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DOI: 10.1590/1413-812320141912.

15212013 4751

O trabalho como operador de saúde

artigo article
Work as a promoter of health

Claudia Osorio da Silva 1


Tatiana Ramminger 1

Abstract Studies on the relation between health Resumo Os estudos sobre a relação entre saúde
and work tend to highlight the negative and e trabalho tendem a destacar seu viés negativo e
pathological aspects, as if work produces only patológico, como se o trabalho produzisse ape-
sickness and alienation. On the contrary, our nas adoecimento e alienação. Ao contrário, nossa
proposal is to stress how work can also produce proposta é pensar como o trabalho também pode
health. Based on Canguillem’s concept of health, produzir saúde. A partir do conceito de saúde de
and from the contributions of the so-called “work Canguilhem e das contribuições das chamadas
clinics”, we intend to analyze the purpose of work “clínicas do trabalho”, queremos analisar a função
as a promoter of health. Canguilhem affirms that do trabalho como operador de saúde. Canguilhem
health is not adaptive, as such it does not involve afirma que a saúde não é adaptativa, ou seja, não
adapting well to the world, but to the creation of é um bem adaptar-se ao mundo, mas uma cria-
tenets of life. For their part, the work clinics pro- ção de normas de vida. Já as clínicas do trabalho
vide tools to approximate us to the know-how- nos fornecem ferramentas para nos aproximar do
to-do produced by workers in their daily work, saber-fazer produzido pelos trabalhadores em seu
namely not only how workers adapt to work, but cotidiano de trabalho, ou seja, de como os traba-
how they create and recreate it permanently Thus, lhadores não apenas adaptam-se ao trabalho, mas
we can think work as a promoter of health where o criam e recriam permanentemente. Sendo as-
there is room for collective and personal creation, sim, podemos pensar no trabalho como operador
as well as recognition of workers in their activity. de saúde quando há lugar para a criação coletiva e
Key words Occupational health, Work, Activity, pessoal, bem como para o reconhecimento do tra-
Work clinics balhador em sua atividade.
Palavras-chave Saúde do trabalhador, Trabalho,
Atividade, Clínicas do trabalho

1
Centro de Estudos Gerais,
Universidade Federal
Fluminense. Campus do
Gragoatá Bloco O sala 310,
São Domingos. 24210-200
Niterói RJ Brasil.
claudiaosorio@terra.com.br
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Silva CO, Tamminger T

Introdução sultados de estudos realizados sobre transtornos


mentais relacionados ao trabalho, estimando-se
Marx1 já afirmava que modificando a natureza, o um índice de 30% de transtornos mentais meno-
homem se modifica e produz a si mesmo. Da mes- res, e de 5 a 10% de transtornos mentais graves
ma forma, Canguilhem2 enfatiza que a principal na população trabalhadora ocupada8. Esses índi-
característica do humano não é sua capacidade de ces são confirmados, no Brasil, pelos números da
adaptar-se ao meio, mas de criar um meio para Previdência Social, onde as psiconeuroses ocupam
(melhor) viver. Para ele, o que caracteriza a saúde o primeiro lugar entre as causas de incapacidade
é justamente a possibilidade de criação e recriação temporária, e o terceiro lugar entre as de incapaci-
de mundos, a capacidade de instituir novas nor- dade permanente e invalidez (Anuário Estatístico
mas de vida frente às “infidelidades do meio”, ou da Previdência Social – AEPS, 2011). A partir de
seja, frente a um mundo sempre em transforma- 2007, com a adoção do Nexo Técnico Epidemioló-
ção. Partindo desta concepção de saúde, a relação gico Previdenciário (NTEP), houve um estrondoso
entre saúde e trabalho não pode ser pensada so- aumento de 1157% no número de benefícios con-
mente em seu caráter negativo, como se o trabalho cedidos, considerando a relação entre saúde men-
produzisse apenas adoecimento e alienação. tal e trabalho, o que evidencia a subnotificação dos
O trabalho seria, então, sempre fonte de de- agravos, bem como a dificuldade em se estabelecer
senvolvimento humano? Também não. Segundo o nexo causal entre o adoecimento psíquico e a
uma das linhas teóricas aqui adotadas – a clí- atividade laboral9. Para aqueles não familiarizados
nica da atividade3– o trabalho só produz saúde com o NTEP, ressaltamos que ele estabelece auto-
quando há atividade. A atividade entra como um maticamente o nexo causal, entre a lesão ou agra-
conceito chave que iremos explorar ao longo do vo e a atividade desenvolvida pelo trabalhador,
texto. Por ora, basta afirmar que o impedimento considerando o cruzamento das informações do
da atividade é a fonte de sofrimento e, frequente- código da Classificação Internacional de Doenças
mente, de adoecimento. (CID-10) e do código da Classificação Nacional de
Temos acompanhado, desde a década de 80 Atividade Econômica (CNAE)10.
do século XX, o crescimento de uma discussão Sendo assim, com as mudanças que se ob-
do trabalho como fonte de sofrimento psíquico e servam nos mundos do trabalho e a consequen-
de diferentes quadros associados ao adoecimento te mudança no perfil de morbimortalidade da
mental. O debate que já existia, por exemplo, na população trabalhadora, o sofrimento psíquico,
França, com Le Guillant, nos anos 1950, retorna, a depressão e as doenças associadas ao estresse
se recompõe e se intensifica. (entre elas as cardiovasculares) se tornam mais
No Brasil, a criação do campo da Saúde do frequentes e, portanto, objeto de atenção. Nesse
Trabalhador dá a este debate uma importância quadro, o trabalho aparece na maioria dos estu-
específica4-6. Este campo insere-se na tradição dos dos como tripalium, como fonte de desgaste e so-
estudos sobre a relação entre saúde e trabalho, di- frimento, ou como diz Edith Seligmann-Silva11,
ferenciando-se, no entanto, da Medicina do Tra- desgaste que ocorre numa situação de trabalho
balho ou da Saúde Ocupacional, na medida em dominado. Especialmente na área da saúde foi
que propõe colocar o processo de trabalho (e não realizada em 2012, por Brito et al.12, uma exten-
o indivíduo) no centro da análise dessa relação, sa revisão de bibliografia referente às pesquisas
defendendo mudanças em processos de trabalho existentes, onde se verifica que as relações entre
potencialmente produtores de adoecimento, ao condições de trabalho e sofrimento e desgaste
mesmo tempo em que pretende valorizar o sa- são majoritárias em relação àquelas que tratam
ber e a experiência do trabalhador sobre seu pró- da saúde na acepção que aqui adotamos.
prio trabalho, entendendo-o como sujeito ativo Essa discussão, sem dúvida necessária, so-
do processo saúde-doença e não, simplesmente, bre as condições de trabalho precárias e inade-
como objeto de atenção à saúde7. O peso das es- quadas e seus possíveis efeitos sobre a saúde dos
tatísticas, somado ao esforço dos pesquisadores e trabalhadores acaba, muitas vezes, encobrindo a
dos movimentos sociais, culminou com o reco- importante função do trabalho como operador
nhecimento legal da relação entre saúde mental de saúde para o ser humano. Buscando melhor
e trabalho no Brasil, apenas em 1999, através do desenvolver esse argumento, primeiro apresenta-
Decreto 3048/99, que discrimina os transtornos mos patrimônios comuns às clínicas do trabalho,
mentais relacionados ao trabalho. quais sejam, a ergonomia, a psicoterapia institu-
No Relatório da Organização Mundial da cional e a psicopatologia do trabalho. Clínicas do
Saúde, lançado em 1985, são apresentados os re- trabalho é uma designação que tenta agrupar di-
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versas vertentes teóricas que desenvolveram-se a Assim, foi a ergonomia francófona que
partir da psicopatologia do trabalho e da ergono- cunhou o termo “atividade”, para diferenciar o
mia francófona, quais sejam, a Psicodinâmica do trabalho efetivamente realizado da prescrição
Trabalho, a Psicossociologia, a Ergologia, a Clíni- de uma tarefa13. O trabalho prescrito é definido
ca da Atividade, entre outras. Como percebemos, como um conjunto de condições e exigências a
elas não constituem uma escola de pensamento, partir das quais o trabalho deverá ser realizado,
nem são homogêneas, mas compartilham pontos ou seja, incluindo tanto as condições dadas para
em comum, tais como: interesse pela ação dos a realização de um trabalho (ambiente físico, ma-
coletivos de trabalhadores, o entendimento do téria-prima, condições socioeconômicas), como
trabalho como atividade e do trabalhador como as prescrições propriamente ditas (normas, or-
sujeito complexo que não se limita ao seu com- dens, resultados exigidos). A ergonomia esfor-
portamento, a preocupação com a emergência do ça-se em demonstrar que este trabalho prescrito
sofrimento no trabalho e ainda a compreensão da jamais corresponde ao trabalho real, pois ao rea-
dimensão constitutiva e positiva do trabalho13-15. lizar uma tarefa, o trabalhador se depara com di-
Em seguida, discorremos sobre as contribui- versas fontes de variabilidade, desde as mais téc-
ções de duas abordagens das clínicas do trabalho nicas até as mais subjetivas. Entre o trabalhador
para este tema: a psicodinâmica do trabalho e a e a tarefa temos, portanto, um terceiro elemento:
clínica da atividade, considerando suas afinida- a atividade de trabalho, que consiste justamen-
des e discordâncias teóricas, bem como o diálogo te na realização (sempre singular) de um traba-
com o filósofo George Canguilhem. lho, considerando-se tanto o trabalho prescrito,
como as variabilidades que têm que ser geridas
Patrimônio partilhado: contribuições pelo trabalhador.
da ergonomia, psicoterapia institucional Para Montmollin18 seria mais preciso falar em
e psicopatologia do trabalho Ergonomias, complementares, mas não sem con-
para as clínicas do trabalho tradições. A ergonomia dos componentes huma-
nos seria uma “ergonomia de primeiros socorros”
Ergonomia, no imediato pós-segunda guerra, que considera as características dos postos de tra-
na Inglaterra, foi a denominação da primeira as- balho (iluminação, calor, umidade, ruídos, assen-
sociação (Ergonomic Research Society) que reunia tos, etc.), independente daqueles que os ocupam.
profissionais de diversas disciplinas, sobretudo a Já a ergonomia da atividade permite ao trabalha-
Psicologia, a Fisiologia e as Engenharias, para um dor interessar-se por sua atividade real, tempo-
empreendimento inovador: adaptar o trabalho ral, complexa, rara, aparentemente inventiva e às
ao homem e não o inverso, como operava a Psi- vezes imperfeita19. Ao demonstrar que a situação
cotécnica. “Filha da guerra”, esta primeira Ergo- real de trabalho jamais é apenas o cumprimento
nomia, como tantas outras inovações produzidas de regras pré-estabelecidas, conforme acreditava
a partir desse trágico acontecimento histórico, foi a gerência racionalizadora taylorista, por exem-
transportada para o mundo industrial, no qual plo, essa Ergonomia apontou que em qualquer
percebiam-se problemas de natureza similar16. atividade, mesmo aquela considerada mais sim-
A análise ergonômica, como nos explicam ples, mecânica ou manual, sempre há uma ope-
Leplat e Hoc17 e Montmollin18, tem duas grandes ração inteligente e uma intensa atividade mental.
abordagens: uma, identificada com as experi- As estratégias desenvolvidas para gerir a distância
ências estadunidenses e britânicas, centrada no entre a tarefa prescrita e a atividade, constituem o
componente humano (human factors) do sistema chamado “ponto de vista da atividade”. Um ponto
homem-máquina; e outra, que se desenvolveu a de vista dentre outros – como o ponto de vista
partir dos países francófonos, privilegiando a dos resultados, das condições de produção, etc. –
análise da atividade situada, expressão da inte- mas que, em regra, encontra-se excluído ou intei-
ração dinâmica entre sujeito e tarefa. O objetivo ramente subordinado aos demais.
da primeira abordagem é adaptar os dispositivos Também a partir da vivência da guerra, a ex-
tecnológicos às características e limites dos seres periência de alguns psiquiatras franceses foi um
humanos e, para tanto, prioriza métodos científi- marco na discussão sobre a relação entre saú-
cos baseados na generalização e quantificação. Já de e trabalho. Nesse período, o risco eminente
a segunda, traz como uma das principais contri- de bombardeios fez com que alguns hospitais
buições a diferenciação entre trabalho prescrito e psiquiátricos decidissem libertar os pacientes,
trabalho real, avançando posteriormente para os mesmo aqueles que supostamente não estariam
conceitos de tarefa e atividade. aptos ao convívio social. Qual não foi a surpre-
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sa quando, ao final da guerra, ao buscarem estes estreita relação entre determinadas ocupações e
pacientes, os encontraram vivendo seja com suas o adoecimento psíquico, dando origem aos es-
famílias, seja trabalhando em fazendas ou peque- tudos sobre Psicopatologia do Trabalho22. Junto
nos negócios, sem problemas que justificassem com a Ergonomia, a Psicopatologia do Trabalho
propostas de reinternação. Para além das propos- formou a base inicial mais influente da tradição
tas adaptativas, o trabalho, com sua chamada à da clínica do trabalho francesa, concentrando
atividade, apresentava-se como fator de desen- sua atenção nos modos de adoecimento psíquico
volvimento e operador de saúde para todos, mes- relacionados ao trabalho, em um entendimen-
mo para aqueles com graves transtornos mentais. to de que a organização do trabalho capitalista
Essa experiência foi vivida por Tosquelles (Saint era nociva à saúde mental dos trabalhadores23,24.
Alban), Le Guillant (Villejuif) e muitos outros, O projeto mais influente, representado por Le
marcando o nascimento da psicoterapia institu- Guillant, era o de chegar a um mapeamento das
cional e da reforma psiquiátrica francesa. formas de adoecimento ligadas ao trabalho. Seus
A partir dessa experiência, Tosquelles de- referenciais teóricos e metodológicos foram se
senvolveu a ergoterapia, em um entendimento diferenciando da abordagem do condicionamen-
de que o trabalho pode ser uma terapia, ou seja, to clássico pavloviano à fenomenologia e mesmo
pode auxiliar no restabelecimento da saúde. No à gestalt23,25.
entanto, como nos chama atenção Clot, Tosquel- Ressaltamos que esses autores e abordagens
les tem uma definição bastante peculiar para a serão apropriados de diferentes maneiras nas dis-
ergoterapia. Segundo ele, citado por Clot20: cussões das décadas seguintes, acerca das relações
Não se trata de fazer os doentes trabalharem entre trabalho e saúde.
para diminuir tal ou qual sintoma. Trata-se de fa-
zer trabalhar os doentes e o pessoal que os cuida, A normalidade como enigma
para cuidar da instituição. Para que a instituição
e o pessoal de saúde captem no vivo que os doentes Já no final dos anos 1970, a segunda gera-
são seres humanos sempre responsáveis por aquilo ção da psicopatologia do trabalho, liderada por
que fazem, o que só pode ser colocado em evidência Dejours, observou que os trabalhadores não se
na condição de fazer alguma coisa. revelavam passivos frente aos constrangimentos
Cuidar, como ressalta Clot, tem um duplo organizacionais, desenvolvendo sistemas defen-
sentido: transformar o trabalho e fazer um traba- sivos coletivos (estratégicos e ideológicos) para
lho bem feito. Aqui já temos uma pista de como o se proteger desses constrangimentos e dos riscos
trabalho pode ser operador de saúde, a partir da de adoecerem. O foco, portanto, deixa de ser a
condição dos trabalhadores transformarem sua busca de detecção das doenças mentais ocasio-
situação de trabalho e se reconhecerem no traba- nadas pelo trabalho e passa a ser o sofrimento
lho bem realizado. e as defesas contra o sofrimento no trabalho, ou
O que ocorreu durante a guerra, na análise de ainda, a normalidade e não a doença mental11,25.
Tosquelles, foi a chamada dos doentes à ativida- Aos poucos, Dejours inverte a pergunta-chave
de, para cuja definição ele chama atenção: ativi- da psicopatologia do trabalho, questionando-se
dade, na noção adotada por ele, seguindo Simon, não mais sobre como o trabalho “enlouquece” os
não tem nada a ver com agitação, andar de um trabalhadores, mas sobre como os trabalhadores,
lado para o outro, ou qualquer outro movimen- mesmo quando sujeitos às mais diversas pressões
to feito por imposição alheia. A noção adotada patogênicas no trabalho, conseguem evitar a do-
remete à “atividade própria: pessoal e personali- ença mental e a loucura. É a normalidade, por-
zante, aquela que toma como fonte e se enraíza tanto, que emerge como enigma na relação entre
em cada um”21. No mesmo texto, Tosquelles afir- saúde e trabalho.
ma que está aí, na chamada à atividade, a justifi- Como o próprio autor explica:
cativa do sucesso das comunidades terapêuticas. Simultaneamente, era a ‘normalidade’ que sur-
O cuidar da instituição refere-se, assim, a não ser gia como enigma central da investigação e da aná-
complacente com nenhum dos envolvidos, con- lise. Normalidade que ocorre, de saída, como equi-
vocando-os todos à atividade, principalmente os líbrio instável, fundamentalmente precário, entre o
doentes, já que é considerada em seu potencial de sofrimento e as defesas contra o sofrimento [...]. Ao
produtora de saúde. operar esta passagem da patologia à normalidade,
Já para outros psiquiatras, como Le Guillant sou levado a propor uma nova nomenclatura para
e Sivadon, os efeitos das experiências pós-guerra designar essas pesquisas: Psicodinâmica do Traba-
levaram a outros estudos, que apontaram para a lho25.
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Dejours salienta que o desenvolvimento de O ofício, em uma definição psicológica do
seus estudos foi possível graças a um duplo diá- termo, é ao mesmo tempo pessoal, interpessoal,
logo: com a psicanálise e com a ergonomia (além impessoal e transpessoal. Ele é, estruturalmente,
da fenomenologia social, da sociologia compre- o movimento resultante do conflito entre essas
ensiva, da ética, do trabalho e das relações de gê- quatro dimensões que o constituem. A dimensão
nero). A partir da diferença apontada pela ergo- impessoal está relacionada às tarefas prescritas
nomia, entre trabalho prescrito e trabalho real, das organizações e instituições, mas para que o
Dejours interessou-se pelos processos organiza- ofício se desenvolva, é preciso que também este-
tivos e subjetivos que colaboram para a luta pela ja vivo em suas outras dimensões: “ele vive tam-
saúde, propondo a definição de trabalho como bém – ou morre – entre profissionais e em cada
“a atividade manifestada por homens e mulheres um deles na motricidade dos diálogos em que se
para realizar o que ainda não está prescrito pela realizam, ou não, as trocas intrapessoais e inter-
organização do trabalho”25. pessoais sobre o real do trabalho. Os profissionais
Dar conta daquilo que não está prescrito, exi- envolvidos na atividade são diretamente respon-
ge inventividade, criatividade e formas de inte- sáveis por essa vida. Trata-se do trabalho coletivo
ligência específicas, as quais Dejours denomina para realizar a tarefa e repensá-la coletivamente
“engenhosidade” ou “inteligência da prática, do na atividade conjunta”27.
corpo”. Toda atividade de trabalho inclui, segun- A atividade produz e mantém a quarta di-
do o autor, uma forte mobilização subjetiva que, mensão de existência do ofício, a dimensão
por um lado é “espontânea”, mas por outro, não transpessoal: a história e a memória profissional
deixa de ser extremamente frágil, dependendo que se configuram como um meio de agir no pre-
da dinâmica existente entre contribuição e retri- sente e de dimensionar o futuro. “Essa memória
buição, envolvendo o julgamento de outrem. O é aqui designada como transpessoal, visto que
trabalhador espera reconhecimento simbólico da não pertence a ninguém, é um meio disponível
sua contribuição, sem o qual tende a desmobi- para todos e para cada um, atravessa gerações
lizar-se, com profundas consequências para sua e, inclusive, cada profissional”27. A dimensão
saúde mental: transpessoal corresponde ao que, em clínica da
Assim, a psicodinâmica do trabalho comple- atividade, se define como o gênero da atividade
ta a análise dinâmica do sofrimento e das estra- profissional3,27.
tégias defensivas mediante a análise dinâmica do O trabalho é, então, a capacidade de estabele-
sofrimento e sua transformação em prazer pelo cer engajamentos em uma história coletiva. Tra-
reconhecimento. O trabalho oferece amálgama ao balhar é sair de si, inscrever-se em “uma história
conjunto ‘sofrimento e reconhecimento’. Se falta coletiva cristalizada em gêneros sociais em geral
reconhecimento, os indivíduos engajam-se em es- suficientemente equívocos e discordantes para
tratégias defensivas para evitar a doença mental, que possam transformar-se a partir das novas ex-
com sérias consequências para a organização do periências vivenciadas pelos trabalhadores, para
trabalho, que corre o risco de paralisia25. que cada um deva ‘dar sua própria contribuição’
Vejamos, em seguida, como a clínica da ati- e sair de si”3.
vidade converge e se diferencia da psicodinâmica Clot toma como ponto de partida a mesma
do trabalho, considerando o papel do trabalho definição de coletivo forjada por D. Cru. Para
como operador de saúde. esse autor, nem todo “trabalho coletivo implica
um coletivo de trabalho”, uma vez que este último
Trabalhar, ‘sair de si’: exige “simultaneamente, vários trabalhadores,
a função psicológica do trabalho uma obra e linguagem comuns, determinadas re-
gras de ofício, além de respeito duradouro dessas
O trabalho, para a clínica da atividade, exerce regras por cada um, o que impõe uma evolução
na vida pessoal uma função psicológica específi- individual que vai do conhecimento das regras à
ca. E isso porque o trabalho é uma atividade diri- sua interiorização”27.
gida3. A atividade é dirigida a outrem – aos pares, No trabalho há sempre muitas variações
aos chefes –, é também dirigida ao objeto de tra- possíveis. Há uma distância entre o prescrito e
balho; e dirigida ao que Bakhtin26 chama de sobre o realizado que exige que o sujeito crie soluções,
destinatário. Um destinatário ‘de segurança’ que, faça escolhas entre vários caminhos possíveis.
no caso da atividade de trabalho, é o ofício. Em As variações técnicas, sociais e pessoais exigem
especial, a dimensão transpessoal do ofício, a di- o trabalho da subjetividade. Para isso, o traba-
mensão do gênero de atividade profissional. lhador vale-se tanto da prescrição (um recurso
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de grande importância), como dos recursos de tam uma vida limitada. Elas não suportam tantas
gênero, coletivamente construídos, disponíveis, variações, forçando o indivíduo a se preservar de
mas suficientemente insuficientes para obrigar à mudanças.
inventividade ou àquilo que, na clínica da ativi- Situações em que o trabalhador é coagido,
dade, entende-se como atividade. como na organização do trabalho taylorista, a
De acordo com a clínica da atividade, a subje- camuflar sua inventividade, restringem também
tividade é produzida na atividade, mas não pode essa função do trabalho como operador de saú-
ser vista como mera projeção mecânica desta. A de. Também na situação atual, em que prescri-
partir de Vygotski, o desenvolvimento do sujei- ções paradoxais, de produzir perseguindo metas
to não é pensado como simples progressão, mas sempre mais altas, com excelência e com o mí-
como uma metamorfose. O desenvolvimento do nimo de recursos, percebe-se o impedimento
poder de agir pode abrir uma crise nos modos da atividade normativa dos trabalhadores e um
habituais de pensar, viver, trabalhar. A partir de terreno fértil para o adoecimento. Sendo assim,
Spinoza, Clot27 afirma que a subjetividade não é a atividade normativa, na situação de trabalho, se
uma disposição constitutiva do sujeito, mas re- dá no diálogo e no conflito entre as dimensões
fere-se ao poder de ser afetado. “O esforço para do ofício. Se, neste diálogo, o trabalhador pode se
desenvolver o poder de agir não está separado de reconhecer como integrante do coletivo de ofício,
um esforço para elevar, ao grau mais elevado, o a possibilidade de ousar criar está preservada.
poder de ser afetado”. Na clínica da atividade o conceito de reco-
Nesse inacabamento dos recursos de gênero, nhecimento toma então um rumo diferente da-
o sujeito é levado a explorar também recursos de quele que tem na psicodinâmica do trabalho. O
outras fontes, como aqueles de sua própria his- importante, do ponto de vista da clínica da ativi-
tória, profissional ou mesmo pessoal. E confron- dade, é a possibilidade que os trabalhadores têm
tado com a necessidade de fazer escolhas, seguir de se reconhecer no que fazem. E essa possibili-
por um caminho, abandonando outros. dade se dá em função do modo como se inscre-
Ao lado de Vygotski28, considera-se que o vem na história de um ofício, que não pertence
“homem está pleno a cada minuto de possibili- a ninguém em particular, mas pela qual todos se
dades não realizadas”. Tais possibilidades não re- sentem responsáveis. A mobilização subjetiva no
alizadas constituem um plano em que o sujeito trabalho está direcionada para um sobre destina-
pode agir mais ou menos livremente; em que o tário, a instância transpessoal do ofício.
sujeito pode, inclusive, resistir quando se tenta Na atividade, o destinatário de segurança é o
amputar seu poder de agir. gênero: a dimensão transpessoal do ofício. O su-
O trabalho nos coloca a todo instante frente jeito deve sempre dialogar com o ofício, questio-
a impasses. Se os trabalhadores não dispõem de ná-lo, mas sempre respeitando esse patrimônio.
recursos para ultrapassá-los, ou de meios para O trabalho realizado precisa ser coerente com
desenvolver tais recursos, estão em situação de o que o ofício consagrou, mas acrescentando aí
atividade impedida ou contrariada. O trabalho, algo mais, pondo algo de si e dando vitalidade a
portanto, só produz saúde quando há atividade, este ofício. A controvérsia, o debate de escolas,
sendo que a situação de atividade impedida é renova tanto a instância transpessoal do ofício, o
uma situação de sofrimento e desgaste. gênero, quanto retorna sobre as prescrições mais
Vamos novamente lembrar Canguilhem2: estabilizadas, a sua instancia impessoal, modifi-
“Patológico implica pathos, sentimento direto e cando-as.
concreto de sofrimento e impotência, sentimen- Nas palavras de Yves Clot,
to de vida contrariada”. Seguindo esse modo de nada é mais importante que ‘atacar’ o ofício
pensar, compreendemos por que a clínica da ati- para defendê-lo. Ele só pode durar se a última pa-
vidade afirma que a atividade impedida é fonte de lavra não for jamais dita, e o último gesto não for
sofrimento e, frequentemente, de adoecimento. jamais completado. Portanto a vitalidade interpes-
Ainda inspirados em Canguilhem, referên- soal do ofício repousa por inteiro sobre os ombros
cia importante para Clot e outros autores, po- de cada trabalhador, e todos são responsáveis para
demos dizer que o trabalho será operador de preservá-lo da imutabilidade29.
saúde quando for normativo, ou seja, propiciar Sendo assim, é importante, para a manuten-
a fabricação de normas, ou de constantes, que ção da saúde, que o trabalhador possa, além de
Canguilhem chamou de normas propulsivas, realizar suas tarefas, contribuir para a renova-
aquelas que não constituem obstáculo a novas ção e para a vitalidade daquilo que ele tem em
normas. Já as normas de valor repulsivo susten- comum com seus pares: seu ofício. Na enorme
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intensificação do trabalho que observamos atu- psicodinâmica do trabalho. Como vimos, Dejou-
almente, na precarização do trabalho, no medo rs25 propõe a análise dinâmica do sofrimento no
do desemprego, nem sempre o trabalhador pode trabalho e sua transformação em prazer pelo re-
contar ou contribuir com essa tradição coleti- conhecimento. Se falta reconhecimento, os traba-
vamente construída. Trabalho corrido, cansaço, lhadores desenvolvem estratégias defensivas para
metas inalcançáveis são obstáculos para que o evitar o adoecimento, com graves consequências
trabalhador possa contribuir para a história de para a saúde dos trabalhadores e a organização
seu ofício. do trabalho.
Vemos hoje então um enfraquecimento da Na clínica da atividade, o reconhecimento
função psicológica do trabalho enquanto opera- que produz saúde se dá no reconhecimento do
dor de desenvolvimento humano, pessoal e cole- trabalhador, por si mesmo, produzido pela ava-
tivamente considerado. A função psicológica do liação de que realiza um trabalho bem feito, do
trabalho se expressa no momento em que o ho- qual pode se orgulhar. Os critérios do ‘bem feito’
mem pode dele destacar-se, quando não se per- são fabricados continuamente na dinâmica do
cebe mais como fundido com sua tarefa e, ainda, ofício, na permanente construção e reconstrução
quando a ação tende a aumentar seu poder de do gênero de atividade profissional.
afetar e ser afetado. Afirmar que o trabalho pode ser operador de
É interessante ressaltar que, desse ponto de saúde não é tentar escamotear a nocividade dos
vista, quanto mais história coletiva, quanto mais modos de organização de trabalho hegemônicos
recursos de ofício, mais recursos para a singulari- na atualidade. Ao contrário, se nos aprofundar-
dade. Ou, como Yves Clot gosta de dizer, quanto mos na concepção de saúde de Canguilhem2,
mais coletivo, mais sujeito. aqui apresentada, veremos o quanto ela pode nos
auxiliar na ampliação do poder de agir dos tra-
Trabalho e saúde: o fio da navalha balhadores. Considerando as características pre-
dominantes nos modos de trabalhar contempo-
Em ambas as abordagens das clínicas do tra- râneos, percebemos que a potência normativa do
balho, percebemos que a distância entre trabalho trabalhador é prejudicada não por ter que lidar
prescrito e real, e a produção coletiva de modos com o erro ou o acaso inerentes à vida, mas prin-
de lidar com essa defasagem, dão lugar a pensar cipalmente por condições adversas perfeitamente
o trabalho como operador de saúde. Da mesma evitáveis. Se, para esse autor, o conceito de saúde
forma, destaca-se a função do reconhecimento se define pela capacidade de tolerância às infide-
no trabalho. lidades do meio, a partir da criação de normas,
Esse tema tem chamado a atenção dos psicó- ampliar esta capacidade é uma tarefa coletiva,
logos no Brasil, inicialmente a partir da leitura da que inclui a transformação das condições sociais.

Colaboradores

CO Silva e T Ramminger contribuíram na cons-


trução do argumento e na redação do texto.
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Referências

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