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LICOES DE Van Gogh eau Tae sles tARO) =) RO. D RORGFO- “GU REGEESL PARTE | 0 QUE UM ESCRITOR PODE APRENDER COM VAN GOGH? 1, faz alguns anos, as cartas de Van Gogh a seu irmao Theo. Hé livros assim, que voeé mantém na biblioteca, reencontra as vezes, e um dia, por motivos inexplicdveis, toma a decisio de ler. ‘Mas niio bastasse o atraso na leitura, deixei minhas anotagSes de lado — e todos os dias, quando abro o aplicative que me recorda dos meus afazeres, reencontro 0 aviso: “Escrever artigos a respeito das cartas de Van Gogh”. Ea historia de quem no consegue se subdividir em varias pessoas — ou, se preferirem, pois as duas justificativas sio validas, de quem nio vive de rendas ou de aluguéis: ha sempre novas tarefas; ¢ quando a lista comega a diminuir, tudo nao passa de uma ilusao, pois na verdade ela acaba de crescer. Este é 0 nariz de cera tipico de quem finalmente decidiu escrever — contudo, ainda hesita entre o artigo, fumar um cachimbo, ler, caminhar ou ouvir Brahms. Outro motivo, talvez, para a hesitagdo 6 a variedade de temas que as cartas oferecem. Dividi minhas anotacdes em trés grupos distintos e ainda sobrou material para alguns textos menores. Fi de uma dessas notas isoladas que falarei aqui (como véem, finalmente vamos comecar'o texto). utes Van Gogh Pa scouts a DESATENCAO OU INCAPACIDADE? Quando, em 1885, Van Gogh passa trés dias visitando o Rijksmuseum, certa pintura chama sua atengdo de maneira especial: um quadro de Frans Hals que fora terminado por Pieter Codde — The meagre company, também conhecido como A companhia do capitéio Reynier Reael e do tenente C. M. Blaeuw em Amsterda. Quem lew as cartas de Van Gogh sabe da sua cuidadosa atengio as cores es formas da vida. E de como ele consegue nao sé pintar, mas também descrever, de maneira excitante, o que vé. The meagre company A capacidade de observar ¢, de fato, a principal qualidade do artista — e, portanto, também do escritor. Pode parecer ébvia, a alguns, essa afirmacio, mas grande parte dos problemas enfrentados por escritores nasce da desatengio ou, nos casos extremos, da ineapacidade para pereeber que a realidade é, antes de tudo, nao 0 que se passa na sua mente, mas a paisagem do cotidiano na qual ele esta irremediavelmente inserido, ainda que nio queira ou, pior, ainda que despreze 0 mundo. Nesse sentido, 0 comportamento de Van Gogh é irrepreensivel: nZio menospreza nenhum pormenor. Logo nas primeiras linhas da carta, questiona o irmao se, quando visitou o museu, “preston atencio” no quadro de Hals e Codde, pois esta convencido de que “sé este quadro isolado — sobretudo para um colorista — vale a viagem a Amsterda”. ROTEIRO PARA ESCRITORES ‘As minuciosas observagdes que Van Gogh faz no transcorrer da carta servem como um roteiro ao escritor que se recusa a prestar atengdo — ou que considera suas proprias divagacées melancélicas mais interessantes que a realidade. Van Gogh concentra-se especialmente na figura do porta-estandarte que se encontra no lado esquerdo do quadro: “Esta figura 6, dos pés a cabeca, cinza, eu diria cinza-pérola —, de um tom neutro caracteristico, obtido, acho, com laranja € azul misturados de forma a se neutralizarem; fazendo variar este tom fundamental, tornando-o aqui um pouco mais claro, 14 um pouco mais escuro, o pintor chegou a dar a impressio que a figura inteira é toda num tinico e mesmo cinz A forma como Van Gogh descreve mostra que ele nao era apenas um conhecedor das técnicas de pintura, mas também um “leitor” cuidadoso — nio por outro motivo, numa das cartas, ele compara Rembrandt a Shakespeare. Van Gogh prossegue: “Contudo, os sapatos de couro sio de uma matéria diferente que as meias, que diferem dos calcées, que diferem do gibio — cada vez uma outra matéria 6 representada, todas muito diferentes em cor — e tudo no entanto € pintado com cinza de uma tinica e mesma familia” 0 porta-estandarte O detalhamento, entretanto, ainda nao terminou. 0 olhar do artista deve captar 0 maximo de informagées. Ele reconhece que talver esteja se estendendo demais, pede “calma” a seu inmio e continua: “Nao ¢ tudo. Neste cinza, ele vai colocar azul e laranja e um pouco de branco; o gibaio é ornado com fitas de cetim de um azul divinamente ténue, a cinta e a bandeira so laranja — um colarinho branco. Laranja-branco-azul, como eram entio as cores nacionais — laranja e azul justapostos, a mais maravilhosa gama; sobre um fundo cinza, estas duas cores — que eu chamaria de pélos elétricos (sempre em matéria de cor) — sabiamente misturadas e reunidas de maneira a se destruirem neste cinza e neste branco”. Van Gogh pana escRONES 03 Van Gogh poderia ser um 6timo escritor. Se nao tivéssemos a imagem da pintura, poderfamos reconstrui-la parcialmente, nao em seus detalhes historicos, mas nossa imaginacao absorveria as palavras e poderiamos captar a variacao ¢ a mescla das cores. Nao é esse 0 objetivo do escritor? Todo escritor tem, assim espero, consciéncia de que nao conseguira repetir, na mente de seus leitores, exatamente aquilo que pretendeu contar — mas que a impresso central ficara; ser marcada, fixada, apesar das inevitéveis variacdes de cada imaginagio. Nosso missivista, entretanto, nao esta satisfeito. Algumas linhas ainda sao necessérias para dar conta do seu entusiasmo. Ele se volta, entdo, ao conjunto da pintura: “Mais adiante, ele introduziu neste quadro outras gamas laranja sobre outras azuis, mais adiante ainda os mais belos pretos sobre os mais belos brancos; as cabegas — uma vintena — fervilhando de espirito e de vida, e perfeitas! E uma cor! E as figuras de toda essa gente, soberbas até os pés”. Da mesma forma, o escritor deveria ser capaz de migrar do particular ao geral — ede, quando possivel, mostrar como esses niveis de detalhamento se justapdem, ou melhor, se intercomunicam, apoiam-se mutuamente, criando a imprescindivel sensacio de realidade. Observagio extrema A figura do porta-estandarte seduziu Van Gogh — ¢ ele retorna ao homem prateado, de maneira a enfatizar suas impresses: “Mas raras vezes eu vi figura mais divinamente bela que a daquele homenzinho laranja-branco-azul no angulo esquerdo. f) algo tinico. Delacroix se entusiasmaria — e se entusiasmaria ao extremo. Eu fiquei literalmente paralisado”. No é 0 fim da carta. Ela se estende por varios paragrafos e merece ser lida atentamente, como toda a correspondéncia de Van Gogh. Mas, deste trecho, devemos tirar uma ligio: a arte nasce da observacio extrema, de observar com alto grau de intensidade. Esse exercicio permite ao escritor ampliar sua consciéncia a respeito do que vé — e tornara mais facil, para cada elemento que estiver claro em sta consciéncia, encontrar a palavra correspondente, o vocébulo mais adequado. oes Van Gogh pana escRONES 4 PARTE II LICOES DO VAN GOGH LEITOR Um aspecto surpreendente das cartas ¢ o Van Gogh leitor, para quem “o amor aos livros € tao sagrado quanto o amor a Rembrandt’. Na verdade, ele acreditava que esses dois amores “se completam”. Mas seu entendimento a respeito da leitura vai ainda mais longe: para Van Gogh — dedicado, minucioso observador da natureza — “é preciso aprender a ler, como & preciso aprender a ver e aprender a viver”. Ele se emociona com um pequeno artigo sobre Dostoiévski, admira certa paisagem por ter “um nfo sei qué de Boceaccio”, conforta-se quando encontra, perto de Avignon, os mesmos ciprestes ¢ loureiros-rosa que Petrarea teria visto — e, passados alguns meses sem ler, apés devorar varios capftulos de Camille Lemonnier, comenta: “Isto me cura consideravelmente”. Como todos os leitores dedicados, Van Gogh também ensaia um pouco de eritiea literaria, ou melhor, do que poderiamos chamar de critica pictrica: “A tltima coisa que eu linesta categoria foi O Sonho, de Zola; achei muito, muito bonita a figura de mulher, a bordadeira, e a descrigo do bordado todo de ouro. Justamente porque isso é como uma questao de cor, dos diferentes amarelos, inteiros e quebrados. Mas a figura de homem pareceu-me pouco viva e a grande catedral também me metia melancélico. $6 que este contraste lilés e azul-escuro faz, se assim 0 quisermos, ressaltar a figura loira. Mas afinal Lamartine ja fez coisas assim”. utes Van Gogh Pa scouts 05 “Sempre me parece que a poesia é mais terrivel que a pintura.” Van Gogh Deseja “reler tudo” de Balzac. Divaga a respeito de O ano terrivel, de Victor Hugo. Encanta-se com Dickens e vé, no seu Conto de Natal, “enormes afinidades com Carlyle”. Avalia O imortal, de Daudet, como “muito bonito, mas bem pouco consolador”, pois faz com que ele sinta “o nada do mundo civilizado”. Discute longamente com o irmio a respeito de um artigo da Revue des Deux Mondes dedicado a0 Minka religido, de Tolst6i, a respeito do qual conclui, num exereicio de profetismo: “Parece-me que este livro é bem interessante, acabaremos fartos de tanto cinismo, de tanto ceticismo e de tanta zombaria, e desejaremos viver mais musicalmente. Como isto se dara, e 0 que encontraremos? Seria eurioso poder predizé-lo, mas ainda vale mais pressentir isto em vez de ver no futuro absolutamente nada além de catastrofes, que contudo nio deixaro de se abater como raios terriveis sobre 0 mundo moderno e a civilizagdo através de uma revolucéo, ou de uma guerra, ou de uma banearrota dos Estados carcomidos”. ‘Van Gogh é leitor assiduo de Shakespeare. Pede ao irmao que lhe envie uma edicéio completa, a mais barata que houver. Quando 0s livros chegam, comemora: “Isto me ajudaré a no esquecer 0 pouco inglés que sei, mas sobretudo 6 tao belo!” — e completa: “Ja li o Ricardo I, Henrique IV e a metade do Henrique V. Leio sem pensar se as ideias das pessoas daquela época so as mesmas que as nossas, ou 0 que acontece quando as colocamos cara a cara com as crengas republicanas, socialistas ete. Mas 0 que me toca, assim como certos romancistas de nossa época, ¢ que as vores dessas pessoas, que no caso de Shakespeare nos chegam de uma distancia de varios séculos, nfo nos parecam desconhecidas. E tio vivo que acreditamos conhecé-las e vé-las”. Emociona-se, ao ler Henrique VIII, com as tiltimas palavras de Buckingham, depois de sua injusta condenagio — ¢ imediatamente deseja ler Homero. oes Van Gogh pana escRONES 06 Mas Van Gogh nao demonstra ser, na arte da leitura, um mero diletante. Enquanto I Shakespeare, sua mente divaga: “L4 fora as cigarras cantam esganicadamente, um grito estridente, dez vezes mais forte que o dos grilos, e a relva toda queimada toma belos tons de ouro velho. Eas belas cidades do Midi estio na situagao de nossas cidades mortas ao longo do Zuyderzee, outrora animadas”. A decadéncia das cidades, somada ao canto das cigarras, leva-o a novas ilagdes — e ele recorda as cigarras de Socrates, lembranca, talvez, da leitura do Fedro. Entre a pintura e a poesia, contudo, ele ficard com o siléncio da primeira: “Sempre me parece que a poesia é mais terrivel que a pintura, embora a pintura seja mais baca e afinal mais chata. E 0 pintor, afinal, nfo diz nada, ele se cala, e eu ainda prefiro isto”. Mas, ainda que, para ele, a poesia possa ser derrotada pela pintura, Van Gogh encontra na ficeao, especificamente em Guy de Maupassant, 0 que ele préprio busca: “a liberdade [...] de [...] exagerar, criar uma natureza mais bela, mais simples, mais consoladora”. E a conclusio de Maupassant o remete a certeza de Flaubert: “O talento é uma longa paciéncia, e a originalidade é um esforgo de vontade e de observagio intenso”. Ligies, convenhamos, essenciais para qualquer artista, para qualquer escritor. oes Van Gogh pana escRONES o PARTE III VAN GOGH E 0 ESCRITOR DIANTE DA VIDA Todo artista descobre, por meio da dedicacdo constante, gracas a insisténcia com que se empenha diariamente, um método de trabalho. Essa téenica, essa forma de proceder, nao é concedida ao escritor como um dom meditinico, mas pressupée esforgo, empenho. Ou seja, anterior ao método de trabalho, ha, necessariamente, um determinado comportamento do escritor diante da vida. As cartas de Van Gogh estio repletas de referéncias a esse conjunto de atitudes que artista — e, portanto, o escritor — deve assumir em seu cotidiano. E que, passo a passo, Ihe concedera a liberdade que s6 a disciplina, s6 0 método pode garantir. aspecto fundamental é a busca da solidao. E sua importancia cresce na exata medida em que somos, hoje, cada vez mais requisitados pela Internet, por redes sociais, por celulares ¢ tablets. O escritor que vive em grandes centros urbanos 6 assediado em proporgées ainda maiores, pois a vida social — o burburinho dos bares, dos programas culturais, das reunides desta ou daquela panelinha — convoca-0 todos os dias. Van Gogh diz. que “as vezes é bom ir ao fundo e frequentar os homens, e as vezes somos até obrigados e chamados a isto” — entretanto, logo a seguir conclui: “Mas aquele que prefere permanecer sé e tranquilo em sua obra, e nfo quer ter mais que uns poucos amigos, é quem circula com maior seguranca entre os homens e no mundo’. Isso ocorre porque a solidao concede ao escritor independéncia emocional: seus textos nao surgem para satisfazer esta ou aquela pessoa; a aprova¢io dos outros — que, de maneira infantil, tantos buscam — Ihe é indiferente, pois seu primeiro compromisso esta firmado, desde sempre, com sua consciéncia, utes Van Gogh Pa scouts 08 Oeeseritor que vive em grandes eentros urbanos 6 assediado polo burburinho dos bares, dos programas culturais, das reunides desta ou daguela panelinkva. “Mesmo nos ambientes cultos e nas melhores sociedades e circunstancias mais favordveis, ¢ preciso conservar algo do carter original de um Robinson Cruso¢ ou de um homem da natureza, jamais deixar extinguir-se a chama interior, e sim cultiva-la’, reafirma Van Gogh. Ele proprio experimentou essa verdade apés 0 periodo turbulento, frustrante, em qne buscava a companhia de outros artistas e chegou a tentar estabelecer uma comunidade de pintores que dividiriam a mesma casa, colocando tudo em comum: A solidio confere ao escritor um tipo especial de dignidade, que o liberta da urgéncia da aprovacio alheia. Se vocé experimenta a divida em seu {ntimo, diz Van Gogh, “se uma voz Ihe diz ‘Voeé nao ¢ pintor’, é ento que voce deve pintar, meu velho, e também esta voz se calara”. O comportamento nefasto, quando a divida nos assalta, € 0 dos imaturos, que correm “a seus amigos contar suas penas” — esses, para Van Gogh, perdem “um pouco da sua energia, um pouco do que tém de melhor em si”. Ele conclu: “S6 podem ser seus amigos aqueles que também lutam contra isso, aqueles que pelo exemplo de sua prépria atividade estimulam o que h4 de ativo em voce mesmo”. Nesse sentido, buscar a aprovagéio geral é 0 pior defeito — assim como titubear. Se o mundo ow as pessoas querem nos prender & vacilagio, “niio podemos recuar”, diz Van Gogh, “e quando comecamos a considerar as coisas com um olhar livre e confiante, ndio podemos voltar atrés e nem hesitar”. Esta forma de comportamento pode, contudo, nos dar uma idéia errada da personalidade de Van Gogh, pois, em sua solidio, ele se mantém equidistante da arrogincia e da busca ostensiva pela fama. A respeito desta tiltima, fala de forma incisiva, utilizando uma citacdo de Thomas Carlyle: “Conheceis aqueles vagalumes que no Brasil so tio luminosos, que & noite as damas os fincam com alfinetes em stias cabeleiras; a gléria é muito boa, mas, vede, ela ¢ para o artista 0 que o alfinete 6 para esses insetos”. No que se refere a qualquer fantasiada superioridade intelectual ou moral do artista, Van Gogh também ¢ claro. Se ha uma constante em sua vida, cla se encontra no amor As pessoas simples, aos camponeses, aos mineiros — amor que deve ser o “motivo no s6 para trabalhar mas com que se consolar e reerguer-se, quando necessario”. Esse “amor”, entretanto, pode parecer ao escritor — principalmente aos que buscam solugdes concretas, praticas, para suas dificuldades de expresso — uma resposta tio. imprecisa quanto sentimental. Para esses, Van Gogh resume 0 seu proprio comportamento como artista: “A (nica maneira de recobrar 0 equilibrio e a serenidade é¢ fazer melhor”. oes Van Gogh pana escRONES PARTE IV UM METODO PARA ESCRITORES Desde que comegaram a ser publicadas, entre o final do século XIX e inicio do XX, as cartas de Van Gogh tém servido de inspiragio para diferentes leitores. A sinceridade e o entusiasmo do artista pulsam nas descrigdes da natureza, nas Drevissimas resenhas dos livros — ele foi, como vimos, devotado leitor de Shakespeare e Balzac, entre outros — e também na forma como descreve seus estados de énimo ou seu método de trabalho. O sucesso das cartas ¢ uma prova do quanto estamos prontos a nos identificar com a franqueza, mesmo que isso no resulte numa mudanga de comportamento — ou, ainda mais raro, nos torne melhores do que somos. Van Gogh Ha uma virtude que se apresenta ao longo das cartas: a persisténcia. Mais qu teimoso, Van Gogh foi obstinado. “Continuar, continuar, isso é que é necessario escreve, tantas veres a beira da estafa ou do colapso mental. Ele nao tem um plano definido para sua existéncia — e, muito menos, para uma possivel carreira; permanece admiravelmente concentrado no processo criativo — e no no produto qne pode resultar dos seus esforgos. De tela a tela, apenas anseia repetir os mesmos gestos: do croqui 20 esboco, € deste ao quadro. Alegra-se com os resultados, prineipalmente quando identifica algum progresso. Cada pequena vitéria é um ensejo para prosseguir: “Se eu nao fizer nada, se nao estudar, se ndo procurar mais, entio estarei perdido. Entio, ai de mim” E verdade que o reconhecimento nao veio — ele passou a vida adulta na pobreza, dependendo do irmiio e sem conseguir vender seus quadros. Mas recompensa e fama no estavam entre suas preocupacdes. Van Gogh era movido por uma espécie de transcendéncia no metafisica, que o levava a ultrapassar a realidade imediata: fixando-se no mundo e no pr6prio trabalho de forma plenamente objetiva, conseguiu viver longos periodos num estado de concentragéio acima da temporalidade. Ele no “produzia arte”, mas desenhava e pintava. Seu comportamento, diante do oficio que escolhera ¢ da sociedade, nao cra amaneirado. Recusava qualquer afetacao. Jamais deixou-se levar por delirios de grandeza. E cultivou a liberdade de aguardar o éxito com sabia indiferenga. Van Gogh poderia, trocando o verbo inicial, repetir com Flaubert: “Eserever é levar uma vida de cachorro, mas 6 a tniea que vale a pena viver”. Estar constantemente envolvido em seu trabalho significou defrontar, dia apés dia, a resisténcia que a natureza oferece ao artista. “Esta resisténcia’”, dizia, “é um excitante para obter melhores resultados”. Se a natureza Ihe parecia “intangivel”, isso 0 provocava a “atacé-la com mio firme”, até que se tornasse “décil”: “A luta com a natureza as vezes tem aquilo que Shakespeare chama de taming the shrew (isto & vencer quem resiste, pela tenacidade, ‘por bem ou por mal’). Sob muitos pontos de vista, mas mais especialmente para 0 desenho, eu acredito que ‘atacar com forca 6 melhor que afrouxar”. A realidade resiste da mesma forma ao escritor. Entre a observaciio continua, o que filtra do real, as ideias que lutam em sua mente, seus sentimentos eo esforco para se expressar por meio da linguagem, 0 escritor precisa cultivar igual veeméncia, igual comportamento anti-melancélieo. Nao importa que, ao fim do dia, constate poucos avangos. Deve estar sempre disposto a ultrapassar seus limites e repetir, de maneira est6ica, as palavras de Van Gogh: “E realmente um trabalho relativamente duro do ponto de vista fisico; abstraco feita do esforgo de espirito, da tortura intelectual, este trabalho exige diariamente um esforco de energia bastante consideravel”. oes Van Gogh pana escRONES 2 Mais quea frase severa de Flaubert, evocando uma existéncia miserdvel, essa atitude vigorosa, enérgica, sem preocupacio com o triunfo, faz-me recordar 0 conselho de Viktor Frankl: “Nao aspirem ao sucesso — quanto mais a ele aspirarem e dele fizerem um alvo, mais falharao. Porque 0 sucesso, como a felicidade, nao pode ser perseguido; deve acontecer... como se fosse o efeito secundério involuntario da dedicagio pessoal a algo euja grandeza nos ultrapassa”, A conduta de Van Gogh impressiona ainda mais no tempo atual, quando tantos se apegam ao vitimismo e¢ 4 autocomiseragdo. Nao importava que ninguém reconhecesse seu trabalho — bastava-Ihe a consciéneia de que “o caminho para fazer melhor mais tarde é fazer hoje tio bem quanto possivel, ¢ ent3o naturalmente havera progresso amanha’. Quantos nio desistem apés os primeiros esforcos? A idolatria dos derrotados, tio repugnante para Ernest Hemingway, continua a comemorar os que fracassam, afinal, como o autor de O velho e o mar afirmava, “aqueles que nao perduram sao sempre mais amados, j que ninguém tem que vé-los em suas lutas infindas, monétonas, implacaveis, sem trégua, que eles inventam para fazer algo do jeito como acreditam que deve ser feito, antes de morrerem”. Mas haveria um método sob esse empenho diirio? Mais que um método, hé um ato cognitivo realista, consciente: para Van Gogh, pensa-se “muito mais corretamente quando as idéias surgem do contato direto com as coisas, do que quando se olham as coisas com 0 objetivo de encontrar esta ou aquela idéia”. Na contraméo do pensamento ideolégico — pronto a repelir os fatos que nao se encaixem na sua forma, no molde em que toda a realidade precisa, A forca, ser inserida —, Van Gogh prefere “olhar longamente as coisas”, pois é 0 que “nos amadureee e nos faz conceber mais profundamente”. O desdobramento dessa forma de observar ¢ duplo. Primeiro, trata-se de frequentar a escola da paciéncia. Van Gogh admira a frase de Gustave Doré: “Tenho a paciéncia de um boi’. Ele vé na afirmativa “uma honestidade decidida’, a honestidade que recuisa 0 “grasnido dos corvos”, dispostos a repetir idéias prontas sobre o tristemente afamado “dom dos artistas”. Talento nao é dadiva, mas, sim, conquista da serenidade, semelhante ao exercicio de observar “silenciosamente surgir 0 trigo, crescerem as coisas”, o que exige uma “paciéneia digna”. O segundo desdobramento — to esquecido quanto o primeiro pelos apressados talvez por isso lacdnicos escritores contemporaneos — arremata o método: a obra notavel ndo nasce do mero impulso, mas do “encadeamento de muitas pequenas coisas reunidas num todo”. Desenhar e pintar — assim como escrever — é “abrir caminho através do muro de ferro invisivel que se encontra entre o que sentimos ¢ 0 que podemos”. Nao devemos “golped-lo com forca”, diz Van Gogh, mas atravessé-lo Ientamente, usando “uma lima”. Assim, ao final do dia, olhando para “uma oes Van Gogh pana escRONES B quantidade de esbocos”, o artista sabe que ali existe muito mais, ali se materializa o “tranquilo desejo de trabalhat”. Um desejo, para Van Gogh, incansavel: “No caso de nao bastarem cinquenta, desenharei cem, e se isto ainda nao for o suficiente farei ainda mais, alé chegar exatamente onde quero, ou seja, até que tudo seja redondo e que na forma nao haja de modo algum nem fim nem comeco, mas que se forme um conjunto harmonioso de vida”. ‘Nem todos os dias sio produtivos, entretanto. Muitas vezes, sem conseguir desenhar uum $6 esboco, Van Gogh nao fica apenas descontente, mas sente-se “louco, patife, om velhaco”. As possibilidades podem se mostrar “desastrosas”, mas sabe que no deve se prender aos fracassos. As cartas sio fundamentais também por isso: no apresentam a historia do sucesso ou da derrota, mas da vida real, ampla, inteira Meticuloso ou tomado pela loucura, “como um oraculo grego em seu tripode”, Van Gogh nao desiste. As telas levam, na regiio do Midi, até um ano para secar. Nao importa. Permanece fiel A pintura, sua “amante ruim”, perduliria e sempre insatisfeita — tem a obstinacdo de Flaubert, que podia levar trés semanas para escrever dez paginas. As semelhangas entre as cartas de Van Gogh ¢ Flaubert sao, alids, intimeras. Eles parecem 0 mesmo urso solitario, como Flaubert gostava de se imaginar: certos de que no hd conquista sem trabalho atroz, seguem proclamando seu desinteresse pelo futuro e pelo renome. oes Van Gogh pana escRONES A ee REL CU ae LS

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