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9h30 ABERTURA
9h45 O PAPEL DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
José Ribeiro Gonçalves, Economista, Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Judiciais
ESPECIFICIDADES DA INSOLVÊNCIA DE PESSOAS SINGULARES
Rute Sabino, Juíza de direito
A EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Cláudia Loureiro, Juíza de direito
DEBATE
Moderação: Alberto Regueira, Vice-Presidente da DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor
12h30 Pausa para Almoço
14h00 PRESSUPOSTOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Teresa Garcia, Juíza de direito
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO: QUESTÕES SUBSTANTIVAS
João Aveiro Pereira, Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO: QUESTÕES PROCESSUAIS
Fátima Reis Silva, Juíza de direito
DEBATE
Moderação: Renato Gonçalves, Subdirector-geral da Direcção-Geral da Política de Justiça
16h30 ENCERRAMENTO
:Destinatários
.Juízes, Magistrados do Ministério Público e outros profissionais da área forense
Ação de Formação Contínua Tipo B | Lisboa, 23 e 30 de novembro 2012 | Auditório do CEJ, Largo do Limoeiro,
Lisboa
de novembro 30
9h30 ABERTURA
9h45 ASSEMBLEIA DE CREDORES: QUESTÕES PRÁTICAS
Maria José Costeira, Juíza de direito
NOVAS QUESTÕES NA QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
José Manuel Branco, Procurador da República
VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Luís Lameiras, Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto
DEBATE
Moderação: Pedro Caetano Nunes, Juiz de direito - Docente do CEJ
12h30 Pausa para Almoço
14h00 EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO
Maria do Rosário Epifânio, Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica
INSOLVÊNCIA DE SOCIEDADES E CONTRATOS DE TRABALHO
Júlio Gomes, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica
EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA SOBRE OS PROCESSOS PENDENTES
Artur Dionísio Oliveira, Juiz de direito
DEBATE
Moderação: Laurinda Gemas, Juíza de direito - Docente do CEJ
16h30 ENCERRAMENTO
Recepção
09h15 - Sessão de abertura
Paula Teixeira da Cruz, Ministra da Justiça
09h30 - Painel I: Perspectivas internacionais de reforma do regime das
insolvências
Keynote speaker
Sijmen De Ranitz, ex presidente da INSOL International
Pausa para café
10h30 - Painel II: Alteração do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas
Temas em debate:
Agilização processual: adequação dos prazos e repartição de competências entre o
juiz a secretaria e os administradores da insolvência; verificação e graduação dos
créditos; qualificação da insolvência; dever de apresentação à insolvência; eficácia da
liquidação do activo/massa insolvente; estrutura e categorias de voto nas assembleias
de credores; efeitos dos negócios jurídicos celebrados no momento anterior à
declaração de insolvência.
Mesa redonda:
Pedro Álvares de Carvalho, 3º Juízo Cível de Braga
Maria do Rosário Epifânio, Universidade Católica Portuguesa - Porto
Raul Gonzalez, Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais
Nuno Ferreira Lousa, Linklaters LLP – Lisboa
António Barros, Associação Empresarial de Portugal
PROGRAMAÇÃO
1º Semestre (13 aulas [mínimo])
1ª - Apresentação
2ª - Aula teórica: investigação: métodos e fontes
3ª - Aula teórica; O processo de insolvência: quadro geral
4ª – Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
espanhol (I)
5ª – Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
espanhol (II)
6ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
italiano
7ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
processual comunitário
8ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
alemão (I)
9ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
alemão (II)
10ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
norte-americano
11ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
português (regime do CIRE)
12ª Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
português (instituições de crédito)
13ª Distribuição de trabalhos e de temas
PROGRAMAÇÃO
1º Semestre (13 aulas [mínimo])
1ª - Apresentação
2ª - Aula teórica: investigação: métodos e fontes
3ª - Aula teórica; O processo de insolvência: quadro geral
4ª – Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
espanhol (I)
5ª – Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
espanhol (II)
6ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
italiano
7ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
processual comunitário
8ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
alemão (I)
9ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
alemão (II)
10ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
norte-americano
11ª - Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
português (regime do CIRE)
12ª Recensão: planos de insolvência e de pagamentos no direito
português (instituições de crédito)
13ª Distribuição de trabalhos e de temas
2º Semestre (20 aulas2)
Apresentação, discussão e avaliação de exposições temáticas orais,
com a duração mínima de 1 aula e máxima de 2 aulas.
Preparação e entrega de relatórios temáticos
15 de Setembro de 2010 (termo final para entrega dos relatórios)
58
A falta de autorização do juiz determinava, segundo LUÍS CARVALHO FERNANDES / JOÃO
LABAREDA, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, ob. cit.,
p. 384, a inoponibilidade em relação à massa dos actos celebrados pelo liquidatário.
21 22
insolvente e evitar o agravamento da situação da situação económica do
insolvente parecem não permitir que este órgão de insolvência celebre negócios
que empobrecem a massa insolvente59.
SUMÁRIO:
1. Introdução. 2. Delimitação do tema; a questão da responsabilidade por pedido infundado de insolvência. 3.
A acção de responsabilidade pela ocasionação da insolvência e o incidente processual de qualificação da
insolvência. 4. A responsabilidade dos administradores pela causação da insolvência: aspectos gerais. 5.
(cont.) Dever de diligência, business judgment rule e dever de fidelidade dos administradores. 6. Incidente
processual de qualificação da insolvência, relação especial e deveres no tráfico para protecção do património
7. Incidente de qualificação da insolvência e disposição de protecção. 8. O art. 186 do CIRE: ilicitude, culpa e
causalidade. 9. Outros elementos para a compreensão dos n.os 2 e 3 do art. 186. 10. O caso específico da não
apresentação à insolvência. 11. Conclusão.
O direito da insolvência representa um daqueles recantos da ordem jurídica que poucas vezes é objecto, entre
nós, de atenção, significando para muitos reserva de iniciados. No entanto, além da sua grande relevância
prática, particularmente em épocas, como a nossa, de crise e transformação acelerada do tecido produtivo,
apresenta um enorme interesse dogmático-crítico, ao constituir como que um laboratório jurídico avançado
onde o direito civil (em particular, a parte geral, o direito das obrigações e os direitos reais) se mescla com o
direito comercial e o direito processual, e se testam as suas fronteiras e implicações recíprocas, sob o olhar
atento da política económica.
O eclectismo elaborado de planos e horizontes próprio deste sector do ordenamento traz-nos à memória,
noutro plano, a figura ímpar de António Sousa Franco: a do académico ilustríssimo, do homem de cultura
enciclopédica, do arguto e escrupuloso servidor da causa pública, por detrás do qual latia com intensidade o
sentido de missão a que, no reduto livre da sua preclara inteligência, por sobre as contingências sociais e
políticas do seu presente, se sentia chamado, derradeiramente, pela sua convicta e vivida fé cristã.
Talvez este seu perfil justifique que o homenageemos com um escrito sobre responsabilidade dos
administradores na insolvência. O tema é jurídico-privado, incontornável no quadro das tão actuais
preocupações em torno do estudo e implantação de boas regras na administração das sociedades. Mas
refracciona orientações jurídico-económicas gerais, procedimentos de decisão, modelos de justiça empresarial
e indisfarçáveis concepções éticas: tudo interesses constantes, e testemunhados na própria existência,
daquele por quem hoje dobramos o nosso sino, recordando com saudade a estima e a amizade com que
sempre nos distinguiu.
1. Introdução
A insolvência de uma sociedade é, como todos sabem, susceptível de ocasionar danos diversos, que atingem
sócios, credores e trabalhadores. São de facto afectados múltiplos interesses. Os credores, por exemplo, não
conseguem amiúde cobrar os seus créditos, pelo menos na íntegra, os sócios são confrontados com a
dissolução da sociedade e a liquidação do respectivo património, vendo esfumar-se o valor das suas
participações sociais, os trabalhadores perdem, em consequência da extinção da empresa, os seus postos de
trabalho e, com eles, o meio de sustento próprio e das suas famílias.
Atravessamos uma época de aguda sensibilidade para o problema. Infelizmente, os custos económicos, sociais
e humanos das situações de insolvência alimentam, diária ou semanalmente, noticiários televisivos e jornais.
Eles são hoje também potenciados pelos efeitos devastadores derivados que, numa fase de acentuada
globalização das relações económico-jurídicas, pode ter uma insolvência, ainda que longinquamente ocorrida.
A ruína recente e inesperada de alguns gigantes empresariais estrangeiros, por todos presenciada, não trouxe
apenas à luz do dia a necessidade de uma reflexão adequada sobre o papel e o perfil da auditoria e da
certificação das contas, tanto no plano da eficácia preventiva dessas situações, como no campo do
ressarcimento dos danos por elas causados. Também o estatuto dos administradores e a configuração dos seus
deveres estão hoje, forte e crescentemente, sob o escrutínio da crítica. Deste modo, a responsabilidade
(pessoal) dos administradores na insolvência corresponde a um tema da maior actualidade doutrinal e
relevância prática.
Encontramo-nos numa área de cruzamento entre a disciplina geral da imputação de danos aos
administradores, constante do Código das Sociedades Comerciais(1), e o conjunto de regras específicas do
direito falimentar. Apesar de uma relativa densidade normativa que, como se verá, importa reconhecer existir
na matéria, é ainda o recurso à doutrina comum da responsabilidade civil que pode proporcionar as mais
apropriadas linhas de enquadramento. Se nos precatarmos, por outro lado, da extrema variedade de hipóteses
formalmente abrangidas pelo tema da responsabilidade dos administradores na insolvência, facilmente se
concluirá pela extrema complexidade com que ele se nos apresenta.
As considerações que se seguem pretendem contribuir para o conhecimento desta relevante área
problemática. Sem prejuízo embora da necessária articulação com a disciplina geral da responsabilidade civil
dos administradores, procurará desbravar-se todavia, principalmente, o regime que decorre do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas(2), aprovado pelo Decreto-Lei n.° 53/2004, de 18 de Março, e
recentemente entrado em vigor. É essa a perspectiva adoptada.
O nosso objectivo é, essencialmente, saber se a insolvência pode, e em que termos, ser fonte de uma
obrigação de indemnizar para os administradores da sociedade por ela atingida.
De acordo com o art. 3 do CIRE, referimo-nos portanto à situação de o devedor se encontrar impossibilitado de
cumprir as suas obrigações vencidas.
Mas também se tem de considerar, como deriva do n.° 2 do aludido preceito, a situação de a sociedade
apresentar um passivo patrimonial manifestamente superior ao activo, segundo as regras contabilísticas
aplicáveis.
Interessa-nos, por outro lado, a responsabilidade na insolvência daqueles a quem, nos termos do art. 6,
incumba a administração ou liquidação da sociedade. Esta formulação da lei permitirá compreender, além dos
titulares do órgão social para o efeito competente, aqueles que exercem uma administração de facto. Mas são
os primeiros que primordialmente se terão em vista.
Estamos deste modo perante um problema que se dirá, em rigor, diametralmente oposto ao da
responsabilidade pela dedução de um pedido infundado de insolvência, igualmente de inegável interesse
prático. Mas este último cabe dentro de uma perspectiva mais completa da zona jurídica que temos de versar,
contribuindo para a sua compreensão. Daí merecer uma referência.
Dispõe centralmente a este respeito o art. 22: “A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência,
ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade pelos prejuízos causados ao devedor
ou a terceiros, mas apenas em caso de dolo.” Abrangem-se os danos patrimoniais e não patrimoniais. No art.
22 transluz sem dúvida o pensamento geral subjacente ao art. 484 do Código Civil (CC)(3), segundo o qual
“quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular
ou colectiva, responde pelos danos causados”.
Perante este preceito do CIRE, alguma doutrina sente a restrição da obrigação de indemnizar aos casos de
dolo como injusta, afirmando a responsabilidade em situações de mera negligência. Aceita para tal aplicar, se
necessário, aquela disposição por analogia, com base numa máxima histórica de identificação da culpa grave
ao dolo: culpa lata dolo aequiparatur(4).
Mas este é um caminho metodologicamente ínvio, inservível, embora tenha na sua base uma preocupação,
como se verá, até certo ponto compreensível. Os brocardos do direito romano, mesmo depois de devidamente
escrutinados no conteúdo que apresentam, não têm valor normativo próprio, nem se pode ignorar, mediante a
simples evocação do seu teor, o conteúdo expresso das normas.
Ora, o legislador foi expresso em restringir a responsabilidade, admitindo-a “apenas em caso de dolo”. A
analogia está portanto fora de causa.
Mas a própria interpretação extensiva também se encontra, para o efeito, prejudicada: não vale o pensamento
que não tenha no texto da lei um mínimo de correspondência verbal (cfr. o art. 9 n.° 2 do CC)(5).
Neste cenário, perante a concludência da limitação aos casos de dolo, dir-se-á que o legislador obriga na
prática o intérprete-aplicador inconformado a trilhar o difícil e rigoroso caminho do desenvolvimento contra
legem do Direito. Só que essa é uma ultima ratio cuja utilização há-de ser muito parcimoniosa, verificados
pressupostos muito estritos que têm sempre de demonstrar-se cuidadosamente.
Vale por isso a pena testar a possibilidade de uma redução teleológica do campo de aplicação do nosso
controverso preceito; de modo a permitir a intervenção de princípios ou regimes mais generosos de
responsabilidade (pela dedução do pedido infundado de insolvência) fora ou para além do seu alcance
normativo (teleo-logicamente reduzido).
Assim, pode por exemplo considerar-se a responsabilidade do credor (que deduz o pedido infundado de
declaração de insolvência) perante outro credor ou face a outro qualquer terceiro (como o sócio ou um
trabalhador), do credor (que deduz esse pedido) face à sociedade devedora, e da sociedade devedora (que se
apresenta infundadamente à insolvência) perante o credor, casos, estes dois últimos, de responsabilidade
numa situação em que lesado e lesante se achavam previamente relacionados entre si.
Este desdobrar de planos da responsabilidade tem por referente a diferenciação entre imputação aquiliana e
contratual de danos. É que, acolhendo-se—como deve aceitar-se—essa distinção, rectius, a distinção entre a
responsabilidade delitual e a ocorrida no âmbito de relações contratuais, obrigacionais ou, em todo o caso,
mais amplamente, no seio de ligações especiais entre sujeitos, cada uma delas com funções e regime próprios,
então compreende-se que o segundo tipo de responsabilidade pode ser mais rigoroso do que a primeiro,
dependente que fica das necessidades de protecção que uma certa relação particular possa, em justiça, pedir
ou justificar(6).
Com isso fica aberto o caminho para uma redução teleológica do campo de aplicação do art. 22: considerando
a norma nele contida essencialmente como regra que se situa no plano delitual, marcado pelo anonimato e
fungibilidade tendencial dos sujeitos, o que justifica especiais requisitos de responsabilidade.
Entendido com esse campo intencionado de aplicação, o art. 22 apresenta, de facto, uma conformidade
sistemática com o carácter restritivo da tutela delitual dos interesses económicos puros.
Entre nós, não há nenhum direito subjectivo (dos credores) à realização do crédito que seja delitualmente
protegido de forma genérica contra a negligência de terceiros concredores (ou outros). Como não existe
qualquer direito do credor “a prosseguir a sua empresa” que tenha esse tipo de tutela delitual geral: aquele
seu interesse (de detentor de uma empresa) deriva de uma mera liberdade de agir num espaço também
acessível a outros e no qual outros se movem também livremente. Não corresponde a um direito subjectivo
cujo respeito se imponha ao mero cuidado de terceiros.
Resumindo: não existe uma protecção aquiliana geral deste tipo de interesses (creditícios ou de titulares de
participações sociais) contra condutas simplesmente negligentes. Em compensação, em caso de dolo, esses
interesses são — têm inquestionavelmente de ser — protegidos.
Estas asserções reflectem evidentemente um modo de resolver a questão da tutela externa do crédito perante
terceiros, que não pode agora recapitular-se. De todo o modo, importa reiterar que o direito delitual não
conhece, de lege lata, nenhuma protecção genérica de interesses patrimoniais puros em caso de mera
negligência.
É o que decorre do art. 483 n.° 1 do CC: descontadas as hipóteses, sempre limitadas, da violação de
disposições específicas destinadas à tutela de interesses alheios, só existe, em princípio, responsabilidade
aquiliana quando se viola o direito de outrem. Mas é preciso tratar-se de um direito absoluto (ou de uma
posição absoluta). Não pode configurar-se como tal o interesse do concredor na actividade económica da sua
própria empresa. Do mesmo modo que o não pode ser o interesse do sócio da empresa ou de um trabalhador
seu na continuação, sem sobressalto, da actividade da sociedade daquele titular, muito embora também os
sócios ou os trabalhadores sejam susceptíveis de serem afectados pelo pedido infundado de insolvência
apresentado por outrem.
A empresa de um terceiro (leia-se, aqui, do credor afectado por um pedido infundado de insolvência de um
concredor) não é objecto de um direito (dirigido à respectiva continuação ou à prossecução da respectiva
actividade) que se imponha ao cuidado dos demais, porque a tutela que ela mereceria iria colidir com a
liberdade económica dos demais. Para a responsabilidade têm de requerer-se assim circunstâncias especiais.
Nisso pode sempre louvar-se a exigência do dolo(7).
Por razões basicamente idênticas, não pode impor-se a nenhum sujeito, salvo circunstâncias especiais, um
sacrifício à sua liberdade económica em nome da preservação de posições societárias alheias ou do direito ao
trabalho (rectius, a uma retribuição do trabalho) de um estranho. Também aqui a responsabilidade reclama
requisitos especiais.
É que para o direito delitual, quando a ordem jurídica não confere a um sujeito um certo bem jurídico, dando-
lhe em relação a esse bem uma prerrogativa de exclusão dos demais e tutelando por isso erga omnes a
violação da atribuição por esse modo feita, a regra é a liberdade (dos terceiros). Sem discriminar entre
sujeitos, porque eles são por princípio de considerar como iguais nessa autonomia referida à prossecução dos
seus interesses. Deste modo, só ponderações específicas poderão legitimar o sacrifício de um em relação a
outro.
Mas é naturalmente compreensível que o direito delitual trace uma fronteira indiscutível a todos os
comportamentos: considerar-se-ão proibidas e sancionadas aquelas condutas que sejam determinadas pelo
único ou principal propósito de causar danos.
À luz destas considerações, torna-se claro que a preocupação restritiva do art. 22 não é destituída de ‘algum’
sentido. Seria infeliz reescrevê-lo em ordem a reconhecer uma ampla responsabilidade por ofensa de
interesses patrimoniais puros em caso de mera negligência.
Podemos, portanto, concluir, quanto ao campo do art. 22, que nele se abarca o âmbito das relações dos
credores com outros credores, ou seja, do credor que apresenta um pedido infundado de insolvência com
aqueles sujeitos que têm pretensões concorrentes do seu crédito. Do mesmo modo, abrangem-se ainda as
relações dos credores com outros terceiros, como sócios e trabalhadores da sociedade de que foi pedida a
insolvência. Os prejuízos meramente económicos infringidos a terceiros requerem ordinariamente o dolo. Cada
um cuida de si e não tem obrigações de diligência em relação aos interesses dos outros. O dolo como requisito
de uma imputação de danos justifica-se porque traz a nota do comportamento que permite ancorar uma
reprovabilidade digna de desencadear a obrigação de indemnizar.
E atinge o administrador da sociedade que desencadeou sem fundamento o processo de insolvência de uma
outra. Pela sua natureza, o dolo tende a ser sempre fonte de responsabilidade, ainda que a conduta do titular
do órgão se possa também imputar à sociedade. A situação cai no âmbito do n.° 1 do art. 79 do CSC porque,
no caso de ter procedido com dolo, o administrador causou “directamente” um prejuízo a terceiro no
exercício das suas funções.
Esclareça-se agora que, para efeitos de indemnização por dolo, não basta evidentemente um credor pretender
obter o pagamento do seu crédito, embora sabendo que com isso fará perigar ou prejudicará de facto a
possibilidade de satisfação de um outro credor. (Instaurado o processo de insolvência, apenas o devedor está
vinculado ao princípio da igualdade entre credores.) A responsabilidade do credor por dolo não deriva em si da
mera prossecução da vantagem própria, ainda que em detrimento dos demais credores.
Radica antes no facto de empregar a dedução de um pedido infundado de insolvência com vista a uma
finalidade que não é coberta pelo processo de insolvência. A conduta geradora da obrigação deriva da
instrumentalização desse pedido para um fim alheio àquele em vista do qual ele foi colocado à disposição dos
sujeitos pela lei. Esta é uma nota distintiva importante, que aproxima as nossas hipóteses do quadrante do
abuso do processo e da responsabilidade do litigante de má fé. Sem esquecer embora que o teor normativo do
art. 22 não foi traçado com recurso ao pensamento da disfuncionalidade no exercício de posições jurídicas.
Mutatis mutandis se há-de discorrer no que concerne à atitude de quem quer que, utilizando o expediente da
dedução de um pedido infundado de insolvência, queira realizar um interesse próprio e sacrifique por essa via
os sócios ou trabalhadores da sociedade contra quem o pedido é apresentado.
Entre lesado e lesante existia, numa situação e noutra, uma relação especial, de crédito. Como se disse, no
seu seio podem vigorar perfeitamente parâmetros mais rigorosos de apreciação da conduta do agente para
efeito de uma obrigação de indemnizar. E de facto: credor e devedor estão entre si ligados por uma relação
específica (construída em torno da obrigação). Aplica-se o art. 762 n.° 2 do CC: “No cumprimento da
obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.” Entre as
partes na relação especial existem deveres de protecção (de cuidado e diligência) para defesa de interesses
patrimonais puros (incluindo os da saúde das empresas e da continuação da respectiva actividade). Esta é até
uma das utilidades mais palpáveis da doutrina dos deveres de protecção(9).
Tais deveres de protecção constituem portanto, de harmonia com o que dissemos, o alicerce da construção
que, sem forçar o teor literal do art. 22, reduzindo teleologicamente ao plano delitual o campo da sua
aplicação, permite ao devedor e ao credor que respondam reciprocamente um perante o outro em caso de
dedução infundada de insolvência meramente culposa. Aqui parece-nos residir uma chave muito relevante
para resolver o problema da negligência.
Observe-se agora que estes mesmos deveres de protecção são susceptíveis de fundamentar uma
responsabilidade pessoal dos administradores por mera culpa perante os sócios e os credores em caso de
apresentação infundada à insolvência. Mas com uma condição, inquestionavelmente limitadora de uma
imputação de pre-juízos por negligência: é que se torna necessário que entre os administradores e os lesados
se possa afirmar e justificar, tendo em conta as particularidades do caso concreto, uma relação especial que
vinculava os primeiros a um cuidado e diligência para com os interesses patrimoniais dos segundos que vieram
a ser afectados (o que é mais fácil ocorrer com respeito a sócios do que a credores).
Transcende-se, sem dúvida, o âmbito do art. 78 do CSC, que apenas contempla a hipótese (de algum modo
oposta à presente, da imputação de um dano ocorrido pela pretensão infundada de insolvência) de uma
responsabilidade dos administradores por insufi-ciência do património social para a satisfação dos créditos.
Mas, por outro lado, a doutrina dos deveres de protecção nas relações especiais (com sócios, credores ou
outros terceiros) é plenamente conforme com o disposto no art. 79 do CSC, preceito que não pode, por sua
vez, densificar-se adequadamente sem ela(10).
Ainda assim, a responsabilidade por negligência deste modo delineada deve ser contida dentro de justos
limites. Ela não pode afirmar-se pelo simples facto de, deduzido o pedido de insolvência, este vir a ser
rejeitado. É que, por princípio, é ao tribunal que compete, no âmbito do processo de insolvência, apurar a
insolvência. O administrador que desencadeia o respectivo pedido deve evidentemente fazer uma avaliação
sensata das condições de êxito do mesmo, mas não se lhe pode pedir que actue com a certeza que apenas o
juiz pode pode obter no decurso do processo.
Algumas observações completarão a “leitura” que sugerimos. Em primeiro lugar, mesmo admitindo para estes
últimos casos, nos moldes vistos, uma responsabilidade (limitada) por negligência em caso de pedido
infundado de insolvência, há algum acerto “prático” em abonar-se a perspectiva da restrição da
responsabilidade que inspirou o art. 22. Com efeito, o credor—o mesmo vale para o respectivo administrador —
não tem ordinariamente interesse em solicitar sem motivo a insolvência do seu devedor, pois é melhor
tutelado com a acção de cumprimento e a execução singular de dívidas. E também a sociedade devedora e os
seus administradores raramente terão interesse em se apresentar sem necessidade à insolvência, pelas
consequências desfavoráveis que esta pode implicar para ambos. A dedução de um pedido ou de uma
apresentação à insolvência será, portanto, normalmente fruto de um mero erro de avaliação que é do
interesse típico dos sujeitos não cometer.
Uma responsabilidade civil por negligência parece pois não ter a desempenhar aqui uma missão preventiva
imperiosa nem poderá ser defendida em nome de uma eficácia dissuasora imprescindível.
Por outro lado, importa não esquecer que existe um dever de apresentação à insolvência que recai sobre os
administradores, nos termos do art. 18 do CIRE. Trata-se de uma disposição de protecção que visa proteger os
credores contra certo risco da diminuição do património social—um interesse meramente patrimonial—e cuja
violação dá lugar a responsabilidade por mera negligência. A conduta dos administradores é assim escrutinada
para efeito de responsabilidade desde uma dupla perspectiva: ou porque eles não apresentam a sociedade à
insolvência quando devem, ou porque a apresentam quando não devem. Neste espaço de tensão entre duas
exigências de sinal contrário se hão-de movimentar as considerações de uma responsabilidade que é
susceptível, afinal, de colocar os administradores no “fio de uma navalha”. Desta sorte, há-de sempre
ponderar-se que um excesso de responsabilidade do administrador por dedução de um pedido infundado de
insolvência poderia tolher o dever de apresentação à insolvência. Se se puser a tónica na tutela dos credores
que a apresentação à insolvência pode propiciar, é consequente uma restrição da responsabilidade por
apresentação infundada à insolvência.
Observe-se ainda que os casos típicos de coacção moral do credor sobre o devedor para cobrança do crédito,
ameaçando-o através da dedução de um pedido de insolvência injustificado(11), ou a vingança posterior do
credor pela não satisfação do crédito mediante o mesmo género de conduta, implicam o dolo e caem assim,
sem sombra de dúvida, nas malhas do art. 22. Outras hipóteses de dedução do pedido de insolvência, de modo
a obter certos efeitos colaterais como o exercício de pressão sobre o devedor para que ele consinta numa
transacção, para o afastar do mercado como concorrente, para obter um conhecimento mais exacto das
relações patrimoniais de que é titular, para encontrar um pretexto que permita pôr termo a uma relação
contratual duradoura, etc., realizarão também normalmente a previsão desse preceito. A responsabilidade por
dolo atingirá, como é natural, os administradores da sociedade que deduziu o pedido; ao abrigo do acima
referido art. 79 n.° 1 do CSC.
Já a dedução de um pedido de insolvência que é meramente desconforme com uma conduta precedentemente
tomada pelo credor, como a concessão de uma moratória, não implica necessariamente o dolo (o venire,
enquadrável no abuso do direito, não implica essa forma de culpa(12)). Também será discutível, pelo menos
em certas circunstâncias, se a desproporção entre as vantagens do credor e os inconvenientes para o devedor
atingido pelo pedido é fonte de responsabilidade. Pense-se numa dívida de diminuto valor na base do pedido
(que se pretende provoque a consequência “dura” da insolvência). A afirmação da responsabilidade requer
então, em todo o caso, a ultrapassagem do requisito do dolo. Em nenhum destes casos, porém, a ordem
jurídica reage ao pedido de insolvência por ausência de fundamento: estamos já para além do núcleo
específico do art. 22.
Aliás, não é proibida a dedução de um pedido de insolvência a pretexto de a sociedade credora (ou a sua
administração) poder prognosticar a inutilidade respectiva por falta de bens com que possa fazer-se pagar.
Constitui finalidade precípua do processo de insolvência afastar da vida económica aqueles que não estejam
em condições de nela participar sem pôr em risco, pela sua insolvência, a normalidade do seu curso.
Importa também salientar que o problema da restrição da responsabilidade pelo pedido infundado de
insolvência ao dolo deve ser resolvido considerando o regime da responsabilidade do exequente por danos
causados ao executado. Verifica-se que este contempla uma imputação de danos causados com mera
negligência(13). Ora, a coerência valorativa aponta resolutamente para a posição que defendemos: na relação
entre credor e devedor, aquela limitação a casos de dolo não se aplica.
De resto, ela não corresponde também aos vectores gerais da responsabilidade dos administradores prevista
no CSC (cfr. aí os arts. 78 e 79), a qual se basta ordinariamente com a mera negligência, mesmo face a
terceiros, embora possa requerer então— limitadoramente—a fundamentação de uma relação especial.
Abstractamente, pode resolver-se a discrepância mediante a aceitação de uma relação de especialidade (ou
de excepcionalidade) do regime da insolvência em relação àquela disciplina; em alternativa, terá de assumir-
se e explicar-se uma dissonância valorativa. Não pode agora prosseguir-se uma reflexão na área do concurso
de normas, que obrigaria a ponderações sistemáticas bastante vastas. Mas as considerações precedentes
relevam indiscutivelmente para esclarecer o tipo de desconformidade que se nos depara. A imputação por
negligência do CSC convida, como é natural, a reduzir ao adequado o campo do desvio trazido pelo art. 22 do
CIRE.
Problema semelhante se coloca no confronto entre o regime restritivo da indemnização pelo deduzir de um
pedido infundado de insolvência (ao dolo) e a responsabilidade em caso de litigância de má fé. Está
particularmente em causa o disposto na al. a) do n.° 2 do art. 456 do Código de Processo Civil, o qual
estabelece a responsabilidade como litigante de má fé daquele que, com dolo ou negligência grave, tiver
deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar. Agora é uma norma de direito
adjectivo (formal)—no caso, prescrevendo uma indemnização pela dedução de pretensões processuais
infundadas—a concorrer com o art. 22 do CIRE. O problema terá, mais uma vez, que ficar tão-só apontado,
atenta a sua vastidão. Não está propriamente em jogo uma responsabilidade por conduta processual
reprovável (instaurada já a relação processual), mas a configuração do conteúdo e limites do direito de
acção(14), bem como a sua articulação com o direito subjectivo e os limites ao seu exercício, nomeadamente
com o abuso do direito. Avoca-se também aqui mais do que a questão geral da natureza substantiva ou
adjectiva do subsistema da disciplina da insolvência (na sua globalidade): deve interrogar-se a qualificação
substantiva ou processual da norma concreta cuja violação gera responsabilidade.
À partida, o que está em causa no art. 22 é uma dimensão substantiva, cujo âmbito necessariamente
condicionará o campo da litigância de má fé. O art. 456 do Código de Processo Civil e o art. 22 do CIRE contêm
em qualquer caso regulações específicas que prevalecem sobre as regras do direito comum da imputação de
danos.
De todo o modo, saliente-se que a responsabilidade do litigante de má fé não se satisfaz com qualquer tipo de
culpa. Requer negligência grave. É uma necessidade de um estado de Direito que cada um possa aceder à
possibilidade de pleitear sem riscos excessivos (como compensação da proibição da autodefesa). Para a lei
processual dir-se-á que já é suficientemente dissuasor de um litigar leviano (com prejuízo de outrem) a
responsabilidade por custas que impende sobre aquele que decai na acção.
Centremo-nos agora na questão, de algum modo inversa da da responsabilidade pela dedução de um pedido
infundado de insolvência acabada de considerar, que consiste no perguntar pelos termos da responsabilidade
dos administradores na ocorrência efectiva de uma situação de insolvência. É ela que mais directamente
corresponde ao tema presente.
Observa-se que o CIRE não contém apertis verbis nenhuma norma de imputação de danos. O legislador aboliu o
regime dito de “responsabilização solidária dos dirigentes” constante do anterior Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (aprovado pelo Decreto-Lei n.° 132/93, de 23 de Abril)
(15). O diploma substituído continha normas expressas de “responsabilização” dos administradores. Previa-se
inclusivamente a declaração da falência dos administradores(16). Era certamente de esperar, numa época
marcada pelo agudizar do fenómeno da insolvência no nosso país e tendo em conta o objectivo, professado
solenemente no preâmbulo do CIRE, de alcançar “uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares da
empresa e dos administradores da pessoa colectiva”(17), que se regulasse com especial decisão a questão.
Mas não se previu, no plano substantivo, esta responsabilidade. Considerou-se que o regime do código anterior
não era, nem tecnicamente correcto, nem idóneo ao fim a que se destinava. Preferiu-se, por isso, criar, com
outros efeitos, o “incidente de qualificação da insolvência”(18). Aberto oficiosamente em todos os processos
de insolvência, ele destina-se a apurar se a insolvência é fortuita ou culposa (cfr. arts. 188 e 189 n.° 1).
O CIRE declara, genericamente, a insolvência culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em
consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou
de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (art. 186 n.° 1). Neste último caso, a
insolvência tem consequências gravosas para os atingidos. No entanto, tais consequências cifram-se na
inabilitação dos declarados culpados por um certo período, na inibição temporária para o exercício do
comércio ou para se ser titular de órgão de pessoa colectiva, bem como na perda dos respectivos créditos
sobre a insolvência e na condenação à restituição dos bens já recebidos em pagamento desses créditos (cfr. o
art. 189 n.° 2).
A sentença que qualifica a insolvência como fortuita ou culposa não aprecia, portanto, a (eventual)
responsabilidade civil dos administradores(19). Tal qual estipula o art. 185, a qualificação da insolvência
enquanto culposa ou fortuita não é vinculativa para efeito, tanto de causas penais, como de pedidos
indemnizatórios (directamente, daqueles a que se reporta o n.° 2 do art. 82(20)). As consequências da
insolvência culposa são outras, como vimos: inabilitantes e inibitórias (além de extintivas dos créditos dos
culpados sobre a insolvência, ou condenatórias da restituição do que receberam em ordem à sua satisfação).
Quer dizer que o intérprete-aplicador tem de encontrar a solução do problema da imputação dos prejuízos aos
administradores pela causação culposa de uma insolvência recorrendo às normas e aos princípios gerais, o que
é dizer, basicamente, ao disposto no CSC.
É verdade que este silêncio em matéria de imputação de danos aos administradores não inibe o intérprete-
aplicador de proceder à configuração dos respectivos pressupostos e condições, e que as indicações do CIRE
sobre a insolvência culposa no âmbito do incidente de qualificação da insolvência podem e devem ser
consideradas, adquirindo, como se dirá, grande relevância. No entanto, sem embargo de tantas vezes termos
de condenar os desvarios de prolixidade da lei, depara-se aqui uma situação em que a sua excessiva
parcimónia dificulta a eficácia do combate às insolvências culposas e às suas consequências.
De todo o modo, não é exacto que o CIRE tenha ignorado de modo absoluto o problema da responsabilidade
dos administradores. Limitou-se porém a regular aspectos adjectivos. Na verdade, o art. 82 n.° 2, als. a) e b),
reconhece ao administrador da insolvência, durante a pendência do processo de insolvência, legitimidade —
uma legitimidade exclusiva — para fazer propor e seguir “as acções de responsabilidade que legalmente
couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto,
membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo
do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros”, bem como “as acções destinadas à
indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do
património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de
insolvência”. Tais acções correm por apenso (art. 82 n.° 5).
O n.° 2 do art. 82 contempla aquelas acções que são (e devam ser) em benefício directo da generalidade dos
credores ou então, em prol do devedor e, por via disso, susceptíveis de aproveitar, reflexa ou indirectamente,
à generalidade desses mesmos credores. Estes interesses dos credores são individuais, mas homogéneos(21).
No caso da al. b), a homogeneidade resulta meridianamente do fundamento da acção, sendo também que,
face à al. a), a vantagem susceptível de resultar para os credores da respectiva acção se repercute com
igualdade pelos credores.
Pode concluir-se que as acções destinadas a satisfazer interesses meramente singulares (não comuns) de
reparação de danos por parte dos credores da sociedade insolvente contra os seus administradores são
autónomas. Do mesmo modo, as acções dos sócios contra esses mesmos administradores.
Os termos substantivos essenciais em que se coloca o problema da responsabilidade dos administradores pela
causação de uma insolvência decorrem, como se deduz, do regime da responsabilidade dos administradores
previsto no CSC.
Em traços muito gerais, pode apontar-se em primeiro lugar que “[o]s gerentes, administradores ou directores
respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição
dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa” (art. 72 n.° 1 do CSC). E
concedeu-se legitimidade, não só à sociedade, mas, em certos termos, também aos sócios, para intentarem a
correspondente acção (cfr. os arts. 75 e 77 do CSC).
Que a sociedade — não apenas os sócios — pode ser (ela própria) titular do direito a uma indemnização contra
os administradores numa situação de insolvência confirma-o claramente o já referido art. 82 n.° 2, a) do CIRE.
Aplica-se então o art. 72 do CSC acabado de mencionar. Ver-se-á depois que o CIRE dá indicações para a
concretização ou especificação dos deveres a que os administradores estão adstritos, contribuindo para a
fixação do alcance deste preceito.
Mas essa responsabilidade dos administradores perante a sociedade não atinge aqueles que, nos termos do art.
72 do CSC, não tenham participado na deliberação de administração danosa ou tenham votado contra ela,
assim como se a conduta dos administradores assentou em deliberações dos sócios, ainda que anuláveis.
Por outro lado, dispõe-se no CSC, que “[o]s gerentes, administradores ou directores respondem para com os
credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à
protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos” (art. 78
n.° 1).
Já no que toca à responsabilidade dos administradores por violação de normas legais, há, como se frisará,
disposições do CIRE que se configuram como regras destinadas à protecção de interesses alheios—de credores
—, cujo desrespeito gera, assim, uma obrigação de indemnizar.
Observe-se, de qualquer modo, que o art. 78 do CSC faz depender sempre a responsabilidade de que, por
causa da violação culposa de certas normas legais, o património se torne insuficiente para a satisfação dos
credores. O que coloca um problema. É que a imputação do dano, segundo este preceito, não se recorta
exactamente pelo teor da situação de insolvência, descrita no art. 3 do CIRE. A insolvência não surge apenas
quando o património social é manifestamente deficitário (com os activos muito abaixo do passivo)—situação
coberta pelo aludido art. 78—, mas também, desde logo, quando há impossibilidade de cumprir as obrigações
vencidas, e esta hipótese não está contemplada pelo art. 78 do CSC.
Pelo que, nesta última situação, a responsabilidade para com os credores tem de ter outros referentes legais.
Como, para defesa dos credores, o recurso ao art. 79, a seguir mencionado, é limitado — dado que a
imputação de danos por mera negligência dependerá ordinariamente da possibilidade de afirmar, perante o
caso concreto, a existência de deveres especiais do administrador perante o terceiro—, restam vias mais
gerais. Aludimos particularmente à possibilidade de algumas normas do CIRE terem o estatuto de disposições
de protecção dos credores cuja viola-
ção gera responsabilidade, não já ao abrigo do art. 78 do CSC citado, mas autonomamente por força do art.
483 n.° 1, 2.ª parte, do CC.
Observe-se também que, segundo e para os efeitos do art. 82 do CIRE, a acção de responsabilidade para com
os credores aproveita a todos eles por igual, o que marca uma diferença em relação ao art. 78, perante o qual
cada credor age, em princípio, individualmente, no seu exclusivo interesse e benefício(23).
Por último, importa referir o art. 79 do CSC, nos termos do qual “[o]s gerentes, administradores ou directores
respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes
causarem no exercício das suas funções”. Requere-se, no dizer da lei, um nexo “directo” entre a conduta e o
dano, que o prejuízo sofrido por sócios e terceiros não seja portanto meramente reflexo, derivado do dano
causado à própria sociedade. Tal quererá normalmente significar que hão-de ter sido violados deveres
específicos perante os sócios ou os terceiros (por exemplo, trabalhadores). Na explicitação do preceito —
seguramente complexa—, pensamos, como se vê, que a doutrina das relações especiais tem um papel
determinante. Assim, há responsabilidade do administrador perante um sócio, um trabalhador ou, mesmo, um
credor se havia uma relação especial entre os sujeitos que fundava um concreto dever do administrador para
com algum destes, dever esse que foi infringido(24). Esta construção interessará em especial em casos de
negligência, porque se existiu dolo de lesão parece que o requisito da causação directa de danos se deve ter
por verificado(25).
Contudo, o recurso aos sobrecitados preceitos do CSC não prejudica nem significa a inaplicabilidade de formas
de responsabilização ao abrigo do direito civil comum. Em boa medida, as regras aí contidas correspondem a
simples normas de enquadramento.
Assim, o administrador que sabidamente enganar aquele com quem a sociedade se dispõe a contratar acerca
da capacidade de a sociedade honrar os seus compromissos (por exemplo, assegurando uma facilidade de
recurso ao crédito que não existe) responderá por a sua conduta representar uma lesão intencional do parceiro
contratual contrária aos bons costumes comerciais.
Há também ocasiões em que, sob pena de incorrer em responsabilidade, o administrador tem mesmo o dever
pessoal de esclarecer o parceiro contratual acerca do estado financeiro da sociedade de modo a prevenir
expectativas injustificadas. Tal vale particularmente quando entre o administrador e o terceiro com quem a
sociedade negoceia um contrato existia uma relação especial (prévia) que o envolvia pessoalmente e o
obrigava a especiais deveres de cuidado e protecção perante a contraparte. A sua responsabilidade pode
emergir aqui da boa fé e da culpa in contrahendo (de terceiro)(26).
5. (cont.) Dever de diligência, business judgment rule e dever de fidelidade dos administradores
Esta disposição é central porque se repercute nos diversos planos em que se coloca a responsabilidade dos
administradores, seja esta objecto ou não de previsão específica. Ela articula-se, designadamente, com os
citados arts. 72, 78 e 79 do CSC, tendo, como é natural, sentido e alcance não coincidentes quando conjugada
com cada um deles. A sua relevância deriva de nela se conter um padrão, não apenas de culpa, mas, desde
logo, de ilicitude, susceptível de integrar as normas de responsabilidade civil referidas e de lhes precisar o
alcance. Com efeito, a diligência de um gestor criterioso e ordenado corresponde a um estalão abstracto e
genérico da conduta, estabelecido por aquilo que é em média exigível a quem administra, e, por isso, apronta
um critério independente de saber se o concreto gerente ou administrador podia em certa situação específica
observá-lo, em termos de ser susceptível, se o não fez, de uma censura pessoal. O art. 64 não é uma pura
norma de enquadramento, insusceptível de violação e sem possibilidade de, conjugada com outras normas,
determinar consequências jurídicas(27).
Mas está fora de causa a afirmação indiscriminada da responsabilidade dos administradores na insolvência. No
desempenho das funções de direcção, os administradores gozam de autonomia, dispondo de espaços amplos
de livre apreciação. Tal é desejável e a responsabilidade civil terá de o respeitar; pelo que quando o resultado
da gestão é a insolvência, isso não se afigura suficiente para alicerçar uma obrigação de indemnizar com
recurso ao art. 64 do CSC.
Vale a pena sublinhar este aspecto. Não há responsabilidade só porque uma dada gestão não teve êxito.
Aceitá-la colidiria com o risco da própria empresa, com a necessidade de tornar a administração atractiva e
razoavelmente protegida de acções de responsabilidade, de modo a permitir a adopção de medidas audazes;
contrariaria, portanto, a agilidade das empresas e a competitividade destas, com prejuízo para toda a
economia.
No fundo, uma concretização adequada do art. 64 terá de reflectir equilibradamente a tensão entre a
necessidade de preservar a integridade do património social, ou o acquis do empreendimento societário, por
um lado, e, por outro, a necessidade de corresponder com o devido dinamismo aos impulsos de evolução da
vida societária e empresarial.
Cremos que essa concretização poderia com vantagem seguir, entre nós, a inspiração da business judgment
rule norte-americana(28). Segundo este modelo, a gestão é, em princípio, sujeita a um simples controlo de
procedimentos de administração, excluin-do-se portanto, genericamente, a valoração judicial do mérito dos
actos de direcção, necessariamente ex post. Mas haverá já sindicância do resultado se uma decisão violou
regras procedimentais; por exemplo, se o administrador se encontrava, quanto a ela, em conflito de
interesses, se não se informou razoavelmente antes de a tomar, de modo a calcular devidamente os
respectivos riscos, se discriminou ilegitimamente entre sócios ou entre credores, ou se, por outra via, não
pautou a sua decisão pelo interesse social. Caso nada seja nestes planos susceptível de ser apontado ao
administrador, parece que uma insolvência apenas lhe deverá ser imputada na hipótese extrema de radicar
numa opção de gestão inequívoca e manifestamente irracional(*). O consenso acerca do que sejam as
“melhores práticas” (best practices) proporciona aqui um importante critério(29).
Temos assim que, voltando agora ao art. 64 do CSC, a diligência se identifica antes de mais com um processo
decisório, e a decisão tomada se legitima pelo processo.
A posição de partida que daqui decorre quanto à responsabilidade dos administradores ocorrida uma situação
de insolvência é diferente de admitir que a gestão que a ela tenha conduzido é totalmente insindicável. Como
não a cinge aos casos em que ocorreu um erro grosseiro, porque esse erro pode também referir-se à ausência
de um iter decisório adequado e, quando tal se verifique, seria demasiado restringir a responsabilidade a casos
de negligência grave. E é distinta também de admitir que a gestão só dá lugar a uma obrigação de indemnizar
quando se tenham mostrado preteridos concretos e específicos deveres legalmente plasmados, como o de
apresentar relatório de actividade e contas.
De qualquer forma, há deveres dos administradores que não lhes consentem margens de apreciação e que são,
nesse sentido, de cumprimento estrito. Trata-se de adstrições sem cuja observância não é—segundo a ordem
jurídica—possível ou pensável uma correcta administração (ao serviço dos interesses apontados no art. 64).
Assim, os administradores têm para com a sociedade um dever geral de fidelidade(30), que os impede de
exercer as suas competências em proveito próprio ou em benefício de terceiros influentes, ou de discriminar
entre accionistas, ou de actuar consabidamente em prejuízo da sociedade. Este dever geral é susceptível de
se desdobrar em múltiplas proibições: no dever de não concorrência, de não actuar em conflito de interesses,
de não aproveitar oportunidades societárias para si ou para outrem, de não prosseguir por outra via interesses
extra-sociais, de não agir conscientemente em prejuízo da sociedade, etc.. Vincula o administrador à defesa
intangível do interesse social e proscreve que se prossigam interesses pessoais ou de terceiros, em detrimento
do interesse social.
Há uma relação fiduciária entre o administrador e a sociedade. O serviço que ele presta a favor da sociedade
envolve a atribuição de poderes alargados sobre ela e sobre o seu património. Mas esses poderes podem ser
mal usados, sendo por outro lado que não é fácil aos sócios exercerem, sobretudo preventivamente, um
controlo adequado do modo como eles são exercidos(*). Tudo fundamenta que um especial dever de lealdade
conforme, ab intra, a relação de administração, como uma modelação desta(31).
Esta curta digressão pelo dever de fidelidade justifica-se especialmente. Na verdade, a maior parte das
situações qualificadas de insolvência culposa pelo art. 186 do CIRE corresponde a especificações deste dever
e, como se terá oportunidade de frisar, a sua violação tem consequências no plano da responsabilidade.
Conclua-se. As disposições gerais permitem alicerçar uma responsabilidade dos administradores pela
insolvência, mas esta precisa de ser cuidadosamente fundamentada perante aquelas. Em princípio, onde a lei
não disponha de modo directo ou indirecto sobre esta responsabilidade, a obrigação de indemnizar coliga-se à
violação do dever de fidelidade (ou de alguma das suas concretizações); a infracção do dever de boa
administração apenas parece, por seu turno, ter esse efeito em caso de inobservância de um processo
decisório adequado, com ressalva embora de uma imputação dos danos ao administrador se a gestão foi
patentemente irracional.
Tenha-se sempre presente que o espaço da responsabilidade pela insolvência se afirma num campo de tensão
com a responsabilidade pela não apresentação à insolvência. Porque, como se sabe, o administrador é
igualmente susceptível de responder se não se apresentar à insolvência.
Toda a responsabilidade dos administradores na insolvência, qualquer que seja o plano em que ela se desdobre
— perante credores, a própria sociedade, os seus sócios, credores comuns, trabalhadores ou outros terceiros —
radica numa violação culposa de deveres que carecem, como se disse, de ser especificados no processo de
aplicação do Direito. O cumprimento desta exigência encontra-se porém muito facilitada, uma vez que, no
art. 186 do CIRE, se encontra positivado um conjunto numeroso de situações tidas como de insolvência
culposa. Disse-se já que essa positivação visava de modo directo consequências distintas da obrigação de
indemnizar. Contudo, ela tem, repercussões no plano das acções por perdas e danos.
Em primeiro lugar, importa frisar que o elenco de hipóteses constante do referido preceito presta um auxílio
inestimável ao intérprete-aplicador na hora da concretização dos deveres dos administradores que possam ter
sido violados. Esses deveres são múltiplos e variam em função do fundamento de responsabilidade.
O apuramento da existência ou não de uma relação (prévia) entre lesado e lesante e da sua configuração
revela-se com frequência essencial. Há com efeito deveres que brotam da relação de administração. Noutros
casos, eles derivam de uma ligação especial de outro tipo entre o administrador e o lesado (sócio,
trabalhador, etc.). Estando em causa o fazer valer de uma responsabilidade emergente de uma relação
especial (contratual ou não), o elenco de situações de insolvência culposa do art. 186 permitirá portanto uma
densificação dos comportamentos que são devidos por essa relação. No âmbito desse elenco dilui-se no fundo
a necessidade de um particular investimento argumentativo para individualizar e fundamentar o dever cuja
violação gera a obrigação de indemnizar: as diversas hipóteses previstas no art. 186 n.° 2 desdobram diante do
intérprete-aplicador um conjunto de adstrições que pacificamente se aceitará estarem incluídas, quer entre
os deveres emergentes da relação (fiduciária de administração) que une o administrador à sociedade, quer de
outras relações especiais que aquele tenha encetado com os demais sujeitos (sócios, credores, trabalhadores)
por via da sua qualidade de administrador. Nestes termos, estas hipóteses são um arrimo primordial no
preenchimento, nomeadamente, dos arts. 64, 72 e 79 do CSC.
Mas o art. 186 do CIRE também auxilia o intérprete-aplicador se se trata de estabelecer os termos de uma
responsabilidade do administrador, ocorrida uma situação de insolvência, perante aqueles com os quais não
tinha estabelecido qualquer relação; quando, portanto, se testa a conduta do administrador para efeito de
responsabilidade aquiliana e de acordo com os critérios desta última.
No plano delitual, não pode porém esquecer-se que os danos económicos puros causados a terceiros — como o
são tipicamente os derivados de uma situação de insolvência — não têm entre nós protecção genérica, só
sendo em princípio tutelados nas situações em que a negação de tutela se apresente insuportável para a
ordem jurídica(32). O que ocorrerá certamente em caso de dolo.
Mas, enquanto o dolo parece ser sempre fonte de responsabilidade civil, a negligência não basta para a
imposição de uma obrigação de indemnizar. Aquele, portanto, que tenha um crédito que não conseguiu
realizar pela incúria de um administrador (que provocou a falência da sociedade) não dispõe em regra de
acção delitual contra ele, porque o crédito não goza de tutela delitual geral: não corresponde a um daqueles
direitos que, face ao art. 483 n.° 1 do CC, é irrestritamente protegido contra violações (meramente) culposas
de quem quer que seja. Abstraindo da hipótese, precedentemente analisada, de uma via não delitual de
responsabilização com fundamento na violação de específicos deveres resultantes de uma (concreta) relação
(especial) entre o administrador e esse credor, resta a esse sujeito, no âmbito delitual, a possibilidade, que
abaixo se examinará, de beneficiar de uma disposição de protecção ao abrigo, ou do n.° 1 do art. 78 do CSC,
ou da 2.ª parte do n.° 1 do art. 483 do CC.
Nesta perspectiva, não parece viável considerar-se que as hipóteses do art. 186 n.° 2 do CIRE correspondem a
deveres no tráfico susceptíveis de preencher uma imputação delitual derivada da violação (mediata ou por
omissão) de um direito de outrem. A ampla admissão de deveres aquilianos para a defesa de interesses
puramente patrimoniais) romperia o sistema de responsabilidade civil vigente(33).
No entanto, o art. 186 n.° 2 pode interpretar-se em parte como positivação concretizadora de situações em
que o dolo desencadeia a responsabilidade independemente da natureza do interesse atingido, em
conformidade com o sistema geral de responsabilidade vigente.
Não vai retomar-se agora em toda a extensão o papel e o lugar da infracção de normas deste tipo no contexto
global da responsabilidade delitual(34). Recordar-se-á apenas que este género de responsabilidade pode
complementar e concretizar outras situações de responsabilidade (desde logo a da violação ilícita, com dolo
ou mera culpa, de direitos de outrem), mas é susceptível também de desempenhar uma função totalmente
autónoma, alargando o âmbito da protecção aquiliano para além daquilo que é propiciado por essas outras
situações. Quanto a esta última função, o seu reconhecimento implica ponderação e cuidado: precisamente
porque as disposições de protecção relevantes por força do art. 483 n.° 1 do CC não trazem explicitada pelo
legislador essa sua natureza (de normas cuja violação gera uma obrigação de indemnizar(35)); uma natureza
que assim tem de ser desvendada pelo intérprete-aplicador.
Deve seguramente averiguar-se com critério qual é o fim da norma; se ela visa efectivamente proteger
interesses individuais do sujeito contra certo tipo de danos e/ou determinados modos de os produzir. Sendo
que o juízo acerca da relevância indemnizatória da violação dessa norma deverá poder justificar-se ainda no
plano da congruência do sistema da responsabilidade delitual que assim se (re)interpreta. A manutenção e o
respeito do equilíbrio global do sistema requer que só devam considerar-se normas dessa natureza aquelas em
relação às quais a responsabilidade pela respectiva violação salvaguarda, no conjunto, a harmonia com as
restantes regras delituais.
Há, portanto, que comprovar a susceptibilidade de qualificação do art. 186 do CIRE como disposição de
protecção. Essa qualificação terá de ser justificável perante a restritividade com que o nosso ordenamento
jurídico contempla a protecção aquiliana de interesses puramente patrimoniais, como são tipicamente os
afectados pela insolvência de uma sociedade.
Aqui chegados, parece indiscutível que o incidente de qualificação da insolvência como culposa e as situações
que o fundamentam são inspirados na necessidade de protecção de interesses alheios. As consequências de
índole não ressarcitória que a lei expressamente associou a essa qualificação não visam apenas a prevenção de
condutas danosas futuras por parte dos administradores atingidos. Na verdade, ao predisporem-se sanções
civis de natureza pessoal ocorrendo certas condutas censuráveis dos administradores, é com certeza de
concordarem que o estabelecimento dessas sanções pelo legislador visava sempre dissuadir os administradores
de determinados comportamentos lesivos de terceiros (ainda que aqueles possam não ter sido sensíveis no
caso concreto a essa exigência e, por isso, mereçam ser “punidos”). A nota retributiva ínsita no princípio da
culpa mostra que o escopo das sanções civis não ressarcitórias do art. 189 não se limita de modo algum à
prevenção de comportamentos futuros. Há consequências da insolvência culposa que também beneficiam
directamente a própria entidade insolvente e o seu património (cfr., em particular, a al. d) do n.° 2 do art.
189). Foram portanto seguramente predispostas em favor (também) dos próprios credores da sociedade
afectados pela insolvência. Não está em jogo a mera preservação de um interesse genérico, não individual, na
adopção de práticas de administração idóneas e na saúde das empresas.
Esta protecção de interesses puramente económicos dos credores perante os administradores da sociedade
insolvente desdobra-se igualmente, cremos, no plano indemnizatório. A tutela ressarcitória confere eficácia e
plenitude a essa finalidade precípua dos arts. 185 e seguintes do CIRE, sendo que contra a sua admissibilidade
não parece poder invocar-se nenhum particular entorse ao direito da responsabilidade delitual. É que a
interpretação do art. 186 como disposição de protecção não atenta contra a orientação delitual em matéria de
interesses puramente económicas. O direito aquiliano vigente não exclui a atendibilidade destes últimos;
apenas rejeita a sua protecção indistinta e genérica. Não se recusa, portanto, que certos interesses
puramente patrimoniais possam ser protegidos, particularmente em determinadas circunstâncias.
Ora, torna-se bom de ver que, em tese, a insolvência das sociedades representa um problema económico e
social especial, dotado de particular sensibilidade, ao qual o legislador pode também dar uma resposta
especial, mais enérgica, no campo da responsabilidade. É razoável admitir que o faça ou tenha querido fazer.
A eficiência é também um cânon interpretativo ou qualificativo de uma norma (como disposição de
protecção).
Por outro lado, uma parte importante das condutas tidas como dando lugar a uma insolvência culposa segundo
o n.° 2 do art. 186 configuram também comportamentos susceptíveis de gerar responsabilidade penal(36).
Ora, este aspecto é determinante, pois a protecção criminal de interesses implicará igualmente a sua tutela
no plano da responsabilidade civil.
Pode portanto formular-se a conclusão genérica de que o art. 186 do CIRE corresponde a uma disposição de
protecção cuja violação por parte dos administradores de uma sociedade desencadeia responsabilidade civil
pela insolvência: articulada com a norma do art. 78 n.° 1 do CSC, e, fora do alcance desta norma, por força da
directriz mais geral contida no art. 483 n.° 1 do CC.
Adquirido que está revestir o art. 186, em geral, relevância delitual ao abrigo da modalidade básica da
responsabilidade por violação de normas de protecção, é altura de algumas observações sobre a técnica
legislativa e o conteúdo do preceito.
Recordemo-lo:
Pode verificar-se que a regulamentação da insolvência culposa se desenvolve, no fundo, em três níveis. A
disposição abre com uma descrição genérica da insolvência culposa, identificando a situação de facto e a
imputação correspondentes.
No n.° 2 há, depois, a apresentação de um elenco de casos tidos invariavelmente como de insolvência culposa.
A sua leitura evidencia que estamos perante hipóteses de presunção iuris et de iure e não de meras ficções. A
índole da disposição logo faz salien-tar estarmos perante uma enumeração taxativa de situações.
Finalmente, o n.° 3 aponta um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Também agora se nos
depara um elenco fechado, muito embora se admita, relativamente a qualquer uma das hipóteses previstas, a
possibilidade de desculpação.
É, portanto, central o n.° 1, ponto de referência que é dos demais números. Observa-se logo que a insolvência
qualificada pelo legislador de culposa requer, na realidade, uma de duas formas de culpa, o dolo ou a culpa
grave. A culpa simples foi excluída.
Estas formas de censurabilidade reportam-se, tanto à criação da insolvência, como ao seu agravamento em
consequência da actuação do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao processo de
insolvência.
Este, portanto, o quid fáctico sobre que incide, nos termos do preceito, o juízo de culpa. Dir-se-á que temos
aqui a situação de responsabilidade, essencial para afirmar a relevância de certa ocorrência para efeito de
imputação de danos, e ponto de referência, quer de um juízo de ilicitude, quer, por via desta, do juízo da
culpa (critério de imputação a um certo e determinado sujeito)(37). Mas há que reconhecer que na
conceptologia e na técnica do art. 186 as fronteiras entre situação de responsabilidade, ilicitude e culpa são
incertas e movediças(38).
O n.° 2 do art. 186 proporciona todavia ao lesado uma tutela muito mais eficaz. Com efeito, especifica-se aí
um conjunto de situações—pode dizer-se, um grupo de hipóteses de violação de deveres por parte dos
administradores de uma sociedade—, determinando-se depois que, caso ocorram, se considera sempre ter
havido culpa dos administradores na insolvência do devedor.
O elenco é extenso. Cobre uma variedade assinalável de casos, representando outras tantas formas de
comportamento que a experiência tem mostrado estarem com frequência na origem de insolvências. O
legislador inspirou-se largamente nas hipóteses que, face ao anterior direito, conduziam a uma
“responsabilização solidária” dos administradores pela falência da sociedade, que acolheu e, aqui e ali,
procurou aperfeiçoar e reforçar(39).
A vantagem para a tutela do lesado é evidente. A discriminação dos deveres a cargo dos administradores—ou
das situações tidas como de violação desses deveres — poupa o prejudicado de formular e fundamentar
adstrições de conduta que impendem sobre os administradores a partir dos preceitos do CSC que, em geral,
disciplinam a respectiva actividade. Facilita-se, por outras palavras, a vida ao prejudicado no que concerne ao
estabelecimento da ilicitude do comportamento dos administradores porque, sempre que ocorre alguma das
hipóteses previstas, essa ilicitude da conduta é especificamente apontada como tal pelo legislador, sem
possibilidade de justificação.
Analogamente no que toca à determinação de um juízo de censura pessoal. Tendo lugar alguma das situações
previstas, a culpa presume-se, não havendo lugar a prova em contrário e estando portanto precludida a
alegação e demonstração de alguma causa de desculpação. (E note-se que se presume sempre a culpa grave,
porque apenas essa consubstancia uma insolvência culposa.)
O n.° 2 do art. 186 contempla desta sorte um conjunto de hipóteses em que se estabelece inilidivelmente ter
ocorrido uma conduta ilícita e culposa dos administradores.
Mas não se trata apenas disso. A referida conduta é tida pelo preceito como causadora ou agravadora de uma
insolvência. Só assim é que a insolvência pode ser qualificada como culposa pelo legislador.
Temos, portanto, que o art. 186 n.° 2 também faz presumir iuris et de iure a causalidade da violação ilícita e
culposa de determinados deveres em relação à insolvência. Esta causalidade é fundamentante da
responsabilidade (haftungsbegründend), pois diz respeito ao seu fundamento. O citado preceito dispensa o
lesado da respectiva prova. Mutatis mutandis, o mesmo ocorre no n.° 3.
Não estamos portanto perante a causalidade da insolvência em relação aos prejuízos concretos que outrem
possa sofrer em consequência dela. Essa, além dos respectivos danos, carece de ser demonstrada pelo
lesado(40).
Extremamente relevante é, por outro lado, a responsabilização, à luz deste preceito, não apenas dos
administradores de direito, como ainda dos administradores de facto. Essa extensão da imputação é
susceptível de abranger os sócios que exerçam na realidade, pela influência e domínio que têm na sociedade,
tal administração. A determinação ou condução prática e efectiva da administração responsabiliza, segundo o
art. 186, para além do que possibilita, por si, o art. 83 do CSC (ou, no caso de sócio único, o disposto no art.
84 do mesmo diploma).
A relação entre a violação dos deveres dos administradores especificados pelo n.° 2 do art. 186 e a verificação
da situação de insolvência não é igualmente próxima em todos os casos. Algumas vezes sancionam-se condutas
que, quando adoptadas, terão normalmente como consequência (mais ou menos) directa ou previsível
(segundo um juízo de adequação social-normativo) a insolvência (por exemplo, na hipótese da al. a) ou g)).
Mas em diversos outros casos, o que está em jogo é a reprovação de comportamentos que não conduzem por
si, necessariamente, à situação de insolvência, requerendo-se a verificação de outros factores, algumas vezes
fortuitos, para que ela ocorra (assim, v.g., nas al. d) ou f)). Por último, estão também em causa situações de
responsabilidade por omissões, sendo que delas também não deriva, por si e infalivelmente, a insolvência
(atente-se nas al. h) e i)).
Com isto toca-se também uma das funções que as disposições de protecção podem caracteristicamente
desempenhar, bem reveladora da sua autonomia perante as outras formas básicas da tutela aquiliana de bens
jurídicos: levando longe a preocupação de prevenir com eficácia a lesão de um interesse ou bem jurídico, elas
permitem como que “pré-protegê-lo” (ou “antecipar” a sua protecção), vedando ou prescrevendo condutas
independentemente de se demonstrar que essas condutas apresentam no caso concreto um perigo para tal
interesse ou bem jurídico (podem mesmo proibir a prova do contrário).
Assim, na al. d) sanciona-se como culposa a insolvência perante a mera disposição dos bens do devedor em
proveito pessoal (sendo que essa disposição é susceptível até de ter tido uma contrapartida idónea para a
sociedade). Do mesmo modo, na al. h) crisma-se de culposa a insolvência perante o simples incumprimento da
obrigação de manter contabilidade organizada de que resulte prejuízo para a compreensão da situação
financeira ou patrimonial do devedor. No fundo, analogamente, a al. b) do n.° 3 do art. 186 presume logo
culpa grave na insolvência quando as contas anuais não foram elaboradas no prazo legal, submetidas a
fiscalização ou depositadas na conservatória. Nenhum destes comportamentos autoriza com segurança a ilação
de que dada insolvência radica na sua adopção. A infracção de uma disposição de protecção pode portanto
corresponder a um delito de perigo abstracto. Nestes casos é certamente compreensível o estabelecimento de
uma presunção de culpa.
Apesar de tudo, muitas das condutas reprovadas pelo n.° 2 ou pelo n.° 3 são também susceptíveis de encerrar
o perigo concreto de ocasionação ou agravamento de uma dada insolvência, ainda que esta, vindo a verificar-
se, não tenha de derivar imediatamente de tais comportamentos. Somos assim levados a recordar de novo, no
plano delitual, a doutrina dos deveres no tráfico (que cobre o sector das omissões e causações mediatas de
danos), embora não deva esquecer-se que a sua livre e indiscriminada admissibilidade poria facilmente em
causa a restritividade com que os interesses patrimoniais puros são contemplados em sede aquiliana. Já no
campo das relações especiais, a função dessas adstrições delituais é preenchida pelos deveres de protecção e
de cuidado, desta vez sem os aludidos obstáculos. Em ambos os casos, requere-se sempre que o dever sirva
para afastar ou evitar o perigo de um resultado considerado indesejável e seja, nessa medida, exigível, ainda
que esse resultado se venha a verificar em consequência da ocorrência também de outras causas.
Nesta medida, pode dizer-se que as disposições de protecção do n.° 2 e do n.° 3 do art. 186 exemplificam
também deveres de conduta que, na sua ausência, seriam, no âmbito de relações especiais entre
administradores e terceiros onde não vigoram restrições à reparação dos interesses puramente patrimoniais,
passíveis também de serem “desentranhados” pela jurisprudência em concretização dos arts. 64, 72, 78 e 79
do CSC. O que é importante porque quem negasse a natureza de disposição de protecção a tais normas nem
por isso só estaria legitimado a ignorar a substância de muito do que nelas se prescreve para efeito de
responsabilidade.
Claro que no art. 186 se sancionam condutas que contrariam as práticas de uma cuidada administração,
intencionadas ou compreendidas, por exemplo, pelas alíneas c) e i) do n.° 2 ou no n.° 3. Deste modo, reprova-
se, v.g., a compra de mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço
sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação, ou então, a obrigação de elaborar as
contas anuais, no prazo devido, de as submeter à fiscalização prescrita ou de as depositar na conservatória do
registo comercial.
A maior parte das previsões respeita porém a infracções do dever de fidelidade. Exemplos notórios encontram-
se, entre outros, nas alíneas e), f) e g) do n.° 2. O CIRE contém no presente, provavelmente, a mais detalhada
especificação deste dever que o direito legislado conhece.
As violações do dever de fidelidade são invocáveis por uma multiplicidade de sujeitos. Tal obriga a uma
observação. O dever de fidelidade dos administradores é constitutivamente relativo: vincula-os, em primeira
linha, perante a sociedade e, em certos termos, perante os sócios. Deste modo, no campo de eficácia desse
dever para com outros sujeitos—terceiros (relativamente aos quais os administradores não tinham nenhuma
ligação específica) —desponta com clareza uma natureza distinta: já não se nos depara uma adstrição
meramente relacional (principalmente com a sociedade), mas erga omnes, de feição delitual. Isto,
directamente por força da norma de protecção de interesses alheios que o art. 186 n.° 2 consubstancia (mas
também à semelhança, em geral, dos deveres no tráfico aquilianos).
A dupla natureza que os deveres previstos no art. 186 n.° 2 podem abstractamente apresentar não prejudica.
O art. 186 n.° 2 confere relevância delitual às condutas dos administradores também perante a sociedade e os
sócios. Surgirá nesse âmbito uma situação de concurso entre a responsabilidade aquiliana, disciplinada pelo
art. 186 n.° 2 como disposição de protecção, e uma responsabilidade por violação de deveres emergentes de
uma relação especial(41). (Claro que os deveres em que se desdobra a fidelidade são muito mais estritos
perante a sociedade, porque justificam uma imputação dos danos por ela sofridos aos administradores
independentemente da ocorrência de uma insolvência, enquanto perante terceiros tal apenas se verifica se
esta insolvência ocorreu. Por outro lado, perante a sociedade, o limiar da responsabilidade por causação
culposa da insolvência não requer culpa grave, bastando-se com qualquer forma de culpa.)
Importa também ter presente que as diversas situações prefiguradas pelo legislador nos n.os 2 e 3 do art. 186
não são entre si estanques. Temos antes uma justaposição de tipos, que podem revelar, como é próprio,
contornos imprecisos, consentindo, entre si, sobreposições. Alguns deles apresentam, por assim dizer,
características mistas, pois são susceptíveis de corresponder, tanto a desrespeitos do dever de fidelidade,
como do dever de boa administração.
Genericamente, a lei mostrou-se muito sensível à actividade em proveito pessoal ou, em todo o caso, à
conduta dos administradores que não se orientou pela prossecução do interesse social e representa um desvio
no exercício dos respectivos poderes, particularmente se essa conduta foi desfavorável à empresa. Proíbem-se
comportamentos que contrariam claramente o dever de fidelidade como a concorrência com a sociedade, a
actuação consciente em prejuízo da sociedade e a apropriação de oportunidades de negócio que pertencem à
sociedade e não ao administrador.
Nalguns casos, como se verifica, prescinde-se da prova de um prejuízo directo e, deste modo, abstrai-se da
causalidade entre o comportamento e a insolvência. Assim ocorre quando o administrador tiver disposto dos
bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiro nos termos da já citada al. d) do n.° 2.
O género ou o grau de culpa nas diversas situações também não é o mesmo. Em muitas hipóteses, é o dolo que
prevalece. Deste modo, quando está em causa a destruição, danificação, inutilização, ocultação ou
desaparecimento do património do devedor, no todo ou em parte, nos termos da al. a) do n.° 2; ou se se san-
ciona, como na al. b), o artifício da criação ou agravamento do passivo ou, então, a redução do activo do
devedor; o dolo corresponderá também, em princípio, aos casos de celebração de negócios em proveito do
administrador ou de terceiros, ofendendo com isso o interesse social ou causando prejuízo à sociedade. O dolo
é, aliás, a modalidade de culpa paradigmaticamente presente na violação dos deveres de fidelidade.
No entanto, a negligência pode também surgir: por exemplo, no atrás referido caso da compra de mercadorias
a crédito, com revenda por um preço bastante inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação, basta
haver uma simples culpa(42). Ela será mesmo muito frequente, por exemplo, no caso de não manutenção de
contabilidade organizada ou de não apresentação à insolvência (cfr. al. h) do n.° 2 e al. a) do n.° 3).
Tudo depende, contudo, dos pontos de referência pertinentes. Assim, para o efeito da al. g), parece que o
dolo será a forma de culpa correspondente à prossecução pelo administrador, no interesse pessoal ou de
terceiro, de uma exploração deficitária, mas não se exige o conhecimento de que esta conduta conduziria com
grande probabilidade à insolvência, podendo haver simples desconhecimento negligente quanto à ocasionação
provável da insolvência.
Há, porém, soluções do legislador que parecem desequilibradas, pecando por excesso. Assim, na hipótese da
al. c) — revenda de mercadorias compradas a crédito com prejuízo, antes de satisfeito o preço — teria sido
bem melhor que a lei se tivesse limitado a admitir uma presunção ilidível de culpa, em vez de rejeitar
qualquer prova em contrário(43).
A inadmissibilidade dessa prova não é todavia (em geral) excessiva, enquanto puder justificar-se como forma
enérgica de dissuadir ou prevenir condutas indesejáveis que, segundo a experiência, são susceptíveis de
ocasionar insolvências e estão com elas intimamente ligadas. É isso que justifica a declaração da insolvência
como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta censurada e a concreta insolvência
ocorrida (vedando a prova em contrário ou aceitando que a superveniência de elementos fortuitos que co-
determinaram a insolvência não exclui essa insolvência culposa). Como se apontou, a causalidade
fundamentante (haftungsbegründend) da responsabilidade ex vi do art. 186 n.° 2 não exclui a presença de
elementos fortuitos. Podem concorrer a culpa e o acaso. Visando uma disposição de protecção prevenir
abstractamente um perigo, tal resulta facilmente compreensível. Aliás, a doutrina dos deveres no tráfico
também o conhece: a produção ilícita e culposa de um risco (de dano) impede em princípio o seu autor de
invocar as circunstâncias fortuitas que possam ter sobrevindo e concorrido para a produção do resultado
danoso (na medida em que o dever visava evitar a produção, pela conjugação do risco proibido com essas
circunstâncias, da lesão).
Em qualquer caso: as situações de insolvência culposa indicadas pelo legislador devem ser interpretadas com
ponderação, de modo a alcançar um efeito responsabilizante equilibrado que, sem deixar de dissuadir
condutas manifestamente injustificáveis dos administradores e de ordenar a reparação dos prejuízos por elas
causadas, respeite por outro lado a autonomia decisória que têm de ter e o cenário de risco em que muitas
vezes a actividade de administração se processa e se tem de desejar possa desenvolver-se (sem risco de
responsabilidade)(44).
Pelo que os n.os 2 e 3 do art. 186 concretizam o art. 64 do CSC, estabelecendo positivamente um conjunto de
deveres (tidos como típica e genericamente) preventivos de insolvências. Pode ser que o conteúdo inovatório
do art. 186 face a esse outro preceito seja, neste aspecto, considerado mais escasso do que se poderia supor.
Ele transparece no entanto nitidamente quando, no n.° 2, se estabelece uma presunção inilidível da culpa dos
administradores. Este tipo de presunção é estranho à disciplina geral da responsabilidade civil dos
administradores. Dir-se-ia que o escopo preventivo se sobrepôs aqui às finalidades reparatória e sancionatória
da responsabilidade civil. O que não deixa de causar alguma perplexidade.
Por último: perante uma situação de insolvência, o dano susceptível de ser ressarcido pelos administradores
varia em função do concreto comportamento que o causou e de quem se apresenta atingido. Assim, quanto
aos credores, a causação da insolvência conduz à indemnização daquela porção dos seus créditos que não foi
satisfeita, mas que o teria sido se a administração tivesse sido diligente e a insolvência não sobreviesse.
Mutatis mutandis, quanto ao agravamento da insolvência.
Há que destrinçar entre os credores que já o eram no momento da violação do dever que conduziu à
insolvência e os novos credores (posteriores à insolvência). Os antigos só podem reclamar o prejuízo
correspondente à diminuição do valor do seu crédito pela diferença entre o seu montante e a respectiva quota
na insolvência (o que equivalerá sensivelmente ao valor que não foi possível realizar).
Já os credores posteriores, ou seja, aqueles sujeitos cujos créditos surgiram por via de contratos celebrados
depois da altura em que a insolvência se produziu, poderão reclamar dos administradores o dano de confiança
que resultou de terem contratado com uma empresa insolvente, contrato que eles não teriam celebrado acaso
tivessem tido conhecimento dessa circunstância. Mas nesta última situação, a adstrição violada não é
nenhuma daquelas que o art. 186 reconhece e impõe (visando evitar a insolvência). Consiste antes na
infracção de um dever de, verificada a insolvência, não contratar por parte dos administradores, quando é
certo que a sociedade não pode honrar os seus compromissos (pelo menos sem alertar disso a outra parte). A
integral reparação do prejuízo do crédito frustrado dependerá, em princípio, do conhecimento e, mesmo, do
dolo dos administradores. Ultrapassado que está o âmbito do art. 78 do CSC, uma responsabilidade por
negligência ao abrigo do art. 79 desse diploma requer em princípio, como se disse, circunstâncias particulares
(nomeadamente, uma relação especial que a justifique, por exemplo uma ligação corrente de negócios(45)).
Menção autónoma merece a responsabilidade por violação do dever de apresentação à insolvência. Espelha-se
aqui uma ideia básica: a de que não deve ser consentido a uma empresa insolvente continuar a participar
activamente na vida económica, sob pena de daí resultarem graves prejuízos para os que nela intervêm.
Também em vista do cumprimento desse dever, o administrador deve observar com diligência o curso da
empresa.
O dever de apresentação à insolvência tem, nos termos do art. 18 do CIRE, sessenta dias para ser cumprido. É
um lapso de tempo que pode permitir ao administrador as diligências adequadas a impedir um processo de
insolvência.
A responsabilidade do administrador decorre, nos termos atrás recordados, do disposto no art. 186 n.° 3, a).
Na realidade, o art. 18 tem carácter de disposição de protecção, o que significa que a sua infracção implicaria
sempre responsabilidade ao abrigo do art. 483 n.° 1, 2.ª modalidade, do CC. Estão abrangidos danos
económicos puros: a sua tutela delitual, mesmo em caso de negligência, é sempre possível, quando a lei o
preveja, ao abrigo desta situação de responsabilidade. Não se imputam ao administrador os prejuízos
derivados da causação, por ele, de uma insolvência, mas apenas os danos advenientes da omissão ou do
retardamento da apresentação à insolvência. São essencialmente os prejuízos derivados para os credores da
diminuição do património resultante da não apresentação (atempada) à insolvência e, portanto, da diminui-
ção daquela quota na massa da insolvência que a cada credor caberia se o dever tivesse sido cumprido. Pela
sua natureza, o cômputo desse dano requererá que o processo de insolvência se encontre em suficiente estado
de adiantamento.
Também aqui importa distinguir entre os credores que o eram ao tempo do surgimento do dever de
apresentação à insolvência daqueloutros que se tornaram credores quando a insolvência já ocorrera e o dever
de apresentação se encontrava (já nessa altura) violado, sujeitos que não teriam contratado se soubessem da
insolvência.
O administrador que não requereu a insolvência e se predispõe a contratar com terceiro, ocultando a situação
da sociedade e sabendo perfeitamente não estar esta em condições de cumprir as obrigações assumidas devido
à sua situação económico-financeira, responde certamente, por dolo, pelo dano da celebração de um contrato
prejudicial (dano de contratar). Mas este dolo carece de ser provado: o art. 186 n.° 3 apenas estabelece a
presunção de culpa grave. Uma responsabilidade por mera negligência parece, face ao art. 79 do CSC,
depender de circunstâncias especiais. Contudo, a situação prevista no art. 186 n.° 3 conduzirá também a uma
responsabilidade pelo aludido dano de ter contratado como consequência da infracção desse dever em caso de
negligência grosseira.
Diferente é a situação do administrador perante a sociedade e o dano que ela possa sofrer pelo protelamento
da apresentação à insolvência. Aqui vigora a regra geral do art. 72 do CSC, segundo a qual a simples culpa
basta para fundar a obrigação de indemnizar.
11. Conclusão
Na interpretação que demos, o CIRE acaba por prover o sistema jurídico de uma disciplina substantiva da
imputação dos danos aos administradores em caso de insolvência que é útil. Contribuirá sem dúvida sem
dúvida para a consciencialização dos seus deveres, particularmente das exigências do dever de fidelidade.
Pode nessa medida ajudar a credibilizar as funções e o estatuto da administração das sociedades: o
reconhecimento e a dignificação de qualquer estatuto implica a inerente responsabilidade. Favorece-se ainda
a previsibilidade e a rapidez da ponderação judicial dos comportamentos sob apreciação. Propicia-se nessa
medida uma tutela mais ágil dos lesados com a insolvência.
Só a experiência permitirá comprovar em que medida este regime é idóneo e suficiente. Reflecti-la
criticamente constitui, no futuro, uma missão indeclinável a que a doutrina e os profissionais do foro estão
convocados.
Notas:
(*) Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito de Lisboa e na Universidade Católica Portuguesa.
(2) Doravante, por comodidade de expressão, CIRE. Qualquer disposição que seja indicada no texto
desacompanhada da indicação do diploma de que é originária entende-se como pertencente a este texto
normativo.
(4) Cfr. L. MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (anotado), 2.ª edição,
Coimbra, 2005, n.° 2 ao art. 22.
Também PEDRO DE ALBUQUERQUE manifesta dificuldade de compreensão pela restrição da responsabilidade
ao dolo. Mas admite depois a possibilidade de o campo do preceito ser afinal limitado: cfr. Declaração da
situação de insolvência, O Direito 137 (2005), III, 524-525. (Pelo que diremos a seguir, cremos poder
demonstrar o inteiro acerto desta última sensibilidade do autor, embora com base em razões diversas
daquelas que anuncia em traços gerais.)
(5) Contra, PEDRO DE ALBUQUERQUE, Declaração da situação de insolvência cit., 524 n.° 61, a pretexto de
estarem superadas as orientações interpretativas que amarravam o juiz à letra da lei. O problema convocado
por esta opinião é amplo e não pode aqui ser resolvido. Diremos apenas que, em matéria de interpretação da
lei, nos parece muito difícil abdicar do critério hermenêutico constante do referido art. 9 n.° 2 do CC, e isto,
qualquer que seja o valor exacto a atribuir à respectiva positivação. (Note-se que, como para o autor em
referência, está apenas em causa a interpretação da lei; não o plano do desenvolvimento ou da superação
dessa mesma lei, assim como a admissão de outras fontes da juridicidade além dela, possibilidades estas que
pela nossa parte subscrevemos —mesmo num sistema que, como o nosso, tem uma base, principalmente, legal
—, mas que pensamos deverem destrinçar-se da interpretação da lei em nome da clareza e limpidez
metodológicas.)
(6) Não podemos aqui demonstrá-lo exaustivamente. Para a concepção subjacente, remete-se para o nosso
Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, 2003, 270 ss, 287 ss, 474 ss, 742 ss, 752 ss, e passim.
Via de regra, a responsabilidade no âmbito de relações especiais é mais severa do que aquela que se afirma
quando não havia qualquer ligação entre lesado e lesante.
(7) Mereceria certamente indagação saber em que medida o art. 22 se inspirou no § 826 do BGB. Sobre as
razões que vemos para esta associação, cfr. o nosso Uma “Terceira Via” no Direito da Responsabilidade Civil?
O problema da imputação dos danos causados a terceiros por auditores de sociedades, Coimbra, 1997, 48 ss.
(8) Este é também um quadro de referência básico para analisar a responsabilidade da sociedade devedora
perante os trabalhadores em caso de pedido infundado de insolvência.
(9) Desenvolvimentos no nosso Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, 161 ss, esp. 173 ss.
(10) Nesse sentido já o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., nomeadamente 173, n.° 120,
e 255, n.° 231; mais recentemente, veja-se, com muita pertinência e interesse, CATARINA PIRES CORDEIRO,
Algumas considerações críticas sobre a responsabilidade civil dos administradores perante os accionistas no
ordenamento jurídico português, O Direito 137 (2005), I, 81 ss, em especial 127 ss.
(11) Um indício nesse sentido poderia ser a conduta do credor de procurar entorpecer depois o andamento do
processo de insolvência com vista a obter a satisfação separada do crédito que se arroga.
(12) Pode haver lugar a uma responsabilidade pela confiança. Quanto aos seus requisitos, remetemos para o
nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., particularmente 381 ss e 583 ss.
(13) Sobre o tema, cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, A Acção Executiva Singular, Lisboa, 2004, 416, PAULA COSTA E
SILVA, A Reforma da Acção Executiva, 2.ª edição, Coimbra, 2003, 69-70, e CATARINA PIRES CORDEIRO, A
responsabilidade do exequente na nova acção executiva, Cadernos de Direito Privado, 10 (Abril/Junho 2005),
13 ss.
(14) Em tese, parece pertinente admitir que o controlo da lei sobre a conduta processual depois de instaurada
a acção possa ser mais apertado (e cubra mais facilmente condutas negligentes) do que a sindicância da
decisão (em si mesma) de intentar uma acção.
(15) Cfr., em particular, os arts. 126-A ss do CPEREF, introduzidos pelo Decreto-Lei n.° 315/98, de 20 de
Outubro. Para uma resenha deste diploma à luz da evolução do direito falimentar, MENEZES CORDEIRO,
Manual de Direito Comercial, I, Coimbra, 2001, 338 ss.
Uma apresentação genérica do CIRE, que o veio substituir, encontra-se por sua vez em COUTINHO DE ABREU,
Curso de Direito Comercial, I, 5.ª edição, Coimbra, 2004, 322 ss. Veja-se também o conjunto de estudos, de
autores vários, publicados na Themis, em edição especial sobre o “Novo Direito da Insolvência”, Coimbra,
2005.
(16) Cfr. o art. 126-C, também introduzido pelo Decreto-Lei n.° 315/98, de 20 de Outubro. Sobre estes
preceitos do CPEREF, pode ver-se ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os Efeitos Substantivos da Falência, Porto, 2000, 142 ss.
Com utilidade ainda para a respectiva interpretação, pese embora perante dados legislativos anteriores,
CATARINA SERRA, Falências Derivadas e Âmbito Subjectivo da Falência, Coimbra, 1999, 93 ss, e passim.
(17) Cfr. o n.° 40 do Preâmbulo do Decreto-Lei n.° 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE.
(18) O incidente pode ser pleno ou limitado (cfr., respectivamente, os arts. 188 ss, e 191 do CIRE). Está em
mente o pleno, tendo em especial presente que o seu regime se aplica, com adaptações, ao limitado.
Sobre este incidente em geral, cfr. LUÍS CARVALHO FERNANDES, A qualificação da insolvência e a
administração da massa insolvente pelo devedor, Themis (Novo Direito da Insolvência), edição especial,
Coimbra, 2005, 81 ss (também com referência — pp. 94 e 95, e as respectivas notas — às situações de
insolvência culposa). Com tom crítico em relação aos “efeitos eventuais” da insolvência (resultantes da sua
qualificação como culposa), cfr. RUI PINTO DUARTE, Efeitos da declaração de insolvência quanto à pessoa do
devedor, Themis (Novo Direito da Insolvência), edição especial, Coimbra, 2005, 143 ss.
(20) A fortiori, temos que a qualificação como culposa ou fortuita da insolvência não se estende aos pedidos
de responsabilidade civil não enxertados no processo de insolvência.
(21) A terminologia no que toca à relação entre os interesses e uma pluralidade de sujeitos é insegura e
discrepante. Cfr., por exemplo, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil/Teoria Geral, III, (Relações e Situações
Jurídicas), Coimbra, 2002, 106 ss, 115-116, e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A Legitimidade Popular na Tutela
dos Interesses Difusos, Lisboa, 2003, 44 ss, e passim.
(22) Cfr. o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil cit., 254 s, n.° 231, e 172-173, n.° 121.
(23) Vide, a propósito, ELISABETE GOMES RAMOS, Responsabilidade Civil dos Administradores e Directores de
Sociedades Anónimas perante os Credores Sociais, Coimbra, 2002, 248-249.
(24) Cfr. o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil cit., em especial 254 s, n.° 231, e 171-173, n.°
121. Vide ainda CATARINA PIRES CORDEIRO, Algumas considerações críticas sobre a responsabilidade civil dos
administradores perante os accionistas, cit., 81 ss e 127 ss.
(25) Mas a acção de sócios e trabalhadores está, face ao art. 82 do CIRE, fora do processo de insolvência
(enquanto não estiverem em causa simples créditos deles contra a sociedade), pelo que não nos deteremos
nela em particular.
(26) Para a explicitação do que não pode ir agora senão apontado, cfr., conquanto num outro contexto, o
nosso Uma “Terceira Via” no Direito da Responsabilidade Civil?, cit., 55 ss, 98 ss.
[(*) Nota de actualização: as considerações seguintes valem, com as devidas adaptações, perante a actual
redacção do preceito, introduzido pelo Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de 29 de Março.]
(27) Com uma opinião mais restritiva da função do preceito, se bem vemos, MENEZES CORDEIRO, Da
Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Comerciais, Lisboa, 1996, nomeadamente 496-497 e
521-523.
(28) Com pormenor, sobre esta regra, JOÃO SOARES DA SILVA, Responsabilidade civil dos administradores: os
deveres gerais e a corporate governance, ROA 57 (1997), 624 ss, e PEDRO CAETANO NUNES, Responsabilidade
Civil dos Administradores perante os Accionistas, Coimbra, 2001, em especial 23 ss.
[(*) Nota de actualização: a actual redacção do art. 71 n.° 2, introduzida pelo Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de
29 de Março, contém uma formulação desta regra. As observações seguintes são-lhe conformes.]
(29) Entre essas práticas conta-se certamente a observância dos deveres legais e contratuais que impendem
sobre a sociedade, o accionar das pretensões da sociedade contra terceiros ou a obtenção de garantias
suficientes do cumprimento de terceiros.
(30) Sobre este, cfr., com muito interesse, PEDRO CAETANO NUNES, Concorrência e oportunidades de negócio
societárias—estudo comparativo sobre o dever de lealdade dos administradores de sociedades anónimas,
inédito, Lisboa, 2004.
Os deveres dos administradores refraccionam naturalmente a temática, mais ampla, dos poderes, funções, e
respectivo equilíbrio no seio das sociedades comerciais. Uma panorâmica desta problemática em Portugal
proporcionou-a PAULO CÂMARA em O Governo das Sociedades em Portugal: uma Introdução, in Cadernos do
Mercado de Valores Mobiliários, 12 (Dezembro de 2001), 45 ss.
[(*) Nota de actualização: acerca do dever de fidelidade, cf. entretanto o ar. 64, n.° 1, b), na relação dada
pelo Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de 29 de Março.]
(31) Não é pensável uma relação obrigacional pela qual a lealdade constitua o objecto de um dever de prestar
autónomo. Um dever de lealdade pode porém ser instrumental relativamente ao fim do contrato visado pelo
cumprimento de outros deveres. No nosso caso, ele modela a própria prestação típica da relação de
administração, não lhe é meramente justaposto. Vide, a este propósito e a respeito das relações ditas de
confiança, o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., em especial 474 ss, 544 ss, 554 s, n.°
584, 557, n.° 590.
(32) Não é viável alargarmo-nos: veja-se, com desenvolvimento, o nosso Uma “Terceira Via” no Direito da
Responsabilidade Civil?, cit., 36 ss e 45 ss, e o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., 238 ss
e 251 ss.
(33) Cfr. o nosso Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., 238 ss e 251 ss.
(34) Sobre este ponto, entre nós, em especial, SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos,
Recomendações e Informações, Coimbra, 1989, 237 ss; pode ver-se ainda o nosso Teoria da Confiança e
Responsabilidade Civil, cit., 254 ss.
(35) Caso contrário, aplicar-se-iam autonomamente sem necessidade do recurso a outra norma que lhes
atribuísse relevância (ordinariamente, ao art. 483 n.° 1, 2.ª parte, do CC). Assim aconteceria, por exemplo, se
o art. 186 do CIRE estabelecesse a obrigação de indemnizar nas situações aí previstas; não seria necessário,
para conferir eficácia responsabilizadora à respectiva violação, nem o art. 78 n.° 1 do CSC, nem o art. 483 n.°
1 do CC.
(36) Vide, com especial interesse, os arts. 227 e 228 do Código Penal. Aceitando este critério, apontado por
CANARIS, cfr., entre nós, SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos, cit., 253 ss.
(37) Sobre a diferença entre situação de responsabilidade, ilicitude e culpa, assim como acerca da
conveniência de destrinçar as respectivas funções, remeta-se, quanto ao nosso entendimento, para Contrato e
Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, 129 ss e 136 s, n.° 273.
(38) Coloca-se, por exemplo a dúvida sobre se a palavra “culpa” do n.° 1 do art. 186 não abrangerá também a
ilicitude como comportamento objectivamente contrário ao direito. Teríamos então uma noção de culpa muito
alargada, nos moldes do conteúdo que ela assume, nomeadamente, para efeito de distribuição do ónus da
prova em sede de responsabilidade contratual ou, ainda, em certos sectores da responsabilidade aquiliana,
onde o conteúdo de “culpa” tem, de facto, uma amplitude muito grande, susceptível de abarcar a ilicitude
(cfr., com mais pormenor, o nosso Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, 188 ss). Co-
respectivamente, a causação e o agravamento da insolvência seriam essencialmente a situação de
responsabilidade, indiciando logo a ilicitude, mas permitindo um juízo autónomo acerca dela no caso de
ocorrerem causas de justificação.
Mas pode pretender-se antes que a causação ou o agravamento da insolvência não se limitam, no n.° 1 do art.
186, a consubstanciar a situação de responsabilidade, representando (além disso) as formas básicas da própria
ilicitude. Nesse entendimento, a culpa cingir-se-ia efectivamente à apreciação da censurabilidade subjectiva
do comportamento de alguém.
No entanto, a possibilidade da ocorrência de causas de justificação relevantes no n.° 1 aponta para considerar
que o ocasionar ou agravar de uma insolvência corresponde efectivamente a uma situação de responsabilidade
(naturalmente indiciadora da ilicitude, mas admitindo prova que a exclua).
Já no n.° 2, atendendo a que se consagra uma presunção inilidível de culpa, excluindo-se a relevância de
causas de justificação, parece que se descrevem comportamentos considerados sempre, sem reserva, como
ilícitos. A culpa (agora presumida) restringir-se-á, concomitantemente, à censurabilidade. O que não
representa uma incongruência com a técnica do n.° 1, desde que se admita que a situação de
responsabilidade básica aí prevista — a causação da insolvência ou o seu agravamento — indicia a ilicitude,
estando reservada a culpa, também aí, à censurabilidade subjectiva do comportamento.
As concretizações do n.° 2 representarão no fundo tipos de ilícito secundários, complementares e não
autónomos do ilícito indiciado pela situação de responsabilidade do n.° 1. Não anulam este último, antes
preenchem-no. Têm-no necessariamente como referência, porque só há ilicitude para efeito do n.° 2 na
medida em que tenha sobrevindo a insolvência ou o seu agravamento, ou seja, pela ponderação do resultado
que o n.° 1 aponta.
Esta interpretação salvaguarda que, quer no n.° 1, quer no n.° 2, a noção de culpa é a mesma, cingida à
censura pessoal. Pelo que a especificidade do n.° 2 no que toca à culpa será então essencialmente a de que aí
o legislador cortou cerce a possibilidade de desculpação verificados aqueles comportamentos descritos. Com o
que reforça o vigor e a eficácia preventiva da insolvência das normas proibitivas e prescritivas do n.° 2.
De todo o modo, há uma dessintonia embaraçosa que permanece. É que enquanto o n.° 1 exige culpa grave
para a afirmação de uma insolvência culposa, o n.° 2 faz presumir (inilidivelmente) a culpa tout court, sendo
que o n.° 3 já volta a referir-se a uma presunção (ilidível) de culpa grave. Ora, parece que a inferência do n.°
2 terá de ser entendida como de uma culpa grave, sob pena de não podermos aplicar de plano o n.° 1 —
recorde--se que o n.° 2 não é uma disposição autónoma, que por si só permita as consequências da insolvência
culposa — e obrigarmos o juiz a, presumida a culpa, averiguar se ela é grave ou não, o que representaria uma
destruição prática dos efeitos da presunção. A presunção de culpa do art. 186 n.° 2 é, assim, de culpa grave.
(39) Cfr. o já citado art. 126-A do CPEREF. De notar que há um reforço da tutela resultante do alargamento do
prazo dentro do qual estas condutas são relevantes (de dois para três anos, segundo o actual direito). Por
outro lado, é hoje inequívoco que o n.° 2 consagra presunções iuris et de iure, enquanto o anterior direito não
era a esse respeito líquido, permitindo sustentar que, de harmonia com os princípios gerais, as presunções
previstas eram ilidíveis: vide L. CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código dos Processos Especiais de
Recuperação de Empresa e de Falência Anotado, Lisboa, 1999, 348 n.° 3.
(40) Sobre estas duas acepções da causalidade, pode ver-se o nosso Contrato e Deveres de Protecção, cit., 191
ss.
(41) Sobre o incumprimento das obrigações como delito, pode ver-se o nosso Teoria da Confiança e
Responsabilidade Civil, cit., 284 s, n.° 263, e 558 s.
(42) A menos que se entenda que a hipótese da al. c) deve na realidade ser interpretada no sentido da
aquisição premeditada de mercadorias a crédito, (antecipadamente) sem disposição de cumprir o contrato de
financiamento.
(44) A margem para uma interpretação nestes moldes (aliás exigida pelo art. 9 n.° 3 do CC) varia,
naturalmente, em função da situação de insolvência que esteja em causa. Para um exemplo, com
preocupações que acompanhamos em grande medida, cfr. RUI PINTO DUARTE, Efeitos da declaração, cit., 144-
145.
(45) Sobre esta figura e o seu enquadramento dogmático pode ver-se o nosso Teoria da Confiança e
Responsabilidade Civil cit., 574 ss.
Topo
Os anos noventa foram uma época em que as situações de insolvência empresarial atingiram níveis históricos em
muitos dos países desenvolvidos, como nos Estados Unidos da América, Espanha ou Portugal.
A experiência portuguesa recente, com os numerosos diplomas legais publicados nos últimos anos procurando
contrariar o número crescente de empresas em situação económica difícil, é um bom exemplo da preocupação das
autoridades com a eficiência económica dos processos de reestruturação e de falência de um numero crescente de
empresas.
- Dec.-Lei nº132/93, de 23 de Abril, que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de
Falência;
- Resolução nº100/96 do Conselho de Ministros de 10 de Agosto, que fixou o Quadro de Acção para a Recuperação de
Empresas em Situação Económica Difícil (QARESD);
- Dec.-Lei nº81/98, que institui o Sistema de Incentivos de Revitalização e Modernização Empresarial (SIRME).
Os procedimentos que regulam a relação devedor credor, quando estes não cumprem com os contratos, estão contidos
no sistema legal e não estão especificados explicitamente nos contratos de endividamento. Os procedimentos de
falência são implicitamente uma parte de todo o contracto como qualquer outro aspecto explicitamente contido no
mesmo.
O grande número de iniciativas legislativas, citadas anteriormente, é demonstrativo do interesse das autoridades pela
problemática da insolvência financeira, sobre os determinantes dos custos da insolvência financeira e o seu impacto no
desempenho da empresa.
Porém, avaliar quais os custos da insolvência tem sido uma tarefa difícil, quer por se tratar de medir conceitos bastante
abstractos dificilmente observáveis, quer pela dificuldade de distinguir as suas consequências no desempenho da
empresa, das causas que provocaram a própria insolvência.
O processo de consciencialização sobre a dimensão do fenómeno da insolvência e dos seus custos (ou mesmo eventuais
benefícios) poderá orientar o legislador na opção por instrumentos de reestruturação e/ou de liquidação das empresas.
Uma política de prevenção da crise financeira nas empresas terá que promover a eficiência do sistema processual por
que podem optar as empresas em crise, e do incentivo que este fornece aos detentores do capital e/ou gerentes para
melhorar o desempenho das suas organizações.
A acção do Estado junto das empresas insolventes passará sempre por uma ponderação entre os custos potenciais de
classificar uma organização ineficiente como restruturável, atrasando-se a reafectação de recursos a empregos mais
eficientes e os custos da situação inversa, em que uma empresa eficiente se liquida.
Porém, na venda duma empresa em crise, a sua absorção por outra empresa ou mesmo a sua liquidação pelos sócios,
são alternativas legais e talvez mais frequentes para a situação sem que sejam específicas a algum tipo de crise. Ou
seja, a insolvência financeira não obriga a empresa a desaparecer.
È nosso objectivo demonstrar a relevância dos custos de insolvência financeira para as finanças empresariais e o
impacto deste tipo de custos no desempenho empresarial.
Desde os trabalhos embrionários de Modigliani e Miller (1958, 1963) que a teoria financeira incorporou nos seus
modelos sobre a estrutura de capital o que se classifica genericamente como custos de insolvência. Estes autores
começaram por demonstrar que nenhuma estrutura financeira é melhor que a outra se considerarmos as empresas a
operar em mercados concorrenciais e transparentes. Os seus estudos, desde logo, alertam que a dívida tem um custo
explicito - a taxa de juro- e um custo implícito - o risco dos capitais próprios. Quando no seu artigo de 1963 Modigliani
e Miller introduziram os impostos no seu modelo da estrutura financeira óptima, estabeleceram que esta implicava um
equilíbrio entre acréscimo dos custos de insolvência motivados pelo aumento do endividamento e os escudos fiscais
proporcionados pelos juros pagos.
Argumentos semelhantes vieram a integrar-se em torno do que se passou a denominar a "teoria estática", a qual
reconhece a existência de objectivos em termos de rácios de endividamento, e que se integra no paradigma clássico
que postula uma empresa maximizadora do seu valor, operando em mercados competitivos e eficientes. A empresa
gere os interesses dos seus accionistas e dos restantes fornecedores de fundos, que disponibilizam à empresa o capital
necessário para os seus projectos de investimento.
A teoria clássica tem uma forte consistência interna e uma arquitectura parcimoniosa. Por exemplo, a decisão de
investir estará "apenas" dependente do critério do valor actual positivo.
Um dos problemas da teoria clássica é precisamente o de permitir poucas variáveis explicativas das políticas
financeiras, que não conseguem explicar o comportamento real de muitas empresas. Por exemplo, a única maneira das
opções de financiamento afectarem o valor da empresa será através da influência do Estado sobre os Cash-Flows,
nomeadamente através dos impostos e os custos da falência.
O fracasso da teoria estática em explicar a realidade de muitas empresas motivou o aparecimento de teorias que têm
por base o abandono do pressuposto do modelo de Modigliani e Miller (MM) da transparência do mercado em termos
informativos com informação a custo nulo. Os trabalhos de Jensen y Meckling (1976), Myers (1977) reconhecem as
assimetrias de informação entre as várias categorias de "stakeholders". Indicam também que uma das funções da
estrutura de capital é a de alinhar os seus diferentes interesses.
Foi, também, relaxado o pressuposto da empresa maximizadora do seu valor. O reconhecimento que os vários tipos de
fornecedores de capital têm incentivos diferentes e que se encontram numa posição de assimetria de informação entre
eles e a gestão da empresa acarreta consequências sobre a forma como se encara a falência. Esta passa a ser encarada
sobretudo como um processo de redistribuição da propriedade e do controle da empresa. Trata-se de um processo onde
se defrontam indivíduos com interesses divergentes e que implica custos que cabe ao sistema legal minimizar.
Apesar de aparecerem teorias concorrentes sobre a estrutura financeira que integram nos seus modelos os custos de
insolvência, estes foram pouco tidos em conta na fase da comprovação empírica dos modelos. Brealey e Myers (1997)
constatam que não se sabe a quanto se eleva o montante dos custos directos e indirectos da falência, desconfiando-se
que atingem um valor significativo.
Tal facto parece estar ligado ao facto de a maior fatia dos custos de insolvência serem custos não observáveis e de que
a definição de variáveis proxy se torna difícil quando os conceitos de insolvência ou falência não têm um significado
económico específico e unívoco.
Uma primeira tentativa de quantificar os custos de insolvência foi realizada por Warner (1977), que se limitou a medir
os custos directos da falência, ou seja, custos administrativos e taxas legais numa reduzida amostra de onze empresas
ferroviárias americanas, tendo chegado à conclusão do peso reduzido deste tipo de custos no valor de mercado das
empresas estudadas.
Desta forma, ainda que os custos directos possam ser elevados em termos absolutos, em valor relativo não são uma
grande fracção do montante dos activos de uma grande empresa cotada, o que, juntamente com as razões atrás
apontadas, levou Haugen e Senbet (1978) a concluírem pela irrelevância dos custos directos da falência na escolha da
estrutura de capital óptima.
Reconhece-se, porém, que a falência tem custos superiores para as pequenas empresas, já que existem economias de
escala significativas quando se entra num processo judicial.
Apesar de vários trabalhos proporem que os custos indirectos da insolvência financeira são uma importante
determinante da estrutura de financiamento, tem havido uma maior concentração no estudo dos custos directos da
falência.
A previsão da insolvência é uma das mais importante tarefas da análise financeira. Contudo, Foster (1986) fez notar
que, apesar do aparente sucesso (ex-post) dos modelos discriminantes de previsão da insolvência, não só as teorias
financeiras sobre a insolvência estavam pouco desenvolvidas, como também, raramente, foram tidas em conta para dar
um sentido económico aos resultados.
Scott (1981) faz notar que os modelos empíricos de previsão de insolvência, resultantes da aplicação de técnicas de
estatística multivariada, econométricas, são um dos grandes produtos das finanças empresariais. No entanto, este tipo
de modelos tem enfrentado bastantes reservas a nível de prática profissional. Tal será devido, em grande parte, à falta
de uma base teórica explícita e bem desenvolvida. Todos estes modelos têm sido elaborados através de um
desenvolvimento estatístico sobre uma bateria de indicadores plausíveis sem que houvesse grande atenção aos
conceitos que lhes poderiam estar subjacentes [Fernandes Rodrigues (1996), (1998)].
Os estudos de Altman sobre a insolvência constituem pontos de referência de investigação na área. Após os trabalhos
relativos aos modelos de previsão da insolvência, como o Score Z de 1968, revisto e melhorado pelo Score Zeta de
1977. Em 1984, Altman propôs a primeira metodologia para identificar e medir os custos indirectos de insolvência, pois
na sua opinião o impacto potencial destes custos sobre as decisões de estrutura do capital e no valor da empresa era
demasiado importante para apenas se especular sobre eles numa base conceptual, continuando a realizar bastante
trabalho nesta área Altman (1993).
Duas linhas de investigação, uma baseada em estudos empíricos, outra fundamentalmente teórica, foram sendo
desenvolvidas, sem um esforço de integração. Delas resultaram abordagens alternativas sobre as teorias e a previsão
da insolvência e, em particular, sobre os seus custos e sua influência na estrutura de capital e no desempenho da
empresa.
Compreender os determinantes da insolvência é importante qualquer que seja a dimensão dos custos que ela acarreta.
Estes trabalhos tanto podem ajudar a explicar o sucesso dos modelos empíricos de previsão de falência, como orientar
o desenho de leis socialmente óptimas que tutelem as situações de insolvência.
É um facto que as insolvências são custosas. Os investidores sabem que as empresas endividadas podem entrar em
dificuldades financeiras e preocupam-se com os custos de insolvência financeira e esta preocupação reflecte-se no valor
da empresa endividada. Mesmo que a empresa não se encontre no momento presente numa situação de insolvência, os
investidores actualizam o potencial da crise futura no valor actual dos seus activos.
Note-se que valor actual dos custos de insolvência financeira depende tanto da sua probabilidade de ocorrência como
da sua magnitude, pelo que quando nos referimos genericamente a custos de insolvência estamos a englobar as
classes de custos que se indicam a seguir e cujos contornos não são pacíficos:
Os custos directos da falência, que incluem os custos administrativos e judiciais. Estimativas empíricas sugerem que
estes custos explícitos são relativamente pequenos para as grandes empresas [Warner (1977) e Ang, Chua e
McConnel(1982)]. Haugen e Senbet (1978) fazem notar que se a transferência de propriedade dos detentores do
capital para os devedores pudesse ser feita sem custos, a mera possibilidade de falência não teria qualquer impacto na
escolha da estrutura de capital. Sendo impossível redigir contratos que especifiquem claramente os direitos das partes
em qualquer situação, é natural que alguma delas acabe por accionar os processos judiciais que permitirão realizar um
processo formal e ordenado de transferência de propriedade, o qual obviamente tem custos. Segundo estes autores,
apenas estes custos podem ter influência na definição de estrutura financeira de uma empresa, pois consideram que a
decisão de liquidação de uma empresa insolvente deve ser considerado um acontecimento separado da falência,
concluindo que, devido ao reduzido valor relativo dos custos directos de falência, estes são irrelevantes para a teoria da
estrutura óptima do capital.
Por outro lado, Altman (1984), faz notar que não existe um consenso sobre a relevância dos custos indirectos da
insolvência, mas, tal como White (1983) e Opler e Titman (1994) afirmam, os custos indirectos da falência reflectem a
dificuldade de dirigir uma empresa em processo de reorganização. Apesar de serem apenas implícitos, esses custos
podem ter um forte influência no desempenho de uma empresa. A sua importância pode ser um dos motivos pelos
quais os credores não forçam, frequentemente, a empresa a entrar num processo de falência, com receio de a
precipitar em maiores dificuldades e lhes seja impedido ainda reaver uma maior fracção dos seus créditos.
A influência destes custos não está porém limitada às empresa que entram num processo judicial de reorganização ou
falência. Organizações com altas probabilidades de falência também podem incorrer nestes custos. Existem, assim,
também custos indirectos de insolvência alheios à falência. Por exemplo, uma situação de crise financeira produz custos
originados pelo conflito de interesses entre os vários stakeholders antes da entrada da empresa em qualquer processo
judicial que possa conduzir a resultados operativos desfavoráveis e decisões de investimento erradas, etc .
São vulgarmente citados na literatura os custos originados por se realizarem investimentos demasiado arriscados
(Sobre-investimento), devido à empresa assumir uma estratégia de "tudo ou nada" para de uma forma desesperada
evitar incorrer em processos judiciais, ou em custos originados por não se realizarem investimentos seguros e rentáveis
(Sub-investimento), na medida em que estes apenas favoreceriam os credores. Dentro desta classe de custos
indirectos estão também os custos contratuais da dívida, de formalização e seguimento dos contratos, que vão também
aumentar o custo dessa dívida. Por último, podem-se considerar também os custos motivados pela entrada tardia da
empresa em processo judicial.
Conclui-se, assim, que os custos indirectos da insolvência estão ligados à condição financeira da empresa, podendo
começar a fazer-se sentir apenas pela existência de uma elevada probabilidade de ocorrência de um processo judicial
ocorrer, e poder continuar a fazer-se sentir após este acontecimento.
Altman (1984), apresentou uma metodologia proxy para tentar identificar e medir empiricamente os custos indirectos
de insolvência acima referidos, apoiando-se no conceito de vendas e proveitos perdidos nos três últimos anos
anteriores à falência como medidas dos custos indirectos de falência. Assim, baseado num procedimento de regressão,
calculou as vendas e os proveitos previstos da empresa, como se esta se tivesse mantido solvente. Depois comparou-
os com as vendas e os proveitos de cada um dos períodos, representando a diferença encontrada os custos directos de
falência. Neste mesmo estudo, o autor avançou com outra variável proxy dos custos de insolvência baseada em perdas
não esperadas no valor de mercado das empresas insolventes.
Opler e Titman (1994) desenvolveram uma metodologia que segue a linha dos trabalhos de Altman (1984), utilizando
também proxies extraídas do valor de mercado das empresas, assim como a taxa de (de)crescimento das vendas e
ainda as variações nos resultados operacionais para medir o impacto dos custos de insolvência no desempenho das
empresas.
A utilização de várias proxies, ajustadas por um efeito indústria, está ligada à necessidade de assegurar que grande
parte da variação destas variáveis estará ligada à insolvência. Por exemplo, uma eventual queda das vendas está ligada
à perda de confiança dos clientes ou à vulnerabilidade financeira face aos competidores ou, pelo contrário, deve-se, por
exemplo, a um eficiente downsizing?
Questões semelhantes se podem pôr em relação à variação do valor de mercado. Será que este traduz apenas os
custos de insolvência, ou engloba outros efeitos informativos e de transferência de propriedade?
Os testes que avaliam estas hipóteses alternativas baseiam-se na divisão da população em grupos, por indicadores
como a probabilidade de falência retirada de um modelo discriminante [Altman (1968), (1977) e Fernandes Rodrigues
(1996), (1998)]. É sobretudo necessário, ainda, aprofundar o tema das determinantes dos custos de insolvência, como
composição dos activos, o endividamento, etc… para responder a estas questões.
Nota final
Ficou assim demonstrada a importância do estudo dos determinantes dos custos de insolvência, e da importância de os
inserir num modelo explicativo cuja validação empírica sugira orientações para a política de reestruturação e/ou
falência de empresas.
Os modelos de equações estruturais que reconhecem explicitamente os problemas de medir conceitos bastante
abstractos dificilmente observáveis. Eles assumem que apesar dos atributos relevantes não serem directamente
observáveis, existem um dado número de indicadores que são funções lineares de um ou mais atributos e existe um
termo de erro que pode ser medido.
O tipo de modelos referidos pode constituir uma ferramenta extremamente útil no estudo dos custos de insolvência
financeira, constituindo uma das linhas de investigação que está a ser desenvolvida pelo autor deste artigo nos seus
estudos de Doutoramento na Universidade de Salamanca.
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