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II Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”

A PIMENTA MALAGUETA NO BRASIL COLONIAL:


INTERAÇÃO ENTRE AFRICANOS E INDÍGENAS

Carina Santos de Almeida e


Shana Cecília Rech∗

PALAVRAS-CHAVE
Pimenta Malagueta, Alimentação, Interação e Influência africana e indígena

RESUMO
As culturas africana e indígena estão inseridas na sociedade brasileira de forma
tão profunda que se torna impossível delimitar suas influências. Assim, a interação entre
africanos e indígenas no uso dos temperos na cozinha, como a Pimenta Malagueta, pode
ser compreendida como um dos muitos pontos de aproximação e assimilação entre as
duas culturas. A pimenta malagueta fora difundida no mundo desde a época clássica até
meados do século XVII na região sul da Europa, sendo que a região norte continuou
utilizando este condimento alimentar. O Novo Mundo Americano usufruía a pimenta
malagueta capsicum a partir do índio, da mesma forma a malagueta africana passou a
ser comercializada nos portos brasileiros a partir do século XV. A malagueta, no Brasil,
deixa de ser apenas preparada pelas mãos indígenas para fazer parte da alimentação da
família brasileira, recebendo também o conhecimento milenar africano.


Graduadas em História/UNISC e pós-graduandas em especialização em História do Brasil, na
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
TODO TRABALHO DO HOMEM É PARA SUA BOCA: a origem da Pimenta
Malagueta

Assim inicia o livro História da Alimentação no Brasil de Luis da Camara


Cascudo1, onde o autor constrói suas idéias alicerçadas na necessidade de comer e
reproduzir, funções essenciais que chegam a se confundir. A história da alimentação
ajuda na reconstituição da cultura brasileira, nas diferentes instâncias do saber material
e/ou imaterial, assim como das representações desta sociedade.
Da mesma forma que Cascudo, o historiador Henrique Carneiro, em Comida e
Sociedade: uma história da alimentação, introduz seu pensamento dizendo:

A alimentação é, após a respiração e a ingestão de água, a mais básica das


necessidades humanas. Mas como 'não só de pão vive o homem', a
alimentação, além de uma necessidade biológica, é um complexo sistema
simbológico de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos,
estéticos, etc. (CARNEIRO, 2003, p.01)

O termo pimenta tem origem no Império Romano, derivando do latim pigmenta,


com significado de pigmento, posteriormente referira-se ao vinho, devido a sua cor e
aroma com especiarias. A pimenta, como aponta Gilberto Freyre, em Casa Grande &
Senzala (1975, p.453) é um elemento básico na culinária que o africano desenvolveu no
Brasil, principalmente pela introdução da pimenta-malagueta. Porém há dúvidas quanto
à pimenta utilizada pelos africanos na culinária empregada no Brasil; ela poderia ser de
origem africana ou indígena, já que ambos faziam uso dela na sua alimentação
cotidiana. Nos livros de receitas da nobreza portuguesa, assim como em muitos relatos
de viajantes, como Hans Staden, há referência à pimenta, contudo não se sabe com
certeza qual a espécie de pimenta que tais escritores se referem, já que a derivação

1
CASCUDO, Luis da Câmara, História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte Ed. Itatiaia; São Paulo:
Ed. da Universidade de São Paulo, 1983. (Reconquista do Brasil: nova série; v. 79-80).

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malagueta era utilizada erroneamente para a pimenta encontrada na América, que tinha
grande semelhança com a pimenta da costa da África.2
Na época moderna, período das grandes navegações, se atribui à difusão
intercontinental da pimenta, sobretudo aos primeiros difusores comerciais, os
portugueses, onde propriamente Portugal se chamara de o Império da Pimenta.
Percebemos que foram muitas controvérsias em relação à origem da pimenta malagueta,
eis que existia no Brasil Colônia uma espécie deste condimento, segundo relato da Nova
Gazeta da Terra do Brasil de 1515: “(...) eles tem também na terra uma qualidade de
especiaria, que arde na língua como pimenta, e, ainda mais, cria-se uma vagem, com
muitos grãozinhos dentro, sendo o grão do mesmo tamanho da ervilha” (ALVES
FILHO, 2000, p. 65).
A denominação malagueta, segundo Bueno (1966, p. 275), “(...) provém do nome
da costa africana chamada Costa da Malagueta”. A semelhança entre as pimentas
originárias da América com a pimenta da África criou uma certa confusão na época, que
segundo Cascudo, “(...) ao fruto da capsicum diz-se ‘Malagueta’, numa transferência de
prestígio porque a verdadeira Malagueta zingiberácea aposentou-se na simpatia negra”
(CASCUDO, 1983, p. 535).
A pimenta capsicum utilizada na culinária indígena conquistou o paladar africano
que se apropria deste condimento e passa a utilizá-lo na sua culinária em detrimento da
falta da malagueta da Costa da África. Cascudo explica que “(...) pelas qualidades
pungentes e ardentíssimas de seus frutos receberam estas plantas capsicum o nome de
pimenta, (...) pimenta do Brasil, depois pimenta da Espanha ou de Caiena e também
pimento, pimentão e malagueta” (Idem, p. 535). Assim o rareamento da antiga
malagueta africana no comércio, coincidiu com o crescente prestígio da capsicum.
Eis que surgem algumas indagações que podem propiciar novas pesquisas sobre a
malagueta. E uma delas é em relação ao motivo da queda na produção da pimenta
malagueta original Zingiberácea. Uma hipótese talvez seja não só pela introdução da
capsicun brasileira, possivelmente de melhor qualidade, como também a concorrência
com as pimentas de origem Hindu. De fato é uma hipótese, mas a questão é merecedora
de um aprofundamento teórico maior.
Contudo, o que realmente interessa nesta análise é verificar a importância da

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Existiam no Brasil dois gêneros de pimenta, um proveniente da família das Anonáceas e outra das
Piperáceas, esta última sendo mais conhecida como capsicum.

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pimenta malagueta na alimentação brasileira, tendo como foco o africano difusor deste
tempero; percebendo que mesmo tendo o indígena se utilizado da pimenta em sua
alimentação, a comida brasileira deve a utilização da pimenta, a malagueta, ao africano
ou afro-brasileiro. Em Freire “(...) a contribuição africana afirmou-se principalmente
pela introdução do azeite-de-dendê e da pimenta-malagueta (...)” (1975, p. 453),
deixando claro que a técnica culinária do africano modificou comidas portuguesas e
indígenas.

A INFLUÊNCIA DA ALIMENTAÇÃO AFRICANA NO BRASIL

A maneira africana de preparar os alimentos assimilou elementos culinários e


pratos típicos portugueses e indígenas, transformando as receitas originais e dando nova
forma à cozinha brasileira. Foi na codificação das cozinhas africanas no Brasil que o
uso da pimenta se transformou em condimento de receita.
Neste sentido, é muito comum, e talvez equivocado, o fato de atribuirmos ao
negro o papel de “transportador” dos produtos de origem tipicamente africanos. Assim
nos diz Câmara Cascudo:

Como seria possível ao desgraçado negro, faminto e doente do banzo,


lembrar-se de trazer as espécies humildes de sua alimentação normal se tudo
era difícil para ele, arrebanhado em batalha, vendido pelo rei, sacudindo nos
porões asfixiantes, sem nutrição suficiente; fome, miséria, doenças, maus
tratos, motivando sua atenção para sobreviver? (Idem, p. 869)

Ou seja, temos claramente quase que destituído o papel do negro como o agente
no sentido de trazer o alimento.
Mas, o objetivo aqui é ressaltar a influência africana na alimentação do Brasil. E
se de fato possuímos a capsicum, e esta fora utilizada pelo indígena, sobretudo foi a
presença das mãos negras que difundiram o uso da pimenta malagueta (original ou não)
no Brasil, se tornando “(...) laje fundamental da comida afro-brasileira.” (Idem, p. 855)

O escravo africano, nas viagens transatlânticas para o Brasil, era alimentado


com milho fresco ou assado, aipim e farinha de mandioca, ou seja, alimentos indígenas.
Segundo Cascudo (1983, p. 222) “(...) a vantagem era acomodar o escravo com a futura
dieta regular no Brasil (...)”, porém o escravo não foi apenas aculturado, mas também

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exerceu influência na alimentação brasileira, trazendo de sua terra uma culinária que se
adaptou aos produtos do país.

A influência africana na alimentação brasileira talvez tenha sido a mais


marcante e isso é afirmado por Freire:

Cremos, poder-se afirmar que na formação do brasileiro – considerada sob o


ponto de vista da nutrição – a influência mais salutar tem sido a do africano:
quer através dos valiosos alimentos, principalmente vegetais, que por seu
intermédio vieram-nos da África, quer através do seu regime alimentar,
melhor equilibrado do que o do branco – pelo menos aqui, durante a
escravidão. Dizemos aqui, como escravo, porque bem ou mal os senhores de
engenho tiveram no Brasil o seu arremedo de taylorismo, procurando obter
do escravo negro, comprado caro, o máximo de esforço útil e não
simplesmente o máximo de rendimento. (1975, p. 44)

Assim, percebemos que mesmo havendo a escravidão isso não impediu que a
alimentação africana se expandisse. Talvez porque as negras e alguns negros tiveram
acesso à cozinha dos brancos, preparando alimentos. Segundo Fernandes: “Não
devemos esquecer que os negros eram portadores de saberes ancestrais, que não
deixavam de aplicar nas chácaras (hortas) que o português tanto apreciava: alfaces,
chicória, favas, abóbora, feijões, batata-doce e outros.” (2000, p.18)

Neste contexto, percebemos a pimenta como um elemento quase que básico na


culinária que o africano desenvolveu no Brasil. Cascudo afirma que existiam entre os
africanos até doces de pimenta (1983, p. 533). Porém há dúvidas quanto a pimenta
utilizada pelos africanos na culinária empregada no Brasil, ela poderia ser de origem
africana mesmo ou indígena, já que ambos faziam uso dela na sua alimentação
cotidiana.

Notamos em Cascudo, que quase tudo o que se comia na África levava


pimenta, e que a mais antiga era a malagueta, sendo empregada na alimentação africana
desde época remota (1983, p. 533). O autor ainda aponta, citando Gossweiler, ter sido a
Malagueta trazida da África e plantada na Bahia, mas que no entanto, a pimenta que
predominou na alimentação brasileira foi a malagueta nativa americana,

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(...) uma salanácea, Capsicum, levada do Brasil pelos portugueses e que
conquistou indispensável e definitivo emprego na culinária africana, desde os
fins do séc. XVI. Ao fruto da Capsicum diz-se “malagueta”, numa
transferência de prestígio porque a verdadeira malagueta aposentou-se na
simpatia negra. (1898, p. 534)

Atribuímos então, que a influência africana na alimentação brasileira, deu-se


principalmente, pela utilização dos temperos, sendo a pimenta malagueta o principal
condimento aceito pelo paladar dos brancos. Mas, se por um lado à malagueta vinda da
África recebeu adeptos no Brasil, tendo sido plantada na Bahia, a sua imitação, a
Capsicum, a malagueta americana, também conquistou o paladar do africano.

Com a Expansão Comercial e Marítima, aconteceu uma verdadeira distribuição


de produtos em todo o mundo, os portugueses, segundo Cascudo, ” (...) foram agentes
distribuidores de espécies com surpreendente eficiência. De suas mais longínquas
possessões orientais e africanas traziam sementes, raízes, ‘mudas’, bolbos, confinando-
os à terra brasileira.”(CASCUDO, 1983, p. 241)

Assim, podemos certamente crer que a pimenta malagueta sendo a capsicum ou


a africana foi aceita no paladar brasileiro, sendo apreendida do índio e utilizada pelo
negro.

APRECIAÇÃO CRÍTICA

No discorrer do tema ‘A pimenta malagueta’ americana – capsicum e a


africana – zingiberácea, confundiu-se em muitos momentos estas duas plantas, que são
pimentas, mas não pertencem a mesma família alimentícia.

Ao longo do texto percebe-se a extrema importância que vai adquirindo a


pimenta ao paladar brasileiro a partir do século XV, até se consolidar no século XVIII.
Contudo os indígenas já utilizavam essa pimenta na preparação alimentar da tribo, mas
foi a partir do preparo do escravo africano, na cozinha da família, que a pimenta

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capsicum torna-se indispensável à gastronomia, sobretudo difundida da Bahia para o
Brasil como um todo.

É precisamente na cozinha baiana que esta difusão dar-se-á de maneira


mais intensa. Conforme aponta Gilberto Freyre “(...) no regime alimentar brasileiro, a
contribuição africana afirmou-se principalmente pela introdução do azeite-de-dendê e
da pimenta malagueta, tão característico da cozinha baiana.” (1963, p. 485)

A pimenta malagueta da África – zingiberácea, utilizada tanto no Brasil,


quanto na Europa, perde seu uso, não se sabe exatamente porquê e acaba se tornando
escassa, sendo sua difusão substituída pela malagueta americana. Na própria África, de
onde se produz e exporta a zingiberácea, esta acabou sendo minimizada em detrimento
da capsicum. Especulando ainda este tema, talvez a melhor aceitação da pimenta
capsicum tenha minimizado a zingiberácea.

Então a polêmica em torno da origem da pimenta malagueta zingiberácea no


Brasil, e a substituição da mesma neste, na Europa e sobretudo na África, consolida-se
numa dúvida pertinente à um ensaio profundo.

Em todos os momentos estamos falando de apenas uma variedade de tempero


africano e brasileiro – afro-brasileiro. Mas o mais interessante é salientar que a tradição
não se limita apenas quanto à origem dos alimentos, mas passa pelas técnicas de preparo
como também chega às características místicas religiosas e afrodisíacas. Essa
simbologia, alicerçada na idéia de alimento quente, picante e capaz de interferir no
temperamento humano, é tão importante para a consolidação da identidade brasileira
que até hoje se compreende este povo quente, afetuoso, libidinoso, tanto para o homem
quanto para a mulher. O mesmo não acontece na Europa, que a partir do século XVIII,
com o despertar do pensamento iluminista e racional, abdica de alimentos propensos a
desvirtuar a moral européia, passando a pimenta, tanto malagueta capsicum, quanto à do
reino a ser menos freqüente na gastronomia européia.

Esta ligação alimentar com a tradição africana, nos permite pensar o quanto
fora forte à influência da África no Brasil, pois como concorda Gilberto Freyre “(...) o
escravo africano dominou a cozinha colonial, enriquecendo-a de uma variedade de
sabores novos” (Idem, p. 484)

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REFERÊNCIAS

ALVES FILHO, Ivan; GIOVANNI, Roberdo Di. Cozinha Brasileira. Rio de Janeiro:
Revan, 2000.

BUENO, Francisco da Silveira. Grande Dicionário Etimológico – prosódico da língua


portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1966.

CARNEIRO, Henrique. Comida e Sociedade: uma história da alimentação. Rio de


Janeiro: Campos, 2003.

CASCUDO, Luis da Câmara, História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte Ed.


Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1983. (Reconquista do Brasil:
nova série; v. 79-80).

FREYRE, Gilberto de Melo, Casa-Grande & senzala. 12ª edição brasileira, 13ª edição
em língua portuguesa. [Brasília] Editora Universidade de Brasília, 1963.

FERNANDES, Caloca. Viagem Gastronômica através do Brasil. São Paulo: Editora


Senac e Editora Estúdio Sônia Robatto, 2000.

HAFNER, Dorinda. Sabores da África. São Paulo: Selo Negro, 2000.

LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. História da Gastronomia. Rio de Janeiro:


Senac Nacional, 1998.

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