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VOCACIONAL

PERCORRENDO VOZES E ECOS DE UM PROJETO PÚBLICO


COMPOSIÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA PUBLICAÇÃO
Marina Corazza
Miguel Prata
Paola Lopes

DESIGN GRÁFICO
Daniel Minchoni
VOCACIONAL
PERCORRENDO VOZES E ECOS DE UM PROJETO PÚBLICO
ÍNDICE
............................
............................
PARA UM EDITORIAL OU PRÓLOGO...............................................................................................06
DO CAMPO DE EXPERIÊNCIAS: OLHAR SOBRE A TRAVESSIA, PAUSA.......................................12
ABERTURA.......................................................................................................................................16
UM CONTEXTO PARA O VOCACIONAL..........................................................................................20
INÍCIO..............................................................................................................................................26
DESLOCAMENTOS............................................................................................................................32
MUDANÇA DE GESTÃO....................................................................................................................40
ESPAÇOS PARA O PROGRAMA.....................................................................................................46
NOVAS LINGUAGENS.........................................................................................................................52
ARTÍSTICO E PEDAGÓGICO.............................................................................................................62
INSTITUIÇÃO E BUROCRACIA.........................................................................................................68
EPÍLOGO...........................................................................................................................................72
PERGUNTAS.....................................................................................................................................78
VOZES EM MOVIMENTO...................................................................................................................84
PARA UM EDITORIAL OU PRÓLOGO
Vocacional Memória: percorrendo vozes e ecos de um projeto
público é uma publicação que compreende o trabalho de muitas
e muitos que passaram pelo Programa Vocacional. Em 2014,
alguns artistas orientadores formaram um Grupo de Trabalho
(GT) para se debruçar sobre a memória do Programa. Na época, o
Vocacional estava há três anos sem coordenador geral, a renovação
no seu quadro de artistas contratados era cada ano maior e notava-
se que suas transformações, especialmente sua recente expansão
territorial e de linguagens, nem sempre se desdobravam de um
debate horizontal sobre o Programa na cidade.

O grupo de trabalho Vocacional Memória passou a criar


ações mirando a trajetória do Programa. Ainda em 2014, foi
organizado um encontro público com Celso Frateschi, Diretor do
Departamento de Teatro na criação do Teatro Vocacional e depois
Secretário Municipal de Cultura no governo de Marta Suplicy
(2001-2004). Foi realizada uma entrevista por Skype com Maria
Tendlau, responsável pela Coordenação do Projeto em seu início,
e uma conversa com Fábio Villardi, bailarino e coreógrafo, artista
orientador no período de implementação do Dança Vocacional,
posteriormente, Coordenador de Equipe e de Núcleo. Foram
articulados também dois encontros entre grupos vocacionados,
artistas orientadores e vocacionados de épocas diferentes do
Programa. Em 2015, preparou-se um encontro público com
Mário Santana, que prestou consultoria para ampliação do Projeto
nos CEUs em 2003 e foi Coordenador Geral logo após a troca

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na gestão municipal em 2005. Ainda em 2015, Expedito Araújo,
coordenador geral do Núcleo Vocacional entre 2005 e 2010, foi
entrevistado por escrito. Sob sua coordenação, novas linguagens
passaram a fazer parte do Programa.

Todo este material está transcrito, ou disponível em vídeo,


no blog do Vocacional Memória1 e em sua página do Facebook2.
Fragmentos de três destes encontros foram publicados na 4ª
edição da Revista Vocare (revista oficial do Programa Vocacional).
Um ensaio do artista orientador Luiz Pimentel, Pensar a partir da
distância, abria a seção Vocacional e Memória: trabalho em processo.
Em seu ensaio, Luiz escrevia sobre uma ação do grupo que:

nada teria a ver com uma perspectiva nostálgica que se


dedicaria a mirar os “velhos bons tempos” para desmerecer
as atuais circunstâncias, algo como agir de forma a “resgatar”
os conceitos originais ou se debruçar em direção a algum
fundamento inicial e, portanto, mais verdadeiro que o atual.
Tampouco teria a ver com celebrar o presente, festejando um
Programa que se encontra morto (nota fúnebre) ou em pleno
vigor e coerência. Muito pelo contrário, aqui a memória teria
de ser pensada como uma mirada seca para trás, para nossas
costas, para um momento em que éramos distintos e, talvez,
por meio dessa retrospectiva, indagarmos: “como pudemos
nos tornar o que vimos sendo ao longo dos últimos anos?”
(PIMENTEL, Luiz. Pensar a partir da distância. Revista
Vocare, São Paulo, v. 4, n. 4, p. 56, nov. 2014)

1 https://vocacionalmemoria.wordpress.com/
2 https://www.facebook.com/vocacionalmemoria/

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Ao final de 2015, em uma reunião de coordenação, surgiu
a ideia de organizar todos os materiais do Vocacional Memória para
uma edição inteira da Vocare. Nosso grupo, já reduzido, passou a se
reunir, depois do período de contratação, para revisitar esses textos
já em outro contexto. O ano tinha sido de um estreitamento de
diálogo entre artistas e gabinete, foi negociada a volta da função
de Coordenador Geral. A divisão das equipes passou a ser por
territórios e não mais por linguagens, uma proposta que partiu,
inclusive, de outro Grupo de Trabalho do Programa. Gerando
novas possibilidades de ação entre as linguagens e os equipamentos
públicos, pondo em diálogo artistas e em crise suas diferentes
formas de atuação.

Compusemos essa publicação como uma colagem de


trechos das falas, entrevistas e conversas que realizamos até 2016.
Criamos uma espécie de dramaturgia que percorre um arco
temporal que vai de 2001 a 2010, partindo de um contexto que
permitiu a criação do Projeto, seguindo pelas primeiras ações
e seus deslocamentos. Percorrendo as mudanças na gestão
municipal e na Coordenação Geral, até a implementação das
linguagens Dança e Música. Detendo-se também na questão dos
espaços que são oferecidos ao Vocacional e o que se escuta de arte
e pedagogia, duas palavras incorporadas para definir a ação dos
artistas ao longo dos anos.

A ideia inicial era publicar no início de 2016. Previsão
que foi adiada quando o Programa começou, o que fez com
que transformássemos um pedaço do material em uma ação de

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leitura do texto com entradas para falas dos artistas presentes.
Nos interessou ouvir a leitura das vozes antigas, interferida pelas,
então, vozes atuais. Transcrevemos essas intervenções ao final desta
publicação.

Os textos aqui reunidos narram ambientes de anos
diferentes. Reforçamos seu caráter de dramaturgia, apostamos
nessa montagem também como uma brincadeira de criar um
grande diálogo, ecoando junto vozes de contextos distantes. Nós
mesmos nos debruçamos sobre este material em momentos muito
diversos. Mantendo o diálogo em aberto, nossa intenção não é
avaliar processos ao longo dos anos, nem se aliar a determinadas
vozes, queremos abrir mais materiais de ação entre o Programa, sua
equipe de artistas e os espaços onde ele atua.

Uma publicação pode guardar um tom de acabamento,


de encerramento de uma pesquisa. Em nosso caso, que não somos
historiadores e estamos envolvidos em nossa matéria de estudo,
publicamos esse(s) texto(s) para seguir escrevendo, pensando,
lendo e ouvindo o Vocacional e como ele tem acontecido desde
sua implementação há 15 anos.

Nós agradecemos a Celso Frateschi, Expedito Araújo,


Fábio Vilardi, Maria Tendlau, Mario Santana, aos grupos Família
Justa Causa (música), Improvis´Art (dança), Bastarda, CRUK,
Descarados do Tendal, Humbalada, Jovens Amadores, Palco
para Toda Obra, Pandora (todos grupos de teatro), e a todos que
participaram das ações do Memória. Obrigado por recompor

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(decompor) essas histórias juntos.

Fizeram parte da construção deste material: Gabriela


Flores, que também participou da organização da publicação,
Andrea Tedesco, Carolini Lucci, Livia Piccolo, Luiz Pimentel,
Márcio Castro, Maria Emília Faganello, Marina Corazza, Miguel
Prata, Paola Lopes, Priscila Gontijo e Priscilla Carbone.

Miguel Prata (em colaboração com Marina Corazza e Paola Lopes)


São Paulo, dezembro de 2016

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DO CAMPO DE EXPERIÊNCIAS:
OLHAR SOBRE A TRAVESSIA, PAUSA.

Começo a escrita envolvido pela minha percepção e leitura desses


últimos anos de Vocacional, mais especialmente da edição de 2016.
De seus vários aspectos acentuo este: uma trajetória como campo
de experiências, travessia em relevo, que para se observar é preciso
a pausa, um tempo. É preciso provocar a pausa, o olhar.

Do percurso recente, outro aspecto a destacar é o da necessidade


pulsante de aproximar as práticas do programa ao seu centro
institucional, questão que vem de longe . Para tanto, propostas
de reestruturação do programa foram lançadas, conquistadas e,
quando postas em curso, geraram inquietações e incertezas, que
agora podemos olhar criticamente e reorganizar.

Também nesse percurso, surgiram os Grupos de Trabalho e


Investigação: Vocacional Memória, Formação, Investigação
territorial, Vocacional Lacração, Vocacional Negra, Vocacional
Mulheres. Esses grupos materializam e trazem para dentro do
programa as urgências das causas e movimentos que se organizaram
frente a uma realidade opressora e histórica de um país colonizado
e cuja estrutura social e política se mantém apoiada nessa origem.

A presença dos grupos de trabalho e investigação, somada aos


15 anos do Programa e às muitas relações geradas com coletivos,

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movimentos, novos vocacionados, ex-vocacionados, novos modos
de articulação entre artistas, especialmente nas periferias, apontam
um caminho a percorrer ou aprofundar: a relação do Vocacional
com as novas dinâmicas da cidade.

CONTAR MEMÓRIAS:
UMA PAUSA PARA OLHAR/SENTIR/SEGUIR

No início de 2016 foi possível propor, não sem obstáculos, um novo


caminho para a Vocare1, um caminho de experimentação que abrisse
espaço para as muitas questões que envolvem esta publicação: qual
a melhor plataforma? Para quê? Para quem? Chegamos a proposta
da publicação desse hercúleo e excelente trabalho do Vocacional
Memória como uma forma de construção de um material vivo que
possa acompanhar o processo de reflexão continuada do corpo do
programa, além de provocar um olhar para a travessia. Observar a
transformação do pensamento, das escolhas, e repensar, reinventar
o caminho. Dessa forma, esta publicação é a pausa para um olhar
atento.

Na travessia, no homem que caminha e sonha e se permite ser


tocado, algumas coisas permanecem, outras se transformam, no ato
de uma experiência estética ou no tempo longo do caminhar.

Para encerrar, preciso falar de sonho. Acredito que quando pensamos


e lutamos por políticas públicas na Cultura, carregamos no bojo o

1 VOCACIONAL MEMÓRIA: Originalmente essa publicação foi organizada para ser uma
VOCARE, revista oficial do Programa Vocacional. 13
desejo da transformação social – que nos leve a um viver mais justo
– e procuramos por formas e meios para alcançá-la.

Agradeço, primeiramente aos artistas do Vocacional Memória pela


persistência e paixão. A todos Artistas Articuladores, Orientadores,
Vocacionados, Ex- Vocacionados, que participaram em edições
anteriores, e os que hoje participam do corpo do programa, agradeço
a disposição de enfrentar as incertezas, manter a resistência e seguir
em frente.

Vida longa a essa bela vida: travessia - Vocacional!

Paulo Fabiano (coordeador do Programa Vocacional em 2016)

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ABERTURA
CELSO FRATESCHI: É um prazer
enorme estar especificamente no Tendal
da Lapa. Esse espaço, na verdade, só
existe por conta de um grupo vocacional.
Antigamente, em 1988, o Tendal era um
lugar completamente abandonado. Nesse
último galpão, havia carros de um clube
que colecionava automóveis antigos. Era
simplesmente uma garagem. O resto
era abandonado e ermo. Para vocês de teatro. O material apreendido ficava
terem uma ideia, na semana em que a de um lado, a gente do outro. E foi
gente invadiu, foram encontrados dois juntando gente para participar. Lembro
cadáveres aqui neste terreno. Também que na primeira chamada do grupo, nós
era um lugar onde a prefeitura guardava éramos em 15, 20. Quatro meses depois,
materiais apreendidos de camelôs. E foi a gente já estava trabalhando com 200
nessa parte que conseguimos autorização pessoas, num happening maravilhoso
para começar a desenvolver um trabalho que fazíamos todo sábado e domingo
aqui. Foi essa força que garantiu a
energia pra gente invadir o espaço todo.
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VOCACIONAL MEMÓRIA:
Celso Frateschi utiliza o termo
“vocacional” se referindo ao adjetivo
relativo à “vocação” e não ao Programa
Vocacional, que, na época em que se
passa o seu relato, ainda nem existia.
Segundo o dicionário Houaiss:
Vocação
Datação: sXIII
Etimologia: lat. vocatìo,ónis
‘‘ação de chamar’’.
|s.f.|substantivo feminino
1. ato ou efeito de chamar(-se);
denominação.
2. apelo ou inclinação para o
sacerdócio, para a vida religiosa.
Ex.: vocação sacerdotal.
3. disposição natural e
espontânea que orienta uma pessoa
no sentido de uma atividade, uma
função ou profissão; pendor, propensão,
tendência. Ex.: ela tinha vocação para os
trabalhos manuais, ele tem vocação para
médico.
4. qualquer aptidão ou gosto
natural; disposição, pendor, talento.
Derivação: por extensão de sentido.
Ex.: com sua vocação para dança, vivia
nos bailes.

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Foi uma festa muito grande, essa invasão,
que gerou um primeiro espetáculo
vocacional. Era um espetáculo de rua
com mais de 200 atores e 1.500 pessoas
assistindo por dia. Isso foi muito
Eu me lembro muito bem do dia em que prazeroso. E voltar aqui é muito legal.
a gente invadiu e quebrou com marreta Só depois que o Tendal foi incorporado
o muro e as paredes que separavam a rua a uma Casa de Cultura da cidade. É bom
Constança do Tendal. E acho que foi lembrar que isso tudo só foi possível
uma invasão que deu certo. Na época, a porque, na época, fazíamos parte do
gente chamava de ocupação, porque era Núcleo de Cultura aqui da Lapa e a
mais bonito chamar assim. Mas foi uma nossa prefeita era a Luiza Erundina
invasão mesmo (risos na sala). Era um (atualmente no PSOL, na época, PT),
espaço que estava privatizado de uma que tinha muita sensibilidade em relação
forma que a gente considera irregular. à ação cultural. E a Secretária de Cultura
E foi um exercício de invasão nosso, de era a professora Marilena Chauí. As
200 artistas vocacionados que invadiram discussões eram todas muito fortes.
à marretada. E fomos tomando conta Voltar aqui me lembra uma experiência
do espaço. Nem tínhamos ideia de de vida vibrante. Muito obrigado por
como fazer isso e do que era esse espaço. terem marcado esse encontro aqui.1

1 VOCACIONAL MEMÓRIA: Em agosto de 2014, Celso Frateschi revisitou o Tendal da Lapa. Enquanto o
nosso papo não começava, Celso caminhava pelos distintos espaços do Tendal, curioso com suas transformações.
Compareceram, ao encontro público daquela tarde, artistas orientadores, artistas vocacionados, administradores de
espaços públicos e outros interessados na relação entre arte e políticas culturais. Ator, diretor e dramaturgo, Celso
Frateschi foi diretor do Departamento de Teatro e Secretário de Cultura na gestão municipal de Marta Suplicy
(PMDB atualmente, na época, PT). Foi presidente da FUNARTE no governo federal de Lula (PT), é professor na
EAD/USP e Coordenador do Ágora Teatro. Os trechos citados na revista são deste encontro público no Tendal, a
transcrição completa está disponível em: https://vocacionalmemoria.wordpress.com/2014/10/29/encontro-publico-
com-celso-frateschi/ 19
um contexto
para o
Vocacional
MARIA TENDLAU2: O Programa surgiu de uma experiência
do Celso dentro de um contexto no qual a educação tinha outra
força. Havia um contexto de teatro estudantil forte quando
o Celso era jovem, que era estudantil também, não apenas
universitário. Existia, a princípio, um cenário de teatro amador
fértil naquela época. Quando o Vocacional foi criado, este
cenário tinha se precarizado muito. Então, a ideia da experiência
do Vocacional era um reflexo da experiência do próprio Celso
quando começou a fazer teatro no colégio, do colégio foi para
a Biblioteca da Lapa, da biblioteca para o Teatro de Arena.
Imagine o Teatro de Arena na época do Boal!
2 VOCACIONAL MEMÓRIA: Em julho de 2014, fizemos uma ponte virtual,
entre São Paulo e Piracicaba, para conversar com Maria Tendlau. Atriz, encenadora e
educadora, Maria fez parte da implantação do Programa Vocacional (à época, projeto
Teatro Vocacional) na cidade de São Paulo e atuou como sua coordenadora entre
2001 e 2004. Atualmente, morando na cidade de Piracicaba, atua como orientadora
de arte dramática pelo Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP). Os trechos
aqui citados foram transcritos desta conversa, que está disponível na íntegra em:
https://vocacionalmemoria.wordpress.com/2014/10/29/entrevista-com-maria-tendlau/

CELSO FRATESCHI:
Quando eu comecei a fazer
Teatro Jornal, o Boal começava o
espetáculo dizendo que o futebol é
importante porque, de uma forma
ou de outra, todo mundo conhece
suas regras, porque joga futebol. E
ele acreditava que o teatro deveria
ser popular na medida em que as
pessoas jogassem teatro. Mesmo que
despretensiosamente.
21
CELSO FRATESCHI:
Em 2002, eu me tornei Secretário
de Cultura e isso foi importante
para a ampliação e solidificação
do Projeto Vocacional. Na época,
eu fazia parte de um projeto de
governo, e um projeto para a área
de cultura da cidade de São Paulo.
Isso significa que não havia ações
isoladas e nada do que foi feito
era fruto de um interesse meu,
particular, pelo teatro. Não era um
interesse isolado, era um projeto
de governo, que pressupunha
uma concepção de cidade, de um
jeito de encarar a cidade em que
vivíamos e construíamos. A gente
acreditava que a cidade, apesar de
ser o caos que é hoje, era a maior
invenção da humanidade. Se fosse
tão ruim, já haveria aparecido
outra forma de organização. Mas
segue sendo a cidade que a gente
busca para viver, pois é uma forma
sofisticada de relações políticas,
sociais, humanas. Acho que os
projetos políticos deveriam estar
interessados em aperfeiçoar a vida
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nessas formas. Portanto, o que a
nossa visão de mundo defendia
era tomar o cidadão em primeiro
plano. Isso não tinha nada a ver com
querer desenvolvê-lo para ser útil
para a engrenagem. Não, ele estava
em primeiro plano para fazer com
que a engrenagem funcionasse para
deixá-lo feliz. Para que ele exercesse
plenamente sua humanidade,
cidadania e civilidade. Portanto, o
projeto Teatro Vocacional nasceu
muito próximo dessa ideia. Na
área da Cultura, havia um tripé
para isso: formar um cidadão,
apresentando conteúdos culturais
criados pela humanidade ao o cidadão praticasse a arte não
longo da história, portanto, uma somente como consumidor, mas
função de socialização das formas como produtor; e terceiro, dar a
artísticas; um segundo ponto possibilidade da produção artística
tratava de favorecer os meios de oculta da cidade, aquela que não
produção artística, permitir que tinha interesse de mercado, poder
se manifestar. Esse tripé gerou
uma série de ações.
VOCACIONAL MEMÓRIA: Marta Suplicy (atualmente no
PMDB, na época, no PT) foi Prefeita da cidade de São Paulo
entre 2001 e 2004. Em seu primeiro ano, criou o Departamento
de Teatro da Secretaria Municipal de Cultura, dirigido por Celso
Frateschi, na época, teve como Secretário Municipal de Cultura,
Marco Aurélio Garcia. Em 2002, Celso Frateschi assume a
Secretaria e Kil Abreu, o Departamento de Teatro. Em 2001, foram
estruturados os CEUs* (Centro Educacional Unificado). Também
foram lançados programas do Departamento de Teatro: o Núcleo
de Teatro Vocacional; o Programa de Formação de Público**; a
Ocupação dos Teatros Distritais***; e, em 08 de Janeiro de 2002, é
promulgada a Lei nº13.279, que institui o Programa Municipal de
Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo****.

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*CELSO FRATESCHI: Os CEUs entendiam a educação da forma com que ela deveria sempre ter sido entendida.
Hoje a gente escuta o tempo todo (e o pior é que o cidadão às vezes aceita) que a educação serve para possibilitar
que se consiga um emprego em determinada área. Ou seja, a educação serve para formar mão de obra e quanto mais
mão de obra houver, mais barata ela se torna e sempre estará a serviço de um outro que não o próprio cidadão. Nós
entendemos a educação de uma maneira totalmente diferente. Ela teria de servir, de alguma forma, à emancipação
desse ser humano e não ao aproveitamento de sua força de trabalho para uma forma mais restrita. Não é à toa
que os CEUs foram pensados para terem tanta coisa: bibliotecas, EMIAs, telecentros, teatros, piscinas, pistas de
skate… O objetivo era criar uma zona da qual as comunidades pudessem desfrutar e desenvolver suas capacidades
humanas. E acho que foi um projeto totalmente exitoso enquanto se desenvolveu sobre essa égide, pois juntava as
Secretarias de Educação, Cultura e Esporte e a população do entorno, com a participação de seus representantes
no Conselho Gestor do CEU. Isso acabou. Nem sei como está agora. Acho que essa gestão colegiada ainda não foi
retomada. Para nós, o processo de construção do conhecimento não se limitava à sala de aula. A sala de aula deveria
organizar, talvez, esse processo. Mas sabíamos que grande parte dele acontece sempre na rua. Os saberes existem e
são construídos pelo cidadão no seu dia a dia, em casa, no trabalho. E eles são tão importantes quanto a leitura e a
escrita. E isso precisava ser estimulado.

**CELSO FRATESCHI: O projeto Formação de Público fazia parte dessa política que pensava o teatro para o
município. Eu estava lendo aqui a primeira revista produzida pelo projeto Vocacional e estava lá o Peter Brook, o
Yoshi Oida e o Sotigui Kouyaté na periferia de São Paulo, discutindo com vocacionados e orientadores. Trabalhando
junto. Era um projeto que se pensava de uma forma sólida e não simplesmente propagandista. O projeto Formação
de Público era um projeto mais caro, mas muito menos caro do que a Virada Cultural, por exemplo. Isso era bom
para os artistas profissionais também, pois os grupos que se apresentavam tinham atividade o ano inteiro. Hoje você
tem um cachê maior na Virada, por exemplo, mas muito pontual. É um jeito muito mais precário de se pensar ação
cultural no município. Além disso, o projeto Formação de Público convidava o cidadão a participar do Vocacional.

***CELSO FRATESCHI: Não só a ocupação dos espaços teatrais, também muitas bibliotecas foram ocupadas
por grupos de teatro. Espaços históricos e tombados também foram ocupados: o Teatro da Vertigem ficou mais
de um ano na Casa Número 1, o Grupo XIX ficou dois anos no sítio Morrinhos. Isso fazia com que esses grupos
conseguissem desenvolver suas propostas estéticas como nunca tinham podido desenvolver antes. Os próprios
teatros distritais eram ocupados por grupos. No Cacilda Becker se formalizou a Cia do Latão, por exemplo. Não
havia somente a ocupação desses teatros, mas a proposição de uma direção artística para eles por parte dos grupos.
Antes da nossa gestão, a Secretaria Municipal de Cultura funcionava como uma espécie de imobiliária: alugava o
teatro por dois meses sem nenhum tipo de critério. Com a proposta de ocupação, a gente cedia o espaço por dois
meses ao ano, com possibilidade de renovação, mais uma verba para que o grupo pudesse se manter e gerir o espaço.

**** MARIA TENDLAU: Podemos pensar na história de todas as reuniões do Movimento Arte Contra a Barbárie,
que eram reuniões de um grupo de pessoas do teatro de grupo. Não eram aquelas reuniões gigantescas, eram
reuniões de umas sete pessoas. E este grupo gerou um manifesto, que gerou a possibilidade da escrita da Lei de
Fomento. O fato é que a elaboração do princípio de que há uma arte pública, que não está vinculada ao mercado e
que portanto deve ter apoio financeiro público hoje é voz corrente, mas na época não era assim tão claro. Foi feita
muita discussão para se compreender isto para além da questão da sobrevivência imediata, e sim como uma questão
de ser, fazer e atuar politicamente.
CELSO FRATESCHI: A experiência do Fomento não é perfeita, mas avançou muito no entendimento de quem é
que determina para onde vai o dinheiro. É preciso colocar o crítico, o cara que entende, o antropólogo, o sociólogo,
o professor, aquele que tem interesse em cultura para dizer para onde vai o dinheiro público. E não aquele que vai
vender uma marca. [...] Eu entendo que a função do artista só se exerce se ela for crítica. Se ela for completamente
livre. O artista só pode ter algum interesse para a sociedade se ele for livre. E numa sociedade democrática, o Estado
deve financiar um artista livre e não o cooptado. Deve financiar o artista sabendo que ele vai criticá-lo, pois essa
é a função dele. E isso pode ser bom para a democracia. Mas isso é muito difícil de acontecer, pois nossa herança
autoritária também é muito grande. Nós, artistas, não sabemos muito bem lidar com isso também.
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início CELSO FRATESCHI:
O Vocacional surge dentro dessa
política. Uma equipe foi formada
a partir da parceria com a Maria
Tendlau, que foi quem me ajudou
a organizar todo o setor do Teatro
Vocacional na Prefeitura.
VOCACIONAL MEMÓRIA: Em 2001, o Projeto Teatro
Vocacional acontecia em 23 pontos da cidade, sendo 12
Casas de Cultura, 09 Bibliotecas públicas e 02 EMEFs.
Em 2003, eram 30 pontos, nos quais atuavam 35 artistas
orientadores em grupos regionais, separando a cidade
em 7 regiões: Centro, Norte, Oeste, Sul, Sudeste, Leste
e Extremo Leste. Em 2004, com o desafio de implantar o
3 Fonte: TENDLAU, Maria.
Projeto nos CEUs, o quadro de artistas orientadores passa Teatro Vocacional e a apropriação
da atitude épica/dialética. São
a 79 e os pontos atendidos sobem para 49. 3 Paulo, Editora Hucitec, 2010.

MARIA TENDLAU: O plano original era o seguinte: criar uma


ação na cidade de incentivo, qualificação e fortalecimento do
teatro amador. Essa era a missão do projeto. Isso se ajustava a uma
política daquela época que propunha que o teatro tomasse a cidade
e pudesse trabalhar com uma ideia de “cidadania cultural”4, para
usar o termo da Marilena Chauí. Trabalhar com a possibilidade
da cultura, no caso específico da arte, de forma a potencializar o
pensamento crítico e uma apropriação de território na cidade. Isso
era o plano. Não era o plano dar aula de teatro. Esses são os dois
extremos, do que era e do que não.

CELSO FRATESCHI: A ideia que a gente tinha não era formar


núcleos teatrais pela cidade que montassem as peças já consagradas.
Nem formar grupos de teatro amadores pura e simplesmente.
Também não era a obrigatoriedade de realizar uma produção para
mostrar depois. Tínhamos a necessidade de que, a partir do teatro,
fosse desenvolvido um processo de conhecimento criativo com a
população de São Paulo. 4 Ver livro – CHAUÍ, Marilena.
Cidadania Cultural: O direito à
cultura. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2006. 27
TATIANA MONTE (Cia. Humbalada)5: Eu comecei a fazer Vocacional
em 2001 e os outros membros da companhia começaram a fazer em 2003.
Em 2005 formamos o grupo. Estávamos na Casa de Cultura de Interlagos,
que não existe mais.

BRUNO CÉSAR (Cia Humbalada): Em 2003, quando a gente começou,


havia um momento histórico na cidade de São Paulo muito peculiar: Os
CEUs estavam surgindo; havia o movimento Arte Contra a Barbárie,
que era proposto por muitos artistas que queriam discutir a situação do
teatro na cidade; havia o surgimento do Programa VAI e do Vocacional;
e tinha o Projeto Formação de Público. Tudo estava fervendo na cidade.
A gente sentia que essa discussão que havia na cidade sobre teatro e, mais
especificamente, teatro de grupo, interferia na nossa orientação. A gente
tinha orientação, depois via um espetáculo apresentando-se no CEU, que
também era uma novidade, via um grupo conhecido ganhando o VAI…
estava tudo começando.

BRUNO CÉSAR (Cia Humbalada): O Vocacional foi decisivo na nossa


escolha como profissão, por mais que o Programa não tenha esse objetivo
de formar artistas tecnicamente. A gente começou a fazer na época do
ensino médio, em que a gente tem que decidir o que quer fazer da vida, e
pra gente era aquilo que queríamos. Fizemos faculdade depois, de teatro.
Como a Humbalada é um grupo que passeia pelas políticas públicas, pelo
Vai, pelo Fomento, pelo ProAC, é como se a gente passeasse por aquilo
que nos criou, um processo de esteira. Vemos que aquilo teve potência pra
nós, então a gente quer também fazer parte disso.
MARIA TENDLAU: Mas quando a gente implantou o
Vocacional, percebemos que os grupos amadores eram todos
muito frágeis, tanto do ponto de vista formal quanto do ponto
de vista do pensamento, até porque uma coisa influi na outra.
Daí a gente passou a construir novos grupos.

5 VOCACIONAL MEMÓRIA: Em julho 2014, realizamos o I Encontro de Grupos,


Artistas Vocacionados e Artistas Orientadores, no qual estiveram presentes representantes
dos grupos e coletivos: Família Justa Causa (música), Improvis´Art (dança), Pandora,
Humbalada, Bastarda, Jovens Amadores e Palco para Toda Obra (teatro). Citamos aqui
trechos desta conversa, ela pode ser lida na íntegra em: https://vocacionalmemoria.
wordpress.com/2014/10/29/primeiro-encontro-com-grupos/

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CELSO FRATESCHI: O artista orientador deveria chegar nos
espaços com uma grande perspectiva de aprendizado, mais do que
de ensinamento. É que o fato do artista orientador ser aprendiz é
tão importante quanto orientar. E era de extrema importância que o
projeto que ele fosse desenvolver fosse fruto de uma pesquisa pessoal
sua. Porque a gente acha que, para o artista, a coisa tem que ser
pessoal de algum jeito. Ele não é um construtor frio da matéria que
desenvolve, ele tem que se colocar pessoalmente naquilo que ele faz.
Por isso se chama artista orientador e não simplesmente orientador
ou professor de teatro. Sempre vem o artista primeiro, que vai
desenvolver um projeto de teatro que lhe interessa também. Mas,
dentro do Vocacional, para que ele pudesse levar a cabo o projeto
de teatro que lhe interessava, ele teria de construir junto com o
coletivo com o qual fosse trabalhar. Então, os temas e as formas com
as quais esse projeto se desenvolveria seriam decididos com o grupo
que esse artista orientador encontrasse. Não existia nenhum tipo de
orientação ou definição de tema. Ao contrário, a possibilidade do
tema ser dado anualmente pelo governo nos deixava em pânico. E a
gente sabe que esse governo não necessariamente precisa ser central,
pode ser o local: subprefeitura, diretor da escola, gestor do CEU etc.
Não nos interessava qualquer possibilidade de dirigismo.

30
MARIA TENDLAU: Como foi conformado
o projeto, num processo muito coletivo de
investigação, era difícil estabelecer a priori um rol de
práticas comuns. Cada orientador tentava transpor
sua experiência de criação, conforme ocorria nos
seus respectivos grupos teatrais profissionais.
Compartilhava suas descobertas, conquistas e
malogros, com uma equipe de orientadores bastante
interessada na descoberta de procedimentos que
garantissem um aprendizado a partir da experiência
da criação. O que regia esta investigação era
a avaliação sistemática de seus resultados e a
disposição para a correção dos desvios, mirando um
princípio único: o teatro pode ser compreendido,
como conformação, tradução estética, de um olhar
crítico para a realidade, através da prática da criação.

31
deslocamentos
BRUNO CÉSAR (Cia Humbalada): Quando a gente
era artista vocacionado, a nossa discussão era artística. A
discussão era a arte, o teatro. Às vezes eu sinto que, aos
poucos, as coisas foram se pedagogizando. O Programa
foi assumindo um lugar quase de mãe…

TATIANA MONTE (Cia Humbalada): Assistencialista.

BRUNO CÉSAR (Cia Humbalada): E deixou-se de


discutir o teatro na cidade. Estou falando especificamente
da linguagem teatro, que é a da nossa formação. Não
sei nas outras. Na nossa época, a gente discutia Brecht,
Artaud… nada era nivelado por baixo. Se a gente não
entendesse, o problema era nosso.

RODOLFO VETORE (Grupo Pandora de Teatro):


Isso acontecia mesmo. As artistas orientadoras que nos
acompanhavam faziam isso também, citavam muitas
referências estéticas. Um aprofundamento em questões teatrais,
na pesquisa do ator, isso era uma coisa forte do Programa.
33
MARIA TENDLAU: Um dia, por exemplo, eu
cheguei no Celso e disse: “Vamos arranjar um
ônibus para levar os artistas vocacionados ao
teatro”. E o Celso respondeu: “Como, ônibus?
Eles tem que batalhar, se articular para ir! Eles
não querem ir ao teatro?”. Parece que precisava
de gente que quisesse muito e, para querer tanto,
precisava de outra questão de fundo. E essa
questão é a educação. Num extremo, a educação
da pedra, na qual você aprende de forma não tão
pacífica quanto a que aprendemos, no outro, a
educação formal, que não vem dando conta. A
cidade está ficando acostumada a ter uma relação
paternalista com tudo. A boa vontade geralmente
é muito paternalista.

34
BRUNO DA SILVA (Grupo Descarados do Tendal)6: O vocacionado
entra vendo a imagem do artista orientador como professor. Ele virá
aqui e vai me falar: “Faz isso, isso e aquilo.” Até eles sentirem e verem
que não é isso, que a pessoa está lá não para te puxar, mas para andar
ao seu lado, ajudar nessa caminhada, demora um tempo.

IPOJUCAN PEREIRA (Artista


Orientador ): A mesma coisa que acontece
7

com o vocacionado que demora um tempo


para descobrir isso, assim é também com
o artista orientador quando ele entra no
Programa. A mesma coisa com quem vira
coordenador… Ou seja, não é um curso,

não se está escrito em nenhum lugar


como se deve ser artista orientador, nem
como ser coordenador. Então, criamos
espaço para se pensar inclusive isso, a
pedagogia, tudo a ser criado.

6 VOCACIONAL MEMÓRIA: Em setembro de 2014, dentro do evento Processos Artísticos: Tempos e Espaços, realizamos
o II Encontro entre Grupos, Artistas Vocacionados e Artistas Orientadores no Centro Cultural Jabaquara. Citamos aqui alguns
trechos deste encontro, a transcrição completa está disponível em: https://vocacionalmemoria.wordpress.com/2014/10/29/
ii-encontro-entre-grupos-artistas-vocacionados-e-artistas-orientadores-centro-cultural-jabaquara/
7 VOCACIONAL MEMÓRIA: Optamos por manter a denominação artista orientador para se referir a todos os
artistas que trabalharam no Programa.
35
EXPEDITO ARAÚJO8: O Vocacional não acontece em uma
única direção. O artista orientador não está lá para ensinar e sim
para trocar a partir de uma escuta sobre estas pessoas, estes grupos,
estas comunidades. É um projeto que se constrói pela interação
e pelos processos colaborativos entre artistas orientadores e
artistas vocacionados, entre estes artistas e as comunidades.
Relembrando a sua essência primordial, o princípio do projeto
se faz pelo seu nome, Vocacional é vocação, é dar voz. É um
espaço para que cada artista vocacionado possa fazer ouvir a sua
voz, suas ideias, sua criatividade, sua expressividade. Este projeto
compreende que os artistas vocacionados têm um valor cultural
inestimável. E o projeto também tem um valor incalculável
para a cidade. As suas ações reverberam em rede, no âmbito
individual, coletivo, social. Um projeto de cultura, educação e
cidadania, ao qual todos deveriam ter direito e acesso.

8 VOCACIONAL MEMÓRIA: Em novembro de 2015, ano em que mudanças estruturais


no Programa culminaram na organização das equipes de artistas orientadores por territórios e
não mais por linguagens, realizamos uma entrevista por escrito com Expedito Araújo. Ele foi
coordenador geral do Núcleo Vocacional entre 2005 e 2010. Sob sua gestão, novas linguagens
passaram a fazer parte do Programa, que teve também significativa expansão territorial. Formado
em Ciências Sociais (UERJ) e Artes Cênicas (UNIRIO), atualmente é gestor do projeto cultural
Vivo EnCena. Os trechos aqui citados são desta entrevista, ela está disponível na íntegra em:
https://vocacionalmemoria.wordpress.com/2015/12/14/entrevista-com-expedito-araujo/
MARIA TENDLAU: O princípio humanista do Programa é que é o
problema. É um guarda-chuva que engloba o pedagogismo e a ação
social. É um humanismo no pior sentido. Quando eu falo que não
sou humanista, as pessoas acham um absurdo. Acham que eu sou
contra o ser humano. Mas sou contra essa ideia de que o ser humano
está individualmente acima de tudo. Porque isso é justamente anti-
humano, de certa forma, pois legitima uma porção de outras ações.
Por isso que acho difícil entrar nesta seara da pedagogia que às vezes
tende a um tipo de messianismo. O homem ajudando o homem*,

VOCACIONAL MEMÓRIA:
Maria Tendlau faz referência a uma peça do autor alemão Bertolt Brecht,
optamos por reproduzir aqui um fragmento:
O CORO – Quer dizer então que eles não devem ser ajudados.
Rasgaremos o travesseiro e
Jogaremos fora a água.
(O Narrador rasga o travesseiro e joga fora a água.)
A MULTIDÃO (lê para si mesma) – Certamente vocês já observaram
A ajuda em mais de um lugar,
Sob diferentes formas. Gerada por um estado de coisas
Que ainda não conseguimos dispensar:
A violência.
Contudo, nós os aconselhamos a enfrentar
A cruel realidade
Com uma crueldade ainda maior. E,
Abandonando o estado de coisas que gera a necessidade,
Abandonem a necessidade. Portanto
Não contem com a ajuda:
Recusar a ajuda supõe a violência.
Obter ajuda também supõe a violência.
Enquanto a violência impera, a ajuda poderá ser recusada.
Quando não mais imperar a violência, a ajuda não mais será Necessária.
Por isso, em vez de reclamar ajuda, é preciso abolir a violência.
Ajuda e violência constituem um todo
E é esse todo que é preciso transformar.
(Fragmento “A recusa da ajuda”, d’A peça didática de Baden-Baden
37
sobre o acordo, de Bertolt Brecht)
o homem ensinando o homem, e assim não se coloca
em questão um pensamento para a cidade, um
entendimento da cidade, a reflexão para a assunção
de uma cidadania cultural. Mas, quando falamos de
institucionalização, tem muita coisa em jogo, tem
que pensar em como a conformação de um programa
público pode atuar nos dois sentidos, no da ação local e
no da ação de estabelecimento de políticas e estruturas
operacionais. A tensão tem que se estabelecer nos dois
sentidos e de modo coengajado.

RODOLFO VETORE (Cia Pandora):


A gente ensaiava debaixo da escadaria da
escola do CEU, porque não tínhamos
espaço. Assumimos isso nesse período.
E também ficamos sete meses sem Perus e o Programa Vocacional é que
artista orientador, que chegou só no ele sempre atraiu pessoas interessadas
segundo semestre. Ele ajudou a gente em fazer teatro. Na minha turma, havia
no final da montagem da Ilha do Diabo, 35 artistas vocacionados. Existiam
adaptação nossa do Machado de Assis. 4 turmas, juntando todas, devia haver
Nossa primeira artista orientadora já umas 100 pessoas só no bairro de
havia apresentado Brecht pra gente, o Perus, isso em 2004 e 2005. O grupo se
texto O senhor Puntila e seu criado Matti. formou em 2004 e a partir daí passamos
38
Uma coisa interessante na relação entre por vários artistas orientadores.
MARIA TENDLAU: Ainda precisamos perguntar: O que se pretende
como política cultural para a cidade de São Paulo? O Vocacional
foi o único projeto defendido para permanecer na virada da gestão,
em detrimento dos outros. Essa própria dificuldade de explicar
o que é o Programa e seus conceitos, já mostra que ele não é uma
forma protegida, “blindada”, em relação às possibilidades de leituras
equivocadas e até contrárias aos seus princípios de ação. A inexistência
de um pensamento para cidade que proteja essa forma faz com que ela
seja muito facilmente deturpada.

CELSO FRATESCHI: Talvez tenha sobrevivido pela insistência dos


artistas orientadores e dos próprios artistas vocacionados. E é um
projeto que tem um retorno político interessante para o governo.
Eu não sei como está o Vocacional hoje e espero que vocês me coloquem
a par. Mas acredito que o projeto sobrevive por uma certa eficiência
que ele tem, pela sua simplicidade e custo-benefício para o governo.
É pouco o custo do projeto e muita gente se beneficia disso.

39
mudança
MARIO SANTANA9: Foi uma ação que me agradou muito nos
primeiros tempos, até entrar nessa situação turbulenta que é a
eleição. Depois disso, eu acabei me dedicando mais à Universidade,
por pressão da UNICAMP, e me mudei de São Paulo. Porém, nesse
meio tempo, entre ser um dos coordenadores e me mudar de São
Paulo, após a mudança de gestão da Marta Suplicy (atualmente
no PMDB, na época, no PT) para o José Serra (PSDB)*, eu fui
convidado, digamos assim, a reimplantar o projeto nos CEUs,
porque logo na passagem do primeiro semestre da primeira gestão, a
Secretaria de Cultura estava numa situação financeira bastante ruim,
então, naquele momento, não tinha condições de dar continuidade
ao Vocacional nos equipamentos da Secretaria de Cultura.
de gestão
*VOCACIONAL MEMÓRIA:
Em 2005, José Serra (PSDB) assume a gestão
da Prefeitura de São Paulo, nomeia, como
Secretário Municipal de Cultura, Emanuel
Araújo, que renuncia ao cargo, após três meses,
em carta criticando a gestão anterior. Carlos
Augusto Calil assume a Secretaria Municipal
de Cultura, cargo no qual permanece até 2012.

9 VOCACIONAL MEMÓRIA: Em setembro de 2015, realizamos um encontro público no Tendal da Lapa com Mario
Santana, coordenador geral do, então, Projeto Teatro Vocacional nos anos de 2005 e 2006. Uma conversa que contou
com a presença de artistas orientadores e vocacionados. Mario entrou no Vocacional em 2003, prestando consultoria
para a ampliação e implantação do Projeto nos CEUs, foi coordenador de núcleo no ano seguinte e coordenador geral,
com a mudança de gestão na prefeitura. Atualmente é professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade
Estadual de Campinas. O encontro foi gravado em vídeo e transcrevemos aqui alguns trechos. O material completo
está disponível em: https://vocacionalmemoria.wordpress.com/2016/02/19/encontro-publico-com-MARIO-santana/
41
MARIA TENDLAU: Houve um
problema evidente, no ano de virada
da gestão, com o questionamento da MARIO SANTANA:
legalidade da Lei de Fomento e com Fui até a casa da Maria Tendlau,
que disse que ela e a equipe tinham
o fim do Programa de Formação de
uma série de senões para com a conduta
Público, que culminou, inclusive, política dessa nova gestão em relação
na saída de grande parte da equipe ao Fomento, em relação ao Vocacional,
que havia criado o Vocacional. Mas ao Formação de Público e acharam
antes já havia dificuldades. por bem não se submeterem a
um esvaziamento, a um
empobrecimento.

VOCACIONAL MEMÓRIA:
Trechos da carta produzida pela equipe do Vocacional, em março de 200510:

Nossa equipe nunca foi composta por um grupo partidário, e sua constituição
sempre foi pautada por critérios transparentes de qualidade artística e do
entendimento de princípios pedagógicos explícitos. […]
Em 2004, a equipe composta totalizava nada menos que 80 profissionais
trabalhando por toda a cidade. Desse modo, não podemos admitir uma redução
da equipe a um quarto de seus integrantes. Nossos critérios de qualidade sempre
estiveram adequados a um perfil de política pública integrada à convicção de que
todos os cidadãos têm direito (e devem exigi-lo) a ações culturais consistentes,
que permitam a construção de um pensamento crítico e estético.

10
Fonte: FABIANO, Cláudia Alves. Uso do território, descentralização e criação de redes no Teatro
Vocacional. São Paulo: USP, 2010. Dissertação (Mestrado em Pedagogia do Teatro) - Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2010.

42
MARIO SANTANA: Mas, por outro lado, eu olhava para as pessoas,
para os grupos que deixariam de ser atendidos pelo projeto. Então, eu
fui até a secretaria conversar e me disseram que o projeto estava parado,
não tinha recomeçado e só poderia recomeçar na Secretaria de Educação,
nos CEUs. Se reconhecia a importância do projeto, que a equipe anterior
tinha sido convidada a dar continuidade, mas que a equipe, por motivos
que a Secretaria respeitava, decidiu não continuar. Então foi dito que
o projeto poderia não continuar, porque se a Secretaria de Cultura não
recomeçasse o Vocacional nos CEUs, a Secretaria de Educação poderia
criar seu próprio projeto, posto que tinha verba já definida para a ação.
Portanto, se questionava, dentro da Secretaria de Cultura, o que garantiria
a permanência do Vocacional se ele não continuasse nos CEUs. E se não
continuasse nos CEUs, como se retomaria o projeto, quando a Secretaria
de Cultura começasse a se recompor financeiramente?

Os conhecimentos acumulados nestes quatro anos de Projeto não podem


ser compreendidos isoladamente. Acumulamos bens simbólicos que foram
construídos do encontro entre diversos artistas da equipe e dos participantes
das comunidades. A produção de pensamento foi gerada por uma ação coletiva.
Não podemos individualizar os conhecimentos e desconsiderar suas raízes
também nos Projetos Formação de Público e dos grupos apoiados pela Lei de
Fomento. O Projeto nunca foi pautado por uma metodologia fechada e, sim,
por uma metodologia livre, que se transforma no seu processo de existência. Não
é possível, portanto, garantir a qualidade da ação sem o compromisso de uma
política cultural consequente que entenda a questão cultural como processo de
aprendizagem, criação e circulação.
MARIO SANTANA: Liguei para a Maria, disse que
respeitava a decisão da equipe, mas que achava que
era importante dar continuidade ao projeto, que
esperava que quem estivesse lá no Fomento, da mesma
maneira, evitasse que essa nova gestão terminasse com
o Fomento, quem estivesse no Formação de Público
evitasse que esse projeto acabasse, e que era dentro
dessa lógica que eu faria de tudo para evitar que o
Vocacional parasse, porque não sabia se daqui a seis
meses ele voltaria a existir. Tenho extremo respeito
pela Maria Tendlau, pelo Celso Frateschi, são pessoas
que aprendi a admirar. O Celso, eu já admirava pela
figura pública dele, e a Maria eu conheci e aprendi a
admirar. Ela foi uma pessoa extremamente importante
para o projeto, ela pensava muito, discutia muito com
a gente, ela incitava a todos, era muito legal trabalhar
com ela. Várias vezes eu discordava, várias vezes eles
discordavam de mim, e eu acho que é assim que
funciona mesmo, não é só todo mundo em eterno
consenso que consegue fazer com que uma ação, que
é uma ação plural, aconteça. Uma ação plural é feita
mesmo de contradições, é feita de dissenso.

44
EXPEDITO ARAÚJO: Minha inserção
no projeto se deu como artista orientador
no ano de 2003 e coordenador de equipe
a partir do ano de 2005. Apesar de ter
estudado Ciências Sociais e Artes Cênicas na
academia, sei o quanto foi de fundamental
importância passar por esses dois lugares,
até assumir a coordenação geral, pois
um dos aspectos primordiais do projeto
sempre foi esta construção permanente a
partir da prática. Fui convidado pelo então
coordenador Mario Santana a assumir o
projeto. Ele teve o poder decisivo para que
este projeto tivesse continuidade de ação na
cidade de São Paulo. O mais importante era
a ação com suas bases asseguradas para que
o Vocacional fosse preservado e executado
com coerência, reforçando os seus princípios
artísticos e pedagógicos em toda a cidade
de São Paulo, tanto em equipamentos da
Secretaria Municipal de Cultura como nos
CEUs, sob administração da Secretaria
Municipal de Educação.
espaços
para o
Programa
GABRIELA FLORES (Artista Orientadora) para MARIO
SANTANA: Eu entrei no Vocacional em 2006 e, na minha
memória, lembro de você subindo para muitas conversas
no gabinete, lembro de você na SMC e em seguida íamos
todos com você para a Cooperativa Paulista de Teatro, de lá
voltávamos para a SMC e subíamos para o gabinete para falar
com o secretário, me lembro dessa movimentação intensa.

MARIO SANTANA: Quando vocês entraram em contato


comigo e me enviaram um documento com várias perguntas
que poderiam surgir, eu pensei: “puxa, precisa de memória,
e eu não tenho memória…” Mas, tentando responder, o que
eu posso dizer é que, primeiro, para aquele pessoal que estava
começando a gerir os CEUs, era uma experiência muito nova,
assim como os projetos da Cultura e os do Esporte. Essas
novas interações tinham que ser aprendidas por todos: como
realizar melhor a ação dentro de um equipamento tão inovador,
digamos assim, em relação a um modelo escolar? Como
também dar segurança para aquela comunidade, em relação às
intenções das ações que se realizariam naquele equipamento?
Então havia um diálogo constante para tentar fazer com que
o gestor e a equipe do CEU abrisse espaço para as ações do
Vocacional. E por isso eu corria muito para as reuniões dos
núcleos (o que seriam hoje as equipes no Programa) porque eu
precisava ouvir ao máximo, entender ao máximo o que estava
ocorrendo, fosse para compreender melhor o tipo de conduta da

47
equipe do CEU e buscar o gestor, conversar com ele
para tirar o artista orientador “daquele cantinho” onde
ele foi colocado com aquelas pessoas que se interessaram
por fazer teatro, fosse para discutir e maleabilizar o
artista, para ele não bater de frente com a equipe do
CEU. Por exemplo, para alguns gestores de CEUs, a
função do Projeto Vocacional era exclusivamente dar
aula de iniciação, e nós falávamos: “Veja essa é uma das
possibilidades, no entanto, veja bem, nós temos artistas
orientadores que são ARTISTAS ORIENTADORES”.

EXPEDITO ARAÚJO: Ao assumir a


Coordenação Geral do Projeto, percebia
que era necessária uma gestão voltada para
a apropriação, visibilidade e ampliação de
todas as partes envolvidas no projeto, pois
percebia uma fragilidade muito grande nessas
questões. E, somente assim, garantiríamos
um lugar institucional dentro da Secretaria.
Por outro lado, na administração Serra/
Kassab, por meio da gestão do secretário
Carlos Augusto Calil, tinha apoio total para
implementação do Projeto Teatro Vocacional,
assim como o desafio instigante, a meu
ver, de criar e executar as outras linguagens
artísticas, Dança e Música, na formação do
então Núcleo Vocacional.
48
RODOLFO VETORE (Cia Pandora):
Fomos bem teimosos em seguir fazendo.
Nós invadimos um espaço. Daí vieram duas
artistas orientadoras. Uma delas mandou uma
carta pro Expedito Araújo, coordenador geral
do Programa na época, para que ele cobrasse
o pessoal do CEU, pois era uma nova gestão
que não estava nem aí pra gente. E aí a gente
ficou esperando mais duas semanas. Chegou
a nova gestora da época dizendo que a gente
podia ensaiar na sala multiuso à vontade. Mas,
realmente, a gente precisou dessa intervenção
do artista orientador pra que a gente pudesse
ter um espaço pro grupo. A gente sempre
precisava ensaiar num horário específico porque
todo mundo trabalhava. Eu trabalhei durante
7 anos numa metalúrgica, alguns trabalhavam
nas empresas do polo industrial de Perus.

49
LETÍCIA FERREIRA
(Cia Palco pra Toda Obra): Fomos
apresentar no CEU Pêra Marmelo,
chegamos lá atrás do coordenador.
“Ah, não está aqui. Fala com fulano,
com o segurança, com sicrano…”.
500 pessoas pra você chegar em um,
que diz que a porta já estava aberta. A
gente chegou, entrou e montou. Daí
veio alguém dizer que o espetáculo
estava marcado para as 17h. Não. A
gente tinha marcado às 20h. E, no nosso artista orientador. A gente estava
dia seguinte, teria também e ele dizia se mantendo, a gente marcava uso do
que não estava agendado. Esse foi o espaço, procurava espaço pra apresentar,
ápice. A gente percebeu que não queria fazia a divulgação. Não adiantava fazer
mais aquilo. Não queríamos mais ficar parte do Vocacional. E se a gente
no Vocacional, nem nesse esquema. chegasse pro CEU Casa Blanca dizendo
A gente não quis mais Vocacional. que éramos do Vocacional, eles torciam
Esse ano, quem inscreveu a gente foi o o nariz pra gente, “Ah, é?”.
50
MARIO SANTANA: Daí a necessidade um telefonema do próprio secretário
de rever a figura do coordenador de de cultura. Havia então uma tentativa
núcleo (de equipe), de não ser um de que o artista orientador fosse o mais
coordenador passivo. Ele teria que amparado possível para que ele de fato
ser ativo, não apenas com os artistas desse vazão à sua competência, por
orientadores, mas ele teria que ser isso a correria em relação à ampliação
ativo na relação com os equipamentos nos CEUs. Era importante que o
onde esses artistas orientadores atuam. coordenador de núcleo tivesse os artistas
Isso tudo para que o artista orientador orientadores congregados nos mesmos
não ficasse abandonado, mas equipamentos, para que evoluísse a
acompanhado, sempre que necessário, relação deles com aquela biblioteca,
do seu coordenador e, quando aquele ginásio, com aquele CEU, com
necessário, da coordenação geral, e, aquelas pessoas que proporcionavam
quando necessário, do responsável a permanência do projeto e das ações
pelo Departamento de Expansão dos artistas orientadores dentro de cada
Cultural, responsável pela área de equipamento.
teatro, e, quando necessário, ainda,

EVERTON MORAIS
(Artista Vocacionado): Eu acho que o ponto da continuidade
é importante, porque a arte tem um tempo para se estabelecer,
ela não acontece em um ano, em seis meses. Um orientador
pode sair, claro, ele pode arrumar outro emprego, mas
quando isso é uma proposta do programa dele ficar um ano
é ruim, não vai dar tempo. E, na grande maioria, em 99%
dos casos, ele não fica. 51
novas
linguagens
VOCACIONAL MEMÓRIA: O Vocacional teve a sua ação
expandida no ano de 2007, com a implantação do Projeto Dança
Vocacional. No ano seguinte, 2008, foi implantado o projeto
Música Vocacional. Com a expansão, o Núcleo Vocacional torna-
se um Programa de Artes Cênicas dentro do Departamento de
Expansão Cultural (anteriormente denominado Departamento
de Teatro), abarcando três linguagens: Dança, Música e Teatro.
Entre 2005 e 2008, passaram pelo projeto um total de
263 profissionais das áreas de Dança, Teatro e Música,
entre artistas orientadores. Em 2008, a ação abarcava
78 pontos da cidade de São Paulo, de todas as regiões
do município, entre equipamentos de cultura
governamentais e não-governamentais.11

11 Fonte: FABIANO, Cláudia Alves.


Uso do território, descentralização e
criação de redes no Teatro Vocacional. São
Paulo: USP, 2010. Dissertação (Mestrado
em Pedagogia do Teatro) - Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas, Escola
de Comunicações e Artes, Universidade 53
de São Paulo, São Paulo, 2010.
EXPEDITO ARAÚJO: O grande processo
para a implantação das demais linguagens,
além do teatro, cuja primeira foi a Dança, se
deu por meio de um estudo de mais de um ano,
com a então consultora de Dança da Secretaria
Municipal de Cultura, Iracity Cardoso. Foi
necessário entendermos juntos a essência do
projeto, assim como o que o caracterizava,
em termos filosóficos e práticos. E, a partir
disto, nasceu o Dança Vocacional. As outras
linguagens se deram por uma necessidade que
a própria Secretaria se mostrou interessada, por
termos também na cidade uma carência muito
grande de um trabalho com continuidade
que integrasse pedagogia e ação cultural para
outras linguagens. Foi assim que nasceu o
Projeto Música Vocacional e o conceito para
o Artes Visuais. O projeto Aldeias* foi, no
entanto, mais segmentado, porém cumpria
todas as ações pertinentes ao conceito do
projeto na época. Em relação às mudanças
artístico-pedagógicas, talvez a única que esteve
presente, e pude perceber, foi a resistência de
parte dos artistas orientadores envolvidos para
o diálogo com as outras linguagens.

54
VOCACIONAL MEMÓRIA:
Em 2008, inicia dentro do Vocacional o Núcleo Aldeias, com atuação
nas aldeias Guarani Tenondé Porã e Krukutu. Em 2014, se desvincula do
Vocacional e passa a fazer parte do Núcleo Fomentos/Cidadania Cultural,
com o nome de Programa Aldeias. Como resultado do diálogo instaurado
com as lideranças indígenas do povo Guarani Mbya, a Secretaria Municipal
de Cultura (SMC) implantou, em 2014, o Programa Aldeias, com o objetivo
de fortalecer e promover as expressões culturais tradicionais do povo Guarani
Mbya nas aldeias (tekoa), presentes no Município, atualmente sete aldeias,
sendo quatro na zona sul, Distrito de Parelheiros e Marsilac, e três na zona
noroeste, Distrito do Jaraguá. (Fonte: http://spcultura.prefeitura.sp.gov.br/
projeto/688/).
55
FÁBIO VILLARDI12: Na Dança, vinte minutos, fazíamos isso, e,
vinham pessoas da dança Afro e da a partir dessa prática, começávamos
dança de rua, que geralmente não a conversar. Essa ação reverberava
tinham nenhum estudo acadêmico. em cada equipe. Então essa
Pessoas de faculdades de dança que foi uma pedagogia, um caminho,
não tinham a dança no corpo, mas uma estratégia. Tínhamos que
tinham no pensamento. E também suar primeiro. Depois sentávamos,
havia pessoas de companhias de pensávamos e encaminhávamos as
dança, que eram poucas. Uma questões a serem debatidas, junto
diversidade: artistas orientadores com os princípios que a gente tinha
que nunca tinham passado no praticado no dia. Um lugar da ação/
palco, que eram só professores, pensamento, do pensamento/ação.
alguns de academia de dança, como Nunca ficava uma coisa isolada
o ballet clássico, por exemplo. da outra.
Como podia se trabalhar com tudo
isso? A estratégia foi juntar essas
diferenças e cada coordenador
propor sua prática corporal. Antes
de qualquer reunião, por meia hora,

12
VOCACIONAL MEMÓRIA: Em setembro de 2014, Fábio Villardi conversou com o Vocacional
Memória. Bailarino, atuou por mais de dez anos no Ballet Stagium. Fábio atuou, entre 2008 e 2012, como
Artista Orientador, Coordenador de Equipe, Coordenador de Projeto e Coordenador Pedagógico. Citamos
aqui alguns trechos dessa entrevista, que está disponível na íntegra em: https://vocacionalmemoria.
56 wordpress.com/2014/10/28/entrevista-com-fabio-villardi/
BÁRBARA BANDEIRA
(Grupo Improvis´Art): Nós estamos
no CEU Uirapuru, no João XXIII.

ALINE BATISTA
(Grupo Improvis´Art): Começamos,
em 2011, no Vocacional Dança.
Alguns de nós faziam Vocacional
Teatro também, mas o grupo se o grupo participava de atividades
formou no final de novembro culturais, proporcionadas pela
de 2011 na dança. Fizemos um equipe Vocacional Dança fora
trabalho que falava sobre política do CEU Uirapuru. Um exemplo
e resolvemos montar o grupo foi, em 2013, quando o grupo
Improvis´Art. O que foi aprendido foi convidado para participar da
nos encontros do Vocacional Dança Mostra de Processos no CEU
foi primordial para que o grupo Campo Limpo. O espetáculo Qual
tivesse uma base para escrever a Cara do João? exige o uso de um
projetos e ser aprovado no edital surdo relativamente pesado. Saímos
do VAI, por exemplo. Em geral, do bairro Jardim João XXIII e
sempre tivemos uma boa relação fomos até o CEU Campo Limpo
pessoal com os artistas orientadores. utilizando transporte público
Sentimos algumas dificuldades de lotado. Foi uma imensa dificuldade,
transporte e alimentação quando mas o grupo sempre acreditou que
uma das características mais ricas e
potentes do Programa era a troca
artística entre os equipamentos.
57
JHOW (Família Justa Causa): Eu direito. Passou o ano de 2009, a
sempre cantei rap. Mas era dentro gente viu que estava num patamar
de outra linguagem, que tinha mais legal e decidiu fazer shows. Aí
a ver com protesto. Na época, eu entramos no Vocacional Apresenta.
pensava que gostaria de fazer uma Era muito legal esse projeto, porque
música diferenciada e que todo íamos para vários equipamentos
mundo pudesse curtir. Em 2008, aqui em São Paulo. Eu sei que
foi quando ficamos sabendo do o Vocacional e o Vocacional
Vocacional e tivemos nosso primeiro Apresenta são projetos diferentes,
artista orientador, no CEU Lajeado, mas foi no Apresenta que vimos a
em Guaianazes. Ficamos com ele dificuldade do Programa. Nós não
um ano, aprendemos algumas tínhamos nenhuma ajuda de custo e
coisas e, em 2009, tivemos outra colocávamos tudo do próprio bolso.
artista orientadora e começamos E também tinha o problema da
a desenvolver mais nosso canto, divulgação. Não havia. Não tinha
nosso comportamento e nossa fala. público. Às vezes tinha público no
Começamos a pesquisar MPB, CEU porque a gente fechava com
samba e não ficamos só no rap. o pessoal do EJA (Ensino para
Porque o rap a gente já tinha nascido Jovens e Adultos), mas quando não
escutando. A artista orientadora tinha, a gente apresentava para duas
propôs novas coisas e acabou pessoas… Lógico que o legal não é,
enriquecendo nosso trabalho. A necessariamente, a quantidade de
Família Justa Causa é formada por gente vendo, mas sim a evolução do
mim, pelo meu cunhado, meu nosso trabalho.
sobrinho… somos uma família
mesmo, em seis pessoas. Meu
sobrinho tem 10 anos hoje, mas
quando entrou com a gente no
Vocacional ele tinha 5, nem falava

58
VOCACIONAL MEMÓRIA:
“Em 2007, o Vocacional Apresenta surge como um
subprojeto ligado ao Projeto Teatro Vocacional,
atuando na perspectiva de abrir espaço na cidade
de São Paulo para que grupos de teatro, formados
ou não pelo Projeto, pudessem se apresentar,
difundir seus trabalhos e estabelecer diálogos com
plateias diversas. Através das apreciações mediadas
por artistas orientadores em cada apresentação,
prática fundamental do Vocacional Apresenta, o
objetivo sempre foi estimular o desenvolvimento
dos processos desses coletivos, como também a
formação de um olhar crítico das plateias sobre
a linguagem teatral. Seguindo esses mesmos
propósitos, de 2007 a 2008, o Vocacional
Apresenta foi sendo ampliado para mais pontos
de atuação, o que também proporcionou um
aumento do número de espectadores registrados
em suas ações. Em 2009, atuando em 6 pontos
da cidade, (...) o Vocacional Apresenta pôde
inserir em sua programação, com o mapeamento
de grupos nas linguagens de dança e música, as
três linguagens do Programa, antecipando, assim,
a característica multilinguagem.” (Texto de Teca
Spera, coordenadora do Vocacional Apresenta que
teve sua última edição em 2011. Fonte: Revista
Vocare 2011 – edição comemorativa 10 anos).

59
YVES REMONT (Artista Vocacionado): Sou músico,
toco violão e guitarra. Minha entrada no Vocacional
foi 100% caótica. No meio de 2010, eu estava com
um amigo meu e ele me disse que havia um espaço
no Centro Cultural da Juventude onde a galera se
reunia pra tocar. Lá eu conheci a artista orientadora
de música. Nossa intenção, no Vocacional, era montar
uma banda de heavy metal e destruir por aí, pelo
bairro (risos na sala). Éramos três, na época, dentro
do Vocacional: dois guitarristas e um trompetista e
chegamos à conclusão que não daria para montar uma
banda de heavy metal nessa configuração e com esse
número de pessoas.

CELSO FRATESCHI: Fico em dúvida se as propostas


do Vocacional para o teatro têm alguma coisa a ver
com as questões das artes plásticas, por exemplo. Pode
até ser que tenha a ver. Mas me parece que a própria
ideia do Vocacional era lidar com as particularidades,
lidar com o que acontece com o material que se está
trabalhando. Uma das grandes necessidades nossas era
buscar a beleza a partir do material que a gente tinha
e não criar um modelo e tentar impor este modelo
para o grupo que a gente estava trabalhando. Mas nós
nunca vamos conseguir fazer uma escultura de metal
em barro. É diferente. A técnica que se usa para o
barro é diferente da do metal. Como eu acho que é
60 para as diferentes linguagens artísticas também.
YVES REMONT (Artista Vocacionado): colocou a gente no caminho: esse é o
Nossa artista orientadora deu uma cara, é isso que ele faz, é importante
ideia de pegarmos os instrumentos, que se saiba. E ela começou a nos
irmos aos horários de orientação, ensinar harmonia sem mencionar a
começar a conversar e ver como a palavra harmonia para não corrermos o
gente se arranjaria. Então fomos, eu e risco de cair num abismo de conceitos
o Bruno com o violão, o Leandro com teóricos de música. Começamos a
o trompete, paramos na frente dela, e compor uma suíte que chamamos de
perguntamos: o que a gente faz agora? “A morte do toureador”. Nosso método
Ela perguntou: o que vocês querem era: um traz uma coisa, outro pega e faz
fazer? Um processo de composição? outra, outro faz outra, mostramos uns
A gente disse que sim. Ela pediu pra pros outros, interferimos e começamos
gente tocar alguma coisa e que na a compor juntos. E esse processo,

próxima orientação levaria material de agosto até novembro de 2010,


pra gente pesquisar um processo de foi um mapa escuro onde a gente
composição. Então começamos a fazer tinha que descobrir todos os relevos,
barulho (risos na sala). Hoje, eu acho todos os cânions, todos os milhões
que a intervenção dela foi divina, mas de abismos para poder caminhar
na época foi uma crueldade, porque na nesse mundo completamente novo.
semana seguinte ela trouxe uma parte E então conseguimos deixar a suíte
do tratado de harmonia do Schoenberg. tocável. Daí veio o sério problema
Ele foi um cara que sintetizou, num da instabilidade do Programa com a
tratado todo, o nosso possível conceito saída da orientadora. Nós seguimos
de harmonia. Era uma apostila toda nos reunindo, mesmo sem a artista
em espanhol, de um cara que a gente orientadora e demos continuidade no
nunca tinha estudado, falando de processo, com todo apoio do Centro
coisas extremamente difíceis. Mas ela Cultural da Juventude.
61
rtístico e pedagógic VOCACIONAL MEMÓRIA: Em
2010, é implantada a linguagem de
Artes Visuais. Em 2011, é lançada a
primeira edição da VOCARE, que
traz uma primeira versão do Material
Norteador como uma proposta
“artístico-pedagógica”.
RICARDO LUZ (Cia Jovens Amadores):
Fiz Vocacional Dança, Música e Teatro.
No Vocacional Música, tentamos
formar um grupo, mas não funcionou.
A orientação das três linguagens é
muito diferente. Na música, o artista
orientador queria ensinar a tocar, a
fazer arranjo. Já na dança e no teatro os
artistas orientadores ficam provocando a
gente a se encontrar como artista. Essa é
a minha visão.

YVES REMONT (Artista Vocacionado): É importante


dizer que foi depois das orientações de dois artistas
orientadores que eu resolvi fazer licenciatura em
música. Graças aos incentivos deles de sempre
pesquisar, nunca se acomodar, por exemplo, se de um
caminho surgem novas questões e mais perguntas,
significa que se está no caminho certo. Além disso, a
questão do respeito. A melhor forma de respeito que
se pode ter em relação a outra pessoa é considerar
aquilo que ela acha extremamente importante, tão
importante quanto as coisas que você acha que
são extremamente importantes. E, graças a eles, eu
tenho uma vontade imensa de ser professor. 63
GABRIEL ANDRIOLA (Artista Vocacionado):
Esse é meu terceiro ano de Vocacional no CEU Casa
Blanca. Eu entrei porque minha mãe ouviu falar. Eu,
na verdade, cheguei lá para fazer tênis, mas acabei
vendo a plaquinha do Vocacional e me interessei.
Dentro do teatro é muito acolhedor. Lá fiz amigos
que provavelmente vou levar para a vida toda. Mas
eu mesmo não quero fazer teatro. Mas estar lá me
fez pensar em outras coisas. Eu mesmo sou mais
desenhista. Mas estar com as pessoas lá dentro e o
processo que o artista orientador faz me estimula
muito a procurar mais coisas. O teatro mexe muito
com o imaginário. A imagem em si. E como quero
seguir a carreira de desenhista, pintor, dentro da arte
isso me enriquece muito mais. Dentro do teatro não é
só o Teatro. A gente discute muito. Eu já briguei com
artista orientador inúmeras vezes, ainda brigo até
hoje. E isso vai me transformando e amadurecendo.
É legal quando se está com o outro e começa a ter
ideias que não batem.

64
BRUNO DA SILVA (Grupo Descarados do Tendal): No começo,
o nosso labirinto dos conceitos parecia mais uma “favela dos
conceitos”. E no decorrer desse processo, a turma e o grupo se
misturavam muito. Acabamos influenciando a turma tanto que
esse ano (2014) elas quiseram ser um grupo. E essa é a característica
do Vocacional no Tendal, cada ano vai aparecer mais um grupo.
O Vocacional sempre foi muito importante pra gente, tanto pra
se manter no espaço do Tendal, quanto na rede de influências e
provocações que nos impulsionam a pensar mais. No final do ano
passado, nossa artista orientadora nos apresentou o VAI. Nenhum
de nós sabia disso. Mandamos o projeto e ganhamos o prêmio.

Conseguimos colocar um pouco mais de verba


na nossa favela dos conceitos. Ainda lembra uma
ocupação, não vou mentir (risos na sala). Quem
sabe ano que vem a gente bate uma laje já. Porque
no nosso grupo todo mundo atua, faz o roteiro, dá
uma de carpinteiro, monta e desmonta o labirinto,
mas sempre com ajuda da artista orientadora e dos
amigos da turma de vocacionados. O Vocacional
também nos criou uma rede de amigos, que nos
acompanha e nos ajuda.

65
CELSO FRATESCHI: Existem vários grupos que surgiram no Vocacional
e que hoje estão trabalhando por aí, montando peças e buscando uma
profissionalização. Ou, justamente, rejeitando uma profissionalização. Eu
conheço alguns de bairros que continuam, criaram seu grupo e permaneceram
vocacionais, mas não fazendo parte deste organismo todo que a prefeitura
coloca. Durante o período da tentativa de destruição do Vocacional, a gente
criou lá no Teatro Ágora as Ilhas de Desordem, um pouco parafraseando
o Heiner Müller. Era uma tentativa para criar espaços onde os grupos
pudessem trocar ideias, pensar e estruturar um pouco o seu futuro. Era uma
saída de continuidade. No meu entender, o que seria o segundo passo é os
orientadores conduzirem de alguma forma o “se virem”. Comecem a
procurar soluções independentes do Estado. Juntem-se com outros
grupos. Ou criem outros programas ou outro tipo de formação
que seja diferente daquilo que o Programa Vocacional não tem
mais condições de dar. Acho que existe pouco estímulo à
auto-organização. Poderia existir mais. Eu estou falando
disso a partir da minha época. Não estou falando de
agora, porque eu não conheço.

66
TATI ALEXANDRE (Movimento Cultural CRUK): O CRUK começou em
2009. A ideia do movimento é criar uma rede de grupos, para que eles possam se
ajudar. Desde emprestar equipamentos, até para os deslocamentos, para o trânsito
desses grupos pela cidade. O CRUK, então, faz contatos, vai ver o que os grupos
estão fazendo, pergunta quais as necessidades de cada um, para ver se é possível
contribuir de alguma forma. Também existe a vontade de ir ver o que os artistas de
outras regiões da cidade estão fazendo. Alguns grupos aparecem e somem, outros
ficam, não existe problema nisso. Existem equipamentos, por exemplo, nos
quais atuam cinco grupos, mas que não se conversam. Como estou no mesmo
equipamento e não conheço o outro? Grupos que ensaiam no mesmo local e lá
se apresentam, não se assistem. A ideia do CRUK é promover encontros em que
todos possam se assistir e se comentar.

MARIA TENDLAU: Chegamos ao ponto em que a situação da urbanidade da


cidade é tão mais importante, urgente e crucial do que qualquer questão que a
gente vá levantar sobre ação da arte na cidade. Só consigo pensar em intervenção
artística do ponto de vista de intervenção de movimento social, de intervenção
de rebelião, que não é nem revolucionária. É de rebelião mesmo. Acho que a
gente mantém nossa produção no seu limite de horizonte, bem curto. Fazemos
algo para aquele lugar, naquele momento, para algumas pessoas. Manteremos as
conquistas da esfera pública para a execução disso?
67
instituição
e burocracia
MARIA TENDLAU: Existe, na verdade, uma grande dificuldade
em qualquer institucionalização. A nossa tinha a ver com como a
Secretaria de Cultura havia sido organizada durante um tempo,
como era pensada a cada gestão e como os poderes se organizavam
dentro dela. Então, por exemplo, existia o Departamento de Casas
de Cultura, que era ligado ao gabinete. No momento em que se
cria o Departamento de Teatro, ele se organiza para atuar dentro
das bibliotecas (que eram coordenadas por dois departamentos
diferentes) e Casas de Cultura. Tudo isso já era uma grande
complicação, justamente porque entrava no quintal dos outros,
com todos os entendimentos equivocados possíveis.

EXPEDITO ARAÚJO: Na troca da administração Serra (PSDB)


para a administração Kassab (atualmente no PSD, na época no
DEM). A partir desse momento, o Núcleo Vocacional, já tendo
em sua estrutura Teatro, Música, Dança e Aldeias, passou a
integrar um novo direcionamento no DEC (Departamento de
Expansão Cultural). Em 2009, primeiro ano da administração
Kassab, o Núcleo Vocacional, assim como a EMIA e o Centro de
Memória do Circo, passaram a responder à Divisão de Formação
do DEC. Na minha concepção, o Projeto Vocacional – de todas as
experiências que tive com projetos como esse, é o maior exemplo de
ação prática de projetos que propõem o encontro e as intersecções
entre cultura e educação. Por este pensamento, sempre me mostrei
não favorável à integração do projeto a esta nova divisão, pois este
movimento reduziria o seu impacto orçamentário, assim como
o transformaria, a médio prazo, em um programa de educação
através das artes e não um projeto vivo de formação e ação 69
cultural. Sua ação, já estabelecida, assim como sua expansão e melhor
remuneração para os artistas contratados, era necessária e fundamental
para a continuidade do projeto. Em menos de dois meses, o Centro
de Memória do Circo passou a integrar o DPH (Departamento do
Patrimônio Histórico), também por incompatibilidade com esta nova
organização. Nesta Divisão de Formação, o projeto ficou à mercê de
interesses internos e políticos sem relevância. Decorrente deste tema,
se deu o meu pedido de exoneração em março de 2010, pois não
compactuava mais com esta política interna. Vale ressaltar que 2009
havia sido um ano de extrema resistência.

CELSO FRATESCHI: Eu não sei como vocês são contratados hoje. São
contratados por programa? Prestadores de serviços? A legislação pública
é muito restritiva do ponto de vista das contratações. Grande parte das
atividades pedagógicas tem essa complicação. Pela estrutura do nosso
Estado, teriam que ser criadas carreiras, o que oneraria enormemente o
governo. E as carreiras de Estado são complicadas. A gente vai buscando
soluções paliativas… Vocês são artistas, mas estão na função de
educadores. Então, a licitação não é por artista. Por artistas, eu poderia
contratar vocês por qualidades específicas. O educador, não, ele tem
que prestar um concurso. Vocês até fazem um chamamento. Mas existe
uma precariedade nessa forma de contratação. É uma discussão não
muito clara, há uma série de divergências. O governo do Estado de São
Paulo resolveu a partir das OSs (Organizações Sociais). Você contrata
uma empresa que contrata pessoas. E você contrata a empresa para fazer
aquele trabalho que o Estado quer fazer ou decidiu fazer. Vive-se uma
esquizofrenia bastante estranha. O ótimo seria uma contratação clara e
cristalina do que é e fazemos. Simplesmente o nosso Estado não permite
este tipo de contratação. Se for via fundação, depende do vínculo que
terá essa fundação com o Estado, com o município e com a Federação.
70
É muito complicado, porque essa fundação, se for de direito
público, vai seguir as mesmas regras do Estado. Não tem diferença
nenhuma. E eu não acho também que tinha que ser carreira,
porque são projetos ainda experimentais, e o fato de ser carreira
mataria esse espírito artístico e criativo que o projeto tem. Acho
que poderia se estruturar uma outra forma, mas eu não tenho uma
varinha mágica não. Na verdade, a legislação não foi pensada para
a cultura. Foi pensada para outra coisa. Então qualquer coisa que
se faça de cultura tem que se adequar ou à construção civil ou à
educação superior. Nós temos especificidades e não temos uma
legislação que contemple isso. Vocês são artistas orientadores de
grupos vocacionados na periferia de todo o município da cidade de
São Paulo. Que tem de tão errado nisso? Nada. Mas não tem uma
forma legal de contratar. Você começa a criar uma forma artificial
para contratar. Aí você vai dando nó. Primeiro porque encarece
o seu trabalho, segundo porque você vai pagar para um terceiro,
porque tem uma administração nisso. Você tem a administração
da prefeitura e mais a administração desse terceiro. A gente optou
pelo chamamento, contratação por tempo de serviço. Mas a gente
sabe que é precário. É preciso ainda que a administração pública
pense de uma forma mais carinhosa para a área de cultura, senão a
gente não consegue ir pra frente mesmo. E mais, com isso a nossa
autoestima continua abaixando. Nenhum tratamento digno do
que a gente faz. Sempre obrigados a nos vestir de outra coisa para
sermos contratados pra fazer aquela coisa que a gente faz.

71
Epílogo
MARIA TENDLAU: Agora, a questão que
vocês levantam das pessoas não conhecerem o
Programa, não saberem o significado do nome, e
tudo mais… Gente, as pessoas não sabem tanta
coisa. A situação é tão precária. E essa ansiedade
do reconhecimento, por parte da cidade, do
Programa é tão menor do que… Por exemplo:
O que as pessoas conseguem absorver e elaborar?
Como você consegue sair de um discurso simples,
básico? Como você consegue se comunicar com
alguém? Mesmo que vocês do Vocacional façam
conferências, fiquem falando 5 horas do Programa,
não existe um desejo geral de compreensão. Como
é possível criar mecanismos de trabalho que
aconteçam apesar disso? Essa seria a pergunta.

73
CELSO FRATESCHI: O importante é que o
teatro viva plenamente naquele momento em
que estão juntos. É quase uma peça aberta que
vai durar aquele tempo. E que os exercícios que
forem feitos podem se constituir numa forma
de criação, de liberdade, de fazer teatro que tem
muito a ver com o que o Brecht propunha. A
postura do teatro didático no qual o fazer é o
processo. Aquelas pessoas que vão fazer o Teatro
Vocacional, nem que seja por um dia, podem sair
enriquecidas. E é isso aí que tem que potencializar.
Se eles vão formar um grupo, melhor ainda. Mas
não é a meta. A meta pode ser simplesmente o
encontro, e que este encontro seja fundamental
para vida de todos.
74
ELVIS TORRES (Artista Vocacionado): Esse é o objetivo de eu não
querer formar um grupo, pois, no dia em que eu quiser ir embora,
eu tenho total liberdade, ninguém vai sentir, necessariamente,
a minha falta. Quando é uma turma é um pouco independente
também, assim como é na escola. Em um grupo, não, todo mundo
depende de todo mundo. Agora, em nossa turma, já não somos
tão independentes assim porque fechamos um caminhar, mas, no
começo do ano, se eu fosse embora, eles conseguiriam fazer um
trabalho, mesmo sem a minha presença.

JUDSON CABRAL (Artista Orientador): Eu diria o


contrário. Sem essa sua última fala, eu acho que ficaria a
pessoa mais triste do mundo (risos na sala). Por que uma
turma não tem essa dependência? Acho que tem sim. Eu
entendo o que você está dizendo, numa turma ter mais
independência, tudo bem, mas agora dizer que não sentirão
sua falta… Poxa, sua fala é tão importante que eu ficaria a
pessoa mais triste se você não estivesse aqui para contribuir
com seu pensamento.
75
TALITA GUIDIO (Artista Vocacionada): Até
eu ficaria. Vou sair e não vão sentir a minha
falta. E eu estou lá há quatro anos (risos na sala)!

CELSO FRATESCHI: Eu que agradeço


por estar aqui. Fico feliz que exista esse
movimento dentro do Vocacional. Significa
que o programa está vivo, apesar de todas as
dificuldades que vocês têm. Na nossa época,
nós também tivemos dificuldades. E como é
importante recuperar a relevância do teatro
como atividade humana e divulgá-lo, deixá-lo
aberto por aí. Existe a felicidade especial em
estar aqui no Tendal. Foi emocionante entrar

aqui depois de 25 anos, depois da invasão ou da


ocupação. Um prazer. Vou chorar sozinho aqui.

MARINA CORAZZA (Artista Orientadora)


Chegou o pessoal do outro evento (risos na
sala). Vamos fazer uma roda aqui fora para
finalizar? Vamos finalizar então?

LUIZ PIMENTEL (Artista Orientador) Sim?

76
77
PERGUNTAS
VOCACIONAL MEMÓRIA: Nós optamos por retirar do
texto as perguntas que por muitas vezes geraram todas essas
falas. Abaixo destacamos a maioria delas:

Quando um grupo de artistas, em determinado momento


da história, decide levar a cabo um projeto, como no caso do
Fomento, ele necessariamente necessita dessa relação com o
Estado. Esse trânsito, se voltarmos lá na história, quando o
artista necessitava também de proteção dos seus monarcas, é
sempre uma relação muito louca… Como você vê isso?

Gostaria de saber por que você acha que o Vocacional foi


o único que sobreviveu de todos os outros projetos da
Secretaria e o que um projeto como esse jamais poderia se
tornar?

Vocês tinham algum pacto em torno de quais seriam


os materiais possíveis no caminho para fomentar esse
pensamento crítico e emancipado?

Em 2004, você disse numa entrevista sobre o Vocacional que


um dos objetivos do projeto era criar tensão, assim como
a Lei de Fomento ao Teatro criava. Passados tantos anos,
mudanças políticas, novas tecnologias e um novo cenário
para a cidade, o que seria poder criar essa tensão hoje?
Isso é uma provocação para todos nós, na verdade. Seria o
Vocacional responsável por ainda criar alguma tensão?

79
Sou artista educador do PIÁ e fui vocacionado. Pensando
no fato de que você entende a máquina pública por dentro
mais do que nós, vira e mexe aparece para o Vocacional e
para o PIÁ a ideia desses programas serem geridos por uma
instituição. Por uma Fundação, uma OSCIP ou uma OS.
Queria saber quais os riscos de programas como Vocacional
e Piá serem geridos por uma organização?

Quando e como se aproximou do Vocacional? Quais


questões artísticas o moveram nessa aproximação?

Em qual contexto político assume a coordenação? Quais


eram as premissas do projeto, seus pontos fortes e frágeis,
tanto do ponto de vista da estrutura, quanto da ação do
Vocacional na época?

Quais deslocamentos o Vocacional teve no período, tanto na


troca de gestão municipal, quanto nas trocas de coordenação
geral?

Quais eram as suas atribuições como coordenador geral na


época?

Em um plano de ideias: qual a função da coordenação geral?


Qual a função do Vocacional na cidade, o que deve nortear
suas ações?

O que o motivou a implantar as demais linguagens para

80
além do teatro? Por quais mudanças artístico-pedagógicas e
estruturais o Vocacional precisou passar para a implantação
das demais linguagens?

Em sua opinião, o que não é o Vocacional? Quais papéis ele


não deve assumir no contexto das políticas culturais?

Como você definiria o que é o Programa Vocacional?

O que não era o plano?

O projeto Teatro Vocacional (tornado Programa Vocacional


nos anos subsequentes) apareceu em 2001, junto ao projeto
Formação de Público e a Ocupação dos Teatros Distritais.
Essas três ações eram pensadas como complementares e
tinham a ver com um pensamento específico da Secretaria
de Cultura na gestão de 2001, que visava o fazer teatral, sua
difusão e apreciação crítica. O que parece impossível ser
feito só pelo Vocacional? Por que só o Vocacional sobrevive
até hoje?

Para você, o Vocacional faz sentido hoje? Como imaginava


que o Programa estaria 13 anos depois do seu início?

Quais foram essas conquistas para o campo da cultura? Como


você vê a atual situação do teatro em São Paulo? Nesses mais
de 10 anos, com o aumento da produção cultural na cidade,
foi gerada toda uma estrutura do modo de produção da arte

81
e alguma acomodação de nossa parte, produtores de cultura.
Precisaríamos de uma nova ruptura, que balançasse nossas
formas de estruturação, de luta política. Você consegue
pensar alguma forma ou de onde partiria essa ação?

Nós ainda temos uma dificuldade em dar visibilidade ao


Programa dentro da cidade. Isso teria a ver com a forma com
que o Programa é pensado atualmente?

E qual seria sua proposta de ação hoje, em relação ao


Programa Vocacional, pensado como política pública para
a cidade?

Como você vê a sua contribuição com o Dança Vocacional?

Como o diálogo pensamento/ação acontecia no Vocacional?

Os vocacionados do CEU Casa Blanca querem falar também


dentro desse contexto? Eles participaram de um encontro
que teve hoje de manhã, onde falaram do processo deles de
criação que vem por 3 anos. Eles vieram para assistir hoje.
Vocês têm vontade de falar um pouco sobre esse aspecto que
estamos levantando aqui? Ou então responder uma pergunta
que, para a gente, é bem importante nesse encontro. Nós,
artistas orientadores, nos debatemos muito: O que é o
Vocacional? O que não é? Quando você ouve a fala de um
artista parece uma coisa, quando ouve de outro, parece outra
coisa. A gente queria fazer essas perguntas para vocês.

82
Mas como é essa relação para vocês? Porque você disse que se
muda o artista orientador, a pesquisa acaba mudando. Então
me parece que o artista orientador tem grande importância.
Mas como é isso quando chegam outras pessoas? Como que
isso se arranja?

Mas existe algum momento em que você sente que é bom


mudar a orientação? Algum momento em que você sente que
houve uma saturação, em que foi pesquisado tudo o que se
podia nesse caminho e que se quer mudar de orientação. Isso
já aconteceu ou a sensação é sempre de se querer continuar
com o orientador?

83
vozes em
VOCACIONAL MEMÓRIA: Planejávamos publicar
essa Revista no início de 2016, de modo a iniciar o ano
propondo esses materiais para uma discussão. Como isso
não foi possível, optamos, na época, por criar uma ação
para pôr em prática alguns fragmentos do texto, ouvir
seus ecos e abrir espaços para os artistas orientadores
interferirem nesse material. Propusemos uma leitura com
muitas cópias do texto espalhadas na plateia.

movimento Para encerrar a Publicação, reproduzimos aqui as interferências,


de acordo com os momentos que foram realizadas:

85
Abertura
1. MÔNICA RODRIGUES (Artista Orientadora):

Seria a opressão tão antiga quanto o musgo dos lagos?


Não se pode evitar o musgo dos lagos.
Seria tudo o que vejo natural, e estaria eu doente, ao desejar
remover o irremovível?
Li canções dos egípcios, dos homens que construíram as
pirâmides.
Queixavam-se do seu fardo e perguntavam quando
terminaria a opressão.
Isto há quatro mil anos.
A opressão é talvez como o musgo, inevitável.

Se uma criança surge diante de um carro, puxam-na para a


calçada. Não
o homem bom, a quem erguem monumentos, faz isso.
Qualquer um retira a criança da frente do carro.
Mas aqui muitos estão sob o carro, e muitos passam e nada
fazem.
Seria por que são tantos os que sofrem? Não se deve mais
ajudá-los, por serem tantos? Ajudam-nos menos.
Também os bons passam, e continuam sendo tão bons
como eram antes de passarem.

86
Quanto mais numerosos os que sofrem, mais naturais
parecem seus sofrimentos, portanto. Quem deseja impedir
que se molhem os peixes do mar?
E os sofredores mesmos partilham dessa dureza contra si e
deixam que lhes falte bondade entre si.
É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o
existente, não só com as dores alheias, mas também com as
suas próprias.
Todos os que meditaram sobre o mau estado das coisas
recusam-se a apelar à compaixão de uns por outros. Mas a
compaixão dos oprimidos pelos oprimidos é indispensável.
Ela é a esperança do mundo.
Musgo nos lábios Seria tudo o que eu vejo natural?*

Brecht, Brecht, Brecht, Bertolt Brecht, Brecht, Brecht…

*VOCACIONAL MEMÓRIA: Texto A Esperança do Mundo, de


Bertolt Brecht.

87
Início

JULIANA MADO (Artista Orientadora):

São Paulo, 26 de outubro de 2015.


Oi Magali,
Espero que você leia esta carta que escrevo para você, não sei
se você lembra de mim, eu me lembro de você. Vou contar um
pouquinho de nós.
Eu tinha 8 anos e você também. Eu morava na chácara em frente
à Escola Monteiro Lobato, em Sorocaba. Ao lado tinha um
Orfanato. Eu e você estudávamos na Monteiro Lobato ... pense
em uma dupla terrível e unida! Era eu e a Magali. Nós fazíamos
tudo juntas, eu pegava os lanches das crianças e ela ajudava a
comer, puxava os cabelos compridos das meninas, jogava sapo de
plástico no banheiro e fechava a porta. Castigo era pouco para nós!
Você morava longe e voltava sempre a pé, só que um dia, na
hora da saída, nós resolvemos pegar carona, sem que o motorista
soubesse. O caminhão levava lixo da cidade e jogava perto da sua
casa, onde chamavam de Lixão. E assim nós íamos escondidas
atrás, penduradas até o Lixão e ninguém nunca pegou.

Magali, hoje tenho 55 anos, estou casada e tenho três filhas lindas.
Moro em São Paulo. Ah! Sou avó de uma menina linda, a Júlia, de
4 anos. Sou feliz, me lembro sempre de você e gostaria de te rever.

Beijos,
Cleuza.*

*VOCACIONAL MEMÓRIA: Texto produzido pela artista vocacionada Cleuza


Floride, presente na publicação Colcha de Memórias, organizada pela artista
orientadora Juliana Mado, em 2015, na Biblioteca Castro Alves.

88
Deslocamentos

THAIS DI MARCO (Artista Orientadora): Inestimável? É…


Na verdade eu estou aqui porque eu sou a própria secretária da
cultura. Na verdade no futuro do pretérito. Na verdade… Deu
para entender? (Microfone para de funcionar). Acho que cortaram,
alguém cortou? Vão cortar meu microfone, mas eu vou continuar
falando. Porque acho muito bonito quando vocês fazem alguma
coisa. Os artistas, né? Os artistas fazem as coisas e eu acho isso
muito potente. Eu acho bem colaborativo, porque vocês fazem
e eu posso falar à vontade também. E a gente vai se dividindo
desta maneira. Eu tinha uma coisa para ler, mas eu esqueci. Mas
na verdade eu tenho ela. Eu tenho uma coisa muito legal que
eu tenho certeza que vocês vão adorar. Eu também tenho umas
memórias, assim, e aí de repente eu posso compartilhar? Será? É
uma música. Eu não fiz nada lá no Vocacional no ano passado,
na verdade. Eu acabei viajando, fiz umas articulações, mas é tudo
coisa pouca. Mas eu aprendi uma música, posso cantar?

Ando llorando pa´ dentro,


Aunque me ría pa´ fuera.
Así tengo yo que vivir
Esperando a que me muera.
Le doy ventaja a los vientos
Porque no puedo volar,
Hasta que agarro mi caja
Y la empiezo a vagualear.*

Eu também não falo espanhol. Bom, é breve, né? Eu sei. Mas


chega, eu acho. Obrigado.

*VOCACIONAL MEMÓRIA: Canção Doña Ubenza, de Chacho Echenique.


89
DANIEL MINCHONI (Artista Orientador):

quem fala que sou esquisito hermético


é porque não dou sopa estou sempre elétrico
nada que se aproxima nada me é estranho
fulano sicrano beltrano
seja pedra seja planta seja bicho seja humano
quando quero saber o que ocorre à minha volta
ligo a tomada abro a janela escancaro a porta
experimento invento tudo nunca jamais me iludo
quero crer no que vem por aí beco escuro
me iludo passado presente futuro
urro arre i urro
viro balanço reviro na palma da mão o dado
futuro presente passado
tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo
é fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão
e na sequência de diferentes naipes
quem fala de mim tem paixão
e na sequência de diferentes naipes
quem fala de mim tem razão

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experimentar o experimental.
a fala da favela.
o nódulo decisivo nunca deixou de ser o ânimo de
plasmar uma linguagem convite para uma viagem.
e agora? quer dizer, e o que que eu sou?
meu nome é walli salomão, um nome árabe,
walli dias salomão.
nasci numa pequena cidade na caatinga baiana,
do sertão baiano.
a memória é uma ilha de edição.
filho de pai árabe e uma sertaneja baiana.
a memória é uma ilha de edição.
nasci sob um teto sossegado.
meu sonho era um pequenino sonho meu.
na ciência dos cuidados fui treinado.
agora entre o meu ser e o ser alheio a linha de
fronteiras se rompeu.
câmara de ecos.
eu tenho o pé no chão porque sou de virgem,
mas a cabeça
gosto que “avoe”.

a memória é uma ilha de edição.


a memória é uma ilha de edição.
a memória é uma ilha de edição.

*VOCACIONAL MEMÓRIA: Texto Olho de Lince, Câmara de Ecos,


Experimentar o Experimental, de Waly Salomão.
91
HÉRCULES MORAIS (Artista Orientador):
Um minuto que eu queria falar com o Celso Frateschi.
Queria aproveitar seu microfone, Celso, e agradecer ao
Celso pela presença ilustre e também a Maria Tendlau.
Em 2001 e 2002, eu fui artista vocacionado e naquele
momento eu não sabia quem eram essas pessoas. E eu
saía do Itaim Paulista e ia até a Aclimação, e, naquele
momento, pelo que eu sei, só 7 equipamentos que tinham
o Programa Vocacional. Meu pai, um zelador, um homem
humilde, me levava até o equipamento que eu fazia teatro
e isso certamente me auxiliou a organizar um certo futuro
para a minha vida, que de alguma forma hoje eu entendo
como justo e adequado. Então respondendo à pergunta do
ilustre companheiro Celso Frateschi, eu vou ler um pouco
e atualizá-lo do que está acontecendo no Vocacional. Hoje
já lendo alguns textos que orientadores vocacionados,
como eu costumo brincar, escreveram ao longo das minhas
orientações lá no Capão Redondo. É do Romário Lopes:

92
Profundos cortes na parte interna da coxa, feitos,
provavelmente, com lâminas de barbear. Um exame de
sangue mostrou uma quantidade excessiva de ódio em suas
artérias e muito amor represado. Pode-se notar, também, um
coração pequeno e rígido, que não é usado para mais nada
além de bombear o sangue. O corpo tem matéria muito
frágil, sob músculos atrofiados, que parecem nunca terem
recebido o toque de outra pessoa. Assim, concluímos que a
causa mortis foi insuficiência de afetos.

Ele tem 16 anos. Homem, 16 anos, pele negra, cabelos


raspados, fígado completamente deteriorado. Alcoolismo. Alto
teor de humilhação no sangue. Coração inchado de tanta
dor. Narinas corroídas por cocaína, cicatrizes nas costas, e
ofensas proferidas pelos seus pais. Causa da morte: overdose
de amor por um rapaz.
Mudança de Gestão

CACO MATOS (Artista Orientador):

Palavra oprimida
Sacode, fecha, trava
Vou gritar, meu corpo endureceu
Só consigo usar a minha voz
Ecos só restou
Décadas de voz faladas
Faladas em corpo travado
Ó chão, me segure onde,
Meu corpo amarrado, travado
Sons suave, não me move
Sons fortes, não amolecem
Sons, sons
Me solte desta trava
Meu corpo quer destravar
Só voz, palavra
Voz, palavras que soa
Ó, chão, pode me ajudar?
Ajude-me
Ajude-me a destravar

Palavra oprimida
MBoy

94
Um contexto para o Vocacional

PAULO GIRCYS (Artista Orientador): Uma memória do


Vocacional de 2015. Ano passado, eu orientava no CEU Quinta
do Sol. Eu orientava todo domingo, às manhãs. E sempre
que eu chegava no CEU, lá pelas 10 da manhã, o CEU estava
lotado e tinha gente até indo embora, que tinha chegado às 07
da manhã para jogar bola, para usar a piscina. E numa manhã
como qualquer outra, num domingo muito, muito quente,
como essa semana, eu estava chegando no CEU, e eu sempre
entro no CEU, eu venho pela rua de trás do CEU. E eu vi uns
meninos pulando umas grades do CEU, uma meia dúzia de
meninos. Tranquilo. Não era a primeira vez que eu tinha visto
eles fazerem isto. Quando eu cheguei no CEU, eu vi que a piscina
estava claramente lotada, 200, 300 pessoas. E tudo bem também,
normal, como qualquer manhã quente no CEU. Aí entrei no
teatro para a minha orientação. Uma menina chegou e mostrou
para mim um vídeo. E, no vídeo, tinha as mesmas pessoas na
piscina, tomando seu banho, felizes, brincando e tudo mais. E eu
falei: eu vi essas pessoas lá. E ela falou para mim: hoje a piscina
está fechada. E eu respondi: como assim? Ela me disse: hoje não
tem salva-vidas e por isso não abriram a piscina. Ou seja, 200, 300
pessoas pularam os muros e as grades para usar a piscina. Meia
hora depois, o segurança terceirizado chamou a polícia sucateada
que entrou com um carro que nunca havia entrado no CEU e
pediu delicadamente que 200/300 pessoas que estavam tomando
seu banho saíssem pela porta da frente, descalças. De quem é o
espaço público? De quem é o desejo público?

95
Espaços para o Programa

MARCIO CASTRO (Artista Orientador): Eu tenho uma memória


que eu gostaria de compartilhar com vocês. Em 2011, foi o ano que
eu entrei no Programa Vocacional e eu trabalhei no CEU Campo
Limpo. E lá no CEU Campo Limpo a gente tinha uma dificuldade
muito grande com a coordenadora da época. E ela me disse uma vez
que eles às vezes inventavam umas ocorrências para conseguir fazer
algumas coisas no equipamento, sem ter que ficar esperando aquela
verba de 2.000,00 reais por mês, eles não iam conseguir fazer nada.
Aí, então, tinha um grupo lá que se chamava Dionísios, que era
um grupo muito legal, que já estava lá há alguns anos, e eu orientei
esse grupo. Aí o que aconteceu é que eu achava importante que
aquela galera se apresentasse num trabalho final, mas não só uma
vez, mas algumas vezes. Então a gente conseguiu, a muito custo,
marcar quatro apresentações aos domingos. No último domingo,
durante a semana, eles me ligaram dizendo que a coordenadora
do CEU estava dizendo que naquele espaço onde eles ensaiavam
e se apresentavam tinham detonado o chão, tinham quebrado o
chão da sala multiuso. Naquele fim de semana, elas não estavam
lá, nenhuma das coordenadoras, e por isso, neste domingo, os
meninos tiveram que apresentar lá fora. A gente conversou e eles
quiseram apresentar lá fora. Durante a semana, já tinha terminado
o programa, eu fui lá, fiz uma reunião com ela (coordenadora)
e com a Dani Schitini, que era minha coordenadora na época, e
também com um dos meninos deste grupo. No fim das contas,
o que acabou acontecendo, foi que a coordenadora ficou muito
bem, conseguiu reformar o chão, às custas de uma reclamação por
um chão que já estava muito riscado. Este é um dos equipamentos
públicos. Este é um dos lugares que a gente trabalha.
96
ANA CHIESA (Artista Orientadora): Então, eu me lembrei. Você
falou da piscina, então, eu não lembro direito qual foi o ano, eu
tenho a memória um pouco falha, mas foi em um ano anterior a eu
retornar para o Vocacional em 2015. Foi a abertura do CEU Capão
Redondo. Lá, ao contrário, durante todo o ano, a piscina nunca
foi aberta. Não tinha bomba para aquecê-la. As crianças ficavam
do lado de fora. O gestor foi muito difícil. Eu quase não consegui
convencê-lo do Vocacional, ao final ele tinha aceitado o Vocacional.
Ele não queria abrir a porta. Na entrada, passavam comigo os
meninos que tivessem se inscrito. E aí, na primeira chuva que teve,
bem no início do projeto, o CEU inteiro inundou. Inteiro. Ele não
estava aberto ainda. Inteiro inundado. Ah, é um CEU da gestão
Serra. Foi um ano muito difícil, alguns devem se lembrar. Também
tínhamos tantos, tantos relatórios, que não dava tempo para fazer
outra coisa. Foi um ano que a equipe inteira resolveu dizer isso.
Muitos não passaram na seleção, e muitos nem se inscreveram
porque a esperança que algo desse certo era muito difícil.
PETÍCIA CARVALHO (Artista Orientadora):

Manual de Sobrevivência a um Vocacional Líquido:


1. Seja Líquido.
2. Seja Líquido.
3. Seja Líquido.
4. Responda Óleo.
5. Seja Líquido.
6. Seja Líquido.
7. Ganhe um gelo.
8. Seja Líquido.
9. Seja Líquido.
10. Seja Líquido.
11. Espirre.
12. Seja Líquido.
13. Oriente Líquido.
14. Oriente Líquido.
15. Ouça seu próprio borbulhar.
16. Oriente Líquido.
17. Engula Sal.
18. Fique com cara de açúcar.
19. Seja Líquido.
20. Processe o Líquido.
21. Processe o Líquido.
22. Processe o Líquido.
23. Crie tijolo.
24. Oriente Líquido.
25. Seja Líquido.
26. Seja Líquido.
27. Veja o Líquido no espelho.
28. Seja Líquido.
29. Líquido Emancipado.
30. Liquide-se.
99
FRANK TAVANTI (Artista
Orientador): (Faz gestos de alguém
que está falando e movimentando as
mãos em excesso, mas só movimenta
a boca, se mexe sem sair som.)

100
Pausa. Silêncio. Respira.

101
Novas linguagens

MARCIO DANTAS (Artista Orientador): (Coloca


o microfone nas costas e começa a fazer flexões de braço.)

DANIELA DINI (Artista Orientadora):


(Utilizando o microfone nas costas do Márcio): Vai,
Márcio! Só mais uma! Resiste! Resiste, mais uma!
Mais uma! Mais uma. Resiste. Agora mais dez.
Faltam dez dias para acabar o programa. Mais dez.
Já volto, viu. (Daniela Dini sai, Márcio Dantas
continua a fazer flexões, até cair no chão de vez).

102
DIANE BODA (Artista Orientadora): Eu já vi casos de abuso dentro
do Vocacional, e eu fiquei sozinha. Eu já fui convidada a ser retirada
do Programa por estar grávida, e eu fiquei sozinha. Eu já estive em
grupo de mulheres que não podiam participar do Programa porque
já tinha sofrido violência doméstica, porque tinham liquidado os
irmãos e os filhos, e eu fiquei sozinha. Eu já sofri assédio dentro do
Programa por outro artista orientador, e eu fiquei sozinha. Eu já
fiquei calada nas assembleias, e eu fiquei sozinha. Já escutei xiii! Já
ouvi que minha pauta não tem importância. Mas hoje de manhã
eu cheguei aqui, depois de um domingo difícil, e outras mulheres
e outras pautas. E a gente tá aí, e a gente vai levantar e o Programa
vai ter que ver.*
* VOCACIONAL MEMÓRIA: Na segunda, a qual ela se refere, foi realizado o primeiro
encontro do Grupo de Trabalho Vocacional Mulheres, grupo organizado em 2016.

103
LIGIA HELENA (Artista Orientadora): Ano passado…, eu sou
artista orientadora do Rosa da China, de Teatro. Ano passado,
por conta das visões bastante misóginas e machistas de um dos
vocacionados, as meninas decidiram fazer um trabalho chamado
Geni. Repercussões todas do trabalho, esse ano, eu reencontrei as
meninas, todas elas arranjaram briga na escola, por conta de defesa
de questão de gênero. Lindinhas. Uma delas relatou o seguinte. Ela
recebeu da escola uma atividade em que ela tinha um quadrinho.
E o quadrinho narrava uma história de uma mulher que tinha hoje
decidido que não ia fazer nada. Não ia lavar roupa, não ia cuidar
das crianças. Hoje ela decidiu que não ia fazer nada. Ela tinha que
finalizar o quadrinho. Ela tinha que finalizar a história. E ela usou
um texto da nossa peça – Grita alto, mulher. Que o mundo geme
ou treme. Não tenha medo, mulher, de ser profana. Não se iluda
com joia, carro ou casa ou grana – ela escreveu isso e foi chamada
na diretoria. Na diretoria, disseram: Por que ela tinha usado esses
termos? Que absurdo, uma moça escrevendo assim! E respondeu:
Eu sou feminista! E aí, um dos homens que estava na sala, olhou
pra ela e disse assim: Mas não, feminista não é profana. E ela olhou
pra ele e disse: E você sabe o que é feminismo?
TALITA CASELATO
(Artista Orientadora):
Eu tô assustada com o
Celso Frateschi.

105
Instituição e burocracia

CARLOS ANDRÉ (Artista Orientador): Um dos vocacionados


tem uma mãe muito louca. Ela vive parte na rua, parte em casa.
Mas ele veio para o encontro e faz poesia com a gente, porque lá
ele não está sozinho. A Sueli é uma senhora de 60 anos, escreve há
35 e nunca tinha mostrado nada para ninguém, e é extremamente
brilhante. Não arredou o pé e continuou vindo nos encontros.
Porque nesses encontros ela não está sozinha. A Priscila toma tanto
remédio que ela vem para o encontro como um robô que não
consegue andar. Mas ela senta no nosso encontro, ela faz poesia, e
faz muito bem, porque no encontro ela não está sozinha.

106
Epílogo

MÁRCIO DANTAS (Artista Orientador):

A vida brota entre blocos e concreto.


É das frestas e fissuras que a vida teima em brotar.
É das frestas, das fissuras, e das rachaduras
que teimam em rasgar a dura massa.
Como a palavra rasga o silêncio, há vida.
E há blocos de vidas concretos.
A vida teima em brotar e resiste ao aço.
E, a cada passo, traça novos caminhos no cortejo.
Um corte no espaço.
Há blocos concretos de vida.
Há blocos concretos de vida.
Resistamos.

107

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