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DESFECHO - ENCERRAMENTO DE UM PROCESSO*

JOÃO AUGUSTO POMPÉIA

resu m o

O texto destaca os sentidos da palavra desfecho com o algo que fi­


nalizou, que foi com preendido e a partir do que novos com eços são pos­
s íveis. Pensar esta palavra com tudo que ela abarca esbarra num a idéia
predom inante em nossa cultura: o valor preponderante da eficiência a
q ual é m edida pelos resultados e pela rapidez e é fruto principalm ente de
um a análise racional das situações. E sta idéia abrange tam bém o que diz
respeito à vida, que deveria ser “adm inistrada” segundo tais critérios.
Isto entretanto deve ser repensado. Para tanto, dois pontos princi­
pais são propostos para reflexão:

1. As coisas da vida precisam de tempo. Aqui não vale a pressa.


Nem m esm o para sair do sofrimento.

2. A clareza da razão não tem a hegem onia absoluta nas questões da


existência. Estas têm necessidade de um a com preensão que as abarque
num outro plano. O sentido nem sem pre surge de um ilum inado enfoque
racional, mas ao contrário, vem chegando a partir da obscuridade.

A bstract - Outcome

This text am plifies the understanding o f hum an existence, specially


o f experiences o f finalizing som ething, o f ending, or experiences which
require a solution, i.e. situations o f conclusion. Such situations also occur
in the process o f therapy.
The word conclusion is seen in its various m eanings: som ething
that is clarifies, som ething that finalizes and in finalizing may originate

* Palestra proferida na Faculdade de Psicologia da U niversidade C atólica de Santos, 1990.


Este texto foi editado por M aria de Jesus Tatit Sapienza, a partir de gravação original.

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new beginnings. In the conclusion the m eaning o f lived experience is
com prehended. However, this com prehension does not happen in haste,
nor does it com e from m ere rational understanding alone.
PALAVRAS-CHAVE: E xistência H um ana, Psicoterapia, M aturidade,
C om preensão, Heidegger.

D esfecho é um a p alavra curiosa que aparece com sig n ificad o s


diversos.
O prim eiro significado é o de final. Mas não um final com o qual­
quer outro. Este vem acom panhado de um a certa força e vigor. É um a
espécie de final m arcante, apoteótico.
Assim , ele pode ser o final de um texto literário, de um conto poli­
cial ou de m istério em que acom panham os o autor na apresentação de
questões até que elas se tornem esclarecidas. Este m om ento, além de
final, é hora de esclarecim ento e de com preensão onde aparece o signifi­
cado dos episódios relatados. É com o se encontrássem os um certo alívio
para um a tensão que vinha crescendo ao longo da história. Q uanto mais
estiverm os envolvidos e curiosos procurando saber quem é o assassino
ou de onde vem aquela “potência m isteriosa” que engendrou o clim a que
percorreu o enredo, mais intensam ente curtirem os o desfecho.
Desfecho é então o final, m as está tam bém profundam ente ligado à
totalidade da história.
O m esm o acontece com nossos problem as. Quanto m ais são obscu­
ros e quanto m aior nosso envolvim ento, m ais curtim os o desfecho. Te­
m os de ser capazes de penetrar nas questões que o problem a apresenta
para que o desfecho venha e com plete. E com o se o desfecho tivesse de
preencher algum a coisa que antes precisasse ser cavoucada. Q uanto m ai­
or for o buraco, m ais am plo pode ser o desfecho em seu sentido, a sur­
presa será m aior e a com preensão dos detalhes m ais prazerosa. Quanto
mais m ergulharm os em nossos problem as, no m om ento em que encon­
trarm os o desfecho, de fato, ali term inará um ciclo.
O segundo sentido que encontram os para a palavra desfecho é tam ­
bém curioso. Ele é “m om ento de ação”, em que realizam os ou desfecha-

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m os o golpe. Aqui, desfechar tem o sentido de realizar. Não se trata de
contem plação. No m om ento em que algo se encerra, se esclarece, se des­
fecha, algum a coisa solicita um agir imediato, concreto. Algo que está
preparado para acontecer acontece, torna-se real, desdobrando-se num a
ação concreta.

Falam os até agora de desfecho com o final, encerram ento, realiza­


ção de algo que vinha sendo preparado, ou seja, de certa forma, trata-se
de um fecham ento.
Mas há um terceiro sentido para esta palavra e aqui o curioso está na
pergunta “Por que chamar o fechamento de des-fecham ento?” É que des­
fecho, ao m esm o tem po que encerra, fecha, tam bém abre alguma coisa.
Todo desfecho é tam bém necessariam ente abertura. Q uando ele
ocorre há a realização de um a ação e nesse m om ento com eça tudo de
novo ou outra vez.
C om eçar de novo não é o m esm o que com eçar outra vez. C om eçar
outra vez é repetição. C om eçar de novo tem o caráter de novidade, ou
seja, um a nova coisa vem se colocar quando o desfecho preenche a situ­
ação prim eira.

Falando em desfecho nessa perspectiva, isto nos rem ete aos antigos
ritos de passagem na história da hum anidade. Todo desfecho concretiza e
efetiva um a passagem .

Há m uito a ser pensado sobre a força que tinham os rituais nas cul­
turas antigas e sobre o quanto nossa cultura é desprovida desses instru­
mentos. V ivem os, segundo M ircea Eliade, “num a cultura a-religiosa, a-
m itológica” .
Havia os ritos de passagem e entre eles destacava-se o da passagem
da puberdade. M ircea Eliade em “O Sagrado e o Profano” diz: “O rito de
passagem por excelência, o m ais uniform e, presente em todas as culturas
é o rito de passagem da puberdade”. E acrescenta: “Todo rito de passa­
gem é um rito que congrega três elem entos fundam entais: morte, nasci­
m ento, e sexualidade” .
Este autor m ostra que em tais rituais há sim ilaridade com os rituais
de nascim ento. Em algum as tribos Bantus, quando os m eninos estão em

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torno dos doze anos e quando as m eninas têm a prim eira m enstruação,
são levados pelo pai para um lugar especial onde passam três dias envol­
vidos no peritônio retirado de um carneiro. Eliade com enta a respeito:
“tam bém os m ortos, nessas tribos, são envolvidos em tripas, num a espé­
cie de reprodução do processo de nascim ento em que a criança vem en­
volvida do útero e ao nascer se liberta e deixa algum a coisa para trás” .
No ritual, o deixar para trás e com eçar de novo é extraordinariamente
potente... Isto aparece nos processos de cura. A cura que os feiticeiros rea­
lizam nas tribos primitivas é sempre um recurso para a criação do mundo
de novo. Eles recriam o m undo e a pessoa, com o se o doente ficasse para
trás, isto é, morresse para que uma nova pessoa pudesse nascer. Eliade
aponta que isto perm anece nos rituais judaicos-cristãos. Assim, no batismo,
estão presentes m orte e ressurreição, fechamento e abertura.
N ossa cultura distanciou-se dos rituais que de algum a form a m os­
travam com o as coisas são com plexas e precisam de um tempo para acon­
tecer plenam ente.
Os rituais indicavam para o iniciante as ambigüidades, mostravam que
havia algo de morte e também algo de nascimento na passagem, por isso era
preciso passar devagar. Se houvesse pressa, provavelmente haveria confusão
e o necessário para a nova vida não estaria aprendido e disponível.

N o ssa cultura é cheia de pressa e com isso vivem os algum as


distorções. Pensemos no exem plo da pessoa excessivam ente curiosa e
apressada que no prim eiro capítulo de um livro de suspense não resiste à
tentação de dar um a “olhadinha” na últim a página. Desde o com eço da
história ela fica sabendo quem é o assassino e com o é o m istério. N esta
pressa, o livro perde a graça que estava em esperar pelo desfecho no final
e a leitura torna-se mais difícil.
A prim eira tentação e o prim eiro perigo estão na pressa. Em geral
acham os que eficiente é o apressado. A idéia de eficiência está direta­
m ente relacionada a tem po: m ais eficiente é a m aior produção na m enor
unidade de tempo.
A ligação de pressa e eficiência é um viés que na situação específi­
ca da psicoterapia - que é o horizonte a partir do qual estam os falando -
é extrem am ente sedutora e perigosa.

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Na profissão de psicólogo, provavelmente todos nós vivemos a expe-
riência da pressa em nossos prim eiros atendimentos. O cliente chega, co­
meça a falar, a form ular um problem a e o terapeuta já está afobado procurando
o que vai dizer para ele. U m de seus ouvidos escuta o cliente e o
outro escuta o diálogo interno de sua procura: “M as onde vou encaixar isto
que eleestá dizendo? Será que este é m esm o o problem a?” . Vai levantando
hipóteses, fazendo mil operações apressadas, e de repente pode vir a desagrad
ável surpresa de no finalzinho do relato ouvir do cliente: “Mas o meu
problema não é esse”.Ele só tinha contado um a história para dizer: “Mas
não é por isso que eu procurei a terapia!”. E tudo recomeça.

Diante da pressa tão com um , podem os fazer algum as considera


ções sobre a dinâm ica da passagem .
Passagem vem de passar. Podem os pensar num a ponte ou num a
porta, um a ligação entre duas coisas. A ponte m arca o térm ino de um a
margem do rio e dá acesso a outra margem. A porta fecha um am biente e
dá acesso a outro.

A pressa distorce essa passagem .

Freqüentem ente, quando com eçam os a ouvir sobre um a situação


ansiosa, sofrida, querem os rapidam ente acabar com o problem a, obter
uma resposta, e agim os sem im aginar que isso possa ser ruim e que algu
ma coisa possa ficar faltando na pressa de alcançar um desfecho.

Diante do sofrim ento é com um pessoas bem intencionadas dize­


rem: “Calma, isso passa!” . Outros dizem: “Calma! N ão há bem que sem
pre dure nem m al que nunca se acabe!” . É claro que o sofrim ento vai
passar. Tudo passa. M as passar tam bém pode ser um a coisa assustadora,
pois aponta para a precariedade, diz que nada veio para ficar. A dim en­
são de m orte contida na perspectiva de que tudo passa assusta. Olhando
para esse aspecto da passagem , de que nada dura o tem po todo, estam os
lidando com um a am eaça concreta.
Existe um m om ento de tristeza no térm ino de um processo. Algo
pertence ao passado, foi em bora, distanciou-se de nós. E nós, im pedidos
de parar, tem os de ir deixando para trás. M as tam bém há satisfação nesse
“deixar para trás” , pois quando não deixam os para trás é porque algum a
coisa “deu errado” . Q uando param os lá atrás, nos sentim os “pesados” .

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Nesse “tudo passa”, há ainda outro aspecto da passagem que às
vezes fica esquecido. Q uando dizem os que tudo passa, de certa form a
estam os dizendo que tudo se torna nada mais, tudo se nadifica. Assim,
tudo que hoje está sendo objeto de sofrim ento, daqui a algum tem po será
nada. M as isso não é necessariam ente verdade, felizmente.

Quando na pressa de acabar com o problem a apelam os para o “isso


passa”, “isso não é nada”, nós não avaliamos o quanto de transtornos tal
afirm ação pode trazer para quem ouve.
Exem plifiquem os isto com a história de quem está vivendo um pri­
meiro grande amor. Este alguém tem doze anos. A paixona-se tão perdi­
dam ente que, de fato, fica perdido. Não consegue se achar. A paixonado e
perdido, ele não consegue fazer nada. Pensa: “Hoje falo com ela!” . M as
chegando perto da m enina não consegue respirar nem abrir a boca. Pre­
para coisas para dizer, m as tudo some. É a situação de quem está perdi­
dam ente apaixonado.
Perdido e apaixonado juntam -se fortem ente. E assim, com o passar
do tem po, ela se cansa dessa história. Ela só vê seu estar perdido, não vê
o estar apaixonado e com eça a se interessar por outro. A partir daí, ele
com eça a “curtir” sua situação de apaixonado abandonado. Interessante
é que em seguida ele passa do estado de perdido para o de achado. Ins­
tantaneam ente ao ser abandonado, o apaixonado se acha abandonado.
Ele sabe m uito bem onde está e quem é abandonado.
N osso m enino agora na condição de achado no abandono, vai con­
versar com alguém m ais velho, mais experiente, em quem confia. E o
que ele ouve é o seguinte: “N ão esquenta! Você só tem doze anos, tem a
vida inteira pela frente e ainda vai se apaixonar m uitas vezes. Isto não é
nada! Isto que Você está vivendo passa porque não é nada!”.
A ssim , pela prim eira vez o m enino ouve que tudo passa, que tudo
que ele sente é nada. Ele “cai das nuvens”, pois m esm o abandonado, é
próprio do apaixonado “estar nas nuvens” . Q uando se cai “das nuvens”,
o tom bo é grande.
A sensação em seguida é de que a paixão não é confiável, pois ela
passa, se desm ancha e daqui a dois ou três anos ele vai olhar para a m e­
nina e se perguntar: “M as o que eu vi nela para m e apaixonar tanto?”

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S u rge o caráter do engano. O " tudo passa" m ostra a precariedade e o
engan o so .
Podemos im aginar o m enino já adulto em um a terapia, voltando por
vezes a esse episódio e lam entando p or aquela pessoa com quem conversou
não conhecer m elhor sobre ritos de passagem.

Deparar-se repentinam ente com a possibilidade do engano, visto


que "tudo passa" , faz sentir que tudo é ilusão.

A questão da ilusão em oposição ao princípio de realidade tem sido


fo co de reflexão para a Psicologia.
Freqüentem ente encontram os certa inquietação do terapeuta por
fazer seu cliente “cair na real”. Im portante é lem brar aqui que “na real”
só se cai, N inguém “sobe para a real” . Este m ovim ento de descida, especialm
ent
se há pressa para descer, significa tombo. Q uando nos precipi-
tamos “na real” porque estam os com pressa, sem preparo para a queda,
estam os nos “esfolando na real” .

Não é que a ilusão seja um território para perm anecerm os. M as ela
não pode sim plesmente passar. U m a ilusão precisa de um desfecho. Quan­
do a ilusão se desfecha ela nos abre para a realidade e nos faz reencontrar
o significado daquilo que nela vivem os de tal modo que nos tornam os
um pouco m ais sábios. N essa condição de sabedoria, (que na etim ologia
latina tem o sentido de paladar) por tem os sentido o sabor da ilusão e da
desilusão podem os nos iludir de novo.

Não podem os elim inar a ilusão em todos os níveis*. Até na mais


desenvolvida Física, ela tom a a pom posa form a de um a equação que fala
do “Q uantum de Indeterm inação” presente nos fenôm enos investigados.
Na experiência concreta, sem ilusões não encontram os finalidade.
A finalidade é condição para o desfecho porque este corresponde ou ao
alcance da finalidade ou à presença de um im pedim ento radical que fi­
naliza um p rocesso e torna evidente que a finalidade não pode ser
alcançada. Ilusão, finalidade e desfecho estão profundam ente ligados e a
elim inação de um altera o outro.

Ver a respeito, Auto Engano, de Eduardo Gianetti, particularm ente em “A M iséria e a G lória do Auto Engano” ,
pg. 52 à 65.

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Voltemos ao am igo do menino. Ele diz, bem intencionado: “Não
fica som ente olhando para trás, olha para frente porque a vida continua e
tudo passa” . Ele esquece de dizer que tudo passa, m as tudo não volta
para o m esm o lugar, e não voltar para o m esm o lugar é um a oportunida
de de com eçar de novo e não m eram ente outra vez.
E é assim que aquilo que o amigo propõe com o consolo provoca
raiva no menino: raiva da paixão, raiva do am igo, raiva da m enina, raiva
do envolvim ento com um engano. A dor daquele m om ento é m uito gran­
de ao pensar que o m ais im portante naquela vida toda de doze anos é
nada, é um engano, um a grande mentira.
O conselho do am igo parece dizer: “E squece”. Ora, se esquecem os
o que vivem os com tanta paixão, se esquecem os coisas tão significativas
num dado m om ento, não podem os fazer de novo. Se há esquecim ento, só
podem os fazer outra vez, porque no esquecim ento não sabem os diferen­
ciar o “de novo” do “outra vez”.

A quilo que no desfecho se dá, m esm o que seja o abandono, é a


o p o rtu n id ad e da com preensão de algum a coisa que de fato se deu.
M esm o que não tenha acontecido do je ito que esperávam os e que o
m undo não tenha sido com o queríam os, o acontecido não sig n ifica
um nada. Pois é exatam ente na hora em que som os abandonados na
p aix ão que podem os co m p reen d er p rofundam ente a paixão que vive­
m os. Q uando não m ais estam os perdidos é que podem os rev er um a
ex p eriência anterior de p erdidos na paixão. Isto só pode acontecer
quando nos reencontram os. A condição de perdido na paixão, de e s­
tar preso e cego por um a esperança que tanto brilha e ofu sca todo o
resto, nos im pede um a clareza.
A princípio a clareza ainda está perm eada de obscuridade. M as quan­
do nos acostum am os a esta, outras coisas vão aparecendo, inclusive a
nossa própria condição de estarm os vivendo na obscuridade, o próprio
desejo de encontrar a luz e a própria vontade de m ergulhar de novo em
algo significativo e cheio de vigor.

N ão estam os, no entanto, presos ao m ito do eterno retorno. N ão


estam os sem pre voltando ao m esm o ponto de partida. Podem os de
dentro do sofrim ento e da obscuridade de um certo m om ento em que
vivem os o lhar de novo para aquilo que acabam os de viver. Isto não é

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"des-olhar” ou “ o lhar para fren te” . É o ”olhar p ara trá s” não esv a zian do
tudo que aconteceu. Para aquele m enino, tudo, foi o m áxim o dele
m esm o, do que ele pôde p erceb e r de si e da m enina. Tudo isso faz
parte de sua história.
A perspectiva de que “tudo passa” presente no apressado consolo
que sim plesm ente recom enda o esquecim ento para afastar o que inco
moda se am plia tam bém para as coisas que são realizadas. Se esquecer
mos aquilo que nos afligiu, esquecem os tam bém o que vivem os e quan
do nos esquecem os de nossas experiências não chegam os a ser hum anos,
já que é peculiaridade hum ana ser e fazer história.
Quando resgatam os a experiência do que foi vivido sem esvaziar o
que passou, nós nos tornam os m ais capazes de ouvir quando o outro nos
fala de suas paixões, m ais capazes de sentir o ressoar da vida e não da
morte, m esm o quando se trata da m orte de um a paixão. A m orte, na
perspectiva do desfecho em seu tríplice sentido de final que traz clareza,
de realização e de abertura, é ainda parte da vida. Faz parte de nosso
modo de ser.

Mas, se deixam os sim plesm ente tudo para trás, caím os num tre­
mendo vazio e desolação. Isto é diferente de desilusão. A desilusão só
tem o caráter de desolação quando há um a grande frustração e sofrim ento
, quando a ilusão se rompe. Porém, m esm o este m om ento de ruptura
pode ser tam bém a oportunidade fértil de m ergulharm os e alcançarm os
uma coisa de outra natureza.
A c o m p re e n sã o que se ab re a p a rtir da ru p tu ra de um a ilu são ,
d ife re n te m e n te d aq u e la que p ro v ém da c la re z a d a razão , n asc e na
o b scu rid a d e. S u a p e c u lia rid a d e está em a p ro x im a r o trá g ic o , o d i
fícil da v id a, d a p o ss ib ilid a d e m ais v ig o ro sa de ren ovação da p ró ­
pria vida.
C om o experiência hum ana, o desfecho é sem pre fecho e des-fe-
cho, sem pre en cerra e propõe, tira algum a coisa e coloca outra no lu
gar. E esta nova coisa é um je ito de ser diferente do anterior. A ssim ,
podem os entender que a desilusão não é a capacidade de não ter ilusão
algum a, m esm o porque em geral o desiludido tam bém está m uito iludi­
do com a vida. Vive como se tivesse chegado ao final do rom ance quando
ainda está nos prim eiros capítulos e não sabe o que está por vir nas

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páginas seguintes. O vazio que ainda está presente na página seguinte
é, na verdade, a oportunidade de com eçar de novo.

Referim o-nos acim a a um a com preensão que nasce na obscuridade.


Por outro lado, já Aristóteles e toda a tradição do racionalism o privilegi­
am a luz da razão, do óbvio, da evidência. Estas duas posições nos levam
a dizer que há m ais de um a form a de com preender, de conhecer.
É certo, por exemplo, que no claro, é com os olhos que conhece­
mos. M as, no escuro, com os olhos não percebem os e nos perdem os. No
escuro tem os um sentido de orientação diferente, e é com os ouvidos, o
tato, e o olfato que podem os conhecer. São m uitas as experiências con­
cretas que podem ser feitas relativas ao conhecer no escuro.
N um outro plano, podem os tam bém exem plificar isto através da
tragédia de Édipo. Esta história aproxim a o que querem os dizer tendo
em vista a com preensão que nasce na obscuridade.
Édipo desvenda o enigm a da Esfinge com seu olhar penetrante e gui­
ado pela luz da razão. A esfinge era para ser entendida na clareza da razão.
M as, num outro m om ento, esse olhar e a luz da razão já não servem
para a com preensão de sua vida, quando se encontra na desilusão radical
ao perceber que fez tudo errado. Fura seus olhos, instrum entos com os
quais ascendeu de vagabundo a rei. A resolução da vida de Édipo não
pode ser feita agora pelo entendim ento. Ela tem de vir por um outro
m odo de com preensão, na obscuridade.
Este outro m odo de com preensão supõe com preender com o signi­
ficado especial de abarcar e conter.
A com preensão no m odo de ser do escuro é um a ocasião em que
som os solicitados para o conter de toda a experiência que então se ofere­
ce ao entendim ento. M ais do que isto, porém , conter significa a oportu­
nidade de expansão além do lim ite daquilo que já contemos. N este senti­
do, abarcar quer dizer rodear de tal modo que ficam os além daquilo que
abarcam os. Isto está presente tam bém na perspectiva que apresentam os
do desfecho.
Jung relata que por volta dos cinqüenta anos descobriu que os m ai­
ores e m ais im portantes problem as perm item o m ovim ento daquilo que
cham am os “vida”. Se esses problem as fossem resolvidos ou elim inados,

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eliminaríamos ju n to a própria vida. Assim ele diz que “os grandes pro-
Mrni.is podem ser apenas ultrapassados” .

É importante lem brar que “ultrapassar” tem dois significados:


1- Deixar para trás, passar.

2- Compreender.
Quando ultrapassar é com preender nos dam os conta de que, de al­
guma forma, m esm o no centro da desilusão, som os de algum a m aneira
maiores do que a desilusão que com preendem os. Ao com preenderm os a
ilusão e a desilusão, não estam os fazendo apologia da desilusão nem
crític a da ilusão. M as nós as contem os e isto quer dizer que as deixam os
perto de nós. Assim , em vez de deixar para trás, a ultrapassagem que
compreende e abarca retom a a dim ensão do nascim ento, do início.
Há um a expressão com um entre os psicólogos, que é “trabalhar a
perda”. Esta expressão significa “com preender a perda” . M as quando
compreendemos a perda, somos projetados na tarefa de com preender tam ­
bém o ganho, e isto é m uitas vezes esquecido ou não com preendido.
Compreender a perda não se refere a ganhar um entendim ento, mas aquela
com preensão que se dá na obscuridade e que busca conter.

Somente podem os com preender e conter a perda porque além do


horizonte daquilo que se perdeu, há algo a ser ganho. E a prim eira coisa
que se ganha é a descoberta de que, na desilusão, não m orrem os. Na
perda do objeto da própria paixão, nós não perdem os nossa vida, com o
muitas vezes acreditam os. Em algum as ocasiões, parece que é vergonho­
so sobreviver à m orte de um a paixão, à perda do objeto desejado. N essas
ocasiões, surge um desejo de sofrim ento, com o se este fosse a autentica­
ção do significado do vivido. É com o se o vivido som ente pudesse ter
sido im portante se o sofrim ento pela perda fosse tam bém m uito grande.
Não sendo assim , apareceria o caráter do enganoso.
Há um ganho na com preensão de si m esm o que é m aior do que a
desilusão, um a vez que perm anecem os vivos. A com preensão daquilo
que se deu pode ser olhada de novo em outras dim ensões. N este m om en­
to, aquilo que se ganha quando se perde pode de algum a form a preparar
a continuidade deste processo em que sem pre nos encontram os de certo
modo perdendo ou ganhando.

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M a r tin H e id e g g e r, f iló s o fo in s p ir a d o r do tr a b a lh o da
“D aseinsanalyse”, em seu texto”0 cam inho do cam po” descreve este
m ovim ento do qual falamos quando diz que para um a grande árvore acon­
tecer, para que um carvalho possa se apresentar no cam inho do cam po, é
necessário que ele m ergulhe profundam ente suas raízes na terra escura,
porque é isto que lhe dá oportunidade e a condição de expandir a sua
copa em direção ao sol brilhante.

Aí, reencontram os com o im agem o duplo processo de com preen­


são que m arca o vigor do desfecho. Este é o m om ento em que podem os
com em orar um a tristeza em silêncio. O silêncio e a obscuridade são, na
im agem , o silêncio e a obscuridade da terra com as raízes penetrando
lenta e profundam ente. Este penetrar na obscuridade da terra, com preen­
dem os em alguns m om entos com o sendo o concreto. As expressões de
nosso cotidiano “pôr o pé no chão”, “estar com os pés na terra”, signifi­
cam esse enraizar-se de algum a forma. “No chão”, à prim eira vista, estão
todas as sujeiras, os detritos e coisas em decom posição. M as, para as
raízes, tudo isto significa a origem da vida.

N a nossa vida tam bém há ocasiões em que nos é pedido para m er­
gulhar no solo, com o as raízes na obscuridade, na presença do silêncio,
na proxim idade daquilo que pode se oferecer com o o passado, o detrito,
o que já m orreu.

O m ovim ento de enterrar profundam ente as raízes possibilita al­


cançar a seiva, o pulsar da vida, e o equilíbrio.

Ah! O equilíbrio que é um a coisa tão procurada por nós, pessoal e


profissionalm ente. É o equilíbrio que vai perm itir que a grande copa da
árvore não desestabilize o estreito tronco sobre o qual ela se apóia. Não
fossem as raízes, nenhum a grande árvore perm aneceria em pé. São as
raízes que dão o equilíbrio.

M as, em outros m om entos a vida nos solicita perm anecer na copa,


“fazer fotossínteses”, gerar o elem ento da vida que vai sustentar toda a
árvore.

A dinâm ica do desfecho é a m esm a, seja num processo de terapia,


num a paixão de adolescente, ou na vida de um a pessoa. Podem os ao
m esm o tem po sentir tristeza e alegria no desfecho.

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Perceber este movimento, que faz com que todas as coisas passem
mas não se nadifiquem ou desapareçam , nos perm ite juntá-las na form a
de uma história presente em cada m om ento para cada um de nós.
Como as grandes árvores, tam bém crescem os enterrando as raízes
profundam ente na terra escura para encontrar a oportunidade do equilí-
brio daquilo que pretende se expandir intensam ente na direção do céu
brilhante.

bibliografia

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