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INTRODUGAO A psicologia, desde o seu nascimento oficial como ciéncia independente, vive, a0 lado de outras ciéneias humanas, uma crise permanente. Esta crise se caracteriza pela extraordindria diversidade de posturas medotolégicas e teéricas em persistente e irredutivel oposigao. ama a tengo ac 6 necessério igualmente desvelar o terreno em que as posigées divergentes cobram sentido e podem ser legitimamente confrontadas umas com as outras. No presente trabalho tentaremos sugerir algumas idéias acerca do projeto de fazer da psicologia uma ciéncia inde- pendente para, em seguida, enfocar as posturas alternativas em suas articulagées com este projeto. os modelos de de uma variedade quase infinita de escolas e “seitas” Psicolégicas, foram aqui denominados matrizes do pensamento sicoldgico. so 9 avis uma das matrizes examinadas recebeu uma designa- do que aponta para o grande conjunto cultural que esté na sua origem. No foco das andlis Qn ntificas, acintosamente anticientificas presente texto, embora redigido com o objetivo de alcan- gar prioritariamente alunos pés-graduados e profissionais da area psi, poderd ser também us ido com se na Aisciplina de Psicologia geral, na Universidade de Sao Paulo. No nivel de pés-graduagao foi adotado no Mestrado em psicologia da Universidade Federal da Parafba e no Doutoramento em social da PUC-SP. Para garantir esta diversidade de © texto foi escrito com a suposigo de que servird ou como complementar para aulas expositivas — como ocorre nos cursos de graduacio ~ ou como leitura de oritentacao geral, situando a5 matrizes e escolas delas derivadas e conduzindo o leitor a outros textos que fornecam mais informagao ou andlises femativas. Para tanto, ao final de cada capftulo, nas notas, © for encontrard indicagées comentadas de bil plementar. I A Constituigéo do Espacgo Psicolégico 1. EMERGENCIA E RUINA DO SUJEITO ‘Aidade modema inaugura-se com um fendmeno de amplas ‘ penetrantes repercuss6es no surgimento da psicologia contem- pordnea: receptivo de uma apreensio empirica ou racional da esséncia das coisas, cede lugar, progressivamente, & razio e & aso instru- mental!, Bfetivamente, ao longo da idade Média jd se podiam vislumbrar os primeiros sinais da mudanga nas obras de Roger Bacon, Robert Grosseteste e Jean Buridan, por exemplo~. O experimento, um procedimento ativo, acrescenta-se & mera ob- servagéo, e a finalidade utilitéria emerge como justificativa ¢ legitimagao da ciéneia, ao lado da tradicional busca da verdade objetiva. Connudo, € a obra do filésofo Francis Bacon — um esplrito de transigdo entre a Renascenga ea Idade Moderna — que este novo modo de existéncia prét suficientemente sistematizada e vorada de uma nova era. No: ivros, Bacon (um empirista extremado) atribui ao suje de senhor de direito da natureza, cabendo ao conhecimento trans! fato: “Tantum possumus quantum s. enfatizara tanto o cardter operante das 0 mundo, bem como a legitimidade dessa forma de relacio- namento, Descartes, apesar de, como racionalista, opor-se radi- calmente ao emp interesse utili fisica e, ao princi dades particulars... conhecimentos muito witeis para a vida e que, smo baconiano, compartilha com Bacon do igar desta filosofia especulativa que se ensina nas escolas, pode-se encon- ‘rar uma filosofia pritica pela qual conhecendo a forga e a ago do fogo, da dgua, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros os do mesmo modo a todos como que senhores ¢ poss método). Desde entéo, de Bacon e Descartes as filosofias da ciéncia do século XX~ numa tradigiio que passa pelos empiristas ingleses S. Peirce e J. Dewey, pelo fenomenalismo de Emnst Mach e pelo refutabilismo de Sir Karl Popper - a subordi- nagdo do conhecimento cientifico & utilidade, & adaptaglo e a0 controle, bem como a modelacao da pratica cientifica pela aggo instrumental alcangaram realce cada vez maior. © com o desdobramento da tradigao utlitérla, a. possivel ¢ desejdvel aplicagéo prética do conhecimento deixa de atuar apenas como um condicionante externo, justificando e moti- >, na verdade, nem mesmo ocorre ne eorias do conhecimento ainda per- maneciam sob 0 modelo da razio fe, edlculoe teste. © “Tea” objeto desta ciéncia ~ é apenas o real tecnicamente manipulavel, na forma efetiva do contole ou na forma simbélica do cdlculo ¢ do exata o teste pSe & prova uma técnica de intervengio ‘resultados. E real, portanto, o que ima ao esquema destas opera- tecnologia produtiva progridem 1parando-se e incentivando-se reciprocamente, ¢ isto & el porque ambas encarigm um mesmo projeto e visam da forma os seus objetos.> Em sua obra, contudo, Bacon, ao lado da énfase no aspecto yminador da atividade humana, coloca esta mesma atividade julgamento a que so sub- ias anticientificas do espirito. Nao se trata de ampliar o tema renascentista do rompimento com a io e com os preconceitos que, na prépria Renascenca, lade e,na imaginagéo sem freios, na *, Em Francis Bacon e, em particu- cienciosamente A vertente ra exigia também a divida metédica como procedimento fun- damental da ciéncia: descontente com a diversidade das opinides ‘dos costumes, com tudo o que lera e com tudo o que observara escartes coneluiu: “No que tange a todas as fazer coisa melhot que tentar tird-las de alista da nova ciéneia, com Descartes, BIBLIOTECA UNIVERSITARIA PROF_ROGER PATTI quando estivessem ao nivel da razao (...) Repelir como inteira- mente falso tudo aquilo em que pudesse supor a mais fnfima duivida, e isso para verificar se restaria, depois, algo em sua renga que fosse completamente fora de diivida. Assim, algumas vezes conhecendo que os nossos sentic imaginar que nada existisse com exatida imaginar. Como existem homens 4 raciocinios e incorrem em paralogismos falsas todas as razBes que anteriorment ‘tragées”, ‘Na doutrina dos {dolos e na diivida metédica encontram-se, iscursos de suspeita que a Idade Moderna ¢ extirpar, ou pelo menos neutralizar, a subjetividade empirica. Na dentincia dos “{dolos do teatro” Goutrinas e sistemas filosdficos) reconhecem-se as posigdes rigidamente empiristas e antiteoricistas dos dogméticos do an- tidogmatismo {como os positivistas B. F, Skinner)®; com a deminci: formas coloquiais de comunicas tejeitou como sendo ‘tomara por demons- cimento da personalidade, da histéria de vid: bioldgica e do desejo como fatores responsdveis pelo matt uso dos sentidos. Embora dificil de obter —e exigindo uma constante higiene mental ~ a evidéncia emp{tica ainda era para Bacon, como continuou a ser para as flosofias empiristase positvistas, a base segura para se fundar e validar o conhecimento objetivo. J& no século XVII, todavia, a doutrina das qualidades primérias ¢ ldrias adotada por Galileu e Deseartes introduz uma sus- peita exatamente em relacéo & confianga na percepgio. © do- ‘inio da fisica restringe-se, com estes autores, a0 que pode ser submetido & razio matemética da geometria e da mectnica, medido e calculado. Objetos da ciéncia sdo apenas aqueles aspectos da realidade que podem ser reconhecidos pela razio como objetives (qualidades primérias), enquanto que se exclu aquilo que ¢ dado apenas e téo-somente & sensibilidade”. O Puramente sensivel € 0 ilusério,o transitro, a criagao arbitaria 16 pirito, Para esta ciéncia das leis gerais e da quantidade, que ‘objeto o que permanece e se reproduz regularmente, a perceptiva, a experincia sensorial pode ser tao perigosa a ser vencido na constituigdo de uma prética ientifica € a percepsao ingénua ~ saturada de preconceitos e aus habitos ~ da experiéncia pré-reflexiva!. A partir de um outro ponto de vista, Hegel ¢ Marx con- twibufram para a desconfianga em relagdo ao sensivel, ao imedi- seja pura falsidade, mas um momento simultaneamente distinto cenecessario da esséncia,o conhecimento da esséncia deve negar aparéncia e, ao mesmo tempo, recuperé-la, desvelando sua gicas, neste caso, i uma dimenséo essencial da re: ‘movimento que o cria, que as que nele se esconde & tretanto, que para além. imediato, o marxismo primeiros textos de Althu: alinhado entre os movimentos intelectuais que opdem radical- mente o senstvel eo intligivel, o que se manifestaria na oposicio supostamente insuperdvel entre ideologia e cigncia. Enquanto se desenvolvia a suspeita dirigida & experiéncia sensorial, numa outra tradigdo era a prépria razo que tinha seu valor e limites investigados. O grande fildsofo empirista David outros, que desqualifica a Iégica como reitora incon discurso cientifico e a coloca como resultado da experiéncia, algo v7 condicionado e essencialmente relativo, objeto ela prépria de ‘uma ciéncia emp{rica. A cautela diante da prépria razio - pelo encobriria (revelaria) inte ses de legitimagio coletiva ou individual. ‘Tomando-se autores e movimentos intelectuais isolada- dos afetos e das mé a0 desespero e & con sdo ao conhecimento of que mais se aproxima 40 reduziria o sujei io como ilusdria de qualquer preten- de poder, e de outro a critica impiedosa do conduzindo ambas a dissolugdo do ideal do da Idade Moderna, & relagdoa uma das ago ~ que, ciente da impossibilidade de extirpar o subjetivismo e infcio da pesquisa, promova um processo ho termo ideal da atividade epi perceber que a época define- elas taticas de defesa io armado em torno da de ilusio. Na linguagem coloquial a atribuigo de cardter sub- Jetivo a um argumento o desqualifiea diante da légica ou dos fatos. A produgéo e a validacao do conhecimento é, em iltima © incremento do dominio téenico sobre a natureza, doa Bscalizagio, 0 autocontrole¢ 3 autocoregdo do iterna as mesmas préticas de pesquisa — e, portanto, dade, a afetividade, a intuigao, a viven- -onflitam com a razo instrumental; num nivel, & a propria razdo que se desdobra em discursos ita que procuram identificar e extirpar es racionais os vestigios cada vez mais, fiel a este impulso indefinidamente auto-reflexivo, a precisaria renunciar & ambigio de ter uma histéria que -bida como uma aproximacao infinita da verdade e, numa ‘medida, como actimulo de conhecimento. Porém, a0 radi- 1pre e inevitavelmente condi- eu proprio objeto — a padrao de verificagao e contrapdem aos seus objetos, mas fazem, numa certa medida, parte deles. A interpenetragio do sujeito e do objeto do conheci- ‘mento psicol6gico manifesta-se também no que vem sendo apon- tado por varios autores"”: as hipéteses no deixam intactos seus objetos, senio que contribuem para modelé-los e condicioné-los. Em conclusao: a psicologia, que nasce no bojo das tentati- vas de fundamentagao das outras ciéncias, fica destinada a ndo encontrar jamais seus préprios fundamentos, a nunea satisfazer os cénones de cientificidad atendimento motivou sua répria emergéncia como ciéncia independente. Mas fica igual- mente destinada a sobreviver seguranca nem confianga, tentando precariamente ocupar 0 espaco que a configuragdo do saber Ihe assegurou, 2. EMERGENCIA E RUINA DO INDIViDUO A identidade social numa sociedade agréria, como a medi- eval, em que as relagées politicas cristalizadas em direitos e deveres, em obrigacées lealdades consuetudindrias suportavam 0 peso de toda a reprodusdo social era totalmente, ou quase, pré-definida pela cultura em fungdo de eventos biogréficos, como © nascimento, a filiagdo e a idade, independentes do préprio individuo. Grande ou pequeno, fraco ou poderos0 o individuo era em grande medida o que a comunidade defini restringindo-se, ainda que ndo se eliminando de todo, afaixa das opgées individu ais capazes de, na interagio com a Sociedade, contribuir para a definigdo de sua identidade social. A dissolugéo destes vinculos pessoais calcados na tadigao erodiu a identidade social nfo problematica, Desde entéo, ser alguém pressupse tornar-se al- guém. Paralelamente, 0 desaparecimento das formas de proprie- dade feudais e comunais, a apropriacio privada dos meios de produgio e a apropriagdo individual do préprio corpo ~ que liberto das obrigacGes e separado da terra convertia-se em forga de trabalho — asseguravam as bases econémicas da existéncia individual independente. Finalmente, a competigao no mercado de bens e de trabalho projetava a individualizagio como ideal ¢ pré-condigao para a realizacao do sujeito no contexto da vida em sociedade. Mas tomar-se um alguém individualizado, se é posstvel ¢ esejdvel, é também dificil: na nova forma de organizagio social a convivéncia é marcada pelas relagdes instrumentals e pela luta 20 interesses particulares opostos. Em outras palavras: a cada bjetivamente, nao interessa a individualizagéo alhei- , a0 contrério, a obediéncia do préximo ao controle i previsdo exata, o que s6 6 possivel se o outro exibir quando nao impossivel. Em que pese a individualizacéo impre promovida apesar e 8s custas dos outros, enquanto a sociedade experimentava suas imensas potencialidades de \dugdo e libertagao, a imagem de homem dominante era a do ividuo capaz de discemnimento, capaz de cdlculo na defesa de i interesses — que a longo prazo convergiriam para os interes- ralismo eléssico do inicio do século XIX. Mais tarde, porém, a sociedade enitra em crise. As guerras, fas operdrias, as recessGes econdmicas, a permanéncia e a xragdo dos bolsées de miséria urbana, a delingiéncia etc. sntam a revisio da ideologia liberal. E 0 individuo privado, jd a visto como irracionalmente egoista, insensatamente ime- iatista, ineapaz de espontaneamente submeter-se a0 autocon- trole exigido para a prevengdo das crises e conflitos, o grande jatério. O mesmo padrio de resposta — nitidamente walista - aparece na geréncia cientifica, na tec- , com fumos esquerdistas, nas concepgées mili- Lares e burocréticas da “vanguarda proletria”, como é 0 caso dos partidos comunistas lninstas, A burocratizajio apenas reaiza integralmente o principio de instrumentalidade que pen eae econ da razio instrumental a que se devem submeter os individuos"®, Esta perspectiva instrumental da administragao racionalizada aparece também no projeto de constituigo de uma psicologia como ciéneia do (contra o) individuo. Julga-se necessario, efet conhecer para fiscalizar, controlar, prever ¢ cortigir ) 0 egofsmo e a irracionalidade contradigéo que mina a psicologia como ciéncia natural do sujeito. Ou bem o individuo é realmente tinico, independente e inracional, sendo portanto refratério as leis da ciéncia e da sociedade ~ neste caso a psicologia poderia ser necesséria, mas j4vel; ou bem néo passa o individuo de uma ficcdo a ser ,e eno a psicologia sera também uma ilusdo transitéria 2 | © enti a psicologia serd também uma ilusfo transitéria justfiea como cincia independente. Oberva-se também a ciso no individuo. De um lado 0 individuo para si, irredutivel; de outro, o individuo para o outro, um suporte de is pré-definidos. Um, objeto de uma psicologia que outxo, objeto de uma ciéncia que néo chega a ser 3, CONCLUSOES Reconstituindo-se as condigées turais que jazem no subterréneo do cientifica, que lhe criam o espago e define notar: 1) A oposigdo estabelecida entre, de um lado, o caréter supostamente pré ou anticientifico do sujeit supostamente pré ou anti-social rivado e, de outro a necessidade de submerer a vida interior do individuo a leis, descobrindo nela regularidades que possibilitem o controle © a coloquem a servigo do dominio técnico da natureza e da reprodugio social. 2) Em decorréncia, a ciéneia psicolégica tenta-se constituir, sendo obrigada a, simultaneamente, reconhecer e desconhecer seu objeto. Se ndo o reconhece no se ciologia. Se néo 0 descor que néo submete at ‘metodologia cientifica nem resulta na formulag: gerais com preditivo. Abre-se entio um campo de divergencias jes que ndo tem nada de acidental nem parece que possa uunificado amavés de um processo de eliminagao de alternativas que no suportem o teste empirico'? ou de para digmatizacao em tomo de uma alternativa particularmente bem- sucedida”. As divergéncias parecem, antes, refletir as contradigées do préprio projeto que, por stia vez, enraizam-se na ambigiiidade da posigao e do individuo na cultura ocidental contempornea. No capftulo seguinte serio apresen- tadas em suas grandes linhas as alternativas em conflito, 22, Noras 1A dindmica intema desta transformagio ¢ agudamente analisada em: dade Média do instrumentalismo pode ser acompa- i pty Harondowort Penguin 1972, 6.Cf, KOLAKOWSKA, L. Op. cit, p. 959. 7..Ch. em GUSDORE, G. Introduction ae slenes humains, cap. TV da 3° parte e cap Ilda 4 parte. Paris, Ophys, 1974.

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