iher negra, a destruir suas guias e seus objetos sagrados. Eles filmaram e divulgaram toda a violéncia nas redes sociais, acu- sando-a de ser 0 “deménio-chefe”. Testemunhas disseram que ‘os homens urinavam nas imagens dos santos afirmando que nao permitiriam bruxaria naquela comunidade. Entre 2011 € 2017, as deniincias de discriminacao religiosa cresceram de 15 para 537. Apenas no primeiro semestre de 2018, foram registradas 210 de- nGincias, mostrando um aumento de 7.5% em relacao ao mesmo periodo em 2017. Contudo, se cresceu a violencia contra as mulheres, foi por que cresceu também nossa resisténcia ao racismo, ao sexismo, & desigualdade, ao capitalismo. Enquanto nos dedicamos a essas dendncias, amplificamos nossas vozes e nos aquilombamos, em insurgencia. lenho certeza de que multas mutheres estardo reuni das em cozinhas de ladrithos verdes, parques, salas de aula, ca- sas insubmissas, audit6rios e institutos para a leitura deste livro. Tantas outras se encontrarao nas ruas, nos blocos de carnaval, em sambas, campanhas eleitorais, seminarios e atividades acadé- micas, construindo relagdes densas e transformadoras. Algumas delas fardo pesquisas importantes e vao revirar arquivos relativos a luta das mulheres e a resisténcia a escravidao no Brasil, publi- cando informagdes ainda desconhecidas. Outras escreverdo livros para disseminar nossa meméria, nossa hist6ria, nossa ancestra- lidade. Outras, ainda, serdo eleitas parlamentares e contribuiro para a necessaria ocupacao da politica institucional. Inspiradas por Silvia, bell, Sueli, Lélia, Angela, daremos outro rumo a histéria.. Marielle presente! 19 Varios fatores me persuadiram a publicar os ensaios contidos nes- te volume, mesmo que eles apenas esbocem 0 inicio de uma nova investigagao e ainda que, em certa medida, ao menos na primeira parte, proponham teorias e apresentem documentos ja abordados em Calibd e a bruxa*, Um fator 6 a solicitacao, muitas vezes dirigi da.a mim nos Giltimos tempos, de um livro revisitando os principais temas de Calibd ea bruxa e capaz de alcangar um pablico mais am. plo. A isso devo acrescentar meu desejo de continuar pesquisando alguns aspectos das cacas as bruxas na Europa que tém especial im- portancia para a compreensao do contexto econémico/politico que {a5 produziu. Neste volume, concentrei-me em dois desses aspectos, ‘embora espere continuar esse trabalho com novas pesquisas sobre a telagao entre mulheres e dinheiro ~ e como ela foi constituida pela Campanha ideologica que acompanhou a caca as bruxas -, sobre o papel das criangas como acusadoras e acusadas em julgamentos e, facima de tudo, sobre a caca as bruxas no mundo colonial. © Caliba a bruxa: mulheres, corpo e acumulacao prinitva (trad. Coletivo Sycorax, Paulo, Elefante, 2017 2004). (NE) 24 Ainda assim, encontramos nas rafzes dessa nova persegui¢ao muitos dos fatores que instigaram as cagas as bruxas do séculos XVI e XVII, tendo como justificativas ideolégicas a religido e a re- gurgitacao de predisposigdes das mais miséginas. Desde 2008, quando “Caca as bruxas, globalizacao e solida- riedade feminista na Africa dos dias atuais” foi publicado pela pri meira vez, cresceram os registros de assassinatos cometidos sob a alegacao de bruxaria. Calcula-se que, apenas na Tanzania, mais de'5 mil mulheres sejam assassinadas por ano como bruxas, algu- mas golpeadas com facdes até a morte, outras enterradas ou quel- madas vivas. Em alguns pafses, como a Repdblica Centro-Africana, as prises esto cheias de mulheres acusadas de serem bruxas e, ‘em 2016, mais de cem delas foram executadas. Elas foram quel- madas vivas por soldados rebeldes que, seguindo os passos de perseguidores de bruxas no século XVI, transformaram as acusa- ‘GGes em negécio, forcando as pessoas, sob a ameaca de execucao iminente, a hes remunerarem. Na India, 0 assassinato de bruxas é igualmente desenfreado ~ ainda mais em “terras tribais”, como o territério dos adivasi, onde esto em curso processos de privatizacao de terra em larga escala. Eo fendmeno esté se expandindo. Temos relatos, atualmente, de assassinatos de bruxas no Nepal, na Papua Nova Guiné e na Ard- bia Saudita. 0 Estado Istamico também executou “bruxas”. Assim como no século XVI, a tecnologia contribui para a persegui¢ao. Hoje, imagens de assassinatos de bruxas podem ser baixadas da internet, assim como manuais que indicam como reconhecer uma bruxa, Também hé relatos de que, entre autodenominados perse- guidores de bruxas dos tempos atuais, alguns usam computado- res para “desmascarar” seus alvos! No que diz respeito a 2008, entretanto, uma importante mu- danga foi o crescimento da resisténcia das mulheres contra essas novas cagas as bruxas. Sobretudo na India, algumas mulheres se mobilizam, indo de aldeia em aldeia refutar boatos sobre a existéncia de bruxas propagados por autoridades locais ou perse- guidores de bruxas e outros agressores mais ou menos escusos. Outras pessoas coletam provas e pressionam as autoridades, ‘que muitas vezes nao tém interesse em processar os responsa- veis pelos assassinatos. Noticias sobre as novas cagas as bruxas também tém se espalhado lentamente pelos Estados Unidos, com atengGes voltadas, até o momento, para os campos de bru- xas que existem no norte de Gana, onde centenas de mulheres se refugiam, forcadas a um exilio permanente por pessoas de suas comunidades, incluindo familiares. Embora sejam predominan- temente jomalisticos nos relatos, livros e documentérios produ- zidos sobre esse tema reconhecem a relacdo entre esses novos ataques contra as mulheres e as mudancas promovidas pela neo- liberalizagao das economias africanas, o que, em muitos aspec- tos, representa um processo de recolonizacao. Entretanto, até 0 momento, a reacdo as descobertas tem sido silenciada. E recomendavel analisar as novas cacas as bruxas, assim como outras formas recentes de violéncia contra as mulheres. E isso exi- ‘ge um esforgo amplo e demorado, jé que agora esses fendmenos tém dimensao global. Para impulsionar esse projeto, criamos um site em que iniciativas similares podem ser reunidas a fim de com- partilhar e difundir informacdes ndo apenas sobre formas atuais de punicao, mas também sobre formas de resisténcia hoje*. = Giiado em Nova York, dispontvel em: «feministresearchonviolence.ory; acesso em: 2iago. 2019. NE) 25 26 Em consonancia com a resisténcia, concluo esta introducao mencionando mais um fator que motiva meu desejo de refletir so- bre pasado eo presente da caga s bruxas: 0 uso comercial, tu- ristio, das cagas as bruxas em diferentes localidades europeias. jades onde ocorreram julgamentos e perseguicdes famosos, que levaram diizias de mulheres a execucao, exibem hoje, em lojas e mais lojas, bonecas que representam bruxas. De modo grotesca, essas localidades reproduzem os esteredtipos criados pel0S cacadores de bruxas e que levaram milhares de mulheres 3 moft®. Em pratos, toalhas exicaras de café, bem como nas muitas borecas a venda para turistas, certa ideologia e uma hist6ria dis- torcida $40 disseminadas e acabam formando 0 imaginario das nov@S geracdes. Indiferentes aos danos que isso pode causar, as peSs@as que comercializam essa historia fabricada continuam a exibir tais itens deploraveis porque, como alguém que traba- Ihacom esses artigos me disse, em resposta a um protesto meu, “é vend&ivel”. No entanto, isso também é possivel porque, com rardS exeecdes', governos europeus e representantes da classe polltica ou da Igreja nao reconheceram o grande crime cometido Pors@us, predecessores contra as mulheres. Nem uma efeméride, cont 0 “Dia da Lembranca”, foi inclufda no calendario europeu ar Nos fazer recordar os massacres de bruxas. Ao contrario: em alge's paises, a queima de bruxas entrou para a cultura popular, © "na excecao 6 a Noruega, onde, em 2000, 0 municipio de Varo decidiu construir ‘um #0" um ento ara as viimas dos ulgamentos por bruxariarealizados em Finnmark. A tare 01 deada ao arquiteto sugo Peter Zumthore& artista franco-stadunidense Louise Bout¥9is, que construtam dois pavthdes diferentes. O de Bourgeois tem a forma de tum C#deing em chamas. “Ene 1600 e 1692, nada menos que 135 pessoas foram Jul- 148 Por truxaria em Finnmark. Dessas, 91 foam levadas & morte apés ‘confssBes! sob Oftura. malaria delas eram mulheres; 18% eram homens.” Line Uleklel (ed), Steil®et Memorial: To the Victims ofthe Finnmark Witchcraft Tals (Oslo, Forage, 201) ‘como mostra a cangao (Capitulo 1 deste volume) entoada em to- das as fogueiras da Dinamarca na véspera do dia de Sao Jodo. Por esse motivo, e pelos que ja foram mencionados, nao pode- mos deixar a histéria das bruxas ser sepultada no siléncio, a me- nos que seja nossa vontade que o destino que elas tiveram se repita, como jé est acontecendo em muitas partes do mundo. Denunciar 0 comércio do corpo e da morte de mulheres a fim de incentivar o turismo é apenas o primeiro passo. Outros serdo necessérios para garantir que as pessoas que hoje lucram com a venda de uma imagem degradante das mulheres, uma imagem que ignora 0 sangue derramado e a dor causada, retirem de suas prateleiras bonecas, canecas e toalhas que ostentam imagens de bruxas feias e velhas que riem sadicamente. Silvia Federici Nova York, agosto de 2017 27 CU Revisitando a acumulagao primitiva PEE Ee EM RCS iE Do Midsommervisen “Vi elsker vort land”' Cangiio de verdo “Amamos nosso pais” De tre forste vers, som normalt synges ved balfe Primeiros trés versos normalmente cantados em festas ao redor de fogueira: + Drachmann, mamos nosso pais ndr den signede jul quando 0 Natal abencoado 34 tender stjernen i treet med glans i hvert je, ‘a estrela na 4rvore ilumira, Com uma centelha em cada olhar, nar om varen hver fugl quando, na primavera, cada passaro, over mark, under strand, sobrevoando o campo, mergulhando na praia, lader stemmen til hilsende Willer sig baje: solta a voz em um canto de louvor: visynger din lov over vej, over gade, cantamos sua justica pelas estradas, pelas ruas, vikranser dit navn, nér vor aster i lade, coroamos seu nome, quando nossa colh ‘men den skonneste krans, mas a mais bela coroa bli'r dog din, Sankte Hans! serd vossa, Sao Joao! Den er bunden af sommerets hjerter, Ela est unida pelos cors¢6es do verdo, sd varme sé glade. tao calorosos e tao aleges- est no celeiro, Vielsker vort land, ‘Amamos nosso pais, men ved midsommer mest, mas no auge do verdo mais que nunca, nar bver sky over marken vesignelsen sender, quando cada nuvem sotfe 0 campo envia ben¢aos,, nar af blomster er flest, quando sao muitas as frres, og nr kveget i spand € 0 gado, sob 0 aguaceiro, giver rigeligst gave til flittige heend enche de dadivas as maos laboriosas, ndr ikke vi plajer og harver og tromler, quando nao aramos nem colhemos, nr koen sin middag i kloveren gumler, quando a vaca rumina sua refei¢o no pasto de trevos, da gar ungdom til dans quando a juventude sai para dancar pé dit bud, Sankte Hans ‘sob vosso comando, Sao Joo, ret som follet og lammet, der frit ce como 0 potro e 0 cordeiro que, livres, over engen sig tumler. cambaleiam pelo campo. Vielsker vort land, ‘Amamos nosso pais 0g med sveerdet i hand e com espada em punho skal hver udenveelts fiende bereedte os kende, cada inimigo estrangeiro hai de nos recomecer, ‘men mod ufredens dnd ito de rivalidade, under mark, over strand, abaixo da terra, sobre as aguas da praia, Vil vi balet pé feedrenes gravhejie teende acenderemos a fogueira nasé sepulturas vings de nossos pais. er by har sin heks, Toda cidade tem sua bruxa, ©9 hver sogn sine trolde. e toda paréquia, seus trolls. Dem vil vi fra livet med gledesblus holde Tiraremo-lhes a vida com a fogueira da alegria, Vi\il fred her til lands q paz neste pa Sa\nkte Hans, Sankte Hans! Jo%0, Sao Joao! Den kan vindes, hvor hjerterne Eela pode ser conquistada onde os coragdes aljrig bli’r tvivlende kolde. nunca, de davida, arrefecem* Fento em inglés, que servu de base &traducdo presente neste volu ye our nty/ when the hnistmas/ lights the star Inthe tre witha sparkle in each When in spring every bir,/ over fe gre sing thy law over road, over when our harvest inthe shed,/ but the most beautiful : tis tied by the ‘when we St.John lamb, which freely ‘urea will every outlandish enemy know nstthe spritof strife u 1 over beach,/ we wll light the ie on the res of our fathers/ every town has its witch/and every parish tstrols./ Wewill 1m if with th y/ we want peace in this county/ St.John, St.John never gets doubrfull cold. (N.T) Por que falar outra vez em cagas as bruxas?* Por que deverfamos trazer de novo a tona 0 assunto cacas as bru- xas? “De novo”, porque, em anos recentes, estudiosas feministas retiraram as cagas as bruxas do limbo hist6rico a que estavam con- finadas e atribuiram a elas um lugar apropriado na histéria das mulheres da Europa moderna e das América: Barbara Ehrenreich e Deirdre English, Mary Daly e Carolyn Mer- chant’, entre outras, mostraram como a caga as bruxas serviu para privar as mulheres de suas praticas médicas, forcou-as.a se sub: meterem ao controle patriarcal da familia nuclear e destruiu.um conceito holistico de natureza que, até a Renascenga, impunha limites a exploragao do corpo feminino, * te artigo fe escrito no fim a ‘como primera versao da ntroducao de Calla e a bruxa: mulheres, corpo acumulagdo primitva (rad. Coltivo Sycorax, S40 Paulo, Elefante, 2037 (2004). Mary Daly, Gyn/Ecology: The Meth 1g?) Barbara Ehrenreich e Deedee English, i id Nurses: A Hist or Wome 3 Death of Nature: rc Revolution (S80 Francisco, Harper & Row, 3983) 40 Mais que isso. Sob a influéncia da nouvelle histoire [nova hist6- ria], 0s arquivos das aldeias foram reabertos e caixas de documen- tos empoeirados foram reexaminadas, deixando a disposi¢ao um retrato mais detalhado de centenas de julgamentos. Por que, entdo, revolver as cinzas, em especial se nao estamos reparadas para trazer a tona novos fatos relacionados aos atuais esquemas interpretativos? Um dos motivos é existirem aspectos estrut urais importantes na caga as bruxas dos séculos XVI e XVII que aind.a precisam ser anali- sados e situados noContexto sécio-hist6rico™ propriado. A maioria das historiadoras e dos historiadores da ca¢ia as bruxas, mesmo entre profissionais de maior motivacao politica, se restringe as analises sociolégicas: quem eram as bruxas? We que foram acusa- das? Onde e como foram punidas? Ou, entao, considera a caca as bruxas a partir de um Angulo limitado: o nasc:imento da profissdo médica, o desenvolvimento de uma perspectivra mecdnica do mun- do, o triunfo de uma estrutura estatal patriarcal, e assim pordiante. 0 que continua nao reconhecido € que, cromo 0 comércio es- cravista e 0 exterminio de povos indigenas mo “Novo Mundo”, a caga as bruxas se coloca na encruzithada de- um aglomerado de processos sociais que prepararam 0 caminha) para o surgimento do mundo capitalista moderno. Assim, hd mutito a ser aprendido a partir da caca as bruxas no que diz respeito ass precondicdes para o salto capitalista Oestudo da caca as bruxas nos leva a reavasliar a crenga arraiga- da de que, em certo momento, 0 desenvolvimento do capitalismo {oi portador de progresso social - uma crenca eque, no passado, le- vou muitas pessoas “revoluciondrias” a lamenttarem a auséncia de uma “auténtica acumulagao capitalista” em grande parte do antigo ‘mundo colonial. No entanto, se minha interpretagao estiver correta, toma-se possivel uma compreensao histérica diferente, segundo a qual a populagao africana escravizada, as comunidades campone- as expropriadas na Africa e na América Latina e 0s povos indigenas massacrados na América do Norte seriam parentes proximos das bruxas europeias dos séculos XVI e XVII estas, assim como es- Ses grupos, tiveram suas terras comuns confiscadas, vivenciaram a fome produzida pela mudanga para a agricultura comercial e viram sua resisténcia ser perseguida como sinal de um pacto diabélico. Pode-se objetar, contudo, que prova temos de uma relagao en- tre a mulher que foi queimada viva ou que ergueu sua forquilha para o coletor de impostos e a légica de um sistema que, em fase inicial, dificilmente teria obtido unificagao da consciéncia, quanto mais um plano orquestrado. Como é possivel enxergar, nas san- grentas disputas que aconteceram nas aldeias e levaram muitas mulheres as camaras de tortura, a indicacao de uma nova ordem econémica da qual nenhum grupo protagonista fazia ideia? Nao deveriamos, entao, nos restringir as micro-histérias que, em uma abordagem programatica, isolam os acontecimentos das aldeias de qualquer relacao com as estruturas sociais dominantes? Pode parecer um caminho prudente. No entanto, restringir 0 campo causal s6 faz surgirem novas questées. Por exemplo: por que testemunhamos, no mundo modemo, uma onda de praticas patriarcais e mis6ginas por iniciativa da mesma burguesia, que, muitas vezes, é reconhecida como agente da emancipacao das mulheres? E qual é a relacao entre o surgimento da profisso m ica ea ascensao do mecanismo filos6fico e cientifico? Nao seria Necessaria uma causa subjacente mais ampla, que associasse e explicasse essas diferentes correlacdes? aa a2 O caminho que adotei foi o de responder a essas perguntas. Em meu trabalho, a caca as bruxas ¢ interpretada como um dos aspec- tos da “Grande Transformacao” que conduziu a instituigao do capi- talismo na Europa. As evidéncias, 6 verdade, sao circunstanciais, ‘mas nenhum fendmeno hist6rico significativo pode ser “explica- do” sem que se faca referéncia ao campo contextual, bem como a sua dindmica interna. Um exemplo atual pode esclarecer esse ponto. Na auséncia da farta proviso de registros que provavelmente transmitiremos as futuras geracées, historiadoras e historiadores que estudarem (0s anos 1980 e 1990 nos Estados Unidos podem ficar desnortea- dos com a coexisténcia de um desenvolvimento tecnolégico sem precedentes e 0 retomo de fendmenos comumente associados a0 “subdesenvolvimento” ou a uma época anterior da acumutacao primitiva: a populacao de rua, 0 confinamento em grande escala da populacao negra nas prisdes, que tem como modelo a “Grande Internagao” do século XVI, 0 analfabetismo generalizado, a dis- seminacao da violéncia andnima e uma ampla configuragao de desintegracao social. Entao, como provar que a expansao capita~ lista que conduziu a revolugao dos computadores foi responsavel pelo retorno a formas de vida que evocam 0 “Século do Ferro”? ‘Muitas evidéncias circunstanciais seriam necessérias. Nem ind meras entrevistas com funcionérios de governo e didrios de jovens génios da computaco, por exemplo, ouo trabalho de intelectual que se engajassem na “desconstrugao” de textos litersrios ou na aclamagao da era do “discurso pés-moderno” seriam suficientes, Seria preciso estudar as politicas habitacionais, associar a ele~ vagao do preco dos aluguéis 8 desarticulacao do cinturdo indus~ trial dos Estados Unidos, deduzir disso um salto na acumulagao que levaria ao desenvolvimento de um novo saber tecnolégico e a pauperizaco de amplos setores da classe trabalhadora, inferir as tensdes que isso produziria e ouvir os discursos de politicos empenhados em atacar 0 bem-estar social como perversao dos objetivos sociais e divinos. Mesmo com tudo isso, tais esforcos ainda poderiam ser enfrentados com ceticismo, exatamente como sao hoje. A caca as bruxas, entdo, também deve ser resgatada do isolamento da aldeia e colocada em perspectiva. Precisa ser exa- minada em continuidade com outros acontecimentos e processos que tiveram desdobramentos nos niveis da aldeia e da nacao. € isso que espero que meu trabalho tenha realizado. 43 Cagas as bruxas, cercamentos e 0 fim das relagées de propriedade comunal Este capitulo sustenta que os cercamentos de terras ingleses e, de maneira mais ampla, 0 surgimento do capitalismo agrario a partir do fim do século XV na Europa oferecem um pano de fun- do social relevante para compreender a producao de muitas das acusacées contemporaneas de pratica de bruxaria e a relacao entre caca as bruxas e acumulacao de capital. Vou esclarecer, diante, em que sentido uso o conceito de cercamento. Por ora, desejo enfatizar que os cercamentos de terras nao explicam a totalidade das cacas as bruxas, passadas ou atuais. Concordo om a visdo predominante de que a caca as bruxas exige uma explicagéo multicausal, embora eu atribua todas as suas cau: sas subjacentes ao desenvolvimento das relacdes_capitalis- tas. Também nao quero sugerir que a relacdo que estabeleco entre cercamento de terras e caca as bruxas seja determinan te. A privatizagao da terra s6 produz perseguicao as “ hist6ricas especificas. Entretanto, parec uma relagdo singular entre o desmantelamento dos regimes c munitérios € a demonizacdo de integrantes das comunidades 48 afetadas que transforma a caga as bruxas em um instrumento efetivo de privatizacao econémica e social, Identificar essa rela- 40 singular é parte do objetivo deste capitulo. Os cercamentos foram um fendmeno inglés pelo qual a classe proprietaria de terras e membros abastados da classe camponesa cercaram terras comuns, colocando fim aos direitos consuetudi nérios e desalojando a populagao de agricultores e colonos que delas dependiam para sobreviver. Esse nao foi o Gnico meio pelo qual aconteceu a privatizacao de terras. O mesmo proceso de expulsdo do campesinato e de comercializagao da terra ocorreu na Franca e em outras partes da Europa ocidental por meio, por exemplo, da elevacao tributéria. Entretanto, concentro-me nos cercamentos ingleses porque estes demonstram mais claramen- te como a comercializacao da terra e 0 crescimento das relacdes monetérias afetou, de formas diferentes, mulheres e homens. No Uso que fago aqui, os cercamentos incluiam ocupacao da terra, in- troducao de aluguéis extorsivos e novas formas de tributacao. Em todos os modelos, porém, esse foi um processo violento, que pro- vocou profunda polarizacao no que tinham sido, até entao, comu: nidades estruturadas.com base em vinculos reciprocos. 0 fato de que nao foi apenas quem possufa terras, mas também as pessoas mais abastadas do campesinato, que ergueu as barreiras (forma comum de demarcacao de fronteiras) intensificou as hostilidades produzidas pelos cercamentos, na medida em que agentes e vi- timas de cercamentos se conheciam, passavam pelos mesmos caminhos e estabeleciam mailtiplos relacionamentos e na medida ‘em que o medo que consumia essas pessoas foi alimentado pela proximidade da vida delas e a possibilidade de retaliacao. Que indicios temos de que o cercamento de terras foi essencial na produgao de capas as bruxas? A resposta € que a maioria dos indicios é circunstancial. Em ne- nhum dos julgamentos de que temos registros as mulheres acu- sadas foram descritas como vitimas de expropriacao. Sabe-se, no ‘entanto, que na Inglaterra, assim como no restante da Europa, as cacas as bruxas foram um fenémeno predominantemente rural e, como tendéncia, afetaram regides em que a terra havia sido cerca- da, Embora depois tenha retratado sua afirmacao, em Witchcraftin Tudor and Stuart England [Bruxaria na Inglaterra dos Tudor e dos Stuart], Alan Macfarlane havia demonstrado que os mapas dos jul- gamentos de bruxas e dos cercamentos coincidiam, sendo que a principal regiao de perseguigao foi o condado de Essex, onde as terras tinham sido cercadas pelo menos um século antes da caga {is bruxas’. Os cercamentos também aconteceram em Lancashire, em especial proximo a floresta de Pendle, local de um dos mais sangrentos processos por bruxaria, em 1612. A lembranga desse cercamento refletiu no nome da aldeia onde algumas das bruxas executadas foram interrogadas pela primeira vez, apropriadamen- te chamada de “Fence” [cerca]. Consideracdes cronolégicas também sao importantes. Elas mostram que, na Inglaterra, os julgamentos de bruxas no come- garam antes do século XVI, que atingiram 0 auge no XVII e que ‘ocorreram em sociedades em que as relagdes econdmicas.e so- ¢lais eram reformuladas pela crescente importancia do mercado FNian Macfariane, Witchcraft in Tudor and Stuart England: A Regional Comparative Shudy (Nova York, Harper & Row, 1970). 49, 50 eas quais a pauperizagao e o aumento das desigualdades eram desenfteados, tornando-se assustadores no periodo de 1580 a 3620, quando, sob o impacto da prata que chegava da América do Sul o preco de graos e outros produtos agricolas comecoua subir ‘As mulheres mais velhas foram as mais afetadas por esses acontecimentos, pois a combinacao de alta de precos e perda de direitos consuetudinarios as deixou sem ter de onde tirar 0 sus- tento, ainda mais se fossem vidivas ou nao tivessem filhos e filhas com capacidade ou disposi¢ao para ajudé-las. Na economia rural da sociedade senhorial inglesa, em geral vidvas e pobres tinham subsisténcia garantida, Como Keith Thomas escreveu em Religion and the Decline of ‘Magic (Religido e declinio da magia}, © antigo sistema senhorial fez muito para atender as necessidades de vidvas e pessoas idosas por meio de um sistema interno de auxilio 1 pobres. A viva desfrutava do direito de freebench, isto 6, da trans- miss de uma parcela da propriedade de seu antigo marido, que ia de um quarto a totalidade, de acordo com o costume senhorial local. Se ela fosse incapaz de realizar 0 cultivo sozinha, poderia entregé-la a um membro mais jovem da familia em troca da garantia de sustento [..J. Também havia diversos privilégios consuetudinarios locais para pobres, variando do diteito a trés dias de colheita antes que o resto- tho fosse destinado & pastagem [..] até a permissio para dormir na igreja caso nao tivessem outro alojamento.* Peter Linebaugh também demonstrou que, desde a Carta Magna, e em especial da Carta da Floresta, de 1215, era garantido o direito * “Keith Thomas, Religion and the Decline of Magic (Nova York, Charles Scribner's Sons, 1973), p. 562. da vidva a “itens de primeira necessidade”, isto é, a alimentos, lenha e subsisténcia’, No entanto, com a perda dos direitos con- suetudinérios, isso também foi perdido quando a Reforma e o novo espirito comercial proibiram a oferta e o recebimento de caridade, sendo que pedir esmola na Inglaterra s6 era permitido sob licenca concedida pelos juizes de paz. Nao surpreende que muitas das supostas bruxas fossem mu- theres pobres, que sobreviviam pedindo esmola de porta em por- ta ou viviam dos “impostos para pobres”*, como foi chamado 0 primeito sistema de bem-estar social introduzido na Inglaterra. ‘Até mesmo os crimes imputados a elas demonstram que faziam parte de uma populacao camponesa que nao tinha mais acesso a terra nem a direitos consuetudinarios, e seria de esperar que se ressentissem das posses da vizinhanga, a comecar pelos ani- mais, que podiam pastar em terras que jé tinham sido comuns. € significative que pelo menos um terco das acusacGes registradas por C. L’Estrange Ewen relativas ao Home Circuit** entre 1563 € 1603 envolvesse encantamento de porcos, vacas, garanhdes, cavalos castrados e éguas, muitos deles até a morte’. Como es- crevi em Calibd e a bruxa, a pobreza das “bruxas” era registrada has acusagdes, j4 que era dito que o diabo ia até elas em épocas, 1 Poiertinebaugh, The Magna Carta Manifesto: Liberties and Commons for All (Berke- ley, University of California Press, 2008), p.29 ¢39-40, * Wo otginal, poor rates, impostos que incidiam sobre a propriedade e ram destina- Hos 90 alivio da pobreza. (N.T) ome Circuit era. a designagdo de uma das varascves da Inglaterra que compreendia ‘Ws condados ingleses 20 redor de Londres (Kent, Essex, Surrey, Sussex, Hertfordshire). ile percontiaocrcuito periodicamente para tratar dos casos de cada lcalidade. (N.T) 1G Utstrange Ewen, Witch-Hunting and Witch Tals: The Indictments for Witchcraft Ihe Records of 373 Assizes Held forthe Home Circuit AD 1559-1736 (Londres, Kegan Wh, Tuner & Co., 3929). 51 52 de necessidade e Ihes prometia que, a partir daquele momento, “nunca mais precisariam sofrer privacdes”, supostamente ofere- cendo “came, roupas, dinheiro” e a quita¢ao de suas dividas*. ‘A pobreza, no entanto, ndo era a causa imediata das acusagies de bruxaria Dois outros fatores contribufam para a producao de uma bruxa, Primeiro, as bruxas ndo eram apenas vitimas. Eram mulheres que resistiam a propria pauperizacao e exclusdo social. Ameacavam, lancavam olhares reprovadores e amaldicoavam quem se recusa- va.a ajudé-las; algumas se tornavam inconvenientes, aparecendo de repente, e sem serem convidadas, na soleira de vizinhas e vizi- nhos que viviam em methor situacao ou realizando tentativas ina- dequadas de se tornarem aceitas ao oferecer presentinhos para as ctiancas. AS pessoas que as processavam acusavam-nas de ser encrenqueiras, de ter lingua ferina, de armar confusao entre a vizinhanga ~ acusacdes que historiadoras e historiadores mul tas vezes acataram. Podemos, porém, questionar se, por trés das ameacas e das palavras maldosas, néo deverfamos captar um res- sentimento nascido da raiva pela injustica sofrida, uma forma de rejeitar a marginalizacao. ‘Aos fatores econémicos no segundo plano da acusacao de bruxaria devemos acrescentar a politica institucional cada ve mais mis6gina que confinava as mulheres a uma posi¢ao social de subordinacao. em rela¢ao aos homens e que punia_com se veridade, como subversao da ordem social, qualquer afirmacao > Ver Keith Thomas, Religion and the Decline of Magic, cit. p. 520. de independéncia de sua parte e qualquer transgressao sexual. A “bruxa” era uma mulher de “ma reputacdo”, que na juventu- de apresentara comportamento “tibertino”, “promiscuo”. Muitas vezes, tinha criancas fora do casamento e sua conduta contradi- zia o modelo de feminilidade que, por meio do direito, do pulpito e da reorganizacao familiar, fora imposto a populagao feminina da Europa durante esse periodo. As vezes era curandeira e pra- ticante de varias formas de magia que a tornavam popular na comunidade, mas isso cada vez mais a assinalava como perigo & estrutura de poder locale nacional em sua guerra contra todas as formas de poder popular. Nao tem relevancia aqui se seus remé- dios apresentavam qualquer eficdcia, possivelmente baseada no conhecimento empirico das propriedades de ervas e plantas, ou se eram placebos produzidos por feiticos e encantamentos. O fato de que o povo tentou influenciar o curso dos acontecimen- tos por meio de feiticaria e outras praticas duvidosas era ameaca Suficiente em uma época em que os cercamentos incitavam revoltas transformavam agricultores e agricultoras em errantes e pedintes que, de forma plausivel, ansiavam por viraro mundo de cabesa para baixo e que as mulheres patticiparam de muitos protestos, arran- cando as cercas que, entdo, circundavam as propriedades comuns*. Na figura da bruxa as autoridades puniam, a0 mesmo tempo, a in- vestida contra a propriedade privada, a insubordinagao social, a propagacao de cren¢as magicas, que pressupunham a presenga de poderes que nao podiam controlar, e o desvio da norma sexual que, © Sobre participacao das mulheres nas lutas contra os cercamentos, ver Silvia Fede Cal e a brava: mulheres, corpo e ecumulagdo primitiva (trad. Coletivo Sycorax, 2017 (2004), p. 143-4 im Fibo Paulo, Elefant 53 54 naquele momento, colocava 0 comportamento sexual e a proctia- (0 sob dominio do Estado. Continua desconcertante o fato de que o diabo precisasse ser convocado para justificar a operacdo, a menos que consideremos que, pela demonizacao das bruxas, as formas de comportamento toleradas ou vistas como normais no passado poderiam ser con- vertidas em odiosas e assustadoras aos olhos de uma populacao mais ampla de mulheres, para as quais a morte dessa figura servia como ligdo sobre o que esperar caso seguissem o mesmo caminho. Realmente, muitas mulheres aprenderam a li¢do e, medida que a caga as bruxas avangou, essas mulheres também contribuiram para as acusacGes. Ainda assim, elas quase nunca denunciavam as suspeitas de bruxaria de forma direta; ao contrario, desempenha- vam “papel passivo”, sendo forcadas pelos homens — que, em ge- ral, iniciavam os procedimentos legais - a testemunhar’. Talvez seja por meio desse confronto que dispunha mulheres contra mulheres que descobrimos o segredo da perseguicao das bruxas e sua relacao singular com a destruicao da propriedade co- | munitéria de terra. Hoje esta em voga entre profissionais de hist6ria supor que aquelas que foram assassinadas nao eram vitimas inocentes de uma terrivel persegui¢ao institucional, similar ao exterminio de hereges ou a perseguicao nazista ao povo judeu na era moderna. Também nos dizem que algumas mulheres se orgulhavam de sua 7 Clive Holmes, “Women: Witnesses and Witches", Past and Present, 140, ty ago. 1993, p. 54 € 58. Holmes relata que, “apesar de Seu envolvimento numérico, as mulheres eram, em grande medida, agentes passivas no pracesso legal contra as bi as", pois “a decisdo efetiva de transmutar a suspeita da aldeia em prova oficial ede ‘organtzar 0s viinhos eas vizinhas para sso era tomada por homens da localidade”, reputacao de bruxa a fim de arrancar favores e recursos da vi nhanga. Insinua-se que acusacdes como a de estragar producao de cerveja, encantarvaca ou causar a morte repentina de criancas nao eram infundadas. Contudo, se houve, de fato, mulheres pron- tas a cometer tais atos, nao deveriamos nos perguntar o que as levou a odiar com tamanha faria algumas pessoas da vizinhanga a ponto de tramar arruind-las economicamente matando seus animais, atrapalhando seus negécios e causando-Ihes tormentos insuportéveis? Como explicamos que tamanho 6dio tenha surgido em aldeias onde, um século antes, a vida se organizara em torno de estruturas comunais e cujo calendario anual fora pontuado Por festividades e celebracdes coletivas? Ou a demonizagao da “bruxa” foi o instrumento dessas divisdes, necessério exatamente para justificar a exclusao de individuos que, no passado, tinham sido considerados e se consideravam pessoas comuns? Seja como for, junto com as “bruxas” foram eliminadas crengas uma série de praticas sociais/culturais tipicas da Europa rural pré: apitalista que passaram a ser vistas como improdutivas e poten- mente perigosas para a nova ordem econdmica. Era um universo que hoje chamamos de supersticioso, mas que, ao mesmo tempo, ‘nos alerta para existéncia de outras possibilidades de relacao com (© mundo. Nesse sentido, temos de pensar nos cercamentos como um fendmeno mais amplo que a simples separacao da terra por cer: (4s. Devemos pensar em um cercamento de conhecimento, de nos- 0 corpo, de nossa relacdo com as outras pessoas e com anatureza. Outro aspecto que ainda precisa ser plenamente compreendi- o 6 como a caca as bruxas mudou nossa relacdo com os animai Com a ascensao do capitalismo, desenvolveu-se um novo éthos wicial que prezava a capacidade de disciplinar e direcionar os 55 56 desejos instintuais do individuo para o trabalho. A medida que © autocontrole se tormou sinal de humanidade, houve uma dife- renciagao mais profunda entre seres humanos e “bestas”, o que implicou uma revolugao cultural - consideremos que, antes do advento do capitalismo, presumia-se haver continuidade entre 5 mundos animal e humano, com os animais tidos como seres responsaveis e até mesmo dotados da capacidade de falar. Essa visdo dos animais persistia em muitas partes da Europa ainda no século XVI, de modo que os caes, por exemplo, eram levados a julgamento por “crimes” que haviam cometido ou levados ao jul- gamento de seus donos, como testemunhas capazes de declarar a inocéncia ou a culpa destes* Por volta do século XVII, estava em curso uma mudanca dras- tica, a qual repercutiu na teoria de Descartes de que os animais sdo maquinas nao sencientes. Ter animais de companhia era cada vez mais visto com suspeita, pois os animais eram retrata- dos como a encarnacao daquela instintividade incontrolavel que © capitalismo devia reprimir para produzirtrabalhadores discipli nados. Tocar em animais, fazer carinho neles e morar com eles, como fora norma nas regides rurais, tornou-se comportamento tabu. Com a caca as bruxas, especialmente na Inglaterra, os ani- mais foram demonizados devido a teoria de que o diabo oferecia a seu séquito ajuda digria na forma de animais domésticos, que serviam para levar a cabo os crimes das bruxas. Esses “familia res” eram uma prova da natureza irracional da “bruxa” e possi- velmente de toda mulher. * Ver Edward Payson Evans, The Criminal Prosecution ond Capitel Punishment of An: ‘mals: The Lost History of Europe's Animal Trials (Londres, Wiliam Heineman, 1900) Por meio da caca as bruxas, portanto, um novo cédigo social e &tico fol mposto, e isso tornou qualquer fonte de poder independen- te do Estado e da Igreja suspeita de diabolismo e provocou 0 medo do inferno — omedo do mal absoluto sobre a terra. O fato de ter sido comumente assumido que a personificacéo do diabo era uma mu- ther teve profundas consequéncias para a condicdo das mulheres no ‘mundo capitalista que a caca as bruxas ajudou a construr. Dividiu as "oulheres. Ensinou a elas que, ao se tomarem ciimplices da guerra Contra as “bruxas” e aceitarem a ideranca dos homens quanto aisso, obteriam a protegao que as salvaria do carrasco ou da fogueira. Ens ou-as, acimade tudo, a aceitar o lugar a elas designada no desen- volvimento da sociedade capitalista, pois, uma vez que fosse aceito ue poderiam se tomar servas do diabo, a suspeita de diabolismo acompanharia a mulher por todos os instantes de sua vida, 57 Acaga as bruxas e o medo do poder das mulheres* Ela esta em pé, sozinha, ao pdr do sol, em um espaco vazio, se- gurando uma meada de fio azul que serpenteia ao redor dela até envolver um conjunto de casas que, assim, parecem quase uma extensdo de seu corpo. Trazando el camino (1990) estd entre as muitas pinturas q fo Morales, um dos melhores artistas do México no século XX, dedicou ao principal tema de sua obra: 0 corpo feminino como materiale tecido social que mantém a comu: nidade unida. A pintura de Morales 6 um contraponto & imag dda bruxa, como se, com seu olhar calmo e seu avental bordado, 1 mulher que a tela representa parecesse quase angelical. Ainda ssim, algo magico e sigiloso em rela¢do a ela evoca a “conspira- Go” feminina que cobriu a Europa de sangue entre os séculos X I), talvez oferecendo uma pista para alguns dos mistérios ni Centro dessa perseguicdo que historiadores e historiadoras ainda precisam solucionar. Versio revista de artigo originamente publicado em Docu Books (hassel, Haj 012) 62 Por que as cacas as bruxas foram dirigidas principalmente con- tra as mulheres? Como se explica que, ao longo de trés séculos, milhares de mulheres se tornaram a personificacao do “inimigo no meio de nés” e do mal absoluto? E como conciliar o retrato que inquisidores e demondlogos pintavam de suas vitimas como to- do-poderosas, quase miticas - criaturas do inferno, terroristas, devoradoras de homens, servas do diabo que, enlouquecidas, percorriam os céus em cabos de vassoura -, com as figuras indefe- sas das mulheres reais que eram acusadas desses crimes e, entdo, terrivelmente torturadas e queimadas em fogueiras? Uma resposta inicial a essa pergunta reconstitui a perseguicao as “pruxas” desde os deslocamentos causados pelo desenvolvimento do capitalismo, em especial a desintegracao das formas comunais, de agricultura que predominavam na Europa feudal e a pauperiza- do a que a ascensao da economia monetaria e a expropriagéo de terras langaram amplos setores das populagées rurais e urbanas. ‘Segundo essa teoria, as mulheres tiveram maior probabilidade de ser vitimizadas porque foram as mais “destituidas de poder” por essas mudancas, em especial as mais velhas, que, muitas vezes, se rebelavam contra a pauperizacao e a exclusao social e que cons- titufam a maioria das acusadas. Em outras palavras, as mulheres foram acusadas de bruxaria porque a reestruturacao da Europa rural no inicio do capitalismo destruiu seus meios de sobrevivéncia ea base de seu poder social, deixando-as sem nenhum recurso além da dependéncia da caridade de quem estava em melhores con- digdes. Isso em uma época de desintegracao dos lacos comunais ede cristalizacao de uma nova moralidade ~ que criminalizava oato de pedir esmolas e desprezava a caridade, que no mundo medieval fora um caminho conhecido para a salvacdo eterna. Essa teoria, expressa pela primeira vez por Alan Macfarlane em Witchcraft in Tudor and Stuart England (Bruxaria na Inglaterra dos Tudor e dos Stuart] (1970), certamente se aplica a muitos dos julga- ‘mentos de bruxas. Ha, sem davida, uma relacdo direta entre varios casos de caca as bruxas e o processo dos “cercamentos”, como de- monstram a composicao social dos grupos acusados, as acusacdes. feitas contra eles e a caracteriza¢ao comum da bruxa como mulher Pobre e idosa que vivia sozinha, dependia de doacées da vizinhan- a, ressentia-se amargamente de sua marginalizag3o e, muitas vezes, ameacava e amaldicoava quem se recusava a ajudé-lae ine- vitavelmente a acusava de ser respons4vel por seus inforttnios. Essa descricdo, entretanto, nao explica como aquelas criaturas spiravam tanto medo, Também nao justifica o fato de tantas entre as acusadas serem denunciadas por transgressdes sexuais e crimes reprodutivos (como cometer infanticidio e causar impoténcia masculina); entre as condenadas, havia mulheres que tinham atingido certo grau de poder na comunidade trabalhando como curandeiras tradicionais e parteiras ou operando praticas magicas, como localizagao de objetos perdidos e adivinhacao, Além da resist@ncia @ pauperizacao e a marginalizacao social, ‘ameacas as “bruxas” representavam aos olhos de quem plane Java extermind-las? Responder a essa pergunta exige que retome- Mos nao apenas os conflitos sociais gerados pelo desenvolvimento ilo capitalismo, mas a transformacao radical que isso causou em todos os aspectos da vida social, a comecar pelas relacdes repro- itivas/de género que caracterizaram o mundo medieval. Mapitalismo nasceu de estratégias que a elite feudal a lgrejae #5 Classes proprietarias de terras e comerciantes - implementou 63 64 em resposta as lutas do proletariado rural e urbano que, por volta do século XIV, colocou seu dominio em crise. Foi uma “contrarre volucao” ndo apenas sufocando com sangue as novas demandas por liberdade, mas virando o mundo de cabeca para baixo com a criagdo de um sistema de produgéo que exigia uma concep¢a0 diferente de trabalho, riqueza e valor que fosse atil as formas mais intensas de exploragao. Desse modo, a classe capitalista foi, desde os primérdios, confrontada com um duplo desafio. Por uum lado, teve de derrotar a ameaca representada pela plebe ex- propriada transformada em populacées errantes, pedintes e tra balhadoras e trabalhadores sem-terra, prontos para se revoltarem contra as novas classes proprietarias, ainda mais no periodo en- tre 1550 e 1650, quando a inflagao causada pela chegada do ouro e da prata provenientes do Novo Mundo “acelerava a um ritmo incontrolavel”, levando o preco dos alimentos as alturas enquan- to, comparativamente, 0s Salarios diminufam. Naquele contexto, fa presenca, em muitas comunidades camponesas, de mulheres idosas ressentidas de sua condigao deploravel, que iam de porta ‘em porta resmungando palavras vingativas, certamente poderia ser temida como criadouro de tramas conspiratorias. Por outro lado, como modo de producdo que postula a “indds: tria” como principal fonte de acumulacdo, o capitalismo nao podia ‘se consolidar sem forjar um novo individuo e uma nova discipli ra social que impulsionasse a capacidade produtiva do trabalho, [alan Cornwall Revolt ofthe Peasontry1549 (Londres, Routledge & Kegan Paul i977) p19. Sabre © aumento ao prego du» aimentos wer tmbam Joyce Olcham Appleby eonomie Thought ond ideology Seventeenth Century England Nova ese, Pine iiversty Press 1978), . 27; Alexandra Shepard, "Poverty, Labour andthe Language ol eat Description in Eary Modern England”, Past Present 203, 1, Nov. 2008, P5895 Isso envolveu uma batalha histérica contra qualquer coisa que impusesse limite a plena exploracao da mao de obra bracal, a co: megar pela rede de relacdes que ligava os individuos ao mundo natural, a outras pessoas e ao préprio corpo. O elemento-chave desse processo foi a destrui¢ao da concep¢ao magica de corpo vigente na Idade Média. Essa concep¢ao atribuia ao corpo poderes que a classe capitalista ndo conseguia explicar, que eram incom: pativeis com a transformagao dos trabalhadores e das trabalha: doras em méquinas de trabalho e que podiam até intensificar a resisténcia das pessoas a esse processo. Eram poderes xamanicos que as sociedades agricolas pré-capitalistas atribufam a todos, ou a individuos especificos, e que, na Europa, sobreviveram apesar de séculos de cristianizagao ~ muitas vezes, inclusive, sendo assi- mmilados aos rituais e as crengas do cristianismo. E nesse contexto que o ataque as mulheres como “bruxas” deve ser situado. Devido a sua relagao singular com o processo de reprodugdo, as mulheres, em muitas sociedades pré-capitalistas, foram reconhecidas por uma compreensao particular dos segre- dos da natureza, que as capacitava, supostamente, a proporcio- har vida e morte e a descobrir as propriedades ocultas das coisas. Praticar magia (na condigao de curandeiras, médicas tradicionais, herboristas, parteiras, criadoras de pocdes de amor) também foi, para muitas mutheres, uma fonte de emprego e, indubitavelmen- {e, uma fonte de poder, embora as expusesse a vinganca quando (08 remédios falhavam. Esse 6 um dos motivos pelos quais as mulheres se tornaram os principais alvos da tentativa capitalista de construir uma concep: (ilo de mundo mais mecanizaua. A “raciunatizagao" do mundo na: ural ~ precondi¢ao de uma disciplina de trabalho mais organizada 65 66 e da revolucao cientifica — passava pela destruigdo da “bruxa”. |Até mesmo as indescritiveis torturas a que as mulheres acusadas foram submetidas adquirem significado diferente se as concebe- mos como forma de exorcismo contra seus poderes. Também devemos repensar, nesse contexto, a descri¢ao da sexualidade das mulheres como algo diabélico, a quintesséncia da “magia” feminina, que central para a definicao de bruxaria. Ainterpretacao classica desse fendmeno culpa a lascivia sexual do inquisidor e o sadismo nascido de uma vida reprimida e ascé- tica. Contudo, embora a participagao de eclesidsticos nas cagas {as bruxas fosse fundamental para a construcao de sua estrutura ideolégica, por volta dos séculos XVI e XVII, quando a caga as bruxas foi mais intensa na Europa, a maioria dos julgamentos de bruxas foi conduzida por magistrados leigos, pagos e estabe- lecidos por governos municipais. Assim, devemos nos perguntar (0 que a sexualidade feminina representava aos olhos da nova elite capitalista em virtude de seu projeto de reforma social eda instituigéo de uma disciplina de trabalho mais rigorosa. Uma resposta preliminar, baseada nas regulacdes introduzidas na maior parte da Europa ocidental nos séculos XVI e XVll, refe- rentes a sexo, casamento, adultério e procriacao, é que a sexuali dade feminina foi vista, ao mesmo tempo, como ameaga social e, quando direcionada apropriadamente, como poderosa forga eco» némica. Como os Santos Padres da Igreja catélica e os autores do- minicanos de Malleus maleficarum [Martelo das bruxas] (1486), [Publicado em 1486 pelos dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger, que ‘atuaram como Inqusidores no sul da Alemanha, Malleus mleficarum foi uma da primeirase mais influentes demonologias, tendo sido reimpresso muitas vezes nos dis Fentos anos seguintes. Como relata Joseph Klits, entre 481 e1486, Kramere Sprengel a nascente classe capitalista precisou desprezar a sexualidade e © prazer femininos. Eros, atragao sexual, sempre foi suspeito aos olhos das elites politicas, visto como forga incontrolavel. 0 rela: to de Platao sobre os efeitos do amor em 0 banquete apresenta uma dimensao ontolégica dessa visdo. O amor € 0 grande magico, 0 deménio que une céus e terra e torna os seres humanos tao in- telros, tao completos em seu ser, que, uma vez unidos, nao podem ser derrotados. Os Santos Padres, que no século IV d. C. foram a0 deserto africano para escapar da corrupgao da vida urbana e Supostamente das tentagdes de Eros, tiveram de reconhecer seu poder, sendo atormentados por um desejo que s6 podiam imagi- nar como inspirado pelo diabo. Desde essa época, a necessidade de proteger a coesao da Igreja como clé masculino, patriarcal, e de impedir que sua propriedade fosse dissipada devido a fraqueza Clerical diante do poder feminino levou o clero a retratar 0 sexo fe- inino como instrumento do diabo ~ quanto mais agradavel para 0s olhos, mais mortal para a alma. Esse é 0 tema central de toda a demonologia, a comecar por Malleus maleficarum, provavelmente ‘texto mais mis6gino ja escrito. Fosse catdlica, protestante ou pu- ritana, a burguesia emergente deu continuidade a essa tra mas com uma deformidade, j4 que a repressao do desejo feminino foi colocada a servico de objetivos utilitarios, como a satisfacdo das necessidades sexuais dos homens e, mais importante, a ge- fagdo de mao de obra abundante, Uma vez que seu potencial sub- Vversivo foi exorcizado e interditado por meio da caca as bruxas, a am quase cinquenta execugBes por bruxara na diocese de Constanca*. Joseph Servants of Satan: The Age ofthe Witch Hunts (Blaomington, Indiana Universty 1985), P44 67 68 sexualidade feminina péde ser recuperada, em um contexto matri- moniale para fins de procriacao. ‘Comparada ao enaltecimento cristao da castidade e do ascetismo, a norma sexual instituida pela classe burguesa/capitalista ~ com a reintegracdo protestante do sexo na vida matrimonial, como “re médio para a concupiscéncia”, e 0 reconhecimento de um papel legitimo para as mulheres na comunidade como esposas e maes ~ tem sido, muitas vezes, retratada como ruptura com o passado. No entanto, o que o capitalismo reintegrou na esfera do comportamento social aceitavel para.as mulheres foi uma forma de Sexualidade décihy domesticada, instrumental para a reproducdo da forca de trabalhoe a pacificagdo da mao de obra. No capitalismo, 0 sexo s6 pode existir ‘como forca produtiva a servico da procriacao e da regenerac¢ao do trabalhador assalariado/masculino e como meio de pacificagao e compensacao social pela miséria da existéncia cotidiana. Tipica dessa nova moralidade sexual burguesa foi a ordem de Martinho Lutero para que as freiras deixassem os conventos e se casassem, j4 que o casamento e a produgao de uma prole abundante era, na visdo dele, a satisfaco da vontade de Deus pelas mulheres e sua *“yocagao maxima”. “Deixem que elas deem a luz até morrerem”, ele aparentemente declarou. “Elas foram criadas para isso.”» Nenhuma ‘utoridade politica ou religiosa do século XVI expressou esse sen- timento de maneira tao grosseira quanto Lutero, mas a limitagao da sexualidade feminina ao casamento e & procriagao, bem como a obediéncia incondicional da esposa, foram instituidas em-tados 105 paises - independentemente do credo religioso - como pilarda the Reformation”, em Ronnie Po-Chia Hs 7 Werry Wiesner, "Women's Response to {ed}. Ihe German People and the Reformation (Rhaca/ Nova York, Cornell Univesity Press, 1988), . 151 moralidade social e da estabilidade politica. E, de fato, as “bruxas” 1ndo foram acusadas com tanta frequéncia de nenhum crime quanto foram denunciadas por “comportamento libertino”, geralmente associado ao infanticidio e a uma hostilidade inerente em relagdo a reproducao da vida. Fora desses pardmetros, fora do casamento, da procriago e do controle masculino/institucional, também para capitalistas, a sexualidade feminina foi historicamente representada como perigo social, ameaca a disciplina do trabalho, poder sobre as outras pessoas e obstculo a manutencdo das hierarquias sociais @ as relagbes de classe. Esse foi o caso no século XVI, quando a conduta e as trocas sexuais entre mulheres e homens entrou em crise e emergiu um novo fendmeno, tanto nas cidades quanto nas reas rurais, segundo o qual uma mulher ndo comprometida, mo- rando sozinha, em geral praticava prostituicao. Nao 6 surpresa que a acusacao de perversao sexual fosse cen- tral nos julgamentos organizados por autoridades leigas, bem como naqueles iniciados e dirigidos pela inquisigao. Ai também, sob a fantéstica acusagao de cépula com o diabo, encontramos 0 edo de que as mulheres enfeiticariam os homens com sua “ma sla”, submetendo-os a seu poder e inspirando neles tanto desejo ponto de levé-los a esquecer todas as distncias e as obrigacdes hociais. Esse foi o caso, de acordo com Binding Passions (Amat- fando paixdes] (1993), de Guido Ruggiero, das cortesas de Veneza fio século XVII, que conseguiram se unir em matriménio com ho- ens da nobreza, mas foram, entao, acusadas de ser bruxas. 0 medo da sexualidade descontrolada das mulheres explica 4 popularidade, nas demonologias, do mito de Circe, a lendaria Feliceira que, com suas artes magicas, transformava em animais 69 70 os homens que a cobicavam. E isso também explica as numerosas especulagdes, pelas mesmas demonologias, referentes ao poder das mulheres de moverem os homens com seus olhos sem tocé: -los, simplesmente com a forca de seu “charme” e seu “encanta- mento”. Além disso, o “pacto” que as bruxas foram acusadas de fazer com o diabo, em geral envolvendo uma troca monetaria, re vela uma preocupacao com a habilidade de as mulheres obterem dinheiro dos homens ~ ¢ isso se faz presente na condenacao por prostituicao. Dessa forma, nao foram poupados esforcos para retratar a se- xualidade feminina como algo perigoso para os homens e humi- Ihante para as mulheres, de modo a reprimir seu desejo de usar © préprio corpo para atrai-los. Nunca, ao longo da histéria, as mu- theres foram submetidas a tao grande agressao, organizada inter- nacionalmente, aprovada pelas leis, abencoada pelas religides. Com base nas evidéncias mais frégeis, em geral nada além de uma dentincia, milhares foram detidas, desnudadas, tiveram corpo totalmente depilado e, entao, perfurado com longas agulhas por toda parte na busca da “marca do diabo”, em geral na presenca de homens - do carrasco aos notaveis e aos sacerdotes da localidade, Eisso nao representou, de forma alguma, o fim de seus tormentos. {As crueldades mais sddicas ja inventadas foram infligidas ao corpo da mulher acusada, que serviu de laborat6rio ideal para o desen: volvimento de uma ciéncia da dor e da tortura. Como registrei em Calibd e a bruxa, a caca as bruxas instituiu um regime de terror contra todas as mulheres, do qual emergiu um nove modelo de feminilidade a que as mulheres tiveram de se conforma para serem socialmente aceitas durante o desenvolvimento-da-soe cledade capitalista: a feminilidade assexuada, obediente, submi resignada a subordina¢ao ao mundo masculino, aceitando como na- turalo confinamento a uma esfera de atividades que foram completa: mente depreciadas no capitalismo, ‘As mulheres foram aterrorizadas por acusacées fantésticas, torturas terriveis e execugdes pdblicas porque seu poder social um poder que, aos olhos de seus perseguidores, era obviamente significative, mesmo no caso das mulheres mais velhas ~ preci- sava ser destruido. Na verdade, as idosas podiam atrair as mais jovens para seus habitos perversos e tendiam a transmitir conhe- cimentos proibidos, como aqueles referentes as plantas indutoras de aborto, e levar adiante a meméria coletiva de sua comunidade. Como Robert Muchembled nos lembrou, as idosas eram as que se lembravam das promessas feitas, da fé traida, da extensao da propriedade (especialmente em terras), dos acordos consuetudi- nrios e de quem foi responsével por violé-loss. Como 0 fio azul de Trazando el camino, indo de casa em casa, as mulheres idosas dis- seminavam hist6rias e segredos, amarrando paixdes e entrelacan- do acontecimentos passados e presentes. Desse modo, eram uma presenca perturbadora, que inspirava medo na elite reformista de modernizadores empenhados em destruir o passado, controlar 0 fomportamento das pessoas até mesmo em sua vida instintual e tesfazendo relacdes e obrigacdes habituais. Descrever as contestacdes terrenas das estruturas de poder que {#% mulheres realizaram como conspiragao demoniaca foi um fend- Meno que se repetiu v ias vezes na histéria, inclusive em tempos linis. A “caca as bruxas” macarthista contra 0 comunismo e a Wier Woche, cate poplre et curds ees AVilie): Essai (Paris, Flammarion, 1978). * n “guerra contra o terror” recorreram a essa dinami agero dos cas para justificar punicdes terriveis é um ociedade, isolaras vitimas, d sténcia e fazer grande parte da populacdo ter medo de se envolver em praticas que, até entdo, eram consideradas norma A bruxa foi a comunista e a terrorista de sua época, quando foi io. um m ivilizador” para produzir uma nova dade” e uma nova divisdo sexual do trabalho em que a disciplina capitalista da mao de obra viria a se apoiar. Na Euro- a, as cacas s bruxas foram os meios pelos quais as mulheres se educaram em relagao a suas novas obrigagdes sociais e a manei- ra pela qual uma grande derrota foi imposta as “classes baixas”, que precisaram aprender sobre o poder do Estado para renunciar a qualquer forma de resistir ele. Nas fogueiras nao estavam ape- nas 0s corpos de “bruxas”, destruidos; também estava Universo de relagdes sociais que fora a base do poder mulheres e um vasto conhecimento que elas haviam transmitido, de mae para filha, ao longo de geracGes ~ conhecimento sobre er vas, sobre meios de contracep¢ao ou aborto e sobre quais magias usar para obter 0 amor dos homens. Eis 0 que foi consumido em cada praca de aldeia juntamente com a execugdo das mulheres acusadas, que eram expostas em seu estado mais abjeto: pr erro e entregues a0 fogo. Quando, em nossa imaginacao, reproduzimos essa cena milhares de vezes, comecamos a compreender o que a caca as bruxas significou para a Europa no apenas quanto as causasy mas também quanto aos efeitos. Sobre o significado de “gossip” Narrar a hist6ria das palavras que sao frequentemente usadas para definir e degradar as mulheres é um pa: rio para ‘ompreender como a opressio ia do termo “gossip” [atualmente traduzido como € emblematica nesse contexto. Por meio dela, nhar dois séculos de ataques contra as mulher da Inglaterra moderna, quando uma expressao que u: aludia a uma amiga préxima se transformou em um termo que ificava uma conversa fatil, maledicente, isto é, uma conversa ue provavelmente semearia a disc6rdia, 0 oposto da solidarie dade que a amizade entre mulheres implica e produz. Imputar um sentido depreciativo a uma palavra que in mizade entre as mulheres ajudou a destruir a sociabilidade feminina que prevale. feu na Idade Média, quando a maioria das atividades executadas Pelas mulheres era de natureza coletiva e, ao menos nas classes Halxas. as mulheres formavam uma comunidade coesa que era a fsa de uma forca sem-par na era moderna. 76 ragos do uso da palavra sao frequentes na literatura do perfodo. Derivada dos termos ingleses arcaicos God [Deus] e sibb [aparen- tado}, “gossip” significava, originalmente, “god parent” [padrinho ‘ou madrinhal, pessoa que mantém uma relacao espiritual com a crianca a ser batizada. Com o tempo, entretanto, o termo passou ‘a ser usado em sentido mais amplo. Na Inglaterra do inicio da era moderna, “gossip” se referia as companhias no momento do parto, nao se limitando a parteira. Também se tornou um termo para ami- gas mulheres, sem conotacao necessariamente depreciativa’. Em todo caso, a palavra tinha fortes conotagdes emocionais. Reconhe- cemos isso quando observamos a palavra em a¢ao, denotando os tacos a unir as mulheres na sociedade inglesa pré-moderna. Encontramos um exemplo dessa conotagao em um mistério do Ciclo de Chester* que sugere que “gossip” era um termo muito usa~ do, Os mistérios eram uma producao dos membros da guilda que, a0 criar e financiar essas encenacGes, tentavam reforcar seu presti social como parte da estrutura de poder local’. Dessa forma, estavam comprometidos com a preservacao das formas de comportamento esperadas e com a sdtira daquelas a ser condenadas. Criticavam as mulheres fortes, independentes, e em especial as relagdes com 0s maridos, pois - dizia a acusagao - elas preferiam estar com as ami gas. Como relata Thomas Wright em A History of Domestic Manners and Sentiments in England during the Middle Ages (Uma histéria de 7 Segundo o Oxford English Dictionary, “conhecida préxima, amiga, camarada”. SUS: tentado porreferéncias de 2361 2 1873. +O Ciclo de Chester era um conjunto de 26 dramas religiosos (misters, moralidades { milagres)caractersticos do teatro medieval, sendo que os mistéros, em especial representavam passagens biblicas. (N.1.) + iioleR Rice e Margaret Aziza Pappano, The Civic Cycles: Artisan Drama and identi in Premodern England (indiana, University of Note Dame Press, 2035) costumes e sentimentos domésticos na Inglaterra durante a Idade Média] (1862), os mistérios frequentemente as retratavam levando uma vida autdnoma, muitas vezes “se reunindo com suas ‘gossips’ ‘em tavernas pdblicas para beber e se divertir”. Dessa maneira, em um dos mistérios do Ciclo de Chester que representa Noé exortando pessoas e animais a entrar na arca, a esposa ¢ apresentada sentada ‘em uma taverna com suas “gossips”, recusando-se a sair dali quan- do 0 marido a chama, mesmo com as 4guas subindo, “a menos que ela tenha permissao de levar as gossips consigo". Estas, segundo Wright relata, sao as palavras que ela é levada a proferir pelo autor (claramente critico) do mistério: ‘Sim, Senhor, hasteie sua vela Eavance sob a chuva malévola, Porque, sem erro, Nao sairei desta cidade. Tenho, porém, minhas gossips, todo mundo. Nao darei um passo além. Elas ndo se afogarao, por Sao Joao, E posso salvar suas vidas! Elas me querem muito bem, por Cristo! Mas as deixe entrar no seu barco, Caso contrétio, reme para onde quiser Earranje uma nova mulher.s Thomas Wig A Miso of Domestic Mone and Sentient In England dr the Middle Ages (Londres, Chapman and Hall, 1862). : _ re a pea de Not no Co de Chester, ver Ncle Bice e Maret Aza mas Wright, A History of Domestic Manners and Sentiments In icamas Sentiments in England during the Middle Ages, cit p. 420-1. No orginal: "Yes, Sit, et up your sai,/ And row forth with evil 7 78 Na peca, a cena termina com um embate fisico em que a mulher vence o marido. “A taverna”, observa Wright, “era o refiigio das mulheres das classes média e baixa, que se reuniam ali para beber e fofocar”. Ele acrescenta: “Os encontros das gossips nas tavernas sao temas de muitas das cangées populares dos séculos XV e XVI, tanto na Inglaterra como na Franca”*, Como exemplo, ele cita uma cangao, Provavelmente de meados do século XV, que descreve um desses encontros. As mulheres, “tendo se encontrado por acaso”, decidem ir para “onde hé 0 melhor vinho”, de duas em duas, para ndo cha- marem atengao nem serem descobertas pelos maridos?. Assim que chegam, elas elogiam o vinho e reclamam sobre suas situagdes ma- trimoniais. Entao, voltam para casa, por ruas diferentes, “dizendo ‘aos maridos que tinham ido a igreja”*. A literatura de mistérios e moralidades pertence a um periodo de transigdo no qual as mulheres ainda mantinham um grau consi- deravel de poder social, mas sua posi¢ao social nas areas urbanas estava cada vez mais ameacada, a medida que as guildas (que Patrocinavam a producao das pecas) comecavam a exclui-las de seus quadros e a instituir novas fronteiras entre a casa e o espaco. pUblico. Nao é de surpreender, portanto, que nelas as mulheres fot itera, owt coun, stm anys ne ee oa Joie Andere ae pea das”, di dolas, “se meu maride ie ananr anh deca lea ee nes Cnet idem, p. 439. fossem muitas vezes repreendidas e representadas como encren- Suelras, agressivas e prontas a lutar com os maridos. Tipica des. 52 tendéncia era a representa¢ao da “batalha pelas calcas", na Gual a muther aparece como dominatrix ~ chicoteando o marido, montada nas costas dele, em uma inversao dos papéis claramente concebida para humilhar os homens ao permitir que as esposas ficassem “no comando”’, Essas representacdes satiticas, expresses de um crescente Sentimento mis6gino, serviram & politica das guildas que se em. Penhavam em se tomar dominios exclusivamente masculinos, No entanto, & representacao das mulheres como figuras fortes, asser. tas, também captava a natureza das relacées de género da ép0- 2, pols nem nas éreas rurais nem nas urbanas as mulheres eram dependentes dos homens para sobreviver; elas tinham as préprias atividades e compartithavam muito da vida e do trabalho com ou. tras mulheres. Cooperavam umas com as outras em todos os as- pectos. Costuravam, lavavam roupas e davam a luz cercadas por Sutras mulheres ~ nesta Gitima situacdo, os homens eram rigorosa- Inente excluidos dos apasentos da parturiente. Sua condicao legal refletia essa grande autonomia. Na Itélia, no século XIV, elas ainda Podiam se dirigir independentemente a corte para denunciar um homem se ele as agredisse ou molestasse™, No século XVI, entretanto, a posicao social das mulheres ha- Win comecado a se deteriorar, e a sétira deu lugar ao que, sem scald ae G2 85082 dominadors, ver David E. Underdown, “The Taming of ui The ENorcement of Patrarchal Authority In Early Modem England foe 1K-Cohn, ‘Donne in piazza e donne in tibunale a Firenze nel inascimento” MW Sorici22,n.3, jul-set. 198s, p. sgt, 79 80 exagero, pode ser descrito como uma guerra contra as mulheres, especialmente das classes baixas, que se refletia em um nlimero cada vez maior de acusagBes por bruxaria e de agressGes contra esposas tidas como “rabugentas” e dominadoras". Além desse desdobramento, comegamos a ver uma mudanga no significado de “gossip”, cada vez mais designando a mulher envolvida em conversas fiteis. © sentido tradicional perdurou. Em 1602, quando Samuel Rowlands escreveu “Tis Merrie When Gossips Meete” [E divertido quando as gossips se encontraml, pega satirica que descreve as ho- ras que trés mutheres de Londres passam em uma taverna falando sobre homens e casamento, a palavra ainda 6 usada para indicar amizades femininas, dando a entender que “as mulheres podiam criar suas proprias conexdes sociais e seu préprio espaco social e enfrentar a autoridade masculina™. Contudo, a medida que 0 sé culo avangou, a conotacao negativa da palavra predominou. Como mencionado, a transformagao se deu em paralelo ao fortalecimento da autoridade patriarcal na familia e a exclusao das mulheres dos oficios e das guildas®, 0 que, com o processo dos.cercamentos, le- vou a “feminizacao da pobreza™. Com a consolidaco.da familiae da autoridade masculina em seu interior, representando 0 poder do 7 VerDasid -Urderdou, The Ting of te Sol ci, 9.636 * Berard app Wen Gesps Meet: Woner, ami nd Neighbourhood Ina oder Entrust Pes, on. Atte sore xis ds meres de oo als ogee coma atc Aun let obese vr A Cla Worting feof Women he svete Cen Condes, Retege& eg watane Hse, “Fatlcal Reconstruction sn With Hunn”, em nal Sa Moame este eh oer s)he nr oe a Stun cute and Bete Cambie, Came Ue) Pes, 990.3. 30 Estado com respeito a esposas e criancas, e com a perda do acesso .antigos meios de subsisténcia, tanto o poder das mulheres como ‘as amizades femininas foram enfraquecidos. Dessa maneira, na Idade Média tardia, uma esposa ainda podia Ser representada enfrentando seu marido e até mesmo trocando 0cos com ele, mas, no fim do século XVI, ela poderia ser punida com severidade por qualquer demonstracao de independéncia ou ica em rela¢do a ele‘ obediéncia - como a literatura da época enfatizava constantemente — era a primeira obrigacao da esposa, imposta pela Igreja, pelo direito, pela opinido publica e, em.tilti- ma andlise, pelas punigdes cruéis que foram introduzidas contra as “rabugentas”, como o “scold’s bridle” [rédea ou freio das ra bugentas], também chamado de “branks", engenhoca sdica de metal e couro que rasgaria a lingua da mulher se ela tentasse falar. Tratava-se de uma estrutura de ferro que circundava a cabeca, um bridao de cerca de cinco centimetros de comprimento e dois centi- metros e meio de largura projetado para dentro da boca e voltado Para baixo sobre a lingua; muitas vezes, era salpicado de pontas afiadas, de modo que, se a infratora mexesse a lingua, aquilo cau- ia dor e faria com que fosse impossivel falar. Registrado pela primeira vez na Esc6cia em 1567, esse instrumen- to de tortura foi criado como castigo para as mulheres das classes baixas consideradas “importunas” ou “rabugentas” ou “subver- sivas", sempre suspeitas de bruxaria. Esposas que fossem vistas fomo bruxas, malvadas e rabugentas também eram forcadas a Uisé-l0”. Muitas vezes, 0 instrumento era chamado “gossip bridle”, Mestando a mudanca no sentido do termo. Com uma estrutura utos, David E. Underdown, “The Taming of the Scold cit p12 8&1 82 dessas travando a cabeca e a boca, as acusadas podiam ser con- duzidas pela cidade em uma humilhacao pdblica cruel, o que deve ter aterrorizado todas as mulheres e que demonstrava 0 que elas poderiam esperar caso nao se mantivessem subservientes. E sig- nificativo que, na Virginia, Estados Unidos, isso tenha sido usado para controlar pessoas escravizadas até o século XVIII. Outra tortura a que mulheres assertivas/rebeldes foram sub- metidas foi o “cucking stool” ou “ducking stool” [banco de imer- so}, também usado como punicao para prostitutas e mulheres {que participavam dos motins contra os cercamentos. Tratava-se de uma espécie de cadeira a que a mulher era amarrada e “insta lada para ser submersa em um lago ou rio”. De acordo com David E, Underdown, “depois de 1569 as evidéncias de sua adocao co- megam a se multiplicar””. Mulheres também foram levadas aos tribunais e multadas por “rabugice” enquanto sacerdotes, durante os sermdes, bradavam contra suas lingua. Esperava-se que as esposas, em particular, ficassem caladas, “obedecessem aos maridos sem questionar” € “sentissem venera¢ao por eles”. Acima de tudo, elas eram instrul- das a fazer de seu marido e de sua casa os centros de sua aten¢ao& a nao passaro tempo a janela nem a porta, Eram até mesmo desen= corajadas de fazer muitas visitas a sua familia depots do casamento e, sobretudo, de dedicar tempo a suas amigas. Ainda na Inglaterra, em 1547, “foi expedido um decreto proibindo as mulheres de se encontrarem para tagarelar e conversar” e ordenando aos maridos = Tbidem, p. 1235; ver também Susan D. Amussen, “Gender, Family and the Soci Order, 1seo172¢", em Anthony Fletcher elohn Stevenson (eds.), Order and Disorder Early Modern Engiand, ci. p25, © David E. Underdown, “The Taming ofthe cold” cit p. 123, que “mantivessem as esposas dentro de casa", As amizades fe- mmininas foram um dos alvos da caca as bruxas, na medida em que, no desenrolar dos julgamentos, as mutheres acusadas foram forca- das, sob tortura, a denunciar umas 8s outras, amigas entregando amigas, filhas entregando maes. Foi nesse contexto que “gossip” se transformou, de uma ex: pressao de amizade e afeto, em um termo de difamacao e ridicula- rizacao, Mesmo quando usada com o antigo significado, a palavra revelava novas conotagées, que no fim do século XVI referiam-se a um grupo informal de mulheres que forgavam comportamentos so- cialmente aceitos por meio de censura privada ou rituais pablicos, sugerindo que (como no caso das parteiras) a cooperagao entre as mulheres era colocada a servico da manuten¢ao da ordem social. ‘Afofoca e a formagao do ponto de vista feminino Hoje, “gossip” {no sentido de fofoca] designa a conversa infor- mal, geralmente danosa as pessoas que servem de assunto. , hha maioria das vezes, uma conversa que extrai sua satisfacao da depreciagao de outros; 6 a disseminagao de informacdes nao des- \das a audicao pablica, mas capazes de arruinar reputacées, € inequivocamente, uma “conversa de mulheres” Sao as mulheres que “gossip”, supostamente por nao terem ida melhor a fazer e por terem menos acesso ao conhecimento il, 8 informacao, e por uma inabilidade estrutural de construir iscursos racionais, de base factual, Dessa forma, a fofoca é parte Integrante da desvalorizacao da personalidade e do trabalho das Wright, Middle Cass Culture in Elizabethan England (ithaca/Nova Yotk Nova York, versity Press, 1965 [93 83 mulheres, em especial do trabalho doméstico, supostamente ter- reno ideal para que essa pratica prospere. Essa conce| texto hist6rico particular. Pela perspectiva de outras tradi¢des cul: turais, essa “conversa fatil entre mulheres”, na verdade, surgiria de modo bem diferente. Em muitas partes do mundo, as mulheres tém sido vistas historicamente como tecelas da memoria ~ aque- las que mantém vivas as vozes do passado e as histérias das co- munidades, que as transmitem as futuras geracdes e que, ao fazer iam uma identidade coletiva e um profundo senso de coe- sao. Elas também sao aquelas que passam adiante os conheci- mentos adquiridos e os sab relativos as curas medicinais, aos problemas amorosos e 4 compreensdo do comportamento humano, a comegar pelo comportamento dos homens. Rotular toda essa produgao de conhecimento c fofoca” é parte da degradacao das mulheres — 6 uma continuacao da construcao, por demonélogos, da mulher estereotipada com tendéni invejosa da riqueza e do poder de outras pessoas e p sscutar 0 diabo. € dessa forma que as mulheres tém si jadas e até ho} uidas de muitos lugares onde sao tomadas decisées, privadas da possibilidade de determinar a prépria expe: riéncia e forgadas a encarar os retratos mis6ginos ou idealizados que 0s homens fazem delas. Estamos, no entanto, recuperando nosso conhecimento. Como uma mulher disse recentemente em um encontro para discutir o'sentido da bruxaria)sa magica bemos que sabemos ey SESE SE EU O ee) 1e) 2a capa as bruxas em nossa época mulheres, em especial do trabalho doméstico, supostamente ter- reno ideal para que essa pratica prospere. Essa conce| texto hist6rico particular. Pela perspectiva de outras tradigées cul: turais, essa “conversa fatil entre mulheres”, na verdade, surgiria de modo bem diferente. Em muitas partes do mundo, as mulheres tém sido vistas historicaimente como tecelas da meméria ~ aque- las que mantém vivas as vozes do pasado e as histérias das co: que as transmitem as futuras geragdes e que, ao fazer iam uma identidade coletiva e um profundo senso de coe- sao. Elas também sao aquelas que passam adiante os conheci- mentos adquiridos e os saberes ~ relativos as curas medicinais, a0s problemas amorosos e a compreensao do comportamento humano, a comecar pelo comportamento dos homens. Rotular toda essa producdo de conhecimento como “fofoca” é parte da degradacdo das mulheres ~ 6 uma continuagao da construcao, por demonélogos, da mulher estereotipada com tendéncia a maldade, invejosa da riqueza e do poder de outras pessoas ¢ pi scutar 0 diabo. € dessa forma que as mulheres tém si iadas e até hoje excluidas de muitos lugares onde sao tomadas decisées, privadas da possibilidade de determinar a prépria expe: riéncia e forgadas a encarar os retratos miséginos ou idealizados que os homens fazem delas. Estamos, no entanto, recuperando nosso conhecimento. Como uma mulher disse recentemente em tum encontro para discutir 6 sentido da bruxariaa magica bemos que sabemos eC USES SECO ee) Te) 2a capa as bruxas em nossa época Globalizagao, acumulagao de capital e Violéncia contra as mulheres: uma Derspectiva internacional e historica* Da propagagao de novas formas de caca as bruxas em varias re- do mundo & escalada mundial no némero de mulheres as sassinadas diariamente, hd cada vez mais evidéncias de que est lecendo uma nova guerra contra as mulheres. Quais so s € qual é a l6gica por tras dela? Baseando-me em uma e tema, em grande parte produzida ministas da América Latina, abordo essa questo col '$ novas formas de violéncia em um con: texto histérico e ando o impacto do desenvolvimento do ‘alismo, passado e presente, na vida das mulheres e na lacdes de 10 de fundo, também analiso a telagao entre as diversas formas léncia ~ familiar, extra doméstica e institucional - e as estratégias de resistencia, criadas por mulheres em todo o mundo, para acabar com elas. We ensalo @ Baseado em uma apresentacdo que fiz no f6run Iealzado em Buenaventura, Willa, “Undeclared Byeivday titer. ial Artforum ss, n. 1 90 Introdugao Desde os primérdios do movimento feminista, a violéncia contra as mulheres tem sido uma das principais questdes da mobiliza- G40 feminista, inspirando a formacao do Primeiro Tribunal Inter- nacional de Crimes contra as Mulheres, realizado em Bruxelas, em marco de 1976, com a presenca de mulheres de quarenta paises, apresentando depoimentos sobre matemidade e esterilizacao compulsérias, estupro, agressées fisicas, encarceramento em hospitais psiquidtricos eo tratamento brutal das mulheres em pri: bes’. Desde entdo, as iniciativas feministas de combate a violén- cia se multiplicaram, bem como as leis aprovadas por governos em consequéncia das Conferéncias Mundiais das Nacdes Unidas sobre a Mulher. Longe de diminuir, porém, a violéncia contra a mulher cresceu em todas as partes do mundo, a ponto de as femi- nistas, agora, descreverem sua forma letal como “feminicidio”. A Violéncia, medida pelo nimero de mulheres assassinadas e viola- das, nao apenas segue crescente, como, segundo mostraram au- toras feministas, tornou-se mais piblica e mais brutal e assume formas antes s6 vistas em tempos de guerra’, Quais sao as forcas que impulsionam esse fendmeno eo que ele 1nos diz sobre as transformacdes na economia global e na posi¢ao Ver Diana EH. Russell e Nicole Van de Ven (eds, Crimes against Women: Proceed: ings of the International Tribunal (3. e¢., Berkeley, Russell, 1990 (1976). Disponivel fem: ehtp://womenation.org/wp-

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