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XX, 2003
Simone Scifoni*
RESUMO:
Este artigo procura analisar a trajetória de criação e consolidação do conceito de patrimônio mundial
pela Unesco, com destaque para as questões relativas ao patrimônio natural. Discute os critérios de
identificação do valor universal dos bens, apresentando um diagnóstico da distribuição dos bens
to m b ad o s pelo mundo e analisa o patrimônio mundial como um dos instrumentos que definem o
quadro das relações internacionais na esfera ambiental.
P A L A V R A S -C H A V E :
Patrim ônio mundial, patrimônio natural, gestão ambiental, Unesco, preservação ambiental.
ABSTRACT:
This article seeks for analysing the trajectory of the creation and concept consolidation of world heritage
by Unesco, highlighting the relative questions to the natural heritage. It discusses the criteria of universal
value properties showing a registered properties distribuition diagnosis all through the world and it analyses
the world heritage with one of the instruments that defines the international relationship table in the
environmental sphere.
KEY W O R D S :
World heritage, natural heritage, environmental management, Unesco, enviroment preservation.
produto econôm ico, consumível por platéias cada Para CFIOAY (2001, p.51) o nascimento
vez m aiores. As conseqüências destas práticas do m onum ento histórico deu-se em Roma, por
r e s u m e m - s e , m u it a s v e z e s, em e x c lu s ã o da volta de 1420, período que se convencionou deno
população local, uma vez que é necessário fornecer minar de Renascim ento e que foi marcado pela
ao p ro d u to , ta n to uma em b alag em , com o um generalização de ideais humanistas. Entre eles, o
con teúd o a p rop riad o para a venda. Esta exclusão da v a lo r iz a ç ã o do h om em e da n atureza em
ta m b é m se relacion a à valorização do espaço con traposição ao divino e ao sobrenatural e o
g e o g r á fic o qu e ten d e a criar uma pressão do grande interesse, um verdadeiro fascínio, pelas
m ercado imobiliário sobre esta população. obras da Antiguidade Clássica, consideradas como
A s s i m , o d e b a t e s o b r e o f u t u r o do uma "lição de construção"
patrim ônio não se desvincula da discussão sobre Foram p r in c ip a lm e n t e os e s c rito re s e
a produção do espaço geográfico. Entendendo a artistas humanistas que ressaltaram a importância
i m p o r t â n c i a d e s t e t e m a p a ra a G e o g r a f i a dos m o n u m e n to s da civilização g reco-rom ana
p re te n d e m o s e xam in ar a trajetória da idéia de como representativos de um passado antigo e,
p a t r i m ô n i o m u n d i a l, da su a g ê n e s e a sua portanto, portadores de informações históricas e
c o n s o lid a ç ã o internacional e, no interior desta de qualidade artística.
t r a j e t ó r i a , as p a r t i c u l a r i d a d e s r e la t i v a s ao No entanto, segundo a autora, foi somente
p a trim ô n io natural, objeto de nosso in teresse no século XIX, na França, que nasceu a proteção
específico. institucional do patrimônio cultural nacional através
A b o r d a r e m o s , tam b ém , a p ro te çã o do da c r i a ç ã o de um ó r g ã o r e s p o n s á v e l p elo
patrim ônio m undial, de um lado como um dos classem ent (1837), equivalente ao que se conhece
instrum entos que concorrem para configurar uma no Brasil como tom bam ento, e edição da primeira
ordem a m b ie n ta l internacional (RIBEIRO, 2002) e, lei de proteção de m onum entos históricos (1887).
de outro, como uma possibilidade de contribuir para Foram as condições criadas pela Revolução
a gestão de um novo projeto de civilização. Francesa que estim ularam a necessidade desta
p ro teção legal. S e g u n d o MAYUME (1999:25),
2 - A invenção do patrimônio mundial
c o m o c o n s e q ü ê n c i a da r e v o lu ç ã o , os b en s
A U n e s c o 1, criada em 1946 como o o rg a confiscados da igreja, da coroa e da aristocracia
nismo da ONU encarregado de gerir as questões passaram ao dom ínio do Estado. A conservação
r e l a t i v a s à e d u c a ç ã o e c u lt u r a no m u n d o , destes bens to rn o u -s e um problema nacional,
p a t r o c i n o u em 1 9 7 2 a r e a l i z a ç ã o de u m a necessitando da colaboração de toda a sociedade,
conferência em Paris da qual nasceu a idéia de o que foi feito criando-se a idéia de um valor de
patrim ônio mundial. A Convenção do Patrim ônio nacionalidade, o p atrim ônio co le tivo, interesse de
Mundial, nome com o qual o documento resultado todos e expressão de uma história coletiva.
desta conferência ficou conhecido, estabeleceu os N as décadas que su ced eram ao
princípios para atuação nesta área. nascimento institucional desta idéia, os debates
Mas a preocupação com a temática não concentraram -se nas concepções de restauro e
surge na década de 1970. Em 1956 a Unesco já co n servação deste patrim ônio. Isto porque as
havia criado o Iccrom (Centro Internacional de grandes tran sfo rm açõ es no espaço geográfico,
Estudos para a Conservação e Restauração dos resultantes da Revolução Industrial, ajudaram a
B e n s C u l t u r a i s ) , u m a o r g a n i z a ç ã o in t e r - constituir uma visão nostálgica do passado.
governam ental para a pesquisa sobre o assunto. Ao término da Primeira Guerra Mundial esta
Que motivos levaram, então, a realização preocupação estendeu suas fronteiras para os
em 1972 desta conferência e a emergência deste demais países europeus, num primeiro esforço
tema no cenário das relações internacionais? internacional, ainda que restrito a este continente.
Para re sp o n d e r essa questão é preciso Os países europeus, arrasados fisicamente pelo
investigar as raízes da discussão do patrimônio confronto e preocupados em como restaurar seu
cultural, que surge pontualmente em alguns países patrimônio, organizaram em 1931 uma conferência
da Europa, sob o conceito de monumento histórico. que resultou na Carta de Atenas. Esta foi o primeiro
Patrim ônio m undial: do ideal hum anista à utopia de uma nova civilização, pp . 77- 88. 79
P atrim ô n io M undial tem uma explicação: estar na 8 bens), Turquia em nono lugar com 7 bens e C h i
lista sig n ifica c o n ta r com sta tu s internacional, na, décim o país (com 6 bens tombados).
prestígio e reconhecimento que é fundamental para A pesar da novidade, ainda permaneceu
o m arketing do turismo. grande a vantagem dos países europeus: dentre
Assim , segundo CHOAY (o p . cit, p. 211), o aqueles (do primeiro ao décimo lugar) que mais
patrim ônio adquiriu a partir da década de 1960, na bens to m b a d o s tiveram no período, a Europa
era da indústria cultural e da expansão da socieda correspondia a um total de 59 bens, equivalentes
de do lazer, um duplo sentido: de um lado obras e a 20% do total.
lugares que propiciam saber e, de outro, produtos Q uanto ao Brasil, somente em 1977 tor
culturais, fab ricado s e em pacotados para serem na-se signatário da convenção e em 1980 com e
co n su m id o s por cada vez mais e mais levas de ça a ter seus patrimônios reconhecidos com o tom-
turistas. Q uan to mais bens um determ inado país bam ento da cidade de Ouro Preto. Em 1986 tem
tiver inscritos na Lista do Patrimônio, maior é o seu primeiro patrimônio natural inscrito na Lista: o
potencial turístico posto à venda no mundo. Parque Nacional de Iguaçu.
M O R E L lembra que há uma relação grande N e s ta d é c a d a , do p o n to de v is ta do
do tu rism o com o patrimônio. Mas não acredita patrimônio natural, áreas conhecidas internacio
que a exp loraçã o turística estava entre as razões n a lm e n t e fo r a m t o m b a d a s , t a is co m o : Los
que levaram a Unesco à concepção de patrimônio G laciares (Argentina), Rochosas (Canadá) Parque
mundial, co n form e percebem os nesta citação: Yosemite (EUA) vulcões no Havai (EUA) e Parque
"En los planteam ientos de Ia Convención Nacional do Kilimandjaro (Tanzânia).
de 1972 no se platea de ninguna manera el que un Os anos de 1990 o crescimento do núm e
bien de Ia hum anidad pueda ser objeto fu ndam en ro de bens inscritos na lista estabilizou-se. A novi
tal de atracción turística, no se platea de ninguna dade no cenário é a Itália, país que fica em primei
manera que un bien de Ia humanidad se convierta, ro lugar no número de bens tom bados (25), se
sea p e r s e u n recurso turístico". (MOREL, 1996:83) guida da China em segundo lugar (17), da A lem a
No entanto, ele admite que o interesse dos nha (14), em terceiro, e a Rússia, em quarto (13).
países pela inclusão na Lista estava relacionado ao A Austrália aponta como o país que possui maior
ap roveitam en to deste título para o m arketing t u número de bens naturais tombados (13), repre
rístico, com o abaixo transcrevemos: sentando a totalidade de seu patrimônio da Lista.
"... es in du d ab le y m ás o m enos evidente A lg um as áreas naturais importantes no
de todo Io a n te rio r, que en ca si todos os casos, mundo são reconhecidas neste período entre elas:
practica m ente en todos, los grupos interesados que Parque Nacional do Rapa Nui (Chile), Lago Baikal,
p ro m o v ie ro n Ia declaración han sido m ovidos, al Montanhas do Cáucaso e Altai (Rússia) os Montes
m en o s en p a rte , pre cisam e n te p o r esos intereses Pirineus (França/Espanha) e o delta do Rio Danúbio
turísticos". (MOREL, op.cit., p.84) (Romênia). No Brasil há reconhecimento de três
Teria sido a expansão do turism o ou o re patrimônios naturais: Serra da Capivara, Costa do
co n h ecim en to da importância do patrimônio no D escobrim ento e as Reservas da Mata Atlântica
m undo que levaram a ampliação significativa dos do Sudeste.
to m b a m e n to s da Unesco nos anos 1980? O certo Em 1999, do total de 630 bens inscritos
é que o núm ero de bens tom bados quintuplica, na lista, constata-se uma forte predominância de
passando de 61, para 282 no final da década. bens culturais, com 76% do total, em relação aos
Apesar dos EUA continuar inscrevendo seus bens naturais, com 20%, sendo estes últimos em
bens com êxito (mais 11 áreas tombadas), a su r sua grande parte relativos à Parques Nacionais.
presa fica por conta da atuação de países que, Os 4% restantes constituem os cham ados bens
a pesar de pobres, constituíram berços de civiliza mistos, de caráter natural e cultural.
ções antigas, com o são os casos da índia, prim ei
ro país em núm ero de bens tom bados neste perí
odo (19 no total), México, sétimo em número (com
Patrim ôn io m undial: do ideal hum anista à utopia de uma nova civilização, pp . 77- 88. 83
- reafirm a os princípios contidos neste docum ento do poderio político-m ilitar dos EUA, possibilita
pioneiro de 1962, com o se observa nos seguintes novas articulações entre países. De acordo com
tre c h o s retirados da D eclaração de Estocolm o: seus interesses internos os países se alinham em
"...O s re cu rso s naturais da Terra... e e s diversas composições, ora atuando em grupos,
p e c i a l m e n t e , p a r c e la s r e p r e s e n t a t iv a s d o s ora individualm ente, ora compondo com novos
e co ssiste m a s n atu rais, devem se r preservados em p a r c e ir o s , de ce rta fo rm a r o m p e n d o com a
b e n e fíc io d as g erações atuais e futuras... hegemonia norte-am ericana na elaboração dos
...O h om em tem a resp on sab ilidade e s p e docum entos, com o ocorreu com a Convenção da
cia l de p re s e rv a r e ad m in istra r ju d icio sa m e n te o Diversidade Biológica e o Protocolo de Kyoto.
p a trim ô n io re p re sen ta d o pela flora e pela fauna A com posição da Lista do Patrim ônio nos
s ilv e s tre s , bem com o o seu h a b ita t...” (IPHAN, anos de 1990 mostra isso. A dissolução da antiga
op.cit, p .219) URSS fato que levou a novas definições territoriais
A C o n v e n çã o do P atrim ô nio M u n d ial de é a c o m p a n h a d a p e la a d e s ã o da R ú s s ia à
1972 e seu principal desdobram ento - as D ire tri C onvenção do Patrim ônio e, conseqüentemente,
z e s o p e r a c io n a is p a ra a im p le m e n t a ç ã o do a inscrição de seus bens à lista. Nesta década o
p a trim ô n io m u n d ia l de 1977 - constituem outros país ocu p o u o 4 o lugar em n úm ero de bens
d o c u m e n to s relevantes para o entendim ento d e s tom bados.
ta fase da ordem ambiental internacional. Como Outra expressão destas mudanças pós-
já d e m o n s tra m o s anteriormente, através de d a g u e r r a f r i a e s t ã o r e l a c i o n a d a s ao p a p e l
d o s r e la t iv o s ao s bens in s c r ito s na Lista do representado pelo Japão na condução do processo
Patrim ônio Mundial, é flagrante a supremacia dos de t o m b a m e n t o do p a trim ô n io pela Unesco.
EUA na escolha dos patrimônios mundiais, princi Erigido à co n d ição de potência econôm ica na
palm ente na década de 1970. d é ca d a de 1980, o Ja p ã o s o m e n te aderiu à
M a s is s o a té 1 9 8 4 , q u a n d o os E U A co n ven çã o em 1992, passando a ser o maior
d e cid e m re tira r-se da Unesco, em fu n çã o de contribuinte para a Unesco, na ausência dos EUA.
críticas à co n d ução dos trabalhos por parte de seu Mas, em contrapartida, enfrentou a partir de então
diretor geral, o qual o país acusava de conduzir a p r o b le m a s com r e la ç ã o ao r e c o n h e c im e n t o
o r g a n iz a ç ã o co m p a r c ia lid a d e , d e fe n d e n d o e mundial de seus patrimônios.
apoiando iniciativas culturais anti-americanas, como Is s o p o r q u e , s e g u n d o M A Y U M E (op.
as ligadas à OLP (Organização para a Libertação cit., 155), a forma específica como são construídos
da Palestina). e c o n s e r v a d o s os m o n u m e n t o s j a p o n e s e s
A saída dos EUA da Unesco representou c o n t r a s t a v a com a v is ã o o c id e n t a liz a d a de
um corte nos recursos da organização, já que o patrimônio e com os critérios de autenticidade dos
país contribuía com 25% de seu orçamento. b e n s . C o m o s ã o f e i t o s de m a d e ir a , e s te s
E m o s t r o u u m a o u t r a c o n d u ç ã o no monumentos são vulneráveis ao ataque de fungos
p ro c e s s o de r e c o n h e c im e n to dos p a trim ô n io s e insetos, à grande variação de temperatura e
m u n d ia is , p e r m it in d o que o u t r o s p a ís e s alto índice de umidade das Ilhas, além de ocorrência
p a r t i c i p a s s e m c o m o é o ca so da ín d ia , que de terremotos. Todos estes fatores deterioram
representou na década o primeiro lugar em número os m o n u m e n t o s e o b r ig a m os j a p o n e s e s a
de bens tom bados. O período conta tam bém com constantem ente trocarem partes das construções
a adesão à C onvenção do Patrim ônio de países r e f a z e n d o - a s em p a r t e ou no t o d o . P a ra
até então fora da discussão, como é o caso da conservá-los, eles são obrigados a desm ontar os
China, por exemplo, que a partir de 1987 conseguiu m onum entos para a restauração e substituição
incluir diversos bens na Lista. das bases dos pilares, inclusive as fundações de
Para R IB E IR O (o p . cit., p. 130), no pós pedra a cada 300 anos.
guerra fria, a ordem ambiental internacional afirma- Estas particularidades culturais levavam os
se c o m o um q u a d ro m uito mais co m p le x o . A técnicos da Unesco a rejeitar, como autênticos,
configuração de um mundo multipolar do ponto os monum entos do Japão, alegando que sofreram
de vista econôm ico, mesmo com a reafirmação m udanças constantes.
P atrim ôn io m undial: do ideal hum anista à utopia de uma nova civilização, dd. 77- 88. 85
O peso político e econôm ico do país, no que hay qu e s a lv a r" MOREL (1996:81)
entanto, foi decisivo no processo de revisão dos O a u t o r a d m it e que o p r o c e s s o de
critérios de autenticidade dos bens, que teve início inclusão na Lista nem sempre satisfaz todas as
na Unesco, a partir de década de 1990. De acordo n e c e s s id a d e s de p r e s e r v a ç ã o e qu e c e r t o s
com M A YUM E (o p . cit. p. 176) em 1994 a Unesco interesses acabam orientando esta ação, o que
r e a liz o u um a c o n fe rê n c ia , e s p e c ia lm e n te colabora por gerar conflitos internos. Isto porque
org an izad a pelo governo japonês, para divulgar o r e c o n h e c im e n t o de v a lo re s dos bens não
o seu sistem a de preservação aos especialistas p o d e r ia s e r a p e n a s um p r o c e s s o t é c n i c o ,
da área, v is a n d o re orie n tar os critérios para conform e nos alerta MENESES:
seleção de bens à Lista do Patrimônio. O resultado "A/ão se trata, p ois, de uma a tiv id a d e
foi a Carta de Nara, que nas palavras da autora: m e r a m e n t e e s p e c u la t iv a , c o g n it iv a , m a s
"... p o d e se r considerado um m arco na concreta, prática - política. É p or isso que o núcleo
h istó ria do p ro ce sso de am pliação do conceito de de q u a lq u e r p reocu pação relativa ao p atrim ô nio
p atrim ô n io ...reconhece a necessidade de am pliar cu ltu ral (identificação, proteção, valorização) é
o e sp e ctro do patrim ôn io para aten d er às novas político p o r n a tu re z a ".MENESES (1992:189)
n e c e s s id a d e s da c iv iliz a ç ã o c o n te m p o r â n e a : Mas a respeito deste papel político, MOREL
re co n h e ce n d o a im portância da m anutenção da {op. cit, p.81), que é professor da Universidade
d iv e rs id a d e cu ltu ra l num m undo que tende à de M a d r i, é p o u c o c r í t i c o a f i r m a n d o a
g l o b a l i z a ç ã o , a p o ia - s e n o c o n c e it o de "extraordinária representatividade" da Lista do
a u t e n t ic id a d e c u lt u r a l p a r a d e f e n d e r a Patrimônio. Em contrapartida, reconhece que os
h e te ro g e n e id a d e " MAYUME (op.c/'t.p.71) bens tom b ad os estão concentrados na Europa,
A s s i m , os a n o s 1 990 m a r c a m um a e particularmente na Espanha. Mas, para o autor,
m ud an ça significativa nos conceitos e práticas isso tem sua lógica, já que o país apresenta uma
p a trim o n ia is da Unesco. S egundo a arquiteta história mais complexa.
Ju rem a Machado, em uma avaliação feita pelo A m e s m a a r g u m e n ta ç ã o p o d e r ía m o s
o r g a n is m o em 1992, c o n s ta to u -s e o que os e s te n d e r à p artes do co n tin en te asiático ou
dados anteriorm ente tentaram mostrar: a pouca africano, berços de civilizações milenares. No
representatividade mundial da Lista. Havia uma entanto, a Ásia apresenta a metade do número
g r a n d e c o n c e n t r a ç ã o de b en s t o m b a d o s na de bens tom bados da Europa, utilizando os dados
Europa, especialmente representativos da história do próprio autor (76 contra 156 da Europa).
clássica, constituindo mais de 50% do total, com Há, sem d ú v id a , m u ito s in t e r e s s e s
mais de 30% somente na Espanha e Itália. envolvidos na inclusão de bens na lista, o que
A a t u a ç ã o n e sta e s fe r a p a t r im o n ia l levou a Unesco, nos anos de 1990, a limitar em
internacional não poderia deixar de ser, assim trinta o n ú m e ro m áx im o de bens t o m b a d o s
como dos outros instrumento da ordem ambiental anualmente, com a exigência, ainda, de priorizar
internacional produto de um jogo de interesses e países com poucos patrimônios reconhecidos.
pressões. Por fim é preciso destacar que, se os
A respeito disso MOREL destaca: d iv e r s o s in s t r u m e n t o s da ord em a m b ie n t a l
"N aturalm ente, que uno de los problem as i n t e r n a c i o n a l sã o c o n s t r u í d o s de f o r m a a
fu n d a m e n ta le s está a q u i en Ia elección, en Ia preservar os interesses nacionais e a salvaguarda
d e cisió n p o rq u e Ia riq u e za , Ia variabilidad, Ia da soberania, conform e analisa RIBEIRO {op.
excep cion alid ad , en últim o térm ino, de Ia m ayor c it .p .37), a in stitu cion alização do patrim ô n io
p a r t e d o s b ie n e s q u e h a n s id o o b je t o de mundial pela Unesco não poderia ser diferente.
d eclaració n o ficia l es im presionante y entonces O artigo 6 o da Convenção do Patrim ônio
los crité rio s g en erales no siem pre son posibles y, M undial assim declara:
en ocasiones, se m anifestan incapaces de resolver "Com observância plena da soberania dos
los p ro b le m a s, Io que exige decisiones un tanto E sta d o s em cu jo te rr itó r io esteja s itu a d o o
p articulares que no siem pre son bien acogidas p or patrimônio cultural e natural ... e sem prejuízo
a q u ello s que se consideran parte de los bienes dos direitos reais previstos pela legislação nacional
86 G EO U SP Espaço e Tempo, São Paulo, N° 14, 2003 SCIFONI, S.
conflito pede, desta forma, a consolidação de uma perspectiva global. De outro lado, a necessidade
outra racionalidade. de construção de um novo saber, de novas bases
C om o aponta LEFF (2001:127), o conflito teóricas para fun dam entar este novo projeto, o
é p o s it iv o , p o is é a t r a v é s de uma s é rie de que ele denom ina de racionalidade teórica. E por
p rocessos políticos, de confronto de interesses, fim a racion alid ad e instrum ental, que diz respeito
q u e é p o s s í v e l a c o n t e c e r e m as m u d a n ç a s aos novos in stru m e nto s legais e té cn ico s que
n e ce s sá ria s em direção a um novo projeto de perm itirão revolucionar esta sociedade.
civilização, assentado numa outra racionalidade A construção deste novo projeto, segundo
d o m in a n t e : a r a c io n a lid a d e a m b ie n t a l. Esta o autor, se dá na articulação dialética entre práticas
racionalidad e tem princípios outros não fu n d a s o c ia is e saber: a c ria çã o de n ov as p rá tica s
m e n ta d o s no cálculo econôm ico, pressupondo, estim ula a revolução do saber constituído e a
portanto, um outro olhar sobre o patrimônio e produção de um novo saber, enquanto estes se
s o b r e a n a t u r e z a qu e não é o da v a lo r a ç ã o to r n a m c a p a z e s de p ro m o v e r m u d a n ç a s nas
econôm ica. práticas sociais.
A racionalidade ambiental, segundo o autor, E n te n d e m o s que este n ovo p ro je to é
é p r o d u z i d a na m u d a n ç a de um a s é r ie de construído num movimento histórico, contínuo e
instâncias: de um lado na produção de novos c o t id ia n o de m u d a n ç a s e c o n flito s , os q u ais
v a lo r e s , o q u e ele ch a m o u de ra c io n a lid a d e certam ente estam os testem unhando na forma de
s u b s ta n tiv a , tais com o a pluralidade, a gestão momentos de transição. Acreditamos que os novos
p a r t i c i p a t i v a , a d i s t r i b u i ç ã o da r iq u e z a , a direitos sociais apontam para isso e a idéia de
co n serva çã o de recursos, a qualidade de vida e a patrimônio cultural e natural também.
Notas
1 United Nations Educational, Scientific and Cultural 3 Palestra realizada no Seminário Internacional de
Organization (Organização das Nações Unidas Preservação e Recuperação do Patrimônio Cultural,
para a Educação, a Ciência e a Cultura) promovido pela Secretaria de Estado da Cultura e
2 Mario de Andrade, intelectual modernista, participou Arquivo do Estado em maio/2002.
da form ação do então Serviço do Patrimônio 4 E que foram salvos da inundação das águas da
Histórico e Artístico Nacional, SPHAN, em 1937 represa por uma operação internacional que os
No ano anterior, à pedido do ministro Gustavo deslocou para setores mais elevados.
Capanema, elaborou o anteprojeto do decreto Lei 5 Ver: Critères relatifs à l'inscription de biens naturel
25, o qual instituiu o sistema de proteção ao sur la Liste du Patrimoine Mondiel, art. 43, 44 e
patrimônio histórico e artístico nacional, o qual 45. Fonte: www.unesco.org/nwhc.fr/pages/doc/
permanece ainda em vigor. main.html, acessada em setembro de 2002.
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