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15212013 4751
artigo article
Work as a promoter of health
Abstract Studies on the relation between health Resumo Os estudos sobre a relação entre saúde
and work tend to highlight the negative and e trabalho tendem a destacar seu viés negativo e
pathological aspects, as if work produces only patológico, como se o trabalho produzisse ape-
sickness and alienation. On the contrary, our nas adoecimento e alienação. Ao contrário, nossa
proposal is to stress how work can also produce proposta é pensar como o trabalho também pode
health. Based on Canguillem’s concept of health, produzir saúde. A partir do conceito de saúde de
and from the contributions of the so-called “work Canguilhem e das contribuições das chamadas
clinics”, we intend to analyze the purpose of work “clínicas do trabalho”, queremos analisar a função
as a promoter of health. Canguilhem affirms that do trabalho como operador de saúde. Canguilhem
health is not adaptive, as such it does not involve afirma que a saúde não é adaptativa, ou seja, não
adapting well to the world, but to the creation of é um bem adaptar-se ao mundo, mas uma cria-
tenets of life. For their part, the work clinics pro- ção de normas de vida. Já as clínicas do trabalho
vide tools to approximate us to the know-how- nos fornecem ferramentas para nos aproximar do
to-do produced by workers in their daily work, saber-fazer produzido pelos trabalhadores em seu
namely not only how workers adapt to work, but cotidiano de trabalho, ou seja, de como os traba-
how they create and recreate it permanently Thus, lhadores não apenas adaptam-se ao trabalho, mas
we can think work as a promoter of health where o criam e recriam permanentemente. Sendo as-
there is room for collective and personal creation, sim, podemos pensar no trabalho como operador
as well as recognition of workers in their activity. de saúde quando há lugar para a criação coletiva e
Key words Occupational health, Work, Activity, pessoal, bem como para o reconhecimento do tra-
Work clinics balhador em sua atividade.
Palavras-chave Saúde do trabalhador, Trabalho,
Atividade, Clínicas do trabalho
1
Centro de Estudos Gerais,
Universidade Federal
Fluminense. Campus do
Gragoatá Bloco O sala 310,
São Domingos. 24210-200
Niterói RJ Brasil.
claudiaosorio@terra.com.br
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Silva CO, Tamminger T
sa quando, ao final da guerra, ao buscarem estes estreita relação entre determinadas ocupações e
pacientes, os encontraram vivendo seja com suas o adoecimento psíquico, dando origem aos es-
famílias, seja trabalhando em fazendas ou peque- tudos sobre Psicopatologia do Trabalho22. Junto
nos negócios, sem problemas que justificassem com a Ergonomia, a Psicopatologia do Trabalho
propostas de reinternação. Para além das propos- formou a base inicial mais influente da tradição
tas adaptativas, o trabalho, com sua chamada à da clínica do trabalho francesa, concentrando
atividade, apresentava-se como fator de desen- sua atenção nos modos de adoecimento psíquico
volvimento e operador de saúde para todos, mes- relacionados ao trabalho, em um entendimen-
mo para aqueles com graves transtornos mentais. to de que a organização do trabalho capitalista
Essa experiência foi vivida por Tosquelles (Saint era nociva à saúde mental dos trabalhadores23,24.
Alban), Le Guillant (Villejuif) e muitos outros, O projeto mais influente, representado por Le
marcando o nascimento da psicoterapia institu- Guillant, era o de chegar a um mapeamento das
cional e da reforma psiquiátrica francesa. formas de adoecimento ligadas ao trabalho. Seus
A partir dessa experiência, Tosquelles de- referenciais teóricos e metodológicos foram se
senvolveu a ergoterapia, em um entendimento diferenciando da abordagem do condicionamen-
de que o trabalho pode ser uma terapia, ou seja, to clássico pavloviano à fenomenologia e mesmo
pode auxiliar no restabelecimento da saúde. No à gestalt23,25.
entanto, como nos chama atenção Clot, Tosquel- Ressaltamos que esses autores e abordagens
les tem uma definição bastante peculiar para a serão apropriados de diferentes maneiras nas dis-
ergoterapia. Segundo ele, citado por Clot20: cussões das décadas seguintes, acerca das relações
Não se trata de fazer os doentes trabalharem entre trabalho e saúde.
para diminuir tal ou qual sintoma. Trata-se de fa-
zer trabalhar os doentes e o pessoal que os cuida, A normalidade como enigma
para cuidar da instituição. Para que a instituição
e o pessoal de saúde captem no vivo que os doentes Já no final dos anos 1970, a segunda gera-
são seres humanos sempre responsáveis por aquilo ção da psicopatologia do trabalho, liderada por
que fazem, o que só pode ser colocado em evidência Dejours, observou que os trabalhadores não se
na condição de fazer alguma coisa. revelavam passivos frente aos constrangimentos
Cuidar, como ressalta Clot, tem um duplo organizacionais, desenvolvendo sistemas defen-
sentido: transformar o trabalho e fazer um traba- sivos coletivos (estratégicos e ideológicos) para
lho bem feito. Aqui já temos uma pista de como o se proteger desses constrangimentos e dos riscos
trabalho pode ser operador de saúde, a partir da de adoecerem. O foco, portanto, deixa de ser a
condição dos trabalhadores transformarem sua busca de detecção das doenças mentais ocasio-
situação de trabalho e se reconhecerem no traba- nadas pelo trabalho e passa a ser o sofrimento
lho bem realizado. e as defesas contra o sofrimento no trabalho, ou
O que ocorreu durante a guerra, na análise de ainda, a normalidade e não a doença mental11,25.
Tosquelles, foi a chamada dos doentes à ativida- Aos poucos, Dejours inverte a pergunta-chave
de, para cuja definição ele chama atenção: ativi- da psicopatologia do trabalho, questionando-se
dade, na noção adotada por ele, seguindo Simon, não mais sobre como o trabalho “enlouquece” os
não tem nada a ver com agitação, andar de um trabalhadores, mas sobre como os trabalhadores,
lado para o outro, ou qualquer outro movimen- mesmo quando sujeitos às mais diversas pressões
to feito por imposição alheia. A noção adotada patogênicas no trabalho, conseguem evitar a do-
remete à “atividade própria: pessoal e personali- ença mental e a loucura. É a normalidade, por-
zante, aquela que toma como fonte e se enraíza tanto, que emerge como enigma na relação entre
em cada um”21. No mesmo texto, Tosquelles afir- saúde e trabalho.
ma que está aí, na chamada à atividade, a justifi- Como o próprio autor explica:
cativa do sucesso das comunidades terapêuticas. Simultaneamente, era a ‘normalidade’ que sur-
O cuidar da instituição refere-se, assim, a não ser gia como enigma central da investigação e da aná-
complacente com nenhum dos envolvidos, con- lise. Normalidade que ocorre, de saída, como equi-
vocando-os todos à atividade, principalmente os líbrio instável, fundamentalmente precário, entre o
doentes, já que é considerada em seu potencial de sofrimento e as defesas contra o sofrimento [...]. Ao
produtora de saúde. operar esta passagem da patologia à normalidade,
Já para outros psiquiatras, como Le Guillant sou levado a propor uma nova nomenclatura para
e Sivadon, os efeitos das experiências pós-guerra designar essas pesquisas: Psicodinâmica do Traba-
levaram a outros estudos, que apontaram para a lho25.
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de grande importância), como dos recursos de tam uma vida limitada. Elas não suportam tantas
gênero, coletivamente construídos, disponíveis, variações, forçando o indivíduo a se preservar de
mas suficientemente insuficientes para obrigar à mudanças.
inventividade ou àquilo que, na clínica da ativi- Situações em que o trabalhador é coagido,
dade, entende-se como atividade. como na organização do trabalho taylorista, a
De acordo com a clínica da atividade, a subje- camuflar sua inventividade, restringem também
tividade é produzida na atividade, mas não pode essa função do trabalho como operador de saú-
ser vista como mera projeção mecânica desta. A de. Também na situação atual, em que prescri-
partir de Vygotski, o desenvolvimento do sujei- ções paradoxais, de produzir perseguindo metas
to não é pensado como simples progressão, mas sempre mais altas, com excelência e com o mí-
como uma metamorfose. O desenvolvimento do nimo de recursos, percebe-se o impedimento
poder de agir pode abrir uma crise nos modos da atividade normativa dos trabalhadores e um
habituais de pensar, viver, trabalhar. A partir de terreno fértil para o adoecimento. Sendo assim,
Spinoza, Clot27 afirma que a subjetividade não é a atividade normativa, na situação de trabalho, se
uma disposição constitutiva do sujeito, mas re- dá no diálogo e no conflito entre as dimensões
fere-se ao poder de ser afetado. “O esforço para do ofício. Se, neste diálogo, o trabalhador pode se
desenvolver o poder de agir não está separado de reconhecer como integrante do coletivo de ofício,
um esforço para elevar, ao grau mais elevado, o a possibilidade de ousar criar está preservada.
poder de ser afetado”. Na clínica da atividade o conceito de reco-
Nesse inacabamento dos recursos de gênero, nhecimento toma então um rumo diferente da-
o sujeito é levado a explorar também recursos de quele que tem na psicodinâmica do trabalho. O
outras fontes, como aqueles de sua própria his- importante, do ponto de vista da clínica da ativi-
tória, profissional ou mesmo pessoal. E confron- dade, é a possibilidade que os trabalhadores têm
tado com a necessidade de fazer escolhas, seguir de se reconhecer no que fazem. E essa possibili-
por um caminho, abandonando outros. dade se dá em função do modo como se inscre-
Ao lado de Vygotski28, considera-se que o vem na história de um ofício, que não pertence
“homem está pleno a cada minuto de possibili- a ninguém em particular, mas pela qual todos se
dades não realizadas”. Tais possibilidades não re- sentem responsáveis. A mobilização subjetiva no
alizadas constituem um plano em que o sujeito trabalho está direcionada para um sobre destina-
pode agir mais ou menos livremente; em que o tário, a instância transpessoal do ofício.
sujeito pode, inclusive, resistir quando se tenta Na atividade, o destinatário de segurança é o
amputar seu poder de agir. gênero: a dimensão transpessoal do ofício. O su-
O trabalho nos coloca a todo instante frente jeito deve sempre dialogar com o ofício, questio-
a impasses. Se os trabalhadores não dispõem de ná-lo, mas sempre respeitando esse patrimônio.
recursos para ultrapassá-los, ou de meios para O trabalho realizado precisa ser coerente com
desenvolver tais recursos, estão em situação de o que o ofício consagrou, mas acrescentando aí
atividade impedida ou contrariada. O trabalho, algo mais, pondo algo de si e dando vitalidade a
portanto, só produz saúde quando há atividade, este ofício. A controvérsia, o debate de escolas,
sendo que a situação de atividade impedida é renova tanto a instância transpessoal do ofício, o
uma situação de sofrimento e desgaste. gênero, quanto retorna sobre as prescrições mais
Vamos novamente lembrar Canguilhem2: estabilizadas, a sua instancia impessoal, modifi-
“Patológico implica pathos, sentimento direto e cando-as.
concreto de sofrimento e impotência, sentimen- Nas palavras de Yves Clot,
to de vida contrariada”. Seguindo esse modo de nada é mais importante que ‘atacar’ o ofício
pensar, compreendemos por que a clínica da ati- para defendê-lo. Ele só pode durar se a última pa-
vidade afirma que a atividade impedida é fonte de lavra não for jamais dita, e o último gesto não for
sofrimento e, frequentemente, de adoecimento. jamais completado. Portanto a vitalidade interpes-
Ainda inspirados em Canguilhem, referên- soal do ofício repousa por inteiro sobre os ombros
cia importante para Clot e outros autores, po- de cada trabalhador, e todos são responsáveis para
demos dizer que o trabalho será operador de preservá-lo da imutabilidade29.
saúde quando for normativo, ou seja, propiciar Sendo assim, é importante, para a manuten-
a fabricação de normas, ou de constantes, que ção da saúde, que o trabalhador possa, além de
Canguilhem chamou de normas propulsivas, realizar suas tarefas, contribuir para a renova-
aquelas que não constituem obstáculo a novas ção e para a vitalidade daquilo que ele tem em
normas. Já as normas de valor repulsivo susten- comum com seus pares: seu ofício. Na enorme
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Colaboradores
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