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A vida mineral

Quando não recolhem a bandeja, fico com as pedras para mim. É um tipo comum de
cirurgia, toda sexta-feira acontece. Ao terminar, eles me chamam no bloco, eu subo. A
sala já está vazia nessa hora, o paciente foi levado para a recuperação. Faço então o meu
serviço. Verifico os equipamentos, o material, organizo os móveis. O pessoal da faxina
recolhe o lixo. Antes de trancar a porta, vou com a pinça e ponho as pedras num
saquinho. Normalmente são duas, três. Costumam medir entre um e dois centímetros,
mas às vezes saem umas gigantes. Os médicos dizem que são todas feitas da mesma
molécula, o oxalato de cálcio. O formato, porém, é sempre imprevisível. Essa é uma
característica das pedras humanas – o corpo é muito criativo. Não, não acho ofensivo
coletá-las, me apropriar delas, mesmo nesse estado, ainda mornas. Para mim, se já estão
livres do organismo, constituem uma matéria independente. Ao entrar na sala de
cirurgia, sinto sempre uma expectativa, é claro, uma ansiedade, não sei o que vou
encontrar. Sei apenas que vai ser um objeto novo, único – mais uma surpresa para a
minha mulher. No fim da tarde, quando chego em casa, ela já está me aguardando na
porta, como uma criança aflita, e vou logo passando o saquinho para as mãos dela. Ela
corre para a pia, limpa os cristais um por um, com água e sabão. Depois, com muito
cuidado, ajeita as novas peças na estante, reordenando as antigas. Minha mulher faz isso
com uma delicadeza incrível, com o talento de uma artista. A estante fica dentro do
nosso quarto, ocupa uma parede quase inteira. À noite, a gente deixa a janela aberta.
Entra uma luz suave – a claridade que vem da rua. Aos poucos, os cristais vão se
iluminando, ganhando brilho, tornam-se vivos. Cada pedra, cada minério tem uma
forma própria, uma cor própria. Lembram setas, pétalas, lâminas. Moedas, medusas,
estrelas. Ossos, cacos de vidro. Depende da sua imaginação. Até alta madrugada,
deitados na cama, minha mulher e eu podemos olhar para a estante e admirar essa
maravilha, esse tão diversificado universo.

(Marcílio França Castro, no livro “Histórias naturais: Ficções”)

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