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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL


Mestrado Profissional em Sustentabilidade Junto a Povos e Terras Tradicionais

Negritude nas linguagens do corpo:


criatividade e resistência na experiência de jovens em Paracatu, MG

Lídia Maria de Oliveira Morais

Brasília, DF
2017
Lídia Maria de Oliveira Morais

Negritude nas linguagens do corpo:


criatividade e resistência na experiência de jovens em Paracatu, MG

Dissertação apresentada ao Centro de


Desenvolvimento Sustentável da Universidade
de Brasília, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do grau de
mestre em Desenvolvimento Sustentável, com
ênfase em Sustentabilidade junto a Povos e
Terras Tradicionais.

Orientadora: Mônica Celeida Rabelo Nogueira

Brasília, DF
Maio de 2017
MORAIS, Lídia Maria de Oliveira

NEGRITUDE NAS LINGUAGENS DO CORPO: criatividade e resistência na experiência de jovens


em Paracatu, MG. Dissertação de Mestrado. Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS),
Universidade de Brasília, 2017, 115 p.

Dissertação de Mestrado – Universidade de Brasília. Centro de Desenvolvimento


Sustentável.

1. Juventudes. 2. Cultura. 3. Negritude. 4. Experiência. 5. Narrativa. 6. Performance.

I. UnB-CDS. II. Título. III. MORAIS, Lídia Maria de Oliveira.

É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta dissertação e


emprestar ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e científicos. A autora
reserva outros direitos de publicação e nenhuma parte desta dissertação de mestrado pode
ser reproduzida sem a autorização por escrito da autora.

_________________________________________
Lídia Maria de Oliveira Morais
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

NEGRITUDE NAS LINGUAGENS DO CORPO:


criatividade e resistência na experiência de jovens em Paracatu, MG
Dissertação de mestrado apresentada ao Centro de Desenvolvimento Sustentável,
da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos necessários para a obtenção
do grau de mestre em Desenvolvimento Sustentável, com ênfase em
Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais.

Aprovada por:

________________________________________________________
Professora Doutora Mônica Celeida Rabelo Nogueira (CDS/UnB)
(Orientador)

________________________________________________________
Professora Doutora Cristiane de Assis Portela, (CDS/UnB))
(Examinador Interno)

________________________________________________________
Professor Doutor Nelson Fernandes Inocêncio (IdA/UnB)
(Examinadora Externa)

_________________________________________________________
Rosilene Bispo de Jesus (Afro N’Gonda e Axé Dendê Capoeira, Paracatu/MG)
(Convidada Especial)

Brasília, DF, 10 de maio de 2017.


Iê!
Maior é Deus, pequeno sou eu
O que eu tenho foi Deus que me deu
O que eu dou é o que eu tenho foi Deus que me deu
Na roda da capoeira
Hahá!
Grande e pequeno sou eu
(Mestre Pastinha)
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a todas e a cada uma das e dos jovens que compartilharam comigo
seus relatos, suas experiências, suas percepções e sentimentos durante todo o tempo em
que estive em Paracatu, nas aulas, nas apresentações, nos lanches, churrascos,
barraquinhas, rodas, viagens, e tantos outros e, além deles também nos momentos das
entrevistas e rodas de conversa. Duda, João, Joanine, Cielly, Dentin, Sofia, Karen, Valéria,
Stefany, Alysson, Jean, Gustavo, Luiz Gustavo, Iuri, Lucas, Helenice , Bruno, Bilu, Viviane,
Carol e Fagner, esse trabalho é de vocês. Por tudo que se transformou em mim durante esse
tempo, por tudo que aprendi, pela minha admiração que motivou a escrita desse trabalho.
Ainda em primeiro lugar, agradeço também à Rose e ao Cacau, por terem aberto as portas e
me acolhido nesse universo, por toda a paciência diante de tantas e constantes perguntas,
por terem sido grandes companheiros e amigos durante esse tempo e – espero - para toda a
vida. A vocês, todo meu respeito e admiração pelo trabalho com o Afro N’Gonda e Axé
Dendê, comunicadores das histórias dos ancestrais e sempre comprometidos com as
histórias de cada um e cada uma das pessoas que estão com vocês nessa caminhada. Vocês
me inspiram trilhar caminhos de persistência e de luta pelos valores da diversidade, do
compartilhamento, da reciprocidade.
Agradeço agora à Carmela, minha companheira de casa e de trabalho nesse tempo em
Paracatu, parceira de aventuras pelo Noroeste de Minas, de papos infinitos na porta da
cozinha, no restaurante do China, no espetinho da esquina. Valeu, gatona, por tudo que eu
aprendi na nossa convivência, com seu feminismo tão espontâneo, sua alegria, sua
coragem, e por me confrontar com minhas próprias origens familiares, nas mesmas terras
que as suas, com histórias tão diferentes.
À Valéria e Karen por me receberem em sua casa com tanto carinho todas as vezes que eu
precisei quando já não morava em Paracatu durante esse processo. Minha casa é de vocês
também aqui em Belo Horizonte.
Agradeço ao MESPT por ter me acolhido no programa e ao Núcleo de Desenvolvimento
Territorial do Norte e Noroeste de Minas, da Universidade de Montes Claros (Unimontes),
por ter me proporcionado esse tempo em Paracatu. Essas duas atividades entre as quais eu
me dividia e me completava me proporcionaram simultaneamente tantos encontros, tantas
experiências, tantas trocas, cujas repercussões carregarei sempre comigo. Essa dissertação é
uma delas.
À Mônica, minha orientadora, pela confiança nas minhas escolhas, mesmo do meu jeito
confuso, com minha insegurança e ansiedade. Por me permitir e valorizar a liberdade do
desafio, do incerto, da experimentação, da autonomia e da criação.
À Critiane Portela, ao Nelson Inocêncio e à Rosilene Bispo, pela participação na avaliação
deste trabalho e pelos comentários e sugestões que muito enriqueceram o texto que hoje
se apresenta.
Ao MESPT e às minhas companheiras e companheiros desta aventura, pelo tempo, pelo
aprendizado, pela inspiração para seguir trabalhando pelo que acreditamos. Em especial
para o Bonde da Codorna, para as kupen mais amor desse Brasil, para os craques do futebol
mais intercultural que se tem notícia, os forrozeiros cantadores, os churrasqueiros de
plantão, todo meu carinho e minha vontade de visitar cada um no seu cantinho. Kátia, Carol,
Andrea, Márcia, Diva, Diana, Jhonny, Helmar, Gilmar, Tiago, Moisés, meu carinho especial
por todas as nossas trocas. Sirlene e Elaine, pelos temas de trabalho compartilhados. À
Andrea por ter recebido a turma tantas vezes em sua casa, nas noites mais animadas que
BSB já viu, à Carol pelos dias de churrasco na chácara, ao Tiago Geisler e sua família pelo
convite e pela acolhida no Serro. À Cacá que me emprestou um cantinho da sua casa em
cada um dos módulos do MESPT, um pedacinho de Minas ali do lado da UnB. À Carol, Kátia
e Andrea que me abrigaram também tantas vezes nas minhas incontáveis passagens por
essas terras, deixando a sensação de que Brasília tá bem pertinho.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Distrito Federal, FAP/DF, por ter financiado a
apresentação de resultados preliminares deste trabalho no III Seminario Internacional
Culturas y Desarrollo (SICDES), III Encuentro de la Red de Interculturalidad, IV Encuentro de
la Red de Trabajo con Pueblos Indígenas e IV Encuentro Sociedades en Cambio, na Costa
Rica, julho/2016.
Ao Grupo Aroeira, ao Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA) e ao Laboratório
de Sistemas Socioecológicos, e a cada uma das pessoas que compuseram essas equipes
comigo, por terem me aberto tantos caminhos do pensamento crítico e do trabalho
engajado nas frentes de luta por justiça social.
Agradeço à minha família deste e dos outros mundos, mãe Márcia, pai Euder, vovós Juju, e
Ceição, vovôs Lelo e Dedê, e todo mundo que veio antes... muito de mim foi revisitado
nesse processo, reconheci mais daquilo que trago de vocês, minha ancestralidade. Nina,
Beatriz, Iara, Luis, Luisa, Ângela, John, pela convivência carinhosa de perto e de longe, e
Guta pelo apoio sempre durante meu processo acadêmico.
Agradeço ao Rafa por toda confiança, todo incentivo e dedicação nas leituras dos meus
escritos. Te encontrar no caminho também foi parte desse processo, e tudo que a gente
compartilha me inspira sempre.
Às minhas amigas e amigos de Belo Horizonte, por cada sessão de orientação acadêmica,
profissional, psicológica e astrológica nos botecos da cidade, em casa, na vida, pela
paciência com minhas angústias, trocas e compartilhamentos, pelos colos e cafunés,
sempre. Maria Raquel, Lais Grossi, Mari, Fernanda, Luiza Dulci, Dani, Markito, Luiza
Mesquita, Emmanuel, Maria Letícia, Leon, Lais Maia, Zocrato, Lup, Leca, Julianne, Raquel,
Lets... e especialmente à Laura que, além disso tudo, ainda divide comigo nossa casinha.
Ao caos do universo, e todos os seus nomes, por ter posto isso tudo junto no meu caminho.
Só tenho mesmo a agradecer.
RESUMO

Este trabalho trata da experiência de jovens que encontraram nas linguagens do corpo e da
música instrumentos de compreensão e de reinvenção de si e da realidade em que vivem.
No contexto de Paracatu – Minas Gerais, em que grandes projetos de desenvolvimento
contrastam e colidem com uma rica histórica cultural, é através da dança afro, da capoeira e
do teatro que esses jovens se encontram com as suas próprias histórias, as de seus
antepassados e a de outros jovens. Com base em entrevistas, rodas de conversa e do
acompanhamento etnográfico das experiências, esse trabalho pretende registrar a força e a
importância do acesso das juventudes a espaços de criação e as perspectivas múltiplas
sobre a realidade, ao mesmo tempo contrárias e em diálogo com a racionalidade moderna,
na construção de um pensamento crítico e de respeito à diversidade. Dançar, atuar e jogar
capoeira é para esses jovens se identificar, reconhecer-se em seu corpo e assumi-lo e então
afirma-lo publicamente. Ocupar os espaços públicos e institucionais com narrativas e
performances dessa natureza é agir sobre as experiências de quem faz e de quem assiste,
atuando, dessa maneira, na construção da realidade vivida.

Palavras-chave: (Juventude; Cultura; Negritude; Experiência; Narrativa; Performance)

ABSTRACT

This work deals with the experience of youth who have found in the languages of the body
and music their instruments of understanding and reinventing themselves and the reality in
which they live. In the context of Paracatu - Minas Gerais, where great development
projects contrast and collide with a rich cultural history, it is through the Afro dance,
capoeira and theatre that these young people encounter their own stories, those of their
ancestors and others from their colleagues. Based on interviews, conversation circles and
ethnographic accompaniment of the experiences, this work intends to record the strength
and importance of the access of youth to spaces of creation and to multiple perspectives on
the reality, at the same time contrary and in dialogue with the modern rationality, towards
the building of critical thinking and respect for diversity. Dancing, acting and playing
capoeira for these young people means to identify themselves, to recognize themselves in
their body and to assume it end then to affirm it publicly. To occupy public and institutional
spaces with narratives and performances of this nature is to act on the experiences of those
who perform and those who watch, thus acting in the very construction of lived reality.

Key-Words: Youth; Culture; Blackness, Experience; Narrative; Performance.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Performances de várias danças do repertório do Afro N'Gonda (Fonte: Arquivo do


grupo Afro N'Gonda, 2015). ..................................................................................................... 25

Figura 2. Performance 'Humano R$ 1,00' do Grupo Cênikas de Teatro (Fonte: Arquivo do


Grupo Cênikas, 2016). .............................................................................................................. 26

Figura 3. Espetáculo 'Flores e Espinhos', do Grupo Voz de Teatro (Fonte: Arquivo do Grupo
Voz de Teatro). ......................................................................................................................... 27

Figura 4. Preparação para apresentação Oficina Hora do Conto (Fonte: Arquivo da Oficina
Hora do Conto)......................................................................................................................... 27

Figura 5. Roda de capoeira organizada pelo Axé Dendê na praça Firmina Santana (Fonte:
Arquivo do Axé Dendê, 2015). ................................................................................................. 29

Figura 6. Evento anual de capoeira do grupo de capoeiraAxé Dendê, realizado em Paracatu


em novembro de 2016 (Fonte: Arquivo do Axé Dendê, 2016)................................................ 45

Figura 7. Apresentação de Maculelê do Afro N'Gonda (Fonte: Arquivo Afro N'Gonda, 2015)
.................................................................................................................................................. 66

Figura 8. Os Saltimbancos, encenados pelo Grupo Cênikas (Fonte: Arquivo Grupo Cênikas,
2016). ....................................................................................................................................... 68

Figura 9. Puxada de Rede, encenada pelo Afro N'Gonda (Fonte: Arquivo Afro N'Gonda,
2015). ....................................................................................................................................... 70

Figura 10. Promoção do evento do grupo de capoeira Axé Dendê, com enfoque na
participação de mulheres capoeiristas (Fonte: Arquivo Axé Dendê, 2016). ........................... 77

Figura 11. Apresentação de Maculelê do Afro N'Gonda na Câmara Municipal de Paracatu


(Fonte: Arquivo Afro N'Gonda). ............................................................................................... 84

Figura 12. Aula de capoeira do grupo Axé Dendê no Museu Histórico Municipal de Paracatu
(Fonte: Arquivo Axé Dendê, 2016). ......................................................................................... 85

Figura 13. Oficina de palhaço durante o FESTEPA (Fonte: Arquivo grupo Cênikas, 2016)...... 85
Figura 14. Evento de capoeira do grupo Axé Dendê em Mineiros/Goiás (Fonte: Arquivo
pessoal, 2016). ......................................................................................................................... 86

Figura 15. Momento de preparação antes da apresentação de Maculelê (Fonte: Arquivo Afro
N'Gonda). ................................................................................................................................. 88

Figura 16. Momento de preparação antes da apresentação de Maculelê.2 (Fonte: Arquivo


Afro N'Gonda). ......................................................................................................................... 88

Figura 17. Evento de batizado e troca de cordas do grupo de capoeira Axé Dendê em
Mineiros/Goiás. Detalhe para o abadá e para as camisetas confeccionadas especialmente
para o dia do evento (Fonte: Arquivo pessoal). ...................................................................... 89

Figura 18. Performance "Humano R$1,00" do Grupo Cênikas (Fonte: Arquivo Grupo
Cênikas). ................................................................................................................................... 90

Figura 19. Espetáculo "Flores e Espinhos" do Grupo Voz de Teatro (Fonte: Arquivo Grupo
Voz, 2016). ............................................................................................................................... 92

Figura 20. Aula de Maculelê do grupo Afro N’Gonda no Museu Histórico Municipal de
Paracatu (Fonte: Arquivo Afro N'Gonda, 2015) ....................................................................... 93
SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS .................................................................................................................... 11

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 13
Apresentação ....................................................................................................................... 13
Metodologia ......................................................................................................................... 16
O caminho percorrido ................................................................................................................... 16
O processo da escrita .................................................................................................................... 18
Breve história cultural de Paracatu ..................................................................................... 20
Os grupos de dança afro, capoeira e teatro: uma apresentação ........................................ 23
O grupo de dança Afro N’Gonda ................................................................................................... 23
Os grupos de teatro ...................................................................................................................... 25
Os grupos de capoeira de Paracatu .............................................................................................. 28

CAPÍTULO 1: Juventudes, culturas ........................................................................................... 30


1.1 Cultura, culturas ............................................................................................................. 30
1.1.1 Cultura é resistência............................................................................................................. 31
1.1.2 Raça, corpo, negritude ......................................................................................................... 33
1.2. Juventudes no plural ..................................................................................................... 37
1.2.1 Primeiras definições: Juventude, uma palavra .................................................................... 39
1.2.2 Juventudes que falam .......................................................................................................... 41

CAPÍTULO 2: Dos afetos ........................................................................................................... 45


2.1 Experiência ..................................................................................................................... 45
2.1.1 Redes de socialidade ............................................................................................................ 46
2.1.2 Comunidades de aprendizado e o exercício da criatividade ............................................... 49
2.1.3 Afetar-se: as intensidades do processo ............................................................................... 54
2.2 Narrativa ........................................................................................................................ 58
2.2.1 Narrativas que se fazem pelo corpo .................................................................................... 59
2.2.2 Memória, narrativa e experiência: músicas e personagens que contam as nossas histórias
...................................................................................................................................................... 64
2.2.3 A narrativa religiosa nas experiências.................................................................................. 69
2.2.4 Capoeira, sujeito presente ................................................................................................... 73

CAPÍTULO 3: Performance ....................................................................................................... 78


3.1 Marcando uma posição diante do mundo..................................................................... 78
3.2 Performance e expressão: a saída para o mundo ......................................................... 81
3.3 Estética e política ........................................................................................................... 86
3.4 ‘Ter um nome’: ocupação dos espaços públicos e reconhecimento ............................. 91

CAPÍTULO 4: A título de conclusão .......................................................................................... 96


4.1 O exercício de dar sentido: (auto) reflexões metodológicas ......................................... 96
4.2 Eu, capoeirista ................................................................................................................ 98
4.3 Entrelaçando os fios desta narrativa ........................................................................... 101
4.4 Conquistas e desafios................................................................................................... 109

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................... 113


INTRODUÇÃO

Apresentação
Escrevo essas primeiras linhas como quem tenta, a partir de uma pontinha do fio,
desembolar um emaranhado de cores e texturas, ideias e sentimentos, que foram se
enredando ao longo das experiências, vividas junto com pessoas que se tornaram tão
queridas ao longo desse processo. Tarefa fácil isso não é, imagine, se você puxa com pressa,
com força, só faz o nó apertar mais. Vamos, portanto, de mansinho, dando voltas e voltas
num afrouxa e aperta, para colocar numa linha só, ou algumas linhas, o que se passou por
aqui.
Preciso falar sobre as juventudes. Essas no plural mesmo. Esse é um fio importante, que
costura a narrativa que está começando. Quando me mudei para Paracatu, em agosto de
2015, para trabalhar como assessora do programa Territórios da Cidadania, visitei vários
municípios, associações, comunidades quilombolas e outras comunidades rurais e nas
conversas o tema da juventude aparecia sempre como um problema, uma angústia,
‘perdidos’, diziam, nas palavras dos mais velhos. Aquilo me pôs ‘a pulga atrás da orelha’.
Mas e se a gente for conversar com os jovens? Eu me perguntei. Será que eles se veem
assim tão perdidos como aparecem nos discursos dos adultos?
A essa linha, uma outra também se amarra, esta que traz na meada a história da cidade de
Paracatu e seu entorno, histórias de garimpo e de resistência. Negras e negros que foram
trazidos como escravos para essa região há mais de dois séculos na busca do ouro e outros
já livres que vieram atrás da mesma promessa e ali se instalaram. Ao longo do tempo
enfrentaram perseguição, desapropriação, violência. Enfrentaram silenciamento, exclusão,
marginalização, preconceito e discriminação. Enfrentaram mineradoras, multinacionais,
projetos de governo associados ao poder do capital, cooptação, fragmentação de suas
comunidades e famílias, manipulação e chantagem. Essa gente enfrentou de tudo. E
persistiu, se reinventou quilombola, agricultor, estudante, gentes variadas da cidade,
sujeitos de suas culturas. “E não tem tira, nem doutor, nem ziquizira/ Quero ver quem é que
tira nóis aqui desse lugar/... Não tem carranca, nem trator, nem alavanca/Quero ver quem é
que arranca nós aqui desse lugar!” já disse uma vez um poeta1. Me perguntei então como a
cultura negra se faz presente hoje na cidade de Paracatu? Por que caminhos? Quais enredos
trazem suas histórias?
Essas duas linhas vão se trançando no decorrer da minha vivência em Paracatu, nas
conversas e nas observações, nas relações que, de se viver junto, se cria. O desenho da
pesquisa vai se fazendo no processo, se refazendo também a cada novo passo e
principalmente nos tropeços. Enredando essas duas linhas principais que são guias na
escrita deste trabalho, proponho amarrar as perguntas já postas com mais algumas. Sou
mais de perguntas do que de respostas: enquanto essas últimas tentam enrijecer a gente

1
Trecho de “A Violeira”, de Tom Jobim e Chico Buarque
13
com imagens estáticas e falsas seguranças, são as perguntas que movimentam o criar de
cada um.
Nesse contexto em que a rica história e cultura de um lugar é trespassada por grandes
projetos de desenvolvimento que trazem consigo uma visão de mundo e da vida tão outra
que a das comunidades tradicionais, fundadoras do viver ali, como se movimentam as
juventudes? Como se apropriam de sua ancestralidade e a atualizam? Como negociam seus
projetos de vida entre as expectativas profissionais, familiares e os sonhos?
Diante dessas perguntas busquei conhecer um pouco das comunidades quilombolas de
Paracatu, o São Domingos, os Amaros, o Machadinho, o Pontal, o Cercado... Me deparei
com algumas referências na literatura, mas também com muitas dificuldades na abordagem
do tema com as comunidades mais próximas e, as mais distantes, nem sequer tive a
oportunidade de visitar, por conta das questões materiais e logísticas em que eu me
encontrava em Paracatu. Conhecidos meus, que tinham outros conhecidos, lideranças em
suas comunidades, me ajudaram com alguns contatos. Cheguei até duas jovens, que
concordaram em marcar uma conversa, a Carol, do Pontal, e a Natália, do São Domingos.
Elas me receberam, cada uma a sua maneira, muito simpáticas e intrigadas com minhas
perguntas, me contaram da rotina, das questões da cidade, do que mais lhes incomodava e
do que gostavam de fazer. Natália leva um dia a dia atribulado com as funções da igreja que
participa e Carol entre cursos e as aulas do ensino médio, que ainda frequentava em 2016.
Carol me contou que há pouco tempo ainda participava de um grupo de dança afro, e se
ofereceu para me levar lá, disse que eu ‘precisava conhecer’. Marcamos.
Foi assim que fui apresentada ao Grupo de dança Afro N’Gonda, aos professores Rose e
Cacau, e aos jovens que participavam do grupo naquela época, Joanine, Cielly (Gracielly),
Sofia, Dentin (Wanderson), Duda (Daiane), João, Stefany... Desde então, passei a
acompanhar as atividades do grupo, algumas aulas, apresentações, viagens. Alguns desses
jovens deixaram de participar do grupo durante o processo da pesquisa, outros se
agregaram, como é o caso do Jean, do Alisson e da Andrea. Outras, que estavam afastadas
das atividades naquele primeiro contato, voltaram a participar, como a Karen e a Valéria, e a
voz de cada uma dessas pessoas é parte fundamental na construção desse texto. Foi assim
que me envolvi com essa história, que originou as perguntas que motivaram esta pesquisa e
hoje orientam a escrita deste texto.
Cacau me convidou a conhecer então os treinos do grupo de capoeira em que é
Contramestre, o grupo Axé Dendê. Começava com a turma infantil e em seguida vinham os
adultos. Logo me encantei, e passei a frequentar as aulas, duas vezes por semana. Aprendi
muito e tomei gosto pela capoeira, seus ritmos, as letras das músicas, o conhecimento do
corpo e da história que está em cada movimento, em cada treino. O relato da minha
experiência de capoeirista compõe também o texto deste trabalho. Dentin, Cielly, Sofia,
Karen e Valéria, além de dançarinos do Afro N’Gonda, são também capoeiristas e
frequentam os treinos do Axé Dendê. Além deles, nas rodas organizadas pelo grupo que
aconteciam sempre aos domingos na Praça Firmina Santana, conheci os jovens que

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construíram com seus relatos muito do que é dito aqui. Claudiniz (Bilu), Fagner, Viviane,
Carol, com quem pude conversar em detalhe nas entrevistas, além de outras e outros que
conversei informalmente durante as viagens e a cada final de roda, compartilharam comigo
sua percepção da capoeira, sua relação com a prática, suas histórias e sentimentos. Esses
jovens são de outros grupos de capoeira que não o Axé Dendê, mas frequentam rodas,
eventos e viagens em comum, compartilhando ou divergindo em algumas opiniões sobre a
capoeira e os grupos locais.
Foi em um dia de roda na praça que eu vi a performance do grupo Cênikas, “Humano R$
1,00”, e percebi que precisava conhece-los. Jovens, negros, presos em uma gaiola de
madeira, interagindo com o público da praça, bastante movimentada naquela hora. Me
impressionou a força e a ousadia da proposta, tendo em vista o contexto tradicionalista e
mesmo repressor que prevalece em Paracatu com relação às questões de raça, gênero e de
religião que, como fui descobrir em seguida, também estavam na concepção da
performance. Fui visitar o grupo em uma das aulas do professor Gueuber, na Casa de
Cultura e em uma rápida roda de conversa, contei do meu trabalho, da pesquisa e do meu
encantamento pelo que tinha visto. Conheci o Lucas, o Gustavo, a Helenice, o Luiz Gustavo,
o Iuri e reencontrei o Jean também por lá. Esses jovens atores e atrizes conversaram comigo
em entrevista e posteriormente em uma roda de conversa, além de outros colegas que
participam do grupo ou já participaram, como aconteceu com o Bruno. Eles me contaram o
que tinham pensado e sentido, como havia acontecido o processo de criação da
performance e outras observações sobre o momento dessa apresentação, sobre a qual
entrarei em detalhes ao longo deste trabalho. A partir daí, busquei conhecer também os
outros grupos de teatro dos quais tinha notícia por meio de jovens que participavam do
grupo de dança ou mesmo do Cênikas, e fui visitar o Grupo Voz em um de seus ensaios a
céu aberto, na porta da Igreja Matriz de Santo Antônio, a convite de Duda e João. Além
deles, estavam também Joel e Carolaine, membros do grupo que ensaiavam juntos o “Flores
e Espinhos”. Outros membros do grupo não moram em Paracatu e só vieram para o dia da
apresentação. Fui também à apresentação da oficina Hora do Conto, na Escola Estadual Júlia
Camargo, a convite da professora Rose, também do Afro N’Gonda, do qual participavam
jovens que eu já conhecia, Stefany, Carolaine, Lucas, Iuri, Jean, além de outras e outros
colegas. Foram propostas atividades para as crianças da escola ligada à literatura e contação
de histórias, além de um espetáculo de palhaços que interagiam com o público e divertiam a
meninada.
Foi a partir desses encontros que esta pesquisa foi se desenhando, as perguntas se
tornaram mais claras e a vontade de registrar todo o processo se desdobrou na escrita deste
texto. Tentei apresentar brevemente as pessoas que foram mais marcantes nesse processo,
com quem tive maior aproximação e que se dispuseram a compartilhar comigo seu tempo,
sua história, sua percepção do mundo e das práticas que escolherem como forma de ser e
agir no mundo. Cada um deles tem seu espaço nesta narrativa, seja através de falas que
transcrevi ou de reflexões que faço, mas que são, fundamentalmente, originadas de cada

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encontro, cada interação. O trabalho que apresento agora é dessas pessoas, e me sinto
grata e honrada de poder narrar em parte a minha experiência com elas.
Jovens que narram suas experiências através das linguagens do corpo e da música,
experiências que se transformam em dança, teatro, capoeira. Jovens de idades variadas,
histórias e formações diversas, que tornaram suas as práticas culturais coletivas enfocadas
aqui. Em um contexto de fronteira em que se sobrepõem, disputam e dialogam
conhecimentos e formas de vida tradicionais e grandes projetos desenvolvimentistas, esses
jovens estão no diálogo, na negociação entre as duas lógicas, e encontram instrumentos e
possibilidades nas linguagens da arte e das culturas.
Dialogam sobre negritude, sobre resistência e criatividade. Buscar conhecer outras culturas
como forma de acessar outras maneiras de ser e de estar no mundo e reivindicar a sua
própria. Se apropriar e trazer a público as histórias e a cultura do povo negro de Paracatu é
assumir uma posição política, se empoderar daquilo que lhes é próprio e convidar aos que
assistem a compartilhar essa perspectiva. Compartilhar é transformador, dentro e fora dos
grupos, que se constituem como experiências individuais e coletivas de criação a partir das
linguagens do corpo, do teatro, da dança, da capoeira. Linguagens que se organizam como
narrativas, como discurso, que são reinventadas pelos sujeitos jovens, e transbordam no
diálogo entre eles e elas, que transitam entre grupos e entre diversos círculos de
socialidade. Os grupos, enquanto comunidades de aprendizado, oferecem o ambiente
favorável para essa criação e compartilhamento, a amplificação da potência de vozes
individuais através de uma identidade coletiva. Nesse processo as jovens e os jovens
constroem seu lugar no mundo, suas relações, sua identidade. Constroem pensamento e
agências críticas, decoloniais, coletivas, insurgentes em um núcleo urbano marcado pelo
conservadorismo e pelo silenciamento de formas de vida heterodoxas.
Me proponho a fazer este trabalho que é escrever, desenrolar ideias, que de emaranhadas
ficam difíceis de pensar. Desenrolar umas, amarrar outras, fazer alguns laços e quem sabe
esse texto não pode, por fim, indicar caminhos – nunca respostas – para as perguntas ora
propostas.

Metodologia

O caminho percorrido
Esta pesquisa se desenrolou, do início ao fim, entre os meses de agosto de 2015 a novembro
de 2016, passando por várias etapas de execução:
De agosto de 2015 até dezembro do mesmo ano, foi um período de inserção no campo, de
sensibilização desta pesquisadora dentro do contexto da cidade e das juventudes no
Noroeste de Minas. Isso se deu durante algumas visitas feitas no âmbito do meu trabalho na
assessoria do Território da Cidadania Noroeste de Minas, que suscitaram em mim as
inquietações que me levaram às perguntas dessa pesquisa. Durante esse tempo, fiz também
um levantamento bibliográfico sobre a história de Paracatu e das comunidades quilombolas
da região.
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No início de 2016 as inquietações foram se transformando em perguntas orientadoras. Já
com algumas lentes da pesquisa ganhando forma, potencializei a parte do meu trabalho de
assessoria que se voltava às juventudes e aos povos e comunidades tradicionais, tomando
com maior interesse os processos de mobilização e inclusão desses públicos nas atividades
territoriais, propondo visitas e atividades específicas para os dois grupos. Foi assim que
fizemos, Carmelita, minha companheira de trabalho, e eu, visitas à presidenta da Associação
de Moradores do São Domingos e a uma das famílias mais antigas da comunidade, à família
dos Amaros, e uma família do Pontal. A partir desses primeiro contatos, fomos apresentadas
ao Grupo de Dança Afro N’Gonda e, na sequência, aos grupos de capoeira e de teatro da
cidade. O tema das juventudes e das diferentes formas de relação que elas estabelecem
com a história e a cultura da cidade e do povo negro se afirmaram como os temas geradores
da minha pesquisa. Durante os primeiros meses de 2016, me envolvi com os treinos de
capoeira, fiz amigos nos grupos de teatro, acompanhei de perto as atividades do grupo de
dança. Visitamos, Carmelita e eu, algumas das comunidades quilombolas da região,
promovemos encontros de juventudes locais e regionais, debatemos com as e os jovens os
mais diversos temas, assistimos filmes e nos divertimos muito com as pessoas que
encontramos nesse caminho. E assim fui clareando quais eram as perguntas que me
motivavam, o que eu gostaria de produzir como resultado desse processo.
Durante esse período mantive um caderno de campo com minhas observações, sentimentos
suscitados pela participação, conversas, dificuldades, ideias, enfim, tentei registrar de
maneira etnográfica minhas vivências com as e os jovens que estão envolvidos com o tema
da cultura, minha participação e acompanhamento dos grupos, e minha observação da
plateia (e enquanto plateia) e das relações que se estabelecem nos momentos de
apresentação. Ao longo desse processo elaborei, junto com minha orientadora, um roteiro
de entrevista semiestruturada, que foi testado e em seguida adaptado, acrescido de novas
perguntas que surgiram das primeiras entrevistas.
Até o mês de outubro de 2016, fiz um total de 16 entrevistas, sendo 14 delas com jovens de
grupos de teatro, de capoeira e de dança afro de Paracatu, e duas com os idealizadores do
grupo de dança Afro N’Gonda e do grupo de capoeira Axé Dendê. Em seguida, baseada nas
impressões e temas marcantes dessas entrevistas, organizei duas rodas de conversa, uma
entre os integrantes do Afro N’Gonda, e outra com jovens artistas de três grupos diferentes
de teatro, o Cênikas, Grupo Voz e Hora do Conto. Fiz algumas tentativas de organizar uma
roda de conversa também com os capoeiristas entrevistados, mas não foi possível encontrar
uma agenda viável para esse encontro.
Já em novembro de 2016, participei do evento anual do Axé Dendê em Paracatu, durante o
qual ocorrem as trocas de corda e os batizados dos capoeiristas iniciantes. Participei nessa
última categoria e recebi minha primeira corda de capoeira, além de ter registrado esse
evento como momento chave da minha participação no grupo e como encerramento
simbólico do período de campo e da minha estadia em Paracatu.

17
Ao longo dos últimos meses de 2016 já estava procedendo com a análise dos áudios das
entrevistas e os primeiro ensaios que comporiam esta dissertação. Foi no início de 2017, no
entanto, que o texto ganhou fôlego, ganhou corpo e também sentimento, ganhou
materialidade nas interseções entre os dados de campo e a literatura consultada durante
todo o processo.

O processo da escrita
Da mesma forma com que as perguntas dessa pesquisa e a metodologia utilizada, o texto
também foi se construindo no processo, na experimentação de estilos, um tanto
intuitivamente, depois que tanto já se tinha passado no campo, tanto eu já tinha visitado da
literatura, tanto eu tentava dialogar a experiência vivida com os referenciais teóricos.
Junto com minha orientadora, decidimos por metodologias e literaturas que pudessem
abarcar a diversidade e complexidade da situação de campo. O texto precisava refletir isso.
Este é, portanto, um trabalho que se esforça para ser transdisciplinar, trazendo autores das
áreas da Antropologia, da Educação, da Psicologia e outros que também são dificilmente
enquadrados em um único campo, em diálogo entre si e com a experiência do campo. É
possível, no entanto, identificar na proposta metodológica e na construção do texto
afinidades com a perspectiva teórica do interacionismo simbólico (CARVALHO; BORGES;
RÊGO, 2010, p. 148) que compreende os sujeitos como ativos na interpretação do mundo e
de suas relações e que a partir dessa interpretação modelam suas próprias ações. Partindo
desse pressuposto, os atores e objetos do mundo social se definem e se redefinem a partir
das interações e das interpretações dos significados atribuídos por eles reciprocamente
(CARVALHO; BORGES; RÊGO, 2010, p. 151). Essa perspectiva é interessante por
compreender como relações dialéticas as que se estabelecem entre
aspectos da estruturação social e a construção das individualidades, entre o geral e
o particular, entre o cultural e o singular, entre sujeito e objeto, apreendendo as
contradições da vida contemporânea no contexto de sociedades plurais bem como
refletindo sobre os fenômenos sociopsicológicos sem ignorar o caráter histórico dos
mesmos (CARVALHO; BORGES; RÊGO, 2010, p. 160).

No que diz respeito à pesquisadora em campo, metodologicamente a abordagem


interacionista demanda a implicação do sujeito pesquisador em campo, e compreende que
a partir de sua experiência vivida ali e com seus interlocutores, este pode recorrer aos
métodos que melhor servirem, a partir de sua reflexão e análise, à concepção de um quadro
o mais completo possível da situação vivida e observada, permitindo assim a utilização de
métodos de pesquisa que valorizam pontos de vista dos sujeitos envolvidos (CARVALHO;
BORGES; RÊGO, 2010, p. 154).
Por outro lado, “tomar os jovens como sujeitos não se reduz a uma opção teórica. Diz
respeito a uma postura metodológica e ética, não apenas durante o processo de pesquisa
mas também em meu cotidiano”, afirma Juarez Dayrell (2003, p. 44), e eu reitero como
minhas as suas palavras. Compreender ‘o outro’, meus interlocutores e interlocutoras, como
sujeitos capazes de pensar e agir sobre sua própria realidade é muito mais que uma escolha
teórica ou metodológica. É uma escolha de vida, que não reconhece hierarquias de idade,
18
de gênero, de origem. No contexto da pesquisa acadêmica, faz-se necessário, ainda,
reafirmar essa escolha, como opção por uma perspectiva decolonial que reconhece o saber
científico como um saber dentre tantos outros e a linguagem escrita como uma forma de
comunicação dentre tantas outras.
No mesmo sentido, durante a construção do texto me propus a valorizar os dados empíricos
ao confrontá-los diretamente com as definições e referências teóricas, conferindo às duas
fontes igual importância. Salvo pelo capítulo um, que se atém às bibliografias que embasam
os conceitos fundamentais utilizados durante toda a discussão, os demais capítulos estão
permeados por referências à bibliografia e por falas, músicas, contos, relatos, que motivam
toda a reflexão deste trabalho.
No primeiro capítulo, apresento a construção histórica e teórica dos conceitos de cultura e
de juventude, assim como as disputas que cada um envolve. Firmo nesse capítulo a opção
por um conceito de cultura como resistência e como fundado na abertura e na busca por
novas chaves de compreensão do mundo. O conceito de raça é apresentado também como
decorrente de uma hierarquização das diferenças entre grupos humanos, sendo o
movimento negro e sua consequente valorização da negritude importantes elementos de
ressignificação da cultura e do corpo negros. As juventudes são apresentadas ainda nesse
capítulo também como um conceito polissêmico. Aqui enfatizo a compreensão de que os
jovens e as jovens são sujeitos de suas próprias vidas, agentes sobre a realidade presente,
em diálogo com o passado e o futuro, jovens como sujeitos sociais que inventam através da
cultura suas formas de expressão e ação.
No capítulo dois o foco está na experiência individual e coletiva vivenciada pelos jovens
dançarinos e dançarinas, atrizes, atores e capoeiristas como processo de criação de
significado, de fazer sentido do presente ao relacioná-lo com experiências passadas,
compreendendo os grupos de que participam como espaços de criação coletiva,
improvisação, aprendizado emocional, de coletividade e autonomia, criado por cada um
deles e pelo grupo como uma ‘comunidade de aprendizado’. A narrativa surge então como
outra ideia chave na tentativa de compreender a dança, a capoeira, o teatro como
linguagens corporais, discursos sobre o corpo e sobre a ancestralidade, que oferecem
elementos que permitem aos jovens criar outras percepções sobre sua própria história de
vida, o lugar em que vivem e a história dele, e sobre si mesmos. Esse capítulo é repleto de
relatos das e dos jovens em entrevista ou nas rodas de conversa sobre suas experiências nos
grupos e a transformação que o contato e a vivência dessas linguagens ofereceu como
possibilidade. São relatos sobre descobrir-se negro ou negra, sobre respeito religioso,
descoberta e valorização da história da cidade e da sua família, que a apropriação e a
reinvenção das narrativas propostas engrandece e fortifica. Algumas músicas são também
apresentadas como registros dessas narrativas, especialmente na capoeira, que é
apresentada como sujeito por si só, alguém com quem o e a capoeirista estabelecem
relações de reciprocidade.

19
No terceiro capítulo o foco está no momento das apresentações, na performance como
forma de expressão da experiência vivida. Mostra-se ao público é compreendido como um
momento ritual, na qual as e os jovens assumem uma posição diante do mundo, escolhem
como querem ser vistos e acontece o diálogo com as expectativas do público e as deles
próprios. Estética e política aparecem nesse capítulo intimamente relacionadas, em cada
figurino, em cada movimento do corpo que se apresenta, como fica claro nos relatos que
embasam toda a reflexão deste momento do texto. O espaço público é reforçado como
arena de disputa e de resistência, permitindo a reinvenção do corpo, da história e da
cultura, partindo de outros paradigmas que não a racionalidade moderna.
No último capítulo trato do diálogo e das tensões que existem entre a lógica racionalista
moderna e as lógicas tradicionais que perpassam as experiências relatadas, utilizando
inclusive minha própria experiência como capoeirista como exemplo e como exercício auto
analítico de execução da pesquisa. Concluo observando que fazer sentido do presente em
relação com o passado tem implicações transformadoras na experiência tanto do presente
como das possibilidades de futuro, enaltecendo a linguagem do corpo e da música que
atravessa a dança, a capoeira e o teatro como potência individual e coletiva de ação sobre
as realidades.

Breve história cultural de Paracatu


O município de Paracatu está localizado na região noroeste de Minas Gerais, entre Belo
Horizonte e Brasília e, portanto, em um eixo estratégico de integração do Centro-Oeste
brasileiro. A ocupação da região de Paracatu está relacionada primeiramente ao garimpo,
que promoveu a formação do núcleo urbano já no século XVIII e ao seu redor muitas
comunidades de negras e negros se instalaram, aonde podiam viver do ouro e de sua
pequena produção agrícola, vendida também na cidade de Paracatu (NASCIMENTO, 2012).
Hoje são cinco comunidades auto identificadas como quilombolas, quais sejam, São
Domingos, Amaros, Pontal, Machadinho e Cercado, entre outras comunidades negras rurais
e urbanas, que não passaram pelo processo de identificação, mas são referidas pelos
moradores como de origem negra, como o bairro dos Costa ou da Lagoa.
Desde o início da sua ocupação colonial, esta região está economicamente ligada à
exploração mineral e à produção agropecuária. Na segunda metade do século XX,
entretanto, o ritmo e a violência dessas atividades levou à transformação significativa na
paisagem local e na vida dos habitantes, especialmente das comunidades rurais. A partir da
década de 1950, impulsionada pela construção da BR 040 e com maior intensidade nas
décadas de 1960 e 1970 (GRISOTTO, 2003, p. 12), a agricultura ganhou dimensões
industriais, levando à expropriação de pequenos agricultores e camponeses, comunidades
quilombolas e acelerando também o processo de urbanização da cidade. No que diz
respeito à mineração do ouro na região, a partir da década de 1980, uma empresa
mineradora internacional, munida de instrumentos mais potentes e modernos, adquiriu a
concessão para exploração de ouro até 2040 (NASCIMENTO, 2012, p. 45) nos arredores do
perímetro urbano de Paracatu, aonde pequenos garimpos já não conseguiam mais
20
funcionar. Os resultados desse processo reforçaram os da agricultura de larga escala,
produzindo mais expropriações e violências às comunidades da região.
A inserção do município de Paracatu na dinâmica dos projetos de crescimento econômico
tornou-o em um centro de referência comercial, industrial e de serviços no Noroeste de
Minas. Esse processo se deu com o apoio de políticas de Estado, além do poder político e
econômico local e, muitas vezes, à revelia das comunidades rurais locais. Hoje Paracatu é
um centro urbano de médio porte, rodeado por quilômetros de monoculturas, em meio às
quais resistem agricultores familiares, assentamentos de reforma agrária e comunidades
quilombolas ainda em processo de demarcação de suas terras. Além disso, a três
quilômetros do núcleo urbano, se encontra a maior mina a céu aberto de ouro do mundo,
que além de privar o acesso a sítios tradicionais de vida de comunidades quilombolas e
camponesas, é responsável por poluição dos rios, do ar e da água, entre tantos outros
impactos ambientais de consequências nefastas para a população local.
Todo esse processo desenvolvimentista consolidou Paracatu como um centro de trabalho e
serviços no Noroeste de Minas e hoje conta com pelo menos cinco universidades além de
outras instituições de ensino. Muitos jovens vêm diariamente estudar, outros vieram com
suas famílias para morar, muitos procurando trabalho. A confluência entre a rica cultura,
modos de vida tradicionais e memória agregada pela presença das comunidades tradicionais
e a presença de grandes empreendimentos ícones do projeto de desenvolvimento
econômico capitalista tornam Paracatu interessante para se pensar o lugar da fronteira, aos
modos de José de Sousa Martins, entre os distintos projetos de mundo representados e
vivenciados pelos sujeitos locais.
Entre as cinco comunidades quilombolas de Paracatu, três se encontram hoje dentro do
perímetro urbano do município. As comunidades dos Amaros e de Machadinho foram
expropriadas de seu território ao longo do século XX por fazendeiros locais e mecanismos de
apropriação indevida de terras, reforçada pela instalação de empresas mineradoras de
grande porte e pelo poder político e econômico local. São Domingos, por se encontrar mais
próximo ao centro urbano, foi englobado pelo crescimento do mesmo, sendo hoje um
bairro periférico da cidade. Sobre o Cercado e o Pontal, permanecem como comunidades
rurais, distantes cerca de 40 quilômetros do núcleo urbano.
Festas religiosas e manifestações culturais são algumas das marcas que caracterizam as
comunidades citadas. Todo mês de junho, na noite do dia 23 para o 24, é realizada a
Caretada2 na comunidade de São Domingos, como também costumava ser na família dos

2
A Caretada ou Caretagem é um festejo associado às festas de São João, ocorrendo “somente e exatamente”
no dia do santo, no mês de junho. Apenas os homens podiam dançar, a princípio, mas diante na necessidade
de manter a tradição viva, as mulheres também passaram a participar. As roupas coloridas e as máscaras são
as características mais marcantes dessa dança que, segundo alguns autores, é como uma catira dançada em
pares. Segundo Nascimento, “os ‘caretas’ realizam um cortejo, formado por vinte e quatro homens que
formam os pares dançantes, acompanhados dos músicos instrumentistas. A quantidade de músicos pode
variar. Há grupos que apresentam pandeiros, tambor, sanfona, viola e triângulo (...) Os bailarinos amarram em
seus corpos, chocalhos e guizos [formando] dois pares de doze, um grupo representando homens, outro
representando mulheres. Vestem roupas muito coloridas ornamentadas com grande número de fitas
21
Amaros. Hoje os Amaros não fazem mais a encenação. Outra dança típica é a Tapuiada,
também tradicionalmente feita nas comunidades locais e hoje sem registros de que ainda
seja feita por alguma delas. Essas observações reiteram a forma com que a expropriação da
terra e dos modos de vida é acompanhada também pelo silenciamento cultural, a imposição
da visão de mundo dominante nos contextos urbanos, e o consequente apagamento das
manifestações culturais da forma com que se conhecia no passado.
Uma perspectiva estática de cultura e de tradição poderia interpretar esses apontamentos
como o fim da cultura local e o triunfo da cultura global e da modernidade sobre a tradição,
mas como discutirei mais adiante neste trabalho, apesar das claras perdas imputadas pela
expansão da visão ocidental hegemônica sobre o mundo, as culturas se transformam,
fluindo para novas sínteses (SAHLINS, 1997), se reinventando e resistindo através das
adversidades. Daiane, ex-aluna do grupo Afro N’Gonda e atriz independente, afirma sobre a
história de Paracatu e o papel do grupo de dança em trabalhar a questão da negritude na
cidade que
a influência africana na cidade, a cultura africana, trouxe identidade para a cidade, a
descendência de escravos... Essa palavra ‘afro’ ela vem como identidade cultural
mesmo, de dança, de cultura, comidas típicas, de religiosidade, com o grupo a gente
aprendeu um pouquinho disso também.

Hoje em Paracatu a cultura negra é apropriada e reinventada entre as formas tradicionais e


as práticas e instrumentos modernos de relação com o mundo. Desde adaptações das
danças e figurinos tradicionais até novas interpretações sobre a africanidade e a
ancestralidade, a criatividade sobre os temas da tradição é um contínuo. Na Caretada do
São Domingos e dos bairros do entorno os materiais das roupas e das máscaras, os
instrumentos, são transformados.
Acrescento relato também de meu caderno de campo sobre observação no dia da Caretada,
noite de 23 de junho de 2016, na comunidade de São Domingos, para ressaltar a
sobreposição e o diálogo entre elementos tradicionais e suas adaptações contemporâneas:
Chegamos e a primeira dança já tinha acabado, tinha acontecido em um campo de
futebol que tem uma estrutura coberta para eventos e funciona um restaurante nos
finais de semana, se entendi bem. O pessoal estava distribuindo comida para os
dançarinos primeiro e depois para todo mundo. Seguimos o movimento para a
próxima casa, aonde a dança se repetiria. Nas casas aonde vai ter visita tem sempre
uma fogueira montada e é servido comida e bebida. As roupas dos dançarinos eram
as mais variadas. Segundo Cacau, a tradicional é feita com fitas de cetim, mas desse
tipo só tinham duas, que eram de seus tios, que levavam também máscara de papel
marchê, como mandava a tradição, e chapéus característicos do homem e da
mulher do par da dança. As outras fantasias eram feitas de diversos materiais, de
saco plástico, de papel de presente, de TNT, algumas coloridas, outras de uma ou
duas cores, enfim. Os chapéus também variavam e as máscaras eram, em sua

trançadas nos ombros e soltas ao redor do corpo. Os homens trazem bengalas nas mãos, as “mulheres”,
lenços” (NASCIMENTO, 2012, p. 48). A origem da dança é disputada por diversos autores e parece ter
influências de tradições europeias associadas à presença das máscaras, mas também a um personagem de
nome Zambiapunga de origem africana Banto, relacionadas a outras manifestações culturais encontradas
também no Recôncavo Baiano.
22
maioria, de monstros, dessas comercializadas em lojas de fantasia. Chocalhos eram
apenas em alguns pés (Caderno de campo, junho de 2016).

O relato sobre minha experiência no dia da festa da Caretada ilustra a diversidade de


interpretações de materiais utilizados na confecção das fantasias, e também o lugar no qual
a primeira dança foi feita, que não consistia em uma casa, mas em um lugar para eventos.
Ressalto esses aspectos para dizer que a Caretada, assim como a capoeira é feita por
pessoas, que imprimem a ela seus gostos, suas particularidades, suas formas de dançar. A
adesão a novos elementos, industrializados, produtos da modernidade, para a confecção de
paramentos indica que a autenticidade da manifestação não reside na forma, mas na
experiência, retomando também o argumento de que tradição não é algo estanque como já
foi apontado durante a discussão do Capítulo 1 . Ninguém dança ou joga igual a ninguém, e
hoje não se dança ou joga como se fazia há tempos atrás. Os grupos de dança afro, de
capoeira e de teatro da cidade tratam da história das negras e negros através de sua música,
luta, coreografias, encenações. As juventudes são os principais sujeitos na continuidade da
tradição pela criatividade, no empoderamento sobre a própria história e, assim, na
construção de perspectivas, experiências e ações mais situadas, que dialoguem entre
passado e presente, na transformação das realidades.

Os grupos de dança afro, capoeira e teatro: uma apresentação


Apresento agora os grupos dos quais fazem parte as juventudes que motivaram a escrita
deste trabalho. O que os reúne aqui é a experiência na prática do encontro entre elementos
da tradição e da cultura local com outros da vida moderna, oferecendo linguagens possíveis,
instrumentos, meios, para a expressão, para a criatividade e a formação dos sujeitos que
com eles se envolvem. As músicas, os movimentos, as coreografias, as encenações, os
figurinos, oferecem materialidade e significado às experiências subjetivas de cada um e cada
uma das/dos jovens dentro desses coletivos, que se configuram não apenas como vivências
artísticas, corporais e estéticas singulares, mas também como a possibilidade de ação no
mundo.
Foram três as frentes de arte e cultura apropriadas pelas juventudes e que tive a
oportunidade de acompanhar durante o processo da pesquisa. Descrevo-as aqui
brevemente e adianto que detalhes da atuação de cada uma delas serão discutidos ao longo
de todo o trabalho.

O grupo de dança Afro N’Gonda


É composto por aproximadamente dez pessoas cuja idade varia entre 11 e 31 anos. Joanine,
Cielly (Gracielly), Sofia, Karen, Valéria, Dentin (Wanderson), Duda (Daiane), João, Stefany,
Jean e Alisson, interlocutores desta pesquisa, participam ou já participaram do coletivo. As
aulas são oferecidas como um curso pela Casa de Cultura de Paracatu, no qual Cacau e Rose
são os professores. Cacau rege a música com o toque do atabaque e Rose coordena as
coreografias, atividades que são também compartilhadas com os alunos, que participam
tanto da concepção como da execução das músicas e coreografias. Para além das aulas, o

23
grupo se apresenta em diversos espaços de maneira independente. Fazem parte do
repertório do grupo a Dança Afro, o Maculelê, a Dança do Fogo, a Dança Guerreira e a
Puxada de Rede, entre outras que são ensaiadas com menor frequência. As aulas
acontecem duas vezes por semana, no Museu Histórico Municipal de Paracatu e, além
desses encontros, acontecem também frequentemente apresentações em outros horários,
inclusive nos finais de semana, em eventos nas escolas, shows culturais, feiras, exposições,
festivais, viagens a outras cidades para eventos, praças, órgãos e instituições locais, já tendo
acontecido inclusive na Câmara Municipal de Paracatu. As apresentações surgem a partir de
contatos com amigos, de outras apresentações, e o grupo em conjunto decide se a data é
viável. Mesmo com tantas apresentações, segundo os participantes, “tem gente que nunca
viu, e outros já viram mas querem ver de novo”.
Depois das aulas, muitas vezes alguns integrantes do grupo seguem juntos até uma das
praças da cidade para fazer um lanche, comer cachorro quente, pastel, churrasquinho, ou
visitar barraquinhas típicas das festa religiosas da cidade, que, principalmente nos meses de
junho a outubro, comemoram seus santos vendendo porções de comida típica e oferecendo
ao público apresentações de música na rua. Reuniões nas casas de alguns dos integrantes
acontecem às vezes aos finais de semana ou feriados, o que faz com que o grupo se
encontre com bastante frequência ao longo do ano.
Rose, fundadora junto com Cacau do grupo, dá seu depoimento e afirma que a proposta do
grupo de dança afro passa por:
abrir também [as danças afro] pra quem não era da capoeira, porque dentro dos
grupos algumas danças já eram praticadas, são danças do cotidiano da capoeira e
dos afro brasileiros assim como os sambas, de roda e outros, o jongo, é uma
proposta resgatar também as culturas municipais como a Caretada, Tapuiada,
Lundum, que existem há muito tempo.

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Figura 1. Performances de várias danças do repertório do Afro N'Gonda (Fonte: Arquivo do grupo Afro N'Gonda, 2015).

Os grupos de teatro
Lucas, Gustavo, Helenice, Luiz Gustavo, Iuri, Jean, Duda e João formam com outros colegas
três grupos de teatro que participaram desta pesquisa:
O Grupo Cênikas, é formado a partir das aulas de teatro da Casa de Cultura, ministradas no
período em que estive em Paracatu pelo professor Gueuber. Este grupo ensaia
regularmente duas vezes por semana e com maior intensidade nos períodos de
apresentações. É este grupo que organiza o Festival de Teatro de Paracatu (FESTEPA) e
contou até o final de 2016 com a participação de aproximadamente dez jovens, com idades
variando entre 15 e 19 anos. Este grupo ensaia e apresenta peças autorais, montagens de
peças já consagradas como ‘O Beijo no Asfalto’ e ‘Os Saltimbancos’, e performances

25
originais, como ‘Humano R$1,00’, que tive oportunidade de assistir. As apresentações
acontecem em festivais, nas praças, em escolas e outros espaços institucionais.

Figura 2. Performance 'Humano R$ 1,00' do Grupo Cênikas de Teatro (Fonte: Arquivo do Grupo Cênikas, 2016).

O Grupo Voz de Teatro é um grupo autônomo formado por jovens atores que já passaram
por outras oficinas de teatro como as descritas acima, e que se reuniram por afinidades de
estilo e projetos em comum. Não possuem apoio formal de nenhuma instituição e fazem
seus ensaios em praça pública, com roteiros independentes e direção própria. É formado
por seis pessoas, com idades que variam de 18 a 28 anos. Durante o período em que estive
presente na cidade, o grupo ensaiou e apresentou uma peça autoral de nome ‘Flores e
Espinhos’, alugando um espaço privado especialmente para a ocasião.

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Figura 3. Espetáculo 'Flores e Espinhos', do Grupo Voz de Teatro (Fonte: Arquivo do Grupo Voz de Teatro).

A Hora do Conto é uma oficina de teatro oferecida pela Fundação Conscienciarte que
trabalha também com a linguagem do teatro e da literatura, com enfoque principal no
trabalho com escolas da cidade. Participam desta oficina 20 jovens com idades de 14 a 18
anos. As peças são também autorais ou adaptações, além de diversos jogos cênicos e
oficinas que os próprios alunos ministram nas escolas em que se apresentam.

Figura 4. Preparação para apresentação Oficina Hora do Conto (Fonte: Arquivo da Oficina Hora do Conto).

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Os jovens atores circulam entre esses grupos, alguns participando da Hora do Conto e do
Cênikas, outros da Hora do Conto e do Grupo Voz, outros ainda do Grupo Voz e do Afro
N’Gonda. Além disso, paralelamente às atividades de cada grupo, os atores são contratados
para eventos e festivas de maneira autônoma e trabalham em conjunto em mobilizações e
campanhas, apresentações de palhaço e outras atividades. Este diálogo e trânsito entre os
grupos possibilita falar dos jovens atores de Paracatu como um coletivo, mesmo sabendo
das dissonâncias e diversidade de percepções que agrupá-los nessa entidade fictícia possa
encadear.

Os grupos de capoeira de Paracatu


Fazem parte de diferentes grupos de capoeira aqueles e aquelas com quem conversei no
processo da pesquisa, como Dentin, Cielly, Sofia, Karen, Valéria, Claudiniz, Fagner, Viviane,
Carol, Rose e Cacau, além de outras e outros com quem convivi e aprendi durante as aulas e
viagens, mas não tive oportunidade de entrevistar, como Tati, Clarinha, Rafael, Peroba,
Jacaré e mais. Os grupos são vários, os números divergem dependendo se são
contabilizados apenas os grupos maiores, ou também os grupos menores, mais informais.
Os mais mencionados são o Arte Mundial (antiga Ave Negra), liderado pelo Mestre Gilvan; o
Capoeira Gerais, liderado pelo Oswaldinho; e o Axé Dendê, liderado pelo Contramestre
Cacau. Nas rodas de domingo, no entanto, os comentários são de que até seis, sete, e
mesmo nove grupos estão ali presentes, dependendo de quem está contando. O único
grupo que acompanhei de perto durante minha estadia em Paracatu foi o Axé Dendê,
dentro do qual fiz também minha iniciação e recebi minha primeira corda de capoeirista.
Existem relações de rivalidade entre alguns grupos ou entre pessoas, mas algumas rodas
organizadas pelo Axé Dendê tem o trunfo de conseguir reunir capoeiristas de grupos
diferentes em um clima de disputa amistosa. Foi assim que conheci a maior parte dos
capoeiristas com quem pude conversar para esta pesquisa, que compreende então minha
vivência e observações de campo, e conversas com capoeiristas do Arte Mundial, Axé
Dendê, Capoeira Gerais e também de um grupo menos conhecido, o Ave Branca.
Os grupos de capoeira têm, normalmente, treinos para crianças e treinos para
adultos. Eu frequento os treinos para adultos do Axé Dendê, que acontecem às
terças e quintas em uma quadra do bairro Alto do Córrego, sem cobrança de
nenhuma taxa. Antes do nosso treino acontece o treino das crianças, umas vinte,
que variam de idade entre sete e doze anos, mais ou menos. Os adultos participam
das rodas ao final do treino das crianças, de forma a servir de exemplo e também
jogar com os pequenos, promovendo uma interação entre as duas turmas, e às
vezes também entre pais e filhos, que frequentavam as duas aulas. Na turma dos
adultos a idade varia bastante, incluindo duas alunas de 14 e 15 anos e depois todos
acima dos 25 anos de idade. Tem um lapso de idades aí, das juventudes, que eu só
vejo nos dias de roda e de festa. Na última vez, Cacau me indicou e apresentou
algumas pessoas com quem eu pude conversar sobre a pesquisa e estou puxando
assunto com algumas pessoas também depois das rodas sobre isso (Caderno de
campo, junho de 2016).

De acordo com os relatos dos capoeiristas entrevistados, os treinos dos outros grupos
acontecem em escolas, espaços públicos, prédios institucionais como o Museu Histórico

28
Municipal de Paracatu, ou academias, também sendo divididos entre treinos para crianças e
para adultos. As relações dentro de cada um dos grupos é também muito próxima, sendo
que o professor de capoeira, aqui fazendo referência a pessoa que “puxa os treinos”, sem
qualquer vinculação com a titulação dentro da hierarquia da capoeira, ocupa um espaço
privilegiado de respeito e consideração por parte dos alunos.
O Axé Dendê hoje conta com grupos espalhados por Minas Gerais, Goiás, São Paulo e um
em formação em Pernambuco. Foi fundado por Cacau e por outro contramestre, hoje em
São Paulo, por não concordarem com alguns valores de seus antigos grupos e sentirem que
poderiam fazer um grupo diferenciado. Em Paracatu, os capoeiristas entrevistados
reconhecem a dedicação de Cacau ao ofício da capoeira e também a capacidade de suas
atividades de reunir pessoas de grupos diferentes, o que não é tarefa fácil, de acordo com
alguns entrevistados.

Figura 5. Roda de capoeira organizada pelo Axé Dendê na praça Firmina Santana (Fonte: Arquivo do Axé Dendê, 2015).

29
CAPÍTULO 1: Juventudes, culturas

Neste capítulo tratarei dos conceitos de juventudes, cultura, bem como das convergências e
dissensões com outros conceitos e aspectos importantes desses campos semânticos, em
relação com as experiências abordadas nesta pesquisa.

1.1 Cultura, culturas


Historicamente a cultura foi objeto de estudos das Ciências Sociais, em especial da
Antropologia, e foi utilizada como argumento e justificativa para empreendimentos os mais
variados. Muito se discute ainda hoje sobre a origem da utilização do termo e sua relação
com o processo de colonização da cultura europeia ocidental sobre o mundo, devido ao uso
histórico de elementos da ‘cultura’ como critério demarcador de diferenças e, portanto,
justificativa para a hierarquização dos diferentes povos do globo. Essa escala de classificação
se organizava a partir de uma orientação única: a cultura europeia ocidental moderna, de
valores iluministas, considerada, portanto, o símbolo do que deveria ser uma sociedade,
estando todas as outras situadas em níveis de desenvolvimento menores relativamente a
ela. O paradigma evolucionista desenvolvido nas ciências biológicas foi assim apropriado
pelos estudiosos dos grupos humanos, os ‘antropólogos’, servindo muitas vezes como
justificativa para a ‘missão civilizatória’ que levou à morte inúmeros povos com culturas as
mais diversas. Quijano associa esse processo à própria concepção de modernidade, e
elabora da seguinte maneira a esse respeito:
o mito fundacional da versão eurocêntrica da modernidade é a idéia do estado de
natureza como ponto de partida do curso civilizatório cuja culminação é a civilização
européia ou ocidental. Desse mito se origina a especificamente eurocêntrica
perspectiva evolucionista, de movimento e de mudança unilinear e unidirecional da
história humana. Tal mito foi associado com a classificação racial da população do
mundo (QUIJANO, 2005, p. 237).

Raça será, consequentemente, um argumento para a perpetuação dessa classificação, como


discutiremos no próximo ponto deste capítulo. Por enquanto, nos atemos à discussão dos
sentidos de cultura que, no senso comum, pode apresentar significados diversos. Desde
cultura (i) como civilização, ou adequação aos padrões modernos, racionalistas,
cientificistas, de educação e letramento, por exemplo, quando o termo se refere à ‘alta
cultura’, ou como quando alguém afirma que ‘fulano é muito culto’; ou (ii) como folclore,
por exemplo, quando se refere a manifestações culturais tradicionais como festas e danças
típicas de certo povo, normalmente tratadas de maneira estática e exótica. O significado de
‘cultura’ está ainda hoje em disputa.
Sahlins (1997) define em poucas palavras cultura como “a organização da experiência e da
ação humanas por meios simbólicos”(SAHLINS, 1997, p. 41) o que em outras palavras
implica em conferir significados e valores aos elementos que compõem ou participam
dessas experiências, sejam pessoas, relações ou coisas (SAHLINS, 1997, p. 41). Roy Wagner
(2010) sinaliza dois usos correntes da mesma palavra que podem causar confusão: ‘cultura’
que se refere “muito amplamente ao fenômeno do homem”, ou seja “a mente do homem,
30
seu corpo, sua evolução, origens, instrumentos, arte ou grupos, não simplesmente em si
mesmos mas como elementos ou aspectos de um padrão geral ou de um todo” ou então
‘cultura’ como termo referente “a tradições geográficas e históricas específicas”(WAGNER,
2010, p. 37).
Negando a origem colonialista da ‘cultura’, Sahlins (1997) argumenta a favor de uma
corrente teórica que remete à filosofia alemã do século XVIII. O autor cita Herder para
afirmar que a princípio, a busca pelo conhecimento do mundo e de seus diferentes povos é,
na verdade, a busca por novas chaves de compreensão da realidade e do ‘mundo humano’
(HERDER 1969 apud SAHLINS, 1997, p. 45). O autor argumenta que na concepção da palavra
a diferença cultural em si não era necessariamente um elemento de classificação e
hierarquização, e que esse tipo de interpretação degradante depende do contexto histórico
em que tais diferenças estão sendo contextualizadas e interpretadas. Sahlins exemplifica
ainda com os movimentos de resistência cultural que emergem nas últimas décadas do
século XX, contra a hegemonia do imperialismo ocidental, como verdadeira “antítese de um
projeto colonialista de estabilização, uma vez que os povos a utilizam [a ideia de cultura]
não apenas para marcar sua identidade, como para retomar o controle do próprio
destino”(SAHLINS, 1997, p. 46). É essa a perspectiva adotada neste trabalho quando nos
referirmos ao termo cultura.

1.1.1 Cultura é resistência


A ideia de cultura como resistência aparece em Sahlins, que aponta relatos etnográficos
sobre “povos indígenas que se recusavam tanto a desaparecer quanto a se tornar como
nós” (SAHLINS, 1997, p. 52). Nandy (2015) aponta na mesma direção com relação às formas
de insurgência na Índia contra a dominação colonial inglesa e Latour afirma que:
As culturas supostamente em desaparecimento estão, ao contrário, muito
presentes, ativas, vibrantes, inventivas, proliferando em todas as direções,
reinventando seu passado, subvertendo seu próprio exotismo, transformando a
antropologia tão repudiada pela crítica pós-moderna em algo favorável a elas (1996,
p. 5).

Mesmo diante de um histórico de colonização, perseguição, despossessão e destruição,


infligido aos povos não ocidentais, Sahlins (1997) aponta o fenômeno do fortalecimento,
reinvenção e ressignificação das culturas dos e pelos povos e comunidades tradicionais nas
últimas décadas. É importante destacar que o que acontece não é um simples retorno às
origens, um resgate stricto sensu da tradição3 que se perdeu ao longo da história. O que
ocorre é uma síntese resultante entre os elementos tradicionalmente marcantes das
culturas em relação com elementos da modernidade nas sociedades ocidentais

3
Castro, na apresentação de A Imaginação Emancipatória, de Ashis Nandy (2015), explica que, para o autor,
“O conceito de tradição dá conta do arsenal de forças latentes e inarticuladas em uma sociedade, estruturadas
como mitos, crenças, sentimentos e paixões. Esse arsenal permite pluralizar as escolhas pelas quais as
sociedades e os indivíduos podem construir seus futuros resistindo às demandas de um destino unívoco”
(p.13) e cita o próprio autor em outra obra que faz a defesa da reinvenção, ou do resgate da cultura e do
próprio sujeito através da reelaboração das tradições, pois segundo ele isso significa “usar o passado como
uma alegoria aberta que amplifica as escolhas humanas e humaniza a política” (NANDY, 2015, p. 13).
31
contemporâneas, o que resulta em contextos, situações, sujeitos e representações únicos
(SAHLINS, 1997, p. 57).
Há, portanto, entre tradição e modernidade, uma relação dialética e não de contradição e
sob essa perspectiva, a tradição pode ser compreendida como os “modos distintos como se
dá a transformação” (SAHLINS, 1997, p. 62). É a tradição, e a cultura de uma maneira mais
ampla, enquanto formas de significar o mundo das maneiras as mais diversas, que dão o
tom, as bases, os parâmetros para as reinvenções locais inéditas a partir do mundo hoje
vivido, em um processo de integração ao mundo global, sem prescindir de uma
diferenciação local (SAHLINS, 1997, p. 57), ou nas palavras de Boaventura de Souza Santos
(2007), “não há globalização sem localização” (SANTOS, 2007a, p. 31).
A assimilação de novos movimentos contemporâneos nas tradições de povos e
comunidades tradicionais não consiste, portanto em ruptura, mas em continuidade, em
criatividade, que segundo Roy Wagner, junto com a inventividade, são características
definidoras da cultura (WAGNER, 2010, p. 68). Sahlins chama da Cultura Mundial da(s)
cultura(s) a maneira com que os fluxos globais ganham contornos diferenciados ao
passarem pelos filtros culturais locais e, citando Hannerz (1990) ele argumenta que “agora
existe uma cultura mundial, mas é preciso deixar bem claro o que isso significa. Essa cultura
é marcada mais por uma organização da diversidade que por uma replicação da
uniformidade” (Hannerz 1990:237 apud SAHLINS, 1997, p. 133).
Diante desse panorama plural de significados possíveis, neste trabalho, ‘cultura’ será
compreendida como forma de organização simbólica das experiências dos sujeitos e como
argumento e instrumento de resistência contra a dominação política (NANDY, 2015, p. 208)
e a colonialidade do ser, do saber e, do viver (WALSH, 2012). A reinvenção das culturas
locais na era da globalização pode assim ser compreendida como uma luta pela libertação
de um projeto de hegemonia cultural, uma busca por reestabelecer o controle dos povos
tradicionais sobre suas próprias histórias e pela possibilidade de viver sob outros
paradigmas que não aqueles impostos pelo sistema mundo contemporâneo.
Nas palavras de Paulin Houtondji, citado por Sahlins (1997), “a cultura não é somente uma
herança; é também um projeto”(1994 apud SAHLINS, 1997, p. 131), uma luta política pela
autonomia e pela diversidade. Nesse sentido, em uma perspectiva da mobilidade e da
fluidez, a cultura como resistência acontece no cotidiano, nas invenções e interpretações
individuais e coletivas que dão sentido ao sistema mundial dentro do universo local de
significados (SAHLINS, 1997, p. 52). Este trabalho trata dessa acepção de cultura,
compreendendo os jovens a quem ele se refere como sujeitos, agentes de sua cultura, e
mesmo como mediadores culturais (SAHLINS, 1997, p. 130) entre o local e o global, entre a
linguagem da tradição e a da modernidade.
Este trabalho não trata de juventudes estritamente vindas de comunidades tradicionais,
apesar de alguns dos interlocutores identificarem sua ascendência com alguma comunidade
negra rural, identificada ou não como quilombola. Este trabalho trata, sim, de juventudes
que, muitas vezes privadas do acesso às histórias de seus antepassados buscam, através da
32
linguagem da arte e da cultura, reinventar sua experiência do passado, do presente e
planejar seu futuro. As narrativas de história, tradição e ancestralidade acessadas por essas
juventudes nos grupos de dança afro, teatro e capoeira de Paracatu burlam o silenciamento
histórico imposto a elas pela cultura dominante e legitimado pelas instituições formais de
ensino e profissionalização.
As juventudes de que se trata esse trabalho possuem o que Hall chamou de identidades
"descentradas’, isto é, deslocadas ou fragmentadas” (1992, p. 1), elas ocupam um lugar de
fronteira (MARTINS, 2009), de trânsito e de diálogo entre tradição e modernidade, sendo
sua identidade
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (...) O
sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que
não são unificadas ao redor de um "eu" coerente (HALL, 1992, p. 2).

Por suas características liminares entre os projetos de mundo e de vida que as concepções
de tradição e modernidade agregam em si, as juventudes têm a posição ideal para elaborar
novas sínteses, novas propostas e perspectivas criativas, compreendendo que a construção
de um futuro à sua maneira depende também de uma maior compreensão do seu passado
histórico e da sua ancestralidade. Acredito que as e os jovens que motivaram este trabalho
encontram nos grupos de capoeira, dança afro e teatro instrumentos, formas, linguagens
possíveis para interpretar o vivido sob essa perspectiva, ganhando elementos para acessar e
se apropriar do seu passado. Por outro lado, fontes de inovação e de transformação são
também incorporadas pelas juventudes ao imaginário da cultura e da tradição, que ganha
novo impulso, mobilização e criatividade.

1.1.2 Raça, corpo, negritude


Como já indicamos no início deste capítulo, a concepção moderna de raça está atrelada ao
empreendimento colonialista nas Américas, e serviu como síntese para a classificação de
grupos humanos a partir de uma visão eurocêntrica colonial. Para Quijano, o uso de
atributos biológicos de grupos humanos para distinguir raças, como a cor da pele, ou as
proporções corporais, funcionou como facilitador para que critérios demarcadores de
relações de poder preexistentes fossem naturalizadas, codificando as diferenças
entre conquistadores e conquistados na idéia de raça, ou seja, uma supostamente
distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade
em relação a outros. Essa idéia foi assumida pelos conquistadores como o principal
elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista
exigia. Nessas bases, conseqüentemente, foi classificada a população da América, e
mais tarde do mundo, nesse novo padrão de poder (2005, p. 227).

O autor acrescenta ainda que a ideia de raça como fundada em atributos físicos só teve
tamanha importância por justificar também um antigo dilema filosófico, qual seja, o da
separação entre a “razão/sujeito” e o “corpo”(QUIJANO, 2005, p. 239). As raças colonizadas
foram então relegadas à condição de desprovidas de alma ou de inteligência, o que permitia
e até incentivava o europeu-branco-civilizado a agir como seu dono, seu tutor,

33
relacionando-se com os negros e índios como se relacionaria com outros representantes da
‘natureza’, seres domináveis e exploráveis assim como os animais ou as mulheres. A
brancura foi então propalada como
sinônimo de pureza artística; de nobreza estética; majestade moral; sabedoria
científica etc. O belo, o bom, o justo e o verdadeiro são brancos. (...) A manifestação
do Espírito, da Idéia, da Razão. O branco, a brancura, são os único artífices e
legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento do homem. Eles são a cultura,
a civilização, em uma palavra, a “humanidade” (SOUZA, 1983, p. 5).

Para o autor, a colonização foi implementada tanto pela via das relações de trabalho como
através de controle cultural, o que ele chamou de colonialidade do poder, o que configurou
o controle de todos os âmbitos da existência dos sujeitos no sistema-mundo etnocêntrico
capitalista. Quijano explica que,
em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas (...). Em segundo lugar,
reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os
casos, as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de
produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de
objetivação da subjetividade. (...) Em terceiro lugar, forçaram –também em medidas
variáveis em cada caso – os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos
dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no
campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente
religiosa. É este o caso da religiosidade judaico-cristã. Todo esse acidentado
processo implicou no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos
modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou
intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em
suma, da cultura (QUIJANO, 2005, p. 231)

Parte desse debate está referido a povos ameríndios e os processos de colonização das
Américas, mas convém também ter em perspectiva a associação das negras e negros à
ausência de alma, à condição de selvagens no passado e suas formas de perpetuação nos
dias de hoje. Neusa Santos Souza, associando ideias presentes também em outros autores,
como Florestan Fernandes, afirma que:
a sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como
raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de
interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social
inferior (SOUZA, 1983, p. 19).

As ideias associadas então à natureza, irracionalidade, animalidade e primitivismo (SOUZA,


1983, p. 31) foram marcadas como próprias de certos grupos humanos desde o encontro
com as sociedades europeias colonizadoras e, no Brasil, aos negros e negras, assim como às
suas práticas corporais, saberes e conhecimentos. O corpo negro, suas danças, lutas, festas
e rituais foram reprimidos e perseguidos, um verdadeiro genocídio disfarçado de políticas
de miscigenação e embranquecimento.
Encobertas pelo mito da ‘democracia racial’ no Brasil (FERNANDES, 2008), as relações raciais
estabelecidas durante o período colonial se perpetuaram, sob a falsa premissa da
mestiçagem no ‘encontro das três raças’ e da cultura afrobrasileira proclamada como ícone
da brasilidade: samba, carnaval, capoeira, as ‘mulatas’. A cultura negra foi apropriada e

34
comercializada, disputada por sujeitos sociais em diferentes posições de poder. Ela,
portanto, é atravessada e atravessa a política, com projetos políticos específicos em cada
momento histórico, como explica Jocélio Teles dos Santos, em seu livro ‘O poder da Cultura
e a Cultura no Poder’ (2005). Importa agora compreender brevemente o afloramento de
manifestações culturais tradicionalmente negras, como a capoeira e as danças afro, dentro
desse processo, e por isso me reporto aos caminhos do movimento negro no Brasil.
O movimento negro contemporâneo surgiu no Brasil, assim como outros movimentos
sociais, durante os anos 1970, depois de uma época de muita repressão política, catalisando
ideias, discursos e organizações já incipientes nos anos anteriores (GOMES, 2011, p. 135).
Essa organização é contemporânea e dialoga com outras que também se inseriram na luta
política contra o racismo em outros lugares do mundo, como o movimento pelos direitos
civis nos Estados Unidos e as lutas pela independência da colônias portuguesas na África.
Segundo Nilma Lino Gomes (2011) o movimento negro se diferencia, no entanto, dos
demais movimentos sociais da década de setenta por buscar na história a sustentação de
seus argumentos. Para a autora, reler, com lentes não coloniais, a história oficial do Brasil,
permite ressignificá-la, levando à compreensão da trajetória histórica e da realidade do
povo negro no Brasil hoje, dando ênfase aos processos de dominação e resistência que a
história e os dados oficiais se esforçam por negar (GOMES, 2011, p. 136).
Por essa perspectiva crítica da história, o movimento negro contesta diretamente as bases
do mito da democracia racial e reivindica o direito de ensinar a história dos negros e negras
no Brasil sob sua própria perspectiva. O movimento negro teve muitas conquistas, e na
última década conseguiu pressionar o governo federal para a criação de uma lei que obriga
o ensino de “História e Cultura Afro-Brasileira” em todas as escolas do país4. A luta do
movimento negro, no entanto, e mesmo de outras formas de organização das comunidades
negras é bem maior do que por mudanças pontuais em um Estado que os oprime e
persegue. Para Gomes (2011),
a emancipação entendida como transformação social e cultural, como libertação do
ser humano, sempre esteve presente nas ações da comunidade negra organizada
tanto no período da escravidão quanto no pós-abolição e a partir do advento da
República. O fato de essas ações serem projetos e propostas construídos por um
povo que tem a sua história e a sua cultura desenvolvidas no contexto da
colonização, da dominação, da escravidão, do racismo e da desigualdade social e
racial atesta esse caráter emancipatório das lutas e da organização política dos
negros no Brasil e na diáspora (GOMES, 2011, p. 138).

Por isso, a resistência acontece também em outras frentes. Este trabalho ressalta o papel
das manifestações culturais nessa trincheira, ferramenta e arma poderosa de emancipação
individual e coletiva dos povos negros desde tempos coloniais. O Teatro Experimental do
Negro (TEN), por exemplo, já nas décadas de 1940 a 1960, se propunha, no Rio de Janeiro “a
trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, por meio da educação, da cultura e da
arte” (GOMES, 2011, p. 140). A capoeira ressurge também nas décadas de 1930 e 1940,

4
Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003.
35
dessa vez na Bahia, não mais como prática apenas de grupos marginalizados, mas
ressignificada como ícone da brasilidade e de resistência cultural, como será discutido mais
amiúde no próximo capítulo. As danças afro vêm a reboque, junto com as práticas de
capoeira e, mais recentemente, revisitadas e adaptadas para agradar outros públicos que
não apenas os da capoeira, como apontou Rose, professora do grupo Afro N’Gonda e da
oficina de teatro Hora do Conto, em sua entrevista para esta pesquisa.
As práticas corporais associadas às comunidades negras são, se por um lado apropriadas
pelo mito da democracia racial, por outro se fazem cada vez mais presentes e popularizadas
no sentido de reforçar a estética negra e seu empoderamento. É a tradição em movimento,
contemporânea e inserida no sistema mundo, disputada e apropriada por diferentes
projetos. Como ouvi em alguns relatos, por exemplo, alguns grupos lidam com a capoeira de
uma maneira ‘capitalista’, ou seja, com o foco nos recursos financeiros que a capoeira pode
proporcionar, outros grupos estão mais orientados pelo ‘social’, ou em outras palavras, em
compreender a capoeira como forma de ação social, de contribuição para a sociedade, para
as pessoas que mais precisam. Essas duas abordagens diferem e podem se contrapor no
universo da capoeira, e em Paracatu não poderia ser diferente.
As práticas não têm um sentido só, recebem diversas camadas de significado e, a meu ver,
importa observar se funcionam como ferramentas de emancipação ou de dominação. Este
trabalho se interessa pelo caráter de resistência e autonomia com que as práticas da
capoeira, das danças afro e do teatro são apropriadas pelas juventudes em Paracatu,
tornando-se em caminhos emancipatórios possíveis. Durante a minha experiência e
trabalho de campo, no entanto, fica claro que esta não é a única possibilidade de
interpretação possível dessas linguagens, dado que são feitas por e para pessoas, todas
inseridas no mesmo sistema mundo, sujeitas às mais diversas pressões e disputas. Ressalto,
no entanto, que minha intenção ao propor essa pesquisa é fomentar e fortalecer essas
inciativas justamente no que de libertador elas oferecem, apontando algumas
controvérsias, mas sem intenção de uma pretensa neutralidade a esse respeito.
Rose, do Afro N’Gonda, relata que se envolveu com as atividades do movimento negro
quando ainda era criança, aos nove anos, por morar no centro da cidade e estar em uma
comunidade da igreja católica cujo padre abriu o espaço para reuniões, formações, ‘missas
afro’, na Igreja do Rosário, que era tradicionalmente a igreja dos negros em Paracatu.
Segundo Rose, as crianças “aprenderam brincando”, fazia parte do cotidiano estar no
movimento negro. Ela conta que junto com as formações havia também a iniciativa cultural,
que trazia festivais para a cidade em parceria com a Fundação Conscienciarte, que na época
era também muito atuante nesse sentido, promovendo aulas, oficinas e formações de
teatro, circo, além de oferecer oportunidades de trabalho aos que participavam. Rose
explica que isso significava investir na qualificação das pessoas enquanto protagonistas da
cultura, e que ela desde os treze ou quatorze anos já ocupava a tribuna da Câmara
Municipal de Paracatu e outros prédios públicos com apresentações. Ela conta que junto
com seus contemporâneos, inaugurou as apresentações no anfiteatro da Casa de Cultura,

36
fazia peças de teatro no cinema5, ia prestar serviço em outras cidades, era convidada a dar
aulas, e tinha muitas portas abertas. Hoje ela, junto com Cacau, seu esposo, Contramestre
de capoeira e também professor do Afro N’Gonda, são corresponsáveis pelo grupo de
danças afro, pelo grupo de capoeira Axé Dendê e por oficinas de capoeira, teatro, e outras
iniciativas relacionadas à cultura e à arte em Paracatu. Uma formação como a de Rose
demonstra a importância que uma educação crítica, histórica, e ao mesmo tempo corporal e
lúdica pode ter na construção da concepção de mundo e na atuação dos sujeitos sobre sua
própria realidade.
Reforço, portanto, que através de práticas como as que este trabalho enfoca pessoas de
todas as camadas sociais, raças, gêneros e religiões, podem revisitar o que pensavam que
sabiam sobre a história e a cultura dos negros e negras em Paracatu e no Brasil. Com novas
lentes com as quais olhar para a sua própria história é possível se reinventar e até descobrir-
se ou “tornar-se negro” (SOUZA, 1983). Para Neusa Santos Souza, no Brasil, identificar-se
como negro ou negra é um processo que passa pela ressignificação do corpo e da estética
negros, um processo de aceitação e valorização, ou, nas palavras de Joanine, dançarina do
grupo Afro N’Gonda, de se descobrir como “uma coisa boa”.
Os grupos de capoeira, dança afro e teatro de Paracatu estão, portanto, inseridos em um
contexto histórico de revalorização e reinvenção de práticas culturais de origem
afrobrasileira, da negritude, como formas de reivindicação de autonomia e emancipação de
padrões arraigados de discriminação racial. Para Kabengele Munanga, a negritude e a
identidade negra “se referem à história comum que liga de uma maneira ou de outra todos
os grupos humanos que o olhar do mundo ocidental ‘branco’ reuniu sob o nome de negros”
(2009, p. 20). Sob essa perspectiva, “a negritude torna-se uma convocação permanente de
todos os herdeiros dessa condição para que se engajem no combate para reabilitar os
valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas” (MUNANGA, 2009, p. 20).
A cultura está sempre em movimento e, por isso, é possível encontrar tantas variações
sobre os temas da capoeira, das danças afro, do teatro. Rose conta que já viu grupos
dançando o maculelê com garrafas pet, por exemplo, assim como na festa da Caretada,
pude observar a substituição dos materiais tradicionais como o papel machê e as fitas de
cetim por outros como o TNT, o plástico e adereços pré-fabricados. Para além dos materiais,
os significados estão também em constante reinvenção, apropriados e remodelados a partir
das experiências dos sujeitos que hoje encarnam as festas, danças e encenações tradicionais
da cultura negra.

1.2. Juventudes no plural


Ser jovem é um perigo. Não é à toa que escutei tantas reclamações com relação às
juventudes por parte de lideranças comunitárias e institucionais com quem tive contato
durante o tempo em que estive em Paracatu e no Noroeste de Minas, a trabalho e

5
O Cinema Santo Antônio é um prédio histórico, que funcionava desde a década de 1950 já como cinema e
espaço para apresentações de peças de teatro, o único, inclusive, com estrutura específica para esse fim até
hoje em Paracatu. O espaço, no entanto, se encontra fechado para apresentações e exibições desde 2015.
37
desenvolvendo esta pesquisa. Ser jovem é ser constantemente disputado por diferentes
projetos de mundo, pela família, pela escola, pelo trabalho, pela religião, pelos coletivos
com os quais se relaciona. As escolhas dos jovens nesse campo de forças são motivo de
pressão, de controle e de frustração por parte dos adultos que se encontram na posição de
seus pais, tutores e lideranças comunitárias, e para quem o diálogo com as juventudes é
muitas vezes um desafio ainda a ser vencido.
Ser jovem incorpora uma promessa de futuro, de continuação e de renovação das
estruturas sociais estabelecidas, ao mesmo tempo em que as questiona e ameaça os
paradigmas nos quais elas se embasam. Abramo salienta nesse sentido que, durante a
segunda metade do século XX, a juventude foi “depositária de um certo medo, [uma]
categoria social frente à qual se pode (ou deve) tomar atitudes de contenção, intervenção
ou salvação, mas com a qual é difícil estabelecer uma relação de troca, de diálogo, de
intercâmbio”(2007, p. 80).
Não existe uma definição estática do que seja a juventude: é um conceito essencialmente
plural e móvel, situado cultural e temporalmente. Trato aqui de ‘juventudes’, portanto, no
plural, como já tem sido reivindicado por diversos autores e movimentos juvenis,
compreendendo as e os jovens como sujeitos capazes de falar por si próprios e de exercer
suas escolhas no mundo por meio de diversas linguagens. Essa perspectiva está
desenvolvida aqui a partir de construções teóricas de diversos autores e embasa as
reflexões desta pesquisa.
Sobre a pluralidade semântica do termo ‘jovens’ e, consequentemente de sua variante
‘juventudes’, Rossana Reguillo afirma que:
a primeira suposição que se assume como um ponto de partida, é a enorme
diversidade abarcada pela categoria "jovens": estudantes, bandas punks,
milenaristas, empresários, ravers, desempregados, sicarios, mas todos os filhos de
modernidade e da crise do desencanto. (...) Uma enorme complexidade que torna
impossível a articulação de um único campo de representações porque o significado
está sempre sendo, conformando-se em uma continuidade simbólica que apaga
6
fronteiras, margens e limites (2007, p. 48) .

A autora cita ainda Levi e Schmitt para afirmar a defasagem de classificações etárias que,
segundo os autores, “possuem apenas valor indicativo e não são suficientes para definir os
contextos de um história social e cultural da juventude”7 (LEVI; SCHMITT, 1995 apud
REGUILLO 2007:57). Diferentes épocas e diferentes sociedades definiram de maneiras
distintas os períodos e etapas da vida, algumas nem mesmo fazendo essa distinção

6
Tradução livre da autora. No original: “el primer supuesto que se asume como punto de partida, es el de la
enorme diversidad que cabe en la categoría “jóvenes”: estudiantes, bandas, punks, milenaristas, empresarios,
ravers, desempleados, sicarios, pero todos hijos de la modernidad, de la crisis y del desencanto. (...) Una
enorme complejidad que vuelve imposible articular un solo campo de representaciones porque el sentido está
siempre siendo, armándose en un continuum simbólico que desvanece fronteras, márgenes y limites”
(REGUILLO, 2007, p. 48).
7
Tradução livre da autora. No original: “las clasificaciones explícitas (edades de vida, época de la mayoría de
edad etc.) evidentemente no poseen sino un valor indicativo. No bastan para definir los contextos de una
historia social y cultural de la juventud” (LEVI; SCHMITT, 1995 apud REGUILLO 2007:57).
38
(REGUILLO, 2007, p. 49). Some-se a isso as variações de idade, gênero, origem urbana ou
rural, condição socioeconômica, além da história pessoal e familiar de cada sujeito, e
teremos a dimensão da complexidade e infinita diversidade das experiências de juventude
no Brasil e no mundo.
Fazendo referência à entrevista homônima de Pierre Bourdieu (1978), ‘juventude’ é apenas
uma palavra, ao que Arce acrescenta, “carregada de significados e com uma importante
participação na delimitação de práticas sociais historicamente definidas”8 (2005, p. 2). No
entanto, “as categorias são produtivas, fazem coisas, são simultaneamente produtos do
pacto social e produtoras do mundo”9 (REGUILLO, 2007, p. 52). Por isso, cabe aqui tentar
traçar os contornos que delineiam a categoria juventudes na contemporaneidade, e como
se discute essa concepção na Academia e entre os grupos abordados por esta pesquisa.
‘Juventude’ é uma palavra que traz consigo uma bagagem de significados, justifica políticas
públicas e é apropriada pelos próprios jovens de maneiras diversas. Por isso, visitarei
referências teóricas das disciplinas de psicologia, antropologia e educação, na tentativa de
que este trabalho adote uma visão abrangente do que a categoria ‘juventudes’ pode
compreender.

1.2.1 Primeiras definições: Juventude, uma palavra


Como definir o período da vida que chamamos de juventude? Segundo Regina Novaes a
juventude é marcada por sua característica de “construção de identidades e de definição de
projetos de futuro’’ (2008, p. 4). A autora acrescenta ainda que é um momento de dúvidas e
escolhas, essencialmente ambivalente, por comportar constantes choques e negociações
entre a “subordinação à família e à sociedade e as expectativas de emancipação” (NOVAES,
2008, p. 22). Íris Araújo acrescenta um ponto interessante na definição de juventude a partir
da contribuição de outras autoras, que é, segundo ela, “o momento em que os indivíduos
optam por uma forma de existência, buscando realizar um vir a ser” (2008, p. 2), o que
aparece de forma semelhante nas palavras de Dayrell, que define a juventude como
um momento cujo núcleo central é constituído de mudanças do corpo, dos afetos,
das referências sociais e relacionais. Um momento no qual se vive de forma mais
intensa um conjunto de transformações que vão estar presentes, de algum modo,
ao longo da vida (2003, p. 42).

A subjetividade do jovem está em formação. Não que a da criança e a do adulto também


não estejam - estamos todos em constante processo de mudanças e transformação, mais ou
menos intensas. No entanto, a infância e a idade adulta gozam de certa estabilidade no
imaginário social, restando à juventude o entre lugar, o não mais ser um e ainda não ser
outro. Por isso também, ser jovem é um risco. Situações de transição entre momentos de

8
Tradução livre da autora. No original: “Cuando Pierre Bourdieu (1990) afirmó que la juventud no es más que
una palabra, debió añadir: cargada de significados y con una importante participación en la delimitación de
prácticas sociales históricamente definidas” (ARCE, 2005, p. 2).
9
Tradução livre da autora. No original: “la juventud no es más que una palabra, una categoría construida, pero
las categorías son productivas, hacen cosas, son simultáneamente productos del acuerdo social y productoras
del mundo” (Reguillo 2007:52).
39
estabilidade envolvem liminaridade (TURNER, 1969; URTEAGA, 2009, p. 22), permitem o
tornar-se outro, experimentar o que não era permitido, extrapolar limites pré-
estabelecidos, com certa indulgência por parte dos adultos. É comum e aceitável, em maior
ou menos grau, as festas, as drogas, a violência. É comum também o sofrimento, a
provação, o adaptar-se a novas situações e realidades até então reservadas ao mundo dos
adultos ao mesmo tempo em que é também permitido o retorno momentâneo à zonas de
conforto infantis
Tendo isso dito, é necessário evitar a concepção do sujeito jovem, comum especialmente
em classes sociais abastadas, como vivendo em uma espécie de “moratória social”
(ABRAMO, 2007; DAYRELL, 2001; KEHL, 2004; NOVAES, [s.d.]), ou seja, um não-sujeito que,
não sendo mais uma criança, se encontra em preparação para a vida adulta. Para Reguillo
(2007), tanto o Estado, como a família e a Escola, salvo exceções, pensam o jovem hoje
como essa categoria entre um estado e outro (p. 51), o que leva à instituição escolar,
em nome do “vir a ser” do aluno, traduzido no diploma e nos possíveis projetos de
futuro, (...) a negar o presente vivido do jovem como espaço válido de formação,
assim como as questões existenciais que eles expõem, bem mais amplas do que
apenas o futuro (DAYRELL, 2003, p. 41).

Para Nandy (2015), “uma vez que usamos esses conceitos e ligamos os processos de
mudança física e mental a um estado valorizado de ser ou de se tornar, já estimamos
negativamente a criança [leia-se juventudes] como uma versão inferior do adulto” (2015, p.
227). Nessa concepção, o jovem se espelha e é espelhado por um modelo de adulto como
indivíduo racional, completo e autônomo (BACELAR, 2014, p. 39; CASTRO, 2001). Essa
imagem repetidas vezes reiterada pela família, pelas instituições e pelos meios de
comunicação, idealizada aos moldes de uma concepção racionalista moderna do indivíduo
induz uma relação com a geração anterior baseada em comando e controle. Em muitas
instituições de ensino e profissionais, os jovens que não parecem se enquadrar nesses
moldes são tomados como problemas que demandam intervenção de forma a integrá-los à
ordem social (ABRAMO, 2007, p. 75). O reflexo disso aparece na imagem degradada que as
juventudes vislumbram na idade adulta:
Ser adulto é ser obrigado a trabalhar para sustentar a família, ganhar pouco, na
lógica do trabalho subalterno. Mas é também assumir uma postura “séria”,
diminuindo os espaços e tempos de encontro, com uma moral baseada em valores
mais rígidos, abrindo mão da festa, da alegria e das emoções que vivenciam no
estilo. Para muitos, ser adulto implica ter de abrir mão do estilo, fazendo dessa
passagem um momento de dúvidas e angústias, vivida sempre como tensão. Não
que recusem ou neguem essa passagem, mas a vivenciam como uma crise. Uma
crise vivida não na entrada da juventude, mas na sua saída (DAYRELL, 2003, p. 50)

Instala-se nesse ponto um abismo para a comunicação entre as juventudes e as gerações


que as precedem, que os meios institucionais e familiares muitas vezes tem dificuldades ou
verdadeiras impossibilidades de transpor. Qualquer troca e compartilhamento verdadeiro
parte, a meu ver, de relações de horizontalidade, e para isso é preciso reconhecer no outro,
seja ele criança, jovem, adulto, idoso, sua condição de sujeito. Nesse sentido, minha opção

40
neste trabalho é ressaltar as juventudes como sujeitos sociais, agentes de suas próprias
vidas, com grande potencial de transformação de si e do mundo, a partir das diferentes
linguagens e universos de significado pelos quais transitam. Sujeitos presentes hoje e não
apenas ex-crianças ou projetos de adultos e de futuro. Sujeitos que elaboram e que se
expressam das mais variadas maneiras, sendo que aqui nos interessa principalmente as
linguagens corporais e musicais de que se apropriam, como é o caso da capoeira, da dança
afro e do teatro.

1.2.2 Juventudes que falam


Nesta pesquisa a juventude funciona como linha que costura os temas da cultura, das
relações raciais, da construção coletiva de significados, do aprendizado pelo corpo e pela
música, da política como experiência vivida e de práticas de resistência ao extermínio e
silenciamento de formas de vida divergentes daquelas impostas pelos modelos
hegemônicos de governo e de desenvolvimento econômico. Os jovens estão
inevitavelmente inseridos em contextos sociais, culturais, políticos, e a pertença a grupos
culturais como os de capoeira, dança afro e teatro que observamos em Paracatu permite a
eles elaborar individual e coletivamente sua subjetividade, além de possibilitar a
manifestação pública de suas escolhas.
Bárbara Sweet, jovem rapper e poetisa de Belo Horizonte canta:
Quiseram me dizer o que vestir, o que falar, com quem sair, por onde andar, como
viver/ Só pra agradar/ Só pra agradar

Disseram que eu devia emudecer, emagrecer, enriquecer, enrijecer, pra apetecer/


Quem não quer perceber/ que o que eu preciso é viver/ Sem falso moralismo, sem
falsa felicidade/ Pra viver de verdade tem que ter/ tem que ter/ tem que ter/
Liberdade!

(...) Não vão privatizar os meus desejos / não vão! / Não vão decidir o que eu
10
almejo/ não vão! / Não vão maquiar o que eu vejo/ Não vão!

O jovem é bombardeado cotidianamente com informações sobre o que pensar, o que vestir,
aonde ir, com quem andar, o que dizer, o que comer, o que fazer da sua vida presente e de
seu futuro. Tantos imperativos não passam sem questionamento e muitos jovens buscam
maneiras de escapar e confrontar os padrões impostos em grupos com os quais se
identificam. As culturas da periferia como o RAP, o Funk e o Hip Hop, a agroecologia e a
permacultura, a cultura afro as danças e a capoeira, o teatro em suas múltiplas
manifestações, entre tantas outras, são exemplos de movimentos que, a princípio
circunscritos a determinados grupos sociais e atividades, têm se tornado escolhas das
juventudes como modos de vida possíveis, opções de perspectivas sobre o mundo
diferentes das oferecidas pelo sistema dominante.
Para Lúcia Rabello de Castro,
a articulação pública de um discurso por parte de um sujeito coletivo (...) implica
constituir-se enquanto um sujeito que pode dizer, que tem o que dizer e tem a

10
Trecho da música “Tem que Ter”, de Bárbara Sweet.
41
quem dizer. Portanto, a “fala” na qualidade de ação política constitui o sujeito
político neste mesmo ato (2011, p. 301).

O jovem que “fala” através da dança, do teatro, da capoeira, se constitui assim como um
sujeito político ativo, que coloca em pauta as questões do seu tempo, do seu lugar. Nas
palavras de Reguillo, “o político adquire corporeidade nas práticas cotidianas dos atores,
nos interstícios que os poderes não podem vigiar”11 (2007, p. 63). Se expressar através da
fala, das histórias, do corpo, da música, é agir sobre a realidade vivida, sobre a sua própria
experiência e a daqueles e daquelas com quem se comunica. Para Novaes:
(...) como a linguagem não é apenas um veículo, mas é também construtora da
realidade social, podemos apostar que a cultura (em suas expressões artísticas e
formas de comunicação) poderá jogar um papel ativo para o nascimento de novas
percepções e experimentações sociais que respondam a necessidades e aspirações
dos/das jovens de hoje (2008, p. 22).

A linguagem é carregada de significados e através dela o mundo social se arquiteta. É


interessante o conceito de “redes simbólicas” que, para José Manuel Valenzuela Arce, são:
formas de identificação nas quais os jovens participam da conformação do sentido
da rede. É uma espécie de comunidade hermenêutica, uma rede de sentido que não
possui uma estrutura de coesão forte entre o conjunto daqueles que a formam. As
redes simbólicas são processos de inter-reconhecimento entre seus membros.
Neste caso encontramos movimentos como os punks, os funkeiros, os rappers
estadunidenses e brasileiros, ou alguns grupos de grafiteiros, nos quais os jovens se
sabem parte de uma rede juvenil, se reconhecem na música, compartilham
situações lúdicas, se encontram nos bailes e muitos deles são ativos criadores de
canções, textos ou espaços, nos quais dão conta de sua situação enquanto jovens
12
pobres (2015, p. 34).

Reguillo aponta ainda, citando teóricos como Giddens e Habermas que os sujeitos são
capazes e ativos em sua “reflexividade”, ou em “pensar o pensamento” (2007, p. 56), e a
partir daí configurar sua agência sobre o mundo. Na descrição feita pelos participantes do
Afro N’Gonda sobre o próprio grupo, por exemplo, isso fica claro, uma vez que os
integrantes compreendem a dança como linguagem na transmissão de uma determinada
mensagem ou de um concepção de mundo, dentro de uma rede de significados, como está
registrado em diversas falas que permeiam este texto.
Fazer parte de um grupo que tem veicula uma mensagem é assumir uma perspectiva sobre
o mundo, é pensar sobre sua experiência ali e se posicionar. Essa perspectiva é marcada, em

11
Tradução livre da autora. No original: “una revaloración de lo político, (...) que adquiere corporeidad en las
prácticas cotidianas de los actores, en los intersticios que los poderes no pueden vigilar” (REGUILLO, 2007, p.
63).
12
Tradução livre da autora. No original: “Red simbólica, que alude a formas de identificación en las cuales los
jóvenes participan en la conformación del sentido de la red. Es una suerte de comunidad hermenéutica, una
red de sentido que no posee una estructura de cohesión social fuerte entre el conjunto de quienes forman
parte de la red. Las redes simbólicas son procesos de inter- reconocimiento entre sus miembros. En este caso
encontramos movimientos como los punks, los funkies, los raperos estadounidenses y brasileños, o algunos
grupos graffiteros, donde los jóvenes se saben parte de una red juvenil, se reconocen en la música, comparten
situaciones lúdicas, se encuentran en los bailes y muchos de ellos son activos creadores de canciones, textos o
espacios, donde dan cuenta de su situación en cuanto jóvenes pobres” (ARCE, 2015, p. 34).
42
cada grupo à sua maneira, pelo reconhecimento da importância da história e da cultura de
Paracatu, da história e da luta dos negros e negras, além da diversidade cultural, religiosa e
de gênero e pelo olhar e pelo fazer das juventudes. A ocupação de espaços públicos da
cidade, bem como de espaços institucionais como escolas, o Museu Histórico Municipal de
Paracatu, ou a Câmara Municipal, é também um índice do potencial comunicativo e
transformador das performances dos grupos de capoeira, dança e teatro. A mensagem
veiculada por esse tipo de evento é descrita de forma clara na fala de Karen, que afirma que
para “aqueles que assistem traz conhecimento, toca uma sementinha de cultura, as danças
também, mas a cultura brasileira”. Compreendo assim que a rede de significados que se
estabelece entre os integrantes de cada um dos grupos, e a possibilidade de comunicá-la e
expandi-la para seu público em diversos espaços da cidade configura o empoderamento
desses coletivos. A projeção da mensagem é amplificada assim como suas possibilidades de
ação no mundo.
A linguagem teatral acrescenta outras possibilidades de elaboração sobre as realidades
vividas. A partir de elementos do cotidiano, como histórias e personagens da cena urbana
de Paracatu, os jovens com quem conversei fazem referência a figuras como “o
mototaxista”, “o vizinho que não escuta nem conversa”, “a travesti que canta mais bonito
que todo mundo”, “a senhora com problemas mentais”, “a moça com síndrome de down”,
para tratar de temas de sua própria subjetividade, assim também como gatilhos para
montagem de personagens e cenas. Não apenas acontecimentos locais, mas também a nível
mundial dão subsídios para esses processos. Um exemplo marcante foi a performance
“Humano R$ 1,0”, realizada na praça Firmina Santana, motivada pela notícia de um
assassinato em massa em uma boate gay nos Estados Unidos, no mês de junho de 2016. O
massacre repercutiu mundialmente e não menos em Paracatu, levando a um grupo de
jovens participantes do Grupo Cênikas a propor a performance. A cena consistia em uma
gaiola com a placa “Humano R$ 1,00”, dentro da qual se encontravam quatro rapazes e uma
moça, jovens, negros, seminus, que se expunham à venda na principal praça da cidade e
assim interagiam com o público. Segundo Gustavo e Iuri que participaram da montagem, o
objetivo era questionar o valor do ser humano na sociedade em que vivemos hoje.
A capoeira tem um trunfo diferente, que é o do diálogo pelo jogo, na ginga, entre saltos e
golpes, a negociação e a “vadiagem”. Uma linguagem ritmada pelo som do atabaque e
traduzida nas letras das canções, que envolve capoeiristas e passantes em torno das rodas.
Essa mensagem chega em qualquer bairro, em qualquer escola ou praça da cidade. Ela
ocupa espaços privilegiados de diálogo dentro da cidade de Paracatu que vão desde o
Museu Histórico Municipal, escolas e Centros de Referência em Assistência Social (CRAS),
quadras e academias, aonde acontecem aulas regulares de cada um dos grupos existentes
em Paracatu, até praças públicas nas quais acontecem também rodas abertas, com a
interação entre diferentes grupos, com alguma regularidade. Os diferentes grupos treinam
em bairros e locais diferentes, ocupando espaços do centro da cidade até as periferias mais
distantes. Crianças, jovens e adultos de diversas origens sociais, gêneros e faixas etárias,
participam de aulas, rodas e eventos e nesse ponto é inegável a capilaridade da prática da
43
capoeira, que associada à discussão da ancestralidade e da atualidade negra trazida pelas
histórias contidas nas letras das músicas e nas aulas, se configura como um importante
agente de formação e ação políticas.
O desafio da comunicação de uma perspectiva sobre o mundo via performance corporal e
musical culmina no momento das apresentações e rodas, quando as e os jovens artistas e
capoeiristas são confrontados com as respostas e reações da plateia/roda. Os participantes
do Afro N’Gonda ressaltaram durante a roda de conversa que o momento da apresentação
é importante no aprendizado da associação entre a música, o canto e a dança, enfatizando a
importância desse ritual para o empoderamento dos alunos do instrumento de
comunicação que é seu próprio corpo e as linguagens artísticas. As rodas de capoeira são
também apontadas nesse sentido, quando as e os capoeiristas relatam a força e a energia
que lhes confere esses momentos, que os faz esquecer os problemas e conseguir feitos que
nem eles mesmos se consideravam capazes.
O reconhecimento, que aparece muitas vezes nas falas das e dos jovens entrevistados como
a principal gratificação pelo trabalho desenvolvido é, a meu ver, o sentimento de que sua
linguagem foi compreendida, que a comunicação se deu de maneira efetiva e a mensagem
pretendida foi passada ao público. As linguagens do corpo presentes na capoeira, na dança
afro e no teatro permitem a narração da história do lugar e das pessoas fundamentada em
uma perspectiva contra hegemônica sobre os modos de ser no mundo, oferecendo a
possibilidade aos jovens dançarinos, capoeiristas, atrizes e atores de se tornarem
narradores de si mesmos, de suas próprias experiências, à sua própria maneira, com todo o
potencial transformativo que isso implica. Ser jovem e transformar-se é um perigo e um
risco, e aí reside a força política dessas manifestações, tanto nas subjetividades dos
envolvidos como nas redes de relações e na estrutura social na qual estão inseridos.

44
CAPÍTULO 2: Dos afetos

“Na época dos quilombos, fazia tudo em comunidade. A gente da cultura afro-brasileira, da capoeira,
a gente sempre tem uma união a mais”.
(Cacau, em roda de conversa realizada com o grupo Afro N’Gonda no mês de outubro de 2016)

Figura 6. Evento anual de capoeira do grupo de capoeiraAxé Dendê, realizado em Paracatu em novembro de 2016
(Fonte: Arquivo do Axé Dendê, 2016).

As reflexões deste trabalho são fruto da minha participação observante (TORNQUIST, 2007,
p. 42) nas aulas, rodas e apresentações de capoeira, de dança afro e de teatro, além de
entrevistas, rodas de conversa, e conversas informais. Essas últimas, entre, cachorros-
quentes na pracinha, barraquinhas de feira e churrascos nas casas das pessoas, inclusive na
minha própria, tiveram papel fundamental na minha compreensão sobre o que hoje escrevo
aqui. Digo isto para reforçar o caráter relacional e processual do entrosamento e do
aprendizado que acontece nas coletividades que acompanhei, dentro das quais me inseri e,
como qualquer ‘chegante’, fui entendendo aos poucos partes das dinâmicas com que os
grupos se organizam, os afetos, o expressar-se, para tentar aqui costurar um mosaico, uma
breve narrativa das experiências vividas.

2.1 Experiência
Tratarei neste tópico das experiências das juventudes com as quais tive a oportunidade de
dialogar e compartilhar vivências ao longo desta pesquisa. Importa aqui ressaltar os
processos de transformação pessoal relatados por elas e por eles ao longo de sua

45
participação nos grupos de capoeira, dança afro e teatro abordados, assim como sua
compreensão da maneira como essa participação é criativamente ressignificada, trazendo à
luz narrativas e performances que dialogam com a história pessoal e com a cultura de
Paracatu e da ancestralidade afro brasileira dali.
John Dawsey (2006) faz referência às reflexões de Victor Turner sobre a sucessão de
momentos que constituem o processo de produção da experiência vivida13. Para o autor, a
experiência começa com a percepção de algo pelo sujeito, que em seguida evoca sua
memória ou imagens do passado, e com elas o sentimento e as emoções relacionadas. O
próximo passo é então articular a experiência do passado com a percepção do presente, o
que permite, finalmente, a construção de significado sobre ela. Essa sequência culmina
então, segundo Turner, com uma forma de expressão da experiência vivida, a performance,
“termo que deriva do francês antigo parfournir, ‘completar’ ou ‘realizar inteiramente’ (...). A
performance completa uma experiência”(DAWSEY, 2006, p. 19), ao mesmo tempo em que
também dá origem a novos objetos de percepção que reiniciam o processo para novas
experiências, em um movimento contínuo de articulação entre passado e presente.
Socialidade e comunidades de aprendizado são elementos chave para a discussão dessas
experiências e na elaboração de narrativas a respeito, compreendendo os espaços de
relação proporcionados pelos grupos como fundamentais nos processos criativos e nos
afetos dos sujeitos envolvidos.

2.1.1 Redes de socialidade


“A excelência do ator não é só a apresentação ser perfeita e estar tudo no
devido lugar, tem que partir de dentro, isso vem do momento descontraído,
fora de compromisso”.

(João, ator do Grupo Voz de teatro, em roda de conversa realizada com os


grupos de teatro de Paracatu, no mês de outubro de 2016)

Os grupos de teatro, de capoeira e de dança afro acompanhados durante esta pesquisa se


configuram, para além de atividades esportivas e artísticas, como redes de relações, que
promovem a construção coletiva de novos significados. A interação entre os jovens
integrantes dos grupos, entre elas, eles e seus mestres, entre os diferentes grupos, e as
novas possibilidades de relação que se abrem por meio da participação na capoeira, dança e
teatro são de grande importância no processo de subjetivação, de amadurecimento, de
aprendizado, das e dos jovens sujeitos desta pesquisa. Conhecer outras pessoas, lugares,
histórias: outras referências para a vida, outros significados, tornam outras possibilidades de

13
Citando Turner (1982), o autor define a Erlebnis, ou experiência vivida, como composta por cinco etapas: “1)
algo acontece ao nível da percepção (sendo que a dor ou o prazer podem ser sentidos de forma mais intensa
do que comportamentos repetitivos ou de rotina); 2) imagens de experiências do passado são evocadas e
delineadas – de forma aguda; 3) emoções associadas aos eventos do passado são revividas; 4) o passado
articula-se ao presente numa “relação musical” (conforme a analogia de Dilthey), tornando possível a
descoberta e construção de significado; e 5) a experiência se completa através de uma forma de ‘expressão”
(DAWSEY, 2006, p. 18).
46
ser e de estar no mundo tangíveis. A ampliação do horizonte social nos grupos aos quais os
jovens se integram é fundamental para a conformação de uma subjetividade juvenil
emancipadora dos padrões familiares e escolares que os enquadram. Para Maria Rita Kehl,
tendo a sociedade ocidental perdido muito do que se considera história oral e seus ritos de
passagem, os coletivos de jovens oferecem outras referências culturais, permitem ao sujeito
transcender sua identidade individual originária e vislumbrar outras formas e dimensões do
sujeito (2004).
O fato de estar em sociedade acarreta um contínuo processo de modificação da
realidade subjetiva, de modo que, ao atuar, as pessoas vão criando significado, e,
como consequência, vão criando o seu próprio mundo (CARVALHO; BORGES; RÊGO,
2010, p. 159).

Participar desses grupos é ser e criar esses grupos ao mesmo tempo. Essa vivência oferece o
que o ensino escolar, na maior parte dos casos, não foi capaz de oferecer, por sua
fundamentação em princípios racionalistas e tecnicistas modernos de formação para o
trabalho com vistas à reprodução da ordem social (CASTRO, 2011, p. 302). Na perspectiva
do ensino formal, o foco é o desenvolvimento individual, voltado para a capacitação e
inserção no mercado de trabalho, deixando a participação em questões gerais da sociedade
e da coletividade em segundo plano (CASTRO, 2011, p. 302). Sobre o modelo escolar de
aprendizado, Castro afirma que está apoiado
num modelo de transmissão cultural visando ao desenvolvimento de uma forma
pura, unívoca e universal de razão desvinculada das emoções, da singularidade e
dos antagonismos. O processo de formação dos jovens se fundamentou sobre uma
perspectiva de formação individualizada em que cada um tem que dar conta de si,
do seu potencial, do seu desenvolvimento, o que não favoreceu articular
conhecimento e luta, teoria e práxis, self e alteridade. A preparação desses jovens,
tendo em vista principalmente o desenvolvimento de suas competências, forcluiu a
base viva de lutas e antagonismos, fazendo com que o conhecimento se
apresentasse como algo universal e inquestionável (2011, p. 303).

Proponho então, nesse sentido, compreender a contribuição dos grupos de teatro, dança
afro e capoeira na vida dos jovens que deles participam como facilitadores de uma
experiência de coletividade, que se contrapõe aos princípios individualizantes que o ensino
escolar e profissional promove. Lucas fala sobre o tema:
Eu acho que são todos assim interessados, assim, que compartilham, porque não
adianta a gente tá num grupo, se um grupo não pensar com a mesma cabeça, o
mesmo objetivo, não vai, tipo assim, se um pensar ‘ah! Eu não quero fazer isso!’ aí o
outro fala ‘mas eu quero fazer isso!’ vai ficar em atrito, aí vai acabar que vai
desfazer o grupo, isso tudo. Aí quando um fala, até quando eles falam uma ideia
assim eu aprovo, ou quando eu também não aprovo eu falo assim, ‘vamo tentar
modificar isso, e isso, e isso’ aí chega numa conclusão.

Tomo como chave analítica aqui o conceito de socialidade proposto por Magnani e Souza
(2007) e descrito por Pavão (2012, p. 222), em contraposição ao de sociabilidade14 utilizado

14
‘Sociabilidade’ que, segundo Pavão (2012) é um “conceito que se preocupa com a discussão de encontros,
formas de lazer, eventos e atividades sociais realizadas por estes grupos (...) como grupos sociais já
constituídos e precedentes à análise etnográfica” (PAVÃO, 2012, p. 222). Para a autora, este conceito está
47
por outros autores, por sua ênfase no caráter processual de constituição da vida social e da
intersubjetividade, através das relações sociais (PAVÃO, 2012, p. 222). Durante as
entrevistas e rodas de conversa realizadas para esta pesquisa, fica claro que a as relações
que se estabelecem entre os participantes dos grupos vai muito além dos momentos de
treino e ensaio, indicando a importância desses grupos enquanto espaços de encontro,
compartilhamento e aprendizado, capaz de ampliar horizontes sociais e transformar
perspectivas (ZALUAR, 1994, p. 65).
As aulas de dança afro, por exemplo, acontecem duas vezes por semana, mas a interação
entre os participantes não para por aí. Se reúnem como grupo ou em duplas, trios, de
acordo com as afinidades, também nos finais de semana, às vezes para fazer churrasco, ou
depois das aulas para comer cachorro-quente na pracinha ou lanchar nas barraquinhas que
fazem parte das festividades religiosas na cidade, ou ainda em outros horários para
apresentações em diversos locais da cidade, ou mesmo fora de Paracatu, como é o caso do
festival de Sagarana, município de Arinos ou outros eventos esporádicos, como discutirei no
próximo capítulo. Além disso, conversam diariamente pelo grupo de Whatsapp e outras
mídias sociais. Falar que faz parte do grupo é motivo de orgulho e de alegria para os
participantes do Afro N’Gonda, que se consideram amigos e mesmo uma família.
Os grupos de teatro são vários, e as e os jovens entrevistados não participam todos do
mesmo grupo, mas mesmo assim relatam se encontrar e se convidar mutuamente para
trabalhar juntos em alguns eventos, oficinas, festivais, ou simplesmente para conversar,
“trocar ideia” ou por acaso na rua. As aulas dos grupos formalizados, como o Cênikas e a
oficina da Hora do Conto, acontecem duas vezes por semana cada, sendo que o Cênicas
conta ainda com horários de ensaios para apresentações. Estes grupos ensaiam,
respectivamente na Casa de Cultura e na Fundação Conscienciarte. Alguns jovens como Iuri
e Lucas participam tanto do Cênikas como da Hora do Conto, outros já não participam mais
de nenhum grupo organizado, mas continuam fazendo parte das redes de socialidade e
fazem apresentações em eventos da cidade. O grupo Voz, por exemplo, que funciona
informalmente, se encontra e ensaia de acordo com seus projetos em andamento e com a
disponibilidade dos participantes, e ensaia, normalmente na praça em frente à Igreja Matriz
de Santo Antônio. No momento da escrita deste texto, o grupo Voz se dissolveu, sendo que
Duda e João se consideram hoje “um grupo de dois”. Esses grupos promovem eventos como
o Festival de Teatro de Paracatu (FESTEPA) que traz oficinas e apresentações de fora da
cidade, assim com também viajam para participar de eventos semelhantes de intercâmbio
com outros grupos.
Os grupos de capoeira são também múltiplos e não existe um consenso mesmo quanto ao
número de grupos na cidade ou quanto ao número de pessoas envolvidas em cada um. Eles
estabelecem seus horários e frequências de treino, em espaços públicos, institucionais, ou
privados e se encontram e interagem nas rodas abertas que cada grupo organiza. O Axé

baseado em uma noção das relações sociais como estáveis e pré-existentes à situação da pesquisa, tomando o
grupo como uma entidade empiricamente dada.
48
Dendê, por exemplo, com frequência quinzenal aproximadamente, promove uma roda na
praça Firmina Santana, outros grupos têm rodas mensais e eventos esporádicos também,
como o Papoeira, batizados e trocas de cordas. Cada um desses coletivos desenvolve suas
próprias dinâmicas internas de funcionamento, e eu foco aqui no grupo Axé Dendê, do qual
participei enquanto aluna durante o ano de 2016.
O grupo Axé Dendê é constituído por núcleos em diversas cidades e estados do Brasil, entre
eles, Goiás, São Paulo e Minas Gerais. Esses grupos se comunicam continuamente via grupo
de WhatsApp e se convidam mutuamente para eventos, para quais os capoeiristas mais
graduados, como monitores, instrutores, professores, contramestres e mestres, viajam para
participar. Cacau atende também a eventos de outros grupos de capoeira, como o N’Golo e
o Beriba Azul, em Brasília, e outros também em São Paulo, Minas Gerais e até Pernambuco.
Em novembro de 2016 aconteceu o evento anual do Axé Dendê de Paracatu, que trouxe
mestres e outros graduados de Brasília e de São Paulo, do mesmo ou de outros grupos,
permitindo o acesso também aos alunos mais jovens, às crianças e a parceiros de outros
grupos de capoeira de Paracatu, à interação com essa diversidade de pessoas e formações
de capoeira. As redes de socialidade se configuram assim de maneira dinâmica, e as
partilhas acontecem a cada encontro, de forma não homogênea ou previsível.
Concluo com essa passagem para ressaltar a maneira como o espaço dos grupos dos quais
trato nesse trabalho são lugares privilegiados de interação entre as pessoas, capazes de
oferecer elementos importantes para os processos de subjetivação de cada jovem que deles
participa, vinculados principalmente às relações que ali se estabelecem e à coletividade que
se forja a partir delas:
Me marcou uma situação na qual o grupo de dança Afro N’Gonda se preparava para
um evento do qual participariam com algumas apresentações. Era um evento
grande do grupo Axé Dendê, para o qual tanto o Afro N’Gonda como o Axé Dendê
viajariam até Mineiros, Goiás, e passariam todo o final de semana nas atividades. Eu
acompanhei o último ensaio e percebi que os dançarinos e dançarinas se
desconcentravam muitas vezes. Cacau, depois de várias correções e chamadas à
15
atenção, pediu que fizéssemos uma roda , todos abraçados, e, depois de uma
breve reflexão sobre o grupo e as relações de amizade e proximidade entre os
integrantes, propôs que cada um que chegasse ali para fazer aula deixasse de fora
os problemas de casa, do trabalho, para que aproveitasse aquele momento estando
totalmente presente (Caderno de campo, outubro de 2016).

2.1.2 Comunidades de aprendizado e o exercício da criatividade


Compreendendo os grupos de dança afro, de teatro e de capoeira como espaços coletivos
de criação de significados, de transformação das subjetividades e de criação de potenciais
de comunicação e ação na realidade vivida, proponho nesta seção desenvolver reflexões
sobre a criatividade inerente a essas práticas artísticas e culturais. Algumas perguntas que
orientam esse caminho reflexivo são, portanto: O que buscavam os jovens ao entrarem para
esses coletivos? Por que permaneceram? Que tipo de aprendizado é relatado pelos jovens

15
Eu, que até então estava só observando e tirando fotos e vídeos, também fui convidada a participar deste
momento.
49
entrevistados e observado durante a pesquisa? Como a participação e o pertencimento a
esses grupos possibilita o desenvolvimento de formas heterodoxas e contra hegemônicas de
percepção e experiência do mundo?
Eu acredito que a gente luta por um mesmo ideal, né, acredito que por causa disso,
por a gente lutar pelas mesmas causas, defender as mesmas causas, é o que mais
une a gente lá dentro. Tanto que uns entram pra saber o que é e acaba que sai
porque a ideia não bate, outros entram e acabam amando e fica, então assim, eu
acho que o que une a gente é essa ideia mesmo da gente amar os outros e respeitar
o outro como ele é. (...) Aprender a respeitar a diferença dos outros (Joanine, 19
anos).

Nesse sentido, os grupos acompanhados durante esta pesquisa podem ser compreendidos
como comunidades de aprendizado que, segundo Merriam (2001) podem ser definidas
como
feitas de pessoas que compartilham um objetivo comum. Elas colaboram para
aproveitar as capacidades individuais, respeitam uma variedade de perspectivas, e
promovem ativamente uma variedade de oportunidades. Os resultados são a
criação de um ambiente vibrante, sinergético, o fortalecimento dos potenciais de
16
todos os membros e a possibilidade de criação de novos conhecimentos (p. 41) .

Ainda para esta autora, “o conhecimento é construído por aquele que aprende. Fazendo
sentido de suas experiências, o aprendiz testa valores e atitudes anteriores contra os de
outras pessoas, o que é ainda mais importante em comunidades de aprendizado”
(MERRIAM, 2001, p. 38)17. No mesmo sentido, Tim Ingold argumenta que aprender é
improvisar, mesmo em situações que envolvem repetição (2010), e alinha a percepção do
mundo e o fazer sentido dele em um processo contínuo de criatividade por parte dos
sujeitos. Para o autor, aprender é como executar uma receita culinária, na qual o caminho
está indicado, mas o que está in between, ou nas entrelinhas, só pode ser descoberto e
criado na prática. Continuando com a metáfora culinária, ele sugere que o mundo real pode
ser comparado a uma cozinha, na qual materiais são continuamente e diversamente
misturados, as tampas das panelas são abertas para que as substâncias se encontrem e
produzam novas receitas (INGOLD, 2010).
O encontro das juventudes com as práticas de capoeira, de teatro e de dança afro equipa as
‘cozinhas’ os novos ‘ingredientes’ e ‘utensílios’ oferecendo novos elementos para a
experiência individual e coletiva de cada um. Esses espaços podem ser considerado então
como comunidades de aprendizado, e em conjunto também como uma grande
comunidade, uma vez que muitos dos jovens entrevistados participam ou já participaram de
mais de um desses núcleos.

16
Tradução livre da autora. No original: "Learning communities are made up of people who share a common
purpose. They collaborate to draw on individual strengths, respect a variety of perspectives, and actively
promote learning opportunities. The outcomes are the creation of a vibrant, synergistic environment,
enhanced potential for all members, and the possibility that new knowledge will be created".
17
Tradução livre da autora. No original: "Learning cannot be taught, but must be constructed by the learner.
The learner, in making sense of experiences, tests previously held values and attitudes against those of others
(opportunities for which are enhanced in a learning community)".
50
A entrada das e dos jovens nos grupos de teatro é justificada nos depoimentos por razões
diversas que, no entanto, se atrelam às suas experiências passadas. Luiz, membro do grupo
Cênikas de teatro, conta que começou a se interessar pela atuação artística quando
participava do grupo de jovens da igreja a qual frequentava. Ele afirma que ficou instigado a
encenar peças relacionadas também a outros temas que não o religioso, e buscava, ao
mesmo tempo “fugir dos problemas de casa, fazer o que gosta e esquecer do resto”, o que o
levou a frequentar as aulas de teatro da Casa de Cultura todos os dias da semana. Outros
jovens atores como Jean, também do grupo Cênikas e do Afro N’Gonda, e João, do Grupo
Voz de Teatro, contam que buscaram no teatro elementos para enriquecer práticas
artísticas que já desenvolviam, como a música e a poesia, mas acabaram se envolvendo para
além disso. João, por exemplo, afirma que buscava “fazer alguma coisa que não tinha feito
ainda e usar para coisas que eu já tinha (...), dar mais vida para os meus textos”. Ele, assim
como Lucas e Helenice, também do Cênikas, indica o interesse em uma formação que o
instrumentalize para a vida profissional, que o ajude a “perder a vergonha” ou a aprender a
falar em público.
Entre as e os capoeiristas e dançarinos do Afro N’Gonda, o primeiro contato com os grupos
dos quais participam veio, em geral, através de apresentações nas escolas em que
estudavam na época. Este encontro se deu, na maior parte das vezes bem cedo, aos 11, 12
ou 13 anos, no caso dos capoeiristas com quem conversei ao longo da pesquisa, e um pouco
mais tarde para as e os dançarinos entrevistados18. Em todos os casos a expectativa inicial
parece sempre ter sido ultrapassada em riqueza de significados, de possibilidades de
aprendizado e de experiências vividas a partir da participação nos grupos.
A figura dos professores aparece como grande incentivadora, facilitadora e apoiadora das
descobertas pessoais e dos processos de criação individual e coletivo. “O mestre é igual um
pai, um avô, um sábio. Já passou por toda dificuldade e tá ali. (...) O valor que dá pra um
professor de capoeira é muito mais que um professor de escola”, afirma Claudiniz,
capoeirista, em entrevista para esta pesquisa. Há abertura nos grupos de teatro para a
proposição de textos e performances autorais, assim como no Afro N’Gonda os alunos são
incitados a criar aulas para os colegas e, na capoeira, os aprendizes são por vezes,
convocados a facilitar treinos, como apontam vários dos relatos. Perguntei ao Alisson como
tinha se sentido após ministrar a aula de dança que preparou para sua turma. Ele recebeu
várias felicitações dos companheiros e professores através de mensagens pelo grupo de
WhatsApp do Afro N'Gonda, do qual eu também participo, e me respondeu que “Foi legal,
eu fiquei muito tenso, esqueci os passos (risos). Dar aula pros professores não á fácil”.
Os professores apontam o caminho, dão a receita, para revisitar a metáfora de Ingold,
acompanham os processos, mas a criação é de cada um e do coletivo. Iuri conta de jogos
teatrais propostos por professores de teatro que ensinam sobre trabalho em grupo,
18
Cabe ressaltar, no entanto, que o Afro N’Gonda é um grupo recente e que tem em sua composição também
crianças de 11 e 12 anos, e que Fagner, um dos capoeiristas entrevistados, afirma que chegou à capoeira
depois de assistir a uma apresentação de Maculelê também nessa idade, executada na época por um grupo de
capoeira.
51
confiança e comunicação e sobre questionar as instruções dadas, pelos próprios
professores. Viviane relembra como começou a facilitar treinos de capoeira muito nova e de
como isso afetou sua vida:
19
Porque eu comecei a treinar e logo meu pai me botou pra puxar treino, eu com
doze, treze anos dando treino pros meninos... tinha que ser exemplo, entendeu?
Porque eu estudava na mesma escola que os meninos, e se eu fizesse alguma coisa
‘pô, Viviane tá fazendo isso!’.

Permitir o exercício da criação e da autonomia pelos alunos e participantes dos grupos


valoriza a possibilidade de apropriação pelas e pelos jovens da linguagem corporal e musical
como a sua própria. Perceber-se nessa posição, deparar-se com as dificuldades e limites de
sua atuação, dar-se conta das ausências e do esforço exigido para atingir suas metas,
contribui de maneira fundamental para a construção pessoal de referências, já que, nas
palavras de Melucci, “a definição e o reconhecimento de limites pessoais e externos é a
chave para se mover em qualquer direção” (2007:39). Passar pelas dificuldades do caminho
escolhido permite um olhar de outra perspectiva sobre si mesmo.
Na capoeira pude acompanhar aulas de crianças e de adultos, bem como conversar em
entrevistas com jovens de diferentes grupos. Participar de um deles apresenta ao jovem,
assim como no teatro e na dança, outros modelos de relação, entre colegas e com os mais
experientes, mestres e professores. Além de exemplos, essas figuras têm muitas vezes
autoridade para aconselhar não só no âmbito da capoeira, mas também em assuntos
pessoais de seus alunos, oferecendo o apoio emocional que muitas vezes a estrutura
familiar e social não comporta. Esse apoio emocional se faz desde as turmas infantis, nos
projetos sociais do Mestre Gilvan e do Contramestre Cacau como, por exemplo, o
“Capoeirista Bom de Nota”, no qual Cacau observa o desempenho das crianças na escola,
acompanha os cadernos e boletins e premia ao final do ano com materiais escolares e de
capoeira aqueles que não tiveram nenhuma nota vermelha ou abaixo da média. Uma
situação particular me chamou a atenção quando, na ocasião do aniversário de um de seus
alunos, de aproximadamente oito anos, que havia perdido a mãe recentemente, Cacau e
Rose organizaram, juntamente com a família da criança e vizinhos de bairro que também
participam das aulas, uma comemoração durante a aula de capoeira. Nesse dia, escrevi no
meu caderno de campo:
Foi de um cuidado e um carinho muito grande essa iniciativa. A família dele foi, a
Tati, sua vizinha com quem sempre chega nas aulas, fez um bolo com miniaturas de
berimbau, gunga e pandeiro, Rose fez cachorro quente, com o qual contribuímos
para pagar, e as crianças levaram refrigerante. Depois de fazer uma roda na qual
todo mundo jogou com o aniversariante, Cacau reuniu todos em volta da mesa de
lanche e disse que que considerava todos ali filhos dele, que era uma festa de
aniversário do Júnior mas que comemorava também todos os aniversários já
passados. O menino ficou emocionado que até caiu sua pressão. Ele deu o primeiro
pedaço de bolo para a sua tia, que ele agora chama de mãe, e foi uma festa.
(Caderno de campo, setembro de 2016)

19
‘Pai’ em referência ao seu professor de capoeira, a quem começou a chamar de pai, como será apresentado
a seguir.
52
A relação com os mestres20 ou outros capoeiristas que coordenam as aulas de capoeira é
marcada pelo respeito à autoridade dos mais graduados, em uma estrutura hierárquica que
valoriza o saber e a experiência acumulados por aqueles que já estão na capoeira há mais
tempo. No entanto, todos são incentivados a participar, apoiados também pelos colegas
que contribuem nas propostas e correções dos movimentos. No cotidiano das aulas
observa-se o incentivo e a colaboração entre os alunos, conversas que vão para além dos
momentos de aula, encontros de fim de semana, rodas nos diferentes bairros. As relações
que se estabelecem nesses espaços são de tal natureza que as fronteiras entre amizade,
aprendizado e família tornam-se maleáveis. Viviane, por exemplo, passou a chamar de ‘pai’
o seu primeiro professor de capoeira, e afirma sobre seus colegas:
Os menino tudo pra mim, gente. (...) Quando tem um dos menino que treina comigo
que é aquele grupinho nosso lá jogando, ou, nossa, se um cair, é como se tivesse
batido na minha cara, é como se fosse um filho meu, eu nem tenho filho, mas é
como se fosse um filho meu, é família mesmo, tá no sangue, é inacreditável, é igual
assim um irmão seu. (...) Você sente, é uma coisa tão esquisita, você sente e não é
família, mas é como se fosse família mesmo.

Outros alunos que têm filhos levam-nos para também participar das aulas e das rodas. Os
integrantes do Axé Dendê têm o hábito, nas palavras de Cacau, “de falar que é uma família,
justamente por causa dessa integração, do tá o dia-a-dia junto, né, de tá fazendo as coisas
em comunhão, a gente almoça junto, faz um churrasco”. A comparação do grupo com uma
família acontece também no Afro N’Gonda, como alguns dos participantes descrevem:
É uma família que se empenha em espalhar a cultura pela cidade, pela nossa cidade.
Pela cidade, pela região... com um só propósito, divulgar a cultura afro brasileira
pela cidade, pela região (Joanine, 19 anos).

Uma família, porque a gente tem relação fora aqui do museu, a gente divide coisas
do dia, a gente tem os mesmo problemas , a gente para, a gente conversa, a gente
ganha conselho de amiga, a gente ganha conselho da professora... e diversificada
ela tá aberta a receber todo tipo de gente, é bom lembrar isso porque tem muita
diversidade (Alisson, 19 anos).

É um grupo que busca o resgate da cultura afro, a proposta seria de um grupo


cultural dentro de um espaço público, mantido pelo poder público e que foi muito
além disso... veio família, veio amigos, veio pessoas desconhecidas que se tornou
uma família, pessoas que mudou alguma percepção, alguma forma de ver o mundo,
de ver as pessoas, de respeito, é um grupo que ultrapassou as expectativas até das
pessoas que se propuseram a trazer um grupo, a fazer um grupinho de dança, para
apresentar, para mostrar a cultura de Paracatu. Não, ele foi muito além disso. Ele é
um grupo que tem objetivos, tem participação efetiva e que defende com unhas e
dentes, né, direitos, e qualquer tipo de tolerância, eu acho que ele acrescenta muito
na questão de um grupo que se tornou forte, que se tornou família, como os
meninos disse, dentro de uma proposta que era só um grupo cultural. Então ele
avançou além disso (Rose, 39 anos).

20
A capoeira regional funciona baseada em uma organização hierárquica de graduação no qual o mestre é a
patente mais alta, sendo seguido por contramestre, professor, instrutor e monitor. A identificação desse
sistema se dá pela cor da corda com a qual se amarra o abadá (calça utilizada para o jogo de capoeira). Em
Paracatu os grupos de capoeira são liderados por mestres ou contramestres de diferentes grupos de capoeira,
entre eles, Axé Dendê, Capoeira Arte Mundial e Ave Branca.
53
Esse ambiente de coletividade e de colaboração reforça a compreensão desses grupos como
comunidades de aprendizado, lugar de cuidado e ajuda mútuos, de construção de confiança
recíproca entre colegas e entre colegas e líderes, condição sine qua non para o trabalho
cooperativo com efetiva troca de experiências e favorável para a elaboração de novos
conhecimentos (MERRIAM, 2001, p. 39).

2.1.3 Afetar-se: as intensidades do processo


Além do aprendizado técnico, o aprendizado emocional que decorre da vivência nos grupos
é parte fundamental do processo, como já foi indicado anteriormente, e aparece de
maneira marcante nas falas dos sujeitos desta pesquisa. “Eu descobri que o que acontece
comigo acontece com todo mundo, o que ele passa eu também passo” afirma Gustavo, do
grupo Cênikas, durante a roda de conversa que organizamos. João acrescenta: “Eu trago
tudo pra minha vida, exploro as emoções (...) Pego as coisas pro João e pro João ator”.
Daiane acrescenta que “não é só fazendo teatro que você faz teatro, você aprende em tudo,
especialmente nas relações mais difíceis, com a minha mãe por exemplo (...) você pode ser
o que quiser, você pode ser enfermeira e estar ali aprendendo teatro”.
Nesse sentido, Thompson (1981) explica que “as pessoas não experimentam sua própria
experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento (...) Elas também experimentam
sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura” (p. 189 apud
BACELAR, 2014, p. 72). A afirmação de Jeanne Favret-Saada corrobora essa observação:
quando se está em um tal lugar, é-se bombardeado por intensidades específicas
(chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis. Esse lugar e as
intensidades que lhe são ligadas têm então que ser experimentados: é a única
maneira de aproximá-los (1968, p. 159).

Daiane, do Grupo Voz de Teatro, afirma que se sentiu “mais realizada nos ensaios, nas
dificuldades, no aprendizado, do que na própria apresentação”. O aprendizado pessoal que
se dá nas relações com os colegas de grupo é tema recorrente nas falas das e dos jovens
entrevistados. Jean reafirma a importância dessas relações ao colocar que o teatro
“proporciona pessoas com quem você convive e fazem você se transformar”, sendo que
para ele é a partir dessas pessoas e das relações que com elas estabelece que se desenrolam
os principais aprendizados. Seja no âmbito da criação e da técnica, no apoio mútuo, no
exemplo, na troca e compartilhamento de informações dentro de cada grupo e entre os
integrantes dos diversos grupos ou no amadurecimento emocional dos jovens a partir das
questões que surgem na convivência e nos desafios cotidianos, o aprendizado é constante.
Uns observam o progresso dos outros e reconhecem, por exemplo, a pessoa que era muito
tímida e ‘se soltou’, ou a maior facilidade em mostrar e lidar com o próprio corpo e o corpo
do outro. O aprendizado se dá ainda através de situações desafiadoras de autogestão, como
é o caso do Grupo Voz, ou ainda de negociar entre as diversas demandas que se impõe ao
cotidiano de cada um, seja a família, a escola, o trabalho ou os ensaios e rodas. “Você faz o
que você gosta ai fica mais fácil, um ajuda o outro” afirma Luiz.
Eu fui no teatro buscando diversão e eu encontrei o triplo a mais de diversão que eu
queria. (...) Eu entrei no teatro mais por diversão e eu descobri muita coisa, eu acho
54
que eu me sinto mais seguro de muitas coisas depois desse tempo que eu tô no
teatro, seguro até com a própria insegurança, sabe, ‘eu sou inseguro, tudo bem,
agora a gente vai trabalhar isso’, essa segurança é muito boa (João, 25 anos).

Os depoimentos indicam que o teatro se torna uma chave de compreensão do mundo, uma
linguagem através da qual o sujeito pode revisitar e ressignificar suas relações pessoais,
familiares, profissionais, e todas as situações do seu cotidiano. Duda sintetiza bem essa
observação ao relatar sua resposta quando questionada a respeito de sua formação em um
evento acadêmico. Ela afirma: “minha formação são as experiências que eu tenho”. Luiz
completa a ideia reforçando que “amizade, superação, não enche o seu currículo, mas
enche você mesmo, uma bagagem inteira, me dá certeza de que não posso desistir (...) o
que vale de verdade é o que a gente vive, o que a gente sente”. Dayrell comenta, nesse
sentido que
Sob essa perspectiva, há uma tendência de encarar a juventude na sua
negatividade, o que ainda não chegou a ser (SALEM, 1986), negando o presente
vivido. Essa concepção está muito presente na escola: em nome do “vir a ser” do
aluno, traduzido no diploma e nos possíveis projetos de futuro, tende-se a negar o
presente vivido do jovem como espaço válido de formação, assim como as questões
existenciais que eles expõem, bem mais amplas do que apenas o futuro (2007, p.
156).

Maria Rita Kehl aborda o tema da seguinte maneira:


A desvalorização da experiência esvazia o sentido da vida. Não falo da experiência
como argumento de autoridade - ''eu sei porque vivi''. Sobretudo numa cultura
plástica e veloz como a contemporânea, pouco podemos ensinar aos outros
partindo da nossa experiência. No máximo, que a alteridade existe. Mas a
experiência, assim como a memória, produz consistência subjetiva. Eu sou o que vivi
(2004, p. 4).

Assim como o depoimento de Daiane fala de sua experiência como vivência física,
emocional, presente, na capoeira, os relatos são também cheios de emoção quando se trata
do que foi aprendido durante a vivência no grupo. Viviane afirma que a:
Capoeira me deu incentivo! eu tinha o que, 12 anos quando comecei, eu tava me
descobrindo, é a fase que a gente se descobre, quem eu sou, que que eu vou ser,
entendeu? (...) A capoeira, em si, pra mim, na minha história, me ajudou muito,
porque eu desenvolvi, eu não conversava com ninguém, eu não falava com
ninguém, eu tinha vergonha de tudo, por muitas coisas que me aconteceram.
Desenvolvi isso na capoeira. (...) Se eu não tivesse entrado na capoeira eu não seria
quem eu sou hoje.

E no Afro N’Gonda, Rose confirma:


As pessoas chegam até nós cada um com um certo tipo de carência, uns falam
demais outros falam nada. (...) Vem com o intuito de aprender, a busca, quando fala
que hoje a gente vai conversar, que é teórica, às vezes acha ate mais interessante,
sendo que nem todos tem ascendência negra. Se autoidentificaram com a proposta,
a maioria vem resgatar alguma coisa, seja autoestima, conhecimento, abraço, o
toque, o cuidado, a união, se fortalece dentro da proposta da cultura, mas a gente
fala da comida, da família, do trabalho, não é só a aula, o outro se identifica, a
conversa é parte importante, necessidade da troca de experiência, do respeito, do
espaço do outro, e é bom porque fortalece.

55
Ressalto novamente o quanto a convivência permite ao sujeito se colocar em questão, se
perguntar quanto aos seus padrões familiares de relacionamento, a sua experiência e
aprendizado escolar, seus outros círculos de amizades. Os grupos de dança afro, capoeira e
de teatro se constituem enquanto lugares privilegiados de interação, por permitir que os
sujeitos se encontrem com novas referências de comportamento, de relação, de estética, se
comparadas às suas referências anteriores.
No Afro N’Gonda, por exemplo, observei diversas vezes que as aulas acontecem respeitando
o ritmo do grupo. Todos dão palpites, reclamam, se corrigem e fazem piadas rindo uns dos
outros. A liderança dos professores Cacau e Rose é clara, porém suave, sendo também mais
impositiva quando necessário, o que acontece principalmente antes das apresentações, de
forma a trazer o foco das e dos dançarinos de volta à aula.
Uma atividade interessante proposta por Rose e Cacau foi que cada aluno preparasse uma
aula para os demais, com total liberdade para criar, baseando-se cada um em um
determinado ritmo. Essa atividade era preparatória para um evento no qual os alunos
seriam os responsáveis por ministrar as aulas de dança afro. Se comparada a uma situação
de aula comum, escolar, ou em outros ambientes de aprendizado, o professor costuma ser
considerado como o detentor por excelência do saber, que é então transmitido como
conhecimento-objeto aos “alunos”, que como a própria etimologia da palavra anuncia, são
compreendidos como destituídos de luz ou conhecimento próprios. Esse tipo de relação,
experimentada geralmente por todos nós nos ambientes escolares é subvertida na relação
com os mestres nos grupos estudados, possibilitando processos de criação horizontal e
compartilhado entre colegas e professores.
No teatro, observei situações semelhantes quando, no grupo Cênikas, o diretor Gueber
incentivou a montagem da performance “Humano R$ 1,0”, concebida por alguns dos jovens
participantes do grupo. Segundo eles, a decisão sobre qual peça será montada e
apresentada é tomada coletivamente. Na Hora do Conto, a professora Rose incentiva aos
participantes com a função de monitores, dirigir a montagem composta por seus próprios
colegas de oficina, favorecendo o exercício criativo e também a experiência de liderança
daqueles com mais tempo de teatro21. No Grupo Voz essa experiência é amplificada por não
haver a figura de uma direção clara, sendo esta função dividida entre os componentes. Cada
dia de ensaio um deles propõe as atividades, e as funções administrativas são também
compartilhadas. Além disso, a última peça encenada, montada e dirigida por eles próprios
foi concebida a partir do texto de um dos integrantes, o que reforça a qualidade de
autonomia, criação e autogestão, que a experiência de participar de grupos como estes
pode proporcionar, e têm características muito diversas, e muitas vezes opostas, às das
experiências escolares e familiares vivenciadas por esses sujeitos.
O grupo de capoeira que acompanhei de perto é também coordenado por Cacau e suas
características como liderança são observadas também nesse grupo. No entanto, a capoeira

21
Os alunos monitores, Jean e Caroline, são participantes há mais tempo de outros grupos de teatro,
respectivamente Cênikas e Grupo Voz.
56
regional está estruturada em uma hierarquia de relações de acordo com a graduação do
capoeirista, o que lhe confere mais reconhecimento de acordo com a sua experiência,
tempo de capoeira, precisão técnica, normalmente refletida em seu título e cor da corda
que amarra o abadá. Nesse sentido, a organização das aulas e das rodas não se dá de forma
tão espontânea, por dever de respeito à autoridade dos mais experientes. Ofereço como
exemplo o processo de entrar na roda enquanto uma dupla de capoeiristas já está ali
jogando. Uma pessoa que participa da roda e quer “comprar” o jogo só pode tirar da roda o
capoeirista que for menos graduado do que ela, nunca um mais graduado. No entanto, nas
rodas de iniciantes ou de crianças algumas exceções são concedidas, a título de aprendizado
e para que os menos experientes aproveitem melhor a oportunidade para entrar na roda e
aprendam com o seus veteranos. Nesses acordos, alguns tácitos e outros explícitos, os
capoeiristas negociam sua participação na roda, escolhem com quem jogar, admiram a
postura de outros capoeiristas técnica e subjetivamente e se posicionam enquanto sujeitos.
Aquele que toca o berimbau ou o atabaque pode começar uma nova música que deve
refletir ou incitar novas situações do/no jogo, agindo assim ativamente sobre a situação que
se apresenta.
Sobre o aprendizado da capoeira, Zonzon reforça a “profundidade e a abrangência dos
saberes adquiridos ao longo desse processo”, o que vale também para os demais grupos aos
quais se refere este trabalho, compreendendo-os como formas de experiência e
comunicação, de interação, portanto, com o mundo.
se trata de um tipo de aprendizagem por imersão e convivência numa coletividade,
ou seja, é através das experiências corporal e sensorial propriamente ditas,
partilhadas num meio em que todos se dedicam a aprender e praticar a capoeira,
que se constituem novos habitus (2011, p. 146).

Para além da convivência entre os jovens e da experiência do teatro enquanto linguagem


possível nos processo de subjetivação, o momento da apresentação também se configura
enquanto etapa importante do aprendizado desses sujeitos. A reação do público é apontada
como um fator de aprendizado tanto pelos jovens atores e atrizes como pelas dançarinas e
dançarinos do Afro N’Gonda. “A reação do público é gratificante, faz querer apresentar de
novo e perder o medo”, afirma Joanine. Sofia acrescenta que “mesmo quando a gente erra
as pessoas acham bom e isso incentiva a querer melhorar”. A reação da plateia do teatro foi
indicada também como elemento desafiador, tendo sido considerada por vezes ‘fácil’, como
é o caso do público infantil ou idoso, ou mais ‘difícil’ como foram considerados os jovens e
adultos. “É mais difícil tirar um sorriso de quem está de terno e gravata, mas se aprende
mais”, afima João.
Em estudos sobre outras formas de arte e cultura periféricas as observações desta pesquisa
sobre as formas de relação de reciprocidade, apoio e confiança que nelas se estabelecem
encontram eco como, por exemplo, na pesquisa de Dayrell (2003) entre jovens rappers e
funkeiros. O autor afirma que o que o rap é tratado por um de seus interlocutores como
“um dos poucos espaços, além da família, em que encontra apoio, pode estabelecer trocas e
elabora projetos que dão sentido à sua vida no presente” (DAYRELL, 2003, p. 46). Merriam,
57
citando Brown e Duguid, argumenta também sobre as condições em que a vivência nesses
espaços acontece
As pessoas envolvidas ignoram divisões de categoria ou papel para forjar um grupo
único em torno do trabalho compartilhado, com conhecimento que se sobrepõe,
fronteiras relativamente flexíveis e uma identidade de trabalho comum. (...)
Independentemente se a tarefa é considerada de alta ou baixa importância, a
prática é um professor eficaz e as comunidades de prática formam ambientes ideais
22
de aprendizado (BROWN & DUGUID, 2000, p. 127 apud MERRIAM, 2001, p. 40) .

Nos grupos de capoeira, dança afro e de teatro, as juventudes têm a possibilidade de


experimentar outras formas de coletividade e de aprendizado horizontal, além do encontro
com uma história de ancestralidade e negritude pela capoeira e dança afro, ou com a
história da cidade e da literatura, em geral, através do teatro, oferecendo a possibilidade de
novos ancoramentos da experiência dos jovens com seu passado. Esse processo é de
envolvimento, de implicação. Não é possível passar por ele verdadeiramente sem deixar-se
afetar.

2.2 Narrativa
Proponho agora tentar compreender as práticas da capoeira, da dança afro e do teatro
como formas de narrativa, exercícios do fazer sentido de si e do mundo através dos
instrumentos e das lentes adquiridas pelas juventudes nessas experiências. Essas atividades
oferecem às juventudes um arsenal de ferramentas para a compreensão dos processos
individuais e coletivos pelos quais passam, acessando temas como a ancestralidade, a
cultura afro, a história do lugar, entre tantos outros que, aliados à criatividade e as vivências
corporais, estéticas, musicais de cada uma dessas linguagens e à criatividade do próprio
sujeito, tem a o potencial de transformar a percepção de si no mundo, de seu passado, seu
entorno, e assim também de seu presente, seus desejos e projetos de futuro.
“A narrativa é um acontecimento infinito, na qual a experiência se constrói e se reconstrói
na medida em que é narrada” afirma Ferreira (2016, p. 112), em sua interpretação de
Walter Benjamin. Nesse sentido, corroborando a perspectiva já definida anteriormente de
cultura como processo e como resistência de visões de mundo não hegemônicas, gostaria
de propor a compreensão da dança, da capoeira e do teatro como narrativas da cultura que
se fazem por meio da oralidade, musicalidade e corporeidade. Para Bosi:
a memória oral é um instrumento precioso se desejamos constituir a crônica do
quotidiano. (...) Os velhos, as mulheres, os negros, os trabalhadores manuais,
camadas da população excluídas da história ensinada na escola, tomam a palavra. A
história, que se apoia unicamente em documentos oficiais, não pode dar conta das
paixões individuais que se escondem atrás dos episódios. (...) A memória oral, longe
da unilateralidade para a qual tendem certas instituições, faz intervir pontos de
vista contraditórios, pelo menos distintos entre eles, e aí se encontra a sua maior
riqueza (2003, p. 15).

22
Tradução livre da autora. No original: “People involved ignored divisions of rank and role to forge a single
group around their shared task, with overlapping knowledge, relatively blurred boundaries, and a common
working identity. (…) Whether the task is deemed high or low, practice is an effective teacher and the
community of practice an ideal learning environment”.
58
Narrar a sua própria história a partir de outras linguagens, acessando a criatividade e
descobrindo relações com uma ancestralidade à qual até então não se tinha acesso, é fazer
novo sentido da experiência vivida. Novos sentidos aí se constroem e permitem outras
possibilidades de interpretação do presente e de projeções de futuro. A interpretação da
memória e do passado é necessariamente marcada pela experiência dos sujeitos, que
seleciona os fatos e informações e imprime a eles sua marca individual. Ao contar das
narrativas de mulheres quilombolas do Mato do Tição, Jaboticatubas/Minas Gerais, Maria
Raquel Sales Ferreira afirma que na narrativa formulada por Dona Nilse, sua interlocutora:
está investida e organizada sua própria experiência, que, por sua vez, enleva-se no
efêmero momento do narrar. A narrativa não só pode organizar a experiência como
um modo narrativo se faz na experiência e no modo de vivê-la. Quando tece, com
maestria, os fios da lembrança e do esquecimento, do vivido e do entendido, ela
transforma sua experiência em algo transmissível. Ouso comparar essa artesania à
artesania do Marambá, também lavrada por D. Nilse com perfeição: Marambá é um
pano que desfia ele e depois tece outra vez. Assim, tramam-se as narrativas: a cada
vez que são contadas, as experiências são desfiadas e tecidas, novamente fiadas,
desfiadas, tecidas. Assim se dá a narrativa do quilombo, do Matição (2016, p. 131).

A memória oral dá conta de universos de significados não acessados na escola ou outros


instrumentos formais de ensino e aprendizado. Essas narrativas se constroem, portanto,
também nas subjetividades, quando um jovem se descobre negro no processo, ressignifica
seu cabelo afro como símbolo de resistência, ou busca conhecer mais sobre suas raízes,
como escutei em diversos relatos ao longo do trabalho de campo. A memória do lugar e da
ancestralidade, ou o ‘acontecimento lembrado’ que se reinventa nessas práticas dá margem
a um sem número de desdobramentos que me esforço para traduzir em texto. No entanto,
pelo próprio argumento da precedência de significação da prática e da oralidade sobre a
escrita, tomado como pressuposto neste trabalho, não tenho pretensão de esgotar aqui
todas as maneiras pelas quais esses grupos se apropriam da substância social da memória
(BOSI, 2003, p. 16) uma vez que a criatividade do narrar, da cultura, dos sujeitos, não tem
limites.

2.2.1 Narrativas que se fazem pelo corpo


Trago aqui um conjunto de relatos que convida a pensar a prática corporal e musical da
capoeira, da dança, do teatro, como atividade simbólica, forma de aprendizado e forma de
narrativa que se contrapõe à racionalidade moderna da escrita, que possibilita a experiência
do saber e conhecer o mundo e a si mesmos partindo da linguagem corporal, musical,
cênica. Narrativas apropriadas pelas juventudes para reinventar a história do lugar, a
história dos negros, as suas próprias histórias. A escolha de se tornar narrador dessas
histórias é uma iniciativa insurgente e eminentemente política, que se contrapõe às versões
oficiais da história do Brasil, da colonização, da escravidão e das histórias contemporâneas
de opressão e silenciamento experimentados pelas juventudes, pelas mulheres, pelos
negros, povos e comunidades tradicionais, LGBTs, e outros grupos historicamente excluídos.
Zonzon argumenta, sobre a prática da capoeira, que:

59
os fazeres, o corpo e o movimento [são as] principais instâncias de conhecimento da
prática e de suas mudanças. Entende-se que, por se tratar de uma prática
intensamente corporal, de um universo no qual o mais nuclear transmite-se,
adquire-se e desdobra-se também para aquém da linguagem articulada por meio de
palavras e da percepção reflexiva, o recurso ao dito não esclarece a lógica prática
desempenhada nos modos de agir dos atores (2011, p. 142).

Cacau, instrutor do Afro N’Gonda e Contramestre de capoeira do grupo Axé Dendê, em


entrevista, ao falar sobre a mensagem das músicas da capoeira, lembra de uma música
composta por ele e cantada frequentemente nas rodas do grupo Axé Dendê, que fala da
conexão entre passado e futuro através do berimbau, da música e da capoeira que vêm
através dele:
(Le le le le leeee lai aaaa/ Le le le le leeee lai aaaa) Coro

Berimbau me leva/ Pra fazer minha historia /Cantar meu passado / Escrever meu
futuro (Coro)

Berimbau cantou/ Foi do lado de lá/ Chamou capoeira/ Vem aqui jogar (Coro)

Todo meu passado/ Você ouviu falar/ Escravidão e dor/ Na senzala viveu (Coro)

Berimbau me faz/ E me faz sonhar/ Me leva ao mundo inteiro/ Onde posso cantar
(Coro)
23
Com o berimbau/ Eu posso cantar/ Escrevo também/ Sonho meu futuro (Coro)

Ao ser perguntado sobre o significado do termo ‘afro’, que adjetiva o grupo de dança Afro
N’Gonda, Alisson, um dos dançarinos do grupo afirma “eu lembro dos meus antepassados,
eu lembro dos negros, das mulheres, dos homens, das crianças, eu lembro daquela alegria
que eles têm”. Daiane, antiga participante do Afro N’Gonda e hoje no Grupo Voz de Teatro,
afirma também durante sua entrevista que depois que começou a participar do grupo de
dança procurou saber mais sobre as comunidades quilombolas da cidade e também sobre o
passado da sua família paterna, que é negra, sobre a história de tribos africanas, sobre o
Maculelê, entre outras referências, porque, segundo ela:
você se sente vivo mesmo, sentindo que aquilo ali tem a ver com a sua vida, assim,
muita coisa aconteceu até chegar em você, sabe, tem muita história lá atrás, a nossa
existência no mundo se torna mais rica mesmo depois que você conhece as
histórias... Às vezes você não tem ideia do que aconteceu até chegar em você, você
conhecendo e sabendo que você faz parte daquilo é um orgulho muito grande,
sabe, apesar de todo sofrimento que as pessoas passavam, a riqueza da cultura é
muito maior que qualquer coisa.

Alguns dos dançarinos afirmam terem se descoberto como negros nesse processo. João,
Alisson, Joanine, além de outros companheiros e companheiras de grupo, fazem
elaborações nesse sentido, testemunhando a elaboração de uma narrativa subjetiva da
negritude que se forma na prática:

23
Transcrição da música ‘Pra fazer minha história’, de autoria do Contramestre Cacau, à época ainda com
graduação de professor de capoeira, conforme encontrada em seu blog pessoal: <
http://musicasprofessorcacau.blogspot.com.br/2011/05/pra-fazer-minha-historia.html>. Acesso em
28/01/2017.
60
Eu descobri que eu sou negro mesmo tendo uma mãe branca e sendo mais claro. Eu
acho que eu consegui ver o quanto isso é meu também, tendo esse contato (João,
25 anos).

Eu comecei a me ver como negro depois que eu entrei aqui (Alisson, 19 anos).

Eu me conheci como negra, eu me conheci como sendo uma coisa boa,


praticamente lá. Às vezes eu chegava em um lugar e ficava acanhada porque eu não
tinha alguém da mesma cor ou com cabelo igual, aí eu me sentia excluída, sabe. Aí
às vezes a gente chega lá e vê alguém parecido com a gente e a gente já vai dando
um sorriso, pô eu não tô sozinha! É tão legal sabe! (Joanine, 19 anos).

Outras coreografias que fazem parte do repertório do Afro N’Gonda, como a Dança do Fogo,
e a Dança Guerreira, fazem referência, segundo os relatos dos integrantes do grupo, às
práticas ancestrais africanas, às forças da natureza, aos Orixás. Algumas das músicas são
cantadas em línguas africanas, “Iorubá, Gêge, Nagô”, como afirma Cacau, outras têm
palavras ou elementos que remetem ao universo de significados de culturas e religiões afro-
brasileiras, seja pelas cores, pelos movimentos ou pelos elementos da natureza, “como o
vermelho e o fogo que remetem a Xangô”, ele exemplifica. No entanto, Cacau ressalta que
esses marcadores ficam muitas vezes subentendidos como uma estratégia para evitar a
resistência da plateia ou dos participantes. A música cantada na performance da Dança do
Fogo “fala de Oxum: ‘Oro mimá Oromi Mayor, Oromi Mayor Oromi Mayor Iabadô ieieo”, ele
canta. E continua: “As danças e cantos vieram da África mas hoje são brasileiros e não
africanos, mas continua contando as histórias”.
Entre os capoeiristas também é recorrente a referência durante as entrevistas ao
aprendizado da história e da cultura negra através da prática. Claudiniz, ao ser perguntado
sobre as comunidades quilombolas de Paracatu, conta que sua avó era aparentada dos
quilombolas da Lagoa, e que a irmã do avô é e ainda mora no São Domingos. Ele, por ser
neto, já não guarda relação com as duas comunidades, e comenta:
Sem sombra de dúvida que a capoeira veio desse povo. (...) Quilombo inclusive era
um refúgio, né. (...) Se não fosse pela capoeira, sinceramente, por escola eu não
saberia o que é o 20 de novembro [dia da consciência negra]. A gente começou a
dar um valor e respeito na história, na cultura pela capoeira.

Viviane reforça o conteúdo histórico das letras das músicas da capoeira, assim como
Gracielly, respectivamente:
A capoeira transmite muita coisa, é muita história real, muita história verídica,
principalmente as músicas, porque foram mestres que viveram, Bimba, Pastinha, e
as músicas deles são fera demais, você arrupia todinha, você escuta assim contando
a história... eles sofria demais, e tem também essa questão do preconceito né, que
graças a Deus veio a Princesa izabel e libertou os negros, que eles sofria muito,
muito mesmo.

O que eu aprendi foi é, na verdade eu também busquei né, foi mais a história do
negro mais a fundo, da escravidão e tal, que na escola eu não peguei essa parte... e
na capoeira e na dança também, principalmente mais na dança, do Maculelê, da
Puxada de Rede, eu nunca vi essas histórias em escola, nesses lugares mais formais,
eu nunca vi, e faz parte da cultura negra e a gente não tem acesso... o que eu acho
mais legal de tudo é assim, as histórias mesmo, dos negros, do quilombo, dos

61
personagens marcantes que tem, igual Zumbi, Dandara, tem muitos negros que se
você perguntar muitos capoeiristas ou o pessoal mesmo da dança afro eles não vão
saber te falar, é Acotirene, Ganga Zumba, que são pessoas assim bem legais eu fui
lendo assim e que se não fosse da capoeira eu não ia saber, uma coisa foi puxando a
outra... é a parte que me chama muito atenção, os menino até reclama comigo
porque eu quase num jogo, num treino, mas eu gosto muito de ler.

Fagner, também capoeirista, faz uma fala no mesmo sentido, ressaltando o valor da
capoeira como forma de aprendizado da história e da cultura mais acessível do que as
práticas escolares formais
às vezes [a criança] não teve oportunidade de ser educada pelo pai e a mãe, que
não leram muito, não estudaram muito, e como ele gosta da capoeira, então se
você usa essa questão da história, do meio em que vive para transmitir essa
mensagem pra criança ou para os demais capoeiristas que às vezes não teve a
oportunidade de estudar, realmente você consegue enriquecer sua capoeira,
enriquecer o nível cultural de suas crianças, sem precisar ela fazer uma coisa que ela
não gosta... então se você consegue trazer essa lição pra ela na musicalidade, você
consegue tá buscando essa criança pra dentro da cultura, não é só ensinar ela a dar
pernada, é você transmitir essa mensagem. (...) A capoeira é a melhor moeda de
troca do pobre... Uma vez que a criança, como diz, se você oferecer algo que ela
gosta, ela vai trazer algo que ela gosta em troca... eu tinha que levar minha vontade
de treinar, a minha vontade de vencer e pagar as aulas que meu professor me dava
com isso. Então se eu pesquisasse e trouxesse uma história nova ou pesquisasse
algo novo sobre Zumbi, sobre Mestre Bimba, sobre Domingo Jorge Velho, seja
aquilo que teja voltado pra cultura pra história da capoeira, eu trazia pro meu
professor... e em troca disso ele me ensinava a capoeira, entendeu, e me orientava
com relação à parte histórica que muita gente não sabe, entendeu, a parte histórica
do Brasil, que setenta por cento dela foi feita em volta do negro...a nossa história
ela é muito falha... ela é uma história voltada para inglês ver, ela não fala um terço
do sofrimento que o negro passou... então hoje, tem muito filho de papaizinho que
sobe o morro pra dançar o baile funk e não sabe que aquela batida do funk é o
Maculelê: tum-tátá-tumtum-tá. Playboy escuta no carro dele e não sabe que é uma
batida que vem lá de trás, criada pelo negro pra bater os pauzinhos ou os facões. É
uma dança, um ritual negro, que hoje domina os bailes funk do Rio de Janeiro, do
Brasil inteiro, e poucos sabem.

É interessante observar como mesmo entre participantes de uma mesma prática, no caso
dos relatos acima a capoeira, a compreensão dos sujeitos com relação ao tema das músicas
pode variar bastante, com perspectivas mais ou menos críticas, e até por vezes antagônicas,
com relação ao processo de abolição, as datas comemorativas, os ritmos e os personagens
históricos.
Nas palavras de Cacau, “Paracatu tem mais de 200 anos. Tem que mostrar para as pessoas
essa riqueza, e tem adultos que não sabem e criança que nunca vai saber, sendo que a
gente pode ajudar a contar e a perpetuar”. Rose complementa afirmando sobre a capoeira
no São Domingos:
Quem implantou a capoeira lá foi o Cacau, era um quilombo que não tinha uma
tradição de capoeira. (...) Qual que é a importância disso na vida das pessoas? É ter
acesso ao que é deles, né, é trazer de volta, devolver o que é deles, herança deles
na questão da cultura afrobrasileira, e às vezes as pessoas não tavam entendendo
isso. E esse resgate lá foi bem interessante porque teve o apoio da comunidade

62
total, cem por cento. Hoje não funciona por questão financeira de bancar o
trabalho.

Em seu estudo sobre a capoeira de angola na Bahia, Christine Zonzon afirma que a capoeira
se constrói como:
uma comunidade simultaneamente mítica, histórica e política (...) que põe em
destaque o trabalho contínuo, sistemático e progressivo de incorporação de valores
e sentidos tidos como herdados de determinados grupos étnicos e sociais. Pode-se,
assim, desnaturalizar o fenômeno de transmissão tradicional, detendo-se sobre os
processos de transmissão e de realização da prática da capoeira em grupos
estruturados e estrategicamente articulados com os contextos local e global de
nossos dias (2011, p. 143).

Nas conversas com os jovens atores e atrizes foram recorrentes as menções a textos e cenas
que tratam da história da cidade de Paracatu, e de questões do cotidiano que indiretamente
se ligam à estética e à negritude. A peça “Mulher Catu”, por exemplo, montada pelo
Cênikas, foi mencionada por vários dos meus interlocutores como uma oportunidade de
conhecer mais sobre personagens importantes da história da cidade, nesse caso
especificamente mulheres, sobre as quais não se fala na escola.
‘Mulher Catu’, conta a história de mulheres importantes de Paracatu, levando
cultura e mudando o pensamento de todo mundo, mudando a vida das pessoas,
muita gente vem elogiando a mim para minha mãe, e ai ela vê que tá mudando
minha vida e de outras pessoas (Gustavo, 16 anos).

A performance “Humano R$ 1,00”, já mencionada anteriormente, da mesma companhia,


trazia jovens em sua maioria negros, fechados em uma gaiola feita por eles mesmos,
instalada na praça Firmina Santana, principal lugar de encontro das pessoas no centro de
Paracatu. Segundo alguns dos participantes, a proposta da performance era falar sobre o
valor do ser humano na nossa sociedade, o que envolve a questão do negro, mas também
das mulheres, homossexuais e outros grupos que sofrem discriminação e violências.
A discussão do tema da ancestralidade, no entanto, não apareceu de maneira clara durante
o tempo em que estive em Paracatu ou nas conversas que tive com os estudantes de teatro,
e Rose faz sua avaliação nesse sentido:
O teatro busca, não diretamente pra questão afro, mas tem buscado o resgate da
história da cidade, alguns textos direcionados a pessoas e personalidades que de
certa forma fizeram parte da história de Paracatu, mas ainda tá muito tímido, acho
que pode ser melhor.

Esse conjunto de relatos indica a apropriação e interiorização das histórias experimentadas


por meio das práticas de capoeira, dança afro e teatro, tornando-as em narrativas próprias,
instrumentos do ser e do estar no mundo, pelas juventudes envolvidas. Na próxima sessão
entrarei mais em detalhe sobre como a questão da ancestralidade negra aparece nos
conteúdos das músicas e histórias veiculadas nessas práticas.

63
2.2.2 Memória, narrativa e experiência: músicas e personagens que contam as nossas
histórias
As histórias e linguagens oferecidas pela capoeira, dança e teatro são apropriadas, filtradas
e reinventadas nas experiências subjetivas das e dos jovens com quem tive a oportunidade
de conversar ao longo do processo da pesquisa. Ao compararem as letras das músicas e os
personagens interpretados às suas próprias vivências pessoais, ou compreender as
mensagens veiculadas como ensinamentos para suas próprias vidas, eles estão desfiando
antigos tecidos e tecendo à sua maneira histórias ancestrais. O Maculelê 24, por exemplo,
personagem principal de uma das coreografias encenadas pelo Afro N’Gonda, aparece de
forma recorrente como ícone com o qual os jovens entrevistados se identificam. Como um
personagem que resiste e que luta apesar das adversidades, inspira e motiva o imaginário
das e dos dançarinos que o interpretam. Durante a roda de conversa feita com Afro
N’Gonda os participantes se empolgaram e até disputaram a fala para contar a história do
Maculelê. Joanine, que participa do grupo desde o início de sua formação, elaborou assim:
O Maculelê foi resistente, ele lutou até a morte ele resistiu até onde ele pôde, e eu
acho que a gente tem que trazer isso pra nossa vida, né, por exemplo a gente tem
alguma dificuldade e a gente pensa assim ah, vou parar agora, acho que não, a
gente tem que resistir até onde a gente dá conta porque é mais uma questão de
força, uma questão de força de vontade a gente se empenhar em defender aquilo
que a gente acredita, pra alcançar aquilo que a gente quer, eu acho que o Maculelê,
não sei pro pessoal, mas pra mim pelo menos é isso, né, é pra mim lutar até minhas
forças acabar por uma coisa que eu quero ou pra mim conseguir alguma coisa
mesmo que seja não só pra mim, mas no caso do grupo, pra nós todos, lutar com
tudo que eu tenho, com tudo que eu posso, até onde eu não der conta mais.

24
Segundo relatos de integrantes e ex-integrantes do Afro N’Gonda, o Maculelê era um guerreiro que, quando
os outros guerreiros saiam pra caçar, ele ficava para cuidar das crianças, mulheres e idosos. Uma das vezes que
os outros saíram, sua tribo foi atacada por uma tribo rival e ele defendeu com dois pedaços de pau. Disso
surgiram os passos, que misturam luta e dança. Algumas histórias contam que ele sobreviveu e foi feita uma
festa em comemoração, o que rendeu a encenação que hoje se faz. Outras versões contam que ele morreu
lutando e em respeito a ele, surgiu a dança do Maculelê. Duda conta que o Afro N`Gonda encenava às vezes a
versão que ele sobrevivia às vezes a que ele morre. Está registrado no meu caderno de campo um relato feito
por Duda e João que narra a sequência da apresentação: “Começa com a batida do atabaque, e os dançarinos
batendo com os dois bastões em batidas por vezes rápidas, por vezes lenta, por vezes batendo nos bastões de
outro companheiro. O canto inicial é uma apresentação e uma saudação: ‘ô boa noite pra quem é de boa
noite, ô bom dia pra quem é de bom dia, a bênção meu papai, a bênção, Maculelê é o rei da valentia’. A
coreografia segue, com a narração da história pela música: ‘Um certo dia na cabana um guerreiro, foi atacado
por uma tribo pra valer, pegou dois paus, saiu de salto mortal e gritou pra uma menina que eu sou
Maculelê/Pula eu pula você, que eu sou Maculelê Pula aí que eu quero ver, que eu sou Maculelê/ Tindolelê auê
Cauisa, tindolelê é sangue real, meu pai é filho, eu sou neto de Aruanda, Tindolelê auê Cauisa/Maculelê de
onde é que veio?, eu vim de Angola-ê, Maculelê de onde é que veio? Eu vim de Angola-á/(Nomes de mestres de
capoeira, Bimba, Pastinha, etc…) eu vim de Angola-ê, (nomes) de onde é que veio? Eu vim de Angola-á’. Em
certo momento da encenação da dança a tribo rival chega e canta: ‘eu disse camarada, que eu vinha, na sua
aldeia, camarada, um dia’. A tribo do Maculelê então responde, com feições de luta: ‘sou eu, sou eu, sou eu
Maculelê, sou eu’. Em seguida as tribos se enfrentam na dança, fazendo uma roda grande, e no meio
representantes de cada tribo se enfrentam sucessivamente, até o momento em que a pessoa que representa o
Maculelê entra na roda, enfrentando uma pessoa de porte maior que o dele. Em algumas encenações o
Maculelê é vencido e carregado para fora da roda, em outras, quando ele aparenta ter sido derrotado, ao sinal
do atabaque o guerreiro salta e revive, o que faz com que os rivais da outra tribo caiam todos no chão”
(Caderno de campo, junho de 2016).
64
Ainda sobre o Maculelê, Daiane afirma na roda de conversa com os jovens dos grupos de
teatro, por ser antiga integrante do Afro N’Gonda que um dos personagens mais
importantes que tinha interpretado ao longo da sua caminhada no teatro foi o Maculelê:
Um dos personagens marcantes que eu fiz, assim, de vários, foi quando eu era uma
das guerreiras do Maculelê, sabe, porque tinha toda uma história e não era assim,
uma história qualquer, tinha toda uma identidade por trás do personagem que eu
fazia (...) fazendo a personagem da guerreira do Maculelê e também na Dança do
Fogo, que era quase que a mesma linha assim, era representando a história de
várias mulheres dentro da história do Maculelê, que representava toda uma força,
em cima de todo um preconceito, em cima de dificuldade, discriminação, e eu me
identifico com isso, sabe (...) eu tô representando uma força, uma garra e toda uma
dificuldade que aqueles personagens de verdade passaram.

E de uma ótica mais voltada para sentimento da experiência no momento da execução da


dança, e reforçando o já dito pelos colegas, Alisson que é um dos dançarinos mais recentes
complementa que o Maculelê “é uma força que a gente tem por dentro... quando eu tô lá
eu me sinto como o próprio Maculelê”. As apresentações de Maculelê são as mais
requisitadas do repertório do grupo por escolas e eventos em Paracatu, e Fagner,
capoeirista desde os onze anos de idade afirma que foi uma apresentação de Maculelê em
sua escola, realizada por outro professor na época, que o convidou a participar de aulas de
capoeira.
Gostaria de tentar compreender a identificação marcante com o Maculelê, essa figura de
um guerreiro corajoso que luta por seus ideais com os instrumentos que possui até suas
últimas forças, mesmo em desvantagem em relação aos seus oponentes, com a discussão
sobre juventudes proposta no capítulo 1. É possível que esse sentimento de resistir contra
as adversidades seja parte da elaboração de juventudes que se expressam, que falam, que
se impõem a seu modo, com sua própria linguagem e instrumentos de afirmação, em
contextos tantas vezes pouco favoráveis e mesmo hostis. O Maculelê funciona assim como
um ícone nesse sentido, em quem se inspirar e ganhar forças para buscar aquilo em que se
acredita e aquilo que se é e deseja ser.

65
Figura 7. Apresentação de Maculelê do Afro N'Gonda (Fonte: Arquivo Afro N'Gonda, 2015)

Sobre a Puxada de Rede, outra dança do repertório do Afro N’Gonda, Valéria conta:
O bom da Puxada de Rede é que é emocionante, faz a gente chorar. (...) Toca muita
gente, por causa da questão do pescador que vai pescar e aí ele volta morto, e aí a
companheira dele sofre, chora, os amigos dele também, então ela causa assim um
impacto, uma emoção muito grande para as pessoas.

Cacau complementa dizendo que a história da Puxada de Rede25 é forte porque “se
transforma no dia a dia de várias pessoas, né (...) a dor da perda. Todo mundo já perdeu
alguém” (ver Figura 9 adiante).

25
Segundo relatos de integrantes e ex-integrantes do Afro N’Gonda, a Puxada de Rede conta a história de um
pescador que, em alto mar junto com outros pescadores, é levado pelo mar e morre. Quando o grupo volta
para terra firme e os pescadores são recebidos pelas esposas, Maria, a esposa do pescador que morreu,
lamenta e chora muito. Nesse momento Iemanjá aparece na narrativa e ressuscita o pescador morto, o que se
torna motivo de grande festa entre os pescadores e suas esposas. Está registrado meu caderno de campo um
relato feito por Duda e João que narra a sequência da apresentação: “A encenação começa com a entrada dos
pescadores, representados tanto por homens como por mulheres, de calças dobradas e camisas xadrez ou
cavada, chapéu de palha. Entram em um cortejo, na batida do atabaque, dançando, dando início à coreografia.
Cada um está segurando um pedaço da rede, em fila dupla, uma parte por fora e outra por dentro da roda, até
se alinhar todo mundo. Quando se abaixam, nesse momento entram as lavadeiras, que são meninas,
representando as parceiras, esposas dos pescadores, segurando trouxas de roupas, com saias longas e blusas
de tecido de chita. Elas se sentam alinhadas e ficam ali lavando a roupa e cantando: ‘A minha roupa eu vim
lavar, enquanto ele foi pescar/eu lavo a minha roupa, minha sereia, enquanto ele foi pescar/quem é que me dá
para levar pra dona Janaína lá no fundo do mar (2x)/ pente de osso, laço de fita, pra dona Janaína que ela é
moça bonita (2x)’. Um dos pescadores então se levanta e convoca os demais a irem para o mar, cantando: ‘O
puxa rede, pega pesca/ Pescador pescou/ Uma linda sereia/ Pescador pescou/ Nas águas de Aruanda
/Pescador pescou peixe grande pra Iaiá/ Pescador pescou/ Minha jangada vai sair pro mar vou trabalhar meu
66
Na capoeira a identificação com as letras e personagens das músicas também acontece em
diversos níveis, sendo que muitas mensagens por elas carregadas se relacionam àquela que
o Maculelê representa. Digo isso baseada em observações feitas pelos capoeiristas
entrevistados e também de acordo com minhas próprias observações, que abrangem
apenas uma pequena amostra do universo de canções de capoeira, às quais tive
oportunidade de conhecer nessa curta experiência como capoeirista em Paracatu. São
histórias do sofrimento vivido na época da escravidão, de estratégias de sobrevivência, de
resistência das e dos negros, além de histórias de figuras emblemáticas da capoeira como
Mestre Bimba, Mestre Pastinha e outros que aparecem de maneira recorrente nas músicas
e inspiram as e os capoeiristas em suas experiências individuais.
Viviane conta que quando entrou na capoeira:
cantava aquelas músicas, eles me falavam ‘Tem que colocar sentimento na música’
e eu assim, ‘cara! Como é que eu vou fazer isso?’... aí eu parei e vi, pra mim, tem
música que eu escuto assim ó, ‘cara! Essa história é massa demais! Eu quero
aprender essa música’, então quando eu canto, essa música sai diferente, porque eu
tô sentindo... eu costumo cantar ladainha, igual eu te falei, ladainha que é angola,
que a música são histórias mesmo, aí eu canto e fecho o olho...eu vou vendo! É
como você ler um livro, vai lendo e vai imaginando, eu canto e vou vendo aquela
história acontecendo...tem vez que eu até choro, cê vai sentindo assim ó!... quando
você põe sentimento você consegue sentir e transmitir aquilo pras pessoas.

E canta um trecho da canção “Hoje eu vou me libertar” do Professor Pretinho, do grupo


Abadá Capoeira que marca para ela a mensagem com a qual a capoeira marca a sua vida
Eu não posso ficar aqui/lá pra senzala eu não quero ir/Hoje eu vou me libertar/Vou
lá pra capoeira/ Vou encontrar Zumbi (Coro)

Posso até não me libertar, mas eu tento/ Isso é pra você que só vive no lamento/ Vá
atrás do que você quer, seja homem ou, mulher/ Você é maior do que todos
pensam.

Claudiniz também fala da mensagem que as músicas da capoeira carregam:

bem querer/ se Deus quiser quando eu voltar do mar um peixe bom eu vou trazer/ Meus companheiros
também vão voltar/ E a Deus do céu vamos agradecer’. A partir daí todos vão para o mar, todos balançam a
rede e cantam: ‘é o peixe no mar, Saréu Pererê/ é o peixe no mar, Saréu Pererê’ e vão chamando o nome de
cada um dos dançarinos, por exemplo: ‘João veio?’ e todos respondem? ‘veio!’ e, por fim, ‘Pescador veio?’ e
um dos pescadores se levanta, tira o chapéu e responde, triste: ‘Veio não, meu senhor, o mar estava revolto e
o levou para o fundo mar’. Todos se entristecem e o atabaque volta a bater. Os dançarinos cantam: ‘Pescador,
pescador/ Com sua rede ao mar/ sua jangada virou/ Foi para o fundo do mar/ Chorou, chorou de fazer dó/
Quando a jangada voltou só/ Maria de tristeza chorou/ Sentindo a falta do seu pescador (2x)’. Maria, nesse
momento, chora muito em cima do corpo do pescador, que é trazido pelos outros pescadores deitado numa
rede, que está sendo segurado por todos. Iemanjá então aparece e diz: ‘Levanta-te pescador, pegue sua rede e
volte para o mar!’, o que faz com que ele comece novamente a se mexer, sob olhares surpresos dos demais
dançarinos ao vê-lo voltar à vida. O pescador, vivo novamente, revê seus companheiros e Maria. Os dois se
abraçam e todos festejam, fazem uma roda e começam as batidas da capoeira, sendo um dos cantos: ‘Quando
o mar vermelho abrir, pecador não passa não, pecador não passa não, pecador não passa não!’, entre outras”
(Caderno de campo, junho de 2016). Segundo relatos das e dos dançarinos, houve em algumas apresentações
uma composição com berimbaus tocando, dando sequência a uma roda de capoeira, saindo então um cortejo
guiado pelos berimbaus, com pandeiro e todos os dançarinos cantando e batendo palmas, Marias e
pescadores, encerrando a encenação.
67
A música tem que ter comunicação com a gente. Eu gosto das músicas que contam
como começou a capoeira, a escravidão, como era a luta que o povo tinha pra
poder fazer capoeira. (...) A capoeira ela é luta, é dança, é um meio de comunicação
violentíssimo. Quem tá assistindo não vai entender mas quem pratica, pratica pra
isso.

Falar sobre a capoeira, sobre as danças, sobre as peças encenadas, é falar sobre si e sobre
os outros, sobre o passado, o presente e o futuro. É fazer “da memória um apoio sólido da
vontade, (...) matriz de projetos” (BOSI, 2003, p. 33). É pertencer a uma história comum ou,
fazendo referência à metáfora do tecido do Marambá elaborada por Ferreira, com a qual
comecei esta seção, é se entrelaçar à trama dessa história a partir das experiências, que
“são desfiadas e tecidas, novamente fiadas, desfiadas, tecidas” no construir de cada
narrativa. Seguindo as reflexões da autora, “A palavra de D. Divina não é só dela. Às vezes,
vem também a palavra dos ancestrais, de Benjamim, de Josefa. Dos seus guias, de Pai
Benedito. Não se distingue a voz dos ancestrais, o passado e o presente se cruzam,
transformando-se em outra coisa” (2016, p. 137).
No teatro as relações de identificação com as e os personagens aparecem de maneiras mais
difusas uma vez que as peças encenadas variam muito de tema. Vão desde personagens que
sofrem por amor até animais de fábulas como a do Saltimbancos, palhaços e personagens
do cotidiano da cidade, como no caso da montagem de “Mulher Catu”. Cada uma das
personagens escolhidas permite às e aos jovens atrizes e atores ter contato com diferentes
personalidades, emoções, características subjetivas, que acabam também ressoando em
algum aspecto de sua própria subjetividade e experiência pessoal. Essas performances serão
tema do próximo capítulo.

Figura 8. Os Saltimbancos, encenados pelo Grupo Cênikas (Fonte: Arquivo Grupo Cênikas, 2016).

68
O interessante neste ponto da análise é observar que as narrativas que se expressam
através da dança, da capoeira e do teatro têm o potencial de dar voz a aspectos das
subjetividades das e dos jovens que por outras vias haviam sido silenciados, cujo acesso lhes
havia sido negado, ou simplesmente estavam adormecidos até então. Na relação com o
personagem ou com a história interpretada ou a música escolhida, esses sujeitos entram em
contato com o espelho proposto pelas narrativas (e pela performance, conforme
discutiremos adiante), se percebem ali, se identificam ou rejeitam aqueles aspectos, e se
compreendem melhor, se questionam, se transformam.
Todos querem falar, contar a historia, responder as perguntas, e conseguem
transmitir isso com facilidade. Sofia com onze anos fala sobre a Puxada de Rede e
Maculelê para mais de cem pessoas na praça (Rose, 39 anos).

E fala mesmo, conforme presenciei em algumas ocasiões, assim como os demais dançarinos
e dançarinas do Afro N’Gonda também falam nas apresentações, explicando as histórias por
trás das coreografias e músicas. Falam com propriedade, com orgulho. Falam porque estão
falando também de si, de sua experiência e de como aquela interpretação corporal e
musical é sua, faz parte da sua vida. Concluo essa seção com uma música de capoeira
composta pelo Contramestre Cacau e frequentemente cantada nas rodas de capoeira da
cidade, do grupo Axé Dendê, e de outros grupos também, que reflete em grande parte o
que foi dito aqui:
(Ô noite cadê minha lua/ Ô noite cadê meu luar) Coro

Eu vim de Luanda/ Eu vim pela lua/ Num navio negreiro/ Oi eu vim de lá (Coro)

Lua que ilumina/ Terra vai brilhar/ Pra saber aonde vou/ Mas eu quero é voltar
(Coro)

Lua que clareia/ Clareia lua/ Clareia o caminho/ Luanda vou voltar (Coro)

Lua que clareia/ o navio negreiro/ na beira do mar/ eu vi Iemanjá (Coro)

No navio negreiro/ Na beira do mar/ Desci no Brasil / Capoeira criar (Coro)

Essa música, segundo Cacau:


conta a história do negro dentro do navio negreiro querendo saber pra onde que ele
tá indo, nem a lua ele sabia aonde tava. Essa música fala do posicionamento do
negro, para onde ele vai, para onde ele quer ir, e a lua poderia ser um guia pra ele.

Ouso dizer que, como a lua, a capoeira, a dança, o teatro, podem servir, e tem servido, para
muitos jovens como guias, narrativas orientadoras das experiências e das subjetividades,
como também ficará evidente em alguns depoimentos que apresento a seguir.

2.2.3 A narrativa religiosa nas experiências


Como já ficou evidente nas falas dos sujeitos desta pesquisa, a experiência de participar dos
grupos de teatro, dança afro e capoeira marca profundamente sua percepção do mundo e
suas relações. Toco agora em um ponto delicado que é a questão religiosa, por ter ouvido
diversos relatos a respeito e mesmo experimentado situações de intolerância religiosa com
relação às religiões de matriz africana, a Umbanda e o Candomblé.
69
Começo contando como cheguei até esse tema. Na encenação da Puxada de Rede do Afro
N’Gonda, após a morte do pescador e a chegada de seu corpo à praia, aparece um Orixá
importante na Umbanda e no Candomblé, a ‘rainha do mar’, protetora dos pescadores,
bastante conhecida não só pelos praticantes dessas religiões mas por muita gente no Brasil
inteiro.

Figura 9. Puxada de Rede, encenada pelo Afro N'Gonda (Fonte: Arquivo Afro N'Gonda, 2015).

Iemanjá aparece para salvá-lo, ressuscitá-lo, e devolvê-lo aos seus entes queridos. Me
impressionou desde o princípio a aparição da figura de Iemanjá em uma encenação tantas
vezes feita em praça pública, em escolas e instituições locais, sendo Paracatu uma cidade
tão reacionária no que diz respeito à religiosidade. Faço aqui um breve relato:
No mês passado foi organizada por várias instituições locais em Paracatu a Feira de
Economia Popular Solidária, inclusive com o auxílio do núcleo aonde eu trabalhava
26
na época, o NEDET . Foi um evento grande, que trouxe agricultoras e agricultores
familiares de todo o Noroeste de Minas para expor seus produtos e uma extensa
programação cultural para o palco montado na praça em frente à prefeitura.
Durante a abertura houve falas do prefeito da cidade, vereadores, representantes
da cooperativa de agricultores da cidade, do sindicato de trabalhadores rurais, entre
outras instituições de grande importância local e regional, e ainda também o
responsável pela política de desenvolvimento agrário do estado de Minas Gerais na
época o Professor Neivaldo. Com isso quero dizer que foi um evento que mobilizou

26
Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial, sob coordenação da Unimontes, no Território da
Cidadania Noroeste de Minas.
70
bastante gente, desde o governo do estado até agricultores familiares do noroeste
de minas, e na abertura foram feitas duas apresentações do Afro N’Gonda, o
Maculelê e a Puxada de Rede. ‘Maravilhoso!’ Eu pensei. Mas foi ainda maior meu
encantamento quando, na Puxada de Rede entra a Valéria, negra, cabelos afro
poderosos segurando sua coroa de rainha do mar, grávida de sete meses, vestida de
um cetim azul turquesa! Era a própria Iemanjá que aparecia ali na frente daquele
povo todo (Caderno de campo, junho de 2016).

Depois dessa experiência tão marcante, não pude deixar de questionar os participantes do
grupo com relação à suas opiniões a respeito desse sincretismo religioso, da participação na
encenação uma vez que alguns eram praticantes de outras religiões. As respostas foram
elaborações sensíveis sobre as suas próprias vivências de família, de religião e sobre
respeito e aceitação das diferenças, que muito também acalentaram a sensação de
intolerância religiosa que a cidade parece carregar.
Então, eu vou na igreja evangélica, eu ia né, eu cresci na igreja evangélica, e pra
eles, desculpa a palavra ofensiva, pra eles é demônio. Então assim, quando eu era
pequeno, lá no meu tio, ele também era do Candomblé, lá tinha imagem de
Iemanjá, eu não passava perto porque eu tinha medo, mas depois eu fui crescendo
e tal, a gente passa a entender que é uma crença, agente tem que respeitar, por
mais que se eu fosse um evangélico doente eu não ia tá aqui, a gente faz os
movimentos parece que a gente tá incorporando alguma coisa, sabe (...) hoje em
dia eu acredito em Iemanjá, eu aprendi a acreditar (Alisson, 19 anos).

Essa parte quando fala de Orixá dentro das apresentações e tal, pelo menos no meu
ponto de vista, eu sou, graças a Deus, muito tolerante pelo fato de simplesmente
uma coisa que eu acredito dentro da igreja, a parte do amor. O amor ele é
tolerante, independente de crença, raça, religião, poder social, então assim, uma
das partes do amor é justamente essa, o respeito. Então, graças a Deus, dentro do
grupo a gente vê muito isso, então a gente acaba sendo totalmente tolerante né, às
religiões um do outro (...) e isso acaba tornando a gente mais ser humano
(Wanderson, 31 anos).

Eu acho até interessante ter essa diversidade de religião porque aí, eu acho bom
porque eu chego e pergunto ‘como que é lá na sua igreja?’ ao invés de eu chegar e
criticar (...) porque você passa a conhecer algo que você não conhecia, aí eu acho
que quando você conhece você passa a respeitar mais do que quando você não
conhecia, né (Joanine, 19 anos).

É bem contraditório porque é uma cidade histórica que é muito católica e hoje é
muito evangélica, então a gente já usou outros elementos pra salvar o pescador, né,
já usou Jesus Cristo, já usou Nossa Senhora Aparecida, em respeito mesmo à
religião dos outros né, então a gente deu uma diversificada também pra quebrar um
pouco essa coisa ‘ah que é só do Candomblé’ (Rose, 39 anos).

Outros relatos em entrevista contaram que muitos espectadores que não conhecem o
enredo das danças perguntam, por exemplo, se Maculelê, por causa do nome, tem relação
com macumba. Alisson afirma que “teve muita gente que já virou a cara, falou que era coisa
afro, quando você fala afro assim, tem muita gente de mente fechada já logo pensa
diretamente na religião e tal (...) você fala afro a pessoa já liga com coisa ruim”.
Os capoeiristas também relatam associação do fato de ser capoeirista com as religiões de
matriz africana, muito perseguidas pela opinião pública local. Viviane, capoeirista do grupo

71
do grupo Arte Mundial afirma que, apesar de praticar outra religião, hoje acredita nos orixás
e que entrar na roda pode representar uma experiência semelhante à espiritual. Ela afirma
que na capoeira existe a troca de informações e a convivência respeitosa das diferentes
religiões:
Na capoeira entra sim a questão da religião, igual eu tô te falando, tem muita gente
dentro da capoeira, a gente tá numa roda ali, tem fulano que é evangélico, fulano
que é católico, a gente fala uma língua só, a gente consegue falar uma língua só,
sem preconceito, sem bater boca, troca informação, pô.

Os demais capoeiristas entrevistados colocam também seu posicionamento sobre a


questão:
Eu vejo como esporte, mas antigamente ela era vista como religiosidade, entendeu,
os quilombolas, esse povo aí, a capoeira é uma religião, é onde assim, de certo
modo, tinha capoeira, Candomblé, essas coisas, era a religião deles, entendeu, e
eles usava assim, na capoeira, como se diz, as rezas deles. E ela é muito
discriminada apor causa da origem dela. Fala ‘ah! Tá fazendo macumba! É
macumbeiro! É isso, é aquilo (Claudiniz, 25 anos).

Mas por que cê fala de Oxum? Ah é música de macumba? Não! É a cultura


afrobrasileira, é a cultura dos negros que acreditavam, que acreditam que Oxum é
um deus. Por que que cê fala de Nossa Senhora? Porque sou devoto de Nossa
Senhora, e eu acho interessante passar isso pros meus alunos, sobre a cultura,
sobre o que a igreja católica enfrentou, sobre o que os brasileiro enfrentou, onde
todo mundo sabe que o negro na época não tinha autorização pra ir na missa, na
ideologia do branco o negro não tinha alma, tanto que eles tentaram catequizar,
mas não deixavam o negro ir na missa, não deixavam o negro participar de missa ou
coisa religiosa. (...) Quando você usa a cultura, a história pra transmitir essa
mensagem pra criança, você acaba despertando a curiosidade dela e a vontade dela
de estudar, de pesquisar (Fagner, 32).

As músicas e palavras que tratam ou remetem ao universo do Candomblé e da Umbanda


são por vezes suprimidas ou alteradas no repertório de alguns grupos de capoeira ligados à
religiões protestantes ou neopentecostais. No entanto, durante minha participação nas
aulas e rodas de capoeira em Paracatu, pude observar em algumas músicas palavras em
línguas africanas, cujo significado não é óbvio para quem não tem conhecimento das
religiões, e por isso parecem ter passado ‘desapercebidas’. Sejam pequenas concessões
feitas pelos capoeiristas para preservar a música, ou desconhecimento quanto ao significado
das palavras cantadas, fato é que ouve-se nas rodas histórias sobre ‘Aruanda’ e canta-se
músicas para a rainha do mar Iemanjá. Independente da opinião sobre a relação entre
capoeira e as religiões de matriz africana, os capoeiristas concordam que no momento da
roda é experimentada uma situação excepcional em força e energia, que toca as e os
capoeiristas intensamente. Claudiniz sintetiza bem esse sentimento em sua fala a respeito:
Na hora que aquele berimbau toca, na hora que aquela música toca, aquele axé,
aquela energia, aquilo lá faz o corpo da gente palpita, cara! Vibra, faz tanta coisa
que a gente não acredita. É onde o povo antigamente falava que era por causa da
espiritualidade que a capoeira traz. Eu não concordo. Mas o axé eu concordo, axé é
tremendo, a energia vinda do canto da capoeira.

72
Com isso, partimos para a próxima seção, que tratará da capoeira como uma linguagem
contemporânea de relação com a história e a ancestralidade, bem como ressaltará a relação
que os capoeiristas estabelecem com ela não apenas como uma linguagem ou uma técnica,
mas enquanto um sujeito, agente no mundo e nas vidas dos capoeiristas.

2.2.4 Capoeira, sujeito presente


A capoeira se constitui, como já foi mencionado no primeiro capítulo, como uma rede
simbólica (ARCE, 2015, p. 34) que congrega pessoas de diversas idades, status social,
gênero, e que se produz através das histórias, das músicas, da repetição e invenção de
novos golpes, das rodas e da criatividade do jogo e das relações que se estabelecem entre
os capoeiristas e entre eles e a capoeira. Nas palavras de Zonzon “não se trata apenas de
aprender golpes de ataque e defesa ou habilidades puramente físicas e técnicas, mas sim de
incorporar modos de ser, sentir e interagir com o mundo” (2011, p. 144). É sobre a relação
das e dos capoeiristas com a capoeira que gostaria de tratar neste ponto do capítulo.
Diferentemente dos grupos de dança e de teatro dos quais este trabalho trata, a capoeira, a
meu ver, respeita um conjunto de regras e uma hierarquia mais bem definido, rituais de
iniciação e passagem bem demarcados nas rodas de troca de corda, formas de tratamento e
de respeito pelos mais graduados bastante claras, independente de qual grupo específico
estejamos tratando. Nesse sentido, a relação estabelecida entre os sujeitos e a capoeira se
apresentou para mim de maneira mais consolidada, talvez também porque a maioria das
pessoas com quem conversei tenha estado em relação com esse meio desde a infância, se
iniciando por volta dos onze ou doze anos. A influência da capoeira nas histórias de vida
dessas pessoas é, portanto, muito marcante, muito enraizada na maneira com que elas se
veem e veem o mundo. Cacau, por exemplo, hoje Contramestre do grupo Axé Dendê conta
que começou a treinar capoeira aos dez anos de idade e aos 14 saiu da cidade para seguir
seu professor, que se mudara para Cristalina/Goiás. Seguem os relatos de Fagner, Claudiniz
e Viviane, respectivamente, a esse respeito:
A capoeira ela mudou minha vida por completo. (...) Ela me deu várias
oportunidades, ela abriu muito o mercado para mim em todos os sentidos, foi na
capoeira que eu passei a ser visto não como um menino marginalizado de um bairro
humilde, entendeu, mas eu passei a ser visto como um garoto que tinha o dom da
capoeira, que jogava capoeira, que atravessava a cidade a pé pra treinar capoeira e
daí eu comecei ver que eu podia ser diferente não só na capoeira, que eu podia
levar isso pra dentro de casa, aquela vontade de vencer, de treinar, de correr atrás,
isso poderia fazer a diferença pra mim nos estudos, poderia fazer a diferença pra
mim no meio social, e até mesmo porque a capoeira pra mim ela foi uma moeda de
troca, onde eu sabia que se eu não fosse bem nos estudos e não fosse bem como
pessoa, minha mãe ia me tirar da capoeira, era automático, ela sabia que era o que
eu mais gostava. (...) A capoeira ela te ensina a ser um atleta melhor, ela te ensina a
ser uma pessoa melhor, e ela te coloca num meio social de uma maneira que
querendo ou não a pessoa te respeita por saber que você é um atleta, que você faz
um esporte, e que você é um guerreiro. (...) A importância pra mim é devolver para
a capoeira tudo que ela me deu. A capoeira me incentivou a estudar, a capoeira me
incentivou a trabalhar. A capoeira me obrigou a ser uma pessoa melhor.

73
A capoeira pra mim, ela foi assim, tudo. Tudo que eu precisei pra não entrar em
nada de errado, e quando eu errei ela fez eu superar. Porque quando eu errava eu
não podia ir nela, eu não tinha contato com o que eu mais gostava. Aí por aquele
amor, aquela paixão pela aquela coisa você sacrifica seu ego de errar.

A capoeira me deu muita coisa, eu não esperava, eu não esperava nada da capoeira
porque eu entrei por causa de uma aposta. (...) Eu não conhecia capoeira, eu não
sabia o que era capoeira. (...) Eu não sabia nada! E ela me deu muito mais do que
esperava, ela me preencheu muito mais do que talvez eu tenha preenchido ela,
entendeu? Então eu quero de alguma forma poder passar isso pros meus alunos,
porque eu sei que eu posso ajudar eles muito mais. (...) Entrou na quadra, eu posso
ajudar eles lá fora muito mais, e no que eu puder ajudar, eu vou ser igual meu
professor, meu pai, ajudar no que eu puder, fora da capoeira, porque eu quero que
um dia eles possam falar pra alguém como eu tô falando pra você, ‘Nossa, fulano
me ajudou demais’, ‘a capoeira me ajudou demais’.

Nesses depoimentos a capoeira é citada, assim como nas letras de algumas canções
também acontece, por vezes de maneira personificada, ‘a capoeira me deu’, ‘me ajudou’,
‘me ensinou’. Ouso dizer que ela é compreendida na vida de cada um como um sujeito com
o qual as e os capoeiristas estabelecem uma relação de troca e reciprocidade. A capoeira é
apontada a cada momento como agente de mudanças positivas na vida pessoal das e dos
capoeiristas, sendo que o reconhecimento dessa mudança enlaça a responsabilidade do
capoeirista para com a capoeira, como uma forma de retribuição. Esse sentimento é
registrado também na letra da seguinte música, cujas passagens marcadas por mim realçam
esse tipo de relação:
Um dia a Capoeira ela lhe ajudou/ Tirou você da miséria/ lhe transformou/ Os seus
amigos jamais/ Nenhum deles foram capaz/ De te dar ajuda na vida quando
precisou

(Você não sabe o valor que a Capoeira tem/ Você não sabe o valor que a Capoeira
tem/ Ela tem valor demais/ Ê se segura rapaz/ Você não sabe o valor que a Capoeira
tem) Coro

Um dia um grande amigo/ Ele me disse assim/ Vamos jogar Capoeira/ Vamos lá
brincar/ Muita gente conheci/ Ai foi que eu entendi/ Que a Capoeira/ Ela veio pra
me ajudar/Tu não sabe o valor (Coro)

Hoje eu lembro de um mundo/ Em que um dia passei/ Tudo na vida parceiro/ A


primeira vez/ Agradeço ao bom Senhor/ A Capoeira me ajudou/ Ela me fez ser na
vida/ Hoje quem eu sou (Coro)

Eu falo da Capoeira/ Com muita emoção/ Mexe com meu corpo/ Todo com meu
coração/ Se é pra falar de amor/ Ela que me conquistou/ Ela me botou nos braços/
27
E me tirou do chão (Coro)

Uma das formas marcantes apontadas pelos capoeiristas de como a capoeira transformou
suas vidas está relacionada à comparação com antigos amigos, amigas, conhecidos e colegas
que, ao contrário deles que hoje estão na capoeira, se perderam no mundo das drogas, da
violência.

27
“Você não sabe o valor que a Capoeira tem”, de Mestre Burguês, grupo Muzenza de capoeira regional.
74
Se eu não tivesse entrado na capoeira eu não seria quem eu sou hoje. (...) Esse
colega que eu citei que entrou comigo, hoje em dia ele tá no mundão, entendeu, e
eu fico triste porque era um menino que tinha tudo pra crescer, sabe? Mas o crime
acabou levando o primo dele, e aí ele desnorteou também e acabou entrando
(Viviane, 18 anos).

Para Claudiniz, um fator que torna bebida e drogas incompatíveis com esporte, é que,
segundo ele, “quem fuma não tem desempenho”, e conta que entendeu isso em certa
situação na qual sofreu um golpe durante uma roda em que tinha bebido pouco antes e
percebeu a diferença em seus reflexos. Ele conta também que muitos capoeiristas tendem a
trocar festas e eventos “onde vai tá rolando droga” por uma roda ou treino de capoeira e
afirma que hoje só bebe raramente.
Acredito que compreender a capoeira como sujeito em si amplifica seu potencial
transformador da realidade uma vez que implica engajamento pessoal dos capoeiristas na
relação com a prática e com seus princípios. Segundo Sara Abreu da Mata Machado (2016) a
capoeira está “atualmente presente em mais de 160 países do mundo, sendo seus
praticantes advindos de diversas origens culturais, identidades étnico-raciais, gerações,
gêneros e classes sociais” (2016, p. 90), e aparentemente continua crescendo e se
transformando.
Para Zonzon (2011) a representação da capoeira enquanto “luta brasileira” foi o que
possibilitou seu crescimento ao redor do mundo, competindo com outras artes marciais já
mundialmente conhecidas e almejando inclusive se tornar esporte olímpico, o que deu
origem, por iniciativa do Mestre Bimba, à modalidade da capoeira regional. Para a autora, a
interpretação da capoeira como esporte, com um sistema de ensino mais sistemático,
voltado à eficácia da luta, incluindo mais saltos e movimentação mais sistematizada, além
da identificação da luta a uma ‘identidade brasileira’, aumentou muito a aceitação da
prática em meios sociais mais diversos. Nesse ponto, muitas pessoas que procuram a
capoeira vão, segundo Fagner, “para melhorar o corpo, pra mostrar aquilo que aprendeu na
academia, pra extravasar, pra aliviar do estresse, pra procurar algo melhor pra fazer, algo
saudável pra fazer, e esse algo vai ser a capoeira”, ou seja, não necessariamente a busca da
capoeira está ligada a valores e ancestralidade.
No entanto, Machado (2016) argumenta que muitos dos grupos de capoeira:
configuram-se atualmente como comunidades transnacionais, interculturais. Eles
participam de um movimento de voltar-se para o local, mas já com um caráter
global, ou seja, apresentam em seu discurso e prática uma forte identificação com
as tradições culturais negras, que agregam muitas pessoas de países europeus e dos
EUA, [inclusive] brancas, de classe média. Essa configuração da capoeira atualmente
nos permite pensá-las como possíveis espaços de diálogo cultural, sendo que esse
diálogo acontece na linguagem da capoeira, ou seja, com ginga, malícia, mistério,
engano, hierarquias e subversões, de modo que ao mesmo tempo em que ela pode
apresentar oposições à globalização neoliberal, pode também jogar o jogo dessa
mesma globalização (p. 94).

Na concepção da autora, a modernização da capoeira e sua inclusão nos processos globais


de disseminação, assim como a agregação da lógica da competição e do espetáculo tão

75
marcantes nas sociedades ocidentais contemporâneas, não diminui o caráter local e
ancestral da capoeira. Zonzon apresenta argumentos na mesma direção, uma vez que, para
ela
quanto mais a capoeira se configura como vínculo ou resgate de valores pré-
modernos (como religiosidade, espiritualidade, ancestralidade, ritualidade,
comunidade) que implicam modos de se relacionar com o tempo, o espaço e o
outro, remetendo a tradições africanas, mais atrai e acolhe um público diversificado
cuja adesão à prática só se tornou possível em função de processos próprios à
contemporaneidade, entre os quais o desenvolvimento das tecnologias das
comunicações aparece como o mais evidente (2011, p. 136).

A capoeira, além das questões da ancestralidade e da modernidade, vem incorporando


também temas muito recentes nas discussões contemporâneas como a questão de gênero e
da sustentabilidade. A prática, segundo levantamento feito por Machado (2016) tem tido
cada vez maior adesão de mulheres, eventos específicos de mulheres e, consequentemente,
mais mulheres com graduações elevadas como as de contramestre e mestre. A autora
acrescenta também a relação da capoeira com práticas de sustentabilidade, como a
permacultura, em iniciativa desenvolvida pelo Mestre Cobra Mansa, da Capoeira Angola, na
Bahia (ZONZON, 2011). Trago aqui um breve relato também do meu caderno de campo
durante o evento anual promovido pelo Axé Dendê em Paracatu, durante o qual houve
momentos específicos liderados por mulheres e voltados para a valorização da mulher
capoeirista28:
Era o dia do meu batizado e eu estava bastante ansiosa com a iminência de jogar
capoeira com tanta gente na roda. A manhã seria dedicada ao ‘evento feminino’,
com programação de oficinas e discussões voltadas à questão da mulher na
capoeira. Começou com uma oficina de Jongo, uma dança tradicional de
comunidades quilombolas especialmente na região do Rio de Janeiro. Uma
professora jovem, Rayane, ou Mutante, como é chamada nos grupos de capoeira,
do grupo Beribazul de Brasília, foi quem propôs as atividades, levando várias saias
para as moças usarem. Gostei muito, é a dança dos pretos velhos, segundo ela, e é
fácil e difícil ao mesmo tempo, me diverti muito. Logo em seguida, a professora Lia,
também de Brasília, deu um treino muito bom, com sequências de movimentos
muito legais, alguns que eu não conhecia, outros bem complicados, tive que me
esforçar bastante para acompanhar e mesmo assim em alguns momentos me
contentei em rir de mim mesma. A programação atrasou bastante e não fizemos a
conversa sobre as mulheres na capoeira, que a Rose já tinha planejado para aquela
manhã. (...) Na hora do batizado, meu coração estava agitado! Já tinha tomado um
tombo de um mestre de Brasília, e sabia que era de praxe a pessoa que dá a corda
pra gente dar também um tombo durante o jogo. Fiquei feliz que foi a Mutante
quem me entregou a corda e jogou comigo o primeiro jogo. As duas outras colegas
que também recebiam as suas primeiras cordas também tiveram mulheres como
suas madrinhas, e depois joguei com elas também, além de outras pessoas da roda
(Caderno de campo, novembro de 2016).

O que quero ressaltar aqui é que a capoeira, como qualquer manifestação cultural, é fruto
do seu tempo e acompanha as mudanças, as questões, as demandas daqueles que hoje
fazem a capoeira. Ela faz os sujeitos, como os depoimentos que colhi indicaram, mas é
também feita por eles, continuamente. Esse movimento não acontece só na capoeira, mas
28
Inserir imagem de divulgação do evento de mulheres nas fotos
76
também no Afro N’Gonda, nos grupos de teatro, e mesmo nas festas tradicionais como a
Caretada, que também têm passado por modificações e adaptações ao longo do tempo,
como já foi discutido anteriormente neste trabalho. A capoeira, as danças, o teatro, são
sujeitos presentes, em presença e em atualidade, constantemente lançados no fluxo das
experiências das pessoas.

Figura10. Promoção do evento do grupo de capoeira Axé Dendê, com enfoque na participação de mulheres capoeiristas
(Fonte: Arquivo Axé Dendê, 2016).

77
CAPÍTULO 3: Performance

Neste capítulo, tratarei das apresentações públicas dos grupos de capoeira, dança afro e
teatro como momentos em que as juventudes assumem um lugar no mundo, escolhem a
maneira como querem ser vistas e se defrontam com as reações do público. A performance
individual e coletiva, entrelaça estética e política, entretenimento e ritual, marcando as
experiências de quem performa e de quem assiste.
Mudar de papel, fugir da configuração cotidiana, são também atributos da performance.
Nesse sentido, a concepção de performance utilizada nesta análise se aproxima das
elaborações de Turner (1969), nas quais ela se equipara ao momento do ritual como o lugar
ou o tempo das ambiguidades, durante os quais os atores podem assumir outros papéis
sociais, zombar de si mesmos e dos espectadores e, por fim, voltar ao cotidiano
transformados. Scherner (1988) argumenta na mesma direção ao afirmar a performance
como, ao mesmo tempo, entretenimento e ritual, sendo por isso capaz de operar
transformações tanto no performer como no público.

3.1 Marcando uma posição diante do mundo


Tendo até agora ressaltado a capoeira, o teatro e a dança afro em Paracatu como meios
importantes através dos quais as juventudes podem acessar outros sistemas de
conhecimento e assim ressignificar as suas narrativas pessoais a partir de novos
pressupostos, proponho um passo além na direção de compreender essas práticas também
em seu potencial de expressão e de transformação da realidade. A partir do encontro com
saberes outros que os formais, com o conhecimento das linguagens e das concepções sobre
as quais se fundam essas práticas, as juventudes têm a oportunidade de questionar sua
vivência escolar, familiar, profissional e elaborar novos parâmetros a partir dos quais avaliar
e se posicionar no mundo. Essas novas perspectivas marcam as experiências individuais e
coletivas, às vezes desde a infância ou em um encontro mais tardio, e encontram formas de
expressão pela linguagem do corpo que coreografa, que luta, que encena, que musicaliza.
Melucci (2007) fala sobre as formas de expressão das juventudes como formas de
reivindicação de visibilidade e de ação sobre a realidade vivida:
Através de certos aspectos da ação a juventude sinaliza um problema relacionado
não somente com as suas próprias condições de vida, mas também com os meios de
produção e distribuição de recursos de significado. Os jovens se mobilizam para
retomar o controle sobre suas próprias ações, exigindo o direito de definirem a si
mesmos contra aos critérios de identificação impostos de fora, contra sistemas de
regulação que penetram na área da “natureza interna” (p. 42).

Retomo então o conceito de cultura como resistência, como rejeição à “definição e


suposição de que a forma futura de toda consciência humana foi decidida de maneira final
na Europa do século 17” (NANDY, 2015, p. 209). Essa cultura é apropriada de diversas
maneiras pelas juventudes contemporâneas e nesse caso específico, por jovens ligados a
grupos de arte e cultura em Paracatu. Para Nandy a cultura “não é apenas a linguagem da
resistência; ela é a resistência. (...) Resistência especialmente à opressão que é apresentada
78
como uma ‘necessidade histórica’, frequentemente sob nomes de causas nobres como
história científica, crescimento tecnológico, segurança nacional e/ou desenvolvimento”
(2015, p. 209). Alguns depoimentos indicam esse posicionamento crítico:
Tem troca de porrada? Têm!... Mas quando tem apresentação... solta um jogo mais
bonito pras pessoas que tão vendo ver que é uma arte, é cultura, entendeu?
Capoeira é cultura, então todo mundo que vê fica de cara, ‘Nossa! Fulano fez isso!
Nossa, que massa olha lá!’ Os menininho cê vê, pequenininho, ‘Nossa mamãe!
Quero fazer!’, entendeu? Então inspira muito as crianças a querer fazer, querer
praticar, porque capoeira é arte, e hoje em dia, graças a Deus, tá muito mais
valorizado, quando eu entrei não era assim não. (...) Tem menininho que ele falou
assim ‘Ah! Já te vi, tia, eu te conheço, já te vi jogando capoeira’ e eu nunca vi, mas é
legal, você transmite muita coisa pras pessoas sem saber, sem ter intenção (Viviane,
18 anos).

Além da gente apresentar a cultura ao pé da letra praqueles que não conhecem, a


gente apresenta o grupo também. Tanto que quando a gente apresenta, tem gente
que fala assim ‘nossa! Pensei que Maculelê era outra coisa! (...) Por que a pessoa
ouve, ela imagina, ela tem uma ideia do que seja Maculelê, só que a gente chega lá
e apresenta o Maculelê pra ela como ele realmente é (...). Então acaba que a gente
muda a ideia de uma pessoa que pensava ruim a respeito da dança (...). Vai indo vai
indo isso vai passando pra frente, eu acho isso muito legal também (...). A sociedade
acaba que vê a gente diferente (Joanine, 19 anos).

O que quero ressaltar aqui é que as práticas que motivam este trabalho se configuram
enquanto resistências ao projeto desenvolvimentista hegemônico na cidade de Paracatu e
no Brasil, na medida em que defendem racionalidades e sistemas de conhecimento que ao
mesmo tempo em que se articulam aos ideais da modernidade, se contrapõem a ele. As
performances e apresentações públicas tratadas aqui não devem ser compreendidas como
entretenimento apenas, mas sim como reivindicação de reconhecimento e de legitimidade
para as culturas negras e periféricas a esse sistema, ocupando o espaço público como lugar
de disputa de poder.
O ponto alto é a apresentação? sim! mas melhor ainda é o caminho pra chegar na
apresentação, né, o dia a dia, a caminhada, o passo-a-passo, a coreografia... Porque
você conviveu ali três, quatro meses pra chegar em 10-15 minutos de apresentação,
então existe uma escola de vida ali antecipada (Rose, 39 anos).

Relatos dos jovens apontam a contraposição entre o que eles consideram que a sociedade
espera deles, e o que eles estão buscando:
A sociedade ela espera resultados. (...) Pra sociedade, muitas vezes, falando em
Paracatu, né, pra sociedade aqui da cidade local, muitas vezes ser ator ou ser artista
é hobby, é obrigado a ser hobby. Cê tem que trabalhar numa empresa, numa coisa,
e ser ator no final de semana, no feriado, nas férias. Então, hoje, eu acho que o
jovem busca muito essa quebra (Jean, 18 anos).

Eu já pensei demais em trabalhar com cultura, mas às vezes a gente acaba que dá
pra trás por causa que a gente às vezes não suporta ouvir, vindo de quem a gente
mais gosta ‘ah isso não dá dinheiro’, quem falou que eu tô focada em ganhar
dinheiro? Eu posso fazer o que eu gosto pro resto da vida ganhando pouco dinheiro,
ninguém perguntou pra mim se eu quero ganhar dinheiro ou ser feliz (Joanine, 19
anos).

79
Não é que a gente decide fazer teatro, já tá na gente. A gente faz porque é uma
coisa (...). Eu tentei desistir, me dediquei à faculdade de Direito (...) e não era uma
coisa com prazer. Vou fazer teatro, e independente das dificuldades que eu passar,
quem vai passar é eu! E não é fácil em nenhuma profissão. (...) Pra mim, teatro é
ofício (Iuri, 20 anos).

Por outro lado, Profissionalmente, participar dos grupos de teatro, dança afro e capoeira
pode abrir portas para atuar em diversas situações. As e os jovens envolvidos são
contratados para trabalhar em eventos na cidade, ministram oficinas para outros jovens em
escolas e eventos culturais, participam de formações com outros grupos, organizam e
gerenciam eventos como o FESTEPA – Festival de Teatro de Paracatu e o Papoeira,
garantindo a entrada de algum recurso em seu orçamento. Além disso, essas são
oportunidades práticas de preparação para algumas profissões indicadas pelos jovens
atores como projetos de futuro, como a própria formação em artes cênicas, ou outras
relacionadas, como música, gestão cultural, comunicação e jornalismo entre outras,
aproveitando as habilidades adquiridas como um trunfo profissional. Sofia, a mais jovem
integrante do Afro N’Gonda, afirma que “quem participa fica mais proativo, prestativo,
comunicativo”. Lucas afirma, nesse sentido, que o teatro e os outros cursos que faz o
ensinam habilidades que vão lhe favorecer em sua vida profissional, e exemplifica: “como se
comportar em uma empresa”, ser comunicativo, pontualidade, responsabilidade, respeitar
regras. Ele afirma que quer estudar Direito e trabalhar com relações públicas e que gosta de
“ocupar seu tempo”:
Eu gosto muito de tá no meio social, aonde tem muita gente, assim, gosto de ter
informação, saber como é aquilo, aquilo, aquilo e aquilo. (...) Eu faço muitas coisas
assim porque, tipo assim, pra eu fazer alguma coisa eu tenho que ter pelo menos
uma informática, uma gestão também ajuda, curso profissionalizante que eu
pretendo, quando eu terminar gestão eu pretendo fazer um profissionalizante, e é
isso, querendo ou não, hoje a gente vai a gente tem que saber ter um assunto pra
conversar, porque eu acho que uma pessoa sem assunto, falar bobagem... ninguém
guenta.

Nesse sentido, narrar a partir de um ponto de vista é se posicionar, é assumir um discurso


que está necessariamente localizado em um campo de forças, marcado historicamente por
relações de poder entre visões concorrentes sobre a realidade e a história. Nas palavras de
Neusa Santos Souza, “uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si
mesmo” (1983, p. 17). As narrativas que sustentam os discursos das juventudes através da
capoeira, da dança afro e do teatro questionam o lugar subalternizado destinado às
juventudes, aos negros e negras, aos periféricos, à cultura dentro da sociedade hegemônica
e o lugar que esses sujeitos querem ocupar; é entre o que se espera e se cobra das
juventudes e o que é desejado por elas.
A arte e a cultura tornam-se, assim, instrumentos de visibilização, de resistência e de luta
pelo que se acredita, contra o silenciamento e a dominação. Performatizar essa posição é se
identificar com ela, assumi-la publicamente, deixando-se afetar e marcar socialmente. As
lentes da arte e da cultura abrem possibilidades de percepção do mundo de outras formas,
e com elas a opção pelos mundos nos quais escolhemos viver.
80
3.2 Performance e expressão: a saída para o mundo
Segundo Ingold (2010), toda performance é um movimento original, mesmo se está
reproduzindo algo que foi previamente criado. Ela nunca acaba, pelo sem fim de significados
que se constroem a partir da sua primeira construção (INGOLD, 2010). Nesse sentido, a
concepção de performance para Ingold vai ao encontro das reflexões de Turner e outros
autores, no sentido de uma criação a partir da experiência vivida, em relação permanente
com as experiência anteriores de cada sujeito.
A performance se configura então como a expressão de um processo contínuo de
articulação entre experiências já vividas e memória com experiências presentes dos sujeitos.
Essa relação, no caso específico das juventudes em sua participação nos grupos em foco
neste trabalho, está permeada pelas tensões entre o conhecimento ocidental ortodoxo
ensinado nas escolas e vivido no cotidiano do trabalho e do urbano, e o conhecimento da
história e da cultura pelas lentes da capoeira, da dança afro, do teatro e de suas narrativas
de resistência, de luta, de criatividade, que se constroem a partir de outras lógicas.
Em uma sociedade que “multiplica horas mortas que apenas suportamos” (BOSI, 2003, p.
24), participar de grupos como esses torna disponíveis experiências, conhecimentos,
memórias, bem como instrumentos discursivos e expressivos que fora desses meios o
acesso é limitado. Um movimento contra o desperdício das experiências de povos e culturas
não ocidentais, historicamente desprezados, perseguidos e silenciados pelo imperialismo
material e simbólico dessa cultura dominante, como é o caso das culturas negras e
indígenas no Brasil é o que Boaventura de Sousa Santos chama de Sociologia das Ausências
(SANTOS, 2007b, p. 33). Na capoeira, na dança afro, no teatro, essas experiências ganham
nova voz, nova potência de comunicação através da reinterpretação das histórias, das
músicas, das encenações, através de performances que impactam tanto os atores
envolvidos como seus espectadores.
Fazer-se visível é se afirmar, marcar diferenças, ao mesmo tempo em que é denúncia, no
plano simbólico, de desigualdades e opressões sofridas. A performance
torna visíveis atores e instituição. É palco de um amplo jogo de espelhos, lugar de
exibição de identidade e construção de auto- imagens. É espaço de transformação.
É concebida como auge do processo pedagógico, locus de exibição do que foi
aprendido, ensaiado, incorporado. É oportunidade de conhecer novos lugares,
pessoas, é “saída para o mundo” (HIKIJI, 2005, p. 158).

Ocupar o espaço público é um ato político por excelência. As aulas e performances de


capoeira, dança afro e teatro ocupam praças da cidade, escolas e outras instituições de
ensino, bem como prédios públicos como a Casa de Cultura, o Museu Histórico Municipal e
a Câmara Municipal dos Vereadores. Para além da esfera municipal, as e os jovens viajam
para outras cidades e até outros estados para participar de eventos nos quais se
apresentam, compartilham experiências, trocam informações. Nessas oportunidades, os
jovens atores e atrizes, capoeiristas, dançarinos e dançarinas, narradores de suas histórias,
transformam em mensagem sua experiência vivida, permitindo que o público se aproprie e
torne também dele essa experiência. Evidencia-se aí a multiplicação das experiências vividas
81
através da performance, por meio da relação que se estabelece entre atores e plateia e
entre os próprios atores, no compartilhamento das histórias e das experiências.
Essa relação é dialógica na medida em que o retorno do público afeta também os atores
envolvidos, e assim suas performances e as reflexões com relações a elas. Sobre isso, alguns
relatos falam desde a reação no próprio momento da apresentação, como também na
concepção e escolha das peças encenadas, como se segue:
É muita troca de sentimento. (...) Quando você olha pra uma pessoa e ela tá
desanimada, você enfraquece, é automático, se cê olha pra uma pessoa e a pessoa
tá viajando, cê sobe! Então o segredo, quando eu tô apresentando, eu busco olhar
pras pessoas que tão gostando (Jean, 18 anos).

Fazer uma apresentação sobre amor sendo que a galera que cola com nóis não tá
nessa onda, tão no crime, tão passando fome, tendo filho com 12, 14 anos. (...)
Fazer coisas relacionadas com o que a sociedade tá com fome, precisa conciliar as
duas coisas (João, 25 anos).

A plateia funciona como termômetro para as apresentações públicas. Ela denota o


reconhecimento atribuído ao performer e o quanto ou como a mensagem pretendida foi
efetivamente recebida pelo público. No Afro N’Gonda, a reação do público é tomada
também como elemento de motivação, como as falas de Joanine e Sofia, respectivamente
indicam: “A reação do público é gratificante, faz querer apresentar de novo e perder o
medo”, e “mesmo quando a gente erra as pessoas acham bom e isso incentiva a querer
melhorar”. Na capoeira a energia da roda é também apontada como derivada em grande
parte da participação das pessoas que assistem ao jogo no canto, nas palmas, na luta, o que
também aponta o público como elemento fundamental desses momentos, como já foi
discutido em tópicos anteriores.
A plateia impulsiona o processo criativo e oferece a oportunidade de expansão do potencial
comunicativo dos grupos e de suas performances, bem como de reflexões dos sujeitos em
diversos âmbitos. De acordo com as entrevistas e rodas de conversa, as pessoas que
assistem às apresentações de dança, por exemplo, às vezes fazem perguntas aos dançarinos
e dançarinas sobre as coreografias sobre os personagens das histórias, como é o caso do
Maculelê. Muitas perguntas vêm carregadas de ideias preconcebidas e por vezes
preconceituosas sobre religiões de matriz africana, sobre os figurinos e maquiagem
utilizados, sobre os rapazes que dançam usando saias, ou sobre os movimentos das danças,
por vezes considerados ‘estranhos’, para citar alguns exemplos observados no processo. Na
capoeira o abadá é também questionado, por ser associado negativamente no imaginário
popular a religiões de matriz africana.
No teatro, por sua vez, os questionamentos do público são, em geral, em torno da nudez em
algumas performances teatrais, e da sexualidade dos atores e atrizes. Segundo relatos, o
Cine Teatro Santo Antônio, a mais antiga casa de teatro da cidade, de propriedade e gestão
da Igreja Católica, fechou as portas para receber espetáculos externos quando uma das
peças encenadas pelo grupo Cênikas, o “Beijo no Asfalto”, mesmo depois de ter sofrido
algumas adaptações para viabilizar sua apresentação nesse contexto, apresentou um beijo

82
homossexual, como consta em seu enredo. Alguns entrevistados afirmaram que é comum
que o público faça uma relação entre o fazer teatro e a homossexualidade, sendo esta
última ainda vista com preconceito pela opinião pública paracatuense em geral, o que
ofende e decepciona muitos dos envolvidos.
As juventudes que participam dos grupos de dança e teatro enfocados nessa pesquisa
apontam seus grupos como sendo marcados pela diversidade cultural, racial e de gênero, o
que afirma uma posição nitidamente oposta àquela do senso comum sobre o que sejam
essas práticas e seus fundamentos. Constatar a distância entre um ‘nós’ que aceita a
diferença e a diversidade, que respeita e que tem abertura para o diálogo, com um ‘eles’
que se atém a julgamentos de valor muitas vezes baseados em ideias arcaicas e
discriminatórias, é outro aspecto importante do contato com a plateia. O momento da
performance atua assim fortalecendo distinções com relação ao público e nessa medida
também o pertencimento a um coletivo que compartilha princípios e visões de mundo, para
além das coreografias e apresentações.
É recorrente nas falas das e dos jovens capoeiristas, dançarinos e atores a intensidade do
momento da apresentação ou da roda. Alguns relatos que colhi sobre o momento das
apresentações e rodas marcam sua importância e singularidade. Viviane afirma que “O
mundo pode tá desabando. Eu botei o pé no Júlia, tá tendo a roda, cara! Eu entrei na roda
ali, acabou! Acabou, os problemas ficou tudo pra trás, esquece, é como cê fechar o olho e
dormir”, o que ressalta a característica da performance enquanto ritual, de um ‘tempo fora
do tempo’, durante o qual o cotidiano é suspenso para dar lugar a experiências de outras
ordens. Sobre a importância do momento da roda, Zonzon afirma:
a realização da roda de capoeira é um elemento que acaba se tornando
fundamental na ressignificação do jogo: passa a ser encenada conforme um roteiro
ao mesmo tempo definido e flexível em que as formas expressivas, corporal e
musical, os papéis dos protagonistas, as configurações espaciais e temporais da
performance são formalizados e ritualizados (2011, p. 135).

Na roda de conversa com o grupo Afro N’Gonda, medo, frio na barriga, arrepio são formas
de descrever a sensação antes das apresentações. “Se não tiver o arrepio não precisa mais
apresentar, já ficou comum”, acrescenta Rose, professora do grupo, indicando mais uma vez
a localização da performance fora do ‘comum’ ou do cotidiano. Alisson reforça essa ideia,
quando diz que a primeira vez que foi se apresentar com o grupo se sentiu “pelado”, mas
que o uso da maquiagem o ajudou a se sentir mais confiante. Os dançarinos afirmam que as
pessoas que nunca assistiram as apresentações “acham esquisito”, porque “tem costume
com outros tipos de dança”. Esses relatos denotam mais uma vez a situação de
excepcionalidade experimentada durante o momento da performance e o uso de artifícios
como a maquiagem, o figurino, ou o abadá no caso da capoeira, como elementos que
separam o performer da plateia, que permitem que ele ocupe esse lugar de maneira
legítima, reconhecida.
Gustavo relata um sentimento parecido também durante a performance “Humano R$ 1,00”,
durante a qual os jovens se apresentavam com roupas de baixo de cores neutras, como se
83
estivessem nus. Ele conta que ficou preocupado com o que a família ou os amigos da escola
iam pensar, e alguns vieram perguntar o porque daquela escolha. Para ele, em Paracatu, o
corpo do ator ainda é um tabu, mas ele afirma que a reação, em geral, foi boa nesse caso,
apesar de muitos não entenderem as motivações.
Jean afirma durante a roda de conversa com outros participantes dos grupos teatro
sentimento semelhante ao relatado no Afro N’Gonda: “toda vez que vou apresentar quero
sair correndo”, o que é traduzido pelos demais participantes da roda de conversa como “frio
na barriga” ou nervosismo. Mas a ansiedade antes das apresentações dura até o momento
em que a performance começa e, a partir daí, é como se os jovens pudessem experimentar
uma situação de total presença, de “esquecer de tudo”, como Viviane descreve, e estar
apenas focado naquele momento. “É muito intenso e passa rápido”, afirma Gustavo, e
Helenice, do mesmo grupo que Jean e Gustavo, reforça: “estar na apresentação é como se
você deixasse todos os seus problemas de lado, você só existe ali, naquele momento, é
maravilhoso! É cansativo e estressante mas logo em seguida você já sente falta”.
É importante ressaltar, portanto, o potencial transformativo das subjetividades que a
performance oferece. Naquele momento é escancarada a oportunidade de se reinventar,
manipular a imagem pessoal, transmitir a mensagem que se quer. O cotidiano é suspenso e
junto com ele os parâmetros, as referências, dando espaço para novas sínteses, novos
personagens no palco e na roda. Esses personagens marcam também a possibilidade das
juventudes se verem e se colocarem de maneiras inovadoras, expandirem os horizontes de
experiência e de ação e assumirem outros personagens também na vida cotidiana.

Figura 11. Apresentação de Maculelê do Afro N'Gonda na Câmara Municipal de Paracatu (Fonte: Arquivo Afro N'Gonda).

84
Figura 128. Aula de capoeira do grupo Axé Dendê no Museu Histórico Municipal de Paracatu (Fonte: Arquivo Axé Dendê,
2016).

Figura 93. Oficina de palhaço durante o FESTEPA (Fonte: Arquivo grupo Cênikas, 2016).

85
Figura 1410. Evento de capoeira do grupo Axé Dendê em Mineiros/Goiás (Fonte: Arquivo pessoal, 2016).

3.3 Estética e política


Começo esta sessão com as reflexões de Rossana Reguillo sobre a importância da estética
para os grupos de jovens. A autora afirma que
o vestuário, a música e certos objetos emblemáticos constituem hoje uma das mais
importantes mediações para a construção identitária dos jovens, elementos que se
oferecem não só como marcas visíveis de certos destacamentos mas,
fundamentalmente, como o que os publicitários chamam com razão de “um
conceito, um estilo”. Um modo de entender o mundo e um mundo para cada
necessidade na tensão-identificação-diferenciação. Efeito simbólico - não por isso
menos real - de identificar-se com os iguais e diferenciar-se dos outros (2007, p.
29
51) .

Ela evidencia assim a maneira como a estética está relacionada aos processos de
subjetivação, identificação com uma coletividade e às performance sociais das juventudes,
de forma a marcar suas posições diante do mundo. Entre as e os jovens que participam dos
grupos de dança afro, teatro e capoeira com os quais tive a oportunidade de conviver, o
tema da estética é recorrente nas conversas informais e também nas entrevistas e rodas de
conversa propostas para esta pesquisa, e gostaria aqui de analisar seu potencial político.
Entre os dançarinos e dançarinas do Afro N’Gonda, por exemplo, o tema dos cabelos afro
aparecia sempre, seja na forma de troca de informações sobre produtos e cuidados com os
diversos tipos de cachinhos que marcavam as cabeleiras e as personalidades, seja nos
comentários entre colegas a cada troca de penteado na turma. São cores novas de tranças,
são blacks, tranças nagô, rastafáris, que, de acordo com os relatos durante a roda de

29
Tradução livre da autora. No original: “El vestuario, la música y ciertos objetos emblemáticos constituyen hoy
una de las más importantes mediaciones para la construcción identitaria de los jóvenes, elementos que se
ofrecen no solo como marcas visibles de ciertas adscripciones sino fundamentalmente como lo que los
publicistas llamam con gran sentido “un concepto, un estilo”. Un modo de entender el mundo y un mundo para
cada necesidad, en la tensión-identificación-diferenciación. Efecto simbólico – no por ello menos real – de
identificarse con los iguales y diferenciarse de los otros, especialmente del mundo adulto” (REGUILLO, 2007, p.
51).
86
conversa, tem tido cada vez mais adesão na cidade, especialmente entre as juventudes.
Segundo Joanine, o acesso a esses penteados está cada vez mais fácil porque, está na mídia,
sendo divulgado, e Rose confirma dizendo que, hoje, “ser negro está na moda”. Valéria,
além de dançarina do Afro N’Gonda, é também especialista em cabelos afro, sendo
responsável por muitos dos penteados dos participantes do grupo. Apesar disso, elas
relatam que os penteados afro também são alvo de discriminação sofrida mesmo dentro de
casa, no trabalho ou entre amigos. Cacau conta que teve dreads durante a maior parte de
sua vida, e mostra fotos com orgulho lembrando com nostalgia ao afirmar que a mudança
do penteado foi o único arrependimento de sua vida. Joanine faz uma observação
interessante que denota sua compreensão de que a estética afro é uma escolha identitária e
de luta contra a opressão racial. Ela afirma que “branquela não pode usar [tranças,
turbantes, penteados afro] se não sabe o que tem por traz. (...) É interessante antes de usar
saber o significado se não é até ofensa. Se a pessoa faz parte, entende, tudo bem, mas só
por moda ofende quem tem isso como raiz”.
Os figurinos e maquiagem utilizados nas apresentações de dança afro são inspirados nas
tradições das comunidades negras africanas e produzidos pelos próprios integrantes do
grupo (ver Figura 7). Alisson conta que já sofreu homofobia por estar vestido com o figurino,
que se constitui em uma saia igual à das dançarinas e o torso nu. Ele explica que o uso da
maquiagem é muito importante para deixa-lo mais seguro e confiante para se apresentar
diante do público. Joanine conta que as pessoas às vezes estranham o material das saias, o
sisal, porque não estão acostumadas com aquilo, se impressionam, o que é amplificado
ainda mais nas apresentações da Dança do Fogo, na qual as e os dançarinos carregam
tochas acesas durante a performance. A maquiagem para as apresentações é feita às vezes
de maneira autônoma por cada um dos dançarinos e dançarinas, um fazendo no outro, ou
então por algum membro mais experiente do grupo que ajuda os demais. Esse momento de
concentração acontece sempre antes de cada apresentação, assim como alguns exercícios
de aquecimento, fotos, brincadeiras.

87
Figura 115. Momento de preparação antes da apresentação de Maculelê (Fonte: Arquivo Afro N'Gonda).

Figura 126. Momento de preparação antes da apresentação de Maculelê.2 (Fonte: Arquivo Afro N'Gonda).

Entre os capoeiristas e as capoeiristas o tema do cabelo não apareceu de maneira tão


evidente, mas sim a questão do cuidado com o corpo, como uma das principais razões pelas
quais as pessoas buscam hoje a capoeira. Apontam essa relação com a prática como
responsável por hábitos de vida mais saudáveis, evitando o uso de drogas e álcool para

88
privilegiar o desempenho físico, como conta Claudiniz em sua entrevista. Cacau, durante o
evento organizado pelo Axé Dendê no final de 2016, lembrou a todos e todas presentes a
proibição do consumo de bebida alcóolica enquanto estivessem vestidos com a camisa de
seu grupo, reforçando a identificação da estética, ou da forma de apresentação do
capoeirista com um certo estilo de vida e valores. O figurino dos capoeiras marca também
quem é de dentro e quem é de fora, com o uso do abadá30 e de camisas com estampas de
capoeira ou de eventos dos quais já tenham participado, especialmente em momentos de
roda. Cacau e Rose têm sua própria estamparia em casa e produzem figurinos e camisetas
temáticas de capoeira que atendem à demanda do Axé Dendê e de outros grupos e eventos
em Paracatu.

Figura 13. Evento de batizado e troca de cordas do grupo de capoeira Axé Dendê em Mineiros/Goiás. Detalhe para o
abadá e para as camisetas confeccionadas especialmente para o dia do evento (Fonte: Arquivo pessoal).

Entre as jovens atrizes e atores, o tema da estética não foi tão diretamente abordado, por
não haver, a princípio uma identificação comum de “conceito ou estilo”, retomando a fala
de Reguillo, entre esses jovens. O que os caracteriza, pode-se dizer que seja a diversidade
de estilos e a liberdade de ousar. Em certa ocasião, a Cáritas Diocesana de Paracatu recebeu
um carregamento de roupas de sua sede internacional para fazer uma bazar, roupas as mais
variadas, de muitas origens diferentes, estilos, épocas. Posso afirmar que todos os jovens
atores e atrizes que conheci visitaram esse bazar, tanto em busca de figurinos para seus
personagens como também para compor seu estilo, sua criatividade estética. O cabelo
aparece também em alguns relatos como elemento marcante do estilo de cada um, por
exemplo, nos relatos de Jean, Gustavo e Daiane, que deixam claro sua opção pelo uso dos
cabelos afro como uma escolha estética, mas também de postura afirmativa diante da

30
Abadá é o nome que se dá à calça branca que a capoeira regional estabeleceu como vestuário próprio,
amarrada com uma corda que identifica através de uma escala de cores a graduação do capoeirista.
89
sociedade. Da mesma forma que no Afro N’Gonda, Jean também relatou episódios de
discriminação, às vezes disfarçados de piadas e apelidos, relacionados ao seu cabelo.
Como já foi apontado no primeiro capítulo deste trabalho, o corpo negro é perseguido e
discriminado como um corpo que foge aos padrões estéticos socialmente dados. Esses
corpos sofrem todo tipo de controle, repressão, culpabilização e violência, o que leva muitas
vezes os sujeitos a uma dificuldade de auto aceitação, como se o seu corpo fosse
responsável pelas barreiras à sua inserção social. Outras marcas também podem se somar
ou não à da negritude, definindo uma complexa combinação de camadas que orientam a
aceitação desses corpos socialmente. O corpo feminino, jovem, homo ou transexual, o
corpo gordo, são também são considerados fora desse padrão europeu, moderno, branco,
heteronormativo, de orientação masculina, e conformam a interseccionalidade das
experiências corporais desses sujeitos.
A valorização da estética negra, passando pela reinvenção do corpo e do movimento na
dança afro, no teatro e na capoeira, são então compreendidos aqui como práticas que
oferecem a possibilidade de uma nova elaboração pelos sujeitos sobre o corpo que habitam,
a partir de outros paradigmas, estes baseados na diversidade e na criatividade de cada uma
das práticas. Nesse sentido, Iuri faz uma observação importante sobre o que sentiu no
momento da performance Humano R$1,00, na praça Firmina Santana:
Realmente a gente tava preso na... naquilo lá. Tipo uma gaiola. Aí, quando foi tirado
o pano preto, preso, eu senti uma sensação de liberdade, tipo assim, é o meu corpo!
Então deixa eu fazer com ele o que eu quiser! Ele é meu e quem tá vendo tem que
respeitar independente de qual forma tem meu corpo, ué.

Figura 148. Performance "Humano R$1,00" do Grupo Cênikas na Praça Firmina Santana (Fonte: Arquivo Grupo Cênikas).

90
Essa observação sintetiza, a meu ver, as experiências de muitos desses e dessas jovens que
narram o momento do palco como um acontecimento sui generis ou, como já discuti nas
sessões anteriores deste capítulo, como um momento de liminaridade na qual cada sujeito
envolvido pode se transformar, tornar-se outro, brincar com sua posição social e se
reinventar diante da plateia. O corpo que se apresenta, que se mostra, desfaz velhas
relações e cria novas, outras camadas de significado para aquele mesmo corpo, que é, ao
mesmo tempo, um veículo material e simbólico de expressão dos sujeitos. Nas palavras de
Nilma Lino Gomes (2011),
O corpo fala a respeito do nosso estar no mundo, visto que a nossa localização na
sociedade dá-se através da sua mediação no espaço e no tempo. Estamos diante de
uma realidade dupla e dialética, isto é, ao mesmo tempo em que é natural, o corpo
é também simbólico (p. 150).

Reinventar a própria relação com o corpo é, portanto, prática de resistência contra a


dominação e a colonização das experiências, dos saberes, dos viveres, que em suas
maneiras mais entranhadas e arraigada nos subconscientes se expressa através do controle
dos corpos. Reforço então através dos elementos estéticos a compreensão de que participar
dos grupos de dança afro, capoeira e teatro tem potencial emancipador para os sujeitos na
medida em que favorecem a compreensão da estética como campo de disputa e de
afirmação que passa a fazer parte de suas narrativas, ao mesmo tempo em que as narrativas
da cultura negra e da diversidade, presentes na capoeira, dança afro e teatro são também
materializadas na estética dos corpos.

3.4 ‘Ter um nome’: ocupação dos espaços públicos e reconhecimento


A partir das rodas de conversa e entrevistas, assim como da minha participação e
acompanhamento de algumas das apresentações dos grupos de dança afro, capoeira e
teatro, observo que parte da ansiedade gerada pelo momento da apresentação reside na
expectativa de aprovação e reconhecimento por parte da plateia. Compreendendo a cultura
e a arte como meios e instrumentos dos quais as juventudes se apropriam para afirmar seu
lugar no mundo, como já viemos discutindo, é evidente a importância da visibilização dessas
produções para a efetivação de sua função transformadora. O reconhecimento da plateia
aparece também como elemento importante na compreensão das juventudes de que seu
trabalho faz sentido, de que sua mensagem atingiu o público. Daiane durante a roda de
conversa com os jovens atores e atrizes conta que no dia da apresentação do espetáculo
Flores e Espinhos, do Grupo Voz de Teatro, ela “quis passar o máximo do que tinha
trabalhado, para as pessoas reconhecerem aquele esforço”.

91
Figura 19. Espetáculo "Flores e Espinhos" do Grupo Voz de Teatro (Fonte: Arquivo Grupo Voz, 2016).

O momento da apresentação é descrito pelas e pelos jovens do Afro N’Gonda como a


oportunidade de mostrar, àqueles e àquelas que assistem, o trabalho que foi desenvolvido
na esperança de que a plateia aprenda sobre o grupo e sua proposta, sobre a cultura e a
história por traz de cada dança, se interesse e, quem sabe, até queira fazer parte do
coletivo. É por isso que antes das apresentações do grupo o professor ou um dos jovens
conta a história daquela coreografia, para que a plateia compreenda que, nas palavras de
Joanine, “Maculelê não é só ficar batendo pauzinhos”.
Na capoeira a roda cumpre papel semelhante, como indica a observação de Cacau de que “é
quase um prêmio pro capoeirista que tá treinando, a questão de se mostrar (...) o
movimento novo, a musica”. Claudiniz reafirma em sua fala a importância do público
durante as rodas:
A multidão ajuda. Uma roda de capoeira sem palco né, público, não tem muita
graça. É muito bom, a gente gosta de fazer capoeira, mas é bom divulgar que aquilo
ali vai só juntando. Eles tá passando aqui na praça, curtindo, vindo andar atoa e nós
tá na capoeira. Dá um impacto assim ‘isso é muito chato!’, mas vai olhar alegria que
ele sente fazendo aquilo ali, quando vê ele tá fazendo e acha bom.

João e Daiane, do Grupo Voz de Teatro também relatam suas experiências de ensaios na
praça da Igreja Matriz como experiências marcantes de interação com os espaços da cidade
e seus personagens anônimos. João conta de espectadores eventuais, muitas vezes sujeitos
marginalizados que não têm acesso à linguagem do teatro e que se divertem assistindo aos
ensaios do grupo além de interações com passantes e questionamentos que surgiram a
partir desses momentos.
Os ensaios do Afro N’gonda acontecem no Museu Histórico Municipal de Paracatu, lugar
também aberto à visitação externa e um prédio histórico da cidade. Sobre isso, Cacau

92
comenta que “a história do museu aonde acontecem as aulas é de casa grande e senzala, e
o grupo já construiu uma história aqui’. Em outras palavras, o espaço que originalmente foi
um locus de relações raciais estruturalmente violentas e degradantes para o povo negro,
hoje é palco de uma iniciativa que resgata a cultura afro no município e se apropria do lugar
e de seu significado.

Figura 20. Aula de Maculelê do grupo Afro N’Gonda no Museu Histórico Municipal de Paracatu
(Fonte: Arquivo Afro N'Gonda, 2015)

Gilson Souza de Jesus, sobre a concepção do espaço da rua em épocas coloniais na cidade
de Salvador, argumenta que “a ocupação do espaço urbano pode ser considerada
fundamental para a construção de uma identidade própria” (2011, p. 34), uma vez que
configura elemento essencial de uma concepção de territorialidade, hoje compreendida
como elemento intrínseco à concepção de identidade. Ele cita Haesbaert para uma
concepção de territorialidade como “o produto da apropriação/valorização simbólica de um
grupo em relação ao seu espaço vivido” (HAESBAERT, 2006, p. 40 apud JESUS, 2011, p.34) e
aponta as forças do ‘desenvolvimento’ como silenciadoras das ruas e de seus personagens:
a rua era vista como um espaço desprestigiado, “por encarnar a metáfora de todos
os vícios”, transformando-se no lugar dos excluídos, frequentada por mendigos,
prostitutas, escravos de ganho, libertos, pobres, ladrões e vadios, que faziam dos
seus becos e vielas um constante caso de polícia. (...) Os poderes públicos tentaram
coibir, de todas as maneiras, as manifestações culturais destas pessoas, de acabar
com os sambas de roda, a Capoeira, o Candomblé e sua permanência excessiva no
espaço urbano, o que remetia diretamente ao período escravocrata (JESUS, 2011, p.
34).

Sob essa perspectiva, ocupar praças da cidade, escolas, prédios públicos e demais espaços
com capoeira, dança afro, teatro são atos políticos importantes. São vozes historicamente
silenciadas que marcam seu espaço, que reivindicam o reconhecimento de sua existência e
de sua potência de significado. Essas vozes se afirmam enquanto narradores de suas
93
próprias histórias, construindo seu discurso em oposição e em relação ao discurso ocidental
modernizante, se expressando e ocupando lugares estratégicos através de seus corpos e de
suas performances.
Uma das principais reclamações das e dos capoeiristas, dançarinos e atores é a falta de
reconhecimento de suas atividades. Entre as e os capoeiristas são recorrentes as afirmações
de que as pessoas de fora de Paracatu e até mesmo de fora do Brasil, dão mais valor à
prática do que as pessoas do lugar, e ainda, que no Brasil e na cidade falta apoio, falta
investimento na capoeira. Eles apontam que as grandes empresas instaladas na cidade
poderiam investir mais, mas o que promovem, em geral, são eventos pontuais que chamam
a atenção da população mas que não têm continuidade.
Os jovens atores e atrizes, afirmam que falta uma compreensão melhor das pessoas da
cidade sobre o que seja a arte do teatro. Nas palavras de Luiz, “as pessoas têm ilusão sobre
o que é teatro, pensam que é só pecinha de escola”. Segundo João, as pessoas que
contratam as peças ou os atores como palhaços desvalorizam as práticas não reconhecendo
financeiramente como ele julgaria justo, com justificativas como: “é só fazer tal coisa”, que
diminuem o valor do trabalho. De acordo com os relatos, o público se refere às
performances às vezes como ‘teatrinho’ ou consideram que ‘palhaço não é teatro’. Luiz
afirma que “as pessoas pensam que você só quer ganhar dinheiro e ir pra Globo, fazer
novela, acha que já tá rico”, desmerecendo o esforço e a preparação das montagem das
peças e personagens.
Igual eu te falei, por exemplo, da valorização. Às vezes um cantor vem cantar aqui
em um evento aqui da cidade, eles pagam muito pelo cantor, e lota o show dele, e
às vezes tem um cantor aqui em Paracatu, Paracatu tem muito artista, muito
músico, muito dançarino, muito ator, muito, muito mesmo. Por que que o evento
não coloca uma pessoa da cidade: às vezes vai a pessoa da cidade e não vai
ninguém, às vezes a pessoa da cidade é melhor que a pessoa de fora. Às vezes a
pessoa de fora tem só mais nome, e o nome talvez a pessoa da cidade pode ser
conquistado se der oportunidade, né (Jean, 18 anos).

Tem artista que a sociedade aplaude, apoia e outros não. Os famosos, célebres,
‘esses aí são artistas!’ Pra eles é esses que tá ali, que faz, que é visto, que tá na
televisão, que faz filmes, esses realmente são artistas, são esses que eles dão valor,
e os do próprio lugar não dá valor. Às vezes nem precisa tá na televisão, às vezes
por ser de fora e vim pra cá as pessoas já olha diferente (Iuri, 20 anos).

Depoimentos das e dos integrantes do Afro N’gonda indicam que o grupo tem
experimentado, desde sua formação, fortalecimento e ganho de reconhecimento do
público, apesar das dificuldades, como indica o depoimento da professora Rose:
Esse grupo tem se fortalecido cada dia mais, a gente já saiu pra fora pra tá
apresentando, a gente já participou de alguns festivais fora, algumas intervenções e
oficinas de troca de experiência, e ele vem amadurecendo, as pessoas vem aderindo
bem, né, é um grupo que se fortaleceu, não teve desistência.

Tanto os grupos de dança afro como os de teatro e de capoeira são por vezes contratados
para oferecer oficinas, animar eventos e participar de festivais, muitos deles financiados por
grandes empresas, de grande capital financeiro na cidade. Esse fato é apontado por vários

94
entrevistados, que reconhecem o papel dessas empresas no apoio às atividades culturais
locais mas, entre outras observações, afirmam que o investimento é pouco, que poderia ser
maior diante da produção das empresas. Depoimentos durante as entrevistas afirmam que
o que as empresas investem em arte e cultura é apenas uma maquiagem para ganhar a
opinião pública a respeito das mesmas, que o apoio dado funciona apenas através de
eventos de entretenimento, muitas vezes apoiando artistas já conhecidos, “de fora” em
detrimento dos jovens artistas locais. O apoio oferecido por grandes empresas às práticas
culturais locais é reconhecido em sua contradição por alguns dos entrevistados, por
exemplo, ao indicarem a destruição ambiental e cultural causada por elas em relação ao
reduzido aporte financeiro investido atualmente no setor cultural da cidade.
O público em geral espera confirmações da lógica com a qual veem o mundo, espera
reforços positivos de suas opiniões, sua estética, e posicionamentos. No entanto, as danças
afro, a capoeira e o teatro oferecem experiências que destoam em grande medida da lógica
ortodoxa da vida ocidental, de seus conceitos de belo, racional, produtivo, e talvez seja por
isso que as opiniões do público relatadas pelos jovens artistas sejam, a princípio,
pejorativas, desdenhosas, ou descrentes. O que gostaria de propor é que, depois do
estranhamento inicial, a experiência de outras lógicas, outras estéticas, outras histórias e
formas de conhecimento, acaba por ser bastante atraente, instigante, mobilizadora de
outros registros da memória e das experiências passadas, e por isso cativa diversos públicos
que se deixam sair dos julgamentos e conceitos pré-concebidos sobre essas práticas. Esse
ponto reforça a ideia do potencial transformador da performance desses grupos culturais e
artísticos em Paracatu, responsáveis por oferecer experiências diferenciadas aos seus
praticantes e também à sua plateia.
É interessante ainda observar nesse sentido que as primeiras impressões e julgamentos
podem até começar negativos, mas todas as e os jovens dançarinos, capoeiristas, atrizes e
atores contabilizam o retorno da plateia como algo positivo, imprescindível para sua
vontade de continuar em sua prática. O sorriso no rosto, as palmas, as perguntas depois do
espetáculo ou da roda, a vontade de assistir mais uma vez a performance, e mesmo as
críticas e dificuldades motivam a continuidade e o esforço nas aulas e nas apresentações.
Alguns observaram durante a roda de conversa que os públicos infantil e idoso são mais
fáceis de agradar, mas que o desafio estava em agradar também o “sujeito de terno e
gravata”, ou o jovem. Rose afirma que a recepção das danças nas escolas é bastante
positiva, agradando até mesmo o “público mais exigente” que é, segundo ela, o de
adolescentes, e coloca como desafios encontrar as linguagens que falam mais à esses
adolescentes. Esse desafio é apontado também por João e Jean, que sugerem que outros
ritmos como o rap e o hip-hop, ou o formato audiovisual, por exemplo, podem ser
inovações interessantes para amplificar o diálogo com as juventudes.

95
CAPÍTULO 4: A título de conclusão

Hoje, aqui neste cenário, vocês são os/as ouvintes, e eu sou a sujeita falante. Mas o
que aconteceria se vocês parassem de ouvir, mesmo se eu continuasse a falar? Será
que eu continuaria sendo a sujeita falante? Gostaria de contar até três e então
pedir-lhes para falarem… (KILOMBA, 2016, p. 3)

Neste capítulo proponho retomar em parte o que foi dito nos capítulos anteriores na
tentativa de forjar uma espécie de síntese, a título de conclusão desta dissertação. Para isso,
precisei retomar aspectos metodológicos adotados na pesquisa e mergulhar em uma
autoanálise de minha participação e atuação enquanto pesquisadora, capoeirista, pessoa,
em relação com as pessoas que se tornaram minhas interlocutoras. A minha própria
experiência passada e presente, assim como meu processo de apropriação do universo de
significados da capoeira principalmente, mas também da dança e do teatro, tornam-se guias
na tentativa de fazer sentido de todo o processo, das linhas temáticas adotadas, das
reflexões propostas.
Este trabalho não é sobre mim, mas passa através de mim, das minhas lentes, das minhas
escolhas. Ele é a parte de mim aonde moram todas essas pessoas, que se tornaram
personagens do meu próprio universo.

4.1 O exercício de dar sentido: (auto) reflexões metodológicas


Experimento durante a escrita deste trabalho um pouco de tudo que tenho dito até aqui.
Para escrever, faço o exercício da memória, da associação de experiências anteriores com as
que vivo agora, na busca de dar sentido ao vivido e torná-lo assim em nova experiência,
marcante, transformadora. Busco a forma da escrita por ser ela, para mim, a mais familiar e
por me faltarem outros instrumentos de expressão mais bem desenvolvidos. De qualquer
maneira, para o que este trabalho se propõe, a narrativa escrita cumpre sua função e as
fotografias que lhe trespassam só fazem abrir o apetite por mais imagens, sons, presenças.
Fica então aqui registrada a história do que pude, dentro de minhas capacidades e
limitações, experimentar, observar, anotar, perguntar, lembrar, fazer sentido.
Dar sentido é organizar a direção de um movimento, o que se faz necessário para que eu
possa compartilhar com eventuais leitores e leitoras, de uma forma mais ou menos linear,
os frutos do processo desta pesquisa. Por outro lado, dar sentido é também imprimir em
algo o que se sente, ou implicar-se com o sentimento naquilo que se faz, tarefa ainda mais
desafiadora no processo de escrita para nós que fomos socializadas em sistemas que
projetam a objetividade como valor primeiro de um trabalho científico. Como tentei
explicitar desde o princípio desse processo, algumas escolhas metodológicas foram feitas a
priori, no sentido de privilegiar o campo e dar espaço às experiências que encontraria,
deixando que elas me guiassem e sugerissem as perguntas que hoje delineiam esta
pesquisa. O que veio a partir daí foi construído no caminhar, nas conversas, nas dúvidas, nos
impasses, nos dilemas, nos incômodos que tive comigo mesma, com o processo acadêmico

96
da pesquisa, com o que o campo me oferecia e com as situações que meus interlocutores
me apresentavam.
Construímos relações. Relações estas que foram acrescidas de uma camada a mais de
significado, já que eu estava vestida com minhas lentes da academia, da pesquisa, do
questionamento etnográfico e antropológico, psicológico, e vá saber quais outras lentes, eu
mesma ainda não consigo identificar. Podemos usar lentes as mais diversas, mas o nosso
corpo é sempre o nosso corpo, e tudo que eu vir, ouvir, sentir, disser, vai estar sempre
carregado de mim. Me esforço para ver tudo, ver claro, ver translúcido, mas, fazendo
referência à Jeanne Favret-Saada, “observar participando, ou participar observando, é
quase tão evidente como tomar um sorvete fervente” (1968, p. 156), ou seja, basicamente
incompatível. A autora afirma que a imersão no campo significa ser “bombardeado por
intensidades específicas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis.
Esse lugar [do campo] e as intensidades que lhe são ligadas têm então que ser
experimentados: é a única maneira de aproximá-los” (FAVRET-SAADA, 1968, p. 159). Nas
palavras de Carmen Tornquist, que etnografa o movimento pelo qual milita, um projeto de
pesquisa é, ao mesmo tempo um “projeto acadêmico e um processo existencial” (2007, p.
33), e afirma “a importância do impacto psíquico que a experiência e a interlocução de
campo traz ao antropólogo e antropóloga, já que esta envolve sempre – e necessariamente
– relações intersubjetivas” (TORNQUIST, 2007, p. 36).
Durante o pouco mais de um ano em que estive morando em Paracatu, trabalhando e
desenvolvendo esta pesquisa, me envolvi com as questões das juventudes e das
comunidades quilombolas da cidade, por razões do projeto no qual trabalhava mas, sem
dúvida, também por razões de identificação pessoal com a problemática que essas questões
envolviam. Mudei meu projeto de pesquisa pelo menos três vezes até chegar à configuração
que finalmente foi objetivada e hoje dá substância a esta dissertação. As questões de
pesquisa que se colocaram para mim durante a vivência do campo me motivaram a
modificar os projetos anteriores e configuraram o que foi, e é hoje, este trabalho. Não por
menos, me propus, no esforço da escrita, a permitir que transpareça minha própria
subjetividade, que marca a escolha de cada frase das entrevistas citadas, de cada referência
utilizada e é a própria costura entre todos os elementos do texto.
Tentarei neste capítulo fazer sentido do percurso que culminou com a escrita deste
documento, amarrando com laços mais ou menos frouxos os conceitos, ideias, experiências,
pelos quais passamos eu, os sujeitos que embarcaram comigo nesta pesquisa, e as leitoras e
os leitores que caminharam até aqui junto conosco. Na próxima seção, o exercício vai além,
na tentativa de elucidar, a minha implicação nesse processo enquanto mulher, jovem,
branca, que busca, assim como os sujeitos desta pesquisa, compreender melhor sua própria
ancestralidade, coletividade, seus processos criativos, sua emoção e subjetividade além da
possibilidade de transformação da realidade vivida.

97
4.2 Eu, capoeirista
Começo então com o relato da minha participação como aluna de capoeira do Contramestre
Cacau no grupo Axé Dendê, participante do grupo Afro N’gonda por afinidade e por
convicção e como amiga, conhecida, pesquisadora intrometida, nos grupos de teatro que
convidei a participar e incluí nesta caminhada. Relatar essa experiência é falar também da
minha iniciação enquanto capoeirista, é contar “causos” de amigas e amigos, e compartilhar
a minha experiência de transformação pessoal pela convivência e pelo aprendizado com
essas pessoas.
Minha inserção nessa história começa com uma visita, a convite da Carol, ex-aluna do grupo
Afro N’Gonda, a um dos ensaios do grupo, acompanhada de minha companheira de
trabalho, Carmelita. Naquele ponto, estávamos interessadas em contribuir na formação de
um grupo de juventudes e outro de povos e comunidades tradicionais no âmbito do
Programa Territórios da Cidadania no Noroeste de Minas. Paralelamente, eu estava ainda
buscando desenhar os contornos do meu projeto de pesquisa, alinhando os dois temas e
tentando encontrar meios de diálogo com juventudes quilombolas na cidade – o que tinha
me levado até a Carol, quilombola da comunidade do Pontal. Participamos da aula e, no
final, fizemos uma pequena roda de conversa para explicar o projeto em que trabalhávamos
para Cacau, Rose e os jovens dançarinos e dançarinas presentes. Escrevi no meu caderno de
campo:
Começou a aula de dança, uma encenação com chapéus, uma rede, sobre a história
31
de um pescador que morre no mar e Iemanjá o traz de volta . Em seguida
Maculelê. Eu me diverti muito, achei o clima bom, o pessoal bastante envolvido (...)
gostei muito e fiquei com vontade de voltar. (...) Cacau comentou sobre a
importância dos espaços de discussão e disse que ali não era só sobre a dança, mas
sobre o que era aquela história, porque dançar Maculelê e jogar capoeira faz
sentido e é isso que importa (Caderno de campo, fevereiro de 2016).

Observo ao revisitar minhas anotações que desde aquele momento já me impressionou a


forma como o grupo elaborava a questão da cultura através da dança, já percebia que não
se tratava apenas da repetição de uma coreografia, havia envolvimento, fazia sentido32, do
que diz respeito à orientação do movimento e também pelo envolvimento emocional dos
professores e da turma com a história encenada.
Diante do nosso interesse nas histórias e nas questões quilombolas da região, Rose e Cacau
convidaram Carmelita e eu para participar de uma festa quilombola na comunidade dos
Bagres, município de Vazante, próximo a Paracatu. Tivemos um dia inteiro de música,
apresentação de Maculelê do Afro N’Gonda, violeiros, congado, uma roda de capoeira do
Axé dendê, e barraquinhas com churrasquinho. E assim ficamos nos conhecendo melhor,
nos divertimos juntos, tirei muitas fotos que compartilhei com o grupo, e assim começamos
uma história que se desenrola até aqui.

31
Mais tarde viria a saber que esta é uma das danças que compõe o repertório do Afro N’Gonda, e que se
chama Puxada de Rede.
32
Destaco aqui e na fala de Cacau a expressão ‘fazer sentido’ por ser ela a motivadora do título e das reflexões
deste capítulo.
98
A partir de fevereiro de 2016 passei a frequentar os treinos de capoeira ministrados pelo
Cacau, Contramestre do grupo Axé Dendê, que acontecem em uma quadra no bairro Alto
do Córrego. Desde Então conheci muitas pessoas diferentes, viajei com o grupo para outros
municípios e até outro estado, participei de rodas de capoeira nas praças da cidade nas
quais jogavam capoeiristas muito experientes e também crianças (muitas vezes também
mais habilidosas do que eu), pude acompanhar o cotidiano do grupo e aprender um pouco
dos princípios, da técnica e da visão de mundo da capoeira. Em novembro de 2016 participei
do evento do Axé Dendê de Paracatu, já citado anteriormente, e fui batizada na roda,
recebendo minha primeira corda, de cor amarela.
Simultaneamente, acompanhei por interesse próprio e pelo carinho e amizade que fomos
desenvolvendo a cada encontro, as apresentações do grupo Afro N’Gonda. Eu sempre
tentava ajudar carregando os equipamentos, ou tirando fotos e fazendo vídeos a pedido das
e dos jovens dançarinos, meio como quem, por falta de graça, precisa ocupar as mãos com
alguma coisa, para me sentir participante do processo, ter alguma função. Uma noite, em
uma apresentação do grupo na Escola Estadual Virgílio de Melo Franco, mais conhecido
como Polivalente,
Cacau me pediu para fazer coro atrás do atabaque e eu fui. Participei da
apresentação sem nem saber as músicas direito. Mas fiquei feliz, me senti acolhida
e depois disso fiquei também mais a vontade na turma e nas conversas (Caderno de
campo, junho de 2016).

Depois disso, muitas foram as vezes em que saímos para lanchar depois das aulas e
conversar sobre os temas mais variados. Fizemos encontros também na minha casa, nas
casas deles, fomos juntos a eventos culturais e festas na roça. Encontrar pessoas com
experiências de vida tão diferentes das minhas e ter a possibilidade de compartilhar ideias,
opiniões, questionamentos, ter ainda a ‘desculpa’ de uma agenda de pesquisa para poder
tocar em assuntos às vezes não tão cotidianos ou mesmo delicados, o aval da academia que
me permitia (e me obrigava também) a me colocar e objetivar algumas perguntas nos
momentos que organizamos para isso, as entrevistas e rodas de conversa.
Eu, jovem, mulher, branca, interessada pelo tema da cultura afrobrasileira, com o gosto
pelas atividades corporais e musicais como a dança e a capoeira, tinha muitos aspectos que
me levavam a me sentir muito parecida com os jovens a quem eu direcionava esta pesquisa.
Por outro lado, me sentia também muito diferente ao reconhecer em mim privilégios como
o de ter nascido branca, em um contexto de classe média de um grande centro urbano, ter
estudado em boas escolas particulares e em uma universidade federal e de, por fim, estar
cursando um mestrado também em universidade federal bem conceituada. Compreendi
que nesses encontros residia a verdadeira riqueza do trabalho de campo, que é o de
permitir o compartilhamento de experiências que nos atravessam, nos aproximam ou nos
diferenciam, e que, acima de tudo, nos colocam no lugar de aprendizes, experimentadores
de nós mesmos (LIMA; MINAYO-GOMEZ, 2003).
Conheci realidades distintas, caminhos variados que levaram aquelas pessoas a se
encontrarem nos grupos de capoeira e de dança. Aprendi sobre hierarquia e sobre respeito
99
à experiência dos que estão mais tempo na trajetória da capoeira, mas também sobre como
é possível exercer liderança de maneira acolhedora. Aprendi também sobre solidariedade
entre companheiros de grupo, sobre apoio mútuo nas dificuldades das aulas e nas pessoais,
um aprendizado horizontal, mesmo entre os mestres e os iniciantes. Aprendi sobre superar
desafios e seguir o caminho que se acredita, apesar das dificuldades que, para quem não
passou por elas, poderiam a princípio parecer limitadoras ou até intransponíveis. Escutei
histórias de vida sofridas, mas que não eram razão para desânimo ou tristeza, mas sim
motor de transformação pessoal e da realidade. Questionei minhas preferências musicais,
minhas escolhas de roupa, minhas propostas de vida. Escutei, escutei muito, falei também e
tive que aprender a elaborar perguntas, a me explicar e a me colocar de maneira clara,
aprendi mesmo algumas palavras novas, substituí ‘uai’ por ‘uá’ e ‘muito quente’ por ‘quente
com borra!’, alguém que chega correndo chega ‘no doze’ e até algumas partes do corpo
podem ter nomes diferentes (pasmem!). Comecei a compreender as articulações entre os
grupos de capoeira da cidade, entre os grupos de teatro, e entendi também que tem coisa
que só uma vida inteira é que poderia explicar, não tem chegante que dê conta. Como a
minha entrada na história é recente e se deu necessariamente através de um determinado
ponto no tecido das relações, tenho inevitavelmente um viés subjetivo de interpretação,
diretamente ligado à visão que o grupo do Axé Dendê e do Afro N’Gonda compartilharam
comigo desde o princípio desta jornada.
O encontro com a alteridade e as diferenças sociais e culturais com que me deparei nesse
percurso me levaram a tomar parte nos jogos de espelho das relações, refletindo sobre o
outro e ao mesmo tempo sobre mim, minhas próprias origens, minhas escolhas, minhas
experiências. Cada vez que voltava à minha terra natal durante o tempo da pesquisa
aumentava o meu estranhamento do que para mim até então era o familiar, a zona de
conforto. Me perguntei sobre as minhas origens e perguntei também às minhas avós, fui
buscar em que parte de mim os tambores dos meus ancestrais ressoavam mais, quando foi
que surgiu esse interesse e as maneiras pelas quais eu vinha buscando contatá-lo, desde
pelos menos meus 15 anos de idade. Segundo Tornquist (2007), a reflexão da pesquisadora
sobre si mesma gera um “impacto produzido de forma mais sutil, mais demorada, mas
igualmente drástica, produzido pelo estranhamento do próprio universo do qual fazemos
parte” (p. 37). Ao final não é mais possível voltar para o lugar de onde saí, por que eu
mesma já sou outra e vejo o mundo com outras lentes.
Claudiniz, capoeirista do grupo Arte Mundial, durante a sua entrevista para a pesquisa me
perguntou se eu estudava capoeira porque eu era capoeirista, ou se eu era capoeirista
porque queria estudar capoeira. Em uma ‘saia justa’ descreve bem como eu me senti nessa
hora já que, na minha compreensão do processo, as duas coisas aconteceram juntas e se
motivaram mutuamente. Hoje avaliando em retrospectiva eu diria que eu estudo a capoeira
e demais manifestações culturais de origem afrobrasileira porque eu quero ser capoeirista,
ou porque eu gostaria de fazer parte dessa comunidade, em alguma medida. Existe aí um
devir de conexão com minha ancestralidade e com uma coletividade que hoje se expressa
pela música, pela dança, pela capoeira. Estar imersa nesse universo me permitiu expandir
100
sobremaneira minha perspectiva de mundo, da diversidade de experiências que podemos
encontrar, compartilhar, vivenciar, me permitiu o contato com outras referências que
enriqueceram meu julgamento sobre a minha própria realidade e me ofereceram assim a
possibilidade de me imaginar outra.
Poder ser outra, ainda jovem, ainda mulher, ainda branca, mas outra. Me reinventar a partir
do vivido, do compartilhado, do aprendido nos encontros, na coletividade e na confiança. É
isso que no fim das contas dá sentido ao movimento interno e seus desdobramentos
externos que hoje frutificam nesta dissertação. Dá sentido de sentimento também, de uma
marca indelével na história da minha vida, feita de e por pessoas que me ajudaram a
construir como eu me vejo hoje e como eu quero ser vista através das minhas ações no
mundo daqui para frente.

4.3 Entrelaçando os fios desta narrativa


“Aproveita sua identidade e sua juventude”
(fala de um mototaxista direcionada a Jean e citada por ele durante a roda de
conversa).

“As pessoas estão sendo chamadas a se empoderar de uma coisa que é delas”
(Rose durante a roda de conversa do Afro N’Gonda)

Essas frases que introduzem a seção resumem em grande parte um dos principais pontos
defendidos por este trabalho, qual seja, de que a capoeira, a dança afro e o teatro oferecem
aos jovens instrumentos com os quais construir sua própria visão do mundo e sua ação
sobre ele. Estão sendo chamados a se empoderar se si, de sua história e de seu potencial. O
que Rose estava dizendo naquele momento tinha a ver com o reconhecer da própria
ancestralidade e de suas práticas: a capoeira, a dança, a encenação, todas elas já são
presentes na cultura dos povos negros desde tempos imemoriais e nesse momento se faz
necessário revisitá-las. Sobre esse aspecto, os colegas do Afro N’Gonda comentam em
seguida sobre como as pessoas insistem em falar que são pardas e não negras e Valéria dá
seu depoimento: “hoje todo mundo quer ser quilombola, tem orgulho de dizer. Eu entendo
a importância e falo com orgulho, mas quando era criança tinha vergonha de dizer”. Ser
negra ou negro, ser quilombola, há que ser apropriado pelos sujeitos, o que tem acontecido
com o poio das linguagens da arte e da cultura nos casos observados durante esta pesquisa.
Rose explica a importância de continuar contando histórias da África e dos antepassados
negros como um ato político já que, “poder contribuir com isso em uma cidade construída
por escravos em que a maioria não conhece a história e a gente tá mostrando, (...) é
continuidade e é resistência”. Pessoas que não tiveram a oportunidade de conhecer em
suas famílias ou na escola a história, a arte e a cultura dos povos negros em Paracatu, ao ver
as apresentações e/ou participar dos grupos se encontram com essa possibilidade. As
juventudes desta pesquisa assumiram as linguagens do corpo como sua frente de luta, de
criatividade e de resistência, se apropriando das histórias e dos próprios grupo dos quais
participam para criarem suas próprias narrativas sobre si e sobre o mundo.

101
José de Souza Martins (2009) conceitua o lugar da fronteira como o lugar da alteridade, do
conflito, da negociação e disputa entre projetos de mundo, de vida, e entre concepções
mesmo do que significa ser humano. Este trabalho trata de juventudes que ocupam um
lugar de fronteira, entre tradição e modernidade, mediadores culturais entre universos de
significados que se sobrepõe, cuja linguagem de atuação no mundo se faz através do corpo,
de narrativas coreográficas, musicais, cenográficas. A meu ver é o que motiva a reunião das
minhas observações e experiências sobre os grupos de dança afro, de capoeira e de teatro
em Paracatu nessa tentativa de visualização de uma pauta, um léxico, uma narrativa
compartilhada.
Assim como eu, os sujeitos dessa pesquisa são pessoas do seu tempo, elaborando com seus
instrumentos e linguagens maneiras próprias de significar e transformar o vivido. Sujeitos de
identidades múltiplas que transitam entre o local e o global em uma síntese criativa entre
memória, tradição, experiência individual, experiência coletiva, instrumentos e ideologias da
modernidade. No processo, os sujeitos encontram seus lugares, reivindicam politicamente
seu direito à voz, reforçam e assumem determinadas características e identidades políticas
diante dos poderes opressores e historicamente destrutivos e excludentes do Estado e do
capital. Grada Kilomba, em entrevista pra Suely Rolnik, fala sobre o silenciamento dos povos
negros ao longo do processo histórico, afirmando que:
[essas] narrativas são silenciadas, porque outras vozes falam mais alto. Não é que
nós não estamos a falar, mas sim que nossa voz não é escutada. Então não é que a
gente não tenha estado a produzir conhecimento e narração. A gente sempre fala, a
gente sempre entrega conhecimento, mas não escutam nossa narração, não
escutam nossa história. (...) E só posso me tornar sujeito falante se minha voz
também for ouvida (2016, p. 1).

Tentei até agora objetivar a minha experiência de troca e convivência com juventudes que
estão engajadas em movimentos de arte e cultura em Paracatu, Minas Gerais, por acreditar
que este envolvimento é emancipador para quem vive e através dele se expressa. Através
das performances de dança afro, teatro e capoeira, novas versões da história local e global
são oferecidas ao coletivo, novas versões das histórias pessoais são concebidas pelos
sujeitos e novas possibilidades de compreensão do mundo aparecem no horizonte. São as
vozes das juventudes que se expressam e reivindicam ser ouvidas e nesse sentido, podem
ser emancipadoras também para quem assiste, para o grupo, a família, o lugar, a
comunidade, a cidade.
As relações que se formam nos grupos são elementos constitutivos dessa transformação
individual e coletiva. Outras referências entram em cena, para além da família e da escola:
são mestres, colegas, professores, que apresentam aos sujeitos outras possibilidades de ser
no mundo, outros parâmetros, outros critérios, que incitam a ampliação dos horizontes de
cada um dos envolvidos. Entre os parceiros há o aprendizado do afeto e da coletividade
(HIKIJI, 2005), além de proporcionar situações desafiadoras que motivam o
amadurecimento e a elaboração da subjetividade entre amigos e colegas de grupo e com
seus tutores. Além disso - geograficamente também além - há a viagem, para uma

102
apresentação, um festival, um encontro, os grupos se deslocam para outras cidades e até
estados, se encontram com outros grupos semelhantes, com outras plateias, são viagens
internas e externas, outros tipos de desafios.
Fazer parte de um grupo de dança, de capoeira ou de teatro muda o cotidiano, a forma de
vida, os círculos de amizade, as formas de relação. Além disso, oferece às e aos jovens a
oportunidade de desenvolver habilidades técnicas e práticas que podem contribuir de
diversas maneiras em suas vidas pessoal e profissional, como por exemplo, o uso do corpo e
da voz para sua expressão, confiança, comunicação. Através dessas práticas elementos
corporais, emocionais, léxicos, imaginativos, comunicativos são agregados na elaboração de
linguagens originais pelos sujeitos, com as quais narrar a si próprios e expressar sua maneira
de ser e estar no mundo.
Narrar sua própria história é uma reivindicação cada vez mais importante do movimento
negro e de outros grupos étnicos que tiveram seu passado violentado por
empreendimentos coloniais legitimados pela instituição de uma história oficial única. Sobre
narrar a si mesmo, Bacelar (2014) afirma que “o sujeito que narra exprime o seu
envolvimento com o mundo, tece relações entre momentos e escolhas, meios e princípios”
(BACELAR, 2014, p. 190). Narrar é fazer sentido das experiências, do passado e do presente,
com implicações sensíveis nas possibilidades de futuro. Narrar pela linguagem do corpo, da
música, da dança, tem um potencial de significado ainda maior, por devolver ao corpo negro
e à estética afro, a possibilidade da beleza, da valorização, do prazer. Esses corpos, tão
massacrados historicamente pelo preconceito e pelos padrões e ideais de beleza, ainda hoje
maiores objetos da violência policial, doméstica, social são, nos grupos de dança afro,
capoeira e teatro, agentes de histórias, de significados, de beleza estética, de arte e cultura.
Rose, professora e idealizadora do grupo Afro N’Gonda deixa isso claro ao afirmar que “ser
negro tá na moda. (...) O grupo vem fortalecer isso e precisa aproveitar disso para quebrar
preconceitos. A juventude está contribuindo pra isso, aderindo, se aceitando mais, e um
jovem incentiva outro jovem”.
Essa atitude não significa uma romantização do passado, ou uma exotização da cultura
negra, como alguns críticos poderão apontar. Para Nandy, esse resgate cultural e da
tradição “pluraliza a idéia de uma sociedade desejável e mantém aberto o futuro para
sociedades que estão sendo forçadas a conceber o futuro apenas como uma versão editada
da Europa e da América do Norte contemporânea”33 (2004, p. 11). Essa proposta, na
concepção do autor, subverte a ideia de tempo linear e positivista e funciona como “uma
tentativa de conceituar o futuro das sociedade do sul fora do enquadramento da história
forjado na Europa do século dezenove” (NANDY, 2004, p. 11). Melucci faz uma observação

33
Tradução livre da autora, adaptada de Bacelar (2014). No original: (…) the potentiality of subverting the
linear concept of time and becoming the future. Such a past pluralises the idea of a desirable society and keeps
open the future for societies that are being forced to conceive their future as only an edited version of
contemporary Europe and North America. (…) can be read as an attempt to conceptualise the future of
Southern societies outside the steel-frame of history forged in nineteenth-century Europe (NANDY, 2004, p.
11).
103
no mesmo sentido, acrescentando a dimensão geracional no papel transgressor das práticas
culturais. O autor avalia que as juventudes desafiam:
a definição dominante do tempo, [e assim] os adolescentes anunciam para o resto
da sociedade que outras dimensões da experiência humana são possíveis. (...)
Revertendo a definição adulta do tempo, os adolescentes simbolicamente
contestam as variáveis dominantes de organização do tempo na sociedade. Eles
revelam o poder escondido atrás da neutralidade técnica da regulação temporal da
sociedade (2007, p. 39).

A performance é compreendida então como a expressão dessa experiência, o


desdobramento de um processo que se desenrola a cada ensaio, a cada treino, a cada
repetição. Ao mesmo tempo em que funciona como entretenimento para os que assistem,
pode também ser interpretada como ritual, como suspensão temporal, na medida em que
oferece a possibilidade de, em cena, atores, atrizes, dançarinos, dançarinas e capoeiristas
possam ser o que quiserem, possam sair de seus tempos e papéis cotidianos, suas relações
cotidianas com a cidade e com as pessoas e ocupar um lugar outro. O palco permite aos
sujeitos se apresentarem como querem ser vistos, manipular sua autoimagem e assumir
publicamente um lugar, uma posição no mundo. Não é à toa o frio na barriga antes da
entrada em cena. Por todas e todos que performam, é compreendida a importância do
momento da apresentação como aquele em que se publiciza o trabalho desenvolvido
durante semanas, meses, anos, para comunicar uma mensagem, e esperar ser reconhecido,
aplaudido e às vezes também criticado.
Ocupar o espaço público é um ato político, ainda mais quando esse espaço é ocupado por
grupos histórica e socialmente marginalizados pelas marcas do racismo, da discriminação de
gênero, por uma visão distorcida das juventudes. Cacau, professor e idealizador do Afro
N’Gonda e do Axé Dendê afirma que “estar na Casa de Cultura, no Museu [Histórico
Municipal de Paracatu], trabalhando a cultura afro em uma cidade cheia de preconceito já é
um ganho muito grande”, e o mesmo poderia ser dito também das apresentações na Praça
Firmina Santana, em frente à prefeitura da cidade, ou na Câmara Municipal dos Vereadores,
assim como todas as oficinas e aulas em escolas públicas e privadas, que enfatizam a
capilaridade dessas práticas no município.
Para Nandy, “os significados também são uma forma de política” (2015, p. 204). Por isso o
autor defende a arte como um veículo de crítica social e de intervenção através da
linguagem própria dos sujeitos que sofreram e sofrem exclusão e discriminação social, como
uma “teoria nativa sobre sua própria condição” (2015, p. 209), ou em outras palavras, a
maneira própria desses sujeitos compreenderem e explicarem a si mesmos nos contextos
em que se encontram. A criatividade é, sob essa perspectiva, intrínseca aos processos
enfocados aqui, agente de um aprendizado que exige sempre certo grau de improvisação
com os elementos dados, material e simbolicamente. Os sujeitos são autores de suas teorias
sobre si mesmos, suas interpretações pessoais do vivido e do compartilhado, sendo a
coletividade um espaço privilegiado de troca e aprendizados, com a possibilidade real de
criação de novos conhecimentos e significados. Os ensaios “são pra gente e pro outro”,

104
afirma Luiz, do grupo Cênikas de teatro, e vão além do objetivo final das apresentações,
como também foi apontado por Daiane, do Grupo Voz de Teatro, para quem os percalços do
caminho com suas dificuldades e desafios são os principais momentos de aprendizagem.
“Criar é muito bom, sabe? Quando você faz alguma coisa que é seu é um gostinho diferente
de quando você faz alguma coisa que já tá pronta, apesar das dificuldades e de não ficar
bom aos olhos dos outros”, comenta Daiane, ao que João, também do Grupo Voz de Teatro
complementa: “você se sente realizado mesmo que seja algo bem pequeno. (...) Muitas
coisas acontecem que não são planejadas, simplesmente acontecem, é bem dinâmico”.
Aprender é improvisar um movimento ao longo do caminho da vida, como afirmou Ingold
(2010), e improvisar entre jovens, para outros jovens, para o público em geral, torna a
caminhada ainda mais interessante. Segundo Jean, do grupo Cênikas e do Afro N’Gonda, a
relação com um grupo de jovens quando ele é o instrutor em oficinas de teatro é diferente
porque “eles pensam: ‘o que ele sabe eu também sei’, o que torna o diálogo mais fácil com
a turma”. Preparar aulas de dança afro para os colegas e para os professores foi tido como
um exercício desafiador por Alisson e Joanine, do Afro N’Gonda, mas todos do grupo
aprovaram e concordaram que foi uma experiência muito interessante tanto para quem
preparou como quem participou da aula ministrada por eles.
Os processos de criação partem de elementos do cotidiano, da observação das pessoas e
das coisas que acontecem, falas de transeuntes, personagens da cidade, situações vividas.
João afirma: “O teatro é a minha vida, tudo é aproveitado em movimentos”, explicitando a
multidimensionalidade que a prática artística ganhou nas suas experiências. E como a vida e
o cotidiano são multidimensionais, camadas de significados se sobrepõe e muitas vezes
disputam os sujeitos e as apropriações que fazem de suas práticas. Um ótimo exemplo para
esclarecer este ponto é o financiamento de atividades culturais em Paracatu por grandes
empresas mineradoras ou ligadas ao agronegócio da região que são ao mesmo tempo
responsáveis em grande parte pela degradação das condições de vida e da cultura local
tradicional. A mineradora que se encontra nas rebarbas da cidade, por exemplo, é
responsável pela irreversibilidade da desapropriação da comunidade quilombola dos
Amaros e, no entanto, é capaz de financiar eventos cujo tema é a cultura negra na cidade.
O poder público é também controverso em seu apoio às iniciativas de arte e cultura como as
que abordo neste trabalho. Segundo relatos, as instituições procuram os grupos
especialmente para pequenos serviços ligados, por exemplo, à ‘Semana da Consciência
Negra’, à campanha do Outubro Rosa, à ‘Semana da Criança’, ou outras agendas
institucionais semelhantes. Em geral, a abordagem institucional é de que “aos 18 anos você
está adulto, está pronto, formado para o mercado de trabalho”, como explica João. Essa
visão sobre as juventudes leva muitas e muitos a terem que escolher entre ‘correr atrás do
sonho’ ou se tornar adulto, o que em geral significa uma profissão ‘chata’, mas considerada
séria pela sociedade. Luiz conta que as pessoas em geral:
falam que ‘está brincando de teatrinho’, ‘deveria buscar alguma coisa que te dê
sustento, serviço sério’. A pessoa não pensa que o Roberto Carlos também foi um
nada quando era jovem. Pensa se ele tivesse seguido o conselho das pessoas! A

105
sociedade tem que dar uma chance da gente fazer o que acredita. O sistema
capitalista leva a focar no trabalho e nos estudos mas a arte está em todos nós e
pode tocar qualquer um.

Assim como as falas de Jean, Iuri, Joanine, expostas no segundo capítulo, a de Gustavo
também confirma a contraposição vista pela sociedade entre trabalhar e fazer o que gosta:
Eu acho que eles pensam que, eu acho que a maioria pensa que teatro não é
emprego, é diversão e pronto, a gente tá fazendo porque gosta e pronto. Pensam
que trabalho é medicina, direito, essas coisas assim, quem me apoia mesmo é
minha mãe. (...) Eu conheço um tanto de gente que tá no terceiro ano e fala que a
mãe pressiona, o que cê vai fazer, o que cê quer fazer, o que cê quer da sua vida.
Meu pai pergunta. Ele queria que eu fizesse engenharia.

Muitas e muitos jovens que se iniciam nas artes do teatro, da dança, da capoeira não
conseguem continuar, seja pela razão exposta por Gustavo ou por ter que trabalhar, por
uma gravidez precoce, ou por ter ‘caído no mundão’ como afirmou Viviane, capoeirista do
grupo Arte Mundial, sobre um colega que entrou com ela na capoeira. João dá também
vários exemplos de pessoas que ele conhece que se iniciaram no teatro ou na dança afro e
que não puderam continuar por dificuldades que a vida cotidiana impõe. “Tem pessoas que
os problemas da vida barram isso: é pai ou mãe cedo, entra pro crime, tem
responsabilidades em casa e tem que trabalhar” explica Luiz, que confessa ele mesmo ficar
dividido entre cuidar da mãe e seguir seu sonho de trabalhar com teatro fora de Paracatu.
É comum o trânsito desses jovens entre os grupos de teatro, dança afro e capoeira,
podendo esse grupos serem também compreendidos como uma grande rede de socialidade
e uma comunidade de aprendizado abrangente, fazendo referência às discussões do
capítulo 2. Alguns desses e dessas jovens já fizeram parte do Afro N’Gonda e hoje fazem
teatro ou vice-versa, ou fazem os dois, alguns transitam entre grupos de teatro e por vezes
participam de mais de um deles e ainda há aqueles que estão na capoeira e na dança afro
simultaneamente. Essa interseção e sobreposição de interesses demonstra a proximidade e
a complementaridade das possibilidades de experiência oferecidas pelos grupos e desses
com outras formas de arte e cultura também, como a música e a literatura. João conta sua
experiência nesse sentido:
Eu fui fazer dança afro, foi uma necessidade do teatro, porque eu acho que eu sou
muito duro, e com o teatro você precisa disso. E também foi muito maior do que eu
imaginei, de conhecimento, de história, de convivência. (...) E também uma coisa
que me trouxe, o teatro e a dança afro também, me trouxe conhecimento sobre a
arte, cultura, de uma forma que, assim, eu tive um contato a mais. (...) No teatro,
quando eu comecei, era na Casa de Cultura, tem muitas exposições lá, tem músicos
que a gente vê lá, e esse contato acabou abrindo muitas outras portas também.
Muitas portas na minha vida, mas na minha cabeça ainda mais, e na dança afro
também. A gente acabou ficando muito ligado em várias coisas de consciência
negra, e o quanto é importante a nossa cultura. Talvez assim, o Maculelê, por
exemplo, não tenha sido uma coisa muito forte aqui em Paracatu, mas é uma coisa
forte, assim, do Brasil, da nossa história do Brasil, dos nossos pais, dos nossos avós.

Rose explica a sobreposição de interesses como um interesse pela cultura, que perpassa
todas essas iniciativas:

106
Tem tudo a ver né, é a interdisciplinaridade. Você conta a história da capoeira
dentro do teatro, você conta o teatro dentro da capoeira, você faz a música no
teatro e na capoeira, você traz a dança pras duas esferas, pro teatro e pra capoeira,
então acho que tem toda uma ligação, todo um processo. (...) O que é interessante
disso tudo é a busca de estar envolvido na cultura, eu acho, e assim, se interliga
porque em todo momento desse nosso trabalho aí a gente tenta dar um
empurrãozinho pra busca cultural.

Os espaços ocupados pelos grupos também se sobrepõem já que tanto a dança como o
teatro passam pela Casa de Cultura, a dança e a capoeira estão no Museu Histórico
Municipal de Paracatu e tanto o teatro, como a dança e a capoeira acontecem também nas
escolas da cidade, nos festivais de cultura, nas praças e nos prédios institucionais. Ao
contratarem os artistas as empresas e o poder público acessam todas essas iniciativas e
acabam por colocar em contato jovens de diferentes grupos, como contaram na roda de
conversa Gustavo, Luiz e João, a respeito de um trabalho como palhaços em um evento no
dia anterior ao nosso encontro. Eles trocam informações entre si, concordam, discordam,
discutem. Os encontros, como já foi tratado em detalhe no capítulo dois, vão muito além do
espaço das aulas e das apresentações, se esticando para encontros informais, lanches,
festas, confraternizações.
A questão da ancestralidade negra é, como já foi discutido também, muitas vezes ligada à
religiões de matriz africana, sendo motivo de preconceito e discriminação. Aprender novos
significados e se apropriar deles é de grande poder transformador em uma cidade como
Paracatu na qual predomina o pensamento simplista e reacionário com relação a estas
religiões. O Afro N’Gonda conta com participantes que se declaram adeptos das diferentes
religiões presentes em Paracatu, como o catolicismo, o neopentecostalismo em algumas de
suas variações e o candomblé. A oportunidade de tratar de temas da ancestralidade
africana em um grupo diversificado como este, em linguagens como a da música e das
histórias das danças que fazem parte do repertório do grupo, o que acontece também na
capoeira de maneira mais sutil, é uma grande riqueza para a experiência dos jovens que
dele participam. Funciona como uma “quebra de preconceitos”, nas palavras de
Wanderson, e fortalece relações de respeito entre culturas diferentes.
Durante a roda de conversa, foi dito que o aprendizado permite a transformação do
pensamento por conhecer o que é diferente, e “conhecendo pode passar pra frente”, como
explicou Sofia. Joanine exemplifica com o caso da dança do Maculelê, pela qual já foi
questionada se não era sinônimo de “macumba”, ao que Alisson complementa com seu
relato de que antes de fazer parte do grupo também achava que eram coisas relacionadas,
mas ao conhecer a história do personagem “perdeu o preconceito”. Ele afirma que hoje, se
alguém disser o mesmo, ele pode explicar que “não tem nada a ver”. O aprendizado do
respeito e do amor, como foi dito durante a roda de conversa, acontece no conhecer o
outro, nas relações, no se dispor a conhecer outras formas de ver o mundo, outras
perspectivas. Esse aprendizado é transformador dos sujeitos e abre caminho para a ação no
mundo exterior. Suely Rolnik (2016) afirma, sobre o resgate e reinterpretação da
ancestralidade e de formas de cultura tradicional, que:
107
a volta ao passado não é a volta às formas de viver, aos sistemas de comportamento
e suas representações, aos sistemas morais, a uma certa filosofia. É muito mais a
volta a essa conexão com o saber-do-corpo, sua reativação no presente. E, quanto
mais você se aproxima da memória do passado no corpo, mais se livra dos efeitos
tóxicos dos seus traumas, mais força você adquire para enfrentar a violência, revelá-
la no presente, e mais potentes e precisas se tornam nossas ações para transformar
esse estado de coisas. (...) É uma espécie de amor pela vida e pelas pessoas, grupos
e comunidades que se mantiveram e se mantêm em contato com a vida e a
tomaram nas mãos movidas pelo desejo de cuidá-la (p. 6).

A própria participação de pessoas brancas no grupo que trata da cultura negra foi também
motivo de discussão durante a roda de conversa, se iniciando com o relato de Alisson que
diz ter se espantado ao entrar no grupo e perceber que havia pessoas que não eram negras.
Ele afirma que algum espectador quando vê um branco performando danças da cultura
negra pode reagir com certo estranhamento o que, segundo ele, não se justifica porque
quem é branco e também está ali é porque compreende a história, quer ajudar, reforçar e
manter a cultura, divulgar o trabalho do grupo. Joanine afirma que acha bonito quando uma
pessoa branca se interessa e fala com respeito e com amor da cultura negra. Cielly, por
exemplo, se identifica como uma pessoa branca e afirma que o que mais lhe interessa em
participar das aulas de dança afro e de capoeira são justamente as histórias da cultura negra
que não se aprende na escola.
A questão de gênero aparece também de forma recorrente nas conversas e em situações do
cotidiano. Certa vez em uma apresentação para o turno da noite de uma escola de ensino
médio e profissionalizante em Paracatu, presenciei um dos dançarinos ser agredido
verbalmente por estar usando o figurino do Maculelê, que consiste em uma saia que é
usada tanto pelos rapazes como pelas moças. Fiquei apreensiva com a situação, mas logo
percebi que o rapaz estava amparado pelo grupo, vários outros dançarinos e dançarinas
vieram ao seu apoio, inclusive os professores e, no momento da apresentação, Cacau fez
uma fala de abertura na qual repudiou o tratamento agressivo recebido. O líder do grup
afirmou em sua fala que estava ali como convidado de um evento da escola e que o grupo
Afro N’Gonda era um espaço de diversidade e não de agressão ou intolerância.
Fiquei impressionada com a clareza e firmeza do posicionamento de Cacau diante da plateia
de adolescentes que assistiam, e considero esse apoio fundamental para que o Afro
N’Gonda seja efetivamente um espaço de confiança e de troca, fundamentado no respeito e
na diversidade em todos os seus âmbitos. Sobre a questão de gênero, muitas foram
também as expressões de acolhimento e de respeito que ouvi durante as entrevistas dos
jovens atores e atrizes. Elas e eles indicaram que o teatro tem uma imagem estigmatizada
pela sociedade, que acredita que quem pratica é homossexual ou, se não é, pode se tornar.
As e os jovens contam histórias de si e de seus colegas homossexuais e afirmam que essa
convivência e o contato com a diversidade de gênero só tornam as relações mais
respeitosas.

108
A fala de Rose é muito expressiva nesse sentido, quando ela afirma que o respeito deve se
dar a todo e a cada ser humano, o que está na rua, o homossexual, a criança, cada um em
sua diversidade, reforçando que:
a gente ensina dança afro, mas o que a gente quer ensinar mesmo é formar
cidadãos, é que as pessoas sejam protagonistas do dia-a-dia delas. (...) Nesse
mesmo sentido pra quem assiste, deixar de falar ‘ah! é macumba!’, ‘isso é coisa de
preto’, ‘isso não presta’, sabe? Eu acho que quando a pessoa se contagia e vê
realmente o papel do outro ali, o trabalho sério, a pessoa muda de concepção, né,
principalmente quando cê vai numa escola infantil que os menino aprende, e escuta
a história, a gente conta história de Zumbi, a gente conta a história em quadrinhos,
a gente fala em coisas com suavidade, aquela criança ela não vai crescer com tanta
dificuldade, com tanta resistência, com tanta intolerância, na questão da cultura do
outro, que seja ele um japonês, que seja um negro, que seja um alemão, então ele
vai aprender a respeitar, a ver com outros olhos. (...) Se a gente conseguir contar
essas histórias, que o cabelo tá pra cima e ele é black porque ela era rainha lá no
país dela, olha a diferença de história que essa criança vai ouvir. Então eu acho que
é por aí, mostrar um outro lado, pra que elas conheçam realmente o lado positivo
do ser humano.

Encerro esta seção com uma fala de João sobre como a linguagem da arte da cultura acessa
aspectos das pessoas que outras linguagens não atingem. “É um trabalho de ator, de ter
contato com o que é mais ridículo e brincar com aquilo. (...) O palhaço é a menor distância
entre duas pessoas”, ele brinca, citando a frase de um palhaço a quem admira. É nessa
chave para o que há de sensível, de frágil, de ‘ridículo’ em cada um que reside muito da
força da dança, do teatro, da capoeira. Tornar o frágil visível fortalece, dá substância de
sentimento às performances, dá importância e poder de transformação de ritual. Essa força
enraizada na reconquista da ancestralidade negra ganha então dimensões de História e de
Verdade na vida de cada um.
Muito já se conquistou e hoje os grupos de arte e cultura de Paracatu ocupam um lugar
importante na vida da cidade, de diversas maneiras. Muitas dificuldades ainda são
enfrentadas e outras possibilidades de expansão e fortalecimento são apontadas pelos
envolvidos, como discutiremos na próxima sessão.

4.4 Conquistas e desafios


Aponto aqui algumas das conquistas e desafios listados pelos interlocutores desta pesquisa
em cada uma de suas práticas.
Uma conquista importante, a meu ver, começa pela adesão das dançarinas e dançarinos e
do púbico da cidade. Rose afirma não ter tido resistência das pessoas em participar e que o
que o grupo propõe são interpretações de danças tradicionais, que já fazem parte da cultura
afrobrasileira e de Paracatu. Ela continua:
a gente não teve dificuldade em propor esse resgate cultural da cidade, a gente tem
pessoas lá que é descendente de quilombola também, o que é bem interessante.
(...) A cidade abraçou, as pessoas aderiram, apesar da gente saber que tem um
preconceito velado em cima disso mas que as pessoas estão entendendo que isso
faz parte da cultura de Paracatu. É um resgate, uma busca, dentro daquilo que já
existe.

109
Daiane dá seu depoimento sobre sua participação e aprendizado no grupo:
Uma coisa que eu aprendi muito com eles é a identidade mesmo, sabe, de você não
fugir da sua identidade. Você melhorar, lógico, os pontos que você pode melhorar
na sua personalidade, nos seus defeitos, mas você manter mesmo a essência, de ser
você mesmo nesse sentido.

Cacau e Rose, respectivamente, falam sobre as conquistas e desafios do Axé Dendê e do


Afro N’Gonda:
A principal conquista é a união que se faz no grupo, porque na verdade a ideia do
grupo sempre foi essa, foi ser família. (...) E realmente deixar a sementinha plantada
com cada um, sobre justamente isso, é, sobre o preconceito, sobre a história do
negro, sobre a história da capoeira. Eu acho que o ganho, o avanço que o Axé Dendê
tem dado é isso. (...) Eu acho que o desafio é ampliar esse campo, de maneira
também sólida, na verdade é o que a gente sempre fala, crescer mas devagarzinho e
conseguir levar mais informação, pra nossa escola né, pro Axé Dendê, que consiga
transmitir esse nome que já leva, a energia, a força, o axé, o dendê, eu acho que é
isso.

Desafio é a transformação do ser humano com relação ao respeito, tolerância. A


gente vive numa cidade que a droga, a violência tá muito forte, mas que essas
pessoas precisam de oportunidade. Então o grande desafio que eu vejo hoje é
trazer a pessoa para esse lado cultural, e a conquista é tudo isso que a gente já
deixou disponível, que as pessoas abraçaram e se empoderaram. (...) O espaço para
falar isso dentro do poder publico é uma conquista, e continua sendo também um
desafio.

Para o casal, a questão financeira aparece também como fator limitante para a ampliação
do trabalho e para a inserção de mais juventudes no processo. Os contratos de trabalho não
são estáveis, os projetos a cada ano precisam ser renovados, não há incentivo suficiente
para fornecer aulas em outros bairros, aulas de outros gêneros musicais, ou para maior
número de pessoas. Para Cacau, aulas de Hip-hop, por exemplo, seriam uma proposta
interessante, por ser, segundo ele, a “realidade das periferias” e, por isso, chamar a atenção
do jovem.
O teatro também tem alguns desafios pela frente, segundo avaliaram alguns participantes
da roda de conversa. Eles apontaram, por exemplo, a necessidade de descentralizar o teatro
para outros bairros, ir além da Casa de Cultura e da Fundação Conscienciarte, o que
contribuiria para a formação não só de jovens atores e atrizes, mas também para a
formação de público, já que as crianças tem, segundo eles, pouco contato na infância e por
isso não dão valor à prática. Outra oportunidade de desenvolvimento para as práticas
teatrais é apontada por Daiane como sendo a própria história da cidade, que é considerada
por ela e por outros como mal aproveitada nos processo de criação.
Eu acho que a gente faz pouco, pela grandiosidade de história, de tudo que
aconteceu na cidade, eu acho que é pouco. A gente já fez contação de histórias com
lendas de Paracatu, mas eu acho que foi muito raso. Tem muita gente aí que sabe
muito sobre Paracatu, D. Mariinha mesmo, dos Amaros, pouco tempo que você
conversa com ela assim, sabe, é um livro aberto mesmo. (...) Eu acho que de
transmitir pra própria cidade a identidade da cidade, porque aqui a gente não tem
essa representatividade da cidade no teatro, por exemplo, é sempre só assim, é

110
aniversário da cidade, então vamo fazer aqui como que era (...). Eu acho que pode
ser mais, acho que a gente pode se dedicar mais a isso.

Daiane e João relembram durante a roda de conversa que Paracatu tem mais de 200 anos e
tem muitas lendas e histórias, como o ‘Toco do Pecado’, ou cantigas, ‘causos’ de carros de
boi e que “tem criança que nunca vai saber disso, tem adulto que não sabe disso. (...) Então
mostrar pras pessoas essa riqueza é legal”, afirma Daiane. João pondera que é importante
saber das histórias da cidade, mas também do que está acontecendo com as pessoas que
estão ao seu redor, os outros jovens que estão no ‘mundo do crime’, na violência, vivendo
uma gravidez precoce ou problemas na família, por exemplo, ou estão nas drogas ou
enfrentando outros problemas cotidianos da cidade. Ele fala sobre
fazer uma coisa relacionada com o que a sociedade tá com fome, que a sociedade
precisa, (...) eu fico pensando sobre conciliar essas duas coisas, o que a sociedade tá
precisando, com esse resgate cultural também, que é uma coisa que dá identidade
nas pessoas, essa sensação assim de identidade, de que você pertence a Paracatu.

Eles concordam que é preciso se preparar para lidar com os desafios que surgem no
percurso do trabalho, por exemplo, diante de alunos ‘problema’ que não participam das
aulas e oficinas ou que não compreendem a proposta do teatro ou de outras linguagens da
arte e da cultura. Rose aponta que trazer esses alunos para perto pode ajudar tanto a eles
como aos instrutores a desenvolverem trabalhos melhores. Viviane diz o mesmo sobre a sua
vivência como instrutora de capoeira, apontando que os alunos mais complicados são “os
nossos desafios e nos fazem pensar o que está faltando na nossa aula”. Rose explica que
talvez a linguagem não esteja adequada, e que é preciso atingir outros públicos que não o
de classe média, do centro da cidade. Sob essa perspectiva, ela sugere o Hiphop e o Rap,
como já comentado na sessão anterior, como possibilidades inovadoras para a
popularização do teatro em Paracatu.
Outros elementos são apontados como empecilhos para o interesse das juventudes pela
arte e pela cultura, como a televisão, a internet ou a falta de acesso da família a essas
linguagens. Por outro lado, Luiz aponta que é muito comum ver o jovem colocando a culpa
toda de seus problemas na família, na escola, sem buscar o que realmente quer ou acredita.
Para ele, muitos jovens “não querem participar de atividades culturais se não tiver nada em
troca”. Nessa fala de Luiz, a reflexão crítica se volta para as próprias juventudes, ressaltando
a capacidade dos sujeitos de se pensar em sua própria situação, de refletir sobre o próprio
pensamento e agir conscientemente na transformação de sua realidade.
Após esse conjunto de observações, compreendo que meus interlocutores têm uma visão
complexa e crítica sobre os dilemas dessa época da vida, sobre as dificuldades que passaram
ou passam ainda hoje e que outros como eles também estão enfrentando. As
transformações desencadeadas a partir das experiências nos grupos e das linguagens da
capoeira, da dança afro e do teatro na vida dos jovens foram, sem dúvida, marcantes no
processo de subjetivação de cada um, e isso conta como uma grande conquista. Conqusita
dos grupos, sim, mas primeiramente conquista das juventudes que encontraram nesses
coletivos instrumentos para a elaboração de suas questões individuais e meios para
111
desenvolver suas narrativas pessoais. Os desafios são muitos e também estão em
movimento. A cada novo integrante do grupo, nova apresentação, nova proposta de
trabalho, nova dificuldade no caminho, mas é nesses desafios que se elaboram novas
conquistas.

112
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