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HISTORIA a ES ~ FILOSOFIA iz ULIAN MARIAS Historia da Filosofia JULIAN MARIAS Prélogo de XAVIER ZUBIRI Eptlogo de JOSE ORTEGA Y GASSI I Tradugao CLAUDIA BERLINER Revisdo técnica FRANKLIN LEOPOLDO 1 SIVA Martins Fontes SGo Paulo 2004 Esta obra foi publicada originalmente em espanhol com 0 tiulo HISTORIA DE LA FILOSOFIA por Alianza Editorial, Madri. Copyright © fulidn Mavias. 1941 Copyright © 2004, Livraria Martins Fontes Editora Lida.. Sao Paulo. para a presente edict, A presente edigao foi traduzida com a ajuda da Direccién General del Libro, Archivos y Bibliotecas do Ministerio de Educacién, Cultura y Deporte, cla Espanha. 1 edigao Junho de 2004 Tradugio CLAUDIA BERLINER Reyisao técnica Franklin Leopoldo e Silva Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Revistes graficas Renato da Rocha Carlos Sandra Garcia Cortes Dinarte Zorzanetti da Silva Produgao grifica Geraldo Alves Paginagao/Fot Snulio 3 Desenvolvimento Editorial s Dados Internacionais de Catalogay3u na Publicagao (CIP) (Cémara Brasileira do Livro, SP, Bra Maries, Julién, 1914- Hist6ria da filosofia / Juliin Marias ; prologo de Xavier Zubini ; epilogo de José Ortega y Gasset ; tradugio Claudia Berliner ; revi sio técnica Franklin Leopoldo e Silva, - Sio Paulo : Mantins Fon- tes, 2004. Titulo original: Historia de la fi:osofia. Bibliografia. ISBN 85-336-1992-8 1. Filosofia — Histéria I. Zubiri, Xavier. II. Ortega y Gasset. José. AU. Titulo. (04-3080 CDD-109 indices para catalogo sistematico: 1. Filosofia. Histéria 109 Todos os direitos desta edicdo para o Brasil reservados & Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheira Ramatho, 3301340 01325-000 Sao Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3108.6867 e-mail: info@marnnsfontes.com.br_http:ltwww.martingfontes.com.br Em memoria de meu mestre D. MANUEL GARCIA MORENTE que foi decano e alma da Faculdade de Filosofia e Letras onde conheci a Filosofia. Prélogo a primeira edicéo XVI Reflexao sobre um livro proprio (Prologo a tradugao inglesa) XXIX Historia da filosofia Introducao 3 Filosofia 3 A idéia de filosofia 4 Origem da filosofia 5 A filosofia e sua historia 7 Verdade e¢ historia 8 Filosofia grega Os PRESSUPOSTOS DA FILOSOFIA GREGA 11 I. Os PRE-SOCRATICOS 13 1. A escola de Mileto 13 O movimento 14 Tales de Mileto 15 Anaximandro 16 Anaximenes 17 2. Os pitagoricos 17 Pitagoras 17 A escola pitagorica 18 A matematica 19 3. Parménides e a escola de Eléia 21 Xenofanes 21 DICE Parménides O poema Os atributos do ente A opiniao Ontologia ou metafisica Zenao Melissos A influéncia de Parménides . De Heraclito a Demécrito O problema geral a) Heraclito Vida e carater O devir Td cogov b) Empédocles Vida Cosmologia Biologia As quatro raizes O amor e 0 édio c) Anaxdégoras Vida As homeomerias O “nots” d) Democrito Os atomistas Os atomos Materialismo O conhecimento 22 23 25 25 26 27 28 Il A SQEISTICA E SOCRATES 1. Os sofistas Protagoras Gorgias 2. Sécrates A figura de Socrates O saber socratico A ética socratica A transmissao do pensamento socratico III. PLatao Vida Escritos 1. As idéias A descoberta O ser das idéias O conhecimento 2. A estrutura da realidade O mito da caverna O esquema dos dois mundos O sentido do mito 3. Os problemas da teoria das idéias O ser e o ente A comunidade das idéias O bem O ente como género 4. O homem e a cidade Doutrina da alma Etica A cidade 5. A filosofia IV. ARISTOTELES Vida Obras 1. Os graus do saber 2. A metafisica O ente enquanto tal Deus A substancia 39 39 41 42 42 42 B 44 45 47 47 47 48 48 51 52 54 54 55 56 56 56 58 58 59 59 60 60 60 62 68 70 70 7) 72 3. Os modos do ser A analogia do ente Os quatro modos “Per se” e “per accidens” Categonas O verdadeiro e 0 falso A poténcia € 0 ato 4. A substancia Matéria e forma O movimento As causas Deus O ente como transcendental A esséncia 5. A logica O “légos” O contetado do “organon” 6.A fisica A ciéncia fisica A natureza 7. A doutrina da alma A esséncia da alma A estética 8. A ética O bem supremo A felicidade A vida contemplativa As virtudes 9. A politica A sociedade A linguagem Sociedade e Estado A organizacao do Estado V. O IDEAL DO SABIO 1. Os moralistas socraticos a) Os cinicos b) Os cirenaicos 2. O estoicismo As etapas do estoicismo A doutrina estdica O cosmopolitismo antigo 73 73 73 74 74 75 76 17 78 79 79 98 98 99 100 100 100 102 3. O epicurismo 4. Ceticismo e ecletismo VI. O NEOPLATONISMO Plotino Os filésofos neoplatonicos O cristianismo CRISTIANISMO E FILOSOFIA I, A PATRISTICA As fontes filosdficas da patristica Os problemas Os gnésticos Os apologetas Justino Tertuliano Os padres gregos Clemente de Alexandria Origenes Il. SANTO AGOSTINHO 1, A vida e a pessoa Obras 2. A filosofia A formulacao do problema Deus Aalma O homem no mundo 3. A significacao de Santo Agostinho Filosofia medieval L. A ESCOLASTICA 1. A época de transic¢aéo 2. O cardter da Escolastica A forma externa Filosofia e teologia IL. Os GRANDES TEMAS DA Ipape MEnIA 1. A criagao 104 106 109 109 iL 115 117 118 118 119 120 120 120 121 121 121 123 123 125 126 126 126 127 128 130 135 135 137 138 139 141 141 2. Os universais 3. A razdo IIL. Os FILOSOFOS MEDILVAIS 1. Scotus Erigena De Scotus Erigena a Santo Anselmo 2. Santo Anselmo Personalidade Fé e razao O argumento ontoldgico 3. O século XI A escola de Chartres Abelardo Os vitorinos Hugo de Sao Vitor Ricardo de Sao Vitor As heresias do século XII 4. As filosofias orientais a) A filosofia arabe Seu carater Os filésofos arabes no Oriente Os fildsofos arabes espanhdis b) A filosofia judaica 5. O mundo espiritual do século XIII O surgimento de Aristoteles A fundacao das Universidades As ordens mendicantes 6. Sao Boaventura Personalidade Doutrina Discipulos de Sado Boaventura 7. A filosofia aristotélico- escoldstica a) Santo Alberto Magno Vida € escritos 143 147 ISL 151 153 154 154 155 156 158 159 160 161 161 162 163 164 165 165 166 167 168 170 170 172 172 173 173 174 175 176 177 177 A obra de Alberto Magno b) Santo Tomas de Aquino Vida e obras A relacdo com Aristoteles Filosofia e teologia Divisao da filosofia A metafisica A alma A moral A acolhida do tomismo O neotomismo 8. Roger Bacon Personalidade Doutrina 9. A filosofia crista na Espanha Raimundo Lulio 10. Duns Escoto e Ockham a) Duns Escoto Vida e obras Filosofia e teologia A metafisica escotista b) Ockham Sua personalidade A filosofia de Ockham 11. Mestre Eckhart 12. A ultima fase da filosofia medieval Os ockhamistas O averroismo A mistica especulativa O século XV Filosofia moderna O Renascimento |. O MUNDO RENASCENTISTA 1. O contexto espiritual 2. O pensamento humanista Italia Franca Lspanha 178 179 179 180 182 183 183 185 186 186 187 188 188 189 189 190 191 192 192 192 193 194 194 194 195 196 197 197 198 198 203 203 203 206 206 207 207 Inglaterra Holanda Alemanha TI. O COMEGO DA FILOSOFIA MODERNA 1. Nicolau de Cusa Personalidade Filosofia 2. Giordano Bruno Vida . Doutrina 3. A fisica moderna Os fundadores da nova ciéncia da natureza Nicolau Copérnico Johannes Kepler Galileu Gatilei Isaac Newton A natureza O método 4.A Escolastica espanhola Os tedlogos Suarez O idealismo do século XVIL I. DESCARTES A vida e a pessoa Obras 1. O problema cartesiano A davida A teologia 2. O homem O “cogito” O critério de verdade 3. Deus O “génio maligno” A demonstracao de Deus A comunicagao das substancias A raz4o e o ser 208 208 209 211 212 212 212 216 216 216 217 217 217 217 218 218 219 219 221 222 223 227 229 229 230 231 231 232 233 233 234 234 234 235 237 237 ¥ 6 O problema da substancia 238 4. O mundo A “res extensa” Biologia 5. Racionalismo e idealismo 240 240 241 241 IL. O CARTESIANISMO NA FRANCA 243 1. Malebranche Personalidade Obras O ocasionalismo 2. Os pensadores religiosos Os jansenistas Pascal Bossuet Fénelon III. Espinosa Vida e escritos 1. Metafisica O ponto de partida A substancia Deus A comunicacao das substancias 2. Etica . O plano da “Etica” O homem 3. O ser como esforco de perduracao LV. LEIBNIZ Personalidade Obras 1. A situacdo filoséfica de Leibniz 2. A metafisica leibniziana Dinamismo As ménadas A harmonia preestabelecida O papel de Deus 243 243 244 244 246 247 247 248 249 251 251 252 252 252 253 253 254 254 254 255 257 257 258 258 260 260 260 262 263 3. O conhecimento Percepgado e¢ apercepgao Verdades de razdo e verdades cle fato A nogao individual O inatismo A logica 4. Teodicéia O otimismo metafisico A liberdade Deus na filosofia do século XVII O empirismo 1. A FILOSOFIA INGLESA 1. Francis Bacon Vida e escritos Sua doutrina 2. Hobbes A doutrina do Estado 3. O deismo A religiao natural A moral natural 4. Locke Vida e escritos As idéias A moral e o Estaclo 5. Berkeley Vida e obras Metafisica de Berkeley 6. Hume Personalidade Sensualismo Ceticismo 7A escola escocesa II, O ILUMINISMO J. O Ituminismo na Franca a) A Enciclopédia Pierre Bayle Os enciclopedistas 204 204 264 205 205 266 266 266 267 268 269 269 270 270 270 272 273 275 275 276 277 277 277 278 279 279 280 281 28) 281 282 283 285 286 286 286 287 O sensualismo e 0 materialismo Voltaire Montesquieu b) Rousseau 2. A “Aufkldrung” na Alemanha Wolff A estética Lessing A transicdo para o idealismo alemao 3. A doutrina da historia em Vico 4. Os iluministas espanhois If]. A FORMACAO DA EPOCA MODERNA 1. A filosofia e a historia 2. O Estado racionalista O absolutismo A ciplomacia 3. A Reforma O livre exame O problema da Reforma 4. A sociedade moderna a) A vida intelectual O tipo de intelectual O tema da natureza A unidade intelectual da Europa b) A transformacao social As novas classes Natureza e graca A Revolucgdo Francesa 5. A perda de Deus O idealismo alemao 1. KANT A) A doutrina kantiana Vida e escritos de Kant 1, Idealismo transcendental As lontes de Kant 287 288 289 290 291 291 292 292 292 293 294 297 297 298 298 298 299 300 301 302 302 303 304 304 304 305 306 307 311 311 311 311 313 313 O conhecimento transcendental A razao pura 2. A “Critica da razdo pura” a) Os juizos Juizos analiticos e juizos sintéticos Juizos “a priori” e “a posteriori” b) O espaco e o tempo Intuigdes puras A matematica c) As categorias Os juizos e as categorias A fisica pura d) A critica da metafisica tradicional A metafisica O argumento ontologico As idéias 3. A vazao pratica Natureza e liberdade O “factum” da moralidade Os objetos da metafisica O imperativo categérico A pessoa moral O primado da razao pratica Teleologia e estética B) O problema do kantismo 1. As interpretacées da filosofia kantiana A metafisica O passado filosofico a) O idealismo alemao b) O neokantismo c) A filosofia atual 2. O conhecimento 3, O ser O sere o ente O ser transcendental Deus 313 314 315 315 316 316 317 317 317 318 318 319 320 320 320 321 322 322 322 323 323 324 324 325 325 325 325 326 327 327 328 329 330 330 332 332 4. A filosofia 334 5. A filosofia do espirito 355 Conceito mundano da O espirito em Hegel 355 filosofia 334 Os estagios do espirito 355 IL. Ficute 337 a) O espirito subjetivo 356 : b) O espirito objetivo 357 Personalidade e obras 337 O direito 357 1. A metafisica de Fichte 338 A moralidade 357 Kant € Fichte 338 A eticidade 357 Oeu | 339 O Estado 358 A realidade 341 A historia universal 358 2. O idealismo de Fichte 341 ©) O espirito absoluto 359 “Tathandlung” 341 O absoluto eo pensar 360 Intuicdo e conceito 341 Os estagios do espirito Idealismo 342 absoluto 360 O saber 342 V. O PENSAMENTO DA EPOCA III. SCHELLING 343 ROMANTICA 363 Vida e obras _ 343 1. Os movimentos literdrios 363 As fases da filosofia de 2. A escola historica 364 Schelling 344 Personalidade filosofica 344 3. Schleiermacher e a Natureza e espirito 344 filosofia da religido 365 A identidade 345 Personalidade de A metafisica da liberdade 345 Schleiermacher 365 A religiao positiva 346 A teligido ; 365 IV Hecet 347 Teologos posteriores 365 Vida e obras 347 4, Derivacées do idealismo 366 1. Esquema da filosofia haa 366 hegeliana 348 8 Herbart 367 2. A “Fenomenologia do Krause 368 espirito” 350 Sanz del Rio 369 O saber absoluto 350 O socialismo 369 Dialetica 350 5. Schopenhauer 372 3. A logica 350 Personalidade 372 O sentido da Logica 350 O mundo como vontade Os estagios do e representacao 373 pensamento hegeliano 351 A marcha da dialética 352 A filosofia no século XIX 375 problema do panteismo 353.1 cupgra cA DO A ontologia hegeliana = 354 SENSUALISMO 379 4. A filosofia da natureza 354 1. Maine de Biran 380 A natureza 354 Situacao filoséfica 380 Os estagios 354 Metafisica 380 2. O espiritualismo 381 Os ecléticos 381 Os tradicionalistas 381 Balmes 382 I]. O POSITIVISMO DE CoMTE 385 Personalidade 385 L.A historia 386 A lei dos trés estados 386 Relativismo 387 2. A sociedade 387 O carater social do esptrito positivo 387 A sociologia 388 A religigo da humanidade 388 3. A ciéncia 389 A enciclopédia das ciéncias 389 A filosofia 390 4. O sentido do positivismo 390 TIT. A FILOSOFIA DE INSPIRAGAO POSITIVISTA 393 L. Os pensadores franceses 393 2. A filosofia inglesa 394 “O utilitarismo” 394 O evolucionismo 395 Herbert Spencer 395 3. A época positivista na Alemanha 396 O materialismo 396 As tentativas de superacao 396 O neokantismo 397 IV. A DESCOBERTA DA VIDA 399 1. Kierkegaard 309 2. Nietzsche 401 Personalidade 401 O dionisiaco e 0 apolineo 402 O eterno retorno 402 O super-homem 402 A moral dos senhores e a moral dos escravos 403 V. A VOLTA A TRADICAO METAFISICA 1. As primeiras tentativas Bolzano Rosmini e Gioberti 2. Gratry A filosofia de nosso tempo 1. BRENTANO 1. O lugar de Brentano na historia da filosofia Personalidade A situacao filoséfica de Brentano 2. A psicologia Fendmenos fisicos e psiquicos O método de Brentano Classificacao dos fendmenos psiquicos A percepcao 3. A ética A sancio O critério moral Evidéncia O amor justo 4. A existéncia de Deus A significagao de Brentano Il. A IDEIA DA VIDA 1. Dilthey Personalidade e escritos O ponto de vista de Dilthey A vida humana A filosofia O sentido da filosofia diltheyana 2. Simmel Vida e escritos A vida como transcendéncia 405 406 406 406 408 411 411 411 411 412 413 413 414 414 41s 416 416 416 416 417 418 418 419 419 419 420 422 424 425 426 426 426 TIL. IV. 1. 2. 3. O analitico e o sintético O tempo A esséncia da vida Bergson Personalidade O espaco e o tempo 427 428 429 429 429 A imeligéncia € a intuigao 430 O “ela vital” Blondel . Unamuno Vida e escritos O problema O método A FILOSOFIA DE LINGUA INGLESA . O pragmatismo Peirce James Os continuadores do pragmatismo . O personalismo . Tendéncias atuais Santayana Alexander Whitehead Russell Os movimentos mais recentes A FENOMENOLOGIA DE HUSSERL Husserl e sua escola Os objetos ideais O psicologismo A fenomenologia O ser ideal Problemas do ser ideal As significagées Palavra, significagdo e objeto Intengao e preenchimento Todo e parte 431 432 433 433 434 434 437 437 438 440 442 442 443 443 444 444 444 445 449 449 450 450 451 452 452 453 453 453 454 454 6. A filosofia fenomenologica A filosofia como ciéncia Implicagdo e complicagao 454 Juizos analiticos e sintéticos. . A consciéncia Vivéncia intencional A reducdo fenomenologica As esséncias . A fenomenologia como método e como tese idealista A definigao completa O método O idealismo fenomenoldgico rigorosa Idéia do mundo e ciéncia Filosofia transcendental A egologia pura A intersubjetividade monadolégica Espaco e tempo Os problemas da filosofia fenomenolégica V. A TEORIA DOS VALORES I. 3. VI O problema do valor O ponto de partida Objetividade do valor Valores e bens Irrealidade do valor Caracteristicas do valor Percepcao e cegueira para o valor Ser e valer . Scheler Personaliclade e escritos A filosofia de Scheler Hartmann . A FILOSOFIA EXISTENCIAL DE HEIDEGGER Personalidade e obras 455 455 455 456 457 457 457 458 458 458 458 459 460 460 462 462 463 465 465 465 466 467 467 467 468 468 469 469 470 47) 473 473 ! VIL. 2. O problema do ser Ser € tempo Ser e ente O existir e o ser Existir e mundo A analitica do existir O método de Heidegger A filosofia . O andlise do existir A esséncia do existir O “estar no mundo” O mundo A coexisténcia A existéncia cotidiana A existéncia auténtica A verdade A morte A temporalidade . O “existencialismo” Jaspers Buber Marcel Sartre ORTEGA E SUA FILOSOFIA DA RAZAO VITAL . A figura de Ortega Vida Estilo intelectual Obras A génese da filosofia orteguiana a) A critica do idealismo Realismo e idealismo 475 475 475 476 476 477 477 477 478 478 478 479 479 480 480 480 482 483 485 486 487 487 489 493 493 493 494 495 497 497 497 O eve as coisas A consciéncia b) As etapas da descoberta Eu e circunstancia Perspectivismo Razao e vida . A razdo vital A realidade radical Razao vital e razao historica A filosofia . A vida humana Eu eo mundo O projeto vital A moral . A vida historica e social A historicidade da vida humana As geracées O homem e a gente O interindividual e o social Os usos Sociedade e dissociagéo . A Escola de Madri Morente Zubiri Gaos Ferrater Apéndice bibliografico Epilogo de José Ortega y Gasset 498 499 500 500 501 502 503 503 504 506 508 508 509 S11 512 513 513 S14 515 516 517 519 520 523 541 Prélogo a primeira edicaéo E com o maior carinho, querido Marias, que aceito apresentar ao pu- blico espanhol este livro, destinado a essa juventude de que vocé ainda faz praticamente parte. E 0 carinho se funde com a profunda satisfagdo de sen- tir que as palavras de uma catedra nao cairam totalmente no vazio, e servi- ram em parte para nutrir uma vida intelectual, que emerge cheia de entu- siasmo e vigo e se afirma pairando acima de todas as vicissitudes a que 0 planeta se encontra submetido. Presenciei suas primeiras curiosidades, guiei seus primeiros passos, endireitei algumas vezes suas sendas. Ao me despedir de vocé, jd a caminho da maturidade, fi-lo com a paz e 0 sossego de quem sente ter cumprido uma parcela da missdo que Deus lhe deu neste mundo. Peco que me desculpe por este orgulho vir envolto nas ondas de terror que invadem quem tem quinze anos a mais que vocé. Terror de ver estam- pados, em alguns lugares, pensamentos que, em seu momento, podem ter servido numa catedra ou no didlogo de um semindrio, mas que, destituidos de maturidade, nao estavam destinados a um piblico de leitores. Alguns, talvez, j4 ndo os comparta; vocé me conhece o suficiente para que isso nao lhe cause estranheza. Estive varias vezes a ponto de deixar correr minha pena na margem de suas paginas. Detive-me. Decididamente, um livro so- bre o conjunto da historia da filosofia quic¢d s6 possa ser escrito em plena mocidade, quando o impeto propulsor da vida pode mais que a cautela. Simpatico gesto de entusiasmo; em definitivo, é algo inerente a esséncia do discipulado intelectual. Sua obra tem, ademais, ratzes que reavivam minhas impresses de discipulo de um mestre, Ortega, ao magistério de quem também eu devo muito do que ha de menos ruim em meu trabalho. XVII HISTORIA DA FILOSOFIA Mas tudo isso so apenas as raizes remotas de seu livro. Resta o livro ent si; multiddo de idéias, a exposicdo de quase todos os pensadores e tam- beni de algumas épocas sao obra pessoal sua. Ao publica-lo, estou certo de que poe em mdos dos recém-ingressados numa Faculdade de Filosofia um instrumento de trabalho de consideravel precisdo, que lhes poupara pesqui- sus dificeis, lhes evitard passos perdidos no vazio e, sobretudo, fara com que se ponham a andar pelo caminho da filosofia. Coisa que para muitos purecerd ociosa, sobreiudo quando, ainda por cima, se dirige o olhar para o passado: uma historia..., agora que o presente urge, e uma historia da fi- losofia..., de uma suposta ciéncia, cujo resultado mais evidente € a discor- ddncia radical no tocante a seu proprio objeto! Contudo, ndo nos precipitemos. Ocupar-se da historia ndo é mera curiosidade. Seria se a historia fosse uma mera ciéncia do passado. Mas: 1° A historia ndo é uma mera ciéncia. 2° Nao se ocupa do passado uma vez que este ja ndo existe. Nao é uma simples ciéncia, mas existe uma realidade historica. A his- toricidade é, com efeito, uma dimensdo desse ente real que se chama homem. E esta sua historicidade nao provém exclusiva nem primariamente do fato de o passado avancar na direcdo de um presente e empurrd-lo para o porvir. Esta é uma interpretacdo positivista da historia, absolutamente in- suficiente. Supée, com efeito, que o presente é somente algo que passa, ¢ que passar é ndo ser o que uma vez foi. A verdade, pelo contrario, consiste antes em que uma realidade atual — portanto, presente —, 0 homem, esta constituida parcialmente por uma posse de si mesma, de tal forma que ao entrar em si se descobre sendo o que é, porque teve um passado e esta se realizando desde um futuro. O “presente” é essa maravilhosa unidade des- ses (rés momentos, cuja sucessiva manifestacdo constitui a trajetéria histd- ticd: 0 ponto em que o homem, ser temporal, tangencia paradoxalmente a cternidade. Sua intima temporalidade abre precisamente seu olhar para «a clernidade. Com efeito, desde Boécio a definicdo classica da eternidade involve, além da interminabilis vitae, de uma vida intermindvel, a total si- XVII PROLOGO A PRIMERA EDIGAO mul et perfecta possessio. Reciprocamente, a real:dade do homem presen- te esta constituida, entre outras coisas, por esse ponto de tangéncia concre- to cujo lugar geométrico se chama situaca nos descobrimos em uma situacdo que nos pertence constitutivamente e na qual se acha inscrito nosso peculiar destino, algumas vezes escolhido, outras, imposto. E embora a situacdo nao predetermine forcosamente o con- teudo de nossa vida nem de seus problemas, circunscreve evidentemente o dmbito desses problemas e, sobretudo, limita suas possibilidades de solugdo. Por isso, a historia como ciéncia é muito mais ume ciéncia do presente que uma ciéncia do passado. No que concerne a filosofia, isso é mais verdadeiro do que poderia ser para qualquer outra ocupacdo intelectual, porque c carater do conhecimen- to filosdfico faz dele algo constitutivamente problemdtico. Zytovpévn émotriin, o saber que se busca, era como costumava chamé-la Aristéte- les. Ndo estranha que aos olhos do leigo este problema tenha uns ares de . Ao entrarmos em nos mesmos discérdia. No curso da historia encontramos trés conceitos distintos de filosofia, que emergem em ultima instdncia de trés dimensdes do homem: 1° A filosofia como um saber sobre as coisas. 2° A filosofia como uma direc4o para o mundo e para a vida. 3° A filosofia como uma forma de vida e, portanto, como algo que acontece. Na verdade, essas trés concepcées da filosojia, que correspondem a trés concepcoes distintas da inteligéncia, conduzem a trés formas absoluta- mente distintas de intelectualidade. Delas o mundo, e as vezes até o pro- prio pensador, foi se nutrindo sucessiva ou simultaneamente. As trés con- vergem de uma maneira singular na nossa situacdo e recolocam, de forma pungente e urgente, o prdprio problema da filosofia e da inteligéncia. Essas trés dimensées da inteligéncia talvez nos tenham chegado distorcidas pelos cursos que a historia tomou, ¢ a inteligéncia comegou a pagar em si mesma sua propria deformacdo. Em sua tentativa de se reformar certamente re- servard para o futuro formas novas de intelectualidade. Como todas as precedentes, ainda assim serdo defeituosas, ou melhor, limitadas, o que ndo as desqualifica, porque o homem é sempre o que é gracas a suas limitacées, que lhe permitem escolher o que pode ser. E ao sentirem sua propria limi- XIX HISTORIA DA FILOSOFIA faguo, os intelectuais de entdo voltardo 4 raiz de onde partiram, tal como hoje 1etrocedemos para a raiz de onde partimos. E isto é a historia: uma si- tide que implica outra passada como algo real que possibilita nossa pré- pia situagdo, Ocupar-se da historia da filosofia néo é, pois, simples curiosidade, c 0 proprio movimento a que se vé submetida a inteligéncia quando em- preende precisamente a ingente tarefa de por-se em marcha desde sua raiz ultima. Por isso a historia da filosofia nao é extrinseca a propria fi- losofia, como poderia ser a historia da mecdnica em relagdo a mecénica. A filosofia nao é sua historia; mas a historia da filosofia é filosofia; por- que a entrada da inteligencia em si mesma na situacdo concreta e radi- cal em que se encontra instalada é a origem e a colocacao em marcha da filosofia. O problema da filosofia ndo é outro sendo o préprio pro- blema da inteligéncia. Com essa afirmacdo, que no fundo remonta ao velho Parménides, comecou a existir a filosofia na terra. E por isso Pla- tdo nos dizia que a filosofia é um silencioso didlogo da alma consigo mesma em torno do ser. Contudo, dificilmente o cientista comum conseguird livrar-se da idéia de que a filosofia, se nado em toda sua amplitude, pelo menos na medida em que envolve um saber sobre as coisas, se perde nos abismos de uma discordia que dissolve sua propria esséncia. E inegdvel que no curso de sua historia a filosofia entendeu de modos muito diversos sua propria definicao como um saber sobre as coisas. E a primeira atitude do filosofo deve consistir em ndo se deixar levar por duas tendéncias antagonicas que surgem espontaneamente num espirito principiente: a de tender para o ceticismo ou a de deci- dir aderir polemicamente a uma formula, preferindo-a a outras, ten- tando até mesmo forjar uma nova. Deixemos essas atitudes para ou- tros. Percorrendo essa rica listagem de definicées, é inevitdvel que se- jumos invadidos pela impressdo de que algo muito grave pulsa sob essa diversidade. Se forem realmente tdo distintas as concep¢ées da filoso- fia enquanto saber teorético, fica claro que essa diversidade significa precisumente que ndo so o contetido de suas solugdes, mas a propria ulvia de filosofia continua sendo problematica. A diversidade de defi- nicoes atualiza em nossa mente o proprio problema da filosofia, XX PROLOGO A PRIMEIRA EDICAQ, como um verdadeiro saber sobre as coisas de semelhante problema pudesse desqualificar 0 saber teorélico é con- denar-se para todo o sempre a nao entrar nem sequer no saguao da fi- losofia. No funda, os problemas da filosofia nada mais sdo sendo o pro- blema da filosofia. Mas talvez a questdo ressurja com nova angustia ao tentar pre- cisar a indole desse saber teorético. Nao é uma questdo nova. Faz mui- to tempo, hd séculos, a mesma pergunta vem sendo formulada de diver- sas maneiras: tem a filosofia um cardter cientifico? No entanto, essa maneira de apresentar o problema ndo é indiferente. De acordo com ela, o “saber das coisas” adquire sua expressdo plena e exemplar no que se chama “saber cientifico”. E esse pressuposto foi decisivo para o destino da idéia de filosofia nos tempos modernos. De fato, sob diversas formas observou-se reiteradas vezes que a filo- sofia estd muito longe de ser uma ciéncia; que na melhor das hipoteses ndo passa de uma pretensdo a ciéncia. E isso, quer conduza a um ceticismo em relacao a filosofia, quer conduza a um maximo otimismo em relacdo a ela, como acontece precisamente em Hegel, quando, nas primeiras paginas da Fenomenologia do espirito, afirma rotundamente que se propée “colabo- ray para que a filosofia se aproxime da forma da ciéncia..., mostrar que chegou o tempo de elevar a filosofia a categoria de ciéncia’; e quando mais tarde repete resolutamente que é preciso que a filosofia deixe de uma vez por todas de ser um simples amor a sabedoria para se tornar uma sabedo- na efetiva. (Para Hegel, “ciéncia” ndo significa uma ciéncia no mesmo sen- tido que as demais.) Com propésito diverso, mas com ndo menos energia, nas primeiras li- nhas do prélogo a segunda edi¢do da Critica da razao pura, Kant comeca dizendo o seguinte: “Se a elaboracdo dos conhecimentos... segue ou ndo o caminho seguro de uma ciéncia, é algo que logo se deixa julgar pelos resul- tados. Quando apés muito preparar-se e equipar-se esta elaboracdo cai em dificuldades tdo logo se acerca do seu fim ou se, para alcanga-lo, precisa freqiientemente voltar atras e tomar um outro caminho; quando se torna igualmente imposstvel aos diversos colaboradores por-se de acordo sobre a maneira como ¢ objetivo comum deve ser perseguido, entdo se pode estar sempre convicto de que um tal estudo se acha ainda bem longe de ter toma- : pensar que a existéncia XX] HISTORIA DA FILOSOFIA io. v cminho seguro de uma ciéncia, constituindo-se antes num simples ta- tut: diferentemente do que acontece precisamente na logica, na mate- mutica, na fisica etc., a metafisica “ndo teve até agora um destino tao favo- ravel que lhe permitisse encetar 0 caminho seguro da ciéncia, apesar de ser mais antiga que todas as demais”. Faz um quarto de século que Husserl publicou um vibrante estudo na revista Logos, intitulado “A filosofia como ciéncia estrita e rigorosa”. Nele, depois de mostrar que seria um contra-senso discutir, por exemplo, um problema de fisica ou de matematica fazendo entrar em jogo os pontos de vista de seu autor, suas opinides, suas preferéncias ou seu entendimento do mundo e da vida, defende vigorosamente a necessidade de também fazer da filosofia uma ciéncia de evidéncias apodicticas e absoluta. Em ultima instancia, nada mais faz sendo referir-se & obra de Descartes. Descartes, com grande cautela, mas no fundo afirmando o mesmo, comeca seus Principios de filosofia com as seguintes palavras: “Como nas- cemos em estado de infancia e emitimos muitos jutzos a respeito das coisas sensiveis antes de possuir 0 uso integro de nossa razdo, somos desviados, por muitos preconceitos, do conhecimento da verdade e acreditamos nao ser posstvel livrar-se deles a ndo ser tentando pér em divida, pelo menos uma vez na vida, tudo aquilo em que encontremos 0 menor indicio de in- certeza.” Desta exposi¢do da questdo deduzem-se aigumas observacées im- portantes. 1° Descartes, Kant, Husserl comparam a filosofia e as demais ciéncias do ponto de vista do tipo de conhecimento que proporcionam: possui ou ndo possui a filosofia um tipo de evidéncia apodictica compardvel ao da matematica ou ao da fisica teorica? 2 Essa comparacdo incide depois sobre 0 método que conduz a tais evidéncias: possui ou ndo a filosofia um método que conduza com seguran- ¢a, por necessidade interna e ndo sé por acaso, a evidencias andlogas as que obtém as demais ciéncias? 3* Isso conduz finaimente a um critério: na medida em que a filoso- fia ndo possui esse tipo de conhecimento e esse método seguro das demais riencias, seu defeito se transforma numa objecdo ao carater cientifico da fi- losofia. XXIL PROLOGO A PRIMEIRA EDICAO, Pois bem: diante dessa colocagdao da questdo devemos afirmar energi- camente: 1° Que a diferenca que Husserl, Kant, Descartes assinalam entre a ciéncia ¢ a filosofia, embora seja muito profunda, nao é, em definitivo, su- ficientemente radical. 2° Que a diferenca entre a ciéncia e a filosofia nado é uma objecdo ao carater da filosofia como um saber estrito sobre as coisas. Porque, afinal. a objecdo a filosofia procede de uma certa concep¢do da ciéncia que, sem prévia discussdo, se pretende aplicar univocamente a todo saber estrito e rigoroso. 1. A diferenca radical que separa a filosofia das ciéncias nao procede do estado do conhecimento cientifico e filosdfico. Escutando Kant, pare- ceria que a unica questdo é que, no que se refere a seu objeto, a filosofia, di- ferentemenie da ciéncia, ainda nao conseguiu dar nenhum passo firme que nos leve a seu objeto. E dizemos que essa diferenca ndo é bastante radical porque, ingenuamente, pressupde-se nela que o objeto da filosofia esta ai, no mundo, e€ que a unica coisa a fazer é encontrar 0 caminho seguro que nos leve a ele. A situacdo seria muito mais grave caso se constatasse que o proble- matico é 0 proprio objeto da filosofia: existe o objeto da filosofia? E isso o que separa radicalmente a filosofia de todas as outras ciéncias. Se, por um lado, estas partem da posse de seu objeto e simplesmente procuram estudd-lo, a filosofia, por sua vez, tem de comegar por justificar ati- vamente a existéncia de seu objeto; sua posse é 0 término e ndo o pres- suposto de seu estudo, e ela sé pode se manter reivindicando cons- tantemente sua existéncia. Quando Aristoteles a chamava Cntovuevy emotiipn, entendia que o que se buscava nao era tanto o método mas 0 proprio objeto da filosofia. Que significa que a propria existéncia de seu objeto é problematica? Se apenas se ignorasse qual é o objeto da filosofia, o problema, embo- ra grave, seria no fundo simples. Seria questao de dizer ou bem que a hu- manidade néo conseguiu ainda descobrir esse objeto, ou que este é suficien- temente complicado para que sua apreensdo resulte obscura. Na verdade, foi o que aconteceu durante milénios com todas as ciéncias, e por isso seus objetos nao foram descobertos simultaneamente na historia: por isso, algu- XXIII HISTORIA DA FILOSOFIA mas ciéncias nasceram depois de outras. Qu entdo, caso se constatasse que esse objeto € complicado demais, seria questdo de tentar mostrd-lo apenas para as mentes que tivessem alcancado maturidade suficiente. Tal seria a dificuldade de quem pretendesse explicar a um aluno de matematica de uma escola primdria o objeto proprio da geometria diferencial. Em qual- quer desses casos, e considerando-se todas as vicissitudes historicas ou difi- culdades didaticas, tratar-se-ia simplesmente de um problema déictico, de um esforco coletivo ou individual para indicar (déixis) qual é esse objeto que anda perdido por at entre os demais objetos do mundo. Tudo leva a crer que nao se trata disso. O cardter problematico do objeto da filosofia nao decorre apenas do fato de que efetivamente ndo se tenha reparado nele, mas do fato de que, diferentemente de qualquer outro objeto possivel, entendendo aqui por ob- jeto o termo real ou ideal sobre o qual versa nao sé uma ciéncia, mas qual- quer outra atividade humana, ele é constitutivamente latente. Nesse caso é claro que: 1° Este objeto latente nao é de maneira nenhuma compardvel a qual- quer outro objeto. Portanto, tudo o que se queira dizer sobre o objeto da fi- losofia tera de se mover num plano de consideracdes radicalmente alheio do de todas as demais ciéncias. Se toda ciéncia versa sobre um objeto real, ficticio ou ideal, o objeto da filosofia nao é nem real, nem ficticio, nem ideal: € outra coisa, tao outra que ndo € coisa. 2° Compreende-se entdo que esse abjeto peculiar nao pode estar sepa- rado de nenhum outro objeto real, ficticio ou ideal, mas inclutdo em todos eles, sem se identificar com nenhum. E isso que queremos dizer ao afirmar que ele é constitutivamente latente: latente sob todo objeto. Como 0 homem sé encontra constitutivamente voltado para os objetos reais, ficticios ou ideais, com os quais constréi sua vida e elabora suas ciéncias, esse objeto constitutivamente latente ¢ também, por sua propria indole, essencialmen- te fugidio. 3° Aquilo de que esse objeto escapa é precisamente do olhar simples da mente. Diferentemente, pois, do que pretendia Descartes, 0 objeto da fi- losofia jamais pode ser descoberto formalmente por uma simplex mentis inspectio. Depois de ter apreendido os objetos sob os quais pulsa, é€ neces- sdrio um novo ato mental que opere sobre o anterior para colocar o objeto XXIV PROLOGO A PRIMEIRA EDICAO, numa nova dimensdo que torne, ndo transparente, mas vistvel essa outra dimensdo sua. O ato com que o objeto da filosofia se torna patente nao é uma apreensao, nem uma intuigdo, mas uma reflexdo. Uma reflexdo que nao descobre, portanto, um novo objeto, seja ele qual for. Nav & um ato que enriquega nosso conhecimento sobre o que as coisas sao. Ndo se deve espe- rar da filosofia que nos conte, por exemplo, a respeito de forcas fisicas, or- ganismos ou tridngulos, algo que seja inacessivel para a matematica, a fisi- ca ou a biologia. Enriquece-nos meramente por nos conduzir a outro tipo de consideracao. Para evitar equivocos, convém observar que a palavra reflexao é em- pregada aqui em seu sentido mais inocente e vulgar: um ato ou uma série de atos que de uma forma ou outra retornam para o objeto de um ato an- terior através deste. Reflexdo ndo significa aqui simplesmente um ato de meditacdo, nem um ato de introspeccdo, como quando se fala de conscién- cia reflexa por oposigdo a consciéncia direta. A reflexdo em questdo consis- te numa série de atos por meio dos quais se coloca numa nova perspectiva todo o mundo de nossa vida, incluindo os objetos e todos os conhecimentos cientificos que tenhamos adquirido sobre eles. Observe-se em segundo lugar que o fato de a reflexdo e 0 que ela nos revela serem irredutiveis a atitude natural e ao que ela nos revela nao sig- nifica que espontaneamente, num ou noutro grau, numa ou noutra medi- da, ela ndo seja tao primitiva e ingénita como a atitude natural. Il. Conclui-se, portanto, que essa diferenca radical entre ciéncia ¢ fi- losofia nao se volta contra esta ultima como uma objecdo. Nao significa que a filosofia nao seja um saber estrito, mas que é um saber distinto. Se a cién- cia € um conhecimento que estuda um objeto que esta ai, a filosofia, por tratar de um objeto que por sua propria indole escapa, um objeto que é evanescente, sera um conhecimento que precisa perseguir seu objeto € reté-lo ante o olhar humano, conquista-lo. A filosofia consiste apenas na constituigdo ativa de seu proprio objeto, na colocagdo em funcionamento da reflexdo. O grave erro de Hegel foi no sentido inverso do kanliano. Este, em ultima instdncia, destitui a filosofia de um objeto proprio fazendo com que ela incida tao-somente sobre nosso modo de conhecimento. Hegel, por sua vez, substantiva o objeto da filosofia fazendo dele o todo de onde emer- gem dialeticamente e onde se mantém, também dialeticamente, todos os demais objetos. HISTORIA DA FILOSOFIA. Por enquanto ndo é necessdrio precisar 0 cardter mais profundo do ob- jeto da filosofia e de seu método formal. A unica coisa que me importa aqui é sublinhar, contra todo irracionalismo, que o objeto da filosofia é estrita- mente objeto de conhecimento. Mas que este objeto é radicalmente distinto de todos os demais. Se qualquer ciéncia e qualquer atividade humana con- sidera as coisas como sdo e tal como sdo (we éottv), a filosofia considera as coisas enquanto sao (jeotw), (Arist.: Metaf., 1064 a 3). Em outras pala- vras, o objeto da filosofia é transcendental. E, como tal, apenas acessivel numa reflexdo. O “escandalo da ciéncia” ndo s6 nao é uma objecao a filo- sofia a ser resolvida, como é uma dimensdo positiva a ser conservada. Por isso Hegel dizia que a filosofia é 0 mundo ao revés. A explicacdo desse es- candalo é precisamente o problema, o contetido ¢ 0 destino da filosofia. Por isso, embora o que Kant dizia nao fosse correto — “ndo se aprende filosofia, 86 se aprende a filosofar” —, é absolutamente certo que so se aprende filo- sofia pondo-se a filosofar. E vocé esta comecando a filosofar. Ou seja, comecard a se debater com todo tipo de razdes € problemas. Permita-me que no umbral dessa vida que promete ser tdo fértil, eu lhe traga a memoria aquela passagem de Platdo em que ele prescreve formalmente a youvacia. do entendimento: “E belo e divino 0 impeto ardente que te lanca as razées das coisas; mas exer- cita-te e adestra-te nesses exercicios que aparentemente ndo servem para nada, e que o vulgo chama de palavrorio sutil, enquanto ainda és jovem; caso contrario, a verdade te escapara das mdos” (Parm., 135 d). Nao é ta- refa nem facil nem grata. Nao é facil; af esta a sua HISTORIA DA FILO- SOFIA para demonstra-lo. Ndo € grata porque envolve, hoje mais que nunca, uma violéncia e uma retorsdo intimas para entregar-se a verdade: “A verdade esta tao ofuscada nestes tempos — dizia Pascal sobre o seu tempo —e a mentira esta tao assentada, que, a menos que se ame a ver- dade, ja ndo é possivel reconhecé-la” (Pensam., 864). E porque, como dizia Sdo Paulo sobre sua época, “os homens retém a verdade agrilhoada” (Rm 1,19). O pecado contra a Verdade foi sempre o grande drama da his- toria. Por isso Cristo pedia a seus disctpulos: “Consagra-os na verdade” XXVI PROLOGO A PRIMEIRA EDICAO Jo 17,17). E Sao Jodo exortava seus fieis a serem “colaboradores da ver- dade” (3Jo 8). Unido neste empenho comum, abraca-o efusivamente seu velho amigo. X. Zusiri Barcelona, 3 de dezembro de 1940. XXVII Reflexao sobre um livro proprio (Prélogo a tradugao inglesa) Debrugo os olhos sobre este livro de titulo genérico, Historia da filo- sofia, vinte e quatro anos depois de ter terminado de escrevé-lo, agora que vai ser lancado em Nova York traduzido para o inglés, como se olha para um filho ja crescido que vai empreender uma longa viagem. Foi meu pri- meiro livro; também o de melhor fortuna editorial: desde que foi publicado pela primeira vez em Madri, em janeiro de 1941, teve vinte edigoes espa- nholas; é 0 livro em que estudaram a historia da filosofia numerosas tur- mas de espanhéis e hispano-americanos; em 1963 foi traduzido para o portugués; agora ingressa no mundo de lingua inglesa. Ndo é estranho que um livro espanhol de filosofia tenha tido tanta sorte? Como, apesar do enor- me prestigio que na época a filosofia alemé tinha na Espanha e na América hispdnica, pode este livro de um desconhecidu espanhol de 26 anos so- brepujar quase por completo as obras alemds que tinham dominado o mer- cado é as universidades de lingua espanhola? E como isso foi possivel tra- tando-se de um livro que invocava desde sua primeira pagina a tradicao intelectual de 1931 a 1936, que acabava de ser proscrita e condenada ao ostracismo e ao esquecimento? Quem sabe isso se explique voltando as ratzes desta Historia da filo- sofia. Eu estudara na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Madri de 1931 a 1936. O esplendor que o ensino dessa Faculdade alcan- cou era tao superior a tudo o que precedera e, afora isso, durou tdo pouco, que hoje mal parece crivel. O departamento de filosofia, sobretudo, tinha adquirido um brilhantismo e um rigor desconhecidos na Espanha antes e depois daquele periodo. Inspirava-o e 0 animava um dos maiores criadores da filosofia de nosso tempo, que era ao mesmo tempo um professor excep- cional: Ortega. Para ele, a filosofia era assunto pessoal; era sua prépria vida. XXIX HISTORIA DA FILOSOFIA. Os estudantes de Madri assistiam enldo ao espetaculo fascinante e impro- vavel de uma filosofia sendo feita diante deles. Aqueles anos eram os tlti- mos de uma das etapas mais brilhantes e fecundas do pensamento europeu, entre Ilusserl e Heidegger, de Dilthey a Scheler, de Bergson a Unamuno. Sentia-se que a filosofia estava descobrindo novas possibilidades, que era um tempo germinal. (Acho que foi efetivamente assim, e que o fato de hoje seu horizonte parecer menos promissor ndo se deve a que essas possibili- dades ndo fossem reais e nao continuem existindo, mas a certos desalentos, descuidos € paixdes nefastas que vez por outra acometem 0 homem em algumas épocas.) Havia um ambiente auroreal na Faculdade de Filosofia de Madri, corroborado pela evidencia de se estar vendo erguer-se, como um galedo num estaleiro, uma nova filosofia de grande porte. A imagem do estaleiro ndo é inadequada, porque aquela Faculdade comecava a ser uma escola. Além de Ortega, lecionavam nela Manuel Gar- cia Morente, Xavier Zubiri, José Gaos, todos discipulos seus, e cada qual de todos os outros mais velhos, colaboradores entdo na mesma empresa co- mum. Podia-se pensar, sem extremar demais a esperanca, que talvez um dia o principal meridiano da filosofia européia fosse passar, pela primeira vez na histéria, por Madri. A Faculdade de Filosofia estava persuadida de que a filosofia é insepa- ravel de sua historia; de que consiste naquilo que os filésofos do passado fi- zeram e que chega até a atualidade; em outras palavras, de que a filosofia é historica e a historia da filosofia é filosofia estrita: a interpretacao criadora do passado filoséfico desde uma filosofia plenamente atual. Por isso voltava- se para os classicos do pensamento ocidental sem distingao de épocas: liam-se — quase sempre em suas linguas originais —. estudavam-se, comentavam-se gregos, medievais, modernos, dos pré-socraticos aos contempordneos, tudo isso sem qualquer sinal de “nacionalismo” nem “provincianismo”; a Espa- nha, que entre 1650 e 1900 permanecera isolada da Europa em muitas di- mensées — embora nao tanto como as vezes se pensa — tinha chegado a ser um dos paises em que se tinha uma visao menos parcial do horizonte efetivo da cultura; e o pensamento espanhol — filosoficamente muito modesto até © presente ~ ndo era objeto de nenhum trato privilegiado. Em todos os cursos estudavari-se os classicos. Nao s6 Zubiri, em seu curso de Histéria da Filosofia, introduzia-nos nos pré-socraticos e em Aris- XXX REFLEXAO SOBRE UM LIVRO PROPRIO toteles, em Santo Agostinho e Ockham, em Hegel ¢ Schelling ¢ Schleierma- cher, em Leibniz e nos estdicos; também Morente, em sua catedra de Etica, expunha a de Aristételes, a de Espinosa, a de Kant, a de Mill, a de Brenta- no; os cursos de Logica e Estética de Gaos nos levavam a Platdo, a Husserl; Ortega, em sua catedra de Metafisica, comentava Descartes, Dilthey, Berg- son, os socidlogos franceses, ingleses e alemdes. Foi esse o ambiente em que me formei, eram esses os pressupostos de minha visdo da filosofia; foram essas, em suma, as raizes intelectuais des- te livro. Mas ndo creio que isso baste para explicar, primeiro, que eu tivesse feito 0 que nem meus professores nem meus companheiros de Universidade fizeram: escrever uma Historia da filosofia; e segundo, que se transfor- masse no livro por meio do qual, durante um quarto de século, se iniciaram nessa disciplina pessoas de lingua espanhola. Para explicar isto é preciso lembrar o que podertamos chamar as raizes pessoais que tornaram esse projeto posstvel. xe Naquela admiravel Faculdade eram ministrados cursos monograficos penetrantes ¢ iluminadores sobre temas concretos, mas nao havia nenhum curso geral de Histdria da Filosofia, o que em inglés se chama survey, nem sequer se estudava em seu conjunto uma grande época. E todos os estudan- tes, de qualquer especializagao, tinham de prestar um exame — chamava- se entdo “exame intermedidrio”~, que versava sobre a totalidade da histé- ria da filosofia e seus grandes temas. Nao é preciso dizer que aquele exame era objeto de preocupacao geral, em particular para os que sé tinham rece- bido cursos de introdugdo 4 filosofia e se viam obrigados a preparar-se para ele com extensos e dificeis livros, quase sempre estrangeiros e nem sempre muito claros. Um grupo de mocas estudantes, de dezoito a vinte anos, colegas mi- nhas, amigas muito proximas, me pediram que as ajudasse a se preparar para aquele exame. Era outubro de 1933; tinha eu dezenove anos e estava no terceiro ano de meus estudos universitarios — era o que se chama nos Es- tados Unidos um “junior” -; mas freqiientara os cursos de meus professores e lera vorazmente nao poucos livros de filosofia. Organizou-se um curso XXXI HISTORIA DA FILOSOFIA privadissimo, numa das salas de aula da Residéncia de Senhoritas, dirigida por Mana de Maeztu. O grupo se reunia quando podia, com freqiiéncia aos domingos, duas ou trés horas pela manhd. As moyas obtiveram considerd- vel éxito nos exames, para grande surpresa dos professores; no ano seguinte, algumas outras, que estavam com o mesmo exame pendente, me pediram que organizasse novamente 0 curso; as mais interessadas eram, no entanto, as que ja haviam sido aprovadas e queriam continuar assistindo aquelas aulas de filosofia. No fim de cada um dos cursos, quiseram expressar sua gratiddo com um presente: Sein und Zeit de Heidegger e Ethik de Nicolai Hartmann em 1934; dois volumes de Gesammelte Schriften de Dilthey em 1935. Conservo os quatro livros, com as assinaturas delas; conservo também uma lembranca indestrutivel daqueles cursos, e uma gratiddo de que aquelas mogas nem podiam suspeitar; guardo também a amizade de quase todas elas. No ano seguinte, durante o ano letivo de 1935-36, Maria de Maeztu me encarregou formalmente de um curso de filosofia para as re- sidentes; eis como me vi, aos trés anos de undergraduate — formei-me em Filosofia em junho de 1936, um més antes da guerra civil -. transformado em professor universitario. Aqueles cursos de filosofia eram tinicos em muitos sentidos, mas so- bretudo em um: meus alunos eram meus colegas de Universidade, minhas amigas, mocas da minha idade, o que significa que ndo tinham nenhum respeito por mim. Essa experiéncia do que poderiamos chamar de “docén- cia irrespeitosa” foi inestimavel para mim. Aquelas garotas ndo aceitavam nada in verba magistri; 0 argumento de autoridade ndo existia para elas. Na Faculdade predominava um apreco ilimitado pela clareza e pela inteli- gibilidade. Ortega costumava citar com frequéncia os versos de Goethe: “Ich bekenne mich zu dem Geschlecht, das aus dem Dunkel ins Helle strebt.” que traduzia: Eu me confesso da linhagem daqueles que do obscuro ao claro aspiram. E repetia reiteradas vezes que “a cortesia do fildsofo é a clareza”. Nao havia nenhuma complacéncia no que o proprio Ortega uma vez chamara XXXII REFLEXAO SOBRE UM LIVRO PROPRIO “a luxitria da mental obscuridade”. Com isso quero dizer que minhas alu- nas pretendiam entender tudo o que eu thes ensinuva, ¢ que era nada menos que a totalidade da histéria da filosofia do Ocidente; pediam-me que aclarasse tudo, justificasse tudo; mostrasse por que cada fildsofo pensuva o que pen- sava, € por que aquilo era coerente, ¢ se nav o era, por qué. Mas isso signi- ficava que eu tinha de entendé-lo, se ndo previamente, pelo menos durante aaula. Nunca tive de me esforcar tanto, nem com tantos frutos, como ante aquele auditério de catorze ou dezesseis mocas florescentes, risonhas, ds ve- zes zombeteiras, de mente tdo fresca quanto a pele, aficionadas por discutir, com afa de ver claro, inexordveis. Ninguém, nem sequer meus mestres, me ensinaram tanta filosofia. A rigor, deveria dividir com elas os direitos auto- rais ou royalties de meus livros. A bem da verdade, divido-os com uma delas. Ao fim da guerra civil, em 1939, as possibilidades abertas para um homem como eu, que tinha permanecido e estava decidido a continuar fiel ao espirito daquela Univer- sidade e ao que ele representava na vida nacional, eram extremamente re- duzidas e problemdticas. Nao se podia nem pensar em docéncia nas Uni- versidades espanholas, ou mesmo em colaborar em revistas e periddicos. Tive de empreender trabalhos de insolita magnitude, porque os menores eram imposstveis. E uma das tantas ironias do destino. Uma das mogas que freqiientaram meus cursos, que dois anos depois veio a se tornar minha mu- lher, me animou a escrever uma Historia da filosofia. Quando lhe fiz ver as enormes dificuldades da empresa, ofereceu-me uma consideravel pilha de cadernos: eram suas anotacoes, admirdveis, claras, fidedignas anota- des de meus cursos informais. Pus-me a trabalhar sobre elas: foram o pri- meiro rascunho deste livro. Havia muito a completar; rever tudo, buscar uma expressdo escrita e nao oral para o que ali estava dito. Em suma, era preciso escrever um livro que o fosse verdadeiramente. Ao cabo de um tem- po invadiu-me o desdnimo; eu me refiz, voltei ao trabalho. Em dezembro de 1940 escrevi a ultima pagina. Ainda tive tempo, ao corrigir as provas, de incluir a morte de Bergson, ocorrida nos primeiros dias de janeiro de 1941. Devo dizer que Ortega, consultado por seu filho sobre a possibilidade de XXXII HISTORIA DA FILOSOFIA publicar este livro, que representava em Lodos os sentidos um risco conside- ravel, sem lé-lo respondeu afirmativamente desde seu desterro em Buenos Aires, ea REVISTA DE OCCIDENTE, a editora de maior prestigio na Es- panha, publicou o livro de um autor de quem o melhor que se podia espe- rar € que ndo se soubesse quem era. Zubiri, que fora durante quatro anos meu professor de historia da filosofia, que me ensinara um sem-nimero de coisas, escreveu, desde sua catedra ~ entao em Barcelona —, um prologo para ele. Em 17 de janeiro dediquei seu primeiro exemplar dquela moca cujo nome era Lolita Franco e que poucos meses depois levaria o meu. Contei esses detalhes de como este livro chegou a ser escrito porque a meu ver sao eles que explicam sua excepcional ventura: seus leitores tive- ram dele a mesma impressao das minhas primeiras alunas: a inteligibilida- de das doutrinas filosoficas, a historia dos esforgos do homem ocidental por esclarecer 0 mais profundo da realidade, uma histéria em que até 0 erro encontra sua explicacdo e se torna inteligtvel e, nessa medida, justificado. Uma das idéias centrais de Ortega, que atravessava os ensinamentos filoséficos em Madri durante meus anos de estudante, é a vazao historica; inspirado por esse principio, este livro leva em conta a situacao total de cada um dos fildsofos, ja que as idéias nao vém apenas de outras idéias, mas da integralidade do mundo em que cada um tem de filosofar. Por isso uma his- toria da filosofia s6 pode ser elaborada filosoficamente reconstituindo toda a série das fitosofias do passado a partir de uma filosofia presente capaz de fornecer a razdo delas — sem exclui-las como erros superados, mas incluin- do-as como suas préprias raizes. Muitos anos se passaram desde 1941, e este livro foi sendo ampliado, atualizado, polido e se tornando mais rigoroso no decorrer de suas sucessi- vas edicdes; mas é 0 mesmo que nasceu ante um punhado de mocas, numa das experiéncias mais puras e intensas do que é a comunicagao filosdfica. Madri, janeiro de 1965. XXXIV Historia da Filosofia Introducao Filosofia * Por filosofia entenderam-se principalmente duas coi- sas: uma ciéncia e um modo de vida. A palavra fildsofo contém em si duas significagdes distintas: o homem que possui certo saber e o ho- mem que vive e se comporta de um modo peculiar. Filosofia como ciéncia € filosofia como modo de vida sao duas maneiras de entendé- la que se alternaram e as vezes alé conviveram. Desde seus primér- dios, na filosofia grega, sempre se falou de uma certa vida tedrica, e ao mesmo tempo tudo era saber, especulacao. E necessario compreender a filosofia de modo tal que na idéia que dela se tenha caibam, simulta- neamente, as duas coisas. Ambas sao, afinal, verdadeiras, uma vez que constituiram a propria realidade filosofica. E a plenitude de seu senti- do ea razao dessa dualidade s6 poderao ser encontradas na visao total dessa realidade filos6fica; ou seja, na histéria da filosofia. Existe uma indubitavel implicacdo entre os dois modos de enten- der a filosofia. O problema de sua articulagdo é, em grande medida, o proprio problema filosofico. Pode-se, no entanto, compreender que am- bas as dimensdes sao inseparaveis, e de fato nunca existiram totalmen- te desvinculadas. A filosofia é um modo de vida, um modo essencial que, justamente, consiste em viver numa certa ciéncia e, portanto, a postula e a exige. E portanto uma ciéncia que determina o sentido da vida filosofica. Pois bem: que tipo de ciéncia? Qual a indole do saber filosofico? As ciéncias particulares ~ a matemitica, a fisica, a historia — nos pro- porcionam uma certeza a respeito de algumas coisas, uma certeza parcial, que nao exclut a divida além de seus proprios objetos; por outro lado, as diversas certezas desses saberes particulares entram em colisao e HISTORIA DA FILOSOFLA reclamam uma instancia superior que decida entre elas. O homem ne- cessita, para saber com rigor a que se ater, de uma certeza raclical e uni- versal, a partir da qual possa viver e ordenar numa perspectiva hierar- quica as cutras certezas parciais. A religiao, a arte ¢ a filosofia dao ao homem uma conviccao total sobre o sentido da realidade como um todo; mas nao sem diferencas essenciais. A religiéo é uma certeza recebida pelo homem, dada por Deus gratuitamente: revelada, o homem nao alcanga por si mesmo essa certeza, nao a conquista nem € obra sua, muito pelo contrario. A arte significa também uma certa conviccao que o homem tem e desde a qual interpreta a totalidade de sua vida; mas essa crenga, de origem certa- mente humana, nao se justifica a si mesma, nao pode dar razao de si; nao tem evidéncia propria, e é, em suma, irresponsdvel. A filosofia, pelo contrario, € uma certeza radical universal que é, ademais, auténoma, isto é, a filosofia se justifica a si mesma, mostra e prova constantemente sua verdade, nutre-se exclusivamente de evidéncias; o fildsofo esta sem- pre renovando as razGes de sua certeza (Ortega). A idéia de filosofia * Convém deter a atencéo um instante em alguns pontos culminantes da historia para ver como se articularam as interpretagoes dla filosofia como um saber e como uma forma de vida. Em Aristoteles, a filosofia é uma ciéncia rigorosa, a sabedoria ou saber por exceléncia: a ciéncia clas coisas enquanto sao. Contudo, ao falar dos modos de vida inclui entre eles, como lorma exemplar, uma vida teorética que é justamente a vida do filésofo. Depois de Aristote- les, nas escolas estéicas, epicuristas etc., que pululam na Grécia des- de a morte de Alexandre, e logo em todo o Império Romano, a filoso- fia se esvazia de contetido cientifico e vai se transformando cada vez mais num modo de vida, 0 do sdbio sereno e imperturbavel, que é 0 ideal humano da época. Ja no cristianismo, para Santo Agostinho trata-se da contraposi- cao, ainda mais profunda, entre uma vita theoretica e uma vita beata. E alguns séculos mais tarde, Santo Tomas se moveré entre uma scientia theologica e uma scientia philosophica; a dualidade passou da esfera da prépria vica para a dos diversos modos de ciéncia. Em Descartes, ao comegar a €poca moderna, nao se trata mais de uma ciéncia ou, pelo menos, simplesmente disso; talvez, de uma cién- INTRODUCAO cia para a vida. Trata-se de viver, de viver de certo modo, sabendo o que se faz e, sobretudo, o que se deve fazer. Assim, a filosofia aparece como um modo de vida que postula uma ciéncia. Mas ao mesmo tem- po se acumulam sobre esta ciéncia as maximas exigéncias de rigor in- telectual e de certeza absoluta. A historia nao termina aqui. No momento de maturidade da Eu- ropa moderna, Kant nos falara, em sua Logica e no final da Critica da razéo pura, de um conceito escolar e um conceito mundano da filosofia. A filosofia, segundo seu conceito escolar, é um sistema de todos os co- nhecimentos filosoficos. Mas em seu sentido mundano, que é 0 mais pro- fundo e radical, a filosofia é a ciéncia da relagdo de todo conhecimen- to com os fins essenciais da razio humana. O filosofo nao é mais um artifice da razdo, mas o legislador da razdo humana; e nesse sentido — diz Kant — é deveras orgulhoso chamar-se fildsofo. O fim ultimo € 0 destino moral; 0 conceito de pessoa moral é, portanto, a culminagao da metafisica kantiana. A filosofia em sentido mundano — um modo de vida essencial do homem — é a que da sentido a filosofia como ciéncia. Por ultimo, em nosso tempo, enquanto Husserl insiste uma vez mais em apresentar a filosofia como ciéncia estrita e rigorosa, e Dilthey a vinculz essencialmente a vida humana e a historia, a .déia de razdo vital (Ortega) recoloca de modo radical o proprio nucleo da questao, estabelecendo uma relacao intrinseca e necessaria entre o saber racio- nal e a propria vida. Origem da filosofia * Por que o homem se pée a filosofar? Pou- cas forara as vezes em que esta questao foi formulada de modo suli- ciente. Aristételes a abordou de tal maneira que exerceu uma influén- cia decisiva sobre todo o processo ulterior da filosofia. O inicio de sua Metaftsica € uma resposta a essa pergunta: Todos os homens tendem por natureza a saber. A razdo do desejo de conhecer do homem €, para Aristoteles, nada menos que sua natureza. E a natureza é a substancia de uma coisa, aquilo em que realmente consiste; portanto, o homem aparece definido pelo saber; é sua propria esséncia que move o ho- mem a conhecer. E aqui voltamos a encontrar uma implicacdéo mais clara entre saber e vida, cujo sentido ira se tornando mais diafano e transparente ao longo deste livro. Mas Aristételes diz algo mais. Um HISTORIA DA FILOSOFIA pouco mais adiante escreve: Pelo assombro comecaram os homens, ago- rae num principio, a filosofur, assombrando-se primeiro com as coisas es- tranhas que tinham mais d mdo, e depois, ao avancar assim pouco a pou- co, indagando-se sobre as coisas mais sérias tais como os movimentos da Lua, do Sol e dos astros e a geracao do todo, Temos, pois, como raiz mais concreta do filosofar uma atitude humana que € 0 assombro. O ho- mem estranha as coisas proximas, e depois a totalidade de tudo o que existe. Em vez de se movimentar entre as coisas, fazer uso delas, des- frutar ou temé-las, coloca-se de fora, estranhado delas, e se pergunta, com assombro, sobre essas coisas proximas e de todos os dias que agora, pela primeira vez, aparecem diante dele, portanto, sozinhas, isoladas em si mesmas pela pergunta: “Que é isto?” Nesse momento comega a filosofia. E uma atitude humana completamente nova, denominada teoré- tica por oposigao a atitude mitica (Zubiri). O novo método humano surge um dia na Grécia, pela primeira vez na historia, e desde entao ha algo a mais, radicalmente novo no mundo, que torna possivel a fi- losofia. Para o homem mitico, as coisas so poderes propicios ou dani- nhos, com os quais vive e que utiliza ou evita. E a atitude anterior a Grécia e que os povos onde nao penetra o genial achado helénico continuam partilhando. A consciéncia teorética, em contrapartida, vé coisas no que antes eram poderes. E a grande descoberta das coisas, lao profunda que hoje nos custa ver que efetivamente € uma desco- berta, pensar que poderia ser de outro modo. Para isso temos de lan- car mao de modos que guardam apenas uma remota anaiogia com a atitude mitica, mas que diferem da nossa, européia: por exemplo, a consciéncia infantil, a atitude da crianga, que se acha num mundo cheio de poderes ou personagens benignos ou hostis, mas ndo de coi- sas em sentido rigoroso, Na atitude teorética, o homem, em vez de es- tar entre as coisas, esta diante delas, estranhado delas, e ent4o as coisas adquirem uma significacdo por si s6s, que antes nao tinham. Apare- cem como algo que existe por si, a parte do homem, e que tem uma consisténcia determinada: propriedades, algo seu e que lhes é proprio. Surgem entao as coisas como realidades que sdo, que ém um contett- do peculiar. E é exclusivamente nesse sentido que se pode falar de ver- INTRODUCAO dade ou falsidade. O homem mitico se move fora desse ambito, Ape- nas como algo que é podem as coisas ser verdacdeiras ou falsas. A for- ma mais antiga desse despertar para as coisas em sua verdade € 0 as- sombro. E por isso € a raiz da filosofia. A filosofia e sua historia « A relacao da filosofia com sua hista- ria nao coincide, por exemplo, com a relacdo entre a ciéncia e sua his- toria. Neste ultimo caso sao duas coisas distintas: por um lado, a cién- cia e, por outro, o que foi a ciéncia, ou seja, sua historia. Sao indepen- dentes, e a ciéncia pode ser conhecida, cultivada e existir a parte da historia do que fon. A ciéncia se constréi partindo de um objeto e do saber que num determinado momento se possui sobre ele. Na filoso- fia, o problema é ela mesma; além disso, esse problema se formula em cada caso segundo a situa¢ao histérica e pessoal em que se encontra o fildsofo, e essa situaco esta, por sua vez, determinada em grande me- dida pela tradigao filosofica em que se encontra inserido: todo o pas- sado filos6fico ja esta incluido em cada acao de filosofar; em terceiro lugar, o filosofo tem de se indagar sobre a totalidade do problema fi- losofico, e portanto sobre a propria filosofia, clesde sua raiz originaria: nao pode partir de um estado existente de fato e aceita-lo, mas tem de comecar do principio e, simultaneamente, da situacdo historica em que se encontra. Ou seja, a filosofia tem de ser formulada e realizada inte- gralmente em cada fildsofo, nao de qualquer modo, mas em cada um de um modo insubstituivel: ayuele que Ihe vem imposto por toda a filosofia anterior. Portanto, em todo filosofar esta incluida toda a his- tdria da filosofia, e sem esta nem é inteligivel nem, sobretudo, pode- ria existir, E, ao mesmo tempo, a filosofia ndo tem outra realidade se- nao a que atinge historicamente em cada filésofo. Ha, portanto, uma inseparavel conexdo entre filosofia e historia da filosofia. A filosofia é historica, e sua historia lhe pertence essencial- mente, Por outro lado, a historia da filosofia nao é uma mera informa- do erudita a respeito das opiniées dos filésofos, e sim a exposicdo ver- dadeira do contetido real da filosofia. E, portanto, com todo rigor, fi- losofia. A filosofia nao se esgota em nenhum de seus sistemas, mas consiste na histéria efetiva de todos eles. E, por sua vez, nenhum deles pode existir isolado, mas necessita e implica todos os anteriores, € HISTORIA DA FILOSOFIA ainda mais: cada sistema so atinge a plenitude de sua realidade, de sua verdade, fora de si mesmo, naqueles que a ele sucederao. Todo filoso- far parte da totalidade do passado ¢ se projeta para o futuro, pondo em marcha a historia da filosofia. E isso, em poucas palavras, o que se quer dizer quando se afirma que a filosofia é histérica. Verdade e histéria * Mas isso nao significa que a verdade da fi- losofia nao interesse, que a filosofia seja considerada simplesmente um fenomeno histérico para o qual é indiferente ser verdadeiro ou falso. Todos os sistemas filos6ficos tém pretensdo de verdade; por outro lado, é evidente o antagonismo entre eles, que estdo muito longe de coinci- dir, mas esse antagonismo nao quer dizer de forma nenhuma incom- patibilidade total. Nenhum sistema pode pretender uma validez abso- luta e exclusiva, porque nenhum esgota a realidade; na medida em que cada um se afirma como unico, é falso. Cada sistema filos6fico apreen- de uma porcao da realidade, justamente a que é acessivel do ponto de vista ou perspectiva; a verdade de um sistema nao implica a falsidade dos demais, exceto nos pontos em que formalmente se contradigam; a contradigao so surge quando o fildsofo afirma mais do que realmente vé; ou seja, as visGes sao todas verdadeiras — entenda-se, parcialmente verdadeiras — e em principio nao se excluem. Mas, além disso, o pon- to de vista de cada fildsofo esta condicionado por sua situacao histdri- ca, € por isso cada sistema, se for fiel a sua perspectiva, tem de incluir todos os anteriores como ingredientes de sua propria situacao; por isso, as cliversas filosofias verdadeiras nao sao intercambiaveis, mas estao ri- gorosamente determinadas por sua inser¢ao na historia humana’. 1. Ver minha Introduccion a la filosofia (1947), cap. XI. [Obras, 11.1 Filosofia grega OS PRESSUPOSTOS DA FILOSOFIA GREGA Se deixarmos de lado o obscuro problema da filosofia oriental — hindu, chinesa -. em que o mais problematico é 0 proprio sentido da palavra filosofia, e nos ativermos ao que foi essa realidade no Ociden- le, constataremos que sua primeira etapa é a filosofia dos gregos. Essa fase inicial, cuja duragdo ultrapassa o milénio, distingue-se de todas as posteriores pelo fato de nao ter pelas costas nenhuma tradic¢ao filo- sofica; ou seja, emerge de uma situacao humana concreta — a do ho- mem “antigo” —, na qual ndo se da o momento, o ingrediente filosofi- co. Isso tem duas conseqtiéncias importantes; em primeiro lugar, na Grécia assistimos 4 germinagao do filosofar com uma pureza e radica- lidade superiores a tudo 0 que veio depois; por outro lado, 0 contex- to vital e histérico do homem antigo condiciona diretamente a espe- culacdo helénica a tal ponto que o tema central da historia da filosofia grega consiste em averiguar por que o homem, ao alcangar certo nivel de sua historia, se viu obrigado a exercitar um oficio rigorosamente novo e desconhecido, que hoje chamamos filosofar. Nao podemos en- trar aqui na discussdo desse problema, mas é indispensavel indicar pelo menos alguns dos pressupostos historicos que tornaram possivel e necessaria a filosofia no mundo helénico’. Uma forma de vida define-se, sobretudo, pelo repertorio de cren- as em que se esta inserido, E claro que essas crencas vao mucdando de geracdo em geracao — como mostrou Ortega -, e nisso consiste a mu- 1. Cf. minha Biografia de la filosofia, |. “A filosofia grega descle sua origem até Pla- tao” (Emecé, Buenos Aires, 1954). [Obras, vol. !1.] ll HISTORIA DA FILOSOFIA tagdo historica; mas certo esquema minimo perdura através cle varias gerac6es e lhes confere a unidade superior que chamamos época, era, idade. Quais sao as crengas basicas em que esta inserido o homem gre- go, que limitam e configuram sua filosofia? O heleno se encontra num mundo que existe desde sempre € que como tal nunca consuitui problema, ja estando pressuposio em toda questéo. Esse mundo € interpretado como natureza, e por isso como principio, ou seja, como aquilo de onde emerge ou brota toda realida- de concreta: aparece, portanto, como dotado de virtualidade, de capa- cidade produtiva. Mas, ao mesmo tempo, € uma multiplicidade: no mundo ha muitas coisas que sao mutaveis e definidas pela contrarie- dade. Cada uma delas tem uma consisténcia independente, mas elas nao so sempre, variam, e suas propriedades sao entendidas como ter- mos de oposigées e contrariedades: o frio € o contrario do quente, 0 pat, do impar etc.; essa polaridade é caracteristica da mente antiga. As propriedades inerentes as coisas permitem sua utilizagdo numa técni- ca que se diferencia radicalmente dos procedimentos magicos, que manejam as coisas como poderes. Esse mundo do homem grego € inteligivel. Pode ser compreendi- do, e essa compreensao consiste em ver ou contemplar essa realidade e dizer o que é: teoria, légos e ser sao os trés termos decisivos do pen- samento helénico, e se baseiam nessa atitude primaria ante o mundo. A conseqiiéncia disso é que o mundo aparece como algo ordenado e submetido a uma lei: esta € a nogao do cosmos. A razdo se insere nes- sa ordem legal do mundo, que pode ser governado e dirigido; e a for- ma concreta dessa legalidade no humano é a convivéncia politica dos homens na cidade. E preciso contar com esse esquema minimo das crencas antigas para compreender o fato historico da filosofia grega. 12 I, OS PRE-SOCRATICOS 1. A escola de Mileto Chamam-se pré-socraticos os fildsofos gregos anteriores a Sécra- tes, Esta denominacao tem, em primeiro lugar, um valor cronolégico: sdo os pensadores que viveram entre o final do século VII ¢ o fim do século V antes de Cristo. Mas tem além disso um sentido mais profun- do: as primeiras manifestagdes dla filosofia grega podem ser considera- das verdadeira filosofia porque depois delas houve uma filosofia plena e indubitavel. A luz da filosofia ja madura— de Sécrates em diante —, sao filosdficos os primeiros ensaios helénicos, dos quais nem todos mere- ceriam esse nome se nao fossem comeco e promessa de algo posterior. Por serem pré-socraticos, por anunciarem e prepararem uma maturida- de filos6fica, ja sdo filosofos os primeiros pensadores da Jénia e da Mag- na Grécia. Nao se deve esquecer que, embora seja verdade que o pre- sente depende do passado, o presente ao mesmo tempo reflw sobre ele e o condiciona. As afirmacées concretas clos mais velhos pensadores hindus ou chineses se aproximam com freqtiéncia das de alguns gre- gos; mas a diferenca fundamental esta em que depois dos pré-socrati- cos veio Sécrates, a0 passo que a balbuciante especulagao oriental nao se seguiu uma plenitude filosdfica no sentido que esta palavra adqui- riu no Ocidente. E esta a razao da radical diferenca que encontrainos entre o pensamento inicial dos helenos e dos orientais Os ultimos pré-socraticos nao sdo anteriores a Sécrates, mas con- tempordneos seus, na segunda metade do século V. Mas sao incorpo- rados ao grupo que o antececle pelo tema e pelo carater de sua espe- 13 TIISTORIA DA FILOSOFIA culagao. Toda a primeira etapa da filosofia trata da natureza (@bas). Aristoteles chama esses pensadores @vo.oAdyor, Os fisicos; fazem uma fisica com método filosofico. Ante a natureza, 0 pré-socratico adota uma atitude que difere enormemente da de Hesiodo, por exemplo. Este pretende narrar como se configurou e ordenou 0 mundo, ou a genealogia dos deuses; faz uma teogonia, conta um mito; a relagao en- tre o mito e a filosofia é préxima, como advertiu Aristoteles, e consti- tui um grave problema, mas trata-se de coisas distintas. O fildsofo pré- socratico enfrenta a natureza com uma pergunta tecrica: pretende di- zer 0 que é. O que define primariamente a filosofia é a pergunta que a mobiliza: que é tudo isso? A esta pergunta nao se pode responder com um milo, e sim com uma filosofia. O movimento * Pois bem: que é que leva os gregos a se pergun- tarem 0 que so as coisas? Qual € a raiz do assombro que levou pela primeira vez os gregos a filosofar? Em outras palavras: 0 que € que cau- sa estranheza ao heleno e o faz sentir-se estranho a esse mundo em que se encontra? Repare-se que a situacdo dos pré-socraticos distingue- se da de todos os filésofos posteriores, pois estes ultimos, ao se colo- carem um problema, dispoem de um repertorio de solugées j4 propos- tas e ensaiadas antes deles, ao passo que os pré-socraticos tem de des- cartar as respostas oferecidas pela tradicao ou pelo mito e recorrer a um novo instrumento de certeza, que é justamente a razdo. O que estranha ou assombra o grego € o movimento. Que é que isso quer dizer? Movimento (xivnoig) tem em grego um sentido mais amplo que em nossas linguas; equivale a mudanga ou variagdo: o que nos chamamos movimento € s6 uma forma particular de kinesis. Dis- tinguem-se quatro tipos de movimento: 1° o movimento local (popd), a mudanca de lugar; 2° o movimento quantitativo, isto €é, o aumento e a diminuigdo (abgnoig Kai @Bicic); 3° o movimento qualitativo ou al- teracdo (aAAo{worg), e 4° o movimento substancial, isto é, a geracdo e a corrupeao (yéveors Koi p8opc). Todos esses movimentos, sobretudo o ultimo, que € o mais profundo e radical, perturbam e inquietam o homem grego, porque tornam problematico o ser das coisas, mergu- lham-no na incerteza, de tal forma que nao sabe a que se ater em rela- cao a elas. Se as coisas mudam, o que séo na verdade? Se uma coisa 14 OS PRE-SOCRATICOS passa de branca a verde, é e nao é branca; se algo que era deixa de ser, disso resulta que a mesma coisa é e ndo é. A multiplicidacle e a contra- dicéo penetram no proprio ser das coisas; 0 grego pergunia, entado, o que sao as coisas de verdade, isto é, sempre, por tras de suas muitas apa- réncias. Busca, para além da multiplicidade de aspectos das coisas, sua raiz permanente e imutavel, que seja superior a essa multiplicidade e capaz de explicar a razdo dela. Dai o interesse fundamental da pergun- ta inicial da filosofia: o que € de verdade tudo isso, qual é a natureza ou o principio de onde emerge tudo? As diversas respostas que vao sendo dadas a esta pergunta constituem a historia da filosofia grega. A filosofia grega tem uma origem muito concreta e conhecida. Comeca nas costas jénicas, nas cidades helénicas da Asia Menor, nos primeiros anos do século VI a.C., talvez no final do VII. Dentro do mundo grego, a filosofia tem, pois, uma origem excéntrica; foi so tar- diamente, no século V, que a especulagao filoséfica apareceu na Grécia propriamente dita. As cidades da costa oriental do Egeu eram as mais ricas e présperas da Hélade; nelas deu-se primeiro um florescimento econdmico, técnico e cientifico, promovido parcialmente pelos conta- tos com outras culturas, sobretudo a egipcia e a iraniana. Foi em Mi- leto, a mais importante destas cidades, que apareceu pela primeira vez a filosofia. Um grupo de fildsofos, pertencentes a aproximadamente ués geracdes sucessivas, homens de grande destaque na vida do pais, tentam dar trés respostas 4 pergunta sobre a natureza. Costuma-se chamar essa primeira expressao filosofica de escola jénica ou escola de Mileto, e suas trés figuras centrais e representativas sao Tales, Anaxi- mandro e Anaximenes, cuja atividade ocupa todo o século VI. Tales de Mileto * Viveu entre o ultimo terco do século VII e meados do século VL. Os relatos antigos lhe atribuem multiplas ativi- dades: engenheiro, astrénomo, [inancista, politico; enquanto tal, € considerado um dos Sete Sabios dla Grécia. Talvez de longinqua ori- gem fenicia. E provavel que tenha viajado pelo Egito, ¢ atribuem a ele a introdugdo na Grécia da geometria egipcia (calculo de distancias e alturas segundo a igualdade e semelhanca de triangulos, mas, certa- mente, cle modo empirico). Também predisse um eclipse. E, portanto, uma grande figura de seu tempo. HISTORIA DA FILOSOFIA Para o que aqui mais nos interessa, sua filosofia, a fonte princi- pal e de mais valor é Aristoteles, autoridade maxima para as interpre- tages de toda a época pré-socratica. Aristételes diz que, segundo Ta- les, o principio (4x11) de todas as coisas é a Agua; ou seja, 0 estado de umidade. A razao disto seria que o alimento e a semente dos animais e das plantas sao midos. A terra flutua sobre a agua. Por outro lado, o mundo estaria cheio de espiritos ou almas e de muitos deménios; ou, como diz Aristoteles, “tudo esta cheio de deuses”. A isso se denomina hilozoismo (animacdo ou vivificagao da ma- téria). Mas o que realmente importa é o fato de Tales, pela primeira vez na histéria, se indagar sobre a totalidade de tudo o que existe, nao para se perguntar qual foi a origem mitica do mundo, mas o que na verdade € a natureza. Entre a teogonia e Tales ha um abismo: 0 mes- mo que separa a filosofia de toda a mentalidade anterior. Anaximandro * Em meados do século VI foi o sucessor de Tales na diregao da escola de Mileto. De sua vida nada se sabe ao certo. Es- creveu uma obra, que se perdeu, conhecida com o titulo que poste- riormente se deu a maioria dos escritos pré-socraticos: Da natureze (nepi goes). Atribuem-lhe, sem certeza, diversos inventos matema- ticos e astronémicos e, mais provavelmente, a confeccéo de um mapa. A pergunta sobre o principio das coisas responde dizendo que € 0 dpei- ron, 16 &mewpov. Esta palavra significa literalmente infinito, nao em sen- tido matematico, e sim no de ilimitacéo ou indeterminacdo. E con- vém entender isso como grandioso. ilimitado em sua magnificéncia, que provoca 0 assombro. E a maravilhosa totalidade do mundo, em que o homem se encontra com surpresa. Essa natureza é, ademais, principio: dela surgem todas as coisas: umas chegam a ser, outras deixam de ser, partindo dessa &pyé, mas ela permanece independente e supe- rior a essas mudancas individuais. As coisas sao engendradas por uma segregacdo, vao-se separando do conjunto da natureza por um movi- mento semelhante ao de um crivo, primeiro o frio e o quente, e de- pois as outras coisas. Esse engendrar e perecer é uma injustiga, uma d8xio,, um predominio injusto de um contrdrio sobre outro (o quen- te sobre 0 frio, o umido sobre o seco etc.). Por causa dessa injusti- ¢a existe o predominio das coisas individuais. Mas existe uma ne- 16 Os PRE-SOCRATICOS cessidade que fara as coisas voltarem para esse [undo ultimo, sem in- justigas, o apeiron, imortal e incorruptivel, em que uns contrarios néo predominam sobre os outros. A forma com que ira se execular essa ne- cessidade é 0 tempo. O tempo fara com que as coisas voltem a essa uni- dade, a essa quietude e indeterminacao da gbonc, [physis], de onde sai- Yam injustamente. Anaximandro, além de sua astronomia bastante desenvolvida que ndo abordaremos, representa a passagem da simples designacao de uma substaéncia como principio da natureza para uma idéia desta, mais aguda e profunda, que ja aponta para os uagos que irao caracte- riza-la em toda a filosofia pré-socratica: uma totalidade, principio de tudo, imperecivel, alheia 4 mutacao e a pluralidade, oposta as coisas. Veremos estas caracteristicas aparecer reiteradamente no centro do pro- blema filosofico grego. Anaximenes * Discipulo de Anaximandro, também de Mileto, na segunda metade do século VI. E 0 ultimo milésio importante. Acres- centa duas coisas novas a doutrina de seu mestre. Em primeiro lugar, uma indicagdo concreta de qual é 0 principio da natureza: o ar, que relaciona com a respiracao ou alento. Do ar nascem todas as coisas, € a ele voltam quando se corrompem. Isso pareceria antes um retorno ao ponto de vista de Tales, substituindo a agua pelo ar; mas Anaxime- hes agrega uma segunda precisao: o modo concreto de formagao das coisas, partindo do ar, é a condensagao ea rarefacao. Isso é sumamen- te importante; ha nao sé a designacao de uma substancia primordial, mas a explicagaéo de como, a partir dela, se produzem todas as diver- sas coisas. O ar rarefeito € fogo; mais condensado, nuvens, agua, ter- ra, rochas, segundo o grau de densidade. A substancia primeira, supor- te da variedade cambiante das coisas, acrescenta-se um principio de movimento. Nesse momento, o dominio persa na J6nia vai impulsio- nar a filosofia para o Oeste. 2. Os pitagoricos Pitagoras * Depois dos milésios, o primeiro nucleo filoséfico im- portante € o dos pitagéricos. No final do século VI, a filosofia transla- da-se das costas da Jonia para as da Magna Grécia, ao sul cla Italia e da 7 HISTORIA DA FILOSOFIA Sicilia, constituindo-se o que Aristoteles chamou de escola itdlica. Ao que tudo indica, a invasdo persa na Asia Menor deslocou para a extre- midade ocidental do mundo helénico alguns grupos jénicos, e dessa fecunda emigracao surgiu 0 pilagorismo. ‘Trata-se de um dos problemas mais obscuros e complexos da his- toria grega. Por um lado, tudo o que se tefere a historia do movimen- to pitagérico € problematico; em segundo lugar, sua interpretacao € sumamente dificil. Teremos de nos limitar a registrar seus tracos mais importantes, sem entrar nas sérias quest6es que suscita © fundador dessa escola foi Pitagoras; mas Pitagoras ¢ pouco mais que um nome; sobre ele quase nada se sabe, e o que se sabe é in- certo. Parece que era originario da ilha de Samos e foi se estabelecer em Crotona, na Magna Grécia. A ele sao atribuidas varias viagens, en- tre elas para a Pérsia, onde deve ter conhecido o mago Zaratas, ou seja, Zoroastro ou Zaratustra. E provavel que nunca tenha se ocupado das matemiaticas, embora, posteriormente, sua escola o tenha feito; a ati- vidade de Pitagoras deve ter sido principalmente religiosa, relaciona- da com os mistérios érficos que, por sua vez, tém parentesco com os cultos de Dioniso. Aristoteles fala dos pitagoricos de modo impessoal, sublinhando essa vaguidade com sua expressao favorita: os chamados pitagoricos... A escola pitagorica * Os pitagéricos estabeleceram-se numa sé- rie de cidades da Italia continental e da Sicilia, depois também se ins- talaram na Grécia propriamente dita. Formaram uma liga ou seita e se submetiam a uma grande quantidade de estranhas normas e proibi- <6es; ndo comiam carne nem favas, nado podiam usar trajes de 1a, nem recolher 0 que tinha caido, nem aticar o fogo com um ferro ete. E di- ficil compreender o sentido dessas normas, se é que tinham algum. Distinguiam-se entre eles os acusmdticos e os matematicos, de acordo com 0 carater e o grau de sua iniciacao. A liga pitagérica tinha uma tendéncia contraria a aristocracia; mas acabou formando uma e inter- vindo na politica. Em conseqtiéncia disso, houve uma violenta reagao democratica em Crotona, e os pitagéricos foram perseguidos, muitos deles mortos, e sua casa incendiada. O fundador conseguiu se salvar e morreu, segundo dizem, pouco depois. Mais tarde, os pitagoricos floresceram novamente com o chamado neopitagorismo. 18 OS PRE-SOGRATICOS Mais que isso, no entanto, interessa o sentido da liga pitagori- ca como tal. Constitufa propriamente uma escola. (A palavra escola, GOAN, significa em grego dcio: convém manter isso presente.) I:ssa es- cola define-se pelo modo de vida de seus membros, pessoas emigra- das, expatriadas — forasteiros, em suma. Seguindo o exemplo clos jogos olimpicos, os pitagéricos falavam de trés modos de vida: o dos que yvdo para comprar e vender, o dos que correm no estadio e 0 dos es- pectadores, que se limitam a ver. Assim vivem os pitagéricos, forastei- ros curiosos da Magna Grécia, como espectadores. E 0 que se chama de Biog Sewpntixds, a vida teorética ou contemplativa. A dificuldade dessa vida ¢ 0 corpo, com suas necessidades, que sujeitam o homem. E preciso libertar-se dessas necessidades. O corpo € um tamulo (o@pa cha), dizem os pitagoricos. E preciso supera-lo, sem no entanto per- dé-lo. Para isso é necessario um estado prévio da alma, que € 0 entu- siasmo, ou seja, endeusamento. Aqui aparece a conexao com os orficos e seus ritos, baseados na mania (loucura) e na orgia. A escola pitago- rica utiliza esses ritos e os transforma. Chega-se dessa forma a uma vida suficiente, teorética, nao ligada as necessidades do corpo, um modo de viver divino. O homem que chega a isso € 0 sabio, 0 6o@is. (Parece que a palavra filosofia ou amor a sabedoria, mais modesta que sofia, surgiu pela primeira vez nos circulos pitagoricos). O perfeito so- phos é ao mesmo tempo o perfeito cidadao; por isso o pitagorismo cria uma aristocracia e acaba intervindo em politica. A matemiatica * Outro aspecto importante da atividade dos pita- goricos é sua especulagao matematica. A matematica grega nao se pa- rece muito com a moderna. Iniciada - quase como uma mera técnica operatéria — na escola de Mileto, recebe a heranga do Egito e da Asia Menor; mas s6 no pitagorismo se transforma em ciéncia autonoma e rigorosa. Dentro dessa escola - sobretudo no chamado neopitagoris- mo — desenvolvem-se os conhecimentos matematicos que depois se- rao levados adiante pelas escolas de Atenas e dle Cizico; no século VI, a Academia platonica e a escola de Aristoteles forjam os conceitos fi- losficos fundamentais que possibilitarao, na época helenistica, a par- tir do século III, a elaboracao e sistematizacdéo da matemiatica, simbo- lizada na obra de Euclides. 19 HISTORIA DA FILOSOFIA Os pitagoricos descobrem um tipo de ente — os numeros e€ as fi- guras geomeétricas — que nao sdo corporais, mas que tém realidade e opéem resisténcia ao pensamento; isso leva a pensar que ja nao se pode identificar diretamente o ser com o ser corporal, o que obriga a uma decisiva ampliacao da nogao de ente. Mas os pitagdricos, arrasta- dos por sua propria descoberta, fazem uma nova identificacdo, desta vez de sinal contrario: para eles, o ser vai coincidir com o ser dos ob- jetos matematicos. Os nuimeros e as figuras sao a esséncia das coisas; os entes sao por imitacao dos objetos da matematica; em alguns textos afirmam que os numeros sao as préprias coisas. A matematica pitago- rica ndo € uma técnica operatoria, é antes a descoberta e construcdo de novos entes, imutaveis e eternos, diferentemente das coisas varia- veis e mortais. Dai o mistério que envolvia os achados da escola, por exemplo a descoberta dos poliedros regulares. Uma tradigdo refere que Hipaso de Metaponto foi afogado durante uma travessia - ou bem naufragou, castigado pelos deuses — por ter revelado o segredo da cons- trucéo do dodecaedro. Por outro lado, a aritmética e a geometria estéo em estreita rela- cao: 0 1 € 0 ponto, o 2 a linha, o 3 a superficie, 0 4 0 sdlido; o numero 10, soma clos quatro primeiros, é a famosa tetraktys, o ntimero funda- mental. Fala-se geometricamente de ntimeros quadrados e oblongos, planos, cubicos etc. Existem numeros misticos, dotados de proprieda- des especiais. Os pitagéricos estabelecem uma série de oposicées, com as quais as qualidades mantém uma estranha relacdo: 0 ilimitado eo limitado, o par e 0 impar, o multiplo e o uno etc. O simbolismo des- sas idéias é problematico e de dificil compreensao. A escola pitagorica também criou uma teoria matematica da mu- sica. A relacdo entre as longitudes das cordas e as notas correspon- dentes foi aproveitada para um estudo quantitativo do musical; como as distancias dos planetas correspondem aproximadamente aos inter- valos musicais, pensou-se que cada astro da uma nota, e todas juntas compdem a chamada harmonia das esferas ou musica celestial, que nao ouvimos por ser constante e sem variagées. As idéias astronémicas dos pitagéricos foram profundas e pene- trantes: Ecfanto chegou a afirmar a rotac4o da Terra. Por sua vez, Alc- 20 ce ee OS PRE-SOCRATICOS med&o de Crotona realizou estudos biologicos e embrioldgicos preci- sos. Arquitas de Tarento e Filolau de Tebas foram as dluas figuras mais importantes da matemiatica pitagérica’‘. Na escola pitagorica encontramos 0 primeiro exemplo claro de filosofia entendida como modo de vida. O problema da vida suficien- te os leva a uma disciplina especial, que consiste na contemplagao. Com os pitagéricos aparece na Grécia o tema da libertacao, do homem suficiente, que se basta a si mesmo; este vira a ser um dos temas per- manentes do pensamento helénico. Essa preocupacao com a alma leva 0s pitagéricos 4 doutrina da transmigracéo ou metempsicose, relacio- nada com o problema da imortalidade. E essa questao, intimamente vinculada a idade e ao tempo, liga-se a especulacdo sobre os ntimeros, que sao, antes de tuclo, medida do tempo, idades das coisas. Vemos, pois, o fundo unitaério do complexissimo movimento pitagérico, centrado no tema da vida contemplativa e divina. 3. Parménides e a escola de Eléia Afora os pitagéricos, ha outra manifestacao fitosofica fundamen- tal na Magna Grécia: a escola eleatica, cuja figura central € Parménides, e cujos principais continuadores sao Zendo e Melissos. Esse grupo de filosofos foi da mais alta importancia. Com eles a filosofia adquire um nivel e um grau de profundidade que antes nao tinha, e a influéncia de Parménides foi decisiva em toda a histéria da filosofia grega e, portan- to, em sua totalidade até hoje. Essa escola tem, fora dela, um antece- dente que convém mencionar: Xenofanes. Xenofanes * Era de Colofao, na Asia Menor. Nao se conhecem as datas exatas de seu nascimento e morte, mas sabe-se que viveu pelo 1. Sobre o problema da matematica grega. ver Biografta de Ia filosofia, 1, iii, e so- bretudo Ensayos de teoria, “A descoberta dos objetos matematicos na filosofia grega”. Obras, TV] 21 HISTORIA DA FILOSOFIA menos 92 anos, e que era posterior a Pitagoras e anterior a Heraclito. Portanto, viveu na segunda metade do século V1 e primeira do século V. Sabe-se também que percorria a | félade recitando poesias, geral- mente de sua autoria. A obra de Xenéfanes estava escrita em verso; sao elegias de carater poético e moral, nas quais mesclam-se as vezes vislumbres de doutrina cosmolégica. O mais importante de Xenofa- nes é, por um lado, sua critica da religiao popular grega e, por outro, certo “panteismo”, precursor da doutrina da unidade do ser na escola eleatica. Xenofanes sentia orgulho da sabedoria, que !he parecia muito superior a simples forca ou a destreza fisica. Considerava imerecida a admiragao pelos vencedores nos jogos, nas corridas etc. Considerava imorais e absurdos os deuses de Homero e Hesiodo, dos quais sé se aprendem, dizia ele, roubos, adultérios e mentiras reciprocas. Ao mes- mo tempo repudia o antropomorfismo dos deuses, dizendo que, as- sim como os etiopes os representam baixos e negros, os ledes ou os bois os representariam, se pudessem, na figura de ledo ou de boi. Em contraposicao a isso, Xenofanes fala de um tnico Deus. Citamos a se- guir os quatro fragmentos de suas satiras referentes a essa questao (Diels, frag. 23-26): “Um so Deus, entre deuses e homens 0 maior, em nada semelhante aos homens nem na forma nem no pensamento. — Vé inleiro, pensa inteiro, ouve inteiro. - Mas sem esforco ele tudo gover- na com a forca de seu espirito. — E sempre habita o mesmo lugar, sem. nada mover, nem lhe convém deslocar-se de um lado para outro.” Estes fragmentos tém um sentido bastante claro. Ha unidade ~ divina — intensamente sublinhada. E esse Deus uno é imével e todo. Por isso Aristoteles disse que Xenofanes foi o primeiro que “unizou”, isto €, que foi partidario do uno. E por esse motivo, desconsiderando o obscuro problema das influéncias, é forcoso admitir que Xendfanes foi um precursor da doutrina dos eleatas. Parménides « Parménides € 0 fildsofo mais importante cle toclos os pré-socraticos. Significa na historia da flosofia um momento de fundamental importancia: o surgimento da metafisica. Com Parméni- des, a filosofia adquire sua verdadeira hierarquia e se constitui de forma rigorosa. Até entao, a especulacao grega havia sido cosmolégica, fisica, 22 OS PRE-SOCRATICOS com um propésito e um método filosdlico; mas é Parménides quem descobre o tema proprio da filosofia e o método com vo qual se pode aborda-lo. Nas maos dele a filosofia passa a ser metalisica ¢ ontologia; jd n4o versa mais simplesmente sobre as coisas, mas sobre as coisas enquanto sdo, ou seja, como enies. O ente, ebv, bv, € a grande descoher- ta de Parménides. A tal ponto que a filosofia stricto sensu comega com ele, e o pensamento metafisico conserva até nossos dias a marca que lhe imprimiu a mente de Parménides. E junto com 0 objeto, o método que nos permite chegar a ele, o que os gregos chamaram dle vous, notis’, eos latinos traduziram por mens, mente, pensamento ou até talvez, cm alguns casos, espirito. Este noas, como logo veremos, esté numa es- sencial unidade com o 6n. A interpretacao da filosofia de Parménicdes apresenta sérias dificuldades. Nao podemos entrar nelas aqui; apenas indicaremos 0 micleo mais inovador e eficaz de seu pensamento. Nos ultimos anos foram dados passos decisivos para a interpretacao clo fi- ldsofo eleatico com o trabalho de Karl Reinhardt e, sobretudo, de meu mestre Zubiri. Parménides de Eléia viveu do final do século VI a primeira meta- de do século V: ndo se conhecem com maior precisao as datas. E im- provavel que tenha tido uma relagéo pessoal com Xenofanes, apesar de indubitaveis influéncias. Também parece ter sido afetado pelas do pitagorismo. Platao Ihe dedicou um dialogo que leva seu nome, talvez o mais importante de todos os platénicos. Aristoteles lhe dedica mui- ta atencao. Conservam-se, ademais, consideraveis fragmentos de um poema de Parménides, escrito em hexametros, conhecido com o titu- lo tradicional Da natureza. O poema * Compreendia uma introdugdo de grande forca poéti- ca, e duas partes, a primeira sobre a via da verdade, e a segunda sobre a via da opinido. Da primeira chegaram até nés mais fragmentos que da segunda. Limitar-nos-emos a indicar os momentos mais importan- tes do poema 2. Transcrevo 0 grego em caracteres latinos com as seguintes normias: o g (,) tem sempre som suave; 0 z (E), 0 de ds; 0 th (E), o de 2; 0 ph C), ode f, 0 kh (), 0 de j, 0 di- tongo ou (OD, o de u, eo y (1) tem o do u francés ou ti alemao; o/h (equivalente ao es- pirito aspero) é aspirado. Transcrevem-se todos os acentos gregos. 23 HISTORIA DA FILOSOFIA Numa carruagem, puxada por fogosos cavalos, avanga 0 poeta pelo caminho da deusa. Guiam-no as filhas do Sol, que afastam os véus de seus rostos e deixam a morada da noite, guardada pela Justica. A deusa sada Parménides e lhe diz ser preciso aprender a conhecer tudo, “tanto 0 coracgdo inquebrantavel da verdade bem redonda como as opinides dos mortais, que nado tém certeza verdadeira”, e lhe diz que existe uma tnica via de que se possa falar. Com isso termina a in- troducao. Ha uma clara alusao 4 passagem da consciéncia mitica para a teorética: as heliades tiraram-no da obscuridade. A metafora dos véus designa a verdade, entendida na Grécia como um desvelar ou desco- brir (GA @e1e). Na primeira parte do poema a deusa fala de duas vias; mas estas nao sao as duas mencionadas, da verdade e da opiniao, pois esta ulti- ma sera, a rigor, a terceira. As duas primeiras sao duas vias possiveis do ponto de vista da verdade, das coisas enquanto sdo: a do que é € que é impossivel que nao seja (via da persuasdo e da verdade) e a do que ndo é; esta ultima via é impraticavel, porque o que nao é nao pode ser conhecido nem expresso. E aqui se encontra a estreita vinculagao do notis com o 6n, do ente com a mente ou espirito na verdade. Segue-se em seguida o que poderiamos chamar a ontologia de Parménides, isto é, a explicagao dos atributos do ente que acaba de descobrir. Mas isso requer uma exposicao articulada. A segunda parte do poema abandona a via da verdade para en- trar na da opiniao dos mortais. Os fragmentos dela sao muito escassos. Correspondem a interpretacao do movimento, da variacdo, nao do pon- to de vista do nots, nem, portanto, do ente, mas da sensacdo e das coisas. A isso se somam algumas indicagées cosmolégicas. O esquema das vias é, portanto, o seguinte: METODO OBJETO VIA da verdade (via do “que é”). impraticavel (via do “que nao é”). A sensacaio......... AS COISUS «oe. da opiniao (via do “que é e nao é”) O nous o ente. 24 Os PRE-SOCRATICOS. Os atributos do ente + Convém enumerar ¢ explicar brevemen- te os atributos atribuiveis ao dv, ente, segunclo Parménides. 1° O on é presente. As coisas, enquanto sao, estao presentes para oO pensamento, para 0 noits. O ente nao foi nem sera, mas € “Ov, ens, é um particfpio do presente. As coisas podem estar longe ou perto dos sentidos, presentes ou ausentes, mas como entes sao imediatas para a nots. A mente tem a presenga do bv 2° Todas as coisas sdo entes, ou seja, sdo. Ficam envolvidas pelo ser, ficam reunidas, unas. Toda a multiplicidade das coisas nao tem nada a ver com a unidade do ente. O 6n é uno. Por isso Parménides chega a dizer que o ente é uma esfera, sem oriffcios de ndo-ser. 3° Este ente €, ademais, imdvel. O movimento é entendido como um modo de ser. Chegar a ser ou deixar de ser supde uma dualidade de entes, e 0 ente é uno. Por esse motivo é homogéneo e indivisivel, sem- pre do ponto de vista do ente: se eu divido uma coisa em duas partes, o ente fica tao indiviso como antes, envolve igualmente as duas partes: a divisdo nao o afeta em nada. 4° O ente é cheio, sem vazios. (O problema do vazio é muito im- portante em toda a filosofia grega.) E continuo e todo. Se houvesse algo fora do ente, ndo seria, e se algo fosse fora do ente, seria, ou seja, seria ente. 5° Pela mesma razao € ingénito e imperecivel. O contrario suporia um n4o-ser, que é impossivel. Estes sao os principais atributos do ente, nao das coisas: é isso 0 que descobre a primeira via, a da verdade. A opiniao * Como a segunda via, a do que ndo é, é impraticavel, vejamos a terceira, a da 86€a, a opinido dos mortais. Essa terceira via move-se dentro da esfera da verdacle, e por isso pode ser verdade e erro Quanto existe uma e outro sé pode ser decidido a partir da verdade. 1° A doxa se atém as informacées do mundo, das coisas. Essas in- formacées séo muitas e cambiantes. As coisas sao verdes, vermelhas, duras, frias, agua, ar etc. Além disso, transformam-se umas nas outras e estao em constante variacdo. Mas 2° A doxa entende esse movimento, essa mudanga, como um vir a ser. E nisso consiste seu erro. O sér nao se da nos sentidos, mas no 25 HISTORIA DA FILOSOFIA noiis. Ou seja, a déxa, movendo-se na sensacdo, que é 0 que tem, salta para o ser sem utilizar o notis, de que carece. E esta € sua falsidade. 3° A &6&«, além de ser opiniao, é dos mortais. Porque seu rgdo é asensacao, a afoOnaie, e esta se compée de contrarios e por isso € mor- tal, perecivel como as proprias coisas. A opiniao nao tem nous, o tini- co que é divino, imortal, como o ser. Por isso Parménides interpreta o movimento como luz e trevas, como um iluminar-se e obscurecer. Ou seja, 0 vir a ser ndo € mais que um vir a ser aparente. As coisas que parecem vir a ser, ja eram, mas nas trevas. O movimento € variacao, ndo geraco: portanto, nao existe do ponto de vista do ser. E tudo isso é convencao (vopog), nomes que os homens apdem as coisas. Ontologia ou metafisica * Podemos indagar agora 0 sentido da descoberta de Parménides. As coisas, em grego mpayiata, pragmata, mostram aos sentidos multiplos atributos ou propriedades. Sao colo- tidas, quentes ou frias, duras ou moles, grandes ou pequenas, animais, arvores, rochas, estrelas, fogo, barcos feitos pelo homem. Mas conside- radas com outro Org4o, com 0 pensamento ou nods, apresentam uma propriedade sumamente importante e comum a todas: antes de ser brancas, ou vermelhas, ou quentes, sdo. Sdo, simplesmente. Aparece © ser como uma propriedade essencial das coisas, como o que depois foi denominado um atributo real, que s6 se manifesta para o notis. As coisas sdo agora Svta, entes. E 0 Ov € 0 vovc aparecem numa conex4o essencial, de modo que um nao se da sem 0 outro. Nesse sentido. Par- ménides diz que o ser e 0 noéin ou nofis séo 0 mesmo. Aos olhos do notis, o ente é uno e imével, ante a pluralidade e mudanca das coisas que se dao na sensacao. Em Parménides comega a cisao dos dois mundos, o da verdade e o da aparéncia (opinido ou déxa), que ¢ falsidade quan- do tomada como realidade verdadeira. Essa ciséo sera decisiva para o pensamento grego. Examinando as coisas um pouco mais de perto, podemos dizer que, depois de ter-se pensado que as coisas tém uma consisténcia de- terminada, Parménides se da conta de que isso implica que elas tem uma consisténcia determinada - sublinhando desta vez consisténcia. As coisas consistem em algo; mas agora a aten¢ao nao se dirige ao algo, e 26 Os PRE-SOCRATICOS sim a seu prévio consistir, seja 0 que for aquilo em que consistem. As coisas aparecem antes de tudo como consistentes; ¢ ¢ isso propriamen- te o que quer dizer o participio eén, én, que é 0 eixo da filosofia par- menideana. As coisas consistem nisto ou naquilo porque previamen- te consistem, isto é, consistem em ser o consistente (t@ én). A descober- ta de Parmémides poderia ser formulada, portanto, dizendo que as coi- sas, antes de qualquer ulterior determinagao, consistem em consistir. Com Parménides, portanto, a filosofia deixa de ser fisica para ser ontologia. Uma ontologia do ente cdsmico, fisico. E ocorre precisamen- te que, como o ente € imével, a fisica é impossivel do ponto de vista do ser e, portanto, da filosofia. A fisica € a ciéncia da natureza, e natu- reza € o principio do movimento das coisas naturais. Se o movimento nao é, n4o é possivel a fisica como ciéncia filoséfica da natureza. E este o grave problema que vira a ser debatido por todos os pré-socra- ticos posteriores e que nao ira encontrar solu¢do suficiente a nao ser em Aristételes. Se o ente é uno e imovel, nao ha natureza, ¢ a fisica € impossivel. Se o movimento é, necessita-se de uma idéia do ente dis- tinta da de Parménides. E isso o que Aristoteles consegue, como vere- mos no momento propicio. Antes dele, a filosofia grega ¢ 0 esforco para tornar possivel o movimento dentro da metafisica de Parméni- des. Esforgo fecundo, que move a filosofia e a obriga a indagar sobre o problema basico. Uma luta de gigantes em torno do ser, para dizé-lo com uma frase de Platao. Zenao * Eo discipulo mais importante de Parménides, continua- dor direto de sua escola. Também de Eléia. Parece ter sido uns quaren- ta anos mais jovem que Parménides. Sua descoberta mais interessan- te é seu método, a dialética. Esse modo de argumentar consiste em to- mar uma tese aceita pelo adversdrio ou comumente admitida e mos- trar que suas conseqtiéncias se contraclizem entre si ou a contradizem; em suma, que é impossivel, segundo o principio de contracligao, im- plicitamente utilizado por Parménicles. As teses deste, sobretudo as relacionadas com a unidacle clo ente ea possibilidade do movimento, vao contra o que ordinariamente se pensa, Zendo constroi, para apoid-las, varios argumentos, que partem da idéia do movimento e mostram que é impossivel. Por exemplo, nao 27 HISTORIA DA FILOSOFIA se pode percorrer um segmento AB, porque para chegar a B é preciso passar primeiro por um ponto médio, C; para chegar a C, por um ponto D, médio entre A e C, e assim sucessivamente, até o inlinito. Laveria, pois, que passar por uma série infinita de pontos intermedia- rios, € 0 movimento seria impossivel. Segundo outro exemplo — para citar um deles -. Aquiles, que corre dez vezes mais rapido que a tar- taruga, jamais a alcancaré se ela sair com certa vantagem. Pois enquan- to Aquiles percorre essa vantagem, a tartaruga avancou 1/19 dessa dis- tancia; enquanto Aquiles percorre esse novo espaco, a tartaruga se aias- tou outro espaco dez vezes menor e assim até 0 infinito; portanto nao a alcanga nunca. Zendo propunha varias outras aporias (Gnopion) ou dificuldades, que nao detalharemos aqui. © sentido dessas aporias evidentemente nao é o de que Zendo acreditasse que assim acontece. O movimento se demonstra andando, e, andando, se chega de A a B e Aquiles alcanca a tartaruga. Nao se trata disso, mas da explicacao do movimento. Esta é, dentro das idéias do tempo, impossivel, e Parménides tem razdo. Para que 0 movimento pos- sa ser interpretado ontologicamente, faz-se necessaria uma outra idéia do ente. Se o ente € o de Parménides, o movimento nao é. As aporias de Zendo evidenciam isso da forma mais aguda. Sera necessaria toda a ontologia de Aristoteles para dar uma resposta suficiente para o pro- blema colocado por Parménides. Nao se pode compor o movimento, como nao se pode compor desse modo o continuo. Aristételes cons- truiré uma idéia do ser essencialmente distinta da de Parménides, e so entao se explicara o ser do movimento e ser posstvel a fisica. Melissos E a ultima figura importante do eleatismo, mas ele nao é de Eléia, e sim jénio, de Samos. Foi almirante daquela ilha na rebe- liao contra Atenas e obteve uma grande vitoria naval no ano de 442. Representa a continuidade do pensamento de Parménides, com algu- mas caracteristicas préprias. Nega a multiplicidade e a mobilidade, nega que o conhecimento das muitas coisas seja um conhecimento da verdade. Mas enquanto Parménides afirmava que o ente € finito, Me- lissos diz que é infinito, porque nao tem nem principio nem fim, que seriam distintos dele. Pelo mesmo motivo rejeita a idéia de que seja uma esfera: esta poderia ser interpretada como uma parte limitada da extensao 28 Os PRE-SOCRATICOS A influéncia de Parménides * Convem nao esquecer que a in- fluéncia mais profunda de Parménides na filosofia nao deve ser procu- rada dentro de sua escola, entre os pensadores eleatas, mas fora dela. Como toda filosofia auténtica, a eficdcia da de Parménides esta no pro- prio problema que coloca, nao na acao escolar ou de um grupo. O grande achado de Parmémides obriga a filosofia grega a se por em mar- cha de forma metafisica; e suas consequéncias perduram até hoje. 4. De Herdclito a Democrito O problema geral » Parménides descobriu que as coisas sao en- tes, algo que é; e, em conseqiténcia, teve de atribuir ao ente uma série de atributos que se mostram contraditorios com 0 modo efetivo de as coisas se comportarem; dai surgia o problema. Um problema, com efeito, é isto: a consciéncia de uma contradicao. O exemplo classico do pau submerso na agua, que € reto ao tato e quebrado a vista, que é Teto e ndo-reto, e, portanto, é e nao é. Assim, 0 ente é uno e imovel, mas de fato constata-se que as coisas — que sao — movem-se e sao mui- tas. A contradicao que aqui aparece é no fundo a mesma com que teve de lidar Parménides: a do ser e do nao-ser. Parménides descobriu que quando se diz de uma coisa que é bran- ca, ndo sé temos a coisa e a brancura, mas, ademais, temos 0 é, que pe- netra as duas e faz com que a coisa seja branca. O ente €, como diz Pla- tao, uma terceira coisa, um certo terceiro, tpitov 11. Este problema do 6v, do ente, penetra em todos os problemas concretos que foram suscitados na filosofia posterior a Parménides, e todas as questoes acabam por se resolver nessa antinomia do ser e do nao-ser, intimamente ligada 4 da unidade e pluralidade, e também a do movimento, O movimento é, com efeito, mover-se de um principio a um fim. Assim era entendido na Grécia. Supée, portanto, pelo menos uma dualidade, contraria a unicidade do ente, e ademais uma contra- riedade: o movimento se realiza entre contrarios (a passagem do bran- co para o preto, do quente para o frio, do ser para o nao ser), e aqui nos encontramos de novo no centro do problema do ser uno. Toda a filosofia grega, de Heraclito a Demodcrito, vai se mover dentro da idéia 29 HISTORIA DA FILOSOFIA do ente de Parménides, 0 que confere uma unidade essencial a todo 0 periodo. A filosofia daquele tempo é a progressiva divisdo do ente de Parménides, conservando seus atributos, para dessa forma introduzir nele, sem alterar sua esséncia, a pluralidade e tornar posstvel 0 movi- mento e a solugdo dos demais problemas colocados. Mas isso nao basta. O ente de Parménides nao admite a plurali- dade. Fragmentando-o nao conseguimos nada; 0 problema vai-se dis- tanciando, mas em ultima instancia permanece intacto. E isso o que demonstram os argumentos de Zendo. Sera necessdrio questionar 0 uno, a propria unidade, e chegar a uma idéia Co ser que, sem excluir a uni- dade, a torne compativel e coexistente com a multiplicidade. E neces- sario, pois, alterar totalmente a propria idéia do ente. E, um século e meio depois, Aristételes nos dara uma idéia do €v, do uno, essencial- mente distinta da parmenideana, e com ela um conceito do ser tam- bém completamente novo. Dessa maneira sera possivel explicar as di- ficuldades de Parménides. Aristoteles teré de dizer que o ente se diz de muitas maneiras. Logo veremos por qué. Por ora interessa ver as etapas primeiras do problema de Parmé- nides, dentro do ambito filoséfico que ele criou com sua genial desco- berta. a) Herdclito Vida e carater * Era de Efeso, na Asia Menor. Viveu entre os sé- culos Vl e V. Dizem que era da familia real de Efeso e estava destina- do a reger a cidade, mas renunciou e se dedicou 4 filosofia. Existem delicados problemas de cronologia entre Xenofanes, Parménides e Herdclito. Sao aproximadamente contemporaneos, mas Herdclito se move dentro da dialética parmenideana do ser e do nao-ser, e, por- tanto, pode ser considerado filosoficamente sucessor de Parménides. Heraclito desprezava a multidao e condenava os cultos e ritos da re- ligiao popular. Teofrasto diz que era “melancélico”. Por seu estilo um tanto sibilino, os gregos o apelidaram de “Heraclito, o Obscuro”. Di- zem que o oraculo de Delfos nem manifesta nem oculta seu pensa- mento, mas o indica por sinais. E isso talvez pucesse ser aplicado a scus escritos. 30 OS PRE-SOCRATICOS. O devir + O que mais importa € caracterizar a metalisica de He- raclito e situd-la dentro da evolucao da lilosofia posterior a Parméni des. Heraclito afirma taxativamente a variagdo ou movimento das Coi- sas: RaVtaH pei, tudo corre, tude flui. Ninguem pode se banhar duas vezes no mesmo rio, porque o rio permanece, mas a dgua ja nado é a mesma. A realidade é cambiante e mutavel. Por isso a substancia pri- mordial € 0 fogo, a menos consistente de todas, a que mais facilmente se transforma. Ademais — diz ele -. a guerra € o pai de todas as coisas, nOAEMOg TATHP R&vtwv. Ou seja, a discérdia, a contrariedade € a ori- gem de tudo no mundo. O mundo € um eterno fogo que se transfor- ma. Como, segundo um velho principio do conhecimento, o igual se conhece pelo igual, a alma seca, a que se parece com o [ogo, é a me- lhor de todas € a que melhor conhece: a alma do sabio. A alma umi- da, como barro. é uma alma inferior. A primeira vista, nao haveria oposicdo maior a Parménides. He- raclito parece inverter rigorosamente os termos e fazer das coisas mo- bilidade constitutiva. Ainda que assim fosse, seria oposicao demais para nao interpreta-la como uma relacdo estreita; afora isso, no entan- to, € preciso reparar em algumas coisas. Em primeiro lugar, Heraclito fala do mundo, do cosmos, e Parménides também reconhecia o movi- mento ¢ a pluralidade no mundo: o que negava € que isso tivesse algo a ver com o ente. Em contrapartida, ha toda uma série de textos com um sentido completamente distinto. Antes de tudo, Herdclito diz que é judicioso “confessar que to- das as coisas sao uno”. Por outro lado, 0 notis € comum a todos. Estas afirmacdes soam de um modo bem diferente, e tém claras ressonan- cias parmenideanas. No entanto, ha mais: Heraclito introduz um novo conceito, ao qual confere atributos tradicionais da filosofia de Parmé- nides. E 0 conceito do soév. T6 cows * Heraclito refere-se a o sdbio de forma neutra. Nao é a pessoa do sabio nem a sabecoria. Comega dizendo que esse sophon é uno, e que é sempre. Além disso, é separado de todas us coisas, navtov Keywpiopévov. Como se vé, os atributos clo sophoa e os do ente cle Par- ménides sao os mesmos. Heraclito adverte que devemos seguir 0 co- mum, e este ccomum € 0 nods, como vimos. Isso fica particularmente 3) HISTORIA DA FILOSOFIA claro se considerarmos o fragmento que diz: “Os homens despertos tém um mundo comum, enquanto os que dormem voltam-se, cada um, para seu mundo particular.” O sentido desses textos é evidente. Vemos uma nova ciséo em dois mundos: o homem desperto, que segue o comum, 0 nots, € o que che- gaa “o sébio”, que € uno e permanente. Em contrapartida, ha o mun- do do sonho, que € o mundo particular de cada um, em suma, a opi- nido. E aqui que tudo é mudanga e devir. A chave dessa dualidade tal- vez esteja em uma das mais expressivas frases de Herdclito: gbotc KpUateo@ar prrer, a natureza gosta de se ocultar. O mundo oculta o sophon, que € o que verdadeiramente é, separado de tudo. E necessario descobri-lo, desvela-lo, e isso é precisamente a cAnOem, a verdade. Quando o homem a descobre, encontra os atributos do ente de Par- ménides. O homem, como coisa do mundo, esta sujeito ao devir, mas pos- sui esse algo comum, sobretudo se tem a alma seca, e ent4o tende ao sophén, ao divino. Nao € sophén — isso equivaleria a tornar-se Deus —, mas t4o-somente fildsofo. O homem volta a deparar, como em Parmé- nides, com o dilema anterior, com a antinomia entre seu ser perecivel (as opinides dos mortais, o “tudo flui”) e seu ser eterno e imortal (0 én e o nots, o sophon). Vemos, pois, qual o sentido mais geral da filosofia de Herdclito. E uma tentativa de interpretar o movimento, radicali- zando-o, transformando tudo em mutac4o continua, mas tomando o cuidado de distingui-lo do cogév separado de tudo. O ser fica separa- do de todo movimento e de toda multiplicidade. Estamos no ambito da metafisica de Parménides. b) Empédocles Vida + Era de Agrigento (Sicilia), na Magna Grécia. Ocupava uma posi¢do preeminente, mas nao se contentava em ser rei; queria ser Deus. Alguns o consideravam um semideus; outros, um charlatao. Percor- ria toda a Sicilia e o Peloponeso ensinando e realizando tratamentos e curas, € muitos o veneravam. Conta uma tradic¢ao que, para ter um fim digno de sua divindade, atirou-se no Etna. Outra tradicao diz que foi levado ao céu, como Elias. E mais provavel que tenha morrido no Pe- 32 —— OS PRE-SOCRATICOS loponeso. Foi uma figura extraordinariamente viva € interessante. creveu dois poemas: Da natureza e As purificagdes, imitaclos por Lucre cio, dos quais se conservam fragmentos. Encontramos neles idéias re- ligiosas, cosmolégicas, bioldgicas, de grande interesse, e, sobretudo, uma doutrina propriamente filoséfica. Cosmologia * Enumeremos simplesmente os pontos mais im- portantes. Segundo Empédocles, existem dois sdis: um auténtico, 0 fogo, e outro refletido, que € o que vernos. Tinham descoberto que a luz da lua é refletida, e o homem, como sempre, estendia sua desco- berta. A noite se produz pela interposi¢ao da terra entre o sol e 0 fogo. Empédocles descobre o verdadeiro sentido dos eclipses. As estrelas e os planetas eram fogo auténtico, nao refletido; as estrelas, fixas, e os planetas, livres. Pensou que a luz € algo que vai de um lugar a outro num tempo muito breve. Biologia * Os seres séo mortais, mas seus principios sao eternos. A primeira coisa a existir foram as arvores; Empédocles suspeitava va- gamente de que as plantas tivessem sexo. O calor era principalmente masculino. Segundo Empédocles, os seres vivos foram gerados por agregacao de membros soltos, ao acaso; depois sobreviveram os que estavam corretamente organizados. Acreditava na transmigracdo das almas e disse de si mesmo: “Em outro tempo fui homem e mulher, um arbusto e uma ave, e um peixe mudo no mar.” Tem também uma interessante doutrina da percepga4o. Ha uma determinada adequacao entre a sensacdo e o tamanho dos poros: por isso os érgaos dos dife- rentes sentidos variam. As coisas séo reconhecidas por seus seme- Ihantes: 0 fogo, caso haja em mim o fogo, e da mesma forma a agua e as demais coisas. As quatro raizes * Examinemos a questao central de Empédo- cles, o problema do ser das coisas. E preciso articular o ser imovel com a cambiante multiplicidade das coisas. Empédocles quer resolver esse problema por meio dos quatro elementos: ar, fogo, agua e terra. Ea primeira vez que aparecem formalmente os quatro elementos tra- dicionais. Sobre eles Empédocles dir que sao as raizes ele todas as coi- sas, piGapota né&vteov. Esses elementos sao opostos — neles ha a con- trariedade do seco e do timido, do frio e do quente. Essas raizes sao 33 HISTORIA DA FILOSOFIA eternas; ao afirmar isso, Empédocles se apdia em Parménides, mas com uma diferenca: 0 ente de Parménides era uma esfera homogénea e ndo podia mudar; para Empédocles, também é uma esfera, mas nao homo- génea, e sim uma mescla. Todos os corpos se compodem da agregacao de substancias elementares. O amor e 0 dio * Para explicar o movimento, ou seja, que a partir das quatro raizes se engendrem e perecam todas as coisas, Em- pédocles introduz outros dois principios: gihia Kai veikog (amor € 6dio). O ddio separa os distintos elementos, e o amor tende a junta- los; ai j4 temos um movimento. Em certo sentido, € o ddio que junta, porque a unido se da quando os elementos ficaram livres, unidos en- tre si os semelhantes. O auténtico amor é a atracao do clessemelhante. No movimento do mundo ha quatro periodos: 1° A esfera mesclada. 2° O dédio, que da inicio a separacdo. 3° O dominio do neikos; o édio ja separou tudo. 4° Retorna a philia (o amor) e as coisas comecam a se unir de novo. E um ciclo que se repete. Formam-se entdo coisas unidas de ma- neiras muito variadas — ledes com cabeca de asno etc. -. clas quais so sobrevivem e perduram as que tém um Idgos, uma ratio, uma estrutu- ra interna que lhes permita continuar sendo. Dessa forma se sucedem varios ciclos em que as coisas vao mudando, pela agao do amor e do ddio, e as quatro raizes se mantém invariaveis e eternas. E voltamos de novo ao ser e ao nao-ser, ao cosmos que nao é verdadeiramente e ao ser, que verdadeiramente é. Introduz-se a multiplicidade no ente de Parménides, dividindo-o em quatro; mas com isso ainda nao se expli- cao movimento do ponto de vista do ser. A ontologia do movimento, a [isica como filosofia, continua sendo impossivel. c) Anaxagoras Vida * Era de Clazomena (Asia Menor). Viveu no século V. Era também de familia nobre e destinado a mandar. Renunciou a isso para se dedicar a uma vida leorética. Anaxagoras foi considerado o homern que levou essa vida de modo exemplar. Aparece por um lado vincula- 34 Os PRE-SOCRATICOS do a Empédocles como dois importantes physici recentiores. Mas, pot oluro, tem um vinculo de outro tipo com a sofistica ¢ concretamente com Protagoras. Ambos foram mestres de Péricles. Anaxagoras loi o primeiro filosofo de Atenas, embora nao fosse natural da cidade. Nao teve muito sucesso ali. Na época, os atenienses nao eram muito tole- rantes e nao havia grande hberdade de pensamento: Péricles queria jonicizar Atenas e torna-la mais aberta; talvez influenciado por Aspa- sia, Os atenienses zombavam ce Anaxagoras e chamavam-no Noiis. Depois o acusaram, nao se sabe bem de qué; tampouco se sabe ao cer- lo a que o condenaram: ha relatos divergentes sobre tudo isso. Parece que Péricles o libertou, mas nao péde permanecer em Atenas e foi para Lampsaco, onde o receberam muito bem. Anaxagoras exerceu forte influéncia sobre a vida ateniense, e € a partir dele que Atenas se trans- forma na principal cidade filoséfica da Grécia. Depois de ter-se difun- dido pelo Onente e pelo Ocidente, pela Asia Menor e pela Magna Grécia, a filosofia passa a se situar principalmente, de modo tardio, na Grécia propriamente dita, que vird a ser seu centro. A influéncia de Anaxagoras nao foi extrinseca a seu pensamento, e esteve intimamen- te vinculada a sua filosofia. As homeomerias * Para Anaxagoras os elementos nao séo qua- tro, e sim infinitos. Ha de tudo em tudo. Chama de homeomerias (oporopepy) as partes homogéneas, particulas pequenissimas de que estdo feitas as coisas. Se tomamos uma coisa qualquer e a dividimos, nunca chegaremos, diz Anaxagoras, as raizes de Empédocles; 0 que existe sao homeomerias. Na menor parte de cada coisa existern partes pequenissimas de todas as demais, chama isso de navonepyia, pans- permia, exisur em tudo as sementes de tudo. Como se explica entao a formacado das diversas coisas? Por unido e separacdo das homeomerias. Assistimos a um passo a mais na divi- sao do ente de Parménides: primeiro colocam-no em relacao com o fogo que se move e muda (Herdchto); depois dividem-no nas quatro raizes de Empédocles, para explicar o mundo e o movimento partin- do delas; agora Anaxagoras o fragmenta nas homeomerias; e nao é a ultima etapa. As propriedades do ente se conservam, e 9 movimento se explica por uniao e separacao. 35 HISTORIA DA FILOSOFIA As coisas sao diferentes porque as homeomerias se agrupam de diversas formas, segundo a posicao que ocupam. Anaxagoras desco- bre a importancia da forma, do eidos, da disposigao das coisas, Leva- da a vida ateniense, ao teatro, esta descoberta de Anaxagoras € a pers- pectiva. O século V ateniense esta voltado para o eidos, para a plastica: um século de espectadores. O “noiis” » A causa do movimento € 0 nois. Para Anaxagoras, provavelmente, o notis é uma matéria mais sutil que as demais, mas nao espiritual; a nocao de espirito é alheia ao pensamento daquela épo- ca. No nofis nao se encontram as outras coisas, mas algumas delas — as animadas — tém nods, Este, portanto, carece de mescla. Anaxagoras alcangou essa doutrina do vodg por meio de consi- deragées astronémicas; é 0 principio que rege 0 universo, e aparece vinculado a origem do monoteismo grego®. A doutrina de Anaxagoras teve um alcance e uma dignidade que foram além do que seus pré- prios desenvolvimentos propunham. Platao e Aristoteles valorizavam muito a teoria do notis e criticavam Anaxdgoras por ter feito um uso mui- to restrito dela, quase que sé para explicar 0 movimento, sendo que 0 vovs prometia ser a explicacdo da origem do mundo. O nots anaxago- rico, separado da matéria ou pelo menos no limite dela, é, contudo, como que uma inteligéncia impessoal que, no entanto, ordena os movimen- tos cosmicos. O conhecimento, segundo Anaxagoras, tem certa limitacdo por- que as homeomerias nao sao acessiveis aos sentidos. Sua idéia da per- cepcao é contraria 4 de Empédocles: conhecem-se as coisas por seus contrarios. Sao estas as duas teses opostas que se contrapoem nessa época. d) Democrito Os atomistas * Sao os tultimos pré-socraticos. Cronologicamente chegam quase a coincidir com Sécrates, mas continuam filiados a tra- digéo preocupada com a godotc, e sobretudo com a linha da filosofia 3. Cf. W. Dilthev: Introduccion a las ciencias del espiritu (trad. de J. Maras. Revista de Occidente), pp. 171-81 36 Os PRE-SOCRATICOS eleatica. Os dois principais atomistas foram Leucipo e Democrito, Os dois, pelo menos o segundo, eram de Abdera (Tracia). De Leucipo quase nada se sabe de especial. Em termos fundamentais, sua douui na coincidia com a de Democrito. Este foi uma grande figura intelec- tual da Grécia, grande viajante ¢ escritor. De suas obras, como das dos demais pré-socraticos, restam apenas fragmentos. lremos nos relerir, portanto, principalmente a Demécrito. Os atomos * Os atomistas realizam a tiltima divisao do ente de Parménides. Chegam aos atomos (pio1g); ou seja, 4s partes insecd- veis, indivisiveis, que nao podem mais ser particlas. Esses atomos dis- unguem-se entre si exclusivamente por terem formas distintas, e de- las dependem suas propriedades. Movem-se em torvelinho e se engas- tam de diversas formas, produzinclo assim as coisas. Existem muitos mundos, uns em formacdo, outros em destruigdo, outros em existén- cia atual. As propriedades baseiam-se na forma e também na sutileza dos atomos. E cada um deles conserva os atributos fundamentais do ente cle Parménides, que aparece, por assim dizer, pulverizado. Materialismo * E a primeira tentativa formal de elaborar um materialismo. Tudo, inclusive a alma, esta composto de atomos. Apa- rece aqui a interpretacdo material do ente. Por isso 0 movimento sera antes de tudo movimento local (pop&). Coloca-se entao para os ato- mistas 0 problema do lugar, do t6m0¢ onde tém de estar os Alomos, E, com efeito, dirao que est4o no vazio. Isso € de grande importancia. O vazio era, tradicionalmente, o nao-ser. Mas este ndo-ser é necessa- rio para os atomos. Demécrito faz algo muito original: da um certo ser a0 vazio, ¢€ este se torna espaco. Nao é 0 absoluto nao-ser (00K 6v), mas um ndo-ser relativo (uj Sv), em comparacdo com o cheio, com os Atomos, e € 0 ser espacial. O problema do ser e do ndo-ser € mitiga- do, mas no resolvido, na forma atomos-espaco. E a ultima tentativa de solugdo dentro da idéia parmenideana do ente. O conhecimento * Segundo Democrito, a percep¢ao se realiza do seguinte modo: as coisas emitem uma espécie de espectros ou ima- gens sutis (€18@).«), compostos de 4tomos mais finos, que penetram nos Orgaos dos sentidos. Assim, a mente recebe uma copia ou réplica da coisa, e nisso consiste o conhecimento; trata-se, portanto, de uma doutrina sensualista. 37 HISTORIA DA FIILOSOFIA As idéias morais de Democrito ja comecam a clesenhar a figura do “sabia”, do oogic: imperturbabilidade, serenidade, autodominio’. Ainda é fisica, cosmologia, especulacao sohre o céu, o mundo e o mo- vimento das coisas, em contraste com o ser imével; mas agora ja en- tramos em Socrates. 4. Sobre a idéia de serenidade, ver meu estudo “Ataraxia y alcionismo” (em El ofi- cio det pensamiento, 1958). [Obras, VI.] 38 II. A SOFISTICA E SOCRATES A partir do século V comega_uma nova fase da filosofia na Gré- cia, Esse periodo caracteriza-se essencialmente pela volta do homem para si mesmo. A preocupagao com 0 mundo segue-se a preocupacao com_o homem. Esta nao estivera ausente anteriormente; vimos a idéia da vida teorética, a doutrina da imortalidade ou da transmigracdo etc. Mas agora o homem se da conta de que é preciso indagar quem ele é Nisso interferiram algumas razdes extrinsecas 4 filosofia: o predomi- mo de Atenas depois das guerras médicas, o triunfo da democracia etc. Aparece em primeiro plano a figura do homem que fala bem, do cida- dao, e o interesse do ateniense volta-se para_a realidade politica, civil e, portanto, para o proprio homem. : A Grécia muda consideravelmente de estilo. O cidadao perfeito, o TOA TNGS, substitui o ideal antigo do KaAoKd:yo06G, do homem com- me il faut, belo de corpo e com dotes notaveis, talvez o que chamaria- mos em espanhol de “una bella persona”. No centro do pensamento grego nao esta mais a otong, € sim a evomovica, a felicidade, no sen- tido de desenvolvimento da esséncia da pessoa. E, como representa cdo eminente desse tempo, aparece o solista. 1. Os sofistas O movimento sofistico aparece na Grécia no século V. Os sofistas tém certa afinicdade com Anaxagoras, no momento em que a filosofia ira comecar a exercer influéncia na vida ateniense. Mas apresentam di- ferencas essenciais. Distinguem externamente por algumas caracte- 39 HISTORIA DA FILOSOFIA tisticas: sao professores ambulantes, que vao de cidade em cidade, ensinando os jovens; lecionam por dinheiro, mediante uma retribui- ¢do, caso novo na Grécia e que surpreendeu bastante. Tinham grande brilhantismo e éxito social; eram oradores ¢ retoricos e, fundamental- mente, pedagogos. Pretendiam saber e ensinar tudo, e certamente qual- quer coisa seu contrario, tese e antitese. Tiveram forte influéncia na vida grega e foram personagens importantes; alguns, de grande inteli- géncia. Mas 0 mais sério, aquilo pelo qual nos interessam aqui, sdo as interferéncias da sofistica na filosofia. A palavra sofista deriva do mesmo vocabulo sofia, sabedoria. Fi- léstrato diz que a sofistica fala a respeito das mesmas coisas que aque- les que filosofam. E Aristoteles diz: “A sofistica € uma sabedoria apa- Tente, mas que nao 0 €, € 0 sofista, o que faz uso da sabecloria aparen- te, mas que nao o €.” Nestas brevissimas citacées fica caracterizado o problema da sofistica: fala de temas filoséficos, e parece uma sabedo- ria, mas nao é. O sofista parece filésofo, mas nao é; € um homem es- tranhissimo, diz Platao, cujo ser consiste em nao ser. Note-se que isso nao quer dizer que ndo seja fildsofo; isso € algo que também acontece com o carpinteiro; mas este nao consiste em nao ser fildsofo, ¢ sim em ser carpinteiro, ao passo que o ser sofista consiste em aparentar ser fi- ldsofo e nao sé-lo. Temos dois problemas: 1) a filosofia que possa ha- ver na sofistica; 2) o problema filoséfico da realidade do sofista. A sofistica coloca mais uma vez o problema do ser e do nao-ser, mas a propésito de si mesma e, portanto, do homem. A idéia que a aristocracia tinha de o que o homem deve ser transformara-se na Gré- cia. Em vez de ser o homem bem constituido e bem dotado, bom guerreiro, por exemplo, é 0 sabio, o homem que tem nofis e sabe o que deve ser feito e deve ser dito, o bom cidadao. Quando isso se ge- neraliza na Grécia, como cada homem tem notis e este €é comum, 0 re- sultado € uma democracia. Esse nots e o falar em conformidade com ele séo o que importa. Foi, portanto, a filosofia que tornou possivel essa situacao e, portanto, a propria sofistica. A _sofistica move-se num ambito retorico. Trata-se cde dizer as coisas de modo que convengam, de dizer bem (ev.déyewv). Nao importa a verdade, e por isso é uma falsa filosofia. Diante disso, Sécrates e Pla- tao reivindicarao o bem pensar, ou seja, a verdade. 40 A SOFISTICA F SOCRAELS Ademais, é algo publico, dirigido ao cidadao; tem, portanio, uma clara tendéncia politica. F, por dltimo, é uma puideta, uma pedagogia, a primeira a propriamente existir. A dimensao positiva da sofistica e sua justificagao historica con- sistem, ante uma filosofia construida a partir do ente e que abandona as coisas — eleatismo —, na exigéncia de filosofar a partir das coisas e explicar a razdo delas. O importante foi o fato de os sofistas proclama- rem a inconsisténcia das coisas e abandonarem o ponto de vista do ser e da verdade, que viria a ser recuperado — sem deixar de fazer justica a exigéncia sofistica — por Sécrates e Platao, que terao de se indagar sobre 0 que as co1sas sao ou, dito de outra forma, sobre a consisténcia das coisas. Houve muitos sofistas importantes. Conhecemos varios deles de modo vivo e penetrante pelos didlogos de Platao. O que interessa de- les sao menos os detalhes de sua atuacdo e suas idéias do que o signi- ficado geral do movimento. Os de maior importancia foram Hipias, Prédico, Eutidemo e, sobretudo, Protagoras e Gorgias. Protagoras * Era de Abdera, assim como Democrito. Teve gran- de influéncia em Atenas no tempo de Péricles. Ocupou-se de grama- tica e da linguagem, foi um grande retérico e demonstrou certo ceti- cismo quanto 4 possibilidade do conhecimento, especialmente dos deuses. Mas sua fama decorre sobretudo de uma frase sua, transmiti- da por varios filésofos posteriores, que diz: “O_ homem é a medida de todas as coisas: das que sao, enquanto sao, e das que nao sao, en- quanto nao sao.” Esta frase foi objeto de numerosas interpretacées, que vao do relativismo ao subjetivismo. Nao podemos entrar nesse tema. Basta indicar que, segundo Aristoteles, seria preciso primeiro saber se se refere ao homem como sujeito de ciéncia ou de sensacdo, ou seja, se se refere ao ponto de vista da verdade ou simplesmente ao da doxa. Protagoras nao fala do én, mas das coisas na medida em que se opdem a ele (xprnucta), as coisas que se usam, os bens méveis, ¢ dai vem o sentido do dinheiro (crematistica). Trata-se, pois, do mun- do da doxa, e portanto a frase est4 inserida no ambito das idéias de Parménides. A doxa € “opiniao dos mortais”, “nomes que os homens Roem nas coisas”, convenc¢ao. 4) HISTORIA DA FILOSOFIA Gorgias * Gorgias era de Leontinos, na Sicilia. Foi um dos gran- des oradores gregos. Escreveu um livro intitulado Do ndo-ser, em que aparece mais wma vez a clara dependéncia do eleatismo. Mostrava as dificuldades de sua doutrina do ente, afirmando que nao existe ne- nhum ente, que se existisse nao seria cognoscivel para o homem, e€ que se fosse cognoscive! nao seria comunicavel. Com os sofistas che- ga-se portanto a uma Ultima dissolugao da dialética do ser e do nao ser de Parménides. A filosofia perde-se na retérica e na renuncia a verdade. Para recolocar de modo eficaz o problema metafisico sera preciso formula-lo sobre novas bases. E o que Socrates ira iniciar e exigir e o que irdo realizar Platao e Aristoteles, sobretudo. 2. Socrates A figura de Socrates + Sécrates ocupa a segunda metade do sé- culo V ateniense; morreu aos 70 anos, em 399, no inicio do século lV, que viria a ser o de maxima plenitude filosofica na Grécia. Era filho de um escultor e de uma parteira, e dizia que sua arte era, como a de sua mde, uma maiéulica, a arte de fazer dar a luz na verdade. Sécrates é uma das personalidades mais interessantes € inquietantes de toda a historia grega; apaixonou seus contemporaneos a tal ponto que isso The custou a vicla, e seu papel na vida da Grécia e na filosofia nao ca- rece de mistério. Sécrates teve uma atuacdo digna e valente como ci- dadao e soldado; mas, sobretudo, foi o homem da agora, o homem da rua e da praca, que fala e inquieta toda a Atenas. No comeco, Socra- les parecia ser apenas mais um sofista; foi somente mais tarde que se percebeu que nao o era, muito pelo contrario, que tinha vindo ao mundo justamente para superar a sofistica e restabelecer 0 sentido da verdade no pensamento grego. Rapidamente reuniu-se a sua volta um nucleo de discipulos atentos e entusiastas; o melhor da juventude ate- niense, e também de outras cidades da Grécia, tinha a atencao fixa nas palavras de Socrates; Alcibiades, Xenofonte, sobretudo Platao, contam- se entre seus apaixonacos ouvintes. Socrates afirmava a presenca junto dele de um génio ou demonio (cipow) familiar, cuja voz o aconselhava nos momentos cruciais de be 5 A SOFSTICA E SOCRAT S. sua vida. Esse daimon nunca o incitava a agir, na verdade, cm certas ocasides, detinha-o e desviava uma acao. Era uma inspiragto titinia, que as vezes foi interprctada como algo divino, como uma voz da Di- vindade. A acao socratica era exasperante. Um oraculo tinha dito que nin- guém era mais sabio que Sdcrates; este, modestamente, pretende de- monstrar o contrario. Para isso vai perguntar a seus concidadaos, pe- las ruas e pracas, quais sao as coisas que ele ignora; é essa a ironia so- crdtica. O governante, o sapateiro, o militar, a cortesd, o sofista, todos sdo alvo de suas perguntas. Que € 0 valor, que é a justica, que ¢ a ami- zade, que € a ciéncia? Acontece que eles tampouco sabem; nem se- quer tém, como Socrates, consciéncia de sua ignorancia, e, no fim, constata-se que 0 oraculo tinha razdo. Trata-se de algo extremamente incémodo para os interrogados, e esse mal-estar vai-se condensando em 6dio, que termina numa acusacdo contra Sécrates “por introduzir novos deuses € corrompera juventude”, um processo absurdo, toma- do por Socrates com serenidade e ironia, e uma sentenca de morte, aceila_serenamente por Sécrates, que bebe a cicuta em meio a uma profunda conversacao sobre a imortalidade com seus discipulos, sem querer faltar as leis injustas com a fuga que lhe propdem e garantem seus amigos. O saber socratico * Qual o sentido disso? Como pergunta S6- crates, e por que nao conseguem lhe responder? A principal opesicao de Socrates dirige-se contra os sofistas: seus maiores esforcos tenclem a demonstrar a inanidade de sua pretensa ciéncia; por isso, ante os re- toricos discursos dos sofistas coloca seu didlogo entrecortado de per- guntas e respostas. Se nos perguntarmos qual é, em suma, a contribui- cao socratica para a filosofia, encontraremos uma passagem de Arist- teles em que ele diz categoricamente que lhe devemos duas coisas: “os _raciocimios indutivos e a definicao universal”; e Aristoteles acres- centa que ambas as coisas referem-se ao principio da ciéncia. Quando Socrates pergunta, pergunta o que ¢, por exemplo, a justica, pede uma definigdo. Definir é pdr limites numa coisa e, portanto, dizer o que algo é, sua esséncia. A definicao nos conduz a esséncia, ¢ ao saber en- tendido como um simples discernir ou distinguir segue-se, por exi- 43 HISTORIA DA FILOSOFIA géncia de Sécrates, um novo saber, entendido como definir, que nos leva a dizer 0 que as coisas sao, a descobrir sua esséncia (Zubiri). Dis- so decorre toda a fecundidade do pensamento socratico, voltado para averdade, novamente centrado no ponto desvista- dest, dy qual s0- fistica tinha se afastado. Em Socrates trata-se de dizer verdadeiramen- te o que as coisas sao. E por esse caminho da essénciadefinida se che- ga a teoria platénica das idéias. A ética socratica * A principal preocupagao de Socrates é 0 ho- mem, nao é algo novo, pois ja vimos que € proprio dos sofistas e de toda a época; mas Socrates considera o homem de um outro ponto de vista: 0 da interioridade. “Conhece-te a ti mesmo” (yv@6t Geov76v), diz Socrates; traz a tona tt tua interioridade. E isso introduz um sentido novo na Grécia, um. sentido de reflexividade, de critica, de maturida- de, que enriquece o homem grego, mesmo que isso The custe perder algo do impulso ingénuo e animoso com que tinham sido vividos os primeiros séculos da histéria grega. Nesse sentido, embora nao se pos- sa falar de corrupgao, é certo que Sécrates alterou de maneira decisiva © espirito da juventude ateniense. (Vide Ortega: Espiritu de la letra.) Qcentro da ética socratica € o conceito de areté, virtude. E virtu- de num sentido distinto do usual, e que se aproxima mais daquele que tem a palavra quando se fala das virtudes das plantas ou de um virtuoso do violino. A virtude é a disposicao ultima e radical do ho- mem, aquilo para o ‘qual n: nasceu asceu propriamente F essa virtude é cién- cia. Q homem mau o é por ignorancia; aquele que nao segue o bem é porque nao o conhece, por isso a virtude pode ser ensinada (ética in- telectualis:a), ¢ o necessario € que cada qual conheca sua areté. E esse o sentido do imperativo socratico: conhece-te a ti mesmo. Por isso € um imperativo moral, para que o homem tome posse de si mesmo, seja dono de si, pelo saber. Assim como da definico socratica emerge] ) o problema da esséncia e com ele toda a metafisica de Platao e de Aristoteles, da moral de Sécrates nascem todas as escolas éticas qu povoardo a Grécia e o Império Romano a partir de entao: primeiro, of cinicos e cirenaicos; depois, sobretudo, os epicuristas e os estdicos, |_ Toda a filosofia grega desde 0 inicio do século IV tem uma raiz em S6- crates, 0 que nele esta apenas indicado ou esbocado teve de se reali- zar em sua fecunda tradicao. 44 A SOFISTICA E SOCRATES Socrates deu uma contribuigéo doutrinal modesia para a filoso- fia. Nao foi provavelmente homem cle muitas ¢ profundas idéias me- tafisicas, como viriam a sé-lo em seguida Platéo ¢ Aristoteles, Seu pa- pel fol prepara-l foi_prepara- las ¢ torna-las possiveis, situando a filosofia pela se- gunda vez na via da verdade, na unica que ela pode seguir ¢ da qual fora desviada pela retérica sofistica, pela aparente sahedoria do bem dizer, incapaz de ser outra coisa a nao ser opinido. A transmissao do pensamento socratico * Sdcrates nunca es- creveu nada. Nao nos deixou nenhuma pagina, nenhuma linha pro- pria. Conhecemos seu pensamento por meio de outros filésofos, espe- cialmente de seus discipulos. Xenofonte escreveu as Memoraveis, dedi- cadas as lembrancas de seu mestre; também um Symposion ou Banque- te e uma Apologia de Sdcrates. Mas foi sobretudo Platao que conservou o pensamento e a figura viva de um Socrates que, por certo, difere bas- tante do de Xenofonte. O Socrates platénico € incomparavelmente mais rico, profundo e atraente que o de Xenofonte. Mas como Platao faz de Sdcrates o personagem principal de seus didlogos e pée em sua boca sua prépria filosofia, as vezes fica dificil determinar onde termina o auténtico pensamento socratico e onde comeca a filosofia original de Platao, Contudo, a questao é clara na maioria dos casos. Outra fonte de informacao sobre Sécrates, indireta mas nem por isso menos valio- sa, é Aristoteles. A genial penetracéo aristotélica toma inapreciaveis to- das as suas indicacées; e, afora isso, a convivéncia de vinte anos com Platao deve ter dado a Aristoteles uma grande (familiaridade com o pensamento de Socrates. Esta terceira fonte é de especial valor para de- cidir os limites entre as doutrinas socraticas e as do proprio Platao. E tem um valor quase simbolico o fato de que a doutrina de Socrates se encontre fora dele, como a grande fecundidade de sua filosofia'. 1. Nao se deve esquecer o enorme valor historico da imagem de Sécrates — desfigu- rada e hostil, mas reflexo de uma atitude social ateniense — em As nuvens, de Aristofanes. 45 III. PLATAO Vida ° Platéo nasceu_em Atenas no ano de 427 e morreu, na plenitude de sua vida intelectual, em 347. Pertencia a uma familia nobre ¢€ antiga, cujas origens supostamente remontavam a Codro e Sélon. Seu_nascimento e sua vocacao_pessoal chamavam-no_para a politica, mas a atracai o levou_a_se dedicar a filosofia. Depois de duas tentativas de intervencdo na vida publica ateniense, a morte de Sécrates o afastou totalmente dela; restou-lhe apenas o inte- resse pelos temas politicos. o que fez com que atribuisse um lugar tao central em seu sistema a teoria do Estado ou tentasse por varias vezes, embora com graves riscos, que seu discipulo Dion, cunhado do tira- no Dionisio de Siracusa, realizasse, durante o reinado deste e o de seu sobrinho Dionisio, o jovem, o ideal do Estado platonico. Esses proje- tos se frustraram, e a atividade de Platao se restringiu a sua genial me- ditacao filosdfica, a seu grande trabalho de escritor e ao ensino vivo na escola de filosofia que fundou, por volta de 387, numa proprieda- de com bosques, préxima do Cefiso, no caminho de Eléusis, dedica- da ao herdi Academo,e que por isso se chamou Academia. Esta esco- la perdurou, ainda que com profundas alteragdes, até o ano de 529 de nossa era, quando o imperador Justiniano mandou fecha-la. Ali Pla- ldo exerceu seu magistério até a morte, em estreita e profunda colabo- racdo com seu principal discipulo, Aristételes. Escritos + A obra de Platéo chegou até nés quase completa. E, com a obra aristotélica, o mais importante da filosofia ¢ de toda a cul- tura grega, Afora isso, seu valor literario talvez seja o mais elevado de tode o mundo helénico e lhe permite encontrar as express6es € as 47 HISTORIA DA FILOSOFIA metaforas justas para exprimir um novo modo de pensar. A contri- buigao platénica para a formacao da linguagem filosdfica é incalcula- vel. Para “expressar seu pensamento, Platao escolheu como género |i- terario o didlogo, que tem uma profunda relagao com sua doutrina da dialética como método filosdfico, e muitos deles so de impressionan- te beleza poética. O personagem principal _¢ sempre Sdcrates, que car- rega © peso da discussao. Os didlogos de juventude, Apologia, Criton, Eutifron, estao fortemente tingidos de socratismo. Entre as obras da ma- turidade, as mais importantes sdo Protdgoras, Gorgias, Eutidemo (sobre os sofistas), Fédon, sobre a imortalidade da alma; Symposion ou Ban- quete, sobre o amor; Fedro, onde se encontra a teoria da alma, e a Re- publica, sobre a justica e a idéia do Estado. Por ultimo, Teeteto, Parmé- nides - talvez o mais importante dos escritos platénicos —, Sofista e Po- litico, e nos anos da velhice, Timeu, onde estado as referéncias a Aulan- tida, Filebo, e uma obra consideravel, a mais extensa em volume, que contém uma segunda exposicao da teoria do Estado, e na qual nao aparece Socrates: as Leis. A autenticidade de alguns escritos platoni- cos, particularmente de algumas de suas cartas — algumas delas, como a VII, t@m suma importancia —, suscitou sérias duvidas e problemas. O pensamento de Platao revela uma evolucdo que parte da dou- trina de Socrates, chega a sua genial descoberta das idéias e culmina na discussao das clificuldades e problemas que as id¢ias colocam, em dia- logo com Aristételes. Nao podemos seguir aqui todo o caminho da metafisica platonica, e nos limitaremos a expor as linhas mais vivas e fecundas da filosofia da maturidade, que contém todo o problema que veio a por em movimento a histéria posterior do pensamento grego'. 1. As idéias A descoberta * Qual o problema com que Platéo tem de se ha- ver? Com o mesmo problema que a metafisica grega vinha levantan- do desde Parménides: com o problema do ser e clo nao-ser. Durante 1. Uma consideracao genética do platonismo dentro da filosofia e da historia gre- ga se encontra em minha jé citada Biografia de Iu filosofia. 48 PLATAO. mais de um século, a filosofia helénica hutara para resolver a aporia de lornar compativel o ente ~ uno, imovel ¢ eterno — com as coisas — mul- tiplas, variaveis, pereciveis. Vimos que a filosotia pré-socralica poste- rior a Parménides se constituira em uma série de tentativas de solugdo desse problema central, que a rigor nao ultrapassam a area intelectual em que o proprio Parménides as tinha formulado. Platao, em contra- partida, da a questéo uma orientagdo decisiva: da um passo para a frente, té0 novo e genial que arrasta ele mesmo, e desde entao tera de trabalhar arduamente em torno de seu proprio achado, de sua doutri- na, que se transforma para ele no problema mais sério. Platéo desco- bre nada menos que a idéia. Que quer dizer isso? Platao busca o ser das coisas. Mas essa busca tropeca em varias diticuldades de diversas indoles, que o empurram, de modo coinci- dente, pata uma solucdo radical e aparentemente paradoxal. Em pri- meiro lugar. Platao descobre que as coisas, propriamente, nao $40; Se ev considero, por exemplo, uma folha de papel branco, verifico que a rigor nao é branca; ou seja, nao é totalmente branca, mas tem um pou- co de cinza ou de amarelo; é somente quase branca; o mesmo ocorre com sua suposta retangularidade: nem seus lados sao total e absoluta- mente retos, nem sdo retos seus angulos. Ha mais ainda: esta folha de papel nao existiu desde sempre, so ha algum tempo; e daqui a alguns anos tampouco existira. Portanto, é branca e nao-branca, é retangular e nao-retangular, é e ndo é; ou — 0 que da na mesma — nao € plenae verdadeiramente. Mas, se agora, em segundo lugar, nos detivermos no outro aspec- to da questao, verificaremos que — embora a rigor nao seja branca — a folha de papel é quase branca. Que quer dizer isso? Ao dizer de algo que é quase branco, negamos-lhe a absoluta brancura em comparagao com o que é branco sem restri¢déo; ou seja, para ver que uma coisa nao é verdadeiramente branca, preciso saber 0 que € branco; mas como ne- nhuma coisa visfvel — nem a neve, nem a nuvem, nem a espuma — € absolutamente branca, isso me remete a alguma realidade distinta de qualquer coisa concreta, que seré a total brancura. Em outras palavras, o ser quase branco de muitas coisas requer a existéncia do verdadeira- mente branco, que nao é coisa alguma, que esta fora das coisas. E a esse ser-verdadeiro. distinto das coisas, que Platao chama de idéia. 49 HISTORIA DA FILOSOFIA Em terceiro lugar, esse problema adquire sua maior agucleza se livermos presente o ponto de partica de Platéo em relacdo ao conhe- cimento. Platéo move-se no horizonte do pensamento socratico; no entanto, Socrates — que, a rigor, nao faz uma metafisica, mas estabele- ce o ponto de vista da verdade em filosofia — pretende conhecer 0 que sda as coisas; isto é, busca as definicdes. Enquanto Parménides se move no ambito do ser e procura discernir o que é de verdade do que é /mera aparéncia, Sdcrates tenta dizer o que (ti) € aquilo que é, ou seja, { definir, descobrir e fixar as esséncias das coisas. E precisamente ves {ponto que Platao inicia sua filosofia. ‘ Pois bem, uma definicao é, desde ja, uma predicacdo de forma A é B. Nela deparo com um problema de unidade e multiplicidade. Quando digo “o homem é um animal! que fala”, identifico o animal com o homem, digo que duas coisas sao uma, que A € B. O que torna pos- sivel que eu faca uma predicacdo veridica? Reparemos que ao dizer A é B, A funciona duas vezes: primeiro como sujeito, quando digo A; mas, em segundo lugar, quando digo que é€ B, nao estou sd em B, pois neste predicado esta incluido A: em outras palavras, nao se trata de mencionar primeiro A e depois B, sem outra conexao, e sim de que este Béoser Bde A, e, por conseguinte, A funciona duas vezes. O pres- suposto da predicacdo A é Bé que A é A; isto é, a identidade de A con- sigo mesmo, que por sua vez se desdobra nestes dois momentos: 1° que A é uno; 2° que A é permanente. Quando digo que o homem é um animal falante, é preciso que o homem seja univoco e que, ademais, ao referi-lo ao ser falante, conti- nue sendo homem. A definicao no sentido socratico e platonico parte } }do pressuposto da identidade e permanéncia clos entes, questao cer- J \tamente central. Quando quero dizer algo sobre o cavalo, constato antes de tudo que existem muitos cavalos; em segundo lugar, que os cavalos que agora encontro ndo sao permanentes: nem existiam faz cinqtienta anos nem existirao dentro de outros cingtenta; por ultimo, quando digo que um cavalo € preto, nao afirmo algo rigorosamente corteto, porque ele tem algo de branco ou de cinza; 0 cavalo perfeito, © cavalo sem mais nem menos, ndo existe. Pode-se dizer que quase | predicamos quase propriedades de yuuse cvisas. 50 PLATAG, Platdo, que se da conta disso - ¢ nisso consiste stat peratidade supde — e isso € o funclamental — que se trata de unt defeita da cava lo, porque este deveria ser um cavalo absoluto ¢ absoluiamente preto. Ante essa dificuldade, afasta-se clo cavalo concreto, que ¢ enw 6, que nao é por completo, para buscar o cavalo verdadeiro. Hf Platao tem de fazer duas coisas: encontrar o cavalo absoluto e a partir dele dar cou ta dos cavalos aproximados que galopam pelo mundo. Plata paric do mundo das coisas, que nao permitem predicagdes rigorosas, ¢ recorre ao mundo em _que estas se dao, que chama de mundo das idéias. Mas que se entende por idéias? O ser das idéias * A palavra “idéa” ou “eidos” (18éa, etd0g) quer dizer figura. aspecto: em suma, aquilo que se vé. Também € traduzida, em _certos contextos, por forma; assim, em Aristoteles aparece como sinonimo de morphé, e por outro lado equivale nele a espécie. (Em la- tim, species tem a mesma raiz que o verbo spicio, ver ou olhar, como ocorre com os vocdbulos gregos eidog ou 1Séa; entre as significagdes de species encontramos também a de beleza ou formosura, ¢ equivale, portanto, a forma, de onde vem formosus.) Idéia € 0 que vejo quando vejo algo. Quando vejo um homem, vejo-o propriamente ~ isto é, vejo-o como homem — porque ja tenho de antem4o a idéia de homem, por- que 0 vejo como participante dela; do mesmo modo, quando digo de um papel que nado > € totalmente branco, 0 | © que permite vé-lo como quase br branco €a €a idéia da brancura. Quando leio uma palavra escrita, vejo-a instantaneamente porque j4 possuo sua idéia; caso se trate de uma palavra de uma lingua totalmente estranha e desconhecida, nao a vejo diretamente e como tal, mas sé como um agregado de letras — cujas 1déias respectivas, em contrapartida, possuo; e se passo para um vocabulo escrito em caracteres que ignoro, a rigor nao vejo as le- tras, nem poderia reproduzi-las sem uma prévia reducdo, mediante um exame detalhado, a formas de tracos conhecidos. Um homem que }ndo saiba o que é ler — nao simplesmente que nao saiba ler — nao ve . \um livro porque carece de sua idéia. A ideia ¢. portanto. 0 pressupos- to do conhecimentg e da visdo das coisas como tais. A descoberta das idétas ja estava parcialmente prey preparada na filosofia anterior; recorde- mos primeiro a perspectiva, mechante a qual as homeomerias de Ana- 51 HISTORIA DA FILOSOFLA xagoras podiam adotar formas diversas variando sua posicdo; em se- gundo lugar, a definicdo socratica, que nao diz o que é cada coisa con- creta, mas todas as compreendidas nela; ou seja, a espécie. Mas ha uma grande distancia entre esses antecedentes e a doutrina platénica. © ser verdadeiro, que a filosofia vinha buscando desde Parméni- des, nao esta nas coisas, mas fora delas: nas idéias. Estas s4o, portan- to, ents metalisicos que encerram 0 verdadeiro ser das coisas: sao 0 que é autenticamente, o que Platao chama vtwg Ov. As idéias tém os atri- butos exigidos tradicionalmente do ente e que as coisas sensiveis nao podem possuir: sao unas, imutdveis, eternas, ndo tém mescla de nao- ser; ndo estao sujeitas ao movimento nem a corrup¢do; sao de modo absoluto e sem restric6es. O ser das coisas, esse ser subordinado e de- ficiente, baseia-se no das idéias de que as coisas participam. Platao inicia a_ciséo_da realidade em dois mundas: o das coisas sensiveis, que fica desqualificado, € 0 as idéias, que é o verdadeiro e pleno ser. ‘ Vemos, pois, a necessidade da idéia: 1° Para que eu possa conhe- cer as coisas como 0 que sao. 2° Para que as coisas, que sao € ndo sao — ou seja, nao sao de verdade —, possam ser. 3° Para explicar como é | possivel que as coisas cheguem a ser e deixem de ser ~ em geral, mo- vam-se ou mudem -, sem que isso contradiga os predicados tradicio- nais do ente. 4° Para tornar compativel a unidade do ente coma mul: ) i plicidade das coisas. O conhecimento * Ao se indagar sobre o ser das coisas, Platao de- para com algo bastante paradoxal: que essas coisas nao tém ser e, por- tanto, nao lhe servem para encontra-lo. Onde procura-lo, entao? O ser verdadeiro esta nas idéias, mas as idéias nao sao acessiveis a meu co- nhecimento direto, ndo estao no mundo. No entanto, como vimos, co- nhego-as de algum modo, tenho-as em mim, e por isso me permitem conhecer as coisas. Como isso € possivel? Para resolver essa questao, Platao recorre a um de seus procedimentos caracteristicos: conta um mito, {O mito de Fedro explica, simultaneamente, a origem do homem,\ {6 conhecimento das idéias e o método intelectual do platonismo. = 7 Segundo o famoso mito que Socrates conta a Fedro as margens do llisso, a alma, em sua situac4o origindria, pode ser comparada a um carro puxado por dois cavalos alados, um décil e de boa raga, 0 outro 52 —- PLALAG indocil (os instintos sensuais ¢ as paixdes), dirigido por tun cocheire (a razdo) que se esforca por conduzi-lo bem. fisse carro, nun lgar sit praceleste (t6m0g vmepovpévios), circula pelo mundo clas idetas, que a alma assim contempla, mas nao sem custo. As diliculdades para guiar a parelha de cavalos fazem com que a alma caia: os cavalos per- dem as asas, e a alma fica encarnada num corpo. Se a alma vittas idéias, por pouco que seja, esse corpo sera humano e ndo animal; conforme as tenham contemplado mais ou menos, as almas estéo numa hierar- quia de nove graus, que vai do fildsofo ao tirano. A origem do homem como tal €, portanto, a queda de uma alma de procedéncia celeste e que contemplou as idéias. Mas o homem encarnado néo as recorda. De suas asas restam t4o-somente cotos doloridos, que se excitam quan- do o homem vé as coisas, porque estas lhe fazem recordar as idéias, vistas na existéncia anterior. E este o método do conhecimento: 0 ho- mem parte das coisas, nao para ficar nelas, para encontrar nelas um ser que nao tém, mas para que lhe provoquem uma lembranca ou re- miniscéncia (andmnesis) das idéias em outro tempo contempladas. Conhecer, portanto, nao € ver o que esta fora, mas, ao contrario: re-' cordar o que esta dentro de nos. As coisas sao apenas um estimulo para nos afastarmos delas e nos elevarmos as idéias. As coisas, diz Platao com uma expressiva metafora, sao sombras das idéias. As sombras so signos das coisas e podem fazer com que eu as entenda. Os esfarrapados cotos das asas estremecem e querem vol- tar a brotar, sente-se uma inquietagdo, uma comich&o dolorosa: “a virtude das asas consiste em levantar as coisas pesadas para cima, ele- vando-as aos ares, até onde habita a linhagem dos deuses”, diz Platao. Este é, como veremos em detalhes, o sentido cognoscitivo do éros pla- tonico: o amor, partindo da contemplacdo das coisas belas, dos corpos belos, acaba por nos fazer recordar a propria idéia cla beleza e nos in- troduz no mundo ideal. O homem, que é para Platéo um ente caido, aparece, no entan- to, caracterizado por ter visto as idéias, o verdadeiro ser clas coisas: por participar da verdade; é isso o que o define. Um dos mais profun- dos argumentos usados por Platao para provar a imortalidade da alma € que esta, por conhecer a verdade, tera certa acdequacdo a ela; ja vi- 53 HISTORIA DA FILOSOFIA mos a vinculagao do ente com o nods em Parménides. Nesse argumen- to esta implicita toda uma metafisica, (Na filosofia atual, 0 problema da eternidade clas verdades foi suscitado de modo agudo — I lusserl e Heidegger. Contrapde-se a essa idéia a de uma vinculacao temporal das verdacles a existéncia humana. Mas esta é uma questéo surmamen- te complexa, na qual nao podemos entrar aqui.) 2. A estrutura da realidade O mito da caverna ¢ No livro VI] da Republica conta Platao um mito ce extraordinaria forca, em que representa simbolicamente a si- tuacaéo do homem em sua relacdo com a filosofia e, ao mesmo tempo, a estrutura da realidade. O curioso é que imediatamente antes, no fi- nal do livro VI, tinha exposto em forma de tese essa mesma doutrina sobre a realidade e os métodos para conhecé-la. Esse procedimento de Platao lembra, com uma essencial alteracdo da ordem, a técnica habitual de fazer compreender uma verdade mediante uma represen- tacdo poética que se esclarece e precisa de modo intelectual; mas essa inversao dos termos revela que nao se trata de um simples exemplo metaférico, mas que o mito agrega algo & explicacdo que o antecede. O contetdo do mito resume-se basicamente ao seguinte. Platao imagina alguns homens que desde pequenos se encontram numa ca- j verna provida de uma abertura por onde penetra a luz exterior; estéo presos de modo tal que nao podem se mover nem clhar, a nao ser para o fundo da caverna. Fora desta, nas costas desses homens, brilha 0 resplendor de um fogo aceso sobre uma saliéncia do terreno, e en- tre o fogo e os homens acorrentados ha um caminho com um peque- no muro; por esse caminho passam homens que levam todo tipo de objetos e estatuetas, mais altos que o muro, e os acorrentados véem as sombras dessas coisas, que se projetam sobre o fundo da caverna: quando os transeuntes falam, os acorrentados ouvem suas vozes como se procedessem das sombras que véem, para ¢les a unica realidade. Um dos acorrentados, livre de sua sujeicao, contempla a realidace ex- terior, a luz faz com que Ihe doam os olhos, e ele quase nao vé; o sol o deslumbra dolorosamente e 0 cega. Pouco a pouco tenta habituar- 54 ~~ a PLATAO, se; primeiro consegue ver as sombras; em seguica, as imagens das coi- sas, refletidas nas aguas; depois, as proprias cvisas, Veria o céu de nor- te, as estrelas e a lua; e ao amanhecer, a imagem refletida do sol, e, por ultimo, depois de um longo esforco (yopvacia) poderia contemplar o proprio sol. Entao sentiria que o mundo em que tinha vivido antes era irreal e desdenhavel; e se falasse a seus companheiros desse mun- do de sombras e dissesse que nao eram reais, eles ririam dele, e se tentasse salva-los e arrasta-los para o mundo real, o matariam. : O que esta simbolizado nesse mito? A caverna é 0 mundo sensi- vel, com suas sombras, que sao as coisas. O mundo exterior € o mun-: do verdadeiro, o mundo inteligivel ou das idéias. As coisas simbolizam as idéias; o sol, a idé1a do Bem. E possivel representar, seguindo as instrugdes do proprio Platao, a estrutura da realidade a que se refere o mito da caverna de modo grafico. O esquema dos dois mundos ¢ Platao distingue duas grandes regides do real, o mundo sensivel (das coisas) e o mundo inteligivel (das idéias), que simboliza em dois segmentos de uma reta. Cada uma destas cluas regides divide-se em duas partes, que indicam dois graus de realidade dentro de cada mundo; ha uma correspondéncia entre as primeiras e as segundas porcdes dos dois segmentos. Por ultimo, a cada uma das quatro formas de realidade corresponde uma via de co- nhecimento; as duas que pertencem ao mundo sensivel constituem a opiniao ou déxa; as do mundo inteligivel sao manifestagdes do nois. Nota-se, portanto, a ressonancia da doutrina de Parménides. Esque- maticamente, a realidade tem, portanto, esta estrutura: MUNDO SENSIVEL MUNDO INTELIGIVEL (Realidade aparente) (Realidade verdadeira) sombras coisas reais | objetos matematicos idéias conjetura crenga discurso visao noética dia nous 55 HISTORIA DA FILOSOFIA O sentido do mito * O mito da caverna, narrado por Platdo de- pois da apresentagao desse esquema, acrescenta-lhe algo. De modo concreto, simboliza ao mesmo tempo a estrutura ontoldgica do real e a significacdo da filosofia. Com isso introduz a unidade fundamental desses mundos. As duas grandes regides da realidade ficam unifica- das na realidade em virtude da intervengao do homem que se con- fronta com elas. O mundo visivel e o mundo inteligivel aparecem qua- lificados por sua referéncia a duas possibilidades humanas essenciais; o mundo total € um mundo duplo que se integra num s6 pela passa- gem do homem. (De outro ponto de vista, ha um segundo vinculo de unidade, que é o Bem, fundamento ontologico do ser de ambos os mundos.) Com o homem da caverna acontece algo que poce ser con- tado: é 0 relato em que consiste o mito. O tema do mito da caverna é, em sua dimensao mais profunda, a esséncia da filosofia, algo que, como vemos, mais se conta que se define. A filosofia nao pode propriamen- te ser definida; apesar de Platao ser o homem da definicdo, tem de ser contada ou narrada. Aquilo que acontece com 0 filésofo, o drama da filosofia, € 0 que a estrutura do real torna manifesto: € essa a dupla substancia do mito da caverna. Mas nao esquecamos que a viagem do homem do mito é de ida e volta: 0 acorrentado, uma vez tendo contemplado o mundo da luz e a liberdade, volta para a caverna. Isto é, vai explicar, a partir das coi- sas, as sombras, a partir das idéias, a realidade sensivel. Vemos aqui prefigurada a filosofia de Platéo, e a um s6 tempo notamas que fica inconclusa, porque Platéo tinha de voltar para a caverna para explicar a partir da teoria das idéias o ser das coisas, e a rigor, como veremos, nao o faz, porque fica no mundo inteligivel, deslumbrado e detido por seus problemas internos. E 0 tragico final do mito reflete a forma | como a filosofia era vivida na época de Platao: na morte do fildsofo } | por seus companheiros da caverna pulsa a lembranca de Socrates. | 3. Os problemas da teoria das idéias O ser e o ente * Vimos antes que Platdo se perguntava sobre 0 ser das coisas, Constatava-se, no entanto, que elas ndo tem ser por si, 56 PLATAO tém-no apenas recebido, participado de outra realidacde que esta fora das coisas. E entao Platao descobria as idéias. Cumpre deter-se um pouco no que isso quer dizer. Trata-se de descobrir o modo de ser das coisas, descobrir o que faz com que as coisas sejam, € por isso, ao mesmo tempo, descobrir aquilo que se pode saber das coisas; ou seja, o que séo. O problema do conhecimen- to esta inseparavelmente unido ao do ser, e por isso € estritamente metalisico. Nao é possivel desccbrir uma unica coisa e vé-la sem ver sua idéia; sem ver a idéia do homem, nao se pode ver um homem; um animal nao pode ver um livro. porque nao tem sua idéia, e a realida- de livro nao existe para ele. Em suma, que foi que Platao descobriu, o que é realmente a idéia? Na verdade, Platao descobriu o ser das coisas. O ser é 0 que faz com que as coisas sejam, que sejam entes. O ser € 0 ser do ente, e ao mesmo tempo, saber uma coisa é saber o que essa coisa €; compreen- der o ser daquele ente. Suponhamos que tenho uma coisa que vou conhecer. Aquela coisa € um ente; mas, ao conhecé-la, nao tenho em meu conhecimento a coisa em si mesma. Que tenho, entaéo? Tenho o ser da coisa, 0 que aquela coisa é; Platao diria “sua idéia”. Diria que se tratava de ver uma coisa em sua idéia. Em suma, verificamos que Platao descobriu o ser, diferente do ente. Parménides tinha descoberto o ente, as coisas enquanto sao. Pla- lao descobre o ser. o que faz com que as coisas sejam, e verifica que. este ser na separa: as idéias sao algo separado das coisas (absoluto). E agora de- para com uma dificuldade gravissima: ele se indagava sobre o ser das coisas, agora encontrou 0 ser; mas nao sabe o que sao as coisas. Pla- tao fica nas idéias, no ser que descobriu. Falta-Ihe nada menos que ex- plicar com as idéias 0 ser das coisas (Ortega). Isso ocorre quando um homem faz uma descoberta genial como a das idéias: fica nelas, mas nao chega a explicar as coisas; sua metafi- sica fica por fazer. (Ver Ortega: Filosofia pura.) E isso precisamente o que Aristoteles fara. Critica Platdo por se servir clesses mitos, nado por serem mitos, mas porque por tras deles nao ha uma metafisica. O conceito de participacao ¢ completamente insuficiente. A pédeEtc € se confunde com as coisas. Mas, além de distingui-los, os 57 HISTORIA DA FILOSOFIA © tipo de relagdo que existe entre as idéias ¢ as coisas. As coisas parti- cipam clas idéias. As icéias sao como um véu que cobre varias coisas, c clas participam dele, diz Platao. A idéia do homem é como um véu comum que cobre todos os homens. Aristoteles dird que tudo isso sao somente metaforas. O que e, ontologicamente, a participagao? O estar, presente das idéias nas coisas; mas qual € a possibilidade ontoldgica da participacao, qual é esse modo de presenca? A comunidade das idéias + Dentro das proprias idéias surgem problemas para Platéo. Pensemos na idéia do homem. O homem é um ser vivo.e ¢ racional. O ser do homem € a idéia do homem. Este ho- mem que aqui tenho é participagao da idéia de-ser Vivo, ou da ideia de racional? Dentro da prépria idéia tenho o problema do uno € do multiple. Como resolvera Platao essa koinonia, a comunidade das idéias? Sera algo semelhante a participacao. A idéia do homem esta em comu- nidade com a idéia de ser vivo, com a idéia de racional etc. Por esses caminhos Platéo chega a duas nogdes importantes: a idéia do ser como género supremo e a idéia do bem como “o sal das idéias” — diré com uma ultima metafora Platdo -, como a idéia das idéias. O bem * Que € 0 bem? Que € a idéia de bem? Antes de tudo, tra- ta-se de uma idéia. Esta idéia esta no ponto mais alto da hierarquia em que todas se encontram, porque as 1déias —e é isso que torna pos- sivel uma Kotv@via. ou comunidade — estao dispostas e organizadas hierarqucamente. Da idéia de bem Platao nos diz que € a mais digna e suprema; que €, repito, o sol das idéias, e, sobretudo, que é a idéia das idéias. Nao se deve entender isso como uma expresso simples- mente ponderativa, e sim de modo muito mais estrito: a “idéia das idéias” é a que faz com que as demais sejam idéias, que confere as de- mais seu carater de idéias. Mas as idéias séo os verdadeiros entes, e, portanto, se a idéia de bem confere as demais seu carater, Ihes da seu ser. Mas quem pode fazer com que sejam? O ser, é claro. O ser faria com que cada ente fosse ente; estaria presente nos entes, conferindo- Ihes sua entidade. A isso Platéo chama o bem; mas na Grécia o bem era entendido num sentido que se aproxima mais do significado do plural bens em espanol [e portugués). lsso permite ver de modo vivo 58 PLATAO a vinculacao entre o ser e o bem. O bem de cada coisa ¢ o que essa coisa é, aquilo de que pode lancar mao; e, inversamente, wma coisa € boa _se € o que €, Uma hoa faca ou um bem politico sao os aue sao plenamente ~— verdadeiramente — uma laca ou_um politico. Isso natu- ralmente esta proximo daquela implicacéo do ser, do bem e do uno de Aristételes, que virao a ser os chamados transcendentais da Escolas- tica medieval. Em certo sentido, a doutrina do hem em Platao é sua teologia. O bem aparece em muitos textos platénicos — embora nem sempre com suficiente clareza — de uma maneira que induz a entendé-lo como Deus. Assim sua doutrina foi interpretada, primeiro pelos neoplaténi- cos e depois por Santo Agostinho, e desse modo atuou em toda a tra- dicao crista medieval. O ente como género * Resta um segundo ponto importante: a ideéia do ente como género. Tratar-se-ia de um género supremo. As ou- tras coisas seriam espécies sucessivas desse género unico. Desse modo poder-se-ia fazer uma divisdo do ente em géneros ¢ espécies, uma di- visdo hierarquica, adicionando sucessivas diferencas. A esse ponte de vista também se opée resolutamente Aristoteles, por razées profun- das, que examinaremos mais adiante. A critica de Aristételes a teoria platonica das idéias vai afirmar, portanto, alguns pontos fundamen- tais: 1° Que as idéias nao estao separadas das coisas. 2° Que o ente nao € género, mas o mais universal de tudo. 3° Que o ente, o beme o uno s¢ acompanham mutuamente; e 4° Que o ser se diz de muitas maneiras, e que essas maneiras se dizem por analogia. Estas duas ulti- mas nodes, embora de forma distinta, nao sao alheias ao pensamen- to platénico. 4. O homem e a cidade Em Platao, a idéia de bem aparece ao mesmo tempo como divin- dade, como artifice ou demiurgo do mundo. Platdo stipde a criacdo de uma “alma do mundo”, intermediaria entre as idéias ¢ as coisas; é a animadora do mundo. A alma humana é também, como vimos, algo intermediariv: por um laclo, esta caida, encarnacda num corpo, sujeita 59 HISTORIA DA FILOSOFIA ao mundo sensivel, cambiante ¢ corruptivel; por outro, viu as idéias e tem uma peculiar conexao com elas: participa, portanto, do mundo eterno e inteligivel das idéias. Doutrina da alma * Ja vimos a origem mitica do homem em Fe- dro. Platao insiste de modo particular na imortalidade da alma. Filia-se assim a uma corrente muito profunda da religido e de todo o pensa- mento grego, sobretudo das mistérios dionisiacos e drficos, e do pita- gorismo, que influenciou profundamente Platdo, tanto nesse ponto como no aspecto matemiatico. As principais provas da imortalidade da alma baseiam-se em sua simplicidade e imaterialidade e em sua ade- quacao as idéias eternas e 4 verdade, que € conhecida pela alma. Essas provas foram tradicionalmente utilizadas pela filosofia grega e crista. A alma tem trés partes: uma parte concupiscivel ou sensual, a mais relacionada com as necessidades corporais; uma segunda parte irascivel, correspondente aos impulsos e afetos, e, por ultimo, a par- te racional, mediante a qual é possivel o conhecimento das idéias e a volicao em sentido deliberativo, segundo a razao. Este esquema da psicologia sera mais profundamente desenvolvido no pensamento aristotélico. Etica + A moral platénica tem um paralelismo estrito com sua teoria da alma. Ha uma correspondéncia ética rigorosa entre as partes da psique humana. Cada uma delas tem de estar regida de um certo modo, tem de possuir uma virtude particular, uma qualidade na qual consiste seu funcionamento perfeito. A parte sensual requer a mode- rac&o, o que se chama tradicionalmente temperanca (sophrosyne). A parte afetiva corresponde a fortaleza ou andria. A parte racional tem de estar dotada de sabedoria ou prudéncia, de phrénesis. Mas ha ain- da uma quarta virtude; as partes da alma sao elementos de uma uni- dade e estao, portanto, numa relacdo entre si; essa boa relacéo cons- titui o mais importante da alma e, por conseguinte, a virtude supre- ma, a justic¢a ou dikaiosyne. Estas s4o as quatro virtudes que passaram como virtudes fundamentais, inclusive para o cristianismo (prudén- cia, justica, fortaleza e temperanca, segundo a denominac&o usual). A cidade * A moral individual tem uma traducdo quase exata na teoria da constituigao civil ou politéia, tal como a expde na Repiblica 60 PLATAO e depois, de forma atenuada, de mais facil realizagao, nas Lcis. Como aalma, a cidade também pode ser considerada um todo composto de trés partes, que correspondem as psiquicas. Essas partes sao as {rés grandes classes sociais que Platéo reconhece: 0 povo — composto de comerciantes, industriais ¢ agricultores -, os vigilantes e os fildsofos. Ha uma estreita correlacdo entre essas classes e as faculdades da alma humana, e, portanto, a cada um desses grupos sociais pertence de modo eminente uma das virtudes. A virtude das classes produtoras é, naturalmente, a temperanca; a dos vigilantes ou guerreiros, a fortale- za, e a dos fildsofos, a sabedoria, a phronesis ou sophia. Também aqui a virtude fundamental € a justica, e isso de modo ainda mais rigoroso, pois consiste no equilibrio e boa relacao dos individuos entre si e com o Estado, e das diferentes classes entre si e com a comunidade social. E, pois, a justica que rege e determina a vida do corpo politico, que é a cidade. O Estado platonico € a polis grega tradicional, pequenas di- mensées e escassa populacao; Platao nao chega a imaginar outro tipo de unidade politica. Os fildsofos sao os “arcontes” ou governantes encarregados da direcéo suprema, da iegislagdo e da educacao de todas as classes. A funcdo dos vigilantes é militar: a defesa do Estado e da ordem social e politica estabelecida contra os inimigos de dentro e de fora. A terceira classe, a produtora, tem um papel mais passivo e esta submetida as duas classes superiores, as quais tem de sustentar economicamente. Em tro- ca, recebe delas direcao, educagao e defesa. Platao estabelece nas duas classes superiores um regime de co- munidade nao sé de bens, mas também de mulheres e filhos, que per- tencem ao Estado. Nao existem propriedade nem familia privadas, sal- vo na terteira classe. Os dirigentes nao devem ter interesses particula- res e devem subordinar tudo ao servigo supremo da polis. A educacéo, semelhante para homens e mulheres, é gradual, e é ela que opera a selecdo dos cidadaos e determina a classe a que irao pertencer, segundo suas aptiddes e méritos. Os menos dotados rece- bem uma formacao elementar e integram a classe produtora; os mais aptos prosseguem sua educagdo, e uma nova selecdo separa os que fi- carao entre os vigilantes e os que, depois de uma preparacao superior, 61 TListORIA DA FILOSOFIA ingressam na classe dos fildsofos e terao de carregar, portanto, o peso do governo. Na educacao platénica alternam-se exercicios fisicos com disciplinas intelectuais; 0 papel de cada cidadao esta rigorosamente lixado segundo sua idade. Tanto a relacdo entre os sexos como a repro- ducao estao submetidas ao interesse do Estado, que as regula de modo conveniente. Em toda a concepcao platonica da polis nota-se uma profunda subordinagao do individuo ao interesse da comunidade. A autoridade é exercida de modo enérgico, e a condicao central para o progresso da vida politica da cidade é que esta seja regida pela justi¢a. 5. A filosofia Veremos agora o que é a filosofia para Platao. Que se entende por filosofia e por filosofar no momento em que o pensamento helénico chega a essa primeira plenitude? No comeco do livro VIi da Republica, Platao conta, como ja vi- mos, o mito da caverna, que simboliza, por um lado, a diferenca entre a vida usual e a vida filosofica e, por outro, os diversos estratos da rea- lidade dentro de seu sistema metafisico. Por outro lado, diz Plataéo no Banquete: “Nenhum dos deuses fi- losofa nem deseja tornar-se sabio, porque ja o €; nenhum outro sabio filosofa; tampouco os ignorantes filosofam nem desejam tornar-se sa- bios.” E acrescenta mais adiante: “Quem sao, portanto, os que filoso- fam, se nao sao os sabios nem os ignorantes? E claro que so os inter- medidrios (uetov) entre estes dois.” Isso € definitivo. Para Platao nao filosofa nem quem é sabio nem quem é ignorante. Ignorante é simplesmente quem nao sabe. O inter- mediario nao sabe, mas se da conta disso; sabe que nao sabe, e por isso quer saber: falta-lhe esse saber. Propriamente falando, nem ao sabio nem ao ignorante faz falta o saber. Eu nao tenho galhos, mas nao sin- to falta deles. S6 filosofa quem sente falta do saber. Isso vai nos levar a duas coisas importantes, que transcendem Platao: a relacdo que pos- sam ter com a filosofia, por um lado, o amor, e por outro, a Divindade. No Banquete fala-se “sobre o amor”, e também se faz um elogio ao deus Eros, que esta intimamente relacionado com a filosofia. Para 62 PLATAO Plato, o amor é um sentir falta, um buscar o que ndo se tem, o que falta. O Amor, que, segundo o mito, é filho de Poro e cle Pénia, é todo riqueza, mas ao mesmo tempo € necessitado. O amor e também o amante, 0 erastes, buscam 0 que hes falta, e principalmente a beleza. Socrates dira no Banquete, causando grande escandalo, que se o amor busca a beleza € porque ela lhe falta, e, portanto, nao € Deus. Que € entao? Um grande deménio ou génio, um metaxy, um intermediario entre os homens e os deuses. E 0 mesmo ocorre com 0 fildsofo, que é também metaxy, intermediario entre o sabio e o ignorante. A sabedo- ria esta entre as coisas mais belas, e o amor é amor pelo belo; € neces- sario, pois, que o amor seja [ilésofo. Por meio do belo chega-se ao verdadeiro, e assim os filésofos sao “amigos de olhar para a verdade”. Ha uma comunidade essencial entre beleza e verdade. Sob a idéia do bem e a da verdade, objeto da filosofia, esta, muito préxima, a idéia do belo. E a beleza, para Platdo, é mais facil de ver que a verdade, se vé e resplandece mais, se impde de um modo mais vivo e imediato; a beleza pode nos levar a verdade: por isso 0 fildsofo é um amador, e da contemplac4o da beleza de um corpo se eleva a dos corpos em geral, em seguida, a das almas e, por ultimo, a das proprias idéias. E é entao que sabe, que tem verdadeiramente sophia. Lembremos que beleza em latim se diz forma; o que é belo € for- mosus, diz-se também species; mas species, como eidos ou idea, € 0 que se vé. O que se vé pode ser a beleza e a idéia; e 0 mesmo acontece com a forma, que € o que constitui a esséncia de uma coisa, seu bem em sentido grego. Vemos que em Platao aparece, como algo essencial da Filosofia, um momento amoroso. Mas a coisa nao é tao simples, porque em gre- go amor se diz de muitas maneiras. Principalmente de trés: ¢pesc, orice ayérn. O eros, como vimos, é antes de tudo um desejo do que nao se tem e faz falta, um afa, primordialmente, de beleza. A philfa se encontra na propria raiz da palavra filosofia. E uma espécie cle amiza- de, de cuidado e de trato freqtiente. Aristoteles se pronunciava a favor 63 HISTORIA DA FILOSOFIA da philia no que se refere ao filosofar. O que ficava um pouco a mar- gem era a agape, que era uma espécie de dilectio, de estima e amor re- ciproco; esse conceito, essencialmente modificado pelo cristianismo, sera em Séo Joao e em Séo Paulo a caridade, cantas (Zubiri). E Santo Agosunho diz esta singela e taxativa frase: Non intratur in veritatem nisi per caritatem: “Nao se entra na verdade a nao ser pela caridade.” Portanto, em trés filosofias de tanta magnitude como as de Pla- tao, Aristoteles e Santo Agostinho, a filosofia tem como método, como via de acesso a verdade, as trés formas do amor grego. Para Platao nao se entra na filosofia a nao ser pelo éros; para Aristoteles, por uma cer- ta philia; para Santo Agostinho, pela caritas. Doze séculos mais tarde Espinosa definira a filosofia como amor Dei intellectualis, e em nosso século Ortega a definira como “a ciéncia geral do amor”. 64 IV. ARISTOTELES Com Aristoteles, a filosofia grega atinge sua plena e total maturi- dade, de modo tal que a partir de entéo comegara sua decadéncia, e ja- mais voltara a alcancar altura semelhante. A Grécia nem sequer € ca- paz de conservar a metafisica aristotélica, pois lhe falta entendimento para os problemas filoséficos na dimensao profunda em que os for- mulara Aristoteles, e o pensamento helénico se banaliza nas maos das escolas de moralistas que povoam as cidades helénicas e em seguida as do Império Romano. Aristoteles € — com Platao — a maior figura da filosofia grega, e talvez de toda a filosofia. Determinou em maior me- dida que qualquer outro pensador os caminhos que depois dele a fi- losofia viria a percorrer. Foi o descobridor de um profundo estrato das quest6es metafisicas, o forjador de muitos dos mais importantes con- ceitos que o intelecto humano maneja ha muitos séculos para pensar o ser das coisas; 0 criador da logica como disciplina que até hoje se mantém quase nos limites que the deu Aristoteles, excetuando-se duas ou trés tentativas geniais ao longo de toda a historia da filosofia; o ho- mem, em suma, que possuiu todo o saber de seu tempo, e que onde pOs a mao deixou a marca unica de sua genialidade. Por isso Aristote les esteve presente de modo incalculavel em toda a filosofia, e talvez por isso seja nosso primeiro problema, aquele com que se tem de cn- frentar mais seriamente o pensamento atual se quiser expor a razdo de si mesmo e situar-se radicalmente em seu proprio tempo € no au- téntico problema da filosofia. Vida + Aristételes nao era um grego puro, e sim um macedénio, embora com fortes influéncias gregas. Nasceu em Estagira, na penin- 65 HISTORIA DA FILOSOFIA sula Calcidica, no ano de 384 a.C. Seu pai, Nicémaco, era médico e amigo do rei da Macedonia, Amintas II. E possivel, como assinala Ross, que essa ascendéncia tenha exercido influéncia no interesse de Aristé- teles pelas questées fisicas e biolégicas. Aos 18 anos entrou para a es- cola de Platao, em Atenas; ali permaneceu por dezenove anos, até a morte do mestre, na qualidade de discipulo e de mestre também, in- timamente vinculado a Platao e ao mesmo tempo em profunda dis- crepancia. Aristoteles, 0 tinico auténtico platénico, mostra qual o sen- tido exclusivo em que é possivel um verdadeiro discipulado filosofico. Com a morte de Platao, Espeusipo encarrega-se da direcao da Acade- mia, ¢ Aristételes sai dela e de Atenas. Foi para a Misia, onde perma- neceu trés anos e€ se casou; mais tarde, com a morte da esposa, teve outra mulher, mae de seu filho Nicémaco; também esteve em Mitile- ne, na ilha de Lesbos. Por volta de 343, Filipe da Maced6nia convidou-o para se encar- regar da educacao de seu filho Alexandre, que tinha 13 anos. Arist6- teles aceitou e rumou para a Macedonia. A influéncia de Aristoteles sobre Alexandre deve ter sido grande; sabe-se que divergiam em re- lacdo a questdo da fusdo da cultura grega com a oriental, que Aristé- teles nao considerava conveniente. Em 334 voltou para Atenas e fun- dou sua escola. Nos arredores da cidade, num pequeno bosque con- sagrado a Apolo Liceu e as Musas, alugou varias casas, que vitiam a constituir o Liceu. Ali tratava com seus discipulos, passeando, das questoes filoséficas mais profundas; por isso foram chamados de peri- patéticos. A tarde expunha para um auditério mais amplo temas mais acessiveis: retérica, sofistica ou politica. Aristoteles desenvolveu uma intensissima atividade intelectual. Quase todas as suas obras sao dessa época. Reuniu um material cien- tifico incalculavel, que lhe possibilitou fazer avancar de modo prodi- gioso o saber de seu tempo. Com a morte de Alexandre, em 323, sur- giu em Atenas um movimento antimacedénico, que acabou sendo hostil a Aristoteles: foi acusado de impiedade e nao quis — disse — que Atenas pecasse pela terceira vez contra a filosofia — referia-se a perse- guicdo de Anaxagoras e @ morte de Socrates; por isso, mudou-se para Calcis, na ilha de Eubéia, onde a influéncia macedénica era forte, e ali morreu no ano de 322 66 ARISTOTELES Obras ° Aristoteles escreveu dois tipos de livros: uns, chamados. exotéricos, destinados ao grande publico, cram, de forma geral, dialo- gos, cuja elegancia e valor literario sao muito elogiados; os outros, fi losoficos ou acroamaticos, ou também esotéricos, tratavam das questoes mais profundas e eram dirigidos exclusivamente aos niicleos reduzi dos do Liceu; sua forma era, em geral, a do curso ou licdes, e foram as vezes conservados com redacao proviséria, sem elaboracao, como simples anotacgoes. Todos os didlogos se perderam; restam apenas frag- mentos; em contrapartida, o principal da obra cientifica de Aristoteles foi conservado. Deve-se, por certo, levar em conta que entre os escri- tos aristotélicos encontram-se alguns apécrifos, e em muitos casos fo- ram feitos em colaboragdo com discipulos, ou foram redigidos por es- tes com base em suas anotacées e papéis de aula. Aristoteles divide as ciéncias em tedricas, praticas e poéticas. E preciso explicar esta divisdo. Poiésis, de onde vem poesia, quer dizer em grego producao, fabricacao; o que a caracteriza € ser uma ativida- de que tem um fim distinto dela mesma; por exemplo, a fabricacao de um armario, cujo fim € 0 armario, ou a composicao de uma ode, cujo fim é também a ode. A praxis ou pratica é uma acdo, uma atividade, cujo fim é ela mesma, nao uma coisa externa ao agir; é superior, por ter o fim em si, e, portanto, suficiéncia, a autarquia, tao estimada pe- los gregos; um exemplo seria a politica. A theoria ou contemplacdo € um modo de praxis; nao devemos esquecer que a teoria € também pratica; nao se opdem exceto na medida em que a teoria é a praxis su- prema, diferentemente do que sé é pratico, mas nao chega a ser teéri- co. A contemplacao é uma atividade cujo fim é ela mesma, mas que ademais contém em si mesma seu proprio objeto. O politico, por exem- plo, precisa de algo além dele, a cidade, para poder exercer sua acao; o homem teérico nao precisa de outra coisa senao de sua propria men- te; € o mais suficiente de todos e, portanto, superior. Dessa distingéo depreendem-se trés tipos de vida e trés modos de ciéncia. E, antes de tudo, uma que nao entra em nenhum deles, mas é an- terior: a légica. Trata-se — assim foi intitulada — do Organon, instrumen- to, € serve para todas as ciéncias. O Organon de Aristoteles esta com- 67 HISTORIA DA FH.OSOFIA posto dle cliversos tratados: Categorias, De interpretatione, Analiticos pri- meiros e segundos), Tépicos, Refutacdes sofisticas e outros pequenos escritos logicos. As ciéncias tedricas séo a matematica, a fisica e a metafisica. As principais obras deste grupo sao a Fisica, o livro Do céu, o Do mundo, 0 De anima e uma série de tratados sobre questées fisicas e bioldgicas; e, sobretudo, os catorze livros da Metafisica ou Filosofia primeira. As ciéncias praticas sao a ética, a politica e a economia, ou seja, as da vida individual e social do homem. Suas principais obras sdo as trés Eticas — Etica a Nicémaco, Etica a Eudemo e Grande Etica (a menor das trés e nao auténtica) -, a Politica e os Econémicos, estes Ultimos de interesse bem inferior, e certamente apécrifos. As obras poéticas capitais sdo a Poética, que exerceu extraordina- ria influéncia, e a Retérica. Aisso se deve agregar uma grande quantidade de breves tratados sobre todas as matérias da enciclopédia cientifica aristotélica e um re- pertorio de questées variadas, de redacgao provavelmente posterior, que se chama Problemas. Foi isso que de mais importante nos restou da obra de Aristoteles. 1. Os graus do saber No comego de sua Metafisica, Aristoteles coloca a questao do sa- ber por exceléncia, que € justamente o que ele chamou de filosofia pri- meira e desde a edicéo de Andronico de Rodes é tradicionalmente chamado de metafisica. (Os livros da filosofia primeira foram coloca- dos atrds dos de fisica e sao chamados de ta meta ta physikd; esta de- nominacao, puramente editorial, foi posteriormente interpretada como um além da fisica, como uma transfisica, e desse acaso, como é bem sabido, nasceu o nome da suprema ciéncia filoséfica.) A primeira frase da Metafisica diz: “Todos os homens tendem por natureza a saber.” E logo acrescenta que o sinal disso € 0 gosto que te- mos pelas sensa¢oes e, sobretuda, pela da vista; e distingue o uso que fazemos delas por sua utilidade para fazer algo, do gosto que também temos quando nao vamos fazer nada. Mas essas sensagdes, que su- 68 ARISTOLNLS poem um infimo saber, nao sao privativas do homicm, também os an mais as tém, ¢ alguns deles até memoria, que pelit permancnei cla re- cordagao permite aprender. O homem, em contrapartida, tem outros moda. supenores de saber, antes de tudo, a experiéncia, empeiria, no sentido de “experien cia das coisas”. E um conhecimento de familraridade com as coins, com cada coisa, de um mado imediato ¢ concreto, que so nos ¢ did pelo individual. Por isso a empeiria ndo pode ser en tnada, pode se apenas dar ao outro condigées para adquirit casa mest expericncnt, Ha outro modo de saber mais elevaco, que ¢ a artic ou tecnia, wyvn A arte em seu sentido tradicional, como quando se lal cl. rar, que é o exemplo a que mais imediatamente se relere Aristotcles A tékhne é um saber fazer. O tekhnites, o perito ou téenice, ¢ © lament que sabe fazer as coisas, sabe que meios empregar pitta aleingitr os fins desejados. Mas a arte nao nos da o individual, apenas ceto tin tte de ct versal, uma idéia das coisas; por isso pode ser crsmad., porque do universal se pode falar, ao passo que o individual se pode ser visto ou mostrado. Portanto, a tékhne é superior ALCMpeitia, Wbts eshte hunbenr ¢ necesséria, por exemplo para curar, porque o medica mao tem de cue rar o homem, e sim Sécrates, um individito que e unt homem; portan- to, diretamente Socrates, e o homem apenas cle modo mediato, Esta tékhne nos da o qué das coisas, c ste sctt porqué, mas $6 co- nhecemos algo plenamente quando o subemos cm suas casas e em seus principios primeiros. Esse saber s6a sabedorta, « sophia, pode nos dar. Esse saber supremo tem de dizer 0 que as Cotsas toe por que sdo; isto é, tem de demonstrar as coisas a partir de seus princtpios A cién- cia, o saber demonstrativo se chama em grego episiéme; este a verda- deira ciéncia, a ciéncia que Aristoteles busca, (ntovpévy Emon, Mas os principios nado sao demonstraveis — por isso sao principios nao derivam de nada; por isso é preciso haver uma intuigao deles, € esta € 0 nods, outro momento essencial que, com a epistéme, compoe a verdadeira sabedoria. E com isso chegamos ao grau supremo da cién- cia, que tem por objeto o ente enquanto tal, as coisas na medida em que sdo, entendidas em suas causas e principios. Todas as ciéncias — diz Aristoteles — sao mais necessarias que esta: superior, nenhuma. 69 HISTORIA DA FILOSOFIA E aesse saber, a filosofia, em suma, chegaram os homens pelo as- sombro, ¢ 0 assombro é sempre, hoje como no primeiro dia, a raiz do filosofar. 2. A metafisica Aristételes define a filosofia primeira (Metafisica, IV, 1) como a ciéncia que considera universalmente o ente enquanto tal; ou seja, a to- talidade das coisas enquanto sao. As outras ciéncias estudam uma parte das coisas, segundo um acidente determinado: por exemplo, a botanica estuda as plantas enquanto organismos vegetais; a matema- lica, as figuras e os nimeros do ponto de vista da medida. A metafisi- ca, em contrapartida, tem como objeto a totalidade das coisas. mas enquanto sdo, o ente enquanto ente, 16 Sv f dv. Por outro lado, Aris- toteles diz que a metafisica é uma ciéncia divina, em dois sentidos: no sentido de que se Deus tivesse alguma, seria ela, e além disso _no sen- tido de que o objeto da metafisica é Deus; e por isso a chama também ciéncia teoldgica ou teologia, Geoloyumt Emor ENLoTHUN. E, por ultimo, defi- ne-a em outros lugares como ciéncia da substancia, nepi Tig obciac. Que quer dizer isso? Sao trés ciéncias, ou é uma s6? Esse problema preocupa profundamente Aristoteles, que volta a ele varias vezes e afirma a unidade da filosofia primeira. A metafisica € uma ciéncia tni- ca, e 0 €a um so tempo do ente enquanto tal, de Deus e da substan- cia. Tentaremos mostrar a conexdo interna desses trés momentos e, com isso, a unidade da metafisica aristotélica. O ente enquanto tal * Existem diferentes tipos de entes. Em pri- meiro lugar, as coisas naturais, os objetos fisicos. Para Aristoteles, a na- tureza é€ o principio do movimento das coisas Gpx} ths KIVI}OEWS); algo € natural quando tem em si mesmo 0 principio de seu movimen- to, por exemplo uma 4rvore ou um cavalo, diferentemente de uma mesa. (Entenda-se, principio de seu movimento ou de seu repouso natural, como a pedra). As coisas naturais sdo, portanto, coisas verda- deiras; no entanto, elas se movem, chegam a ser e deixam de ser, e nes- sa medida nao sao plenamente entes. Existe outro tipo de entes que nao se movem: os objetos matemdticos. Pareceria que a ciéncia que 70 ARISTOTH! ES versasse sobre eles seria mais ciéncia. Mas tém um gravissimo incon- veniente: nao sao coisas; existem na mente, mas nao fora dela, separd- dos. Se na qualidade de imdveis tém mais dignidade de entes, na me dida em que nao existem como coisas séo menos entes. Como teria de ser um ente para reunir as cluas condigdes? Teria de ser imovel, mas separado, uma coisa. Esse ente, se existisse, se |as- taria a si mesmo e seria 0 ente supremo, o que mereceria em sua ple- nitude a denominacao de ente. Deus * Mas este ente Aristételes chama de divino, Deus, 826. E a ciéncia suprema que trataria dele seria uma ciéncia teoldgica. Ou seja, Deus € em Aristoteles aquele conjunto de condigoes metafisicas que fazem com que um ente o seja plenamente. A ciéncia do ente enquan- to tal e a de Deus, que é 0 ente por exceléncia, sao uma e a mesma. Esse ente é, por certo, vivo, porque o ser vivo é mais plenamente que o inerte. Contudo, além disso tem de bastar-se a si mesmo. Re- cordemos que é€ possivel fazer muitas coisas, e duas possiveis ativida- des sao a poiésis e a praxis. A primeira é essencialmente insuficiente, pois tem um fim fora dela, uma obra. Se Deus fosse Deus por ter uma poiésis precisaria, para ser, daquelas obras e nao se bastaria a si mes- mo. Na praxis, em contrapartida, o fim nao € a obra o érgon, mas 0 proprio fazer, a atividade ou enérgeia. Pois bem: a praxis politica, por exemplo, tem dois inconvenientes; em primeiro lugar precisa de uma cidade na qual se exercer, e nessa medida nao é suficiente, embora o seja como atividade mesma; em segundo lugar, o saber do politico se refere sempre a oportunidade, ao momento, é um saber cairoldgico. Mas, como vimos, ha outro tipo de praxis, que € a theoria, a vida teorética. Trata-se de um ver e discernir o ser das coisas em sua totali- dade; esse modo de vida é 0 supremo; portanto, Deus tera de ter uma vida teorética, que € o modo maximo de ser. Mas nao basta; porque o homem, para levar uma vida teorética, precisa do ente, precisa das coi- sas para sabé-las, e nao € absolutamente suficiente. Essa theoria so se- tia suficiente se se ocupasse de si mesma; por isso Deus é pensamento do pensamento, vonors vorioeus, A atividade de Deus € 0 saber supre- mo, e a metafisica é divina por ser ciéncia de Deus, no duplo sentido de que Deus € seu objeto e ao mesmo tempo seu sujeito eminente. 71 HisTORIA DA FILOSOFIA Theorta nao € uma mera consideragdo, mas o cuidado de deixar que as coisas sejam o que sao, po-las na luz &v pati). Isso € sophia, sa- bedoria, e, em sentido estrito, s6 Deus a tem. O homem $6 pode té-la em certos instantes; o que pode ter é uma filosofia, uma certa amizade com a sophia. Aristoteles dira que para que o homem seja filésofo nao basta que tenha essa visdo por um instante, € imprescindivel que te- nha uma €tc, um habito, uma maneira de viver. E é isso que é verda- deiramente problematico (Zubiri). A substancia * Em terceiro lugar, a metafisica como ciéncia da substancia; é preciso mostrar que essa ciéncia ¢ una com a ciéncia do ente enquanto tal e com a de Deus. Diz Aristoteles (Metafisica, IV, 2) que o ente se diz de muitas maneiras, mas nao de modo equivoco, e sim analogico; ou seja, em relacdo a um principio unico que da uni- dade aos muitos sentidos. Por isso o ente é uno e miultiplo ao mesmo tempo. Como veremos mais adiante com maior precisdo, o sentido fundamental do ser é a substdncia. Os outros modos dependem deste, porque todos s4o ou substancias ou afeccdes da substancia. A cor é cor de uma substancia, e se dizemos trés nos referimos a trés substan- cias, e até a privacado encerra a mesma referéncia. Para que haja uma ciéncia é preciso haver uma unidade, uma certa natureza, segundo a qual se dizem as outras coisas. Essa unida- de é a da substancia, que € 0 sentido principal com que se diz o ser, o fundamento da analogia. Em todas as formas do ser esta presente a substancia, e, portanto, esta nao é algo distinto do ente enquanto tal e de Deus, mas 0 ente como ente encontra sua unidade na substancia. Trata-se, pois, de uma unica filosofia primeira ou metafisica com sua triplice raiz. Comegamos buscando a ciéncia tambem buscada por Aristote- les, descobrimos as caracteristicas da sophia e vimos que € ciéncia de Deus, e que € ciéncia do ente enquanto tal, porque Deus é 0 conjun- to das condicées ontolégicas do ente. Vimos em seguida que essa cién- cia é também ciéncia divina porque nela o homem se assemelha a Deus. Vimos, por ultimo, que essa ciéncia € ciéncia da substancia, que esta presente em todos os modos do ente. O¢5¢ nada mais € que o ente enquanto tal, a forma plena da substancia, e nisso fundamenta-se a unidade essencial da ciéncia buscada. 72 3. Os modos do ser A analogia do ente * Um termo € untvoco quando tem uma tini- ca significacao; por exemplo, homem; equivoco, quando tem uma plu- ralidade de sentidos independentes, sem outra coincidéncia sendo a do vocabulo: a palavra gato, que designa um an:mal doméstico ou um aparelho para levantar grandes pesos. Vimos que a palavra ser nao é equivoca, apesar de seus muitos sentidos, porque estes tém uma co- nexdo ou unidade entre si, ndo sao inteiramente dispares. E uma pa- lavra andloga ou analdgica, como saudavel, que se diz de um alimento, do passear, de um medicamento, da cor da cara, e em cada caso quer dizer uma coisa distinta: que conserva a satide, que a produz, que a devolve, que € indicio dela etc. Coisas distintas, mas que envolvem uma referéncia comum a satide. A satide €, pois, quem funda a unida- de analogica. O mesmo ocorre, como vimos, com o ser, que tem sua unidade na substancia, porque todos os modos do ente sao substan- cia ou afeccdes dela, num sentido amplo. Convém, no entanto, precisar isso um pouco mais. Ao dizer que o ser se diz de muitas maneiras, nao se quer dizer apenas que existem muitos entes, nem sequer que existem muitas classes de entes, mas que a palavra ser significa coisas distintas quando digo que algo é um homem, ou que é verde, ou que sdo trés, ou que uma moeda ¢ falsa. Nao sao os objetos nomeados que se distinguem, mas € 0 é que signi- fica uma coisa distinta em cada exemplo, embora sempre implique uma alusdo, mediata ou imediata, a substancia. Os quatro modos ¢ Aristételes diz concretamente que 0 ser se diz de quatro maneiras. Esses modos s4o os seguintes: 1°, o ser per se (Ka8' @016) ou per accidens (Kata OvpBeBNKGG), OU seja, por esséncia ou por acidente; 2°, segundo as categorias; 3°, o ser verdadeiro e o ser falso, e 4°, segundo a poténcia e 0 ato. Vamos examinar brevemente o sentido desses quatro modos de ser. “Per se” e “per accidens” * Quando dizemos, por exemplo, que o homem é misico, isso € por acidente. Musico € um acidente do homem; é, simplesmente, algo que acontece ao homem, mas que nao pertence a sua esséncia, Quando dizemos que o justo é musico, tam- 73 HISTORIA DA FILOSOFIA bém € per accidens, porque os dois pertencem como acidentes a um sujeito, homem, que € musico e justo. O ser per se se diz essencial- mente; o homem é€ um ser vivo, por exemplo, nao acidentalmente, mas por sua esséncia. Esse ser essencial se diz em diferentes acepcdes, que s4o os modos segundo os quais se pode predicar o ser. E esses mo- dos sdo os chamados predicamentos ou categorias. Categorias ¢ As categorias sao os diversos modos como 0 ser pode ser predicado. E sao, por isso, as flexdes ou quedas do ser, mt@oEI¢ TOD byvtog. Aristoteles fornece varias listas desses predicamentos, e a mais completa compreende dez: substancia (por exemplo, homem), quan- tidade (de quatro palmos de altura), qualidade (branco), relacdo (do- bro), lugar (no Liceu), tempo (ontem), posigao (sentado), estado (cal- cado), acao (corta), paixdo (cortam-lhe). Nao se trata da diferenca en- tre essas coisas, mas de que o proprio ser se flexiona em cada um desses modos e quer dizer uma coisa diferente em cada uma das categorias. Por isso, se & pergunta “o que é isto?” se responde “sete”, trata-se, sem considerar a veracidade ou falsidade, de uma incongruéncia, porque o é da pergunta se move na categoria de substancia, e a resposta na de quantidade. Essas categorias tem uma unidade que € justamente a subs- tancia, porque todas as demais se referem a ela: € 0 caso mais claro da unidade analégica. A substancia esta presente em todas as outras ca- tegorias, que ndo tém sentido exceto a partir do pressuposto dela, a qual em ultima instancia se referem. O verdadeiro ¢ 0 falso + A veracidade ou falsidade se da prima- tiamente no juizo. O enunciado A é B, que une dois termos, encerra necessariamente verdade ou falsidade, conforme una o que esta na tealidade unido ou o que esta separado; o inverso pode ser dito da negagaéo. Mas ha um sentido mais radical de verdade ou [alsidade, que é a verdade ou falsidade das coisas, a do ser. Assim, dizemos que algo € uma moeda falsa, ou que é café verdadeiro, Aqui a verdade ou falsidade corresponde a propria coisa. E quando dizemos que 2 mais 2 sio 4, o sentido do verbo ser € o de ser verdade. Algo é verdadeiro GAneéc) quando mostra o ser que tem, € € falso (yebSo¢) quando mos- tra outro ser que ndo o seu, quando manifesta um por outro; quando tem, portanto, aparéncia de moeda o que é um simples disco de chum- 74 ARISTOTLELS. bo. O disco de chumbo, como tal, € perleitamente verdadeiro, mas ¢ falso como moeda: ou seja, quando pretende ser uma moeda sem se lo, quando mostra um ser aparencial que na realidade nao tem. Aqui apa rece o sentido fundamental da verdade (An Gera) em grego. Verdade ¢ estar descoberto, patente, e ha falsidade quando o descoberto nao € 0 ser que se tem, mas um aparente; ou seja, a falsidade € um encobri- mento do ser quando se descobre em seu lugar um enganoso, como quando se encobre o ser de chumbo por ts da falaz aparéncia de moeda que se mostra. A poténcia e o ato * Por ultimo, o ser se divide segundo a potén- cia (Sbvoytc) e o ato @vépyetcr). Um ente pode ser atualmente ou ape- nas uma possibilidade. Uma 4rvore pode ser uma arvore atual ou uma arvore em poténcia, em possibilidade, por exemplo uma semente. A semente € uma 4rvore, mas em poténcia, como a crianca € um ho- mem, ou o pequeno, grande. Mas é preciso ter em mente duas coisas: em primeiro lugar, nao existe uma poténcia em abstrato, uma potén- cia € sempre poténcia para um ato; isto €, a semente tem poténcia para ser carvalho, mas nao para ser cavalo, nem sequer pinheiro, por exemplo; isso quer dizer, como afirma Aristételes, que o ato é ante- rior (ontologicamente) a poténcia; como a poténcia é poténcia de um ato determinado, o ato ja esta presente na propria potencialidade. O carvalho esta presente na bolota, e a galinha no ovo; pela simples ra- zao de que nao existem ovos assim, sem mais, em abstrato, mas que o ovo é, por exemplo, de galinha, o que significa que a galinha ja esta implicada no ovo e é quem lhe confere sua poténcia, Em segundo lu- gar, o ser em poténcia, para existir, precisa ter certa atualidade, embo- 1a nao como poténcia. Isto é, a semente, que é carvalho em poténcia, é bolota em ato, e 0 ovo — galinha em poténcia — € um ovo atual e mui- tissimo real. O mesmo ente tem, portanto, um ser atual e o ser potén- cia de outro ente. Isso € sumamente importante para a interpretagao metafisica do movimento. A idéia de atualidade se expressa em Aristoteles com dois termos distintos: enérgeia Evépyerm) e enteléquia Evteréxera). Embora as ve- zes sejam usados como sinénimos, nao sao equivalentes, porque enér- geia indica a simples atualidade, ao passo que enteléquia significa o 75 HISTORIA DA FILOSOFIA, que atingiu seu fim, seu telos, e, portanto, supde uma atualizacdo. De Deus, que € ato puro, que nao tem, como veremos, poténcia nem mo- vimento, que €, portanto, atual, mas nao atualizado, cabe dizer que é enérgeia, mas nao, a rigor, enteléquia. Vemos, pois, que os modos do ser, que sao quatro, tém uma uni- dade analogica fundamental que é a da substancia. Por isso Aristote- les diz que a pergunta fundamental da metafisica é: “o que € 0 ser?” e acrescenta a titulo de esclarecimento: “isto €, o que é a substancia?” Examinaremos agora a andlise ontologica da substancia que Aristéte- les faz. 4. A substancia Substancia se cliz em grego ovota. Esta palavra quer dizer na lin- guagem usual haveres, fortuna, bens, aquilo que se possui. E 0 con- junto das disponibilidades de uma coisa, aquilo de que se pode lan- car mao. Em espanhol sé encontramos um sentido semelhante quan- do falamos de que algo tem muita substancia; um caldo, por exemplo, que dizemos ser substancioso; ou também, em outro sentido, quando falamos de uma pessoa insubstancial, carente de substancia. A pala- vra subst@ncia aponta para outra ordem de idéias: é sub-stantia, o que esta debaixo, sujeito, em seu sentido literal de sub-jectum, que é a ura- dugao, nao de ovcia, mas de outro termo grego vmoxeipevov, que quer dizer substrato ou sujeito. Esse momento € decisivo: a substan- cia é suporte ou substrato de seus acidentes; o vermelho, o duro, o quadrado etc. estéo suportados pela substancia mesa. Por outro la- do, os acidentes sao predicados de outra coisa, de um sujeito, e inver- samente, a substancia nao é predicado de nenhuma outra coisa. A me- sa é mesa por si ao passo que o vermelho é vermelho da mesa. Mas nao se deve esquecer que esse sentido de substrato nao é o primario, e sim o de ousfa, e que justamente por ter um haver proprio pode a substancia ser um sujeito ao qual se atribuam como predicados os acidentes, Por isso, a substancia é antes de tudo coisa, algo separa- do, independente, que existe por sie nao em outro. E o modo funda- mental da substancia € a natureza (pbotc), porque vimos que consis- 76 ARISTOTELES te no principio do movimento, naquilo que constitu as possibilidades proprias de cada coisa. Mas existem varias classes de substancia. Antes cle tude, lemos as coisas concretas, individuais: este homem, esta arvorc. esta pedra Sao as substancias em sentido mais rigoroso, as que Aristotcles chamiara de substancias primeiras. Mas temos outro tipo dle entes, que sao os universais, os géneros e as espécies, o homem ou a arvore (ou seja, 0 correlato das idéias platonicas). Evidentemente, ndo sido substance em sentido rigoroso de coisas separadas; Aristételes ne que outra categoria podem corresponder? E claro que a nenhuma, salvo a de substancia; e entdo tera de distingui-las como substincias segundas. Que quer dizer isso? Qual é a estrutura ontoldgica da subs- tancia? Para explica-lo, Aristoteles recorre 4 sua genial teoria da maté- tia e da forma. Matéria e forma « A substancia é interpretada como um com- posto de dois elementos: matéria e forma. Nao se trata de clus partes teais que se unem para formar a substancia, mas de clois momentos on- tolégicos que a andlise pode distinguir na ousia. A matéria é aquilo de que € feita uma coisa; a forma € 0 que faz com que algo seja o que é. Por exemplo, a matéria de uma mesa é a madeira, e a forma, a de mesa. A matéria (JAN) e a forma (uop@n, elS0g) nado podem existir se- paradas, so é possivel encontrar a matéria informada por ura forma, e Ss. 580, Mas it a forma informando uma matéria. E ndo se deve entender a forma em sentido exclusivamente geométrico, que € secundario, mas como aqui- lo que confere o ser: ou seja, a madeira ou a carne tém, por sua vez, forma de madeira ou de carne, ea esta forma pode-se superpor outra, por exemplo a de mesa. Desse modo, a madeira, que seria uma certa forma, funcionaria como matéria em relacdo 4 forma de mesa. © ente concreto é o composto hilemérfico (de hyle e morphé) e também é chamado ovodov. O universal € forma, mas n4o esta, como as idéias platonicas, separado das coisas, e sim presente nelas, infor- mando-as. Isto é, o homem, a espécie homem ndo esta separada de cada homem, mas presente nele, como forma humana. Assim se ex- plica pela vez primeira o problema da relacao das idéias ou espécies 77 HISTORIA DA FILOSOFIA com as coisas individuais, que Platéo tentou em vo esclarecer com 0 conceito insuficiente de participacdo. Os universais sao substancias, mas abstratas, momentos absiratos de cada coisa individual, e por isso se chamam substancias segundas. Ha uma estreita relagdo entre a matéria e a forma e a poténcia e 0 ato. A matéria é simplesmente possibilidade, € poténcia que so se atualiza informando-se; nao tem, portanto, realidade por si mesma. Por essa razao, Deus, que € pura realidade atual, nao pode ter maté- ria, porque nao tem mescla de poténcia e ato, é ato puro. Essa teoria é a que permite, pela primeira vez desde Parménides, resolver o proble- ma do movimento. O movimento * Recordemos que eram dois os graves problemas debatidos na filosofia grega, intimamente relacionados entre si: 0 da unidade do ser e da multiplicidade das coisas, e o do movimento. Os dois confluiam na grande questo do ser e do nao-ser. Vimos que a pri- meira parte do problema encontra sua solu¢ao em Aristoteles admi- tindo que o ente é uno, mas ao mesmo tempo multiplo, mediante a analogia, que concilia e resolve a aporia. Vejamos agora o que se refe- re mais concretamente ao movimento. Mover-se ou mudar é chegar a ser e deixar de ser. Todo movi- mento supde dois termos, um principio e um fim. Esta dualidade é impossivel ontologicamente se 0 ente é uno. Pois bem, dentro da me- tafisica aristotélica, essa impossibilidade nao subsiste. Que € 0 movi- mento para Aristoteles? A definicdo que ele da, aparentemente obscu- ra, € no fundo de grande clareza: a atualidade do posstvel enquanto pos- sivel. J4 indicamos os pressupostos necessarios para entendé-la. Vimos que um ente em poténcia, como a semente ou o ovo, tem também certa atualidade, qual seja: a que torna possivel comer um ovo ou co- merciar trigo, que é um negocio de realidades, e nao de puras possi- bilidades. Quem come um ovo come um ovo em ato, nao uma galinha em poténcia; quando essa poténcia, em vez de permanecer como pos- sivel, se atualiza, ha movimento, que € concretamente a geracao. Ve- rilica-se entao o que costuma ser chamado de passagem da poténcia ao ato, € com mais rigor, a passagem do enle em poténcia ao ente atual. O movimento era impossivel desde Parménides, porque era en- 78 ARISTOTELES. tendido como uma passagem do nao-ser ao ser, ou vice-versa. A Leo- ria da analogia do ente permite ver que se trata da passagem de um modo do ser a outro; isto €, que nos movemos sempre no ambito do ser uno e multiplo. Dessa maneira o problema crucial do movimento atinge sua solucéo madura dentro da filosofia helénica, ea fisica como disciplina filos6fica se torna possivel, ja que se pode falar, do ponte de vista do ser, de uma natureza. As causas * Para Aristételes, a ciéncia, que é do universal, por- que o individual tem uma infinidade de aspectos e nao pode se esgo- tar num saber, e que nao é do acidente, mas da esséncia, é antes cle tudo ciéncia demonstrativa, que faz conhecer as coisas por suas cau- sas e principios. Saber nao € mais discernir, como nos pré-socraticos; nem sequer definir, como em Socrates e Platéo, mas demonstrar, sa- ber o porqué. (Cf. Zubiri: Filosofia y metafisica.) Os principios sao, a um s6 tempo, principios do ser e do conhecer; em Aristoteles a teoria do conhecimento esta, como em toda auténtica filosofia, vinculada essencialmente 4 metafisica. As causas sao os possiveis sentidos em que se pode perguntar por qué. Aristoteles, no livro I de sua Metafisi- ca, retoma as doutrinas dos predecessores para rastrear nelas, de modo balbuciante, a propria teoria das causas. Estas sao quatro: cau- sa material, causa formal, causa eficiente e causa final. A causa material € a matéria, aquilo de que algo € feito. A causa for- mal ou forma é 0 que informa um ente e faz com que seja o que é. A causa eficiente é o princfpio primeiro do movimento ou da mudanga, é quem faz a coisa causada. Por ultimo, a causa final é 0 fim, o para qué. Por exemplo, se tomarmos uma estatua, a causa material € 0 bronze de que esta feita; a causa formal, o modelo; a eficiente, o escultor que a fez, ea final, aquilo para que se esculpiu; por exemplo, o adorno ou a co- memoracdo. A causa formal e a final coincidem com frequéncia'. Deus * Ja temos elementos suficientes para compreender a teo- ria de Aristoteles, exposta principalmente no livro XII da Metafisica. 1 Sobre as dificuldades internas da teoria aristotélica da substancia e de sua in- terpretacdo do ponto de vista de matéria e forma, poténcia e ato, ver minha Biografta de la filosofia, ap. 11 (Obras, vol. Il, pp. 487-94) 79 HISTORIA DA FILOSOFIA Deus € 0 primeiro motor imovel. Que significa isso? Todo movel preci- sa de um motor. A € movido por B; este, por C, e assim sucessivamen- te. Até quando? Teria de ser até 0 infinito, ig &retpov, mas isso é im- possivel. E preciso que a série dos motores termine em algum mo- mento, que haja um motor que seja primeiro. E esse motor tem de ser imovel, para nao necessitar por sua vez de mais um motor e assim até 0 infinito. Esse motor imével, como o objeto do amor e do desejo, que move sem ser movido, é Deus. @e6¢ aristotélico € o fim, o telos de to- dos os movimentos, e ele mesmo nao se move. Por isso tem de ser ato puro sem mescla nenhuma de poténcia, e é, portanto, forma sem ma- téria. E, por conseguinte, o sumo de realidade, 0 ente cujas possibili- dades sAo todas reais: a substancia plena, o ente enquanto tal. O Deus de Aristételes € 0 momento absoluto do mundo. Sua missdo € tornar possivel o movimento, e mais ainda, a unidade do movimen- to: € ele, portanto, que faz com que haja um Universo. Mas nao € cria- dor; esta idéia é estranha ao pensamento grego, e sera ela que marca- r4 a profunda diferenga entre o pensamento helénico e o cristao. O Deus de Aristételes esta separado e consiste em pura theorta, em pen- samento do pensamento ou visdo da visio vénog voricews. E sé nele que a rigor se da a contemplacao como algo que se possui de modo permanente. O Deus aristotélico € o ente absolutamente suficiente, e por isso é o ente maximo. Nessa teoria culmina toda a filosofia de Aristételes. O ente como transcendental * Resta abordarmos, para comple- tar esta rapida viséo da metafisica aristotélica, um ponto especialmen- te importante e dificil. Como vimos, Platéo considerava o ente género supremo. Esse género se dividiria em espécies, que seriam as diferen- tes classes de entes. Aristteles nega categoricamente que o ser seja género. Ea razao que da é a seguinte: para que seja possivel a divisao de um género em espécies é preciso acrescentar ao género uma diferen- (a especifica, assim, ao género animal acrescento a diferenga racional para obter a espécie homem; mas isso nao é possivel com o ser, porque a diferenca tem de ser distinta do género, e se a diferenga é distinta do ser, nao €. Portanto, nao pode haver nenhuma diferenca especifica que se apregue ao ser, e este, portanto, nao € género. 80 ARISTOTILLS O raciocinio de Aristoteles ¢ incontestavel. No entanto, depois de reconhecer sua indiscutibilidade, resta certo mal-esiar, porque se per cebe de modo igualmente evidente a possibilidade de dividir o ente. Basta pensar nas diferentes classes de entes que existem para pereeber que, com efeito, a divisdo é possivel. Aristoteles por certo nao negaria isso, e ele mesmo faz varias divisdes. Entao, o que quer dizer tudo isso? Algo muito simples: nao se pode confundir a divisao em géneros e espécies com a divisdo sem mais nem menos. O ente pode ser divi- dido, mas nao com uma divisdo tao simples. Ha uma articulagao on- tolégica muito mais complexa, e esta é, precisamente, a analogia do ente. Existem muitos modos de ser, mas nao sao espécies, e sim, por exemplo, categorias, flexdes do ente, e o ser esta presente em todos es- ses modos, sem se confundir com nenhum deles. Aristoteles diz que oente é 0 mais universal de todas as coisas, KXOSAOD UGALOTE RAVTOV, que envolve e penetra todas, sem se confundir com nenhuma. O ser é um dos que a filosofia medieval chamou de transcendentais, principal- mente 0 ente, 0 uno e o bem. Nao sao coisas, mas penetram todas as coisas e — diz Aristoteles - acompanham-se mutuamente. Um ente € uno, e seu ser é seu bem em sentido aristotélico. E a unidade tripla do Ov, ou eve ou Gyadv. A esséncia * Aristoteles distingue os termos substdncia e essén- cia. Esséncia se diz em grego com uma expressdo estranha, 16 ti jv eivoa, que foi traduzido assim em latim: quod quid erat esse, literalmen- te o que era o ser O interessante € esse pretérito que se introduz no nome da esséncia. A esséncia €, portanto, anterior ao ser, € 0 que 0 tor- na possivel, o que faz com que seja. Nao se deve entender que a essén- cia seja um conjunto de caracteristicas especialmente importantes de um ente, mas expressa 0 que faz com que aquilo seja o que 6. Quando dizemos que o homem é animal racional, ou animal que tem logos, que fala, nao significa que tomamos duas caracteristicas centrais do ho- mem, sua animalidade e sua racionalidade, e as unimos, mas que essa animalidade e essa racionalidade, essencialmente unidas, sao as que fa- zem com que um ente determinado seja um homem. Por isso, quando se diz que o ldgos da a esséncia de uma coisa, isso nao quer dizer sim- plesmente que enuncia suas caracteristicas centrais, mas que na verda- 81 HISTORIA DA FILOSOFIA de manifesta ou torna patente o ser oculto em que consiste a coisa, 0 que a faz ser. A esséncia tem sempre um estrito significado ontolégico e nao deve ser entendida como mero correlato da definicao. 5. A légica Como ja vimos, o conjunto dos tratados logicos de Aristoteles se agrupa sob o titulo general - cunhado por Alexandre de Afrodisias — de Organon ov “instrumento”. E a primeira obra em que se estudam direta e sistematicamente os problemas da légica, em que esta se cons- titui como disciplina. A tal ponto, que todo o corpus da ldgica aristo- télica perdura até hoje, quase sem alteracao, e sé em raros momentos da historia foram introduzidos pontos de vista novos. A perfeigao des- sa obra aristotélica pesou — nao sem perturbagao — sobre o pensamen- to légico posterior e talvez tenha dificultado sua evolucao. Mas nao se deve esquecer que a logica aristotélica tradicionalmente usada foi bastante [ormalizada e banalizada, e que a fecundidade do Organon em sua forma originaria esta longe de estar esgotada. Vejamos, antes de tudo, o sentido dessa disciplina no conjunto da obra de Aristoteles e a conexao do ldgos com o ser e com a verdade O “logos” + A palavra logos (ASyo¢) quer dizer em grego palavra. Em latim foi traduzida por verbum, e assim aparece no comeco do evangelho de Sao Joao: In principio erat Verbum. Mas também quer di- zer propor¢do, tazao em sentido matematico, e, portanto, sentido, e, fi- nalmente, razdo em sua significacao plena. Mas nao esquecamos que seu sentido primario deriva do verbo légein, reunir ou recolher e, tam- bém, dizer. Logos € o dizer, isto é, a voz significativa. O légos diz o que as coisas sao, e tem uma estreita relacdo com 0 ser. Os principios logicos, por exemplo o de identidade, o de contra- dicdo etc., sao principios ontoldgicos que se referem ao comportamen- to dos entes. Eu ndo posso dizer nem pensar que A é e€ nao é B ao mesmo tempo porque A nao pode sé-lo ¢ ndo sé-lo. A logica nada mais é sendo metafisica. Pois bem, vimos que o ser se diz de muitas manei- tas. Com que modo de ser tem a ver o légos? Evidentemente, com o ser do ponto de vista da verdade ou da falsidade. 82 aa ARISTOTELES Vimos que o verdadeiro e o lalso dependem de como se maniles- la ou se Lorna patente o ser das coisas. Verdade ou falsidlade $0 exis- tem no ambito da verdade em sentido amplo, entendida como alétheia, como descobrimento, desvelamento ou patenteamento. E as coisas se manifestam de modo eminente no dizer, quando se diz 0 que sao, quando se enuncia seu ser. Por isso Aristoteles diz que o lugar natural da verdade é o juizo. Quando digo A é B, enuncio necessariamente uma verdade ou uma falsidade, o que nao ocorre em outros modos da linguagem, por exemplo num desejo (“tomara que chova”) ou numa exclamacao (“ai!"). O dizer enunciativo coloca as coisas na verdade. Mas € claro que essa possibilidade funda-se no carater de verdade das proprias coisas, na possibilidade de seu patenteamento. A verdade mostra o ser de uma coisa, e a falsidade o suplanta por outro. No juizo verdadeiro, uno o que na verdade esta unido, ou se- paro (em meu juizo negativo) o que esta separado, ao passo que no juizo falso faco 0 contrario. O homem € o animal que tem légos; é, portanto, o érgao da ver- dade. E 0 ente no qual transcorre a verdade das coisas, o que as des- cobre e as poe em sua verdade (Zubiri). Por isso Aristoteles diz que a alma humana é em certo sentido todas as coisas. Existe uma relacao essencial entre o ser e o homem que o sabe e o diz. O que funda essa relacdo é o saber, a sophia, a filosofia. Nela o ser alcan¢a sua realidade atual, a luz da verdade. O conteudo do “érganon” + O tratado das Categorias com que se inicia a Logica aristotélica estuda em primeiro lugar os termes e distingue o uso isolado deles — sem complexdo, évev ovpindoxic - de seu uso ligado - segundo a complexao, kat& ovpimdoxny. Isso leva Aristoteles a doutrina das categorias (ou predicamentos), que por si mesmas nao afirmam nem negam nada e, portanto, nao sao verdadei- ras nem falsas até entrarem numa complexdo, para formar proposi- gdes ou juizos. O wuatado da Interpretagdéo ou Hermenéutica (epi eppnveiac) distingue, antes de tudo, duas classes de palavras: o nome (von) e o verbo (pryyic:). O nome é uma voz significativa (pwva onBavTUKH) por 83 HISTORIA DA FILOSOFIA convencao, sem referéncia ao tempo, e nenhuma de suas partes tem significagao separadamente. O verbo acrescenta a sua significacdo a do tempo e é signo de algo que se diz de outra coisa; ou seja, 0 ver- bo funciona dentro da oragdo ou discurso (Abyoc), que é uma voz sig- nificativa cujas partes tém significacdo independente; mas nem todo ldgos € enunciagao, sé aquele em que reside a verdade ou falsidade; ou seja, a afirmacao (katéspacig) ¢ a negacdo @nd@aoic) sao as duas espécies em que se divide a enunciacao, dndpavors, ou légos apophan- tikds. A partir desses pressupostos Aristoteles estuda as relacées entre as proposi¢ées. Os Primeiros analiticos contém a teoria aristotélica do silogismo, que constitui um capitulo central da légica, elaborado de modo qua- se perfeito por Aristoteles. O silogismo (ovAAoyopdc) se opde em cer- to sentido a indugdo (norywryf}): esta, embora as vezes apareca como um procedimento de raciocinio, redutivel ao silogismo (induc¢do comple- ta), tem valor de intuic¢ao direta que se eleva da consideracao dos ca- sos particulares e concretos aos principios; as coisas induzem a se ele- var aos principios universais. Os Segundos analiticos focalizam o problema da ciéncia, e por- tanto da demonstragdo @mSerkétc). A demonstracao leva a definicao, correlato da esséncia das coisas, e se apdia nos primeiros principios, que, como tais, s4o indemonstraveis e s6 podem ser apreendidos di- reta ou indiretamente pelo nods. A ciéncia suprema, como vimos em outro lugar, € demonstrativa, mas seu fundamento Ultimo € a visdo noética dos principios. Aqui culmina a ldgica aristotélica. Os dois tltimos tratados, os Topicos e os Argumentos sofisticos, s4o secundarios e se referem aos lu- gares comuns da dialética, usados na argumentacao provavel, e a ana- lise e refutacdo dos sofismas'. 2. Sobre o problema da logica aristotélica e de suas interpretagGes tradicionais ver minha Introduccién a la filosofia, ap. 61 (Obras, vol. II). Cf. também Ensayos de teo- rta (Obras, IV, pp. 414-9) e La filosofia del Padre Gratry (Obras, lV, pp. 274-7 ¢ 312-4). 84

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