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Coletânea de Natalia

Ginzburg é primorosa
e combina elegância
com honestidade
'As Pequenas Virtudes' mistura escrita
memorialística, ensaio e autobiografia

“E o que é a vocação de um ser humano senão a mais alta


expressão de seu amor à vida?” Levando em conta esse
fragmento do belíssimo e necessário ensaio “As Pequenas
Virtudes”, que dá nome à coletânea de que falaremos aqui,
podemos concluir que Natalia Ginzburg (1916-1991) deveria ser
imensamente apaixonada pela sua existência.
Vocação e talento para a escrita, a única coisa que ela diz saber
fazer —“se tento outra coisa […] tenho a impressão de ser cega e
surda e sinto como uma náusea dentro de mim”—, não lhe
faltam.
E isso eu já sabia desde minha obsessão por outro livro
seu, “Léxico Familiar”, também publicado pela Companhia das
Letras.
Natalia já pressentia, desde os tempos de estudante (morando
com uma amiga e longe dos filhos), que faria imenso sucesso.
No ensaio “Os Sapatos Rotos”, ela diz esperar por um futuro em
que será “uma escritora velha e famosa”.
A escritora italiana Natalia Ginzburg (1916-1991) – Reprodução

Amiga de Calvino e do poeta Cesare Pavese (“Retrato de Um


Amigo” é sobre ele: “por muito tempo pensamos que se curaria
daquela tristeza quando decidisse tornar-se adulto”), é filha de
professor universitário e foi militante antifascista ao lado do
marido, Leone Ginzburg, que foi torturado e morto pelo regime.
Sobre a Itália, no texto “Inverno em Abruzzo”, diz tratar-se de
um país que se rende aos piores governos, “cheio de
incompetência, desordem e cinismo”. Pensei no Brasil.
Fiquei com vontade de imprimir algumas cópias do ensaio “As
Pequenas Virtudes” e carregar comigo.
A intenção é presentear quem quer que cruze o meu caminho e
seja merecedor de tamanha preciosidade.
Acredito que um bom pediatra deveria, junto com a lista das
vacinas do ano, repetir algumas de suas frases essenciais sobre o
que se deve ensinar a um filho: “não a poupança, mas a
generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a astúcia, mas a
franqueza e o amor à verdade […]”.
No texto “Elogio e Lamento da Inglaterra”, Ginzburg diverte
com um parágrafo que em tempos de “cancelamento” seria
impossível: “às vezes acreditamos perceber a vulgaridade na voz
cacarejante ou no riso estrídulo de uma mulher, nas cores
berrantes de sua maquiagem ou em seus cabelos espigados. Mas
logo nos damos conta de que neste país, em qualquer canto, a
vulgaridade é sempre esmagada pela melancolia”.
Tive dúvidas se em 1962, década marcada pelo movimento
feminista e pela liberdade sexual, seria possível escrever o mais
íntimo dos ensaios, “Ele e Eu”, expondo uma relação bastante
machista, opressora e tóxica, e ainda assim soar romântica e
dona da situação.
Como em todos os textos do livro, vislumbramos profundidade
e complexidade através de uma linguagem generosamente
direta e sem floreios. Elegância com honestidade: uma dupla
tão rara quanto primorosa.
Divido com vocês o pensamento que me acompanhou durante
toda a leitura desta obra espetacular, mistura de escrita
memorialística, ensaio e autobiografia: simples como se você
estivesse tomando chá na casa de uma tia; genial como se essa
tia fosse uma das principais vozes do século 20.

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