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de novembro 23

9h30 ABERTURA
9h45 O PAPEL DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
José Ribeiro Gonçalves, Economista, Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Judiciais
ESPECIFICIDADES DA INSOLVÊNCIA DE PESSOAS SINGULARES
Rute Sabino, Juíza de direito
A EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Cláudia Loureiro, Juíza de direito
DEBATE
Moderação: Alberto Regueira, Vice-Presidente da DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor
12h30 Pausa para Almoço
14h00 PRESSUPOSTOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Teresa Garcia, Juíza de direito
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO: QUESTÕES SUBSTANTIVAS
João Aveiro Pereira, Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO: QUESTÕES PROCESSUAIS
Fátima Reis Silva, Juíza de direito
DEBATE
Moderação: Renato Gonçalves, Subdirector-geral da Direcção-Geral da Política de Justiça
16h30 ENCERRAMENTO
:Destinatários
.Juízes, Magistrados do Ministério Público e outros profissionais da área forense
Ação de Formação Contínua Tipo B | Lisboa, 23 e 30 de novembro 2012 | Auditório do CEJ, Largo do Limoeiro,
Lisboa
de novembro 30
9h30 ABERTURA
9h45 ASSEMBLEIA DE CREDORES: QUESTÕES PRÁTICAS
Maria José Costeira, Juíza de direito
NOVAS QUESTÕES NA QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
José Manuel Branco, Procurador da República
VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Luís Lameiras, Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto
DEBATE
Moderação: Pedro Caetano Nunes, Juiz de direito - Docente do CEJ
12h30 Pausa para Almoço
14h00 EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO
Maria do Rosário Epifânio, Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica
INSOLVÊNCIA DE SOCIEDADES E CONTRATOS DE TRABALHO
Júlio Gomes, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica
EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA SOBRE OS PROCESSOS PENDENTES
Artur Dionísio Oliveira, Juiz de direito
DEBATE
Moderação: Laurinda Gemas, Juíza de direito - Docente do CEJ
16h30 ENCERRAMENTO

Recepção
09h15 - Sessão de abertura
Paula Teixeira da Cruz, Ministra da Justiça
09h30 - Painel I: Perspectivas internacionais de reforma do regime das
insolvências
Keynote speaker
Sijmen De Ranitz, ex presidente da INSOL International
Pausa para café
10h30 - Painel II: Alteração do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas
Temas em debate:
Agilização processual: adequação dos prazos e repartição de competências entre o
juiz a secretaria e os administradores da insolvência; verificação e graduação dos
créditos; qualificação da insolvência; dever de apresentação à insolvência; eficácia da
liquidação do activo/massa insolvente; estrutura e categorias de voto nas assembleias
de credores; efeitos dos negócios jurídicos celebrados no momento anterior à
declaração de insolvência.
Mesa redonda:
Pedro Álvares de Carvalho, 3º Juízo Cível de Braga
Maria do Rosário Epifânio, Universidade Católica Portuguesa - Porto
Raul Gonzalez, Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais
Nuno Ferreira Lousa, Linklaters LLP – Lisboa
António Barros, Associação Empresarial de Portugal

Moderador: Ana Vargas, Direcção-Geral da Política de Justiça


Almoço livre

14h30 - Painel III: Perspectivas internacionais em matéria de reestruturação


extrajudicial de dívidas
Keynote speaker
Yan Liu, Fundo Monetário Internacional
15h00 - Painel IV: Revisão do Processo Extrajudicial de Conciliação na
perspectiva
da viabilização de processos de recuperação
Temas em debate:
Princípios gerais de reestruturação voluntária extra judicial; agilização processual;
simplificação e desmaterialização; protecção dos credores; protecção da empresa
requerente; concertação de credores; actuação dos credores privilegiados; intervenção
dos bancos; remoção de impedimentos fiscais; viabilização de processos de
recuperação.
Mesa redonda:
Daniel Santos, Banco Espírito Santo
Nelson Ferreira, Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social
José Azevedo Pereira, Direcção-Geral dos Impostos
José Ribeiro Gonçalves, Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais
Jorge Pais, Associação Industrial Portuguesa

Moderador: Manuel da Silva Arsénio, IAPMEI


17h30 - Sessão de encerramento
Álvaro Santos Pereira, Ministro da Economia e do Emprego

Tema geral: Os planos de insolvência e de pagamentos


Objectivo:
Atingir na área jurídica do Direito da Insolvência um nível aprofundado
de conhecimento e de capacidade para a investigação, em termos
tais que permitam o desenvolvimentos de soluções jurídicas originais
com valor prático e cientifico, a aplicação de conhecimentos na
resolução de problemas em situações novas, a comunicação de
saberes e raciocínios de uma forma clara e sem ambiguidades e a
aprendizagem autónoma ao longo da vida.
1º PARTE GERAL
1. Função
2. Direito comparado
3. Natureza jurídica (remissão)
§ 2º PARTE ESPECIAL
1. Pressupostos
a. Legitimidade
b. Capacidade
c. Patrocínio
d. Competência
e. outros
2. Conteúdo
3. Procedimento
f. Plano de insolvência
g. Plano de pagamentos
4. Poderes do juiz
5. Efeitos
h. O efeito derrogatório das normas legais
i. Vontade privada e actos executivos
j. Efeitos processuais
k. Efeitos substantivos
4. Vicissitudes
6. Responsabilidade do devedor
7. Natureza jurídica
8. Aplicabilidade à insolvência das instituições de crédito

PROGRAMAÇÃO
1º Semestre (13 aulas [mínimo])
1ª - Apresentação
2ª - Aula teórica: investigação: métodos e fontes
3ª - Aula teórica; O processo de insolvência: quadro geral
4ª – Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
espanhol (I)
5ª – Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
espanhol (II)
6ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
italiano
7ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
processual comunitário
8ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
alemão (I)
9ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
alemão (II)
10ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
norte-americano
11ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
português (regime do CIRE)
12ª Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
português (instituições de crédito)
13ª Distribuição de trabalhos e de temas
PROGRAMAÇÃO
1º Semestre (13 aulas [mínimo])
1ª - Apresentação
2ª - Aula teórica: investigação: métodos e fontes
3ª - Aula teórica; O processo de insolvência: quadro geral
4ª – Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
espanhol (I)
5ª – Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
espanhol (II)
6ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
italiano
7ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
processual comunitário
8ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
alemão (I)
9ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
alemão (II)
10ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
norte-americano
11ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
português (regime do CIRE)
12ª Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
português (instituições de crédito)
13ª Distribuição de trabalhos e de temas
2º Semestre (20 aulas2)
Apresentação, discussão e avaliação de exposições temáticas orais,
com a duração mínima de 1 aula e máxima de 2 aulas.
Preparação e entrega de relatórios temáticos
15 de Setembro de 2010 (termo final para entrega dos relatórios)

Enquadramento Social e Económico da Insolvência


Catarina Frade (Professora da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra e Investigadora do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra)
O Processo de Insolvência – Tramitação e Questões Processuais
Maria José Costeira (Juíza de Direito no Tribunal de Comércio de Lisboa)
9 março
10h00/13h00
Procedimentos Alternativos à Insolvência
José Manuel Branco (Procurador da República no Tribunal de Comércio de
Vila Nova de Gaia)
14h00/18h00
Os Pressupostos da Declaração de Insolvência
Teresa Garcia (Juíza Assessora no Supremo Tribunal de Justiça)
O Processo Especial de Revitalização – Aspetos Processuais
Maria de Fátima Reis Silva (Juíza de Direito no Tribunal de Comércio de
Lisboa)
15 março
10h00/13h00
O Relatório do Administrador da Insolvência e a Assembleia de Credores
Manuel Reinaldo Mâncio Costa (Economista e Administrador de
Insolvência)
O Plano de Insolvência e o Plano de Pagamento
Raul Gonzalez (Economista e Administrador de Insolvência)
14h00/18h00
Crimes Falenciais e Societários
Susana Aires de Sousa (Professora da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra)
A Qualificação da Insolvência
José Manuel Branco (Procurador da República no Tribunal de Comércio de
Vila Nova de Gaia)
16 março
10h00/13h00
A Exoneração do Passivo Restante e a Cessão do Rendimento Disponível
Cláudia Loureiro Maio Martins (Juíza de Direito nos Juízos Cíveis de Lisboa)
14h00/18h00
Os Efeitos da Insolvência
Catarina Serra (Professora da Escola de Direito da Escola do Minho)
Elisabete Assunção (Juíza de Direito no Tribunal de Comércio de Lisboa)
A insolvência da sociedade e a responsabilização dos
administradores no ordenamento jurídico português1
Maria Elisabete Gomes Ramos*
Resumo: O estudo versa a efectivação da
responsabilidade dos administradores no contexto da
insolvência da sociedade. Tema que é abordado à luz das
normas do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18
de Março e alterado pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18
de Agosto, e pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de
Março. A insolvência é qualificada como culposa ou
fortuita, sendo que a insolvência culposa implica
consequências gravosas para os administradores
afectados. O estudo aborda estas consequências.
Palavras chave: Código da Insolvência e da Recuperação
de Empresas, insolvência da sociedade, responsabilidade
dos administradores, insolvência culposa, insolvência
fortuita, inabilitação, inibição para o comércio, sanções
penais.
1 Enquadramento geral
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) veio
revogar o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de
Falência (CREF), que tinha sido aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de
Abril. Este último diploma retirou do Código de Processo Civil (CPC) a
regulamentação processual e substantiva da falência e, de forma inovadora,
conjugou esta matéria com a da recuperação da empresa. A aplicação
1
No dia 28 de Junho de 2005, a convite da «Associação Empresarial de Portugal,
Câmara de Comércio e Indústria», e na sequência de prévios contactos estabelecidos pela
Sociedade de Advogados «Rui Peixoto Duarte & Associados», proferi, no âmbito do
Seminário «O novo Código da Insolvência», a palestra subordinada ao tema «A insolvência
e a responsabilidade dos administradores». O presente texto serviu de base a tal
conferência. Agradeço aos Senhores Doutor J. M. Coutinho de Abreu (Professor de Direito
Comercial da Faculdade de Direito de Coimbra), Dr. Miguel Mesquita (Assistente da
Faculdade de Direito de Coimbra) e Dra. Maria José Costeira (Juíza do Tribunal de
Comércio de Lisboa) os esclarecimentos que me dispensaram durante a preparação deste
trabalho. Sendo certo que as falhas ou as insuficiências do presente estudo são da minha
exclusiva responsabilidade.
56
concreta do CREF permitiu detectar bloqueios vários que, entre outros
aspectos, impediam a desejável celeridade do processo de insolvência.
Distanciando-se do CREF, o CIRE unifica o processo de insolvência, atribui a
primazia ao interesse dos credores e incrementa a celeridade e a
desjudicialização processuais.
O CIRE contempla soluções inovadoras em matéria de responsabilização
dos administradores2 de sociedades insolventes. É este regime que urge
conhecer. Ocorrida a insolvência de uma sociedade, pode levantar-se o
problema de saber que efeitos tem essa insolvência na esfera jurídica dos
membros do órgão de administração. Será que o seu património pessoal pode
ser agredido para pagar o passivo da sociedade? Será que tal insolvência
envolve a aplicação de reacções criminais? Será que a insolvência da sociedade
vai afectar juridicamente a carreira profissional dos membros do órgão de
administração, impedindo-os de integrar determinados cargos?
A personalidade jurídica da sociedade se, por um lado, parece afastar o
administrador das consequências da insolvência da sociedade — devedor
insolvente é a sociedade não o(s) seu(s) administrador(es) —, por outro lado,
pode funcionar como um cenário atrás do qual o(s) administrador(es)
pratica(m) factos lesivos dos credores da sociedade (v.g. práticas de
descapitalização da empresa societária). É manifesto que a gestão realizada pelo
órgão de administração ou por alguns dos seus membros pode contribuir para a
génese ou agravamento da situação de insolvência da sociedade. O que tem
convocado a intervenção da ordem jurídica, de modo a serem protegidos, os
interesses afectados.
Referindo-nos ao ordenamento jurídico português, podemos começar
por fixar o seguinte ponto de partida: à luz do CIRE, a insolvência da sociedade
pode desencadear medidas responsabilizadoras para os seus administradores. O
novo direito da insolvência, seguindo uma tendência já manifestada no CREF
(especialmente depois da revisão de 1998), consagra o carácter fragmentário e
não automático dos efeitos responsabilizadores. Medidas de índole fragmentária,
porque, ocorrida a insolvência da sociedade, só determinadas condutas — as que
se encontram caracterizadas na lei — merecem uma reacção ou sanção aplicada
aos administradores afectados, sendo as restantes, para este efeito, consideradas
não relevantes. Medidas de funcionamento não automático, porque a sua
aplicação depende de uma sentença judicial (diversa da sentença que declara a
insolvência)3. A percepção das novidades que o CIRE trouxe ao estatuto dos
administradores exige que conheçamos, ainda que de forma sintética, o regime
do revogado
2
A expressão administradores é usada em um sentido amplo, de modo a referir os
membros do órgão de administração das sociedades.
3
As medidas responsabilizadoras são aplicadas, não por força da lei, mas por força
de uma decisão judicial que as decreta. Já a perda da remuneração dos administradores é
um efeito decorrente da insolvência da sociedade (art. 82.º, n.º 1, do CIRE). Manter-se-ão,
contudo, as remunerações dos administradores, no caso em que a administração da
insolvência é assegurada pelo próprio devedor (art. 227.º, n.º 1, do CIRE).
67
CREF relativo às consequências da declaração de falência da sociedade
sobre os titulares do órgão de administração.
O art. 148.º, n.º 1, do CREF (versão originária) impunha como
consequência imediata e automática da falência da sociedade a «inibição (...) dos
seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de
ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil,
associação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa».
Independentemente do relevo da respectiva conduta, declarada a falência da
sociedade, os administradores eram declarados inibidos para o exercício do
comércio ou para ocupar certos cargos. O mérito ou o bom desempenho dos
administradores de uma sociedade que, apesar disso, viesse a ser declarada
falida não obstava ou impedia a «inibição»4.
Entretanto, o Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro, entre outros
aspectos, aditou os arts. 126.º-A, 126.º-B e 126.º-C e renovou o art. 148.º, todos do
CREF. O art. 126.º-A do CREF prescrevia a «responsabilização solidária dos
dirigentes» de sociedades ou de pessoas colectivas que, por actos seus, tivessem
contribuído para a situação de insolvência. O Ministério Público ou qualquer
credor podia requerer ao tribunal a declaração da responsabilidade «solidária e
ilimitada»5 dos administradores de direito ou de facto quanto às dívidas da
sociedade falida e a sua condenação no pagamento do respectivo passivo. O n.º
2 apresentava um elenco de presunções6 de contribuições significativas para a
insolvência da sociedade ou da pessoa colectiva.
O art. 126.º-B do CREF, intitulado «Depósito do passivo a descoberto»,
estabelecia que o tribunal, a requerimento de qualquer credor ou do Ministério
Público, fixasse prazo para os responsáveis satisfazerem o «passivo conhecido
da sociedade (...), a descoberto, à data da declaração da falência, ou apenas o
montante do dano por eles causado, se fo[sse] considerado inferior» 7.
As duas situações contempladas no art. 126.º-B do CREF —
responsabilidade civil dos fundadores ou administradores das sociedades, nos
termos do Código das Sociedades Comerciais (CSC), e responsabilidade solidária
decorrente do art. 126.º-A do CREF — eram distintas8. Além de outros aspectos,
a responsabilização solidária dos dirigentes, prevista no art. 126.º-A, do CREF,
«sendo fixada em função do processo de falência, e para
4
Sobre o levantamento deste efeito, v. OLIVEIRA ASCENSÃO, «Efeitos da falência
sobre a pessoa e negócios do falido», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
1995, pp. 325 e s..
5
Manifestando objecções pertinentes a estas qualificações legais, v. L UÍS CARVALHO
FERNANDES / JOÃO LABAREDA, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de
Falência Anotado, 3.ª ed., Lisboa: Quid Juris, 1999, p. 349.
6
Cfr. LUÍS CARVALHO FERNANDES / JOÃO LABAREDA, cit., p. 348.
7
Art. 126.º-B, n.º 1, do CREF. Interpolação minha.
8
Cfr. LUÍS CARVALHO FERNANDES / JOÃO LABAREDA, cit., p. 348.
78
os efeitos desta (...) não pode deixar de ser declarada por apenso no
respectivo processo»9. Diferente era a situação da responsabilidade civil dos
administradores, prevista no CSC. Imaginando que, à data da declaração da
falência, estava em curso uma acção de responsabilidade civil, essa acção
«seguirá o seu curso próprio e autónomo, a menos que [tivesse sido] requerida a
sua apensação nos termos do art. 154.º; mas, ainda que a apensação ocorra, deve
entender-se que o processo respectivo seguirá o seu curso normal, não passando
a estar sujeito ao regime dos n. os 2 e seguintes»10. Por outro lado, estando
apurada a responsabilidade civil em processo autónomo e já decidido, tal
decisão deverá ser atendida na falência. Concluíam Carvalho Fernandes e João
Labareda que «estes preceitos só se aplicam se a responsabilidade dos
fundadores, gerentes, administradores ou directores não tiver já sido objecto de
decisão judicial anterior ou se não estiver em curso acção dirigida ao seu
apuramento»11. O que, em síntese, implicava que a responsabilidade dos
administradores, regulada pelo CSC, pudesse ser (pelo menos em alguns casos)
efectivada em processo autónomo.
Esgotado o prazo fixado no art. 126.º-B do CREF e não tendo sido depositados
pelos sujeitos responsáveis, nos termos dos arts. 126.º-A e 126.º-B, os montantes
correspondentes ao valor do passivo a descoberto à data da declaração de
falência ou ao valor do dano, consoante os casos, permitia-se que qualquer
credor ou o Ministério Público requeressem a declaração de falência dos
responsáveis. Consagrava-se, assim, a figura das «falências conjuntas», prevista
pelo art. 126.º-C do CREF12.
Por fim, o art. 148.º, n.º 2, do CREF (na versão introduzida pelo Decreto-
Lei n.º 315/98) determinava que, no caso de falência da sociedade, o juiz,
ouvido o liquidatário judicial, aplicaria aos administradores referidos nos arts.
126.º-A e 126.º-B a inibição para o exercício do comércio e para o desempenho de certos
cargos. Esta redacção do art. 148.º, n.º 2, do CREF limitou o âmbito do preceito,
pois só podiam ser atingidos pela inibição os administradores referidos nos arts.
126.º-A e 126.º-B do CREF.
A disciplina acabada de referir aplicava-se não só aos administradores de
direito como aos «administradores de facto». Estes últimos, já abrangidos pelo
art. 126.º-A do CREF13, voltam, no contexto do
9
Cfr. LUÍS CARVALHO FERNANDES / JOÃO LABAREDA, cit., p. 351.
10
V. LUÍS CARVALHO FERNANDES / JOÃO LABAREDA, cit., p. 351. Interpolação minha.
11
V. LUÍS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, cit., p. 351.
12
O que poderia implicar a falência (com as consequências que lhe eram inerentes)
de sujeitos solventes. Neste sentido, v. C ATARINA SERRA, «Alguns aspectos da revisão do
regime da falência pelo DL 315/98, de 20 de Outubro», Scientia Ivridica, nos. 277/279 (1999),
p. 199.
13
Embora o art. 126.º-B do CREF não referisse expressamente os administradores de
facto, LUÍS CARVALHO FERNANDES / JOÃO LABAREDA, cit., p. 395, entendiam que também
estes últimos podiam ser declarados inibidos para o exercício do comércio ou para o
desempenho de certos cargos.
89
CIRE, a ser expressamente referenciados como destinatários de medidas de
responsabilização. Quem são os administradores de facto? A lei não define o
que sejam administradores de facto. No entanto, a doutrina nacional tem-se
ocupado desta definição e, na sequência desse esforço, é legítimo dizer que é
«administrador de facto (em sentido amplo) quem, sem título bastante, exerce, directa
ou indirectamente e de modo autónomo (não subordinadamente) funções próprias de
administrador de direito da sociedade»14. Em outros domínios em que não há
previsão expressa, a doutrina portuguesa tem defendido — com argumentos
diversos — que a ausência de título bastante não impede a responsabilização
dos administradores de facto perante a sociedade, credores sociais e terceiros. É
certo que os arts. 82.º, n.º 2, a), e 186.º, n.º 2, do CIRE consolidam a tese de que os
administradores de facto não estão ao abrigo dos efeitos responsabilizadores
previstos na lei.
Concluo estas palavras introdutórias por fixar o roteiro das considerações que
seguem. Versarão elas (essencialmente) dois problemas: a) a efectivação da
responsabilidade civil dos administradores na pendência do processo de
insolvência, b) os tipos de insolvência. De forma epidérmica será aflorado o
relevo jurídico-penal das condutas dos administradores.
2 A efectivação da responsabilidade civil dos administradores
na pendência do processo de insolvência
2.1 As conexões com o regime jurídico-societário da
responsabilidade civil pela administração
O CIRE integra normas sobre a efectivação da responsabilidade civil dos
administradores na pendência do processo de insolvência da sociedade. O art.
82.º, n.º 2, do CIRE, por um lado, pressupõe a disciplina jurídico-societária da
responsabilidade civil pela administração, e, por outro, incorpora desvios que se
prendem, essencialmente, com a legitimidade do administrador da
insolvência15. Conheçamos, de momento, as conexões com o regime jurídico-
societário da responsabilidade civil pela administração.
A responsabilidade civil pela administração exige, em todas as suas expressões,
a culpa dos membros do órgão de administração16 e a ilicitude da conduta. Por
intermédio da culpa, a ordem jurídica considera que a actuação do
administrador merece censura ou reprovação do direito porque, atendendo às
circunstâncias, ele podia ter agido de outro modo. Toma-se a culpa como
imputação do acto ao agente (está afastada a responsabilidade
14
J. M. COUTINHO DE ABREU / ELISABETE RAMOS, Responsabilidade civil dos administradores e de
sócios controladores, Miscelâneas n.º 3, Coimbra: Almedina/Idet, 2004, p. 43.
15
Sobre esta disposição, v. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES / JOÃO LABAREDA, Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume I (arts. 1.º a 184.º), Lisboa: Quid
iuris, 2005, pp. 343 e ss.
16
V. arts. 72.º, n.º 1, 78.º, n.º 1, 79.º, n.º 1, do CSC e 483.º, n.º 2, do Código Civil (CCiv.).
9 10
objectiva)17. Já o grau de culpa não releva para fundar a responsabilidade
civil dos administradores. O CSC não restringe a responsabilidade dos
administradores a violações grosseiras, embora a medida da culpa possa ter
interesse para a fixação do montante da obrigação de indemnizar (art. 73.º, n.º 2,
do CSC). O padrão geral para ajuizar a culpa (aplicável a todos os
administradores) é o da (abstracta) «diligência de um gestor criterioso e
ordenado» (art. 64.º, n.º 1, a), do CSC).
O CSC manifesta o propósito de individualização da responsabilidade civil:
responsáveis são os titulares do órgão administrativo e não o próprio órgão. Quando
sejam responsáveis dois ou mais administradores, a responsabilidade é
solidária (art. 73.º do CSC)18.
2.1.1. A responsabilidade civil contratual perante a sociedade
Perante a sociedade, os administradores respondem por danos decorrentes de
actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais,
salvo se provarem que procederam sem culpa (art. 72.º, n.º 1, do CSC). Eis
alguns exemplos de deveres dos administradores perante a sociedade: dever de
não exceder o objecto social (art. 6.º, n.º 4, do CSC), dever de não distribuir bens
aos sócios sem prévia deliberação social (art. 31.º, n.º 1, do CSC), dever de não
restituir as entradas aos sócios (art. 32.º do CSC), dever de, durante a redução
ou suspensão da actividade da empresa, não distribuir lucros, sob qualquer
forma, nomeadamente a título de levantamento por conta (art. 342.º, n.º 1, c), do
Código do Trabalho) ou, ainda, o dever de relatar a gestão e apresentar contas
(art. 65.º do CSC)19.
A sociedade lesada (ou os sujeitos legitimados para propor a acção social
de responsabilidade20) beneficia da presunção de culpa dos administradores,
como resulta do art. 72.º, n.º 1 (in fine), do CSC. Deste modo, é invertido o ónus
da prova (art. 350.º, n.º 1, do CCiv.) e caberá ao administrador demandado
provar que procedeu sem culpa.
Atente-se que da simples qualidade de membro do órgão de
administração não pode ser retirada, sem mais, esta responsabilidade contratual
perante a sociedade. O art. 72.º, n.º 3, do CSC prescreve que «não são (...)
responsáveis pelos danos resultantes de uma deliberação colegial os gerentes ou
administradores que nela não tenham participado ou hajam votado vencidos,
podendo neste caso fazer lavrar no prazo de cinco dias a
17
Não se incluem no âmbito da responsabilidade civil dos administradores as
consequências imputáveis aos riscos de empresa. Pelos danos decorrentes desta, os lesados
deverão demandar tão-só a sociedade. Se, por exemplo, em virtude de uma conjuntura
desfavorável, a empresa societária entra em crise e deixa de cumprir as suas obrigações, por
estes danos é responsável a sociedade. V. J. M. C OUTINHO DE ABREU / ELISABETE RAMOS, cit.,
p. 27.
18
Trata-se de solidariedade passiva de fonte legal. V. arts. 512.º e 518.º e ss. do CCiv.
19
Para o elenco dos deveres dos administradores, v. A NTÓNIO MENEZES CORDEIRO,
Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lisboa: Lex, 1997, pp. 38 e
ss.
20
Sobre a legitimidade para propor a acção social de responsabilidade, v. infra.
10 11
sua declaração de voto, quer no respectivo livro de actas, quer em escrito
dirigido ao órgão de fiscalização, se o houver, quer perante notário ou
conservador». De todo o modo, o art. 72.º, n.º 4, do CSC afirma a
responsabilidade do administrador que não tenha exercido o seu direito de
oposição conferido por lei, quando estava em condições de o exercer. Em tais
casos, o administrador responde solidariamente pelos actos a que poderia ter-se
oposto.
Os administradores não são responsáveis para com a sociedade quando
o acto ou omissão assentar em deliberação dos sócios, ainda que anulável (art.
72.º, n.º 5, do CSC) 21. De forma inovadora, o art. 72.º, n.º 2, do CSC integra na
ordem jurídica portuguesa a business judgment rule, ao determinar a exclusão da
responsabilidade dos administradores, se estes provarem que actuaram em
termos informados, livres de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de
racionalidade empresarial22.
O parecer favorável ou o consentimento do órgão de fiscalização, se este
existir, não exoneram de responsabilidade os membros da administração (art.
72.º, n.º 6, do CSC).
2.1.2. A natureza extracontratual da responsabilidade civil perante os credores
sociais, sócios e terceiros
A acção autónoma dos credores sociais — não dependente da eventual
responsabilidade dos administradores perante a sociedade — encontra-se
prevista no art. 78.º, n.º 1, do CSC. Os administradores respondem perante os
credores sociais quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou
contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne
insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
A ilicitude relevante para efeitos desta responsabilidade civil consiste na
violação de deveres jurídicos inscritos em normas legais ou contratuais destinadas a
proteger os credores sociais23. O que, de imediato, suscita o problema de saber
quais são as normas destinadas a proteger credores sociais. No universo do
CSC, as normas que jurídico-positivamente acolheram a função de garantia do
capital social24 podem ser apontadas como
21
Para as sociedades abertas, o art. 24.º, n.º 3, do Código dos Valores Mobiliários (CVM)
impede em certas circunstâncias o efeito exoneratório previsto no actual art. 72º, n.º 5, do
CSC. Na doutrina, V.G. L OBO XAVIER, Anulação de deliberação social e deliberações conexas,
Atlântida, Coimbra, 1976 (reimpr. 1998, Almedina, Coimbra), pp. 367 e ss., defendeu a
interpretação restritiva do art. 17.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 49 381 (reproduzido hoje no art.
72.º, n.º 5, do CSC).
22
Alteração introduzida pela importante reforma societária do direito português, operada
pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março.
23
V. G. LOBO XAVIER, cit., p. 359, «dificilmente concebe» a existência de disposições
contratuais destinadas a proteger credores da sociedade.
24
Sobre o problema de saber se o regime do capital social é idóneo para o desempenho da
função de garantia de terceiros, v. PAULO DE TARSO DOMINGUES, Do capital social — Noção,
princípios e funções, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 220 e ss.
11 12
normas destinadas a proteger os credores sociais. A referida função de
garantia do capital social, na estrita medida em que impede determinadas
atribuições de bens sociais aos sócios (e, por essa via, promove a conservação de
bens patrimoniais na esfera da sociedade), acaba por ter um efeito tutelador dos
credores da sociedade. Vejam-se, por exemplo, os arts. 32.º (limites da
distribuição de bens aos sócios), 218.º, 295.º (obrigatoriedade de constituição de
reserva legal), 317.º, n.º 4 (limites quanto aos bens sociais que podem ser
entregues como contrapartida da aquisição de acções próprias) e 236.º (ressalva
do capital em caso de amortização de quotas)25.
A insuficiência patrimonial convocada pelo art. 78.º, n.º 1, do CSC
traduz-se na insuficiência do activo para satisfazer o passivo social 26. Publicado o
CIRE, é necessário averiguar se, à luz deste diploma, há espaço para distinguir
entre o requisito da insuficiência patrimonial (previsto no art. 78.º, n.º 1, do
CSC) e o da insolvência27.
Diz o art. 3.º, n.º 1, do CIRE que «É considerado em situação de
insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas
obrigações vencidas». São, pois, possíveis zonas de sobreposição em que a
insolvência da sociedade se deve a uma insuficiência do património (com um
passivo superior ao activo). Porém, continua a ser possível estabelecer a
distinção entre estas duas realidades. A impossibilidade de cumprir as
obrigações vencidas não tem de equivaler à inferioridade do activo em relação
ao passivo. O devedor pode estar impossibilitado de pagar aos credores e, no
entanto, ter no seu património valores superiores ao montante das dívidas.
Pode acontecer que o incumprimento das dívidas se deva à falta de liquidez,
tendo, contudo, o devedor bens de valor superior ao montante dos débitos.
Como pode dar-se o inverso: o devedor ter, em dado momento, activo inferior
ao passivo, mas dispor de crédito, isto é, ter alguém que lhe forneça meios para
ir satisfazendo as suas dívidas à medida que se forem
25
Normas do CSC. Outras normas de protecção dos credores sociais podem ser
equacionadas. É o caso das que delimitam a capacidade jurídica das sociedades. O art. 6.º,
n.º 1, do CSC determina que «A capacidade da sociedade compreende os direitos e as
obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que
lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular». Proibindo este
artigo certos actos que provoquem a diminuição do património social, ele é tutelador (não
só mas também) dos credores sociais. Sobre a matéria, v. J. M. C OUTINHO DE ABREU, Curso de
direito comercial, vol. II — Das sociedades, Coimbra: Almedina, 2002 (3.ª reimpr. 2004), pp. 182
e ss.
26
Na vigência do Decreto-Lei n.º 49381, v., no mesmo sentido, R AÚL
VENTURA/BRITO CORREIA, «Responsabilidade civil dos administradores de sociedades
anónimas e dos gerentes de sociedades por quotas», Boletim do Ministério da Justiça n.º 195
(1970), p. 67; J. PINTO FURTADO, Código Comercial anotado, vol. II — Das sociedades em especial,
t. I, Coimbra: Almedina, 1986, p. 411; à luz do actual art. 78.º, n.º 1, do CSC, v. M. E LISABETE
RAMOS, Responsabilidade civil dos administradores e directores de sociedades anónimas perante os
credores sociais, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, pp. 228 e ss.
27
Considerando que a insuficiência patrimonial exigida pelo art. 78.º, n.º 1, do CSC
equivale à insolvência definida no art. 3.º, n.º 1, do CREF, v. M. P UPO CORREIA, Sobre a
responsabilidade por dívidas sociais dos membros dos órgãos de administração, ROA, 2001, II, p.
685, A. PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades comerciais, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2003,
p. 175.
12 13
vencendo; ou podem os credores adiar prazos que lhe permitam ir
pagando as dívidas vencidas28. Deste modo, ainda que não se ignore a
proximidade entre a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas,
própria da insolvência, e a insuficiência patrimonial, é certo que, à luz do art.
3.º, n.º 1, do CIRE há espaço para a distinção 29.
Acrescenta o art. 3.º do CIRE, no n.º 2, que «As pessoas colectivas e os
patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda
pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também
considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao
activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis» 30. Foi
recuperado o critério específico que, entre o Código de Falências e o CREF,
vigorou para as «sociedades de responsabilidade limitada» 31. Por força do art.
3.º, n.º 2, do CIRE, aumenta a zona de sobreposição entre a insuficiência
patrimonial e a insolvência. O que significa que, no caso das sociedades — por
quotas e anónimas, essencialmente32 —, a insuficiência patrimonial releva não só
como requisito da responsabilidade civil dos administradores perante os
credores sociais, mas também como pressuposto objectivo do processo de
insolvência.
Por fim, o art. 79.º, n.º 1, do CSC dispõe que «Os gerentes ou
administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e
terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas
funções». A remissão para os «termos gerais» visa o regime previsto nos arts.
483.º e ss. do CCiv. Além da ilicitude e da culpa, o art. 79.º, n.º 1, do CSC exige
que os administradores, «no exercício das suas funções», isto é, durante e por
causa da sua actividade de gestão e / ou representação social 33, causem danos
directamente a sócios ou terceiros. Quer dizer, a relação de causalidade
(adequada — cfr. o art. 563.º do CCiv.) entre o facto
28
V. J. M. COUTINHO DE ABREU / ELISABETE RAMOS, cit., p. 29 e s.
29
V. também J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. I —
Introdução, actos de comércio, comerciantes, empresas, sinais distintivos, 5.ª ed., Coimbra:
Almedina, 2004, p. 115.
30
O art. 3.º, n.º 3, do CIRE permite que sejam utilizados outros critérios de avaliação.
Para a compreensão de tais critérios, v. J. M. C OUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial,
vol. I, ob. cit., pp. 118 e ss.
31
Sobre os antecedentes históricos do art. 3.º, n.º 2, do CIRE, v. J. M. C OUTINHO DE
ABREU / ELISABETE RAMOS, cit., p. 29.
32
Este preceito abrange também as sociedades em nome colectivo e em comandita
em que, respectivamente, todos os sócios ou os sócios comanditados (que respondem pelas
dívidas sociais) sejam pessoas colectivas de «responsabilidade limitada» (v.g. sociedades por
quotas ou anónimas), cooperativas sem cooperadores de responsabilidade ilimitada, e.i.r.l.,
ACE e AEIE cujos membros sejam somente pessoas colectivas de responsabilidade limitada.
Neste sentido, v. J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. I, ob. cit., p. 117.
33
«Em princípio, os actos praticados fora do exercício de funções — incluindo os
actos praticados durante, mas não por causa desse exercício — vinculam o administrador do
mesmo modo que vinculariam qualquer outra pessoa que os praticasse, estando sujeitos ao
regime da responsabilidade civil comum» (R AÚL VENTURA / BRITO CORREIA, cit., BMJ n.º
192, 1970, p. 13).
13 14
(ilícito e culposo) do administrador e o dano há-de ser directa ou
imediata. Os administradores não respondem perante os sócios ou terceiros
quando o prejuízo sofrido por estes seja consequência ou reflexo das perdas por
aqueles causadas no património social. Não obstante, é possível que um mesmo
facto ilícito dos administradores prejudique simultaneamente o património
social e (directamente) o dos sócios e credores, havendo então espaço quer para
a acção de responsabilidade para com a sociedade, quer para a acção de
responsabilidade para com os terceiros.
É de questionar a responsabilidade solidária entre a sociedade e os
administradores responsáveis. Segundo o art. 6.º, n.º 5, do CSC, «A sociedade
responde civilmente pelos actos ou omissões de quem legalmente a represente,
nos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos
comissários». A sociedade é responsável perante os credores e terceiros quando
para com eles também os administradores sejam responsáveis nos termos dos
arts. 78.º, n.º 1, e 79.º n.º, 1, do CSC (v. o art. 500.º, n.º 1, do CCiv.) 34. Por sua vez,
a sociedade, se satisfizer a indemnização, tem o direito de exigir do(s)
administrador(es) o reembolso de tudo quanto haja pago (art. 500.º, n.º 3, do
CCiv.)35.
A responsabilidade prevista nos arts. 78.º, n.º 1, e 79.º do CSC assume
carácter extracontratual36. Como facilmente se percebe, objecto de
regulamentação não é a frustração de uma relação negocial (que não existe)
entre, por um lado, os administradores e os credores da sociedade ou terceiros.
Esta qualificação é normativamente consequente, por exemplo, no ónus da prova
da culpa. O CSC nada diz quanto à distribuição do ónus da prova da culpa em
matéria de responsabilidade dos administradores perante credores ou terceiros.
A resposta encontra-se no art. 487.º, n.º 1, do CCiv.: é «ao lesado que incumbe
provar a culpa do autor da lesão».
2.2. A legitimidade do administrador da insolvência para efectivar a
responsabilidade dos administradores perante a sociedade e perante
os credores sociais. Explicitação do regime
O art. 82.º do CIRE, inserido no capítulo relativo aos efeitos da declaração da
insolvência sobre o devedor e outras pessoas, prescreve, no n.º 2, a legitimidade do
administrador da insolvência37 para, durante o processo de
34
O Ac. da RL de 30 / 3 / 95, CJ, 1995, t. II, pp. 98, ss., decidiu que «pela indemnização por
danos ilicitamente causados aos direitos de personalidade de terceiro pelo funcionamento
de um bar pertencente a uma sociedade comercial, são responsáveis, solidariamente, o
gerente dessa sociedade, que o dirigia e mantinha em actividade (art. 483.º, n.º 1, do Código
Civil e 79.º, n.º 1, do Cod. Soc. Comerciais) e a própria sociedade (arts. 6.º, n.º 5 deste Código
e 500.º, n.º 1 do Cód. Civil)».
35
Com desenvolvimentos, v. J. M. COUTINHO DE ABREU / ELISABETE RAMOS, cit., pp. 35 e ss.
36
Neste sentido, cfr. o Ac. do STJ de 25 / 11 /1997, CJ (ASTJ), 1997, t. III, pp. 140, ss..
37
Ao administrador da insolvência — um dos órgãos da insolvência — competem funções
de natureza executiva. O Estatuto do Administrador da Insolvência foi estabelecido pela Lei
n.º 32/2004, de 22 de Julho. O Decreto-Lei n.º 54/2004, de 18 de Março, aprova o Regime
14 15
insolvência, propor e fazer seguir várias acções. O art. 82.º, n.º 2, do CIRE
consagra a legitimidade extraordinária do administrador da insolvência. O
administrador da insolvência litiga em nome próprio e assumirá a veste
processual de autor da acção intentada contra os administradores da sociedade,
embora não seja titular do interesse na obtenção da indemnização.
Jurídico das Sociedades de Administradores de Insolvência. Sobre o Estatuto do
Administrador da Insolvência, v. C ATARINA SERRA, O novo regime português da insolvência.
Uma introdução, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 25.
Por força do art. 82.º, n.º 2, do CIRE, a legitimidade do administrador é
exclusiva. Que significado tem, neste contexto, a legitimidade exclusiva? E que
consequências envolve tal legitimidade exclusiva?
O art. 82.º, n.º 2, do CIRE introduz regras excepcionais no que se refere à
legitimidade activa para a acção social de responsabilidade e para a acção
autónoma dos credores sociais. Durante o processo de insolvência, os sujeitos a
quem a disciplina societária reconhece legitimidade para propor e fazer seguir
estas acções são tidos como partes ilegítimas para estas acções. Vejamos
separadamente as alíneas a) e b) do art. 82.º, n.º 2, do CIRE.
À luz da alínea a) do n.º 2, do art. 82.º, o administrador da insolvência
tem legitimidade exclusiva para, durante o processo de insolvência, propor e
fazer seguir a acção social de responsabilidade. O administrador da insolvência, ao
abrigo dos arts. 72.º, n.º 1, do CSC e 82.º, n.º 2, a), do CIRE, vai intentar ou fazer
seguir a acção em que se pede que o tribunal condene o administrador de
direito ou de facto no pagamento de indemnização devida à sociedade
insolvente (por danos que aquele provocou no património desta). Indemnização
essa que, uma vez paga, integrará (e aumentará) a massa insolvente 38.
Durante a pendência do processo de insolvência, o art. 82.º, n.º 2, do
CIRE impõe o afastamento das regras jurídico-societárias relativas à legitimidade
activa para a propositura ou seguimento da acção social de responsabilidade. Se o
regime jurídico-societário confere legitimidade activa a vários sujeitos —
sociedade (art. 75.º do CSC), sócios que detenham as percentagens de capital
previstas na lei (art. 77.º, n.º 1, do CSC) e credores da sociedade (art. 78.º, n.º 2,
do CSC) — o CIRE atribui legitimidade exclusiva ao administrador da
insolvência para, durante o processo de insolvência, propor ou fazer seguir a
acção social de responsabilidade que legalmente couber à sociedade devedora.
Na pendência do processo de insolvência, sociedade, sócios e credores da
sociedade encontram-se privados de legitimidade activa para propor ou fazer acção
social de responsabilidade contra os administradores de facto ou de direito.
Há que considerar, ainda, um outro aspecto. À luz da disciplina jurídico-
societária, sendo a acção social de responsabilidade proposta por sócios ou
credores sociais, exige, respectivamente, o art. 77.º, n.º 4, do CSC
38
Segundo a definição do art. 46.º, n.º 1, do CIRE, «a massa insolvente (...) abrange
todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e
direitos que ele adquira na pendência do processo».
15 16
que a sociedade seja «chamada à causa» e os arts. 78.º, n.º 2, do CSC e
608.º do CCiv. que a devedora seja citada. Ora, a legitimidade exclusiva do
administrador da insolvência para propor ou fazer seguir a acção social de
responsabilidade parece implicar que, durante o processo de insolvência, se
prescinda da intervenção da sociedade no processo judicial em que se discute a
responsabilidade civil dos administradores perante aquela.
Esclarece, ainda, o art. 82.º, n.º 2, a), do CIRE — e esta é uma outra nota a
vincar — que a legitimidade do administrador da insolvência é independente do
acordo dos órgãos sociais do devedor. Repare-se que, decretada a insolvência da
sociedade, os órgãos sociais «mantêm-se em funcionamento» 39, embora os seus
titulares não sejam remunerados (art. 82.º, n.º 1, do CIRE). Sem prejuízo dos
casos em que o juiz determina que a administração da massa insolvente seja
assegurada pelo devedor (art. 224.º do CIRE), a declaração de insolvência priva
imediatamente a sociedade insolvente, pelos seus administradores, dos poderes
de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (art.
81.º, n.º 1, do CIRE). Estes poderes passam a competir ao administrador da
insolvência.
Se a assembleia de sócios (ou a colectividade de sócios) se mantém em
funcionamento, suscita-se, por conseguinte, a dúvida de saber se a acção social
de responsabilidade proposta pelo administrador da insolvência depende de
deliberação social40. Por força do art. 82.º, n.º 2, a), do CIRE, durante o processo
de insolvência, a legitimidade do administrador da insolvência não está
dependente de prévia deliberação social.
A desnecessidade de deliberação social para a proposição da acção social
de responsabilidade é relevante para os administradores porque os priva do
«amparo» que a maioria que os elegeu lhes poderia proporcionar. É provável
que «a maioria da assembleia seja tentada a ‘poupar’ os administradores que
elegeu, não exercendo sobre estes o direito de indemnização de que a sociedade
é titular»41. Se assim acontecesse (porque, por exemplo, a maioria não toma a
iniciativa ou opõe-se à responsabilização dos administradores), o património
social ficaria privado do montante da indemnização em que os administradores
viessem a ser condenados pelos danos causados à sociedade 42. Na pendência do
processo de insolvência, é removido o risco de a maioria inviabilizar a
responsabilização dos «seus»
39
A manutenção dos órgãos sociais em funcionamento é exigida, segundo Osório de
Castro, pela necessidade de haver quem represente o devedor pessoa colectiva. Cfr. O SÓRIO
DE CASTRO, «Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o Código», Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, Gabinete da Política
Legislativa e Planeamento, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 222.
40
Segundo o art. 75.º, n.º 1, do CSC, «a acção de responsabilidade proposta pela
sociedade depende de deliberação dos sócios, tomada por simples maioria (...)».
41
MANUEL NOGUEIRA SERENS, Notas sobre a sociedade anónima, 2.ª ed., Coimbra:
Coimbra Editora, 1997, p. 94.
42
No regime jurídico-societário, este risco é obviado pela legitimidade activa
reconhecida aos sócios e aos credores da sociedade para a acção social de responsabilidade
(arts. 77.º, n.º 1, e 78.º, n.º 2, do CSC).
16 17
administradores, porque o art. 82.º, n.º 2, a), do CIRE dispensa a
deliberação dos sócios. Este regime agiliza a responsabilização dos
administradores pois, por um lado, confere exclusivamente a legitimidade ao
administrador da insolvência e, por outro, remove obstáculos procedimentais.
Centremo-nos, agora, na legitimidade exclusiva do administrador da
insolvência para propor e fazer seguir as acções do art. 82.º, n.º 2, b), do CIRE. O
administrador da insolvência tem exclusiva responsabilidade para propor e
fazer seguir «as acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à
generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património
integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à
declaração de insolvência»43. Além de outras44, esta norma contempla as acções
destinadas a reclamar a indemnização devida pelos administradores da
sociedade aos credores desta sempre que, pela violação culposa das disposições
legais ou contratuais destinadas à protecção daqueles, o património social se
torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (art. 78.º, n.º 1, do
CSC). Pense-se, por exemplo, nos casos em que, os administradores restituíram
as entradas dos sócios, distribuíram lucros fictícios ou , ainda, retribuíram as
entradas dos sócios45. Tendo estas práticas ilícitas causado prejuízos à
generalidade dos credores sociais, estes não têm legitimidade para, durante o
processo de insolvência, propor ou fazer seguir a acção de responsabilidade
contra os administradores.
Resta, contudo, um problema de ordem sistemática. Os arts. 82.º, n.º 2 do
CIRE e 78.º, n.º 4, do CSC apresentam soluções divergentes quanto à matéria da
legitimidade activa. Quase reproduzindo o teor do art. 23.º, n.º 4, do Decreto-Lei
n.º 49381, de 15 de Novembro de 1969, o art. 78.º, n.º 4, do CSC determina que
«No caso de falência da sociedade, os direitos dos credores podem ser
exercidos, durante o processo de falência, pela administração da massa falida» 46.
O teor da norma do art. 78.º, n.º 4, do CSC 47 parece incompatível com o regime do
art. 82.º, n.º 2, do CIRE. Por força desta última disposição, as acções aí previstas
são, durante a pendência do processo, imperativa e exclusivamente, propostas e
conduzidas pelo administrador da insolvência. Deve, pois, considerar-se, à luz
do art. 7.º, n.º 2, do CCiv., que o CIRE operou a revogação tácita do art. 78.º, n.º 4,
do CSC.
43
Distingue o CIRE entre credores da insolvência e credores da massa. Os primeiros
estão identificados no art. 47.º, n.º 1, do CIRE. São eles todos os titulares de créditos de
natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa
insolvente, cujo fundamento seja anterior à data da declaração de insolvência. O art. 51.º, n.º
2, do CIRE delimita os créditos sobre a massa.
44
V. o art. 82.º, n.º 4, do CIRE.
45
V. arts. 31.º, 32.º e 33.º do CSC.
46
Esta disposição já constava do art. 23.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 49381, de 15 de
Novembro de 1969 (em vez de «podem ser», o art. 23.º, n.º 4, dispunha que os direitos dos
credores são exercidos ...»).
47
A reforma do direito societário português, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 76-
A/2006, de 29 de Março, não adaptou o teor do art. 78.º, n.º 4, do CSC à disciplina do CIRE.
17 18
2.3 Razões para a ilegitimidade da sociedade e da generalidade dos
credores da insolvência
O regime do CIRE, no que toca a legitimidade activa para as acções de
responsabilidade dos administradores, afasta-se do correspondente regime
jurídico-societário. Que razões justificam ou fundamentam este desvio?
Regressemos ao art. 82.º, n.º 2, a), do CIRE.
Compreende-se que o administrador da insolvência tenha legitimidade
para propor ou fazer seguir a acção social de responsabilidade, pois a sociedade
devedora declarada insolvente está privada dos poderes de administração e de
disposição dos bens integrantes da massa insolvente 48, os quais passam a
competir ao administrador da insolvência (art. 81.º, n.º 1, do CIRE). Acresce que,
nos termos do art. 81.º, n.º 4, do CIRE, «O administrador da insolvência assume
a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que
interessem à insolvência».
Por outro lado, os interesses dos credores justificam que se devolva ao
órgão executivo da insolvência poderes para reclamar, a favor do devedor, as
indemnizações que são devidas a este e que irão integrar a massa insolvente.
Espera-se que, por um lado, os deveres e responsabilidade que enquadram a
actividade do administrador da insolvência e, por outro, a fiscalização que
sobre si e a sua actividade é exercida contribuam para o adequado exercício das
funções que lhe estão atribuídas. Resultando, deste modo, incrementado o
activo da massa insolvente (porque foi obtida a indemnização devida pelos
administradores) com benefício para os credores.
Que razão(ões) explica(m), todavia, a ilegitimidade activa dos credores da
insolvência? Os credores da insolvência não estão privados dos seus poderes de
disposição ou de administração. Por que razão a lei os impede (como parece
acontecer à luz do art. 82.º, n.º 2, b), do CIRE) de, por si, demandarem os
administradores da sociedade insolvente para obterem a reparação de danos
causados por condutas ilícitas e culposas?
Parece-me que a solução prevista no art. 82.º, n.º 2, b), do CIRE justifica-
se à luz do princípio da par conditio creditorum49. Com este princípio quer-se
significar que, na ausência de factos que determinem a aplicação de regras
especiais, os credores estão em pé de igualdade perante o devedor. Encontra-se
genericamente consagrado no art. 604.º, n.º 1, do CCiv.: «Não existindo causas
legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos
proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue
para integral satisfação dos débitos». Com este princípio pretende-se
48
Na doutrina italiana, v. ALESSANDRO SILVESTRINI, Art. 2394-bis Codicie Civile, in: La
Riforma delle Società, t. I - Artt. 2325-2422 cod. civ., a cura di Michele Sandulli e Vittorio
Santoro, Torino: Giappichelli Editore, 2003, pp. 500 e s.
49
Convocando justificação idêntica para a disciplina do art. 2394-bis do Codice Civile
(semelhante à do art. 82.º, n.º 2, b), do CIRE), v. ALESSANDRO SILVESTRINI, cit., p. 502.
18 19
impedir que algum credor possa obter, por via distinta do processo, uma
satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores.
Este princípio, com várias manifestações no CIRE, explica que as acções
destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da
insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente seja
intentada ou feita seguir pelo administrador da insolvência.
Acresce, ainda, um outro argumento. A circunstância de a letra da lei do
art. 82.º, n.º 2, b), do CIRE referir os prejuízos causados «à generalidade dos
credores da insolvência» não deixa de relevar no sentido de se entender que
estão em causa interesses individuais homogéneos dos credores da insolvência50. O
que caracteriza e distingue os interesses individuais homogéneos é, por um
lado, a determinabilidade dos sujeitos lesados e, por outro, a titularidade
singular do direito de crédito 51. Características que estão presentes na disciplina
do art. 82.º, n.º 2, b), do CIRE, porquanto os credores da insolvência são
determináveis e determinados e, além disso, cada um deles é titular de créditos
relativamente à sociedade devedora insolvente. Por intermédio da legitimidade
exclusiva que lhe é atribuída legalmente, o administrador da insolvência vai
actuar os interesses individuais homogéneos da generalidade dos credores da
insolvência. A implicar, portanto, que o objecto da própria acção já não se
destine a ressarcir o credor singular, mas sim a incrementar o património activo
da massa insolvente, em relação ao qual concorrem todos os credores
(compreendidos os credores cujo crédito é posterior ao facto ilícito e culposo
dos administradores)52.
O que acarreta uma consequência prática de significativo relevo. A
indemnização que, por essa via, for obtida, ingressará na massa insolvente e só
depois será distribuída pelos credores.
2.4. Os negócios de renúncia e de transacção da indemnização devida
à massa insolvente
Importa questionar se o administrador da insolvência tem poderes para
renunciar e transigir sobre a indemnização devida pelos administradores de
facto ou de direito. A renúncia, como lembram Pires de Lima e Antunes Varela,
«envolve uma perda ou diminuição patrimonial» 53. A renúncia ao direito à
indemnização envolve a extinção deste direito,
50
Categoria convocada no art. 31.º, n.º 1, do CVM, intitulado «Acção popular». Para
a compreensão do «interesse individual homogéneo», no contexto desta disposição, v. S OFIA
NASCIMENTO RODRIGUES, A protecção dos investidores em valores mobiliários, Coimbra:
Almedina, 2001, p. 62.
51
Para estas características, v. SOFIA NASCIMENTO RODRIGUES, cit., p. 62.
52
Na doutrina italiana, v. ALESSANDRO SILVESTRINI, cit., p. 502.
53
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, volume II, 4.ª ed., Coimbra:
Coimbra Editora, 1997, p. 241.
19 20
configurando-se como uma «disposição extintiva (...) não onerosa» 54. E
envolve também o efeito de liberar o administrador da sociedade da obrigação
de indemnizar a sociedade (neste sentido, envolve um enriquecimento do
administrador que beneficiou da renúncia).
Já a transacção é, nos termos do art. 1248.º, n.º 1, do CCiv., «o contrato pelo qual
as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões». A
transacção tem por objecto concessões recíprocas (que se traduz em as partes
transigirem em reduzir o direito controvertido ou em constituírem,
modificarem ou extinguirem um direito diverso do controvertido). É, por isso,
um contrato oneroso55.
O regime jurídico-societário da responsabilidade civil pela administração
admite expressamente que a sociedade renuncie ou transaccione sobre o direito
de indemnização de que é titular (art. 74.º, n.º 2, do CSC). Contudo, tendo em
conta as repercussões negativas que estes negócios podem ter sobre o
património da sociedade, o CSC rodeia-os de especiais cautelas.
Em primeiro lugar, em todos os tipos societários, a renúncia e a
transacção são objecto de «deliberação expressa dos sócios» (art. 74.º, n.º 2,
CSC). Por outro lado, a sociedade só pode renunciar ou transigir se não se
verificar o «voto contrário de uma minoria que represente pelo menos 10% do
capital social» (art. 74.º, n.º 2, CSC). Com esta solução pretende-se, certamente,
proteger as minorias contra a maioria tentada a poupar os «seus»
administradores e, por isso, motivada para renunciar ou transigir sobre o direito
de indemnização de que sociedade é titular56. Pode até acontecer que a proposta
de transacção ou renúncia do direito de indemnização receba votos favoráveis,
por exemplo, na ordem dos 80% do capital social, sem que, contudo, se possa
considerar aprovada, porque a isso obsta o voto da minoria de, pelo menos, 10%
do capital social.
Além disso, em regra, a deliberação pela qual a assembleia geral aprove
as contas ou a gestão dos gerentes ou administradores não implica a renúncia
aos direitos de indemnização da sociedade contra estes (art. 74.º, n.º 3, do CSC).
Na pendência do processo de insolvência, a sociedade insolvente —
porque está privada do direito de administrar e de dispor dos seus bens (art.
81.º, n.º 1, do CIRE) — não tem poderes para renunciar ou transigir sobre o
direito de indemnização57. Ainda que, na pendência do processo de
54
FRANCISCO MANUEL DE BRITO PEREIRA COELHO, A renúncia abdicativa no direito civil
(algumas notas tendentes à definição do seu regime), Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 135.
55
Neste sentido, v. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, cit., p. 930.
56
O art. 74.º, n.º 2, do CSC consagra a técnica de «maioria simples absoluta
subordinada a uma minoria de bloqueio em sentido estrito». Sobre esta questão, v.
ARMANDO MANUEL TRIUNFANTE, A tutela das minorias nas sociedades anónimas. Quórum de
constituição e maiorias deliberativas (e autonomia estatutária), Coimbra: Coimbra Editora, 2005,
pp. 441 e ss.
57
Quanto à transacção, o art. 1249.º do CCiv. é claro ao estatuir que «as partes não
podem transigir sobre direitos que lhes não é permitido dispor (...)».
20 21
insolvência, os órgãos societários se mantenham em funções (art. 82.º, n.º
1, do CIRE), a sociedade está privada do poder de dispor de bens da massa
insolvente. Por isso, a sociedade insolvente está privada do poder de (através
dos órgãos societários) transigir ou renunciar ao direito de indemnização dos
danos causados pelos administradores.
Com a declaração da insolvência, os poderes de disposição são
transferidos para o administrador da insolvência (art. 81.º, n.º 1, in fine, do
CIRE). Será que a renúncia e a transação são compatíveis com a função de o
administrador da insolvência prover à «conservação dos direitos do insolvente»
ou com o dever de evitar «quanto possível o agravamento da sua situação
económica» (art. 55.º, n.º 1, b), do CIRE)?
Vários argumentos podem ser convocados no sentido da falta de poderes
do administrador da insolvência para renunciar ou transigir sobre a
indemnização devida pelos administradores:
a) A legitimidade do administrador da insolvência, quanto às acções de
responsabilidade, é atribuída para as propor e fazer seguir (art. 82.º, n.º 2, do
CIRE).
b) A renúncia e (eventualmente) a transacção significam um empobrecimento
da massa insolvente, prejudicial aos credores;
c) Ao administrador da insolvência compete evitar tanto quanto possível o
agravamento da situação económica do devedor insolvente (art. 55.º, n.º 1,
b), do CIRE);
d) O administrador da insolvência está vinculado a actuar como um
«administrador criterioso e ordenado» (art. 59.º, n.º 1, do CIRE);
e) Nos termos do art. 59.º, n.º 2, do CIRE, «o administrador da insolvência
responde (...) pelos danos causados aos credores da massa insolvente se
esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respectivos direitos e
estes resultarem de acto do administrador (...)».
O art. 144.º do CREF determinava que «o liquidatário pode ser
autorizado pelo juiz, ouvida a comissão de credores e, se necessário, o próprio
falido, a conceder reduções de créditos, realizar transacções (...)» 58. A querer
significar, portanto, que tais actos extravasavam das atribuições conferidas ao
liquidatário. Pela intervenção do elemento histórico da interpretação, poder-se-
á questionar se a ausência de uma norma semelhante ao art. 144.º do CREF
implica a conclusão de que o administrador da insolvência tem poderes para
celebrar os negócios de transacção e de renúncia.
Não creio que assim seja. Já na vigência do CREF, a doutrina enfatizava
que a lista do art. 144.º não era exaustiva e que o relevava eram as atribuições
conferidas ao liquidatário judicial. Ora as funções do administrador da
insolvência resultam do art. 55.º do CIRE. As tarefas de preparar o pagamento
das dívidas do insolvente, promover a alienação de bens que integram a massa
insolvente, prover à conservação dos direitos do

58
A falta de autorização do juiz determinava, segundo LUÍS CARVALHO FERNANDES / JOÃO
LABAREDA, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, ob. cit.,
p. 384, a inoponibilidade em relação à massa dos actos celebrados pelo liquidatário.
21 22
insolvente e evitar o agravamento da situação da situação económica do
insolvente parecem não permitir que este órgão de insolvência celebre negócios
que empobrecem a massa insolvente59.

3 Os tipos de insolvência e os efeitos sobre os administradores


3.1 A abertura oficiosa do incidente de qualificação da insolvência e
subsequente tramitação
Vocacionado para a «maior e mais eficaz responsabilização dos titulares
de empresa e dos administradores de pessoas colectivas», o novo incidente de
qualificação da insolvência pretende evitar que «a coberto do expediente técnico
da personalidade jurídica colectiva, se[ja] possível praticar incolumemente os
mais variados actos prejudiciais para os credores» 60. Inspirado na Ley Concursal
espanhola (Ley 22/2003, de 9 de julio), o incidente de qualificação da
insolvência destina-se a apurar se esta é fortuita ou culposa.
O incidente é oficiosamente aberto com a declaração de insolvência (art. 36.º, i),
do CIRE), ou seja, é aberto em todos os processos de insolvência, excepto nos
casos em que há a apresentação de um plano de pagamento aos credores (art.
259.º, n.º 1, 2.ª parte, do CIRE). Há alegações por escrito de qualquer interessado
(art. 188.º, n.º 1, do CIRE). Segundo o art. 188.º, n.º 2, do CIRE, o administrador
da insolvência elabora um parecer que deve conter uma proposta de
qualificação da insolvência e identificar os visados no caso de insolvência
culposa (art. 188.º, n.º 2, do CIRE). Admitindo que tanto o administrador da
insolvência como Ministério Público propuseram a qualificação da insolvência
como fortuita, o juiz profere de imediato decisão nesse sentido (art. 188.º, n.º 3,
do CIRE). No caso contrário, procede-se à notificação do devedor e à citação
pessoal dos sujeitos afectados pela qualificação como culposa para se oporem,
querendo, no prazo de 15 dias. Segue-se o prazo para as respostas à oposição
(art. 188.º, nos. 5, 6 e 7). Aplicam-se a este incidente os arts. 132.º a 139.º do
CIRE61. Concluída a audiência, o juiz profere a sentença de qualificação da
insolvência como fortuita ou culposa (art. 189.º, n.º 1, do CIRE) 62.
59
Quanto aos negócios de transacção ou renúncia celebradas entre a sociedade e os
administradores em momento anterior ao do início do processo de insolvência, parecem
poder estar sujeitos a resolução incondicional. V. o art. 121.º, n.º 1, do CIRE.
60
Preâmbulo do diploma que aprova o CIRE. Interpolação minha.
61
V. CATARINA SERRA, O novo regime português da insolvência, ob. cit., pp. 67 e ss.
62
A qualificação encontrada não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem
das acções a que se reporta o art. 82.º, n.º 2 (art. 185.º do CIRE). O que significa que o juízo
sobre o carácter culposo ou fortuito da insolvência releva exclusivamente nos limites do
incidente. E já não assume relevo (vinculativo) em outros procedimentos judiciais em que se
discuta a conduta dos administradores.
22 23
3.2. A insolvência culposa: dolo e culpa grave dos administradores
A primeira aproximação à destrinça entre insolvência culposa e fortuita
mostra que o legislador português optou por definir positivamente a primeira e
por remeter a segunda para uma delimitação negativa e residual.
«A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada
em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos
seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início
do processo de insolvência» (art. 186.º, n.º 1, do CIRE) 63. Todas as restantes serão
insolvências fortuitas.
É de crucial importância para a distinção entre os diferentes tipos de
insolvência que sejam densificados os conceitos de «culpa grave» e de «actuação
dolosa». O art. 186.º do CIRE apresenta no n.º 2 presunções absolutas64 de
insolvência culposa e no n.º 3 presunções relativas de culpa grave dos
administradores de direito ou de facto. Para além destas presunções, o CIRE
nada mais diz quanto à caracterização do dolo e da culpa grave. No entanto,
estes conceitos não são desconhecidos da ordem jurídica portuguesa. Tanto o
dolo como a negligência (por vezes designada culpa em sentido estrito) são, por
exemplo, convocados a propósito da responsabilidade penal e civil. O Código
Penal (CP) contém normas definitórias de dolo e de negligência (arts. 14.º e 15.º
do CP)65 e no direito civil o dolo e a mera culpa relevam enquanto pressupostos
constitutivos da chamada responsabilidade subjectiva (v. arts. 483.º, 487.º, 798.º
e 799.º do CCiv.)66. A doutrina, por seu lado, tem contribuído de forma relevante
e enriquecedora para a caracterização/delimitação destas figuras.
Dolo, como é geralmente aceite, é conhecimento e vontade da realização do
facto. Assim, a actuação do administrador pode dizer-se dolosa quando aquele
conhece a situação da sociedade e assume condutas que mostram que quer ou
que se conforma com a insolvência ou o seu agravamento. Serão os casos, por
exemplo, em que o administrador, com o intuito de provocar ou agravar a
insolvência, destrói, danifica, inutiliza, faz desaparecer, no todo ou em parte
considerável, o património da sociedade devedora (v. art. 186.º, n.º 2, a), do
CIRE).
O dolo pode ser directo, necessário ou eventual. Não tendo o CIRE feito
qualquer restrição e estando estas modalidades de dolo consolidadas
63
Sobre esta disposição, v. L UÍS A. CARVALHO FERNANDES / JOÃO LABAREDA, Código
da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume II (arts. 185.º a 304.º), Lisboa:
Quid Juris, 2005, pp. 26 e ss.
64
V. art. 350.º, n.º 2, do CCiv.
65
Sobre estas normas e as definições de dolo e de negligência, v., por todos, J OSÉ DE
FARIA COSTA, «As definições legais de dolo e de negligência enquanto problema de
aplicação e interpretação das normas definitórias em direito penal», Boletim da Faculdade de
Direito, 59 (1993), pp. 361 e ss.; J ORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I.
Questões fundamentais. A doutrina geral do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, pp. 332 e
ss.
66
Para a distinção, no direito civil, entre dolo e negligência, v., por todos, M ÁRIO
JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, pp. 533 e
ss.
23 24
no nosso ordenamento jurídico, será de admitir que qualquer uma delas é
relevante para a qualificação da insolvência como culposa. Há dolo directo
quando a insolvência da sociedade é o fim da conduta assumida pelo(s)
administrador(es) (v.g. o administrador celebra sistematicamente negócios
ruinosos para conseguir a insolvência da sociedade). Haverá dolo necessário na
causação ou agravamento da insolvência da sociedade quando o administrador
prevê que este efeito, embora não seja directamente desejado, é consequência
segura da sua actuação (v.g., caso em que o administrador quer, em primeira
linha, apropriar-se indevidamente dos bens da sociedade, ainda que, com essa
actuação, cause ou agrave a situação de insolvência). Havendo dolo eventual —
entidade complexa, desde logo, pela zona de sobreposição com a negligência
consciente —, o administrador prevê a insolvência da sociedade como um efeito
apenas possível ou eventual67 da sua conduta (v.g. os administrador prossegue
uma exploração deficitária, não obstante saber que esta conduzirá com
probabilidade a uma situação de insolvência).
A «culpa grave», normalmente entendida como um dos graus de
culpabilidade, traduz-se «na negligência grosseira, só cometida por um homem
excepcionalmente descuidado»68. Justamente, as presunções de culpa grave
inscritas no art. 186.º, n.º 3, do CIRE 69 auxiliam na densificação deste conceito. É
presumida a culpa grave dos administradores quando estes tenham incumprido:
a) o dever de requerer a declaração de insolvência 70; b) a obrigação de elaborar
as contas anuais, no prazo legal71, de as submeter à devida fiscalização ou de as
depositar na conservatória do registo comercial. Estas condutas manifestam
uma elementar falta de cuidado no cumprimento de deveres dos
administradores. Encontra-se consolidada a regra que obriga os gestores de
patrimónios alheios a prestarem contas da gestão realizada.
67
O art. 14.º, n.º 3, do CP (norma relativa ao dolo eventual) fala em conformação.
Sobre o confronto entre as teorias da «aceitação» e da «conformação», J OSÉ DE FARIA COSTA,
Tentativa e dolo eventual (ou da relevância da negação em direito penal), separata do número
especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra — «Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor Eduardo Correia» — Coimbra 1987, pp. 33 e ss.
68
FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaios sobre os pressupostos da responsabilidade civil,
Lisboa 1972 (reedição), p. 357. Em matéria penal, a profunda ausência de cuidado elementar
tem sido um dos pontos em que se tem apoiado a jurisprudência para densificar a noção de
negligência grosseira. V., com relevantes indicações jurisprudenciais, J OSÉ DE FARIA COSTA,
Direito penal especial. Contributo a uma sistematização dos problemas “especiais” da Parte Especial,
Coimbra: Coimbra Editora, 2004, pp. 85 e ss.
69
Do confronto entre os n.os 2 e 3 do art. 186 do CIRE, resulta que a presunção
constante do n.º 3 é uma presunção relativa, ou seja admite prova em contrário (art. 350.º,
n.º 2, do CCiv.).
70
V. arts. 18.º e 19.º do CIRE.
71
Nos termos do art. 65.º, n.º 1, do CSC, os «membros da administração devem
elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, as contas do
exercício e demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos a cada
exercício anual». Quanto ao prazo para a apresentação das contas, rege o art. 65.º, n.º 5, do
CSC. Sobre a fiscalização das contas nas sociedades anónimas, vejam-se os arts. 451.º e ss. do
CSC.
24 25
No caso das sociedades, o cumprimento dever interessa à entidade
administrada, aos sócios e a terceiros.
À luz do CIRE, é a sentença que qualifica a insolvência como culposa que
desencadeia a aplicação aos administradores de medidas responsabilizadoras
(art. 189.º, n.º 2 do CIRE). Os efeitos previstos no art. 189.º, n.º 2, do CIRE
dependem necessariamente de uma sentença que qualifique a insolvência como
culposa. Já a sentença de insolvência fortuita arreda os administradores dos
efeitos previstos nesta disposição. Confirma-se o que, de início, comecei por
antecipar. À luz do CIRE, as reacções à insolvência (e a inerente punição) são de
índole fragmentária e de aplicação não automática. Índole fragmentária, porque
só certas e determinadas condutas dos administradores com relevo na
insolvência da sociedade vão ser sancionadas pela ordem jurídica. Invoca-se o
funcionamento não automático das sanções previstas porque a sua aplicação
resulta de um incidente próprio destinado a apurar o relevo da conduta dos
administradores na insolvência da sociedade (arts. 36.º, n.º 1, i), e 189.º, n.º 2, do
CIRE). A sentença que declara a insolvência não se pronuncia sobre a influência
da actividade dos administradores na situação de crise da sociedade. A resposta
a esta questão encontrar-se-á na sentença que qualifica a insolvência. Da
conjugação entre os arts. 186.º e 189.º, n.º 2, do CIRE resulta que as sanções
previstas neste último preceito estão exclusivamente reservadas para os
administradores que, nos três anos anteriores ao processo de insolvência, com
dolo ou culpa grave, causaram ou agravaram a insolvência da sociedade.
3.3. A linha de separação entre insolvência culposa e insolvência
fortuita
A lei, ao traçar a fronteira entre os tipos de insolvência a partir do dolo e
da culpa grave, remete para a insolvência fortuita as condutas que manifestem
negligência própria da «culpa leve» ou «levíssima» 72. A qualificação de
insolvência fortuita contempla tanto os administradores que foram diligentes e,
apesar disso, foram confrontados com a insolvência da sociedade, como os
administradores cujas condutas manifestam graus menos graves de negligência.
Dito de outro modo: administradores excepcional ou medianamente diligentes
teriam evitado os erros ou as condutas que criaram ou agravaram a insolvência.
O legislador tratou com benefício estas situações e remeteu-as para o campo da
insolvência fortuita.
Percebe-se que os administradores que actuaram diligentemente sejam
preservados das consequências próprias da insolvência culposa. Esta opção
legislativa está em consonância com a ideia de que o exercício diligente da
actividade de gestão não assegura em si mesma o êxito económico da gestão. Já
se questionará por que razão a «culpa leve» ou a
72
Sobre os conceitos de «culpa leve» ou «levíssima», v., em geral, F ERNANDO PESSOA
JORGE, cit., p. 357.
25 26
«culpa levíssima» dos administradores — que envolvem, contudo,
algum grau de falta de cuidado — não determinam a qualificação da
insolvência como culposa. Arrisco, de seguida, uma proposta de explicação
deste regime.
Como é abundantemente referido, a assunção de riscos é um elemento
intrínseco às decisões empresariais. Administradores diligentes tomam decisões
que, apreciadas posteriormente, podem parecer negligentes porque causaram
danos à sociedade. Por isso se vem acentuando, mesmo nos países de civil law,
que há que evitar que as decisões empresariais tomadas pelos administradores
sejam, mais tarde, materialmente substituídas pelo juízo discricionário de quem
as aprecia e valora. Pensamento que se avizinha da business judgment rule73
constituída pelos tribunais norte-americanos. Este mecanismo visa evitar que o
juiz, ao determinar a infracção do dever de cuidado (diligência), substitua o
juízo de oportunidade dos administradores pelo seu próprio juízo. Pretende-se,
por um lado, garantir a insidicabilidade das decisões dos administradores e, por
outro, atrair pessoas competentes para o exercício do cargo de administradores.
Argumenta-se que os administradores não devem ser responsabilizados por
«honest mistakes»74.
A business judgment rule saltou as fronteiras do direito anglo-saxónico e
vem influenciando os direitos de civil law. No que toca o direito português, o
art. 72.º, n.º 2, do CSC — na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 76-
A/2006, de 29 de Março — determina que a responsabilidade perante a
sociedade é excluída, se o administrador «provar que actuou em termos
informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de
racionalidade empresarial».
Na delimitação entre insolvência culposa e fortuita, o legislador
português parece ter sido sensível à ideia de que o interesse comum dos sócios
exige frequentemente que os administradores tomem decisões mais arriscadas
porque, deste modo, criam condições para potenciar os benefícios conseguidos.
Sendo assim, a insolvência culposa atinge os administradores que tomem
decisões que resultem irracionais, por não ser possível encontrar uma explicação
lógica ou coerente que sustente a sua actuação 75. Nesta maneira de compreender
o dever de cuidado, tanto as condutas dolosas
73
V., por todos, ROBERT CHARLES CLARK, Corporate Law, Boston/Toronto: Little,
Brown and Company, 1986, pp. 123 e ss.
74
ROBERT CHARLES CLARK, cit., p. 124. A business judgment rule não se aplica à
infracção do dever de lealdade, só funciona no âmbito do dever de diligência. Para que
funcione, é necessário que estejam presentes os seguintes requisitos: a) que se esteja na
presença de uma actividade realizada pelos administradores; b) que tenha sido cumprido o
dever informação dos administradores, c) que a actuação dos administradores cumpra o
interesse social. Verificados estes requisitos, haverá infracção do dever de diligência, se a
decisão dos administradores se mostra irracional. Sobre estes aspectos, v. J OSE ORIOL LLEBOT
MAJO, Los deberes de los administradores de la sociedad anónima, Madrid: Civitas, 1996, p. 80.
75
Dando noticia que a jurisprudência italiana já adoptou esta ponderação para
apurar a violação do dever de diligência, v. JOSE ORIOL LLEBOT MAJO, cit., p. 80.
26 27
como a negligência grosseira inserem-se no círculo das condutas
irracionais. Outras condutas, ainda que a posteriori manifestem erros de
avaliação e de decisão, poderão ser justificadas e, por isso, os administradores
deverão beneficiar de um veredicto de insolvência fortuita (não culposa).
Mais severa é, no contexto do actual direito da insolvência, a reacção ao
incumprimento do dever de lealdade dos administradores. Este dever impõe que
os administradores, no exercício do seu cargo, prossigam o interesse da
sociedade76 e, por isso, se abstenham de obter, à custa desta, qualquer benefício
pessoal indevido. O dever de lealdade é normalmente convocado a propósito
das seguintes situações: negócios dos administradores com a sociedade
administrada, aproveitamento do cargo, de bens ou de informações da
sociedade, fixação da retribuição, apropriação de corporate opportunities,
exercício de actividades concorrentes e conflitos de interesses.
O dever de lealdade dos administradores está formal e expressamente
consagrado no art. 64.º, n.º 1, b), do CSC77. Já antes da existência de disposição
expressa, a doutrina retirava de normas várias que os administradores
portugueses estavam obrigados a respeitar o dever de lealdade. A título de
exemplo, vejam-se as seguintes normas: arts. 397.º do CSC (proibição de
determinados negócios entre a sociedade e administradores e sujeição de outros
a autorização do conselho de administração e a parecer favorável do órgão de
fiscalização); 410.º, n.º 6, do CSC (proibição de o administrador votar sobre
assuntos em que tenha, por conta própria ou de terceiro, um interesse em
conflito com o da sociedade).
A análise do art. 186.º, n.º 2, do CIRE evidencia que, em sede de direito
de insolvência, o legislador reagiu severamente contra a violação do dever de
lealdade dos administradores. O art. 186.º, n.º 2, do CIRE integra, definitiva e
inapelavelmente, na insolvência culposa condutas violadoras do dever de
lealdade, porque reveladoras de que os administradores aproveitaram
indevidamente em benefício próprio (ou de terceiros que lhes são próximos)
bens ou recursos da sociedade. É o que resulta do art. 186.º, n.º 2, b), d), e), f) e g),
do CIRE. Ao integrar estas condutas no elenco das presunções absolutas (não
ilidíveis) de insolvência culposa, o legislador faz necessariamente recair sobre
os administradores afectados as consequências próprias deste tipo de
insolvência. É o que vou considerar de seguida.
76
Sobre a problemática do interesse social relacionada com os órgãos de
administração, v., por todos, J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. II, ob.
cit., pp. 294 e ss.
77
Em Espanha, com o fim de reforçar a transparência nas sociedades anónimas
cotadas, a Ley 26/2003, de 17 de Julho aditou à Ley de Sociedades Anónimas o art. 127 ter,
relativo aos deveres de lealdade dos administradores. Na doutrina espanhola (anterior à Ley
26/2003), sobre o dever de lealdade, v. JOSE ORIOL LLEBOT MAJO, cit., pp. 91 e ss. O art. 2391
do Codice Civile (na redacção dada pelo d.lgs. de 17 gennaio 2003 n. 6) intitulado «Interessi
degli amministratori», impõe uma disciplina particularmente rigorosa do dever de lealdade
dos administradores de sociedades anónimas.
27 28
3.4 A sentença de qualificação da insolvência como culposa. As
consequências reservadas aos administradores afectados
O CIRE prossegue a tendência, já iniciada pelo CREF (especialmente,
depois da revisão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro),
no sentido de diferenciar o tratamento dispensado aos administradores
consoante o relevo da sua conduta na causação ou agravamento da insolvência
da sociedade. O art. 148.º, n.º 2, do CREF (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º
315/98), limitando o alcance do primitivo art. 148.º, determinava que os
administradores referidos nos arts. 126.º-A e 126.º-B do CREF (e só estes)
poderiam ser declarados inibidos para o comércio ou para o exercício de
determinados cargos.
À luz do vigente direito da insolvência, a responsabilização pessoal dos
administradores pela causação ou agravamento da insolvência depende, em
primeira linha, de uma sentença de qualificação da insolvência como culposa (art.
189.º, n.º 2, do CIRE). Para além disso, esta sentença há-de identificar as pessoas
afectadas pela qualificação (art. 189.º, n.º 2, a), do CIRE), porque só estas serão
submetidas às reacções previstas no art. 189.º, n.º 2, b), c) e d), do CIRE. Ainda
que seja proferida uma sentença de insolvência culposa, tal juízo não impede a
triagem entre administradores afectados (porque autores de condutas dolosas
ou de negligência grosseira que contribuíram ou agravaram a insolvência da
sociedade) e os restantes78. Administradores cuja conduta escape ao recorte
material da insolvência culposa não serão atingidos pelas consequências
pessoais próprias deste tipo de insolvência 79.
O art. 189.º, n.º 2, do CIRE apresenta os efeitos decorrentes da insolvência
culposa, a aplicar (concretizar) pela sentença. Deve esta: a) decretar a inabilitação
das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos; b) declarar essas pessoas
inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos; c)
determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa
insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação
na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos 80.
78
O art. 186.º, nos. 1 e 2, do CIRE contempla o devedor e os seus administradores de facto ou
de direito. Estão, portanto, excluídos os titulares do órgão de fiscalização. Estes não podem
ser afectados pela declaração de insolvência como culposa, mas poderão ser
responsabilizados ao abrigo do art. 82.º, n.º 2, a), do CIRE.
79
Este propósito de selecção/identificação das pessoas responsáveis pela situação de
insolvência manifesta-se em várias normas do CIRE. Nos termos do art. 188.º, n os. 2 e 5, do
CIRE, os pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público, se for o caso,
identificam as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação da insolvência como
culposa. Das várias alíneas do art. 189.º, n.º 2, do CIRE, resulta, de forma reiterada, que os
efeitos aí referidos se cingem às pessoas afectadas. O n.º 3 do art. 189.º do CIRE volta a
referir a «pessoa afectada». Por conseguinte, é inequívoca esta linha de discriminação na
aplicação dos efeitos próprios da insolvência culposa.
80
Era diferente a solução adoptada pelo CREF. O art. 126.º-A do CREF consagrava a
responsabilidade solidária dos administradores sempre que, nos dois últimos anos, estes
tivessem contribuído, de modo significativo, para a insolvência da sociedade. E o n.º 2 deste
28 29
preceito apresentava um elenco de factos que, com algumas alterações, transitou para o art.
186.º, n.º 2, do CIRE.
Algumas notas, apenas, sobre os efeitos aplicáveis aos administradores
afectados pela insolvência culposa. A sentença decreta a inabilitação do
administrador afectado, por um período de 2 a 10 anos (art. 189.º, n.º 2, a), do
CIRE). Em consequência e, nos termos do art. 190.º, n.º 1, do CIRE 81, «o juiz,
ouvidos os interessados, nomeia um curador para cada um dos inabilitados,
fixando os poderes que lhe competem». «A inibição para o exercício do
comércio tal como a inabilitação são oficiosamente registadas na conservatória
do registo civil (...)» (art. 189.º, n.º 3, do CIRE). Impõe o art. 190.º, n.º 2, do CIRE
que a nomeação do curador assim como a respectiva destituição estão sujeitas a
registo, nos termos do art. 189.º, n.º 3, do CIRE.
A inabilitação apresenta sérias repercussões para o administrador
afectado. Trata-se, como se sabe, de uma incapacidade de exercício, suprível, em
geral, pela assistência do curador cuja intervenção se limita, neste caso, à
autorização para a prática de actos jurídicos 82. O administrador declarado
inabilitado necessitará da autorização do curador para a realização dos negócios
abrangidos pela inabilitação, sob pena de aqueles serem anuláveis (art. 148.º do
CCiv.). A maleabilidade83, normalmente apontada à inabilitação, manifesta-se
também no art. 190.º, n.º 1, do CIRE quando este preceito estatui que o juiz fixa
os poderes que competem ao curador84. A inabilitação do administrador
afectado pela insolvência culposa não tem um âmbito fixo.
É importante referir que a inabilitação — porque priva o sujeito
inabilitado da capacidade jurídica plena — impede o administrador afectado de
integrar o órgão de administração das sociedades reguladas no CSC (arts. 252.º,
390.º, n.º 3, 425º, n.º 6, d), e 478.º do CSC). O art. 425.º, n.º 7, do CSC explicita que
a superveniência de causas de incapacidade determina a cessação imediata de
funções do membro do conselho de administração executivo 85.
81
Na epígrafe do art. 190.º lê-se «inabilidade», enquanto no art. 189.º, n. os 2, a), e 3, é
utilizado o termo «inabilitação».
82
Para o regime jurídico-civil da inabilitação, v. os arts. 152.º a 156.º do CCiv.
83
V., por todos, LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria geral do direito civil, I.
Introdução. Pressupostos da relação jurídica, 3.ª ed. revista e actualizada, Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa, 2001, p. 345; PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil, 2.ª
ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 118; CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria geral do
direito civil, 4.ª ed. por ANTÓNIO PINTO MONTEIRO e PAULO MOTA PINTO, Coimbra: Coimbra
Editora, 2005, pp. 243.
84
Sobre os poderes do curador do inabilitado afectado pela declaração de
insolvência culposa, v. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES / JOÃO LABAREDA, Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume II, ob. cit., p. 30.
85
Não tratamos aqui o regime jurídico-civil dos efeitos da inabilitação na
capacidade de gozo do inabilitado. Sobre esta questão, v. L UÍS A. CARVALHO FERNANDES,
cit., pp. 346 e ss.
29 30
O administrador inabilitado (e inibido) não cumpre os requisitos de
idoneidade a que o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades
Financeiras86 (RGIC) sujeita os membros dos órgãos de administração e
fiscalização das instituições de crédito e sociedades financeiras. Entre outros
requisitos, as pessoas que integram o órgão de administração destas entidades,
«devem dar garantias de gestão sã e prudente, tendo em vista, de modo
particular, a segurança dos fundos confiados à instituição» (art. 30.º, n.º 1, do
RGIC). Na verdade, o art. 30.º, n.º 3, a), do RGIC determina que a circunstância
de a pessoa ter sido «julgada responsável pela falência ou insolvência da
empresa por ele dominada ou de que tenha sido administradora (...) ou
gerente», é considerada indiciadora de falta de idoneidade 87.
A inabilitação das pessoas afectadas pela declaração de insolvência
culposa — efeito completamente novo no direito da insolvência português 88 —
tem causado estranheza e dúvidas. Estranheza porque as incapacidades de
exercício visam defender os incapazes. Segundo Coutinho de Abreu, «os
insolventes ou seus administradores, ainda quando causem ou agravem
culposamente a situação de insolvência, não sofrerão em geral daquela falta ou
diminuição»89 de certas qualidades natural-pessoais. Como por outro lado,
segundo o mesmo Autor, é estranho que a inabilitação — em geral vocacionada
para proteger o incapaz — surja no CIRE primordialmente como sanção para os
sujeitos afectados pela qualificação da insolvência como culposa 90.
Além disso, têm sido suscitadas dúvidas sobre a delimitação das esferas
de competência do administrador da insolvência e do curador do sujeito
declarado inabilitado (dúvidas particularmente pertinentes quando o insolvente
é o sujeito declarado inabilitado)91.
Diferente é a inibição para o exercício do comércio durante o período de 2
a 10 anos, bem como para a ocupação de certos cargos. Era tradicional na ordem
jurídica portuguesa a inibição do falido e, na vigência do CREF,
86
Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (várias vezes alterado).
87
V. art. 30.º, n.º 2, do RGIC sobre os critérios para a apreciação da idoneidade dos
membros do órgão de administração e de fiscalização.
88
A Ley Concursal espanhola — diploma em que o legislador português se inspirou
— consagra a inabilitação das pessoas afectadas com alcance mais restrito, pois o art. 172 (2),
2.º determina a inabilitação das pessoas afectadas para administrar bens alheios durante um
período de dois a quinze anos, assim como para representar ou administrar qualquer
pessoa. V. J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. I, ob. cit., p. 125.
89
V. J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. I, ob. cit., p. 125.
90
V. J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. I, ob. cit., p. 125.
91
Manifestando estas dúvidas, v. CATARINA SERRA, O novo regime português da
insolvência, ob. cit., pp. 38-40. Considera Catarina Serra que a «sentença que declara a
inabilitação e define os poderes do curador só lhe deve atribuir poderes no âmbito dos actos
sobre os bens que permanecem ainda na disponibilidade do insolvente» (ob. cit., p. 40). No
mesmo sentido, v. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES / JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e
da Recuperação de Empresas Anotado, volume II, ob. cit., p. 31.
30 31
dos administradores da sociedade falida para o exercício do comércio ou
ocupação de certos cargos. À luz do actual direito da insolvência, só são
declarados inibidos os sujeitos afectados pela qualificação da insolvência como
culposa. A inibição parece não ser uma incapacidade. É antes, segundo
Coutinho de Abreu, «uma incompatibilidade (absoluta) — impossibilidade legal
do exercício de comércio por pessoa afectada pela qualificação da insolvência
como culposa»92.
Levantam-se aqui duas questões. A primeira é a de saber se os negócios
realizados pelo administrador inibido em violação desta proibição são válidos
ou não. Oliveira Ascensão, a propósito da inibição do falido, sustentou que «a
proibição de actos de comércio em contravenção de uma proibição legal não
invalida os actos praticados» 93. Diversa é a questão de saber se se torna
comerciante a pessoa que, proibida de exercer o comércio, o pratica
profissionalmente. Parece que não, porque não deve ostentar o estatuto de
comerciante «quem está impedido — por razões de tutela (do crédito) do
comércio — de comerciar»94.
4 A insolvência da sociedade e o relevo jurídico-penal do
comportamento dos administradores
Ao processo de insolvência podem chegar indícios dos crimes de insolvência
dolosa, frustração de créditos, insolvência negligente e favorecimento dos
credores (arts. 227.º a 229.º do CP95). Impõe o art. 297.º do CIRE que o juiz
mande dar conhecimento da ocorrência de factos que indiciem a prática destes
tipos legais de crime ao Ministério Público, para efeitos do exercício da acção
penal. Segundo o art. 298.º do CIRE a declaração da insolvência interrompe o
prazo de prescrição do procedimento criminal.
A repressão — segundo os dizeres das Ordenações Filipinas — dos
«mercadores que quebram os seus tratos» e dos que «se levantam com fazenda
alheia» tem raízes seculares. A severidade com que a falência (historicamente
ligada à qualidade de comerciante) era tratada expressava-se, não só nas penas
aplicadas, como na quase irrelevância da causa que a tinha ocasionado. Aliás, a
«quebra» estava rodeada da suspeita96 de que o devedor tinha sido motivado
pela intenção de escapar às suas obrigações e, desse modo ilícito, obter um
enriquecimento ilegítimo. Por outro lado, a
92
J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. I, ob. cit., p. 126.
93
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, «Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do
falido», ob. cit., p. 327.
94
J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. I, ob. cit., p. 127.
95
Redacção do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
96
Cristalizou-se, aliás, na doutrina, a máxima decoctor ergo fraudator. Veja-se JEAN
HILAIRE, Introduction historique au droit commercial, Paris: Presses Universitaires de France,
1986, p. 312.
31 32
crise económica do devedor (maxime comerciante) e a consequente
impossibilidade ou dificuldade de satisfazer os seus débitos afectava (e afecta
ainda) não só os seus credores directos como, de uma forma mediata, a cadeia
de crédito própria da actividade mercantil e empresarial.
Mantendo-se hoje a repressão penal de certas e determinadas condutas
(em consonância com a índole fragmentária e subsidiária do direito penal), ela
assume contornos que respeitam o princípio fundamentais da legalidade
criminal e da culpa. Em homenagem ao princípio nullum crimen sine lege, só as
condutas previstas na lei são susceptíveis de serem objecto de perseguição penal
e, por outro, o respeito pelo princípio da culpa determina que sejam punidos
exclusivamente os agentes que actuaram com culpa. Os administradores das
sociedades não podem ser jurídico-penalmente responsáveis pelo insucesso
empresarial e subsequente insolvência da sociedade.
Sabendo que a análise do recorte típico dos crimes previstos nos arts.
227.º a 229.º do CP97 ultrapassa largamente o objecto deste trabalho, resta-me
salientar dois aspectos que se prendem directamente com a responsabilidade
penal de administradores de sociedades.
A primeira nota destina-se a evidenciar que os administradores de
direito e os administradores de facto (embora jurídico-civilmente não sejam
devedores) são considerados como agentes dos crimes de insolvência dolosa,
frustração de créditos, insolvência negligente e favorecimento de credores.
Quanto aos administradores de direito, por força do art. 12.º, n.º 1, a), do CP, a
qualidade de devedor da sociedade insolvente repercute-se nas pessoas humanas
que pratiquem as condutas típicas como titulares dos seus órgãos ou como
representantes.
No que tange os administradores de facto, a sua punição resulta
expressamente do art. 227.º, n.º 3, do CP, aplicável aos crimes de frustração de
créditos, insolvência negligente e favorecimento de credores. O que significa
que também os administradores de facto são tidos como agentes destes crimes.
Ou seja, a ausência de um título bastante não os afasta da punição criminal.
Por outro lado, e agora quanto às penas aplicáveis, há que salientar que o
Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, introduziu uma agravação para os
crimes de insolvência dolosa, frustração de créditos, insolvência negligente,
assim como para o de favorecimento de credores, quando da prática de tais
ilícitos resultar a frustração de créditos laborais (art. 229.º-A do CP).
97
Sobre o recorte típico das condutas que integram os crimes falenciais (na redacção
anterior ao Decreto-Lei n.º 53/2004), v. M ARIA FERNANDA PALMA, «Aspectos penais da
insolvência e da falência», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995, p.
410, e PEDRO CAEIRO, Anotação aos arts. 227.º, 228.º e 229.º do Código Penal, in: Comentário
Conimbricense do Código Penal [dirigido por Jorge de Figueiredo Dias], tomo II (artigos 202.º a
307.º), Coimbra: Coimbra Editora, 1999, pp. 402 e ss.
32

Manuel A. Carneiro da Frada - A responsabilidade dos administradores na insolvência

Pelo Prof. Doutor Manuel A. Carneiro da Frada(*)

SUMÁRIO:
1. Introdução. 2. Delimitação do tema; a questão da responsabilidade por pedido infundado de insolvência. 3.
A acção de responsabilidade pela ocasionação da insolvência e o incidente processual de qualificação da
insolvência. 4. A responsabilidade dos administradores pela causação da insolvência: aspectos gerais. 5.
(cont.) Dever de diligência, business judgment rule e dever de fidelidade dos administradores. 6. Incidente
processual de qualificação da insolvência, relação especial e deveres no tráfico para protecção do património
7. Incidente de qualificação da insolvência e disposição de protecção. 8. O art. 186 do CIRE: ilicitude, culpa e
causalidade. 9. Outros elementos para a compreensão dos n.os 2 e 3 do art. 186. 10. O caso específico da não
apresentação à insolvência. 11. Conclusão.

O direito da insolvência representa um daqueles recantos da ordem jurídica que poucas vezes é objecto, entre
nós, de atenção, significando para muitos reserva de iniciados. No entanto, além da sua grande relevância
prática, particularmente em épocas, como a nossa, de crise e transformação acelerada do tecido produtivo,
apresenta um enorme interesse dogmático-crítico, ao constituir como que um laboratório jurídico avançado
onde o direito civil (em particular, a parte geral, o direito das obrigações e os direitos reais) se mescla com o
direito comercial e o direito processual, e se testam as suas fronteiras e implicações recíprocas, sob o olhar
atento da política económica.

O eclectismo elaborado de planos e horizontes próprio deste sector do ordenamento traz-nos à memória,
noutro plano, a figura ímpar de António Sousa Franco: a do académico ilustríssimo, do homem de cultura
enciclopédica, do arguto e escrupuloso servidor da causa pública, por detrás do qual latia com intensidade o
sentido de missão a que, no reduto livre da sua preclara inteligência, por sobre as contingências sociais e
políticas do seu presente, se sentia chamado, derradeiramente, pela sua convicta e vivida fé cristã.

Talvez este seu perfil justifique que o homenageemos com um escrito sobre responsabilidade dos
administradores na insolvência. O tema é jurídico-privado, incontornável no quadro das tão actuais
preocupações em torno do estudo e implantação de boas regras na administração das sociedades. Mas
refracciona orientações jurídico-económicas gerais, procedimentos de decisão, modelos de justiça empresarial
e indisfarçáveis concepções éticas: tudo interesses constantes, e testemunhados na própria existência,
daquele por quem hoje dobramos o nosso sino, recordando com saudade a estima e a amizade com que
sempre nos distinguiu.

1. Introdução

A insolvência de uma sociedade é, como todos sabem, susceptível de ocasionar danos diversos, que atingem
sócios, credores e trabalhadores. São de facto afectados múltiplos interesses. Os credores, por exemplo, não
conseguem amiúde cobrar os seus créditos, pelo menos na íntegra, os sócios são confrontados com a
dissolução da sociedade e a liquidação do respectivo património, vendo esfumar-se o valor das suas
participações sociais, os trabalhadores perdem, em consequência da extinção da empresa, os seus postos de
trabalho e, com eles, o meio de sustento próprio e das suas famílias.

Atravessamos uma época de aguda sensibilidade para o problema. Infelizmente, os custos económicos, sociais
e humanos das situações de insolvência alimentam, diária ou semanalmente, noticiários televisivos e jornais.
Eles são hoje também potenciados pelos efeitos devastadores derivados que, numa fase de acentuada
globalização das relações económico-jurídicas, pode ter uma insolvência, ainda que longinquamente ocorrida.
A ruína recente e inesperada de alguns gigantes empresariais estrangeiros, por todos presenciada, não trouxe
apenas à luz do dia a necessidade de uma reflexão adequada sobre o papel e o perfil da auditoria e da
certificação das contas, tanto no plano da eficácia preventiva dessas situações, como no campo do
ressarcimento dos danos por elas causados. Também o estatuto dos administradores e a configuração dos seus
deveres estão hoje, forte e crescentemente, sob o escrutínio da crítica. Deste modo, a responsabilidade
(pessoal) dos administradores na insolvência corresponde a um tema da maior actualidade doutrinal e
relevância prática.

Encontramo-nos numa área de cruzamento entre a disciplina geral da imputação de danos aos
administradores, constante do Código das Sociedades Comerciais(1), e o conjunto de regras específicas do
direito falimentar. Apesar de uma relativa densidade normativa que, como se verá, importa reconhecer existir
na matéria, é ainda o recurso à doutrina comum da responsabilidade civil que pode proporcionar as mais
apropriadas linhas de enquadramento. Se nos precatarmos, por outro lado, da extrema variedade de hipóteses
formalmente abrangidas pelo tema da responsabilidade dos administradores na insolvência, facilmente se
concluirá pela extrema complexidade com que ele se nos apresenta.

As considerações que se seguem pretendem contribuir para o conhecimento desta relevante área
problemática. Sem prejuízo embora da necessária articulação com a disciplina geral da responsabilidade civil
dos administradores, procurará desbravar-se todavia, principalmente, o regime que decorre do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas(2), aprovado pelo Decreto-Lei n.° 53/2004, de 18 de Março, e
recentemente entrado em vigor. É essa a perspectiva adoptada.

2. Delimitação do tema; a questão da responsabilidade por pedido infundado de insolvência

O nosso objectivo é, essencialmente, saber se a insolvência pode, e em que termos, ser fonte de uma
obrigação de indemnizar para os administradores da sociedade por ela atingida.

De acordo com o art. 3 do CIRE, referimo-nos portanto à situação de o devedor se encontrar impossibilitado de
cumprir as suas obrigações vencidas.
Mas também se tem de considerar, como deriva do n.° 2 do aludido preceito, a situação de a sociedade
apresentar um passivo patrimonial manifestamente superior ao activo, segundo as regras contabilísticas
aplicáveis.

Interessa-nos, por outro lado, a responsabilidade na insolvência daqueles a quem, nos termos do art. 6,
incumba a administração ou liquidação da sociedade. Esta formulação da lei permitirá compreender, além dos
titulares do órgão social para o efeito competente, aqueles que exercem uma administração de facto. Mas são
os primeiros que primordialmente se terão em vista.

A insolvência é declarada pelo tribunal. O presente tema da responsabilidade dos administradores na


insolvência pressupõe essa declaração.

Estamos deste modo perante um problema que se dirá, em rigor, diametralmente oposto ao da
responsabilidade pela dedução de um pedido infundado de insolvência, igualmente de inegável interesse
prático. Mas este último cabe dentro de uma perspectiva mais completa da zona jurídica que temos de versar,
contribuindo para a sua compreensão. Daí merecer uma referência.

Dispõe centralmente a este respeito o art. 22: “A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência,
ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade pelos prejuízos causados ao devedor
ou a terceiros, mas apenas em caso de dolo.” Abrangem-se os danos patrimoniais e não patrimoniais. No art.
22 transluz sem dúvida o pensamento geral subjacente ao art. 484 do Código Civil (CC)(3), segundo o qual
“quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular
ou colectiva, responde pelos danos causados”.

A responsabilidade dos administradores por um pedido infundado de insolvência constrói-se naturalmente a


partir do conteúdo desta norma. Esse conteúdo modela as exigências de comportamento por cuja violação os
titulares do órgão de administração podem ser pessoalmente responsabilizados (ao abrigo das regras gerais de
responsabilidade dos arts. 71 ss do CSC). Por isso, as considerações seguintes visam, no essencial, apurá-lo.

Perante este preceito do CIRE, alguma doutrina sente a restrição da obrigação de indemnizar aos casos de
dolo como injusta, afirmando a responsabilidade em situações de mera negligência. Aceita para tal aplicar, se
necessário, aquela disposição por analogia, com base numa máxima histórica de identificação da culpa grave
ao dolo: culpa lata dolo aequiparatur(4).

Mas este é um caminho metodologicamente ínvio, inservível, embora tenha na sua base uma preocupação,
como se verá, até certo ponto compreensível. Os brocardos do direito romano, mesmo depois de devidamente
escrutinados no conteúdo que apresentam, não têm valor normativo próprio, nem se pode ignorar, mediante a
simples evocação do seu teor, o conteúdo expresso das normas.

A relevância destas máximas é essencialmente hermenêutica ou heurística.


Na realidade, a via da analogia entre o dolo e a culpa grave não é possível enquanto não se demonstrar que a
erecção pelo legislador do dolo a requisito imprescindível da responsabilidade não prejudica a existência de
uma lacuna e que, portanto, essa configuração legal da situação de responsabilidade não é incontornável. A
analogia radica sem dúvida numa semelhança. Esta deve porém ser aferida segundo critérios normativos e não
com base em convicções do intérprete-aplicador.

Ora, o legislador foi expresso em restringir a responsabilidade, admitindo-a “apenas em caso de dolo”. A
analogia está portanto fora de causa.

Mas a própria interpretação extensiva também se encontra, para o efeito, prejudicada: não vale o pensamento
que não tenha no texto da lei um mínimo de correspondência verbal (cfr. o art. 9 n.° 2 do CC)(5).

Neste cenário, perante a concludência da limitação aos casos de dolo, dir-se-á que o legislador obriga na
prática o intérprete-aplicador inconformado a trilhar o difícil e rigoroso caminho do desenvolvimento contra
legem do Direito. Só que essa é uma ultima ratio cuja utilização há-de ser muito parcimoniosa, verificados
pressupostos muito estritos que têm sempre de demonstrar-se cuidadosamente.

Vale por isso a pena testar a possibilidade de uma redução teleológica do campo de aplicação do nosso
controverso preceito; de modo a permitir a intervenção de princípios ou regimes mais generosos de
responsabilidade (pela dedução do pedido infundado de insolvência) fora ou para além do seu alcance
normativo (teleo-logicamente reduzido).

Mas como operar essa restrição teleológica?


A pista que propomos assenta em duas ideias-força: por um lado, destrinçar os problemas de responsabilidade,
tendo particularmente em conta os sujeitos envolvidos, e, por outro lado, articular em simultâneo essa
destrinça com a distinção entre a responsabilidade aquiliana e contratual.

Assim, pode por exemplo considerar-se a responsabilidade do credor (que deduz o pedido infundado de
declaração de insolvência) perante outro credor ou face a outro qualquer terceiro (como o sócio ou um
trabalhador), do credor (que deduz esse pedido) face à sociedade devedora, e da sociedade devedora (que se
apresenta infundadamente à insolvência) perante o credor, casos, estes dois últimos, de responsabilidade
numa situação em que lesado e lesante se achavam previamente relacionados entre si.

Este desdobrar de planos da responsabilidade tem por referente a diferenciação entre imputação aquiliana e
contratual de danos. É que, acolhendo-se—como deve aceitar-se—essa distinção, rectius, a distinção entre a
responsabilidade delitual e a ocorrida no âmbito de relações contratuais, obrigacionais ou, em todo o caso,
mais amplamente, no seio de ligações especiais entre sujeitos, cada uma delas com funções e regime próprios,
então compreende-se que o segundo tipo de responsabilidade pode ser mais rigoroso do que a primeiro,
dependente que fica das necessidades de protecção que uma certa relação particular possa, em justiça, pedir
ou justificar(6).

Com isso fica aberto o caminho para uma redução teleológica do campo de aplicação do art. 22: considerando
a norma nele contida essencialmente como regra que se situa no plano delitual, marcado pelo anonimato e
fungibilidade tendencial dos sujeitos, o que justifica especiais requisitos de responsabilidade.

Entendido com esse campo intencionado de aplicação, o art. 22 apresenta, de facto, uma conformidade
sistemática com o carácter restritivo da tutela delitual dos interesses económicos puros.

Entre nós, não há nenhum direito subjectivo (dos credores) à realização do crédito que seja delitualmente
protegido de forma genérica contra a negligência de terceiros concredores (ou outros). Como não existe
qualquer direito do credor “a prosseguir a sua empresa” que tenha esse tipo de tutela delitual geral: aquele
seu interesse (de detentor de uma empresa) deriva de uma mera liberdade de agir num espaço também
acessível a outros e no qual outros se movem também livremente. Não corresponde a um direito subjectivo
cujo respeito se imponha ao mero cuidado de terceiros.

Do mesmo modo, não há nenhum interesse de sócios ou de trabalhadores na manutenção da sociedade e da


empresa que seja tutelado contra o simples descuido de terceiros (credores que apresentam um pedido
infundado de insolvência).

Resumindo: não existe uma protecção aquiliana geral deste tipo de interesses (creditícios ou de titulares de
participações sociais) contra condutas simplesmente negligentes. Em compensação, em caso de dolo, esses
interesses são — têm inquestionavelmente de ser — protegidos.

Estas asserções reflectem evidentemente um modo de resolver a questão da tutela externa do crédito perante
terceiros, que não pode agora recapitular-se. De todo o modo, importa reiterar que o direito delitual não
conhece, de lege lata, nenhuma protecção genérica de interesses patrimoniais puros em caso de mera
negligência.

É o que decorre do art. 483 n.° 1 do CC: descontadas as hipóteses, sempre limitadas, da violação de
disposições específicas destinadas à tutela de interesses alheios, só existe, em princípio, responsabilidade
aquiliana quando se viola o direito de outrem. Mas é preciso tratar-se de um direito absoluto (ou de uma
posição absoluta). Não pode configurar-se como tal o interesse do concredor na actividade económica da sua
própria empresa. Do mesmo modo que o não pode ser o interesse do sócio da empresa ou de um trabalhador
seu na continuação, sem sobressalto, da actividade da sociedade daquele titular, muito embora também os
sócios ou os trabalhadores sejam susceptíveis de serem afectados pelo pedido infundado de insolvência
apresentado por outrem.

A empresa de um terceiro (leia-se, aqui, do credor afectado por um pedido infundado de insolvência de um
concredor) não é objecto de um direito (dirigido à respectiva continuação ou à prossecução da respectiva
actividade) que se imponha ao cuidado dos demais, porque a tutela que ela mereceria iria colidir com a
liberdade económica dos demais. Para a responsabilidade têm de requerer-se assim circunstâncias especiais.
Nisso pode sempre louvar-se a exigência do dolo(7).

Por razões basicamente idênticas, não pode impor-se a nenhum sujeito, salvo circunstâncias especiais, um
sacrifício à sua liberdade económica em nome da preservação de posições societárias alheias ou do direito ao
trabalho (rectius, a uma retribuição do trabalho) de um estranho. Também aqui a responsabilidade reclama
requisitos especiais.

É que para o direito delitual, quando a ordem jurídica não confere a um sujeito um certo bem jurídico, dando-
lhe em relação a esse bem uma prerrogativa de exclusão dos demais e tutelando por isso erga omnes a
violação da atribuição por esse modo feita, a regra é a liberdade (dos terceiros). Sem discriminar entre
sujeitos, porque eles são por princípio de considerar como iguais nessa autonomia referida à prossecução dos
seus interesses. Deste modo, só ponderações específicas poderão legitimar o sacrifício de um em relação a
outro.

Mas é naturalmente compreensível que o direito delitual trace uma fronteira indiscutível a todos os
comportamentos: considerar-se-ão proibidas e sancionadas aquelas condutas que sejam determinadas pelo
único ou principal propósito de causar danos.
À luz destas considerações, torna-se claro que a preocupação restritiva do art. 22 não é destituída de ‘algum’
sentido. Seria infeliz reescrevê-lo em ordem a reconhecer uma ampla responsabilidade por ofensa de
interesses patrimoniais puros em caso de mera negligência.

Podemos, portanto, concluir, quanto ao campo do art. 22, que nele se abarca o âmbito das relações dos
credores com outros credores, ou seja, do credor que apresenta um pedido infundado de insolvência com
aqueles sujeitos que têm pretensões concorrentes do seu crédito. Do mesmo modo, abrangem-se ainda as
relações dos credores com outros terceiros, como sócios e trabalhadores da sociedade de que foi pedida a
insolvência. Os prejuízos meramente económicos infringidos a terceiros requerem ordinariamente o dolo. Cada
um cuida de si e não tem obrigações de diligência em relação aos interesses dos outros. O dolo como requisito
de uma imputação de danos justifica-se porque traz a nota do comportamento que permite ancorar uma
reprovabilidade digna de desencadear a obrigação de indemnizar.

E atinge o administrador da sociedade que desencadeou sem fundamento o processo de insolvência de uma
outra. Pela sua natureza, o dolo tende a ser sempre fonte de responsabilidade, ainda que a conduta do titular
do órgão se possa também imputar à sociedade. A situação cai no âmbito do n.° 1 do art. 79 do CSC porque,
no caso de ter procedido com dolo, o administrador causou “directamente” um prejuízo a terceiro no
exercício das suas funções.

Esclareça-se agora que, para efeitos de indemnização por dolo, não basta evidentemente um credor pretender
obter o pagamento do seu crédito, embora sabendo que com isso fará perigar ou prejudicará de facto a
possibilidade de satisfação de um outro credor. (Instaurado o processo de insolvência, apenas o devedor está
vinculado ao princípio da igualdade entre credores.) A responsabilidade do credor por dolo não deriva em si da
mera prossecução da vantagem própria, ainda que em detrimento dos demais credores.

Radica antes no facto de empregar a dedução de um pedido infundado de insolvência com vista a uma
finalidade que não é coberta pelo processo de insolvência. A conduta geradora da obrigação deriva da
instrumentalização desse pedido para um fim alheio àquele em vista do qual ele foi colocado à disposição dos
sujeitos pela lei. Esta é uma nota distintiva importante, que aproxima as nossas hipóteses do quadrante do
abuso do processo e da responsabilidade do litigante de má fé. Sem esquecer embora que o teor normativo do
art. 22 não foi traçado com recurso ao pensamento da disfuncionalidade no exercício de posições jurídicas.

Mutatis mutandis se há-de discorrer no que concerne à atitude de quem quer que, utilizando o expediente da
dedução de um pedido infundado de insolvência, queira realizar um interesse próprio e sacrifique por essa via
os sócios ou trabalhadores da sociedade contra quem o pedido é apresentado.

Analisem-se agora, em contraponto, as outras hipóteses de responsabilidade acima aventadas, movendo-nos


para isso em direcção a um outro plano (distinto do aquiliano). Considere-se, portanto, a responsabilidade do
credor que apresenta um pedido infundado de insolvência da sociedade devedora pelos danos causados a esta
última por essa forma, ou a responsabilidade da sociedade devedora perante o seu credor se lhe ocasiona
prejuízos com a sua apresentação indevida à insolvência(8).

Entre lesado e lesante existia, numa situação e noutra, uma relação especial, de crédito. Como se disse, no
seu seio podem vigorar perfeitamente parâmetros mais rigorosos de apreciação da conduta do agente para
efeito de uma obrigação de indemnizar. E de facto: credor e devedor estão entre si ligados por uma relação
específica (construída em torno da obrigação). Aplica-se o art. 762 n.° 2 do CC: “No cumprimento da
obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.” Entre as
partes na relação especial existem deveres de protecção (de cuidado e diligência) para defesa de interesses
patrimonais puros (incluindo os da saúde das empresas e da continuação da respectiva actividade). Esta é até
uma das utilidades mais palpáveis da doutrina dos deveres de protecção(9).

Tais deveres de protecção constituem portanto, de harmonia com o que dissemos, o alicerce da construção
que, sem forçar o teor literal do art. 22, reduzindo teleologicamente ao plano delitual o campo da sua
aplicação, permite ao devedor e ao credor que respondam reciprocamente um perante o outro em caso de
dedução infundada de insolvência meramente culposa. Aqui parece-nos residir uma chave muito relevante
para resolver o problema da negligência.

Observe-se agora que estes mesmos deveres de protecção são susceptíveis de fundamentar uma
responsabilidade pessoal dos administradores por mera culpa perante os sócios e os credores em caso de
apresentação infundada à insolvência. Mas com uma condição, inquestionavelmente limitadora de uma
imputação de pre-juízos por negligência: é que se torna necessário que entre os administradores e os lesados
se possa afirmar e justificar, tendo em conta as particularidades do caso concreto, uma relação especial que
vinculava os primeiros a um cuidado e diligência para com os interesses patrimoniais dos segundos que vieram
a ser afectados (o que é mais fácil ocorrer com respeito a sócios do que a credores).

Transcende-se, sem dúvida, o âmbito do art. 78 do CSC, que apenas contempla a hipótese (de algum modo
oposta à presente, da imputação de um dano ocorrido pela pretensão infundada de insolvência) de uma
responsabilidade dos administradores por insufi-ciência do património social para a satisfação dos créditos.
Mas, por outro lado, a doutrina dos deveres de protecção nas relações especiais (com sócios, credores ou
outros terceiros) é plenamente conforme com o disposto no art. 79 do CSC, preceito que não pode, por sua
vez, densificar-se adequadamente sem ela(10).

Ainda assim, a responsabilidade por negligência deste modo delineada deve ser contida dentro de justos
limites. Ela não pode afirmar-se pelo simples facto de, deduzido o pedido de insolvência, este vir a ser
rejeitado. É que, por princípio, é ao tribunal que compete, no âmbito do processo de insolvência, apurar a
insolvência. O administrador que desencadeia o respectivo pedido deve evidentemente fazer uma avaliação
sensata das condições de êxito do mesmo, mas não se lhe pode pedir que actue com a certeza que apenas o
juiz pode pode obter no decurso do processo.

Algumas observações completarão a “leitura” que sugerimos. Em primeiro lugar, mesmo admitindo para estes
últimos casos, nos moldes vistos, uma responsabilidade (limitada) por negligência em caso de pedido
infundado de insolvência, há algum acerto “prático” em abonar-se a perspectiva da restrição da
responsabilidade que inspirou o art. 22. Com efeito, o credor—o mesmo vale para o respectivo administrador —
não tem ordinariamente interesse em solicitar sem motivo a insolvência do seu devedor, pois é melhor
tutelado com a acção de cumprimento e a execução singular de dívidas. E também a sociedade devedora e os
seus administradores raramente terão interesse em se apresentar sem necessidade à insolvência, pelas
consequências desfavoráveis que esta pode implicar para ambos. A dedução de um pedido ou de uma
apresentação à insolvência será, portanto, normalmente fruto de um mero erro de avaliação que é do
interesse típico dos sujeitos não cometer.

Uma responsabilidade civil por negligência parece pois não ter a desempenhar aqui uma missão preventiva
imperiosa nem poderá ser defendida em nome de uma eficácia dissuasora imprescindível.

Por outro lado, importa não esquecer que existe um dever de apresentação à insolvência que recai sobre os
administradores, nos termos do art. 18 do CIRE. Trata-se de uma disposição de protecção que visa proteger os
credores contra certo risco da diminuição do património social—um interesse meramente patrimonial—e cuja
violação dá lugar a responsabilidade por mera negligência. A conduta dos administradores é assim escrutinada
para efeito de responsabilidade desde uma dupla perspectiva: ou porque eles não apresentam a sociedade à
insolvência quando devem, ou porque a apresentam quando não devem. Neste espaço de tensão entre duas
exigências de sinal contrário se hão-de movimentar as considerações de uma responsabilidade que é
susceptível, afinal, de colocar os administradores no “fio de uma navalha”. Desta sorte, há-de sempre
ponderar-se que um excesso de responsabilidade do administrador por dedução de um pedido infundado de
insolvência poderia tolher o dever de apresentação à insolvência. Se se puser a tónica na tutela dos credores
que a apresentação à insolvência pode propiciar, é consequente uma restrição da responsabilidade por
apresentação infundada à insolvência.

Observe-se ainda que os casos típicos de coacção moral do credor sobre o devedor para cobrança do crédito,
ameaçando-o através da dedução de um pedido de insolvência injustificado(11), ou a vingança posterior do
credor pela não satisfação do crédito mediante o mesmo género de conduta, implicam o dolo e caem assim,
sem sombra de dúvida, nas malhas do art. 22. Outras hipóteses de dedução do pedido de insolvência, de modo
a obter certos efeitos colaterais como o exercício de pressão sobre o devedor para que ele consinta numa
transacção, para o afastar do mercado como concorrente, para obter um conhecimento mais exacto das
relações patrimoniais de que é titular, para encontrar um pretexto que permita pôr termo a uma relação
contratual duradoura, etc., realizarão também normalmente a previsão desse preceito. A responsabilidade por
dolo atingirá, como é natural, os administradores da sociedade que deduziu o pedido; ao abrigo do acima
referido art. 79 n.° 1 do CSC.

Já a dedução de um pedido de insolvência que é meramente desconforme com uma conduta precedentemente
tomada pelo credor, como a concessão de uma moratória, não implica necessariamente o dolo (o venire,
enquadrável no abuso do direito, não implica essa forma de culpa(12)). Também será discutível, pelo menos
em certas circunstâncias, se a desproporção entre as vantagens do credor e os inconvenientes para o devedor
atingido pelo pedido é fonte de responsabilidade. Pense-se numa dívida de diminuto valor na base do pedido
(que se pretende provoque a consequência “dura” da insolvência). A afirmação da responsabilidade requer
então, em todo o caso, a ultrapassagem do requisito do dolo. Em nenhum destes casos, porém, a ordem
jurídica reage ao pedido de insolvência por ausência de fundamento: estamos já para além do núcleo
específico do art. 22.

Aliás, não é proibida a dedução de um pedido de insolvência a pretexto de a sociedade credora (ou a sua
administração) poder prognosticar a inutilidade respectiva por falta de bens com que possa fazer-se pagar.
Constitui finalidade precípua do processo de insolvência afastar da vida económica aqueles que não estejam
em condições de nela participar sem pôr em risco, pela sua insolvência, a normalidade do seu curso.

Importa também salientar que o problema da restrição da responsabilidade pelo pedido infundado de
insolvência ao dolo deve ser resolvido considerando o regime da responsabilidade do exequente por danos
causados ao executado. Verifica-se que este contempla uma imputação de danos causados com mera
negligência(13). Ora, a coerência valorativa aponta resolutamente para a posição que defendemos: na relação
entre credor e devedor, aquela limitação a casos de dolo não se aplica.

De resto, ela não corresponde também aos vectores gerais da responsabilidade dos administradores prevista
no CSC (cfr. aí os arts. 78 e 79), a qual se basta ordinariamente com a mera negligência, mesmo face a
terceiros, embora possa requerer então— limitadoramente—a fundamentação de uma relação especial.
Abstractamente, pode resolver-se a discrepância mediante a aceitação de uma relação de especialidade (ou
de excepcionalidade) do regime da insolvência em relação àquela disciplina; em alternativa, terá de assumir-
se e explicar-se uma dissonância valorativa. Não pode agora prosseguir-se uma reflexão na área do concurso
de normas, que obrigaria a ponderações sistemáticas bastante vastas. Mas as considerações precedentes
relevam indiscutivelmente para esclarecer o tipo de desconformidade que se nos depara. A imputação por
negligência do CSC convida, como é natural, a reduzir ao adequado o campo do desvio trazido pelo art. 22 do
CIRE.

Problema semelhante se coloca no confronto entre o regime restritivo da indemnização pelo deduzir de um
pedido infundado de insolvência (ao dolo) e a responsabilidade em caso de litigância de má fé. Está
particularmente em causa o disposto na al. a) do n.° 2 do art. 456 do Código de Processo Civil, o qual
estabelece a responsabilidade como litigante de má fé daquele que, com dolo ou negligência grave, tiver
deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar. Agora é uma norma de direito
adjectivo (formal)—no caso, prescrevendo uma indemnização pela dedução de pretensões processuais
infundadas—a concorrer com o art. 22 do CIRE. O problema terá, mais uma vez, que ficar tão-só apontado,
atenta a sua vastidão. Não está propriamente em jogo uma responsabilidade por conduta processual
reprovável (instaurada já a relação processual), mas a configuração do conteúdo e limites do direito de
acção(14), bem como a sua articulação com o direito subjectivo e os limites ao seu exercício, nomeadamente
com o abuso do direito. Avoca-se também aqui mais do que a questão geral da natureza substantiva ou
adjectiva do subsistema da disciplina da insolvência (na sua globalidade): deve interrogar-se a qualificação
substantiva ou processual da norma concreta cuja violação gera responsabilidade.

À partida, o que está em causa no art. 22 é uma dimensão substantiva, cujo âmbito necessariamente
condicionará o campo da litigância de má fé. O art. 456 do Código de Processo Civil e o art. 22 do CIRE contêm
em qualquer caso regulações específicas que prevalecem sobre as regras do direito comum da imputação de
danos.

De todo o modo, saliente-se que a responsabilidade do litigante de má fé não se satisfaz com qualquer tipo de
culpa. Requer negligência grave. É uma necessidade de um estado de Direito que cada um possa aceder à
possibilidade de pleitear sem riscos excessivos (como compensação da proibição da autodefesa). Para a lei
processual dir-se-á que já é suficientemente dissuasor de um litigar leviano (com prejuízo de outrem) a
responsabilidade por custas que impende sobre aquele que decai na acção.

Antevemos um difícil e incerto caminho da jurisprudência e da doutrina na compatibilização de todos estes


complexos normativos.

3. A acção de responsabilidade pela ocasionação da insolvência e o incidente processual de qualificação


da insolvência

Centremo-nos agora na questão, de algum modo inversa da da responsabilidade pela dedução de um pedido
infundado de insolvência acabada de considerar, que consiste no perguntar pelos termos da responsabilidade
dos administradores na ocorrência efectiva de uma situação de insolvência. É ela que mais directamente
corresponde ao tema presente.

Observa-se que o CIRE não contém apertis verbis nenhuma norma de imputação de danos. O legislador aboliu o
regime dito de “responsabilização solidária dos dirigentes” constante do anterior Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (aprovado pelo Decreto-Lei n.° 132/93, de 23 de Abril)
(15). O diploma substituído continha normas expressas de “responsabilização” dos administradores. Previa-se
inclusivamente a declaração da falência dos administradores(16). Era certamente de esperar, numa época
marcada pelo agudizar do fenómeno da insolvência no nosso país e tendo em conta o objectivo, professado
solenemente no preâmbulo do CIRE, de alcançar “uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares da
empresa e dos administradores da pessoa colectiva”(17), que se regulasse com especial decisão a questão.

Mas não se previu, no plano substantivo, esta responsabilidade. Considerou-se que o regime do código anterior
não era, nem tecnicamente correcto, nem idóneo ao fim a que se destinava. Preferiu-se, por isso, criar, com
outros efeitos, o “incidente de qualificação da insolvência”(18). Aberto oficiosamente em todos os processos
de insolvência, ele destina-se a apurar se a insolvência é fortuita ou culposa (cfr. arts. 188 e 189 n.° 1).

O CIRE declara, genericamente, a insolvência culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em
consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou
de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (art. 186 n.° 1). Neste último caso, a
insolvência tem consequências gravosas para os atingidos. No entanto, tais consequências cifram-se na
inabilitação dos declarados culpados por um certo período, na inibição temporária para o exercício do
comércio ou para se ser titular de órgão de pessoa colectiva, bem como na perda dos respectivos créditos
sobre a insolvência e na condenação à restituição dos bens já recebidos em pagamento desses créditos (cfr. o
art. 189 n.° 2).

A sentença que qualifica a insolvência como fortuita ou culposa não aprecia, portanto, a (eventual)
responsabilidade civil dos administradores(19). Tal qual estipula o art. 185, a qualificação da insolvência
enquanto culposa ou fortuita não é vinculativa para efeito, tanto de causas penais, como de pedidos
indemnizatórios (directamente, daqueles a que se reporta o n.° 2 do art. 82(20)). As consequências da
insolvência culposa são outras, como vimos: inabilitantes e inibitórias (além de extintivas dos créditos dos
culpados sobre a insolvência, ou condenatórias da restituição do que receberam em ordem à sua satisfação).

Quer dizer que o intérprete-aplicador tem de encontrar a solução do problema da imputação dos prejuízos aos
administradores pela causação culposa de uma insolvência recorrendo às normas e aos princípios gerais, o que
é dizer, basicamente, ao disposto no CSC.

Comparada com o anterior direito, a solução dificulta a efectivação da responsabilidade contra os


administradores, mesmo quando é perceptível um motivo para tal. Obriga à construção dos fundamentos da
acção a partir de regras e doutrinas gerais numa matéria em que a lei podia ter mostrado caminhos mais fáceis
e seguros para a efectivação da aludida responsabilidade: estabelecendo com maior grau de especificação as
situações susceptíveis de gerar uma obrigação de indemnizar e os princípios que regulam a sua imputação aos
sujeitos como forma eficaz de combate a falências culposas e incentivo a certos padrões mínimos de uma
administração criteriosa e ordenada. O que de resto estava ao alcance do legislador, que por outro lado
concretizou profusamente hipóteses de insolvência culposa, embora não para efeito de responsabilidade civil.

É verdade que este silêncio em matéria de imputação de danos aos administradores não inibe o intérprete-
aplicador de proceder à configuração dos respectivos pressupostos e condições, e que as indicações do CIRE
sobre a insolvência culposa no âmbito do incidente de qualificação da insolvência podem e devem ser
consideradas, adquirindo, como se dirá, grande relevância. No entanto, sem embargo de tantas vezes termos
de condenar os desvarios de prolixidade da lei, depara-se aqui uma situação em que a sua excessiva
parcimónia dificulta a eficácia do combate às insolvências culposas e às suas consequências.

Anote-se que a independência da acção de responsabilidade civil em relação ao incidente da qualificação da


insolvência tem consequências. Assim, o caso julgado absolutório (de culpa) neste incidente—quando se
decidiu, portanto, pelo carácter fortuito da insolvência — não atinge as acções de responsabilidade civil. Mas
as últimas também não aproveitam do caso julgado condenatório (cfr. em especial o art. 185). Esta
autonomização parece exacerbada.

De todo o modo, não é exacto que o CIRE tenha ignorado de modo absoluto o problema da responsabilidade
dos administradores. Limitou-se porém a regular aspectos adjectivos. Na verdade, o art. 82 n.° 2, als. a) e b),
reconhece ao administrador da insolvência, durante a pendência do processo de insolvência, legitimidade —
uma legitimidade exclusiva — para fazer propor e seguir “as acções de responsabilidade que legalmente
couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto,
membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo
do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros”, bem como “as acções destinadas à
indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do
património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de
insolvência”. Tais acções correm por apenso (art. 82 n.° 5).

Há certamente toda a vantagem em apreciar no contexto do processo de insolvência as actuações dos


administradores societários que são susceptíveis de conduzir à sua responsabilidade, ou perante sociedade
insolvente, ou face à generalidade dos credores. Por outro lado, a solução da concentração da legitimidade no
administrador manifesta a centralidade do seu desempenho. Ela evita que a propositura de acções de
responsabilidade pelos mais diversos credores — potencialmente muito numerosas — se reflicta no processo de
insolvência e introduza um factor de complexificação, desigualdade e atraso na satisfação dos credores da
entidade insolvente.

O n.° 2 do art. 82 contempla aquelas acções que são (e devam ser) em benefício directo da generalidade dos
credores ou então, em prol do devedor e, por via disso, susceptíveis de aproveitar, reflexa ou indirectamente,
à generalidade desses mesmos credores. Estes interesses dos credores são individuais, mas homogéneos(21).
No caso da al. b), a homogeneidade resulta meridianamente do fundamento da acção, sendo também que,
face à al. a), a vantagem susceptível de resultar para os credores da respectiva acção se repercute com
igualdade pelos credores.

Pode concluir-se que as acções destinadas a satisfazer interesses meramente singulares (não comuns) de
reparação de danos por parte dos credores da sociedade insolvente contra os seus administradores são
autónomas. Do mesmo modo, as acções dos sócios contra esses mesmos administradores.

4. A responsabilidade dos administradores pela causação da insolvência: aspectos gerais

Os termos substantivos essenciais em que se coloca o problema da responsabilidade dos administradores pela
causação de uma insolvência decorrem, como se deduz, do regime da responsabilidade dos administradores
previsto no CSC.

Em traços muito gerais, pode apontar-se em primeiro lugar que “[o]s gerentes, administradores ou directores
respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição
dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa” (art. 72 n.° 1 do CSC). E
concedeu-se legitimidade, não só à sociedade, mas, em certos termos, também aos sócios, para intentarem a
correspondente acção (cfr. os arts. 75 e 77 do CSC).

Que a sociedade — não apenas os sócios — pode ser (ela própria) titular do direito a uma indemnização contra
os administradores numa situação de insolvência confirma-o claramente o já referido art. 82 n.° 2, a) do CIRE.
Aplica-se então o art. 72 do CSC acabado de mencionar. Ver-se-á depois que o CIRE dá indicações para a
concretização ou especificação dos deveres a que os administradores estão adstritos, contribuindo para a
fixação do alcance deste preceito.

Mas essa responsabilidade dos administradores perante a sociedade não atinge aqueles que, nos termos do art.
72 do CSC, não tenham participado na deliberação de administração danosa ou tenham votado contra ela,
assim como se a conduta dos administradores assentou em deliberações dos sócios, ainda que anuláveis.

Por outro lado, dispõe-se no CSC, que “[o]s gerentes, administradores ou directores respondem para com os
credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à
protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos” (art. 78
n.° 1).

A responsabilidade por violação de deveres contratuais— estatutários ou derivados do contrato de


administração—só se verificará por excepção, pois tais deveres não são estabelecidos, via de regra, em
benefício dos credores. A hipótese pertence, como temos defendido, ao quadrante dogmático do contrato com
eficácia de protecção para terceiros(22).

Já no que toca à responsabilidade dos administradores por violação de normas legais, há, como se frisará,
disposições do CIRE que se configuram como regras destinadas à protecção de interesses alheios—de credores
—, cujo desrespeito gera, assim, uma obrigação de indemnizar.

Observe-se, de qualquer modo, que o art. 78 do CSC faz depender sempre a responsabilidade de que, por
causa da violação culposa de certas normas legais, o património se torne insuficiente para a satisfação dos
credores. O que coloca um problema. É que a imputação do dano, segundo este preceito, não se recorta
exactamente pelo teor da situação de insolvência, descrita no art. 3 do CIRE. A insolvência não surge apenas
quando o património social é manifestamente deficitário (com os activos muito abaixo do passivo)—situação
coberta pelo aludido art. 78—, mas também, desde logo, quando há impossibilidade de cumprir as obrigações
vencidas, e esta hipótese não está contemplada pelo art. 78 do CSC.

Pelo que, nesta última situação, a responsabilidade para com os credores tem de ter outros referentes legais.
Como, para defesa dos credores, o recurso ao art. 79, a seguir mencionado, é limitado — dado que a
imputação de danos por mera negligência dependerá ordinariamente da possibilidade de afirmar, perante o
caso concreto, a existência de deveres especiais do administrador perante o terceiro—, restam vias mais
gerais. Aludimos particularmente à possibilidade de algumas normas do CIRE terem o estatuto de disposições
de protecção dos credores cuja viola-

ção gera responsabilidade, não já ao abrigo do art. 78 do CSC citado, mas autonomamente por força do art.
483 n.° 1, 2.ª parte, do CC.

Observe-se também que, segundo e para os efeitos do art. 82 do CIRE, a acção de responsabilidade para com
os credores aproveita a todos eles por igual, o que marca uma diferença em relação ao art. 78, perante o qual
cada credor age, em princípio, individualmente, no seu exclusivo interesse e benefício(23).

Por último, importa referir o art. 79 do CSC, nos termos do qual “[o]s gerentes, administradores ou directores
respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes
causarem no exercício das suas funções”. Requere-se, no dizer da lei, um nexo “directo” entre a conduta e o
dano, que o prejuízo sofrido por sócios e terceiros não seja portanto meramente reflexo, derivado do dano
causado à própria sociedade. Tal quererá normalmente significar que hão-de ter sido violados deveres
específicos perante os sócios ou os terceiros (por exemplo, trabalhadores). Na explicitação do preceito —
seguramente complexa—, pensamos, como se vê, que a doutrina das relações especiais tem um papel
determinante. Assim, há responsabilidade do administrador perante um sócio, um trabalhador ou, mesmo, um
credor se havia uma relação especial entre os sujeitos que fundava um concreto dever do administrador para
com algum destes, dever esse que foi infringido(24). Esta construção interessará em especial em casos de
negligência, porque se existiu dolo de lesão parece que o requisito da causação directa de danos se deve ter
por verificado(25).

Contudo, o recurso aos sobrecitados preceitos do CSC não prejudica nem significa a inaplicabilidade de formas
de responsabilização ao abrigo do direito civil comum. Em boa medida, as regras aí contidas correspondem a
simples normas de enquadramento.

Assim, o administrador que sabidamente enganar aquele com quem a sociedade se dispõe a contratar acerca
da capacidade de a sociedade honrar os seus compromissos (por exemplo, assegurando uma facilidade de
recurso ao crédito que não existe) responderá por a sua conduta representar uma lesão intencional do parceiro
contratual contrária aos bons costumes comerciais.
Há também ocasiões em que, sob pena de incorrer em responsabilidade, o administrador tem mesmo o dever
pessoal de esclarecer o parceiro contratual acerca do estado financeiro da sociedade de modo a prevenir
expectativas injustificadas. Tal vale particularmente quando entre o administrador e o terceiro com quem a
sociedade negoceia um contrato existia uma relação especial (prévia) que o envolvia pessoalmente e o
obrigava a especiais deveres de cuidado e protecção perante a contraparte. A sua responsabilidade pode
emergir aqui da boa fé e da culpa in contrahendo (de terceiro)(26).

5. (cont.) Dever de diligência, business judgment rule e dever de fidelidade dos administradores

A responsabilidade dos administradores está ordinariamente dependente da infracção culposa de um dever de


conduta. Deste modo, o art. 64 do CSC(*) desempenha um papel significativo em sede de responsabilidade dos
administradores (tanto em geral, como ocorrida uma situação de insolvência). Refere-se nesse preceito, de
acordo com a sua epígrafe, “o dever de diligência” que impende sobre os gerentes, administradores ou
directores. Nos seguintes termos: eles “devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no
interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.

Esta disposição é central porque se repercute nos diversos planos em que se coloca a responsabilidade dos
administradores, seja esta objecto ou não de previsão específica. Ela articula-se, designadamente, com os
citados arts. 72, 78 e 79 do CSC, tendo, como é natural, sentido e alcance não coincidentes quando conjugada
com cada um deles. A sua relevância deriva de nela se conter um padrão, não apenas de culpa, mas, desde
logo, de ilicitude, susceptível de integrar as normas de responsabilidade civil referidas e de lhes precisar o
alcance. Com efeito, a diligência de um gestor criterioso e ordenado corresponde a um estalão abstracto e
genérico da conduta, estabelecido por aquilo que é em média exigível a quem administra, e, por isso, apronta
um critério independente de saber se o concreto gerente ou administrador podia em certa situação específica
observá-lo, em termos de ser susceptível, se o não fez, de uma censura pessoal. O art. 64 não é uma pura
norma de enquadramento, insusceptível de violação e sem possibilidade de, conjugada com outras normas,
determinar consequências jurídicas(27).

Mas está fora de causa a afirmação indiscriminada da responsabilidade dos administradores na insolvência. No
desempenho das funções de direcção, os administradores gozam de autonomia, dispondo de espaços amplos
de livre apreciação. Tal é desejável e a responsabilidade civil terá de o respeitar; pelo que quando o resultado
da gestão é a insolvência, isso não se afigura suficiente para alicerçar uma obrigação de indemnizar com
recurso ao art. 64 do CSC.

Vale a pena sublinhar este aspecto. Não há responsabilidade só porque uma dada gestão não teve êxito.
Aceitá-la colidiria com o risco da própria empresa, com a necessidade de tornar a administração atractiva e
razoavelmente protegida de acções de responsabilidade, de modo a permitir a adopção de medidas audazes;
contrariaria, portanto, a agilidade das empresas e a competitividade destas, com prejuízo para toda a
economia.

No fundo, uma concretização adequada do art. 64 terá de reflectir equilibradamente a tensão entre a
necessidade de preservar a integridade do património social, ou o acquis do empreendimento societário, por
um lado, e, por outro, a necessidade de corresponder com o devido dinamismo aos impulsos de evolução da
vida societária e empresarial.

Cremos que essa concretização poderia com vantagem seguir, entre nós, a inspiração da business judgment
rule norte-americana(28). Segundo este modelo, a gestão é, em princípio, sujeita a um simples controlo de
procedimentos de administração, excluin-do-se portanto, genericamente, a valoração judicial do mérito dos
actos de direcção, necessariamente ex post. Mas haverá já sindicância do resultado se uma decisão violou
regras procedimentais; por exemplo, se o administrador se encontrava, quanto a ela, em conflito de
interesses, se não se informou razoavelmente antes de a tomar, de modo a calcular devidamente os
respectivos riscos, se discriminou ilegitimamente entre sócios ou entre credores, ou se, por outra via, não
pautou a sua decisão pelo interesse social. Caso nada seja nestes planos susceptível de ser apontado ao
administrador, parece que uma insolvência apenas lhe deverá ser imputada na hipótese extrema de radicar
numa opção de gestão inequívoca e manifestamente irracional(*). O consenso acerca do que sejam as
“melhores práticas” (best practices) proporciona aqui um importante critério(29).

Temos assim que, voltando agora ao art. 64 do CSC, a diligência se identifica antes de mais com um processo
decisório, e a decisão tomada se legitima pelo processo.

A posição de partida que daqui decorre quanto à responsabilidade dos administradores ocorrida uma situação
de insolvência é diferente de admitir que a gestão que a ela tenha conduzido é totalmente insindicável. Como
não a cinge aos casos em que ocorreu um erro grosseiro, porque esse erro pode também referir-se à ausência
de um iter decisório adequado e, quando tal se verifique, seria demasiado restringir a responsabilidade a casos
de negligência grave. E é distinta também de admitir que a gestão só dá lugar a uma obrigação de indemnizar
quando se tenham mostrado preteridos concretos e específicos deveres legalmente plasmados, como o de
apresentar relatório de actividade e contas.

De qualquer forma, há deveres dos administradores que não lhes consentem margens de apreciação e que são,
nesse sentido, de cumprimento estrito. Trata-se de adstrições sem cuja observância não é—segundo a ordem
jurídica—possível ou pensável uma correcta administração (ao serviço dos interesses apontados no art. 64).
Assim, os administradores têm para com a sociedade um dever geral de fidelidade(30), que os impede de
exercer as suas competências em proveito próprio ou em benefício de terceiros influentes, ou de discriminar
entre accionistas, ou de actuar consabidamente em prejuízo da sociedade. Este dever geral é susceptível de
se desdobrar em múltiplas proibições: no dever de não concorrência, de não actuar em conflito de interesses,
de não aproveitar oportunidades societárias para si ou para outrem, de não prosseguir por outra via interesses
extra-sociais, de não agir conscientemente em prejuízo da sociedade, etc.. Vincula o administrador à defesa
intangível do interesse social e proscreve que se prossigam interesses pessoais ou de terceiros, em detrimento
do interesse social.

Há uma relação fiduciária entre o administrador e a sociedade. O serviço que ele presta a favor da sociedade
envolve a atribuição de poderes alargados sobre ela e sobre o seu património. Mas esses poderes podem ser
mal usados, sendo por outro lado que não é fácil aos sócios exercerem, sobretudo preventivamente, um
controlo adequado do modo como eles são exercidos(*). Tudo fundamenta que um especial dever de lealdade
conforme, ab intra, a relação de administração, como uma modelação desta(31).

Esta curta digressão pelo dever de fidelidade justifica-se especialmente. Na verdade, a maior parte das
situações qualificadas de insolvência culposa pelo art. 186 do CIRE corresponde a especificações deste dever
e, como se terá oportunidade de frisar, a sua violação tem consequências no plano da responsabilidade.

Conclua-se. As disposições gerais permitem alicerçar uma responsabilidade dos administradores pela
insolvência, mas esta precisa de ser cuidadosamente fundamentada perante aquelas. Em princípio, onde a lei
não disponha de modo directo ou indirecto sobre esta responsabilidade, a obrigação de indemnizar coliga-se à
violação do dever de fidelidade (ou de alguma das suas concretizações); a infracção do dever de boa
administração apenas parece, por seu turno, ter esse efeito em caso de inobservância de um processo
decisório adequado, com ressalva embora de uma imputação dos danos ao administrador se a gestão foi
patentemente irracional.

Tenha-se sempre presente que o espaço da responsabilidade pela insolvência se afirma num campo de tensão
com a responsabilidade pela não apresentação à insolvência. Porque, como se sabe, o administrador é
igualmente susceptível de responder se não se apresentar à insolvência.

6. Incidente processual de qualificação da insolvência, relação especial e deveres no tráfico para


protecção do património

Toda a responsabilidade dos administradores na insolvência, qualquer que seja o plano em que ela se desdobre
— perante credores, a própria sociedade, os seus sócios, credores comuns, trabalhadores ou outros terceiros —
radica numa violação culposa de deveres que carecem, como se disse, de ser especificados no processo de
aplicação do Direito. O cumprimento desta exigência encontra-se porém muito facilitada, uma vez que, no
art. 186 do CIRE, se encontra positivado um conjunto numeroso de situações tidas como de insolvência
culposa. Disse-se já que essa positivação visava de modo directo consequências distintas da obrigação de
indemnizar. Contudo, ela tem, repercussões no plano das acções por perdas e danos.

Em primeiro lugar, importa frisar que o elenco de hipóteses constante do referido preceito presta um auxílio
inestimável ao intérprete-aplicador na hora da concretização dos deveres dos administradores que possam ter
sido violados. Esses deveres são múltiplos e variam em função do fundamento de responsabilidade.

O apuramento da existência ou não de uma relação (prévia) entre lesado e lesante e da sua configuração
revela-se com frequência essencial. Há com efeito deveres que brotam da relação de administração. Noutros
casos, eles derivam de uma ligação especial de outro tipo entre o administrador e o lesado (sócio,
trabalhador, etc.). Estando em causa o fazer valer de uma responsabilidade emergente de uma relação
especial (contratual ou não), o elenco de situações de insolvência culposa do art. 186 permitirá portanto uma
densificação dos comportamentos que são devidos por essa relação. No âmbito desse elenco dilui-se no fundo
a necessidade de um particular investimento argumentativo para individualizar e fundamentar o dever cuja
violação gera a obrigação de indemnizar: as diversas hipóteses previstas no art. 186 n.° 2 desdobram diante do
intérprete-aplicador um conjunto de adstrições que pacificamente se aceitará estarem incluídas, quer entre
os deveres emergentes da relação (fiduciária de administração) que une o administrador à sociedade, quer de
outras relações especiais que aquele tenha encetado com os demais sujeitos (sócios, credores, trabalhadores)
por via da sua qualidade de administrador. Nestes termos, estas hipóteses são um arrimo primordial no
preenchimento, nomeadamente, dos arts. 64, 72 e 79 do CSC.

Mas o art. 186 do CIRE também auxilia o intérprete-aplicador se se trata de estabelecer os termos de uma
responsabilidade do administrador, ocorrida uma situação de insolvência, perante aqueles com os quais não
tinha estabelecido qualquer relação; quando, portanto, se testa a conduta do administrador para efeito de
responsabilidade aquiliana e de acordo com os critérios desta última.

No plano delitual, não pode porém esquecer-se que os danos económicos puros causados a terceiros — como o
são tipicamente os derivados de uma situação de insolvência — não têm entre nós protecção genérica, só
sendo em princípio tutelados nas situações em que a negação de tutela se apresente insuportável para a
ordem jurídica(32). O que ocorrerá certamente em caso de dolo.

Mas, enquanto o dolo parece ser sempre fonte de responsabilidade civil, a negligência não basta para a
imposição de uma obrigação de indemnizar. Aquele, portanto, que tenha um crédito que não conseguiu
realizar pela incúria de um administrador (que provocou a falência da sociedade) não dispõe em regra de
acção delitual contra ele, porque o crédito não goza de tutela delitual geral: não corresponde a um daqueles
direitos que, face ao art. 483 n.° 1 do CC, é irrestritamente protegido contra violações (meramente) culposas
de quem quer que seja. Abstraindo da hipótese, precedentemente analisada, de uma via não delitual de
responsabilização com fundamento na violação de específicos deveres resultantes de uma (concreta) relação
(especial) entre o administrador e esse credor, resta a esse sujeito, no âmbito delitual, a possibilidade, que
abaixo se examinará, de beneficiar de uma disposição de protecção ao abrigo, ou do n.° 1 do art. 78 do CSC,
ou da 2.ª parte do n.° 1 do art. 483 do CC.

Nesta perspectiva, não parece viável considerar-se que as hipóteses do art. 186 n.° 2 do CIRE correspondem a
deveres no tráfico susceptíveis de preencher uma imputação delitual derivada da violação (mediata ou por
omissão) de um direito de outrem. A ampla admissão de deveres aquilianos para a defesa de interesses
puramente patrimoniais) romperia o sistema de responsabilidade civil vigente(33).

No entanto, o art. 186 n.° 2 pode interpretar-se em parte como positivação concretizadora de situações em
que o dolo desencadeia a responsabilidade independemente da natureza do interesse atingido, em
conformidade com o sistema geral de responsabilidade vigente.

7. Incidente de qualificação da insolvência e disposição de protecção

Mas, a despeito da insusceptibilidade de se interpretarem ordinariamente os deveres implicados nas hipóteses


do n.° 2 do art. 186 do CIRE como deveres no tráfico, de natureza aquiliana (para tutela de posições que
gozam de uma tutela delitual genérica contra omissões ou ofensas mediatas), esses casos têm relevância
delitual, uma vez que correspondem à previsão de uma disposição de protecção de interesses alheios cuja
violação é delitualmente relevante ex vi do art. 78 n.° 1 do CSC e/ou do art. 483 n.° 1 do CC.

Não vai retomar-se agora em toda a extensão o papel e o lugar da infracção de normas deste tipo no contexto
global da responsabilidade delitual(34). Recordar-se-á apenas que este género de responsabilidade pode
complementar e concretizar outras situações de responsabilidade (desde logo a da violação ilícita, com dolo
ou mera culpa, de direitos de outrem), mas é susceptível também de desempenhar uma função totalmente
autónoma, alargando o âmbito da protecção aquiliano para além daquilo que é propiciado por essas outras
situações. Quanto a esta última função, o seu reconhecimento implica ponderação e cuidado: precisamente
porque as disposições de protecção relevantes por força do art. 483 n.° 1 do CC não trazem explicitada pelo
legislador essa sua natureza (de normas cuja violação gera uma obrigação de indemnizar(35)); uma natureza
que assim tem de ser desvendada pelo intérprete-aplicador.

Deve seguramente averiguar-se com critério qual é o fim da norma; se ela visa efectivamente proteger
interesses individuais do sujeito contra certo tipo de danos e/ou determinados modos de os produzir. Sendo
que o juízo acerca da relevância indemnizatória da violação dessa norma deverá poder justificar-se ainda no
plano da congruência do sistema da responsabilidade delitual que assim se (re)interpreta. A manutenção e o
respeito do equilíbrio global do sistema requer que só devam considerar-se normas dessa natureza aquelas em
relação às quais a responsabilidade pela respectiva violação salvaguarda, no conjunto, a harmonia com as
restantes regras delituais.

Há, portanto, que comprovar a susceptibilidade de qualificação do art. 186 do CIRE como disposição de
protecção. Essa qualificação terá de ser justificável perante a restritividade com que o nosso ordenamento
jurídico contempla a protecção aquiliana de interesses puramente patrimoniais, como são tipicamente os
afectados pela insolvência de uma sociedade.

Aqui chegados, parece indiscutível que o incidente de qualificação da insolvência como culposa e as situações
que o fundamentam são inspirados na necessidade de protecção de interesses alheios. As consequências de
índole não ressarcitória que a lei expressamente associou a essa qualificação não visam apenas a prevenção de
condutas danosas futuras por parte dos administradores atingidos. Na verdade, ao predisporem-se sanções
civis de natureza pessoal ocorrendo certas condutas censuráveis dos administradores, é com certeza de
concordarem que o estabelecimento dessas sanções pelo legislador visava sempre dissuadir os administradores
de determinados comportamentos lesivos de terceiros (ainda que aqueles possam não ter sido sensíveis no
caso concreto a essa exigência e, por isso, mereçam ser “punidos”). A nota retributiva ínsita no princípio da
culpa mostra que o escopo das sanções civis não ressarcitórias do art. 189 não se limita de modo algum à
prevenção de comportamentos futuros. Há consequências da insolvência culposa que também beneficiam
directamente a própria entidade insolvente e o seu património (cfr., em particular, a al. d) do n.° 2 do art.
189). Foram portanto seguramente predispostas em favor (também) dos próprios credores da sociedade
afectados pela insolvência. Não está em jogo a mera preservação de um interesse genérico, não individual, na
adopção de práticas de administração idóneas e na saúde das empresas.

Esta protecção de interesses puramente económicos dos credores perante os administradores da sociedade
insolvente desdobra-se igualmente, cremos, no plano indemnizatório. A tutela ressarcitória confere eficácia e
plenitude a essa finalidade precípua dos arts. 185 e seguintes do CIRE, sendo que contra a sua admissibilidade
não parece poder invocar-se nenhum particular entorse ao direito da responsabilidade delitual. É que a
interpretação do art. 186 como disposição de protecção não atenta contra a orientação delitual em matéria de
interesses puramente económicas. O direito aquiliano vigente não exclui a atendibilidade destes últimos;
apenas rejeita a sua protecção indistinta e genérica. Não se recusa, portanto, que certos interesses
puramente patrimoniais possam ser protegidos, particularmente em determinadas circunstâncias.

Ora, torna-se bom de ver que, em tese, a insolvência das sociedades representa um problema económico e
social especial, dotado de particular sensibilidade, ao qual o legislador pode também dar uma resposta
especial, mais enérgica, no campo da responsabilidade. É razoável admitir que o faça ou tenha querido fazer.
A eficiência é também um cânon interpretativo ou qualificativo de uma norma (como disposição de
protecção).

De resto, as hipóteses correspondentes ao incidente da qualificação da insolvência foram também recortadas


por outra via perante o pano de fundo do estatuto delitual geral dos interesses puramente patrimoniais. É que,
para que a insolvência seja qualificada de culposa, exige-se que a situação tenha sido “criada ou agravada em
consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou
de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. Mesmo abstraindo da limitação
temporal, há portanto uma restrição da relevância da ofensa de interesses patrimoniais puros aos casos de
dolo ou culpa grave. Tal qual como no direito aquiliano comum, a simples negligência não basta.

Por outro lado, uma parte importante das condutas tidas como dando lugar a uma insolvência culposa segundo
o n.° 2 do art. 186 configuram também comportamentos susceptíveis de gerar responsabilidade penal(36).
Ora, este aspecto é determinante, pois a protecção criminal de interesses implicará igualmente a sua tutela
no plano da responsabilidade civil.

Pode portanto formular-se a conclusão genérica de que o art. 186 do CIRE corresponde a uma disposição de
protecção cuja violação por parte dos administradores de uma sociedade desencadeia responsabilidade civil
pela insolvência: articulada com a norma do art. 78 n.° 1 do CSC, e, fora do alcance desta norma, por força da
directriz mais geral contida no art. 483 n.° 1 do CC.

8. O art. 186: ilicitude, culpa e causalidade

Adquirido que está revestir o art. 186, em geral, relevância delitual ao abrigo da modalidade básica da
responsabilidade por violação de normas de protecção, é altura de algumas observações sobre a técnica
legislativa e o conteúdo do preceito.

Recordemo-lo:

«Art. 186.° (Insolvência culposa)


1. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação,
dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos
anteriores ao início do processo de insolvência.
2. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus
administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do
devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou pre-juízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a
celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente
relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente
inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito
pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de
terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou
deverem saber que esta conduta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantendo uma
contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a
compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração
do parecer referido no n.° 2 do art. 188.
3. Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que
não seja pessoa singular, tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as
depositar na conservatória do registo comercial.
4. (…)
5. (…)»

Pode verificar-se que a regulamentação da insolvência culposa se desenvolve, no fundo, em três níveis. A
disposição abre com uma descrição genérica da insolvência culposa, identificando a situação de facto e a
imputação correspondentes.

No n.° 2 há, depois, a apresentação de um elenco de casos tidos invariavelmente como de insolvência culposa.
A sua leitura evidencia que estamos perante hipóteses de presunção iuris et de iure e não de meras ficções. A
índole da disposição logo faz salien-tar estarmos perante uma enumeração taxativa de situações.

Finalmente, o n.° 3 aponta um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Também agora se nos
depara um elenco fechado, muito embora se admita, relativamente a qualquer uma das hipóteses previstas, a
possibilidade de desculpação.

É, portanto, central o n.° 1, ponto de referência que é dos demais números. Observa-se logo que a insolvência
qualificada pelo legislador de culposa requer, na realidade, uma de duas formas de culpa, o dolo ou a culpa
grave. A culpa simples foi excluída.

Estas formas de censurabilidade reportam-se, tanto à criação da insolvência, como ao seu agravamento em
consequência da actuação do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao processo de
insolvência.

Este, portanto, o quid fáctico sobre que incide, nos termos do preceito, o juízo de culpa. Dir-se-á que temos
aqui a situação de responsabilidade, essencial para afirmar a relevância de certa ocorrência para efeito de
imputação de danos, e ponto de referência, quer de um juízo de ilicitude, quer, por via desta, do juízo da
culpa (critério de imputação a um certo e determinado sujeito)(37). Mas há que reconhecer que na
conceptologia e na técnica do art. 186 as fronteiras entre situação de responsabilidade, ilicitude e culpa são
incertas e movediças(38).

Existe em todo o caso um limite temporal a considerar: só é relevante a causação ou o agravamento da


insolvência por condutas ocorridas dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Não
está em jogo um prazo de prescrição ou de caducidade de determinado direito. Há é uma modelação temporal
da situação de responsabilidade relevante. Ela não carece de ser invocada, sendo, como todo o direito
objectivo, de conhecimento oficioso.

O n.° 2 do art. 186 proporciona todavia ao lesado uma tutela muito mais eficaz. Com efeito, especifica-se aí
um conjunto de situações—pode dizer-se, um grupo de hipóteses de violação de deveres por parte dos
administradores de uma sociedade—, determinando-se depois que, caso ocorram, se considera sempre ter
havido culpa dos administradores na insolvência do devedor.

O elenco é extenso. Cobre uma variedade assinalável de casos, representando outras tantas formas de
comportamento que a experiência tem mostrado estarem com frequência na origem de insolvências. O
legislador inspirou-se largamente nas hipóteses que, face ao anterior direito, conduziam a uma
“responsabilização solidária” dos administradores pela falência da sociedade, que acolheu e, aqui e ali,
procurou aperfeiçoar e reforçar(39).

A vantagem para a tutela do lesado é evidente. A discriminação dos deveres a cargo dos administradores—ou
das situações tidas como de violação desses deveres — poupa o prejudicado de formular e fundamentar
adstrições de conduta que impendem sobre os administradores a partir dos preceitos do CSC que, em geral,
disciplinam a respectiva actividade. Facilita-se, por outras palavras, a vida ao prejudicado no que concerne ao
estabelecimento da ilicitude do comportamento dos administradores porque, sempre que ocorre alguma das
hipóteses previstas, essa ilicitude da conduta é especificamente apontada como tal pelo legislador, sem
possibilidade de justificação.

Analogamente no que toca à determinação de um juízo de censura pessoal. Tendo lugar alguma das situações
previstas, a culpa presume-se, não havendo lugar a prova em contrário e estando portanto precludida a
alegação e demonstração de alguma causa de desculpação. (E note-se que se presume sempre a culpa grave,
porque apenas essa consubstancia uma insolvência culposa.)

O n.° 2 do art. 186 contempla desta sorte um conjunto de hipóteses em que se estabelece inilidivelmente ter
ocorrido uma conduta ilícita e culposa dos administradores.

Mas não se trata apenas disso. A referida conduta é tida pelo preceito como causadora ou agravadora de uma
insolvência. Só assim é que a insolvência pode ser qualificada como culposa pelo legislador.

Temos, portanto, que o art. 186 n.° 2 também faz presumir iuris et de iure a causalidade da violação ilícita e
culposa de determinados deveres em relação à insolvência. Esta causalidade é fundamentante da
responsabilidade (haftungsbegründend), pois diz respeito ao seu fundamento. O citado preceito dispensa o
lesado da respectiva prova. Mutatis mutandis, o mesmo ocorre no n.° 3.
Não estamos portanto perante a causalidade da insolvência em relação aos prejuízos concretos que outrem
possa sofrer em consequência dela. Essa, além dos respectivos danos, carece de ser demonstrada pelo
lesado(40).

Extremamente relevante é, por outro lado, a responsabilização, à luz deste preceito, não apenas dos
administradores de direito, como ainda dos administradores de facto. Essa extensão da imputação é
susceptível de abranger os sócios que exerçam na realidade, pela influência e domínio que têm na sociedade,
tal administração. A determinação ou condução prática e efectiva da administração responsabiliza, segundo o
art. 186, para além do que possibilita, por si, o art. 83 do CSC (ou, no caso de sócio único, o disposto no art.
84 do mesmo diploma).

9. Outros elementos para a compreensão dos n.os 2 e 3 do art. 186

A relação entre a violação dos deveres dos administradores especificados pelo n.° 2 do art. 186 e a verificação
da situação de insolvência não é igualmente próxima em todos os casos. Algumas vezes sancionam-se condutas
que, quando adoptadas, terão normalmente como consequência (mais ou menos) directa ou previsível
(segundo um juízo de adequação social-normativo) a insolvência (por exemplo, na hipótese da al. a) ou g)).

Mas em diversos outros casos, o que está em jogo é a reprovação de comportamentos que não conduzem por
si, necessariamente, à situação de insolvência, requerendo-se a verificação de outros factores, algumas vezes
fortuitos, para que ela ocorra (assim, v.g., nas al. d) ou f)). Por último, estão também em causa situações de
responsabilidade por omissões, sendo que delas também não deriva, por si e infalivelmente, a insolvência
(atente-se nas al. h) e i)).

Com isto toca-se também uma das funções que as disposições de protecção podem caracteristicamente
desempenhar, bem reveladora da sua autonomia perante as outras formas básicas da tutela aquiliana de bens
jurídicos: levando longe a preocupação de prevenir com eficácia a lesão de um interesse ou bem jurídico, elas
permitem como que “pré-protegê-lo” (ou “antecipar” a sua protecção), vedando ou prescrevendo condutas
independentemente de se demonstrar que essas condutas apresentam no caso concreto um perigo para tal
interesse ou bem jurídico (podem mesmo proibir a prova do contrário).

Assim, na al. d) sanciona-se como culposa a insolvência perante a mera disposição dos bens do devedor em
proveito pessoal (sendo que essa disposição é susceptível até de ter tido uma contrapartida idónea para a
sociedade). Do mesmo modo, na al. h) crisma-se de culposa a insolvência perante o simples incumprimento da
obrigação de manter contabilidade organizada de que resulte prejuízo para a compreensão da situação
financeira ou patrimonial do devedor. No fundo, analogamente, a al. b) do n.° 3 do art. 186 presume logo
culpa grave na insolvência quando as contas anuais não foram elaboradas no prazo legal, submetidas a
fiscalização ou depositadas na conservatória. Nenhum destes comportamentos autoriza com segurança a ilação
de que dada insolvência radica na sua adopção. A infracção de uma disposição de protecção pode portanto
corresponder a um delito de perigo abstracto. Nestes casos é certamente compreensível o estabelecimento de
uma presunção de culpa.

Apesar de tudo, muitas das condutas reprovadas pelo n.° 2 ou pelo n.° 3 são também susceptíveis de encerrar
o perigo concreto de ocasionação ou agravamento de uma dada insolvência, ainda que esta, vindo a verificar-
se, não tenha de derivar imediatamente de tais comportamentos. Somos assim levados a recordar de novo, no
plano delitual, a doutrina dos deveres no tráfico (que cobre o sector das omissões e causações mediatas de
danos), embora não deva esquecer-se que a sua livre e indiscriminada admissibilidade poria facilmente em
causa a restritividade com que os interesses patrimoniais puros são contemplados em sede aquiliana. Já no
campo das relações especiais, a função dessas adstrições delituais é preenchida pelos deveres de protecção e
de cuidado, desta vez sem os aludidos obstáculos. Em ambos os casos, requere-se sempre que o dever sirva
para afastar ou evitar o perigo de um resultado considerado indesejável e seja, nessa medida, exigível, ainda
que esse resultado se venha a verificar em consequência da ocorrência também de outras causas.

Nesta medida, pode dizer-se que as disposições de protecção do n.° 2 e do n.° 3 do art. 186 exemplificam
também deveres de conduta que, na sua ausência, seriam, no âmbito de relações especiais entre
administradores e terceiros onde não vigoram restrições à reparação dos interesses puramente patrimoniais,
passíveis também de serem “desentranhados” pela jurisprudência em concretização dos arts. 64, 72, 78 e 79
do CSC. O que é importante porque quem negasse a natureza de disposição de protecção a tais normas nem
por isso só estaria legitimado a ignorar a substância de muito do que nelas se prescreve para efeito de
responsabilidade.

Claro que no art. 186 se sancionam condutas que contrariam as práticas de uma cuidada administração,
intencionadas ou compreendidas, por exemplo, pelas alíneas c) e i) do n.° 2 ou no n.° 3. Deste modo, reprova-
se, v.g., a compra de mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço
sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação, ou então, a obrigação de elaborar as
contas anuais, no prazo devido, de as submeter à fiscalização prescrita ou de as depositar na conservatória do
registo comercial.

A maior parte das previsões respeita porém a infracções do dever de fidelidade. Exemplos notórios encontram-
se, entre outros, nas alíneas e), f) e g) do n.° 2. O CIRE contém no presente, provavelmente, a mais detalhada
especificação deste dever que o direito legislado conhece.

As violações do dever de fidelidade são invocáveis por uma multiplicidade de sujeitos. Tal obriga a uma
observação. O dever de fidelidade dos administradores é constitutivamente relativo: vincula-os, em primeira
linha, perante a sociedade e, em certos termos, perante os sócios. Deste modo, no campo de eficácia desse
dever para com outros sujeitos—terceiros (relativamente aos quais os administradores não tinham nenhuma
ligação específica) —desponta com clareza uma natureza distinta: já não se nos depara uma adstrição
meramente relacional (principalmente com a sociedade), mas erga omnes, de feição delitual. Isto,
directamente por força da norma de protecção de interesses alheios que o art. 186 n.° 2 consubstancia (mas
também à semelhança, em geral, dos deveres no tráfico aquilianos).

A dupla natureza que os deveres previstos no art. 186 n.° 2 podem abstractamente apresentar não prejudica.
O art. 186 n.° 2 confere relevância delitual às condutas dos administradores também perante a sociedade e os
sócios. Surgirá nesse âmbito uma situação de concurso entre a responsabilidade aquiliana, disciplinada pelo
art. 186 n.° 2 como disposição de protecção, e uma responsabilidade por violação de deveres emergentes de
uma relação especial(41). (Claro que os deveres em que se desdobra a fidelidade são muito mais estritos
perante a sociedade, porque justificam uma imputação dos danos por ela sofridos aos administradores
independentemente da ocorrência de uma insolvência, enquanto perante terceiros tal apenas se verifica se
esta insolvência ocorreu. Por outro lado, perante a sociedade, o limiar da responsabilidade por causação
culposa da insolvência não requer culpa grave, bastando-se com qualquer forma de culpa.)

Importa também ter presente que as diversas situações prefiguradas pelo legislador nos n.os 2 e 3 do art. 186
não são entre si estanques. Temos antes uma justaposição de tipos, que podem revelar, como é próprio,
contornos imprecisos, consentindo, entre si, sobreposições. Alguns deles apresentam, por assim dizer,
características mistas, pois são susceptíveis de corresponder, tanto a desrespeitos do dever de fidelidade,
como do dever de boa administração.

Genericamente, a lei mostrou-se muito sensível à actividade em proveito pessoal ou, em todo o caso, à
conduta dos administradores que não se orientou pela prossecução do interesse social e representa um desvio
no exercício dos respectivos poderes, particularmente se essa conduta foi desfavorável à empresa. Proíbem-se
comportamentos que contrariam claramente o dever de fidelidade como a concorrência com a sociedade, a
actuação consciente em prejuízo da sociedade e a apropriação de oportunidades de negócio que pertencem à
sociedade e não ao administrador.

Nalguns casos, como se verifica, prescinde-se da prova de um prejuízo directo e, deste modo, abstrai-se da
causalidade entre o comportamento e a insolvência. Assim ocorre quando o administrador tiver disposto dos
bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiro nos termos da já citada al. d) do n.° 2.

O género ou o grau de culpa nas diversas situações também não é o mesmo. Em muitas hipóteses, é o dolo que
prevalece. Deste modo, quando está em causa a destruição, danificação, inutilização, ocultação ou
desaparecimento do património do devedor, no todo ou em parte, nos termos da al. a) do n.° 2; ou se se san-
ciona, como na al. b), o artifício da criação ou agravamento do passivo ou, então, a redução do activo do
devedor; o dolo corresponderá também, em princípio, aos casos de celebração de negócios em proveito do
administrador ou de terceiros, ofendendo com isso o interesse social ou causando prejuízo à sociedade. O dolo
é, aliás, a modalidade de culpa paradigmaticamente presente na violação dos deveres de fidelidade.

No entanto, a negligência pode também surgir: por exemplo, no atrás referido caso da compra de mercadorias
a crédito, com revenda por um preço bastante inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação, basta
haver uma simples culpa(42). Ela será mesmo muito frequente, por exemplo, no caso de não manutenção de
contabilidade organizada ou de não apresentação à insolvência (cfr. al. h) do n.° 2 e al. a) do n.° 3).

Tudo depende, contudo, dos pontos de referência pertinentes. Assim, para o efeito da al. g), parece que o
dolo será a forma de culpa correspondente à prossecução pelo administrador, no interesse pessoal ou de
terceiro, de uma exploração deficitária, mas não se exige o conhecimento de que esta conduta conduziria com
grande probabilidade à insolvência, podendo haver simples desconhecimento negligente quanto à ocasionação
provável da insolvência.

Há, porém, soluções do legislador que parecem desequilibradas, pecando por excesso. Assim, na hipótese da
al. c) — revenda de mercadorias compradas a crédito com prejuízo, antes de satisfeito o preço — teria sido
bem melhor que a lei se tivesse limitado a admitir uma presunção ilidível de culpa, em vez de rejeitar
qualquer prova em contrário(43).

A inadmissibilidade dessa prova não é todavia (em geral) excessiva, enquanto puder justificar-se como forma
enérgica de dissuadir ou prevenir condutas indesejáveis que, segundo a experiência, são susceptíveis de
ocasionar insolvências e estão com elas intimamente ligadas. É isso que justifica a declaração da insolvência
como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta censurada e a concreta insolvência
ocorrida (vedando a prova em contrário ou aceitando que a superveniência de elementos fortuitos que co-
determinaram a insolvência não exclui essa insolvência culposa). Como se apontou, a causalidade
fundamentante (haftungsbegründend) da responsabilidade ex vi do art. 186 n.° 2 não exclui a presença de
elementos fortuitos. Podem concorrer a culpa e o acaso. Visando uma disposição de protecção prevenir
abstractamente um perigo, tal resulta facilmente compreensível. Aliás, a doutrina dos deveres no tráfico
também o conhece: a produção ilícita e culposa de um risco (de dano) impede em princípio o seu autor de
invocar as circunstâncias fortuitas que possam ter sobrevindo e concorrido para a produção do resultado
danoso (na medida em que o dever visava evitar a produção, pela conjugação do risco proibido com essas
circunstâncias, da lesão).

Em qualquer caso: as situações de insolvência culposa indicadas pelo legislador devem ser interpretadas com
ponderação, de modo a alcançar um efeito responsabilizante equilibrado que, sem deixar de dissuadir
condutas manifestamente injustificáveis dos administradores e de ordenar a reparação dos prejuízos por elas
causadas, respeite por outro lado a autonomia decisória que têm de ter e o cenário de risco em que muitas
vezes a actividade de administração se processa e se tem de desejar possa desenvolver-se (sem risco de
responsabilidade)(44).

Pelo que os n.os 2 e 3 do art. 186 concretizam o art. 64 do CSC, estabelecendo positivamente um conjunto de
deveres (tidos como típica e genericamente) preventivos de insolvências. Pode ser que o conteúdo inovatório
do art. 186 face a esse outro preceito seja, neste aspecto, considerado mais escasso do que se poderia supor.
Ele transparece no entanto nitidamente quando, no n.° 2, se estabelece uma presunção inilidível da culpa dos
administradores. Este tipo de presunção é estranho à disciplina geral da responsabilidade civil dos
administradores. Dir-se-ia que o escopo preventivo se sobrepôs aqui às finalidades reparatória e sancionatória
da responsabilidade civil. O que não deixa de causar alguma perplexidade.

Por último: perante uma situação de insolvência, o dano susceptível de ser ressarcido pelos administradores
varia em função do concreto comportamento que o causou e de quem se apresenta atingido. Assim, quanto
aos credores, a causação da insolvência conduz à indemnização daquela porção dos seus créditos que não foi
satisfeita, mas que o teria sido se a administração tivesse sido diligente e a insolvência não sobreviesse.
Mutatis mutandis, quanto ao agravamento da insolvência.

Há que destrinçar entre os credores que já o eram no momento da violação do dever que conduziu à
insolvência e os novos credores (posteriores à insolvência). Os antigos só podem reclamar o prejuízo
correspondente à diminuição do valor do seu crédito pela diferença entre o seu montante e a respectiva quota
na insolvência (o que equivalerá sensivelmente ao valor que não foi possível realizar).

Já os credores posteriores, ou seja, aqueles sujeitos cujos créditos surgiram por via de contratos celebrados
depois da altura em que a insolvência se produziu, poderão reclamar dos administradores o dano de confiança
que resultou de terem contratado com uma empresa insolvente, contrato que eles não teriam celebrado acaso
tivessem tido conhecimento dessa circunstância. Mas nesta última situação, a adstrição violada não é
nenhuma daquelas que o art. 186 reconhece e impõe (visando evitar a insolvência). Consiste antes na
infracção de um dever de, verificada a insolvência, não contratar por parte dos administradores, quando é
certo que a sociedade não pode honrar os seus compromissos (pelo menos sem alertar disso a outra parte). A
integral reparação do prejuízo do crédito frustrado dependerá, em princípio, do conhecimento e, mesmo, do
dolo dos administradores. Ultrapassado que está o âmbito do art. 78 do CSC, uma responsabilidade por
negligência ao abrigo do art. 79 desse diploma requer em princípio, como se disse, circunstâncias particulares
(nomeadamente, uma relação especial que a justifique, por exemplo uma ligação corrente de negócios(45)).

10. O caso específico da não apresentação à insolvência

Menção autónoma merece a responsabilidade por violação do dever de apresentação à insolvência. Espelha-se
aqui uma ideia básica: a de que não deve ser consentido a uma empresa insolvente continuar a participar
activamente na vida económica, sob pena de daí resultarem graves prejuízos para os que nela intervêm.
Também em vista do cumprimento desse dever, o administrador deve observar com diligência o curso da
empresa.

O dever de apresentação à insolvência tem, nos termos do art. 18 do CIRE, sessenta dias para ser cumprido. É
um lapso de tempo que pode permitir ao administrador as diligências adequadas a impedir um processo de
insolvência.

A responsabilidade do administrador decorre, nos termos atrás recordados, do disposto no art. 186 n.° 3, a).
Na realidade, o art. 18 tem carácter de disposição de protecção, o que significa que a sua infracção implicaria
sempre responsabilidade ao abrigo do art. 483 n.° 1, 2.ª modalidade, do CC. Estão abrangidos danos
económicos puros: a sua tutela delitual, mesmo em caso de negligência, é sempre possível, quando a lei o
preveja, ao abrigo desta situação de responsabilidade. Não se imputam ao administrador os prejuízos
derivados da causação, por ele, de uma insolvência, mas apenas os danos advenientes da omissão ou do
retardamento da apresentação à insolvência. São essencialmente os prejuízos derivados para os credores da
diminuição do património resultante da não apresentação (atempada) à insolvência e, portanto, da diminui-
ção daquela quota na massa da insolvência que a cada credor caberia se o dever tivesse sido cumprido. Pela
sua natureza, o cômputo desse dano requererá que o processo de insolvência se encontre em suficiente estado
de adiantamento.

Também aqui importa distinguir entre os credores que o eram ao tempo do surgimento do dever de
apresentação à insolvência daqueloutros que se tornaram credores quando a insolvência já ocorrera e o dever
de apresentação se encontrava (já nessa altura) violado, sujeitos que não teriam contratado se soubessem da
insolvência.

O administrador que não requereu a insolvência e se predispõe a contratar com terceiro, ocultando a situação
da sociedade e sabendo perfeitamente não estar esta em condições de cumprir as obrigações assumidas devido
à sua situação económico-financeira, responde certamente, por dolo, pelo dano da celebração de um contrato
prejudicial (dano de contratar). Mas este dolo carece de ser provado: o art. 186 n.° 3 apenas estabelece a
presunção de culpa grave. Uma responsabilidade por mera negligência parece, face ao art. 79 do CSC,
depender de circunstâncias especiais. Contudo, a situação prevista no art. 186 n.° 3 conduzirá também a uma
responsabilidade pelo aludido dano de ter contratado como consequência da infracção desse dever em caso de
negligência grosseira.

Diferente é a situação do administrador perante a sociedade e o dano que ela possa sofrer pelo protelamento
da apresentação à insolvência. Aqui vigora a regra geral do art. 72 do CSC, segundo a qual a simples culpa
basta para fundar a obrigação de indemnizar.

11. Conclusão

O panorama da responsabilidade dos administradores na insolvência que se esboçou apresenta-se


indiscutivelmente complexo e difícil no plano técnico-jurídico, implicando a articulação entre regras gerais e
especiais. Importante, em todo o caso, é assegurar a eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos
administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências. De modo a prevenir e
combater comportamentos de repercussões danosas muito amplas e económico-social-mente muito sensíveis.

Na interpretação que demos, o CIRE acaba por prover o sistema jurídico de uma disciplina substantiva da
imputação dos danos aos administradores em caso de insolvência que é útil. Contribuirá sem dúvida sem
dúvida para a consciencialização dos seus deveres, particularmente das exigências do dever de fidelidade.
Pode nessa medida ajudar a credibilizar as funções e o estatuto da administração das sociedades: o
reconhecimento e a dignificação de qualquer estatuto implica a inerente responsabilidade. Favorece-se ainda
a previsibilidade e a rapidez da ponderação judicial dos comportamentos sob apreciação. Propicia-se nessa
medida uma tutela mais ágil dos lesados com a insolvência.

Só a experiência permitirá comprovar em que medida este regime é idóneo e suficiente. Reflecti-la
criticamente constitui, no futuro, uma missão indeclinável a que a doutrina e os profissionais do foro estão
convocados.

Porto, Lisboa, Novembro de 2005

Notas:

(*) Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito de Lisboa e na Universidade Católica Portuguesa.

(1) A partir de agora, abreviadamente designado por CSC.

(2) Doravante, por comodidade de expressão, CIRE. Qualquer disposição que seja indicada no texto
desacompanhada da indicação do diploma de que é originária entende-se como pertencente a este texto
normativo.

(3) Daqui em diante, CC.

(4) Cfr. L. MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (anotado), 2.ª edição,
Coimbra, 2005, n.° 2 ao art. 22.
Também PEDRO DE ALBUQUERQUE manifesta dificuldade de compreensão pela restrição da responsabilidade
ao dolo. Mas admite depois a possibilidade de o campo do preceito ser afinal limitado: cfr. Declaração da
situação de insolvência, O Direito 137 (2005), III, 524-525. (Pelo que diremos a seguir, cremos poder
demonstrar o inteiro acerto desta última sensibilidade do autor, embora com base em razões diversas
daquelas que anuncia em traços gerais.)

(5) Contra, PEDRO DE ALBUQUERQUE, Declaração da situação de insolvência cit., 524 n.° 61, a pretexto de
estarem superadas as orientações interpretativas que amarravam o juiz à letra da lei. O problema convocado
por esta opinião é amplo e não pode aqui ser resolvido. Diremos apenas que, em matéria de interpretação da
lei, nos parece muito difícil abdicar do critério hermenêutico constante do referido art. 9 n.° 2 do CC, e isto,
qualquer que seja o valor exacto a atribuir à respectiva positivação. (Note-se que, como para o autor em
referência, está apenas em causa a interpretação da lei; não o plano do desenvolvimento ou da superação
dessa mesma lei, assim como a admissão de outras fontes da juridicidade além dela, possibilidades estas que
pela nossa parte subscrevemos —mesmo num sistema que, como o nosso, tem uma base, principalmente, legal
—, mas que pensamos deverem destrinçar-se da interpretação da lei em nome da clareza e limpidez
metodológicas.)
(6) Não podemos aqui demonstrá-lo exaustivamente. Para a concepção subjacente, remete-se para o nosso
Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, 2003, 270 ss, 287 ss, 474 ss, 742 ss, 752 ss, e passim.
Via de regra, a responsabilidade no âmbito de relações especiais é mais severa do que aquela que se afirma
quando não havia qualquer ligação entre lesado e lesante.

(7) Mereceria certamente indagação saber em que medida o art. 22 se inspirou no § 826 do BGB. Sobre as
razões que vemos para esta associação, cfr. o nosso Uma “Terceira Via” no Direito da Responsabilidade Civil?
O problema da imputação dos danos causados a terceiros por auditores de sociedades, Coimbra, 1997, 48 ss.

(8) Este é também um quadro de referência básico para analisar a responsabilidade da sociedade devedora
perante os trabalhadores em caso de pedido infundado de insolvência.

(9) Desenvolvimentos no nosso Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, 161 ss, esp. 173 ss.

(10) Nesse sentido já o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., nomeadamente 173, n.° 120,
e 255, n.° 231; mais recentemente, veja-se, com muita pertinência e interesse, CATARINA PIRES CORDEIRO,
Algumas considerações críticas sobre a responsabilidade civil dos administradores perante os accionistas no
ordenamento jurídico português, O Direito 137 (2005), I, 81 ss, em especial 127 ss.

(11) Um indício nesse sentido poderia ser a conduta do credor de procurar entorpecer depois o andamento do
processo de insolvência com vista a obter a satisfação separada do crédito que se arroga.

(12) Pode haver lugar a uma responsabilidade pela confiança. Quanto aos seus requisitos, remetemos para o
nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., particularmente 381 ss e 583 ss.

(13) Sobre o tema, cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, A Acção Executiva Singular, Lisboa, 2004, 416, PAULA COSTA E
SILVA, A Reforma da Acção Executiva, 2.ª edição, Coimbra, 2003, 69-70, e CATARINA PIRES CORDEIRO, A
responsabilidade do exequente na nova acção executiva, Cadernos de Direito Privado, 10 (Abril/Junho 2005),
13 ss.

(14) Em tese, parece pertinente admitir que o controlo da lei sobre a conduta processual depois de instaurada
a acção possa ser mais apertado (e cubra mais facilmente condutas negligentes) do que a sindicância da
decisão (em si mesma) de intentar uma acção.

(15) Cfr., em particular, os arts. 126-A ss do CPEREF, introduzidos pelo Decreto-Lei n.° 315/98, de 20 de
Outubro. Para uma resenha deste diploma à luz da evolução do direito falimentar, MENEZES CORDEIRO,
Manual de Direito Comercial, I, Coimbra, 2001, 338 ss.
Uma apresentação genérica do CIRE, que o veio substituir, encontra-se por sua vez em COUTINHO DE ABREU,
Curso de Direito Comercial, I, 5.ª edição, Coimbra, 2004, 322 ss. Veja-se também o conjunto de estudos, de
autores vários, publicados na Themis, em edição especial sobre o “Novo Direito da Insolvência”, Coimbra,
2005.

(16) Cfr. o art. 126-C, também introduzido pelo Decreto-Lei n.° 315/98, de 20 de Outubro. Sobre estes
preceitos do CPEREF, pode ver-se ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os Efeitos Substantivos da Falência, Porto, 2000, 142 ss.
Com utilidade ainda para a respectiva interpretação, pese embora perante dados legislativos anteriores,
CATARINA SERRA, Falências Derivadas e Âmbito Subjectivo da Falência, Coimbra, 1999, 93 ss, e passim.

(17) Cfr. o n.° 40 do Preâmbulo do Decreto-Lei n.° 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE.

(18) O incidente pode ser pleno ou limitado (cfr., respectivamente, os arts. 188 ss, e 191 do CIRE). Está em
mente o pleno, tendo em especial presente que o seu regime se aplica, com adaptações, ao limitado.
Sobre este incidente em geral, cfr. LUÍS CARVALHO FERNANDES, A qualificação da insolvência e a
administração da massa insolvente pelo devedor, Themis (Novo Direito da Insolvência), edição especial,
Coimbra, 2005, 81 ss (também com referência — pp. 94 e 95, e as respectivas notas — às situações de
insolvência culposa). Com tom crítico em relação aos “efeitos eventuais” da insolvência (resultantes da sua
qualificação como culposa), cfr. RUI PINTO DUARTE, Efeitos da declaração de insolvência quanto à pessoa do
devedor, Themis (Novo Direito da Insolvência), edição especial, Coimbra, 2005, 143 ss.

(19) Isso mesmo é assumido no n.° 40 do aludido Preâmbulo.

(20) A fortiori, temos que a qualificação como culposa ou fortuita da insolvência não se estende aos pedidos
de responsabilidade civil não enxertados no processo de insolvência.

(21) A terminologia no que toca à relação entre os interesses e uma pluralidade de sujeitos é insegura e
discrepante. Cfr., por exemplo, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil/Teoria Geral, III, (Relações e Situações
Jurídicas), Coimbra, 2002, 106 ss, 115-116, e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A Legitimidade Popular na Tutela
dos Interesses Difusos, Lisboa, 2003, 44 ss, e passim.

(22) Cfr. o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil cit., 254 s, n.° 231, e 172-173, n.° 121.
(23) Vide, a propósito, ELISABETE GOMES RAMOS, Responsabilidade Civil dos Administradores e Directores de
Sociedades Anónimas perante os Credores Sociais, Coimbra, 2002, 248-249.

(24) Cfr. o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil cit., em especial 254 s, n.° 231, e 171-173, n.°
121. Vide ainda CATARINA PIRES CORDEIRO, Algumas considerações críticas sobre a responsabilidade civil dos
administradores perante os accionistas, cit., 81 ss e 127 ss.

(25) Mas a acção de sócios e trabalhadores está, face ao art. 82 do CIRE, fora do processo de insolvência
(enquanto não estiverem em causa simples créditos deles contra a sociedade), pelo que não nos deteremos
nela em particular.

(26) Para a explicitação do que não pode ir agora senão apontado, cfr., conquanto num outro contexto, o
nosso Uma “Terceira Via” no Direito da Responsabilidade Civil?, cit., 55 ss, 98 ss.

[(*) Nota de actualização: as considerações seguintes valem, com as devidas adaptações, perante a actual
redacção do preceito, introduzido pelo Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de 29 de Março.]

(27) Com uma opinião mais restritiva da função do preceito, se bem vemos, MENEZES CORDEIRO, Da
Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Comerciais, Lisboa, 1996, nomeadamente 496-497 e
521-523.

(28) Com pormenor, sobre esta regra, JOÃO SOARES DA SILVA, Responsabilidade civil dos administradores: os
deveres gerais e a corporate governance, ROA 57 (1997), 624 ss, e PEDRO CAETANO NUNES, Responsabilidade
Civil dos Administradores perante os Accionistas, Coimbra, 2001, em especial 23 ss.

[(*) Nota de actualização: a actual redacção do art. 71 n.° 2, introduzida pelo Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de
29 de Março, contém uma formulação desta regra. As observações seguintes são-lhe conformes.]

(29) Entre essas práticas conta-se certamente a observância dos deveres legais e contratuais que impendem
sobre a sociedade, o accionar das pretensões da sociedade contra terceiros ou a obtenção de garantias
suficientes do cumprimento de terceiros.

(30) Sobre este, cfr., com muito interesse, PEDRO CAETANO NUNES, Concorrência e oportunidades de negócio
societárias—estudo comparativo sobre o dever de lealdade dos administradores de sociedades anónimas,
inédito, Lisboa, 2004.
Os deveres dos administradores refraccionam naturalmente a temática, mais ampla, dos poderes, funções, e
respectivo equilíbrio no seio das sociedades comerciais. Uma panorâmica desta problemática em Portugal
proporcionou-a PAULO CÂMARA em O Governo das Sociedades em Portugal: uma Introdução, in Cadernos do
Mercado de Valores Mobiliários, 12 (Dezembro de 2001), 45 ss.

[(*) Nota de actualização: acerca do dever de fidelidade, cf. entretanto o ar. 64, n.° 1, b), na relação dada
pelo Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de 29 de Março.]

(31) Não é pensável uma relação obrigacional pela qual a lealdade constitua o objecto de um dever de prestar
autónomo. Um dever de lealdade pode porém ser instrumental relativamente ao fim do contrato visado pelo
cumprimento de outros deveres. No nosso caso, ele modela a própria prestação típica da relação de
administração, não lhe é meramente justaposto. Vide, a este propósito e a respeito das relações ditas de
confiança, o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., em especial 474 ss, 544 ss, 554 s, n.°
584, 557, n.° 590.

(32) Não é viável alargarmo-nos: veja-se, com desenvolvimento, o nosso Uma “Terceira Via” no Direito da
Responsabilidade Civil?, cit., 36 ss e 45 ss, e o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., 238 ss
e 251 ss.

(33) Cfr. o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., 238 ss e 251 ss.

(34) Sobre este ponto, entre nós, em especial, SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos,
Recomendações e Informações, Coimbra, 1989, 237 ss; pode ver-se ainda o nosso Teoria da Confiança e
Responsabilidade Civil, cit., 254 ss.

(35) Caso contrário, aplicar-se-iam autonomamente sem necessidade do recurso a outra norma que lhes
atribuísse relevância (ordinariamente, ao art. 483 n.° 1, 2.ª parte, do CC). Assim aconteceria, por exemplo, se
o art. 186 do CIRE estabelecesse a obrigação de indemnizar nas situações aí previstas; não seria necessário,
para conferir eficácia responsabilizadora à respectiva violação, nem o art. 78 n.° 1 do CSC, nem o art. 483 n.°
1 do CC.

(36) Vide, com especial interesse, os arts. 227 e 228 do Código Penal. Aceitando este critério, apontado por
CANARIS, cfr., entre nós, SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos, cit., 253 ss.

(37) Sobre a diferença entre situação de responsabilidade, ilicitude e culpa, assim como acerca da
conveniência de destrinçar as respectivas funções, remeta-se, quanto ao nosso entendimento, para Contrato e
Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, 129 ss e 136 s, n.° 273.

(38) Coloca-se, por exemplo a dúvida sobre se a palavra “culpa” do n.° 1 do art. 186 não abrangerá também a
ilicitude como comportamento objectivamente contrário ao direito. Teríamos então uma noção de culpa muito
alargada, nos moldes do conteúdo que ela assume, nomeadamente, para efeito de distribuição do ónus da
prova em sede de responsabilidade contratual ou, ainda, em certos sectores da responsabilidade aquiliana,
onde o conteúdo de “culpa” tem, de facto, uma amplitude muito grande, susceptível de abarcar a ilicitude
(cfr., com mais pormenor, o nosso Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, 188 ss). Co-
respectivamente, a causação e o agravamento da insolvência seriam essencialmente a situação de
responsabilidade, indiciando logo a ilicitude, mas permitindo um juízo autónomo acerca dela no caso de
ocorrerem causas de justificação.
Mas pode pretender-se antes que a causação ou o agravamento da insolvência não se limitam, no n.° 1 do art.
186, a consubstanciar a situação de responsabilidade, representando (além disso) as formas básicas da própria
ilicitude. Nesse entendimento, a culpa cingir-se-ia efectivamente à apreciação da censurabilidade subjectiva
do comportamento de alguém.
No entanto, a possibilidade da ocorrência de causas de justificação relevantes no n.° 1 aponta para considerar
que o ocasionar ou agravar de uma insolvência corresponde efectivamente a uma situação de responsabilidade
(naturalmente indiciadora da ilicitude, mas admitindo prova que a exclua).
Já no n.° 2, atendendo a que se consagra uma presunção inilidível de culpa, excluindo-se a relevância de
causas de justificação, parece que se descrevem comportamentos considerados sempre, sem reserva, como
ilícitos. A culpa (agora presumida) restringir-se-á, concomitantemente, à censurabilidade. O que não
representa uma incongruência com a técnica do n.° 1, desde que se admita que a situação de
responsabilidade básica aí prevista — a causação da insolvência ou o seu agravamento — indicia a ilicitude,
estando reservada a culpa, também aí, à censurabilidade subjectiva do comportamento.
As concretizações do n.° 2 representarão no fundo tipos de ilícito secundários, complementares e não
autónomos do ilícito indiciado pela situação de responsabilidade do n.° 1. Não anulam este último, antes
preenchem-no. Têm-no necessariamente como referência, porque só há ilicitude para efeito do n.° 2 na
medida em que tenha sobrevindo a insolvência ou o seu agravamento, ou seja, pela ponderação do resultado
que o n.° 1 aponta.
Esta interpretação salvaguarda que, quer no n.° 1, quer no n.° 2, a noção de culpa é a mesma, cingida à
censura pessoal. Pelo que a especificidade do n.° 2 no que toca à culpa será então essencialmente a de que aí
o legislador cortou cerce a possibilidade de desculpação verificados aqueles comportamentos descritos. Com o
que reforça o vigor e a eficácia preventiva da insolvência das normas proibitivas e prescritivas do n.° 2.
De todo o modo, há uma dessintonia embaraçosa que permanece. É que enquanto o n.° 1 exige culpa grave
para a afirmação de uma insolvência culposa, o n.° 2 faz presumir (inilidivelmente) a culpa tout court, sendo
que o n.° 3 já volta a referir-se a uma presunção (ilidível) de culpa grave. Ora, parece que a inferência do n.°
2 terá de ser entendida como de uma culpa grave, sob pena de não podermos aplicar de plano o n.° 1 —
recorde--se que o n.° 2 não é uma disposição autónoma, que por si só permita as consequências da insolvência
culposa — e obrigarmos o juiz a, presumida a culpa, averiguar se ela é grave ou não, o que representaria uma
destruição prática dos efeitos da presunção. A presunção de culpa do art. 186 n.° 2 é, assim, de culpa grave.

(39) Cfr. o já citado art. 126-A do CPEREF. De notar que há um reforço da tutela resultante do alargamento do
prazo dentro do qual estas condutas são relevantes (de dois para três anos, segundo o actual direito). Por
outro lado, é hoje inequívoco que o n.° 2 consagra presunções iuris et de iure, enquanto o anterior direito não
era a esse respeito líquido, permitindo sustentar que, de harmonia com os princípios gerais, as presunções
previstas eram ilidíveis: vide L. CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código dos Processos Especiais de
Recuperação de Empresa e de Falência Anotado, Lisboa, 1999, 348 n.° 3.

(40) Sobre estas duas acepções da causalidade, pode ver-se o nosso Contrato e Deveres de Protecção, cit., 191
ss.

(41) Sobre o incumprimento das obrigações como delito, pode ver-se o nosso Teoria da Confiança e
Responsabilidade Civil, cit., 284 s, n.° 263, e 558 s.

(42) A menos que se entenda que a hipótese da al. c) deve na realidade ser interpretada no sentido da
aquisição premeditada de mercadorias a crédito, (antecipadamente) sem disposição de cumprir o contrato de
financiamento.

(43) Veja-se contudo a nota anterior.

(44) A margem para uma interpretação nestes moldes (aliás exigida pelo art. 9 n.° 3 do CC) varia,
naturalmente, em função da situação de insolvência que esteja em causa. Para um exemplo, com
preocupações que acompanhamos em grande medida, cfr. RUI PINTO DUARTE, Efeitos da declaração, cit., 144-
145.

(45) Sobre esta figura e o seu enquadramento dogmático pode ver-se o nosso Teoria da Confiança e
Responsabilidade Civil cit., 574 ss.
Topo

A crise está a atingir já


fortemente as empresas
e os particulares, estando
a ser registados níveis de
insolvência históricos. O
que leva as empresas à
falência, os sectores mais
atingidos e os mais
fiáveis e as soluções que
podem evitar a ruptura
financeira.
Textos Clementina Fonseca cfonseca@ccile.org
Fotos: DR
43
gran tema grande tema
Os efeitos da crise economica
e das medidas de austeridade
estao a fazer-se
sentir de
forma intensa este ano, e nao
so no ambito da actividade
empresarial, como tambem junto dos
particulares. A comprova-lo
estao os
dados do numero de insolvencias relativo
ao primeiro semestre do ano, que
indicam um aumento substancial dos
portugueses insolventes. Raul Gonzalez,
presidente da Associacao Portuguesa
dos Administradores Judiciais
(APAJ), salienta que os casos das pessoas
singulares representa metade dos
processos de insolvencia decretados,
nesse periodo, e que foram os principais
responsaveis pelo “salto” de 18%
dos cerca de quase cinco mil casos totais
registados ate Junho. Sem dados
oficiais sobre o numero de insolventes
singulares nos anos anteriores, a APAJ
estima, contudo, que este numero possa
ter duplicado no primeiro semestre
do ano, em especial a partir de Abril,
aumentando assim o ritmo das insolvencias
em Portugal. Entre as empresas,
o crescimento tera sido de 10%, o que,
tendo em conta a conjuntura actual, e
considerado normal.
Foi, sobretudo, o “aumento dramatico”
no segmento dos particulares e
empresas em nome individual que tera
contribuido, assim, para o crescimento
exponencial das insolvencias, ja que no
final de 2008 havia pouco mais de cinco
mil casos e em 2010 cerca de 9.200
casos no total, o que representa quase
o dobro em dois anos, salienta ainda o
mesmo responsavel, citando os dados
da Direccao-Geral
da Politica de Justica
(DGPJ).
De facto, ha oito trimestres consecutivos
que o numero de insolvencias esta
a aumentar, tendo alcancado no segundo
trimestre deste ano um “recorde
historico” de 2.677 novos processos
registados no pais, salienta a Credito y
Caucion, que destaca aqui o aumento
de 34% dos processos de pessoas singulares
face ao primeiro trimestre do
ano (ver quadro na pag. seg.).
“E preocupante esta situacao. Tudo
aponta para que, nesta conjuntura,
mais familias entrem em incumprimento,
dado os inumeros creditos que
contrataram”, sublinha Raul Gonzalez,
adiantando que as insolvencias dos
particulares decorrem, algumas vezes,
do proprio processo de falencia das
empresas, que arrasta dezenas ou centenas
de pessoas para o desemprego.
So atraves do pedido de insolvencia
e que os particulares podem solicitar
um plano de pagamento aos credores
a cinco anos, na medida do seu rendimento
disponivel, obtendo depois a
exoneracao do passivo restante.
Por outro lado, nas situacoes de despedimento,
as pessoas singulares podem
recorrer ao subsidio de desemprego
e ao fundo de garantia salarial.
Esta situacao tem impacto tambem,
indirectamente, na actividade das empresas,
sobretudo daquelas cujas vendas
dependem muito do cliente final,
afectado no seu poder de compra.
A compra de carros novos tem registado
uma quebra superior aos 20%
este ano, sendo este um dos sinais mais
evidentes da forte retraccao do consumo
das familias que se verifica.
Os relatorios do Banco de Portugal
apontam para um agravamento, este
ano, do consumo das familias portuguesas
e do credito malparado junto
da banca. Em Maio, o credito em cobranca
duvidosa na habitacao cresceu
20 milhoes de euros, para superar os
mil milhoes, enquanto, no consumo,
o credito malparado subiu 12 milhoes
de euros, para um maximo historico
de 1,34 mil milhoes.
No total, dos emprestimos concedidos
pela banca as familias, mais de 3%
esta qualificado como “malparado”, o
que corresponde a 4,3 mil milhoes de
euros. A pior situacao surge no credito
ao consumo, que ronda 8% dos
contratos, enquanto, na habitacao, a
percentagem de incumprimento ainda
esta abaixo dos 2%.
Os cortes salariais, a subida de impostos
e o aumento continuado do
desemprego, resultantes do actual contexto
economico, estao na origem das
crescentes dificuldades das familias
em cumprir com os creditos contraidos
junto da banca.
Nuno Francisco, director-geral
da
Cesce Portugal, defende uma aposta
no arrendamento, como forma de diminuir
os custos das familias com o
credito a habitacao e, assim, dar uma
folga ao orcamento familiar e ate permitir
a poupanca. E relembra que o
corte no subsidio de Natal deste ano
vai complicar ainda mais as contas que
os portugueses tem de fazer para chegar
ao fim do mes.
Dificuldades de tesouraria “asfixiam”
PME
A situacao e identica entre as empresas,
onde o credito malparado voltou a
subir em Maio e ultrapassou os 5% do
contratado junto da banca.
Desta forma, a banca continua a restringir
a concessao de credito, tendo
em Maio sido concedidos emprestimos
no valor global de 4,86 mil milhoes de
euros aos particulares e as empresas,
menos 7,6% do que no periodo homologo
de 2010, ainda de acordo com os
dados do Banco de Portugal.
As restricoes ao financiamento, especialmente
o bancario, sao um dos
principais constrangimentos a actividade
das empresas, afectando a
sua tesouraria e, consequentemente,
impedindo-as
de fazer face aos compromissos
para com terceiros, afirma
Raul Gonzalez. Paulo Morais, director
da Credito y Caucion em Portugal e
Brasil, confirma que as dificuldades
O financiamento
bancário e os
atrasos nos
pagamentos do
Estado estão a
afectar a tesouraria
das empresas
44 actualidad€ s e t e m b r o d e 2 0 1 1 grande tema gran tema
de tesouraria representam, sobretudo
para as PME, “um dos factores com
maior responsabilidade nos processos
de insolvencia judicial”. Por outro
lado, enumera “a fragilidade da actual
conjuntura macroeconomica do
pais, bem como a entrada da troika
em Portugal e o reforco das politicas
de austeridade” como razoes para a
dificil sobrevivencia das empresas.
Outros constrangimentos passam
pela diminuicao do investimento publico
e pela demora nos pagamentos
do Estado as empresas, que afectam,
nomeadamente, as construtoras (ver
caixa na pag. 46).
Por seu turno, Nuno Francisco adverte
tambem para os efeitos da “descida
do rating do Estado e das
grandes empresas, que vai
prejudicar os seus clientes
e fornecedores, afectando
toda a cadeia de negocio”.
Este consultor teme que
muitas empresas ja nem
reabram as suas portas a
seguir ao Verao, aproveitando
a pausa das ferias
para encerrar.
Ja Catarina Tavares, socia
da BPO Advogados,
considera que “com o
agravamento fiscal, designadamente
o aumento do IVA (perspectivado) e
dos impostos de rendimento, muitas
empresas nao conseguirao com a sua
margem de negocio fazer face a todos
os custos”.
E, tendo em conta os dados da Credito
y Caucion sobre os processos de insolvencia
nos primeiros seis meses do ano,
que “registam um aumento de 71% face
ao periodo homologo de 2010”, Paulo
Morais acredita que “a situacao possa
piorar no segundo semestre deste ano,
e inclusive durante o proximo ano, nos
varios sectores de actividade”. Todavia,
o consultor salienta que as empresas
tem mecanismos de prevencao. “Nos
nao estamos pessimistas. Achamos que
o clima economico se vai deteriorar ate
ao final do ano, mas acreditamos que
as empresas se devem precaver contra o
incumprimento, e nos, as seguradoras
de credito, podemos dar uma ‘almofada’
e avisar ainda contra o incumprimento”,
salienta Paulo Morais.
Insolvências passam fronteiras
Olhando para os dados das insolvencias
na primeira metade deste ano,
verifica-se
que o sector da construcao
e dos materiais de construcao e o mais
afectado, sendo responsavel por mais
de um quarto das 2.277 falencias decretadas
entre empresas, de acordo com
os dados da Cosec. Segue-se
o sector do
comercio a retalho ou por grosso. Ainda
assim, saliente-se
que o sector com
maior taxa de crescimento de insolvencias
em 2011 (mais 77%) foi o das maquinas
e ferramentas.
Por regioes, o Porto lidera o numero
de insolvencias entre empresas,
seguindo-se
Lisboa e depois Braga,
enquanto que, pela positiva, se destacam
os distritos de Faro e Acores,
regioes que apresentam “uma forte
dinamica turistica”, adianta o levantamento
feito pela Cosec.
No sector da construcao, ha tambem
insolvencias transnacionais,
abrangendo empresas portuguesas
com operacoes em Espanha e Marrocos,
por exemplo.
No entanto, Nuno Francisco estima
que as falencias no sector da construcao
civil estejam a estabilizar e que
o grosso dos casos ja tenha ocorrido.
Pelo contrario, o pequeno comercio
sera um dos que sera mais afectado
nos proximos meses, devido a esperada
retraccao no consumo privado (ver
caixa na pag. seg.).
Mas os sectores que estao mal “serao
todos os que dependem de muita mao-de-obra,
de capital e de credito bancario”,
resume Raul Gonzalez, que considera
que para determinar com exactidao
o peso de cada sector na balanca
das insolvencias se deveria apurar tambem
os respectivos creditos em divida
Insolvências aceleram no segundo trimestre
Fonte: Crédito y Caución
s e t e m b r o d e 2 0 1 1 actualidad€ 45
gran tema grande tema
Actividades com maior e menor risco comercial
A Unidade de Riscos da Direcção
de Operações da Cesce apresenta,
de uma forma detalhada, quais
os sectores e sub-sectores
que
poderão registar perspectivas de
crescimento positivas, neutras ou
negativas, tendo em conta a situação
da actividade económica em
Portugal no primeiro semestre:
Sectores com perspectiva positiva
• Fabricantes de embalagem logística:
contentores e paletes
plásticas
• Empresas vinculadas à reciclagem
de plásticos
• Cadeias de lojas low cost
• Fabricantes de tecidos de uso
técnico destinados a exportação
• Comercialização de produtos
têxteis destinados ao formato
outlet
• Fabricantes de têxtil de marcas
reconhecidas
• Empresas dedicadas a venda
online
• Indústria cerâmica com forte
peso de vendas para o exterior
• Comercialização de mobiliário
de baixo custo e fácil montagem
através de hipermercados
e grandes superfícies
• Comercializacão de tecnología
SMART, hardware para formação,
comunicação e educação
(plataformas digitais)
• Fabricantes de pasta de papel
• Sector editorial, livros electrónicos
e materiais didácticos em
formato electrónico
• Refrigerantes
• Supermercados e hard discount
• Franchisings de grandes marcas
• Empresas da indústria alimentar
com carácter exportador
• Produção e distribuição de
produtos siderúrgicos planos,
como pranchas, bobinas, chapas
e tubos
• Fabrico de veículos e de componentes
de automação
• Distribuição de componentes
de automação
• Fabrico de maquinaria e ferra-mentas
• Fabrico de material de transporte
ferroviário
• Fabrico de material aeronáutico
e espacial
• Sector de fertilizantes
Sectores com perspectiva neutra
• Fabricantes de matéria-prima
plástica
• Fabricantes de embalagens de
plástico
• Confecção de roupa infantil
• Fabricantes de calçado para
exportação
• Construção com elevada presença
internacional nas suas
carteiras de obras e com diversificação
de sectores.
• Fabricantes de embalagens de
cartão, especialmente para a
indústria agrícola, alimentar e
farmacêutica
• Fabricantes de mobiliário de
design e equipamento comercial
• Comércio de mobiliário para o
lar destinado ao formato outlet
• Produção de azeite
• Bebidas alcoólicas
• Sector hortofrutícola
• Produtos derivados de carne
• Vinho
• Sector lácteo
• Sector conserveiro
• Produção e distribuição de produtos
siderúrgicos expostos ao
sector da construção
• Produção de electrodomésticos,
electrónica de consumo e
informática
• Química orgânica e inorgânica
• Cosmética e perfumaria
• Detergentes
• Tintas
Sectores com perspectiva negativa
• Fabricantes de produtos plásticos
para a construção
• Retalhistas independentes de
vestuário
• Fabricantes de fibras artificiais
e sintéticas
• Fabricantes de têxteis-lar
• Fabricantes de painéis fotovoltaicos
concentrados no mercado
doméstico
• Construtoras com carteiras de
obra centradas a nível nacional
e com pouca diversificação
sectorial
• Construtoras centradas em edifícios
• Fabrico de chapas, portas, móveis
de cozinha, banho, etc.
• Mercado editorial (livros, folhetos,
revistas, catálogos, imprensa
escrita)
• Águas embaladas
• Conservas vegetais
• Distribuição automóvel
• Distribuição e aluguer de maquinaria
para a construção.
• Distribuição de material eléctrico
• Distribuição de electrodomésticos,
electrónica de consumo e
informática.
• Fabrico de barcos
• Indústria farmacêutica
46 actualidad€ s e t e m b r o d e 2 0 1 1 grande tema gran tema
em cada caso de insolvencia, ja que um
sector pode ter muitos processos, mas
os valores em causa serem baixos.
Para avaliar e prevenir riscos comerciais,
existem seguros no mercado a que
as empresas podem recorrer. A Cesce,
uma das maiores seguradoras de credito
da Peninsula Iberica, acaba ainda de
lancar uma apolice de avaliacao de risco
caso-a-caso,
permitindo assim a empresa
segurada saber a classe de risco de
cada um dos seus clientes. Deste modo,
“as empresas sabem quantificar o custo
do seguro para cada cliente, podendo
reflectir esse custo no preco de venda”,
explica Nuno Francisco.
Como decorre o processo de insolvência
ou de recuperação
A insolvencia pode decorrer da apresentacao
do proprio devedor ao processo
de insolvencia (seja pessoa singular
ou colectiva) ou pode ser requerida por
um dos seus credores.
Muitos credores optam por esta via
em detrimento das accoes executivas
(cobranca de dividas), uma vez que
estas levam mais tempo a resolver-se
nos tribunais e nao tem o caracter urgente
do processo de insolvencia, que,
por exemplo, corre mesmo durante as
ferias judiciais.
Quanto aos planos de recuperacao
(designados actualmente por planos
de insolvencia), so cerca de 2,5% dos
processos e que reune condicoes para o
solicitar, o que e muito pouco. O seu
sucesso tambem nao e garantido.
Raul Gonzalez defende que as empresas,
assim como os particulares, deveriam
pedir ajuda muito antes de chegar
a uma “situacao-limite”,
ou seja, de
incumprimento. “Nao ha uma cultura
entre os nossos empresarios, particularmente
os de micro-empresas,
de reconhecer
as dificuldades e pedir ajuda a
tempo”, chegando depois a acumular
dividas, de enormes montantes, junto
de varios credores.
A APAJ entende, por isso, que o Estado
deveria desenvolver um “mecanismo
de prevencao”, de forma a alertar
as empresas para o risco de insolvencia,
com base, por exemplo, na informacao
contida em diversas bases de dados (da
seguranca social, do fisco ou do Banco
de Portugal), tendo mesmo a associacao
abordado o assunto numa reuniao
que manteve com a troika.
A APAJ e uma entidade privada,
que reune a maior parte dos cerca de
Insolvência da Aquino Construções
ameaça 228 trabalhadores
A Aquino Construções, de Ourém,
foi uma das mais de 370 empresas
do sector da construção
declaradas insolventes este ano.
Somando o sector dos materiais
de construção, e só entre Janeiro
e Junho, este número chega aos
594 casos (dados da Cosec).
A declaração de insolvência da
Aquino Construções, especializada
em obras municipais, foi emitida
no final de Julho pelo Tribunal
de Ourém. A empresa,
que empregava 228
trabalhadores e tinha
várias obras em curso,
não conseguiu cumprir
os seus compromissos
financeiros, pelo que o
tribunal declarou a sua
insolvência e nomeou
um administrador da
insolvência. Nesta altura,
decorre a fase de reclamação
de créditos e de elaboração de
um relatório que vai ser apresentado
na assembleia de credores,
marcada para o próximo dia 27.
Nessa altura, os credores decidirão
pela continuidade ou pela
falência da empresa. A possível
falência do maior empregador
privado do concelho de Ourém
preocupa a autarquia local, que
se propôs ajudar “quer a família
que criou riqueza, emprego e intervenção
social no concelho, ao
longo dos anos, quer os trabalhadores
que ficam numa posição
de fragilidade e que importa
apoiar”, de acordo com uma nota
da Câmara Municipal de
Ourém. Por outro lado,
a Câmara vai solicitar
a gestão directa dos
trabalhos adjudicados
à Aquino, para garantir
a execução e o cumprimento
dos prazos das
obras em curso.
A atravessar uma grave
crise financeira está
também a Novopca, com sede no
Porto e com mais de 60 anos de
existência.
Dedicada a grandes obras públicas,
a construtora apresentou em
Abril, no Tribunal de Vila Nova de
Famalicão, um pedido de insolvência,
acompanhado de um plano
de recuperação, com o objectivo
de salvar o emprego dos seus
cerca de 350 trabalhadores.
As associações do sector estimam
que estejam em risco, no
total, cerca de 50 mil empregos.
s e t e m b r o d e 2 0 1 1 actualidad€ 47
gran tema grande tema
320 administradores da insolvencia
habilitados para o cargo. Este profissionais
sao nomeados pelo tribunal
quando e decretada uma insolvencia,
competindo-lhes
analisar a actividade
da empresa, o estado das suas contas
e a sua viabilidade, para recomendar
a sua recuperacao ou, caso tal nao se
mostre possivel, aconselhar o encerramento
da actividade e a liquidacao do
patrimonio, embora a decisao final seja
da assembleia de credores.
Para encetarem um plano de insolvencia,
as empresas devem obedecer a
alguns criterios, como sejam, estarem
ainda em funcionamento, serem economicamente
viaveis, que seja possivel
reestruturar a divida global e que os socios,
assim como o Estado (fisco e seguranca
social), os fornecedores e a banca
se empenhem no projecto de recuperacao,
enquadra Raul Gonzalez.
No entanto, tambem a nivel legal a
vida das empresas que lutam pela sua
recuperacao nao esta facilitada. Desde
logo, “o quadro legal das insolvencias
nao esta ajustado com o quadro fiscal”,
ja que este nao preve o pagamento em
prestacoes “tao flexivel como o CIRE
[Codigo da Insolvencia e da Recuperacao
de Empresas]“, nem sequer o perdao
de dividas, juros, etc.
Por outro lado, os processos arrastam-se
nos tribunais, cerca de tres ou quatro
anos em media (particularmente os respeitantes
a encerramento/ liquidacao),
prejudicando os credores envolvidos.
Perante estas dificuldades, uma das
exigencias do Memorando da troika
passa, precisamente, por acelerar e facilitar
o sucesso dos planos de insolvencia.
“E muito facil criar uma empresa, e e tao
dificil encerrar”, conclui Raul Gonzalez.
Como antecipar e evitar a ruptura
Mas antes de se chegar ao pedido de
insolvencia, deveriam ser criados “procedimentos
extra-judiciais
que providenciem
pela recuperacao, com uma
total paralisacao das accoes contra
as empresas e a contagem de juros de
mora”, ja que, frisa Catarina Tavares,
“actualmente, so com a instauracao do
processo de insolvencia se consegue paralisar
tais processos e penhoras”.
Entao o que devem as empresas fazer
para evitar chegar a insolvencia? Analisando
a situacao das empresas exportadoras,
que conseguem compensar a
crise no mercado interno, este e, seguramente,
um dos caminhos em que a
industria e outras actividades economicas
tem de apostar.
Ainda assim, Paulo Morais alerta que,
neste processo, ha que ter em conta
”devidamente as oportunidades e os
riscos inerentes as operacoes planeadas
para cada pais e parceiro, acautelando-se
e precavendo contra a volatilidade
existente nos varios mercados”, nomeadamente
atraves de seguros de credito.
A nivel das apostas mais seguras, “ha
que diversificar os destinos de exportacao
e procurar mercados emergentes,
como a America Latina (nomeadamente
o Brasil, Chile, Colombia e Mexico),
que e um mercado interessante
para aposta nas infra-estruturas
(portos,
aeroportos, estradas rodoviarias,
ferroviarias), bem como no sector da
construcao, energia e turismo. Tambem
a China e outros paises asiaticos,
como a Indonesia e a India, podem ser
interessantes e, para esses, recomenda-se
uma aposta estrategica em nichos
de produtos, produtos diferenciados e
de maior valor acrescentado”, adianta
Paulo Morais.
Constituição de empresas também
cresce
Mas a par do fecho de empresas,
saliente-se
que a constituicao de novas
sociedades conheceu tambem um forte
impulso, na primeira metade deste ano.
De acordo com uma analise da Coface,
foram constituidas no pais mais de
16.500 empresas, um crescimento de
quase 18%. Estes dados contrastam
com a estagnacao (0,9%) verificada em
2010 relativamente a 2009.
Lisboa e Porto sao os distritos mais
dinamicos em termos de constituicao
de empresas, com 28,8 e 18,4% do total,
respectivamente. Por seu turno, os
distritos do interior, como Beja e Portalegre,
e os Acores sao os que apresentam
menor actividade empresarial. 
Joan Ribas, profesor de Economía
Internacional de EADA en Barcelona
O crédito malparado
das famílias atinge 3%
dos empréstimos, o
que corresponde a 4,3
mil milhões de euros,
e entre as empresas
supera os 5

320 administradores da insolvencia


habilitados para o cargo. Este profissionais
sao nomeados pelo tribunal
quando e decretada uma insolvencia,
competindo-lhes
analisar a actividade
da empresa, o estado das suas contas
e a sua viabilidade, para recomendar
a sua recuperacao ou, caso tal nao se
mostre possivel, aconselhar o encerramento
da actividade e a liquidacao do
patrimonio, embora a decisao final seja
da assembleia de credores.
Para encetarem um plano de insolvencia,
as empresas devem obedecer a
alguns criterios, como sejam, estarem
ainda em funcionamento, serem economicamente
viaveis, que seja possivel
reestruturar a divida global e que os socios,
assim como o Estado (fisco e seguranca
social), os fornecedores e a banca
se empenhem no projecto de recuperacao,
enquadra Raul Gonzalez.
No entanto, tambem a nivel legal a
vida das empresas que lutam pela sua
recuperacao nao esta facilitada. Desde
logo, “o quadro legal das insolvencias
nao esta ajustado com o quadro fiscal”,
ja que este nao preve o pagamento em
prestacoes “tao flexivel como o CIRE
[Codigo da Insolvencia e da Recuperacao
de Empresas]“, nem sequer o perdao
de dividas, juros, etc.
Por outro lado, os processos arrastam-se
nos tribunais, cerca de tres ou quatro
anos em media (particularmente os respeitantes
a encerramento/ liquidacao),
prejudicando os credores envolvidos.
Perante estas dificuldades, uma das
exigencias do Memorando da troika
passa, precisamente, por acelerar e facilitar
o sucesso dos planos de insolvencia.
“E muito facil criar uma empresa, e e tao
dificil encerrar”, conclui Raul Gonzalez.
Como antecipar e evitar a ruptura
Mas antes de se chegar ao pedido de
insolvencia, deveriam ser criados “procedimentos
extra-judiciais
que providenciem
pela recuperacao, com uma
total paralisacao das accoes contra
as empresas e a contagem de juros de
mora”, ja que, frisa Catarina Tavares,
“actualmente, so com a instauracao do
processo de insolvencia se consegue paralisar
tais processos e penhoras”.
Entao o que devem as empresas fazer
para evitar chegar a insolvencia? Analisando
a situacao das empresas exportadoras,
que conseguem compensar a
crise no mercado interno, este e, seguramente,
um dos caminhos em que a
industria e outras actividades economicas
tem de apostar.
Ainda assim, Paulo Morais alerta que,
neste processo, ha que ter em conta
”devidamente as oportunidades e os
riscos inerentes as operacoes planeadas
para cada pais e parceiro, acautelando-se
e precavendo contra a volatilidade
existente nos varios mercados”, nomeadamente
atraves de seguros de credito.
A nivel das apostas mais seguras, “ha
que diversificar os destinos de exportacao
e procurar mercados emergentes,
como a America Latina (nomeadamente
o Brasil, Chile, Colombia e Mexico),
que e um mercado interessante
para aposta nas infra-estruturas
(portos,
aeroportos, estradas rodoviarias,
ferroviarias), bem como no sector da
construcao, energia e turismo. Tambem
a China e outros paises asiaticos,
como a Indonesia e a India, podem ser
interessantes e, para esses, recomenda-se
uma aposta estrategica em nichos
de produtos, produtos diferenciados e
de maior valor acrescentado”, adianta
Paulo Morais.
Constituição de empresas também
cresce
Mas a par do fecho de empresas,
saliente-se
que a constituicao de novas
sociedades conheceu tambem um forte
impulso, na primeira metade deste ano.
De acordo com uma analise da Coface,
foram constituidas no pais mais de
16.500 empresas, um crescimento de
quase 18%. Estes dados contrastam
com a estagnacao (0,9%) verificada em
2010 relativamente a 2009.
Lisboa e Porto sao os distritos mais
dinamicos em termos de constituicao
de empresas, com 28,8 e 18,4% do total,
respectivamente. Por seu turno, os
distritos do interior, como Beja e Portalegre,
e os Acores sao os que apresentam
menor actividade empresarial. 

DETERMINANTES DOS CUSTOS DA INSOLVÊNCIA


FINANCEIRA
LUIS FERNANDES RODRIGUES

Professor Adjunto da ESTV

A ameaça da insolvência financeira

Os anos noventa foram uma época em que as situações de insolvência empresarial atingiram níveis históricos em
muitos dos países desenvolvidos, como nos Estados Unidos da América, Espanha ou Portugal.

A experiência portuguesa recente, com os numerosos diplomas legais publicados nos últimos anos procurando
contrariar o número crescente de empresas em situação económica difícil, é um bom exemplo da preocupação das
autoridades com a eficiência económica dos processos de reestruturação e de falência de um numero crescente de
empresas.

Em Portugal, podemos destacar os seguintes marcos legislativos:


- Dec.-Lei nº177/86, Diário da República Portuguesa de 2 de Julho sobre o Processo Especial de Recuperação da
Empresa e da Protecção dos Credores;

- Dec.-Lei nº132/93, de 23 de Abril, que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de
Falência;

- Resolução nº100/96 do Conselho de Ministros de 10 de Agosto, que fixou o Quadro de Acção para a Recuperação de
Empresas em Situação Económica Difícil (QARESD);

- Dec.-Lei nº81/98, que institui o Sistema de Incentivos de Revitalização e Modernização Empresarial (SIRME).

Os procedimentos que regulam a relação devedor credor, quando estes não cumprem com os contratos, estão contidos
no sistema legal e não estão especificados explicitamente nos contratos de endividamento. Os procedimentos de
falência são implicitamente uma parte de todo o contracto como qualquer outro aspecto explicitamente contido no
mesmo.

O grande número de iniciativas legislativas, citadas anteriormente, é demonstrativo do interesse das autoridades pela
problemática da insolvência financeira, sobre os determinantes dos custos da insolvência financeira e o seu impacto no
desempenho da empresa.

Porém, avaliar quais os custos da insolvência tem sido uma tarefa difícil, quer por se tratar de medir conceitos bastante
abstractos dificilmente observáveis, quer pela dificuldade de distinguir as suas consequências no desempenho da
empresa, das causas que provocaram a própria insolvência.

O processo de consciencialização sobre a dimensão do fenómeno da insolvência e dos seus custos (ou mesmo eventuais
benefícios) poderá orientar o legislador na opção por instrumentos de reestruturação e/ou de liquidação das empresas.

Uma política de prevenção da crise financeira nas empresas terá que promover a eficiência do sistema processual por
que podem optar as empresas em crise, e do incentivo que este fornece aos detentores do capital e/ou gerentes para
melhorar o desempenho das suas organizações.

A acção do Estado junto das empresas insolventes passará sempre por uma ponderação entre os custos potenciais de
classificar uma organização ineficiente como restruturável, atrasando-se a reafectação de recursos a empregos mais
eficientes e os custos da situação inversa, em que uma empresa eficiente se liquida.

Porém, na venda duma empresa em crise, a sua absorção por outra empresa ou mesmo a sua liquidação pelos sócios,
são alternativas legais e talvez mais frequentes para a situação sem que sejam específicas a algum tipo de crise. Ou
seja, a insolvência financeira não obriga a empresa a desaparecer.

È nosso objectivo demonstrar a relevância dos custos de insolvência financeira para as finanças empresariais e o
impacto deste tipo de custos no desempenho empresarial.

A teoria financeira e os custos de insolvência

Desde os trabalhos embrionários de Modigliani e Miller (1958, 1963) que a teoria financeira incorporou nos seus
modelos sobre a estrutura de capital o que se classifica genericamente como custos de insolvência. Estes autores
começaram por demonstrar que nenhuma estrutura financeira é melhor que a outra se considerarmos as empresas a
operar em mercados concorrenciais e transparentes. Os seus estudos, desde logo, alertam que a dívida tem um custo
explicito - a taxa de juro- e um custo implícito - o risco dos capitais próprios. Quando no seu artigo de 1963 Modigliani
e Miller introduziram os impostos no seu modelo da estrutura financeira óptima, estabeleceram que esta implicava um
equilíbrio entre acréscimo dos custos de insolvência motivados pelo aumento do endividamento e os escudos fiscais
proporcionados pelos juros pagos.

Argumentos semelhantes vieram a integrar-se em torno do que se passou a denominar a "teoria estática", a qual
reconhece a existência de objectivos em termos de rácios de endividamento, e que se integra no paradigma clássico
que postula uma empresa maximizadora do seu valor, operando em mercados competitivos e eficientes. A empresa
gere os interesses dos seus accionistas e dos restantes fornecedores de fundos, que disponibilizam à empresa o capital
necessário para os seus projectos de investimento.

A teoria clássica tem uma forte consistência interna e uma arquitectura parcimoniosa. Por exemplo, a decisão de
investir estará "apenas" dependente do critério do valor actual positivo.

Um dos problemas da teoria clássica é precisamente o de permitir poucas variáveis explicativas das políticas
financeiras, que não conseguem explicar o comportamento real de muitas empresas. Por exemplo, a única maneira das
opções de financiamento afectarem o valor da empresa será através da influência do Estado sobre os Cash-Flows,
nomeadamente através dos impostos e os custos da falência.

O fracasso da teoria estática em explicar a realidade de muitas empresas motivou o aparecimento de teorias que têm
por base o abandono do pressuposto do modelo de Modigliani e Miller (MM) da transparência do mercado em termos
informativos com informação a custo nulo. Os trabalhos de Jensen y Meckling (1976), Myers (1977) reconhecem as
assimetrias de informação entre as várias categorias de "stakeholders". Indicam também que uma das funções da
estrutura de capital é a de alinhar os seus diferentes interesses.

Foi, também, relaxado o pressuposto da empresa maximizadora do seu valor. O reconhecimento que os vários tipos de
fornecedores de capital têm incentivos diferentes e que se encontram numa posição de assimetria de informação entre
eles e a gestão da empresa acarreta consequências sobre a forma como se encara a falência. Esta passa a ser encarada
sobretudo como um processo de redistribuição da propriedade e do controle da empresa. Trata-se de um processo onde
se defrontam indivíduos com interesses divergentes e que implica custos que cabe ao sistema legal minimizar.

Apesar de aparecerem teorias concorrentes sobre a estrutura financeira que integram nos seus modelos os custos de
insolvência, estes foram pouco tidos em conta na fase da comprovação empírica dos modelos. Brealey e Myers (1997)
constatam que não se sabe a quanto se eleva o montante dos custos directos e indirectos da falência, desconfiando-se
que atingem um valor significativo.

Tal facto parece estar ligado ao facto de a maior fatia dos custos de insolvência serem custos não observáveis e de que
a definição de variáveis proxy se torna difícil quando os conceitos de insolvência ou falência não têm um significado
económico específico e unívoco.

Uma primeira tentativa de quantificar os custos de insolvência foi realizada por Warner (1977), que se limitou a medir
os custos directos da falência, ou seja, custos administrativos e taxas legais numa reduzida amostra de onze empresas
ferroviárias americanas, tendo chegado à conclusão do peso reduzido deste tipo de custos no valor de mercado das
empresas estudadas.

Desta forma, ainda que os custos directos possam ser elevados em termos absolutos, em valor relativo não são uma
grande fracção do montante dos activos de uma grande empresa cotada, o que, juntamente com as razões atrás
apontadas, levou Haugen e Senbet (1978) a concluírem pela irrelevância dos custos directos da falência na escolha da
estrutura de capital óptima.

Reconhece-se, porém, que a falência tem custos superiores para as pequenas empresas, já que existem economias de
escala significativas quando se entra num processo judicial.

Apesar de vários trabalhos proporem que os custos indirectos da insolvência financeira são uma importante
determinante da estrutura de financiamento, tem havido uma maior concentração no estudo dos custos directos da
falência.

A previsão da insolvência e os custos de insolvência

A previsão da insolvência é uma das mais importante tarefas da análise financeira. Contudo, Foster (1986) fez notar
que, apesar do aparente sucesso (ex-post) dos modelos discriminantes de previsão da insolvência, não só as teorias
financeiras sobre a insolvência estavam pouco desenvolvidas, como também, raramente, foram tidas em conta para dar
um sentido económico aos resultados.

Scott (1981) faz notar que os modelos empíricos de previsão de insolvência, resultantes da aplicação de técnicas de
estatística multivariada, econométricas, são um dos grandes produtos das finanças empresariais. No entanto, este tipo
de modelos tem enfrentado bastantes reservas a nível de prática profissional. Tal será devido, em grande parte, à falta
de uma base teórica explícita e bem desenvolvida. Todos estes modelos têm sido elaborados através de um
desenvolvimento estatístico sobre uma bateria de indicadores plausíveis sem que houvesse grande atenção aos
conceitos que lhes poderiam estar subjacentes [Fernandes Rodrigues (1996), (1998)].

Os estudos de Altman sobre a insolvência constituem pontos de referência de investigação na área. Após os trabalhos
relativos aos modelos de previsão da insolvência, como o Score Z de 1968, revisto e melhorado pelo Score Zeta de
1977. Em 1984, Altman propôs a primeira metodologia para identificar e medir os custos indirectos de insolvência, pois
na sua opinião o impacto potencial destes custos sobre as decisões de estrutura do capital e no valor da empresa era
demasiado importante para apenas se especular sobre eles numa base conceptual, continuando a realizar bastante
trabalho nesta área Altman (1993).

Duas linhas de investigação, uma baseada em estudos empíricos, outra fundamentalmente teórica, foram sendo
desenvolvidas, sem um esforço de integração. Delas resultaram abordagens alternativas sobre as teorias e a previsão
da insolvência e, em particular, sobre os seus custos e sua influência na estrutura de capital e no desempenho da
empresa.

Compreender os determinantes da insolvência é importante qualquer que seja a dimensão dos custos que ela acarreta.
Estes trabalhos tanto podem ajudar a explicar o sucesso dos modelos empíricos de previsão de falência, como orientar
o desenho de leis socialmente óptimas que tutelem as situações de insolvência.

Os custos da insolvência financeira

É um facto que as insolvências são custosas. Os investidores sabem que as empresas endividadas podem entrar em
dificuldades financeiras e preocupam-se com os custos de insolvência financeira e esta preocupação reflecte-se no valor
da empresa endividada. Mesmo que a empresa não se encontre no momento presente numa situação de insolvência, os
investidores actualizam o potencial da crise futura no valor actual dos seus activos.
Note-se que valor actual dos custos de insolvência financeira depende tanto da sua probabilidade de ocorrência como
da sua magnitude, pelo que quando nos referimos genericamente a custos de insolvência estamos a englobar as
classes de custos que se indicam a seguir e cujos contornos não são pacíficos:

Os custos directos da falência, que incluem os custos administrativos e judiciais. Estimativas empíricas sugerem que
estes custos explícitos são relativamente pequenos para as grandes empresas [Warner (1977) e Ang, Chua e
McConnel(1982)]. Haugen e Senbet (1978) fazem notar que se a transferência de propriedade dos detentores do
capital para os devedores pudesse ser feita sem custos, a mera possibilidade de falência não teria qualquer impacto na
escolha da estrutura de capital. Sendo impossível redigir contratos que especifiquem claramente os direitos das partes
em qualquer situação, é natural que alguma delas acabe por accionar os processos judiciais que permitirão realizar um
processo formal e ordenado de transferência de propriedade, o qual obviamente tem custos. Segundo estes autores,
apenas estes custos podem ter influência na definição de estrutura financeira de uma empresa, pois consideram que a
decisão de liquidação de uma empresa insolvente deve ser considerado um acontecimento separado da falência,
concluindo que, devido ao reduzido valor relativo dos custos directos de falência, estes são irrelevantes para a teoria da
estrutura óptima do capital.

Por outro lado, Altman (1984), faz notar que não existe um consenso sobre a relevância dos custos indirectos da
insolvência, mas, tal como White (1983) e Opler e Titman (1994) afirmam, os custos indirectos da falência reflectem a
dificuldade de dirigir uma empresa em processo de reorganização. Apesar de serem apenas implícitos, esses custos
podem ter um forte influência no desempenho de uma empresa. A sua importância pode ser um dos motivos pelos
quais os credores não forçam, frequentemente, a empresa a entrar num processo de falência, com receio de a
precipitar em maiores dificuldades e lhes seja impedido ainda reaver uma maior fracção dos seus créditos.

A influência destes custos não está porém limitada às empresa que entram num processo judicial de reorganização ou
falência. Organizações com altas probabilidades de falência também podem incorrer nestes custos. Existem, assim,
também custos indirectos de insolvência alheios à falência. Por exemplo, uma situação de crise financeira produz custos
originados pelo conflito de interesses entre os vários stakeholders antes da entrada da empresa em qualquer processo
judicial que possa conduzir a resultados operativos desfavoráveis e decisões de investimento erradas, etc .

São vulgarmente citados na literatura os custos originados por se realizarem investimentos demasiado arriscados
(Sobre-investimento), devido à empresa assumir uma estratégia de "tudo ou nada" para de uma forma desesperada
evitar incorrer em processos judiciais, ou em custos originados por não se realizarem investimentos seguros e rentáveis
(Sub-investimento), na medida em que estes apenas favoreceriam os credores. Dentro desta classe de custos
indirectos estão também os custos contratuais da dívida, de formalização e seguimento dos contratos, que vão também
aumentar o custo dessa dívida. Por último, podem-se considerar também os custos motivados pela entrada tardia da
empresa em processo judicial.

Conclui-se, assim, que os custos indirectos da insolvência estão ligados à condição financeira da empresa, podendo
começar a fazer-se sentir apenas pela existência de uma elevada probabilidade de ocorrência de um processo judicial
ocorrer, e poder continuar a fazer-se sentir após este acontecimento.

Métodos de avaliação dos custos de insolvência

Altman (1984), apresentou uma metodologia proxy para tentar identificar e medir empiricamente os custos indirectos
de insolvência acima referidos, apoiando-se no conceito de vendas e proveitos perdidos nos três últimos anos
anteriores à falência como medidas dos custos indirectos de falência. Assim, baseado num procedimento de regressão,
calculou as vendas e os proveitos previstos da empresa, como se esta se tivesse mantido solvente. Depois comparou-
os com as vendas e os proveitos de cada um dos períodos, representando a diferença encontrada os custos directos de
falência. Neste mesmo estudo, o autor avançou com outra variável proxy dos custos de insolvência baseada em perdas
não esperadas no valor de mercado das empresas insolventes.

Opler e Titman (1994) desenvolveram uma metodologia que segue a linha dos trabalhos de Altman (1984), utilizando
também proxies extraídas do valor de mercado das empresas, assim como a taxa de (de)crescimento das vendas e
ainda as variações nos resultados operacionais para medir o impacto dos custos de insolvência no desempenho das
empresas.

A utilização de várias proxies, ajustadas por um efeito indústria, está ligada à necessidade de assegurar que grande
parte da variação destas variáveis estará ligada à insolvência. Por exemplo, uma eventual queda das vendas está ligada
à perda de confiança dos clientes ou à vulnerabilidade financeira face aos competidores ou, pelo contrário, deve-se, por
exemplo, a um eficiente downsizing?

Questões semelhantes se podem pôr em relação à variação do valor de mercado. Será que este traduz apenas os
custos de insolvência, ou engloba outros efeitos informativos e de transferência de propriedade?

E até que ponto é manipulada a variável resultados operacionais?

Os testes que avaliam estas hipóteses alternativas baseiam-se na divisão da população em grupos, por indicadores
como a probabilidade de falência retirada de um modelo discriminante [Altman (1968), (1977) e Fernandes Rodrigues
(1996), (1998)]. É sobretudo necessário, ainda, aprofundar o tema das determinantes dos custos de insolvência, como
composição dos activos, o endividamento, etc… para responder a estas questões.

Nota final
Ficou assim demonstrada a importância do estudo dos determinantes dos custos de insolvência, e da importância de os
inserir num modelo explicativo cuja validação empírica sugira orientações para a política de reestruturação e/ou
falência de empresas.

Os modelos de equações estruturais que reconhecem explicitamente os problemas de medir conceitos bastante
abstractos dificilmente observáveis. Eles assumem que apesar dos atributos relevantes não serem directamente
observáveis, existem um dado número de indicadores que são funções lineares de um ou mais atributos e existe um
termo de erro que pode ser medido.

O tipo de modelos referidos pode constituir uma ferramenta extremamente útil no estudo dos custos de insolvência
financeira, constituindo uma das linhas de investigação que está a ser desenvolvida pelo autor deste artigo nos seus
estudos de Doutoramento na Universidade de Salamanca.

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SUMÁRIO

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