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Qernecnes Ames eigenen Lagemignsmnen Roos de Qemmine | BAe cha Fasndecss gpkchie Yorggan 1998 Capitulo 12 Uses da biografia* Giovenni Levi Revove Queneau diz que “houve épocas em que se podia narrar a vida de um homem abstraindo-se de qualquer fato histérico”? ‘Também poder-se-ia dizer que houve épocas — talvez mais préximas — em que era possivel relatar um fato histérico abstraindo-se de qualquer destino individual. Vivemos hoje uma fase intermediéria: mais do que nunca aCbiografidjesté no centro das, preocupagées) dos historiadores, mas denuncia claramente suas ambigtidades.)Em certos casos, recorre-se a ela} para sublinhar a irredutibilidade dos individuos e de seus comportamentos a sistemas normativos gerais, levando em consideragéo a experiéncia vi- vida; ja em outros, ela & vista como o terreno ideal para provar a vali- dade de hipéteses cientificas concermentes as praticas e 20 funcionamento! eferivo das leis e das regras sociais. Amaldo Momigliano assinalou ao ‘mesmo tempo a ambigiidade e a fecundidade da biografia: por um lado, “no admira que a biografia esteja se instalando no centro da pesquisa histérica, Enquanto os primérdios do historicismo tornam mais complexas ‘quase todas as formas de hist6ria politica e social, a biografia permanece algo relativamente simples. Um individuo tem limites claros, um mimero restrito de relagées significativas... A biografia se abre a todo tipo de pro- * Levi, Giovanni, Les usages de la biographie. Annales. Pais (6):1.325-36, now/dée, 1989. Queneau, Reymond, Vhistoite dans le roman. Front Notional, 4(8), 1945. 168 Usos & ANUsOS oA HisrOnIA OrAt blemas dentro de fronteiras bem definidas”.® Por outro lado, no entanto, ‘os historiadores serdo um dia capazes de enumerar os incontéveis as- pectos da vida? Doravante a biografia assume um papel_ambiguo em his- téria: pode ser um instrumento da pesquisa social ou, a0 contrério, propor 03 sa uma forma de evit Nao pretendo retomar um debate que sempre foi inerente as cigncias sociais e & historiografia e que Pierre Bourdieu qualificou, com sua salutar ferocidade, de absurdo cientificd,* Mas creio que, num periodo de crise dos paradigmas e de quéstionamento construtivo dos modelos in- terpretativos aplicados ao mundo social, 0 recente entusiasmo dos histo- riadores pela biografia e a autobiografia merece algumas observagées que podem contribuir para a reflexio reclamada pelo editorial dos Annales (n. 2, 1988). ‘A meu ver 2 maioria das quest6es metodolégicas da historio- grafia contempordnea diz respeito & biografia, sobretudo as relagdes com as ciéncias sociais, os problemas das escalas de andlise € das relagdes en- tre regras e préticas, bem como aqueles, mais complexos, referentes cos limites da liberdade e da racionalidade humanas. jes entre Um primeiro aspecto significativo refere-se As rel ‘téria_e_narrativa. A biografia constitu na verdade o canal privilegiado através do qual os questionamentos e as técnicas peculiares da literatura se transmitem a historiografia. Muito jA se debateu esse tema, que con- cere sobretudo as técnicas argumentativas utilizadas pelos historiadores. Livre dos entraves documentais, a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biogrificos que influenciaram amplamente 0s histo- riadores. Essa influéncia, em geral mais indireta do que direta, suscitou problemas, questées e esquemas psicolégicos e comportamentais que pu- seram o historiador diante de obstdculos documentais muitas vezes in- ® Momigliano, Amaldo, Storcismo rivisitaro. tn: Fondamentidelie storia antica, Torino, 1984, p. 464. 3 sfomislians, Amaldo, Lo sviuppo della bibgrafia greca. Torino, 1974. p. 8. + (R oposigio cientfieamente absurda entze individuo e sociedade.”) Bourdieu, Piere. Fieldwork in philosophy. In: Choses dites. Paris, 1987. p. 48. US05 DA BIORAFIA, too transpontveis: a propésito, por exemplo, dos atos e dos pensamentos da ‘vida cotidiana, das diividas e das incertezas, do cardter fragmentério e di- ndmico da identidade e dos momentos contraditérios de sua constituigdo. ‘Obviamente as exigéncias de historiadores e romancistas nfo sio as mesmas, embora estojam aoe poucos ce tornando mais parecidas. Nosso fascinio de arquivistas pelas descrigées impossfveis de corroborar por falta de documentos aumenta néo sé a renovacao da histdria narrativa, como. também o interesse por novos tipos de fontes, nas quais se poderiam des- cobrir indicios esparsos dos atos € das palavras do cotidiano. Além disso, reacendeu 0 debate sobre as técnicas argumentativas e sobre 0 modo pelo qual a pesquisa se transforma em ato de comunicagio por intermédio de uum texto escrito, Pode-se escrever a vida de um. individuo? Essa questéo, que le- vanta pontos importantes para a historiografia, geralmente se esvazia em meio a certas simplificagées que tomam como pretexto a falta de fontes. Meu intento é mostrar que essa ndo é a unica e nem mesmo a principal dificuldade, Em muitos casos, as distorgdes mais gritantes se devem ao far| to de que nés, como historiadores, imaginamos que os atores histéricos | obedecem a um modelo de racionalidade anacrénico e limitado. Seguindo uma tradi¢éo biogrdfica estabelecida e a prépria retérica de nossa disci- lina, contentamo-nos com modelos que associam uma cronologia orde- nada, uma personalidade coerente e estdvel, agdes sem inércia e decisGes sem incertezas. Nesse sentido, Pierre Bourdieu falou acertadamente de “‘ilusio biogréfica”, considerando que era indispensdvel reconstruir o contexto, a } “superficie social” em que age o individuo, numa pluralidade de campos, a cada instante.> Forém a diivida com relacéo a prépria possibilidade da biografia é um fator recorrente. A biografia publica, exemplar, moral, nfo foi objeto de um questionamento progressivo; foram antes oscilagdes, sem- pre em relagéo estreita com os momentos de crise na definicdo da racio- nalidade e também com os momentos em que o confronto entre individuo eee li eee re * Bourdieu, Pierre. Lilusion biographique. Actes de le Recherche en Sciences Sociales (62-63): 69:72, juin 1986. 170 sos & AMUSOS 9A HISTORIA OFAL ¢ instituigées se tornou mais agudo. Isso foi evidentemente 0 que sucedew \Gurante boa parte do século XVIII com o debate que se estabeleceu acerca da possibilidade de escrever a vida de um individuo, Partindo do romance (Steme, Diderot), porquanto este tentava construir a imagem de um ho- trem complexo, contraditério, cujo caréter, opinides e atitudes estavar em perpétua formacio, essa crise chega & autobiografia (Rousseau) © final Tnente & biografia propriamente dita. Tal perfodo apresenta muitas ana- “Jogias com o nosso: a consciéneia de uma dissociagao entre o personagem \govial e a percepgdo de si adquire af particular intensidade. Os limites da biografia foram entéo elaramente percebidos, ao mesmo tempo que $° 25- sistia ao triunfo do género biogréfico. Marcel Mauss assim desereve a diferenga entre personagem so- cial © peroepcio de si: “E evidente, sobretudo para nés, que nenhum ser hhumano deixou jamais de ter a percepgio ndo apenas de sew corpo, mas também de sua identidade espiritual e corporal ao mesmo tempo”. To- Gavia essa percepgio do eu néo corresponde ao modo pelo qual “ao lon- go dos séculos, em inimeras sociedades, se elaborou lentamente nao 8 percepgio do ‘eu’, mas a nocio, 0 conceito”.® De fato, parece evidente fue em certas épocas a nogdo de si socialmente construide foi particu: Tarmente restrita: em outras palavras, o que era tido como socialmente “icterminante e comunicdvel apenas encobria de maneira bastante inade- fquada o que a propria pessoa considerava essencial. Esse problema, hoje Sblocado as claras, € 0 mesmo que o século XVIII havia explicitamente formulado. odemes entéo partir de alguns exemplos do século XVILL Tris- tram Shandy, de Sterne, pode ser considerado o primeiro romance mo- deo precisamente por ressaltar a extrema fragmentagdo de uma biografia individual. Tal fragmentagio se traduz pela constante variagéo dios tempos, pelo recurso a incessantes retornes ¢ pelo cardter contradi- tério, paradoxal, dos penszmentos ¢ da linguagem dos protagonistas. Po- dde-se acrescentar que o diélogo entre Tristram, 0 autor ¢ o leitor é um ddos tragos caracteristicos do livro, Trata-se de um meio eficaz de construir T ptause, Marcel. Socilogie et anchropologie. 8 ed. Paris, PUR 1983. p. 935. Uso 04 Blogkatia ral uma narrativa que dé conta dos elementos contraditérios que constituem a identidade de um individuo e das diferentes representages que dele se possa ter conforme os pontos de vista e as épocas. Diderot era um grande admirador de Sterne ¢ concordava com 0 de que a biografia era incapaz de captar a esséncia de um inc Nao que rejeitasse 0 género biogréfico; entendia, mais preci- samente, que a biografia, embora incapaz de ser realista, tinha uma fun Go pedagégica na medida em que apresentava personagens célebres ¢ revelava-lhes as virtudes puiblicas ¢ os vicios privados. Alids, muitas vezes Diderot acalentou o projeto de escrever uma autobiografia, antes de con- cluir pela sua impossibilidade.” Mesmo assim sua obra esta repleta de alu- s6es autobiografices, cujos exemplos mais caracteristicos se encontram em estado fragmentdrio em Jacques 0 fatalista. Aqui o problema da individua- lidade é resolvido pelo recurso 20 didlogo: o jovem Jacques e seu velho mestre tém cada qual sua prépria vida e trocam seus pontos de vista ¢ no raro seus papéis. Dessa colaboragéo dialégica © concertada nasce um, personagem (em boa parte autobiogréfico) que parece ao mesmo tempo jovem ¢ velho. Verdade e ilusdo literdria, autobiografia © multiplicacéo dos personagens tém lugar nessa oscilago; cada momento particular, tomado jsoladamente, sé pode ser uma deformagdo em relagio A construgo de personagens que néo obedecem @ um desenvolvimento linear e que nao seguem um itinerdrio coerente e determinado. Passemos agora a um exemplo classico de autobiografia: as Con- {fissdes de Rousseau. A primeira vista, esse exemplo parece contradizer a impressio de que na segunda metade do século XVII chegou-se a duvidar da possibilidade de fazer uma autobiografia, Rousseau no s6 acreditava ser possivel (talvez somente para ele) narrar a vida de um homem, como também entendia que essa narrativa podia ser totalmente veridica: “Bis 0 ‘inico retrato de homem, pintado exatamente ao natural ¢ em toda a sua verdade, que existe e que provavelmente jamais existiré”. Logo de saida, mal comeca a escrever, 0 autor se v8 diante de um projeto que talvez seja possivel, mas que em todo caso ser4 tinico: “Tenko em mente um projeto do qual jamais houve exemplo cuja execugéo néo teré nenhum imita- dor”. De certo modo, o futuro mostraria que ele estava errado. & bem co- F Quanto &s opinibes de Diderot e de Rousseau sobre a biografia ea autobiografia, ver Bom net, Jean-Claude. Le fantasme de Ierivain, Poétique, 69:259-78, sept. 1985. 172 sO & ABUSOS oA HISTORIA nhecida @ acolhida que tiveram as Confissbes: quando Rousseau submeteu seu manuscrito a leitura, ele foi, segundo suas palavras, malcompreendido e malinterpretado. A autobiografia era possivel, mas nfo se podia comu- nicar sta verdade, Ante essa impossibilidade, néo de evocar sua prépria vvida, mas de conté-la sem que fosse deformada ou alterada, Rousseau pre- feriu desistix Também ele pensava que s6 existia uma solucao narrativa, a do diflogo, e nos anos que se seguiram a redagio das Confissdes ele re- tomou seu teor sob a forma dialogal em Jean-Jacques julga Rousseau, pro- cedendo assim a um desdobramento de seu personagem. Para Rousseat, assim como para Diderot ou Sterne (¢ anteriormente Shaftesbury, que foi talvez 0 inspirador dessa solugao), o(didlogo)nao era apenas o meio de criar uma comunicago menos equivoca; imbém uma forma de res. tituir ao sujeito sua individualidade complexa, livrando-o das distorgées da biografia tradicional que pretendia, como numa pesquisa entomolégica, observirlo e dissecé-lo objetivamente. Essa erise, que merecia ser analisada mais deridamente, comegou ‘no romance ¢ estendeu-se & autobiografia, Mas s6 teve repercussAo limi- tada na biografia histériea (ainda que fosse conveniente deterse mais na vida de Johnson escrita por Boswell ¢ em particular no papel da imagi nagdo na reconstrugio dos diflogos pelo autor, Mas também aqui 0 pro- blema da relagio entre autor e personagem remete as observagies anteriores sobre 0 desdobramento dos pontos de vista).® Chegou-se a um mejotermo na biogtafia moral, que na verdade renunciava & exaustivi dade e a veracidade individuais para buscar um tom mais didatico, acres: centando as vezes paixdes e emogSes ao contetido tradicional das biografias exemplares, a saber, 08 feitos e as atitudes do protagonista, A bem dizer, essa simplificagio supée uma certa confianga na capacidade da Diografia para descrever o que & significativo em uma vida, Tal confiange culminaria eliés no positivismo e no funcionalismo, com os quais a selegdo de. fatos significativos iia acentuar 0 caréter exemplar e tipolgico das |biografies, privilegiando a dimenséo publica em vez. da dimenséo privade '¢ considerando insignificantes 0s desvios dos modelos propostos. “Todavia @ crise ressurgiu no século XX, ligeda ao advento de no- ‘vos paradigmas em todes os campos cientificos: crise da concepao me- Hea ee ee ee 8 \er Dowling, William C. Boswell and the problem of biography. In: Aeron, Daniel (ed. seudies in biography. Cambridge, Mass,, Cambridge Univesity Press, 1978. p. 72-93. Us05 ba Biogkarin 173° canicista na fisica, surgimento da psicandlise, novas tendéncias na literatura (basta citar os nomes de Proust, Joyce e Musil). J4 nfo so mais as propriedades e sim as probabilidades que constituem 0 objeto da descrigéo. A ciéncia mecanicista repousava na estrita delimitagéo do que podia e devia se produzir nos fenémenos naturais, Veio substitut-la uma Ici de proibigéo que, a0 contrétio, definia o que no podia se produzir: assim, tudo 0 que pode suceder sem contradizé-la faz parte dos fatos. Nesse contexto, é essencial conhecer 0 ponto de vista d fador; a existéncia de uma outra pessoa em nés mesmos, sob a forma do incons- ciente, levanta 0 proviema da relaggo entre a descricio tradicional, linear, | € a iluséo de uma identidade especifica, coerente, sem contradigao, que do sendo o biombo ot a méscara, ou ainda o papel oficial, de uma mirfade de fragmentos e estilhacos. A nova dimensio que a pessoa assume com sua individualidade ‘no foi portanto a tinica responsdvel pelas perspectivas recentes quanto & Possibilidade ou impossibilidade da biografia. De modo sintomético, a pré- Pria complexidade da identidade, sua formagéo progressiva ¢ néo-linear ¢ || ‘suas contradigSes se toraram os protagonistas dos problemas biogréficos com que se deparam os historiadores. A biografia continuou a desenvol- verse, mas de forma cada vez mais controversa e problemética, relegando 420 segundo plano aspectos ambfguos ¢ irresolutos que me parecem cons- tituir hoje um dos principais focos de confronto na paisagem historiogré- fica, Como pano de fundo, temos uma nova abordagem das estruturas sociais: em particular, a reconsideracdo das andlises e dos conceitos rela- tivos A estratificagdo e & solidariedade sociais nos induz a apresentar de modo menos esquemético os mecanismos pelos quais se constituem redes de relagdes, estratos e grupos sociais. A medida de sua solidariedade e a andlise da maneira pela qual se fazem e desfazem as configuragées sociais levantam uma questio essencial: como 0s individuos se definem (conscien- | temente ou niio) em relago a0 grupo ou se reconhecem De uns anos para cd, os historiadores tém pois se mostrado cada vex mais conscientes desses probl bdavia as fontes de que dispomos néo nos informam acerca dos sos de tomada de decisées, mas so- mente acerca dos resultados destas, ou seja, acerca dos atos. Essa falta de neutralidade da documentacio leva muitas vezes a explicagdes monocau- 174 roe & AnUtO# oA HisKONA OFAL sais ¢ lineares. Fascinados com a riqueza das trajetérias individuais e a0 ‘mesmo tempo incapazes de dominar a singularidade irredutivel da vida de ‘um individuo, os historiadores passaram recentemente a abordar 0 pro- lema biogréfico de maneiras bastante diversas. Proponho-me formular uma tipologia dessas abordagens, certamente parcial, mas que visa a lan- ar luz sobre a complexidade irresoluta da perspectiva biogréfica. Prosopografia e biografia modal. Nessa ética, as biografias indi- | viduais 96 despertam interesse quando ilustram os comportamentos ou as | aparéncias ligadas as condigdes sociais estatisticamente mais freqiientes. Portanto néo se trata de biografias veridicas, porém mais precisamente de ‘uma utilizagio de dados biogréficos para fins prosopograficos. Os elemen- tos biogrificos que constam das prosopografias sé slo considerados his- toricamente reveladores quando tém alcance geral. Nao € por acaso que os historiadores das mentalidades praticaram a prosopogtafia mostrando pouco interesse pela biografia individual. Michel Vovelle escreveu a esse respeito: ‘Adotando as abordagens da histéria social quantitativa, quisemos roduzit, no proprio campo da histérla das mentalidades, a histéria das massas, dos anénimos, em suma, dos que jamais puderam dar-se ao luxo Jde uma confissio, por menos que seja literéria: os excluldos, por defin ‘clio, de toda biografia”.? ff aan No fundo, a relagéo entre_habitus de grupo habitus individual estabelecida por Pierré Bourdieu remete a selegio entre o que é comum e mensurdvel, “o estilo proprio de uma época ou de uma classe”, e 0 que diz respeito & “singularidade das trajet6rias sociais”: “na verdade, é uma relagdo de homologia, isto é de diversidade ma homogeneidade, que re- flete a diversidade na homogencidade caracteristica de suas condigdes so- ciais de producdo e que une os habitus singulares dos diferentes membros de uma mesma classe. Cada sistema de disposigées individuais é uma va- ante estrutural dos demais (..), 0 estilo pessoal nao € senfio um desvio em selacéo ao estilo proprio de uma época ou de uma classe”. A infin dade de combinagées possivels @ partir de experiéncias estatisticamente comuns &s pessoas de um mesmo grupo determina assim “a infinidade de diferengas singulares” e também “a conformidade € estilo” do grupo.'© ‘Também aqui os afastamentos e os desvios, uma vez assinalados, parecem ° Vovele, Michel. De la biographie & Péeude de cas. In; Problimes et méthode: de lo bio- ‘raphis, Paris, 1985. p. 191, (Atas do coléquio, maio 1985.) 30 pourdieu, Plere. Bequise Zune théorie de la pravique, Genkve-Paris, 1972. p. 196-9. sos b4 Blogearin 175 remeter-se ao que é estrutural e estatisticamente préprio do grupo estu- dado, ‘Tal abordagem comporta certos elementos funcionalistas na identi- ficagio das normas e dos estilos comuns aos membros do grupo € na re- jeigto dos afastamentos e dos desvios tidos como nio significativos. Pierre ay a 4 Bourdieu levanta tanto a questéo do determinismo quanto a da escolhay) "4 conseiente, mas a escolha consciente & antes constatada do que definida, ea énfase parece recair mais nos aspectos deterministas € inconscientes, nas “estratégias” que nio sdo fruto “de uma verdadeira intengdo estraté- 27 yo” ica”. Esse tipo de biografia, que poderfamos chamar de modal por- quanto as biografias individuais s6 servem para ilustrar formas tipicas de comportamento ou status, apresenta muitas analogias com a prosopogra- fia: na verdade, a biografia nfo é, nesse caso, a de uma pessoa singular. | n individuo que concentra todas as caracteristicas de um pritica corrente enunciar primeiro as normas © as regras estruturais (estruturas familiais, mecanismos de transmissdo de bens ¢ de autoridade, formas de estratificagio ou de mobilidade sociais etc.) antes de apresentar os exemplos modais que intervém na demonstracio a titulo de proves empiricas. Biografia e contexto, Nesse segundo tipo de utilizagiio, a biografia | conserva sua especificidade. Todavia a época, o meio ¢ a ambiéncia também, ‘Valorizados como fatores capazes de caracterizar uma atmosfera explicaria a singularidade das tajet6rias, Mas 0 contexto remete, na Yerdade, a duas perspectivas diferentes, Por um lado, a reconstituicgo do, contexto histérico e social em que se desenrolam os acontecimentos permite| compreender 0 que A primeira vista parece inexplicdvel e desconcertante. E (© que Natalie Zemon Davis define, aludindo a seu trabalho sobre Martin Guerre, como “teintroduzir uma prética cultural ou uma forma de compor- tamento no quadro das préticas culturais da vida no século XVI".1! Do mes- mo modo, a interpretagio proposta por Daniel Roche para compreender seu heréi, o oficial de vidraria Ménétra, tende a normalizar comportamentos que perdem seu cardter de destino individual na medida em que so tipicos de um meio social (no caso, 0 do compagnonnage e dos artesios franceses do final do século XVIID e que afinal contribuem para o retrato de uma 1 Davis, Natalie Zemon, AHR Forum: the return of Martin Guerre, On the lame. American Hiszoricel Review, 98:590, 1988. we ” 76 UEOS 4 ABUSOS A HISTORIA ORAL poca ou de um grupo.!? Portanto no se trata de reduzir as condutas a comportamentos-tipos, mas de interpretar as vicissitudes biogréficas & luz de um contexto que as tome possiveis e, logo, normais. Por outro lado, 0 contexto serve para preencher as lacunas do- cumentais por meio de comparagSes com outras pessoas cuja vida apre- ‘enta alguma analogia, por ezse ou aquele motivo, com a do personagem estudado. Vale lembrar que Franco Venturi, em sua Juventude de Diderot, Teconstituiu os primeiros anos da vida de seu personagem praticamente sem documentagio direta. “De modo geral, porém, os poucos fragmentos gue nos restam sobre a primeira parte de sua vida ou tém um valor pu- Tamente anedético ou pouco se distinguem das caracteristicas gerais da época da ‘juventude de Diderot. Para tornar interessante uma tentativa de econstituigao da biografia de seus primeitos anos, é indispensdvel ampliar tanto quanto posstvel em tomo dele o nimero de pessoas ¢ de movimen- tos com os quais ele entrou ento em contato, reconstituir em tomo dele © seu meio, multiplicar os exemplos de outras vidas que tenham algum pa- ralelo com a sua, fazer reviver em torno dele outras pessoas jovens.”™? Essa utilizagdo da biografia repousa sobre uma hipétese implicita que pode ser assim formulada: qualquer que seja a sua originalidade apa-_ rente, uma vida néo pode ser compreendida unicamente através de seus desvios ou singularidades, mas, ao contréio, mostrando-se que cada des. vio aparente em relacdo as normas ocorre em um contexto histérico que © justifica. Essa perspectiva deu dtimos resultados, tendo-se em geral con- seguido manter 0 equilfbrio entre a especificidade da trajetéria individual € 0 sistema social como um todo. Pode-se alegar, no entanto, que 0 con- ed siveis esses casos. Podemos citar aqui novamente o artigo de Michel Vo- velle sobre a biografia: “O estudo de caso representa o retorno necesséiio experiéncia individual, no que ela tem de significative, mesmo que pos- sa parecer atipica (..). O retorno 20 qualitative por meio do estudo de caso responde a um movimento dialético no campo da histéria das men- talidades, A meu ver, em vez de negar as abordagens seriais quantificadas, ele as complementa, permitindo uma andlise em profundidade que prefere aos herdis de primeiro plano da histéria tradicional os depoimentos da normalidade (...) ou 0s aportes mais ambiguos, porém talvez ainda mais ricos, do depoimento extremo de um personagem em situacio de ruptura” (Wovelle alude aqui a seus estudos sobre Joseph Sec e Théodore Desor- gues).!4 De modo ainda mais claro, em sua biografia de Menocchio, Carlo Ginzburg analisa a cultura popular através de um caso extremo, e néo de tum caso modal: “Em suma, mesmo um caso extremo (...) pode revelar se representativo. Seja negativamente —.pois ajuda a precisar 0 que se deve entender, numa dada situacdo, por ‘estatisticamente mais freqiiente’, seja positivamente — pois permite identificar as possibilidades Iatentes de algo (a cultura popular) que sé conhecemos através de uma documenta- fo fragmentéria e deformada’.!5 Também agui o paralelo com a literatura é surpreendente. O per- sonagem naturalista tradicional € gradativamente relegado ao segundo pla- no, enquanto a narrativa do absurdo — como em Beckett, por exemplo — garante a solugdo dos casos extremos. “O maior trunfo do personagem tradicional do romance era sua possibilidade ou sua liberdade de travar ‘um combate, vitotioso ou no, contra a ameaca das situagdes extremas. texto é freqiientemente apresentado como algo rigido, coerente, e que ele x ‘ a7 yi serve de pano de fundo imével para explicar a biografia, As trajetéria in- LX _ > y dividuals estéio arraigadas em um contexto, mas nao agem sobre ele, ado ve, Nisso residia sua forga dramitica. Hoje, & como se os partidatios do “per- sonagem-homem” néo tivessem outro recurso sendo substituir as situagées extremas por situagdes draméticas. Seus destinos de aventureiros, vaga- bundos, excéntricos ¢ coléricos parecem sair de um moinho mecdnico que procura gerar movimento na fixidez, atfpica e situagdes extremas sem sai- da’.!® Mas também nessa ética 0 contexto social é retratado de modo de- © modificam. $e A biografia ¢ os casos extremos. As vezes, porém, as biografias "Pats slo usadas especificamente para esclarecer 0 contexto. Nesse caso, 0 con- o ‘SP texto nfo € percebido em sua integridade e exaustividade estéticas, mas <7 (por meio de suas margens. Descrevendo 0s casos extremos, langa-se luz ” precisamente sobre as margens do campo social dentro do qual séo pos- le ee ee 4 Vovolle, Michel. 1985:197. Referéncias L'rrésitible ascension de Joseph Sec, bourgeois Ate, sure de quelques clés pour ta lecture de naife, Aix-en-Provence, 1957 € Théodore Desorques ou ta aésorganisaton. Paris, 1985 1 Roche, Daniel (éd.). Journal de ma vie. Jacques Louis Ménére, compagnon vitrier au 182 sitcle. Pais, 1982, p. 9-26 © 287-428, 49 Venturi, Franco. Jeunesse de Diderot (de 1713 & 1753). Fais, 1939. p. 16. 'S Ginzburg, Carlo, Le fromage et le ves: lunivers dun meunier du XVle side, Pars, Flam: marion, 1988, p. 220. %© Debenedetd, Giacomo. 11 personagio wom. Milano, 1970. p. 30. 78 Uso 4 ALUSOS pA HistOnIA OAL masiado rigido: tragando-lhe as margens, os casos extremos aumentam a |liberdade de movimento de que podem dispor os atores, mas estes per- “dem quase toda ligagio com a sociedade normal (nesse sentido, o caso de Pierre Rivigre € exemplar). Biografia e hermenéutica. A antropologia interpretativa ceramen- jp te salientou o aro dialdgico, essa troca e essa alternancia continuas de erguntas e respostas no seio de uma comunidade de comunicagdo, Nessa perspectiva, o material biografico tomna-se intrinsecamente discursivo, mas |, no se consegue traduzir-Ihe a natureza real, a totalidade de significados | que pode assumir: somente pode ser interpretado, de um modo ou de ou- \ tf. O que se torna significativo & 0 proprio ato interpretativo, isto & © |Processo de transformagio do texto, de atribuigéo de um significado a um ato biogréfico que pode adquirit uma infinidade de outros significados. JAssim, o debate sobre o papel da biografia na antropologia tomou um ru- [mo promissor porém perigosamente relativista.!7 Mas a histéria que se ba- “seia em arquivos orais ou que procura introduzir @ psicandlise na pesquisa hist6rico-biografica 86 se deixou influenciar de modo intermitente e frégil Aqui, como no século XVII, 0 didlogo esié na base do processo cognitivo: © conhecimento nio é resultado de uma simples descrigéo objetiva, mas de um processo de comunicacéo entre dois personagens ou duas culturas. No fundo, essa abordagem hermenéutica parece redundar na im- possbilidade de escrever uma biografia. Mesmo assim, ao sugerir que é preciso abordar o material biogréfico de maneira mais tica, Te jeitando a interpretagdo univoca das trajetérias individuais, ela estimulou a reflexdo entre os historiadores, levando-05 a utilizar as formas narrativas de modo mais disciplinado e a buscar técnicas de comunicagao mais sen- siveis ao cardter aberto e dinémico das escolhas e das ages, Essa tipologia das utilizagdes e das indagagées que se fazem hoje a respeito da biografia néo pretende esgotar todas as possibilidades ou préticas: poderfamos mencionar outros tipos, como por exemplo a psi- » Yer, por exemplo, Rabinow, Paul. Reflections on fieldwork in Morocco. Berkeley-Los Aw Seles, 1977, ou ainda Crapanzano, Vineen:. Tuhaml. Portrait of e Moroccan. Chicage-London, 1980, eon, ogelhesnnw pee spe Mances- oS fescrsece y Wexcen 179 cobiografia, mas esta comporta tantos elementos equivocos ou contestveis que nao me parece ter hoje grande importéincia. Os principais tipos de orientagio aqui enumerados sucintamente representam pois os novos ca- minhos trilhados pelos que procuram utilizar a biografia como it factual, que mesmo assim continua a existir e vai muito bem. Trata-se porém de solugdes parciais, que ainda apresentam as- pectos bastante problematicos. A biografia € pois um tema que precisamos debater, afastando-nos talvez. da tradigéo dos Annales, mas atendo-nos aos problemas que nos parecem hoje particularmente importantes: a relacio entre normas e praticas, entre individuo e grupo, entre determinismo e li- berdade, ou ainda entre racionalidade absoluta ¢ racionalidade limitada. Minha intengdo € tdo-somente colocar em debate alguns temas e ressaltar que as quatro orientagées mencionadas tém em comum 0 fato de passar em siléncio por questdes Fundamentals. Estas dizem respeito sobretudo a0 | papel das incoeréncias entre as préprias normas (e nfo mais apenas as || contradigées entre a norma e seu efetivo funcionamento) no seio de cada || « sistema social; em segundo lugar, ao tipo de racionalidade atribuido aos |) atores quando se escreve uma biografia; e, por fim, & relagio entre um grupo e os individuos que o compéem. . ‘Trata-se principalmente de um problema de escala e de ponto de vista: se a énfase recai sobre o destino de um personagem — e nao |’ sobre a totalidade de uma situagdo social —, a fim de interpretar a rede || de relagdes e obrigagées externas na qual ele se insere, é perfeitamente possivel conceber de outro modo a questo do funcionamento efetivo das normas sociais. De modo geral, os historiadores consideram pacifico que todo sistema normativo sofre transformagées ao longo do tempo, mas que nur dado momento ele se tora totalmente coerente, transparente ¢ es- tdvel. Parece-me, ao contrdrio, que deveriamos indagar mais sobre a ver- dadeira amplitude da liberdade de escolha. Decerto essa liberdade néo é absoluta: culturalmente e socialmente determinada, limitada, pacientemen- / te conquistada, ela continua sendo no entanto uma liberdade consciente, | que os intersticios inerentes aos sistemas gerais de normas deixam aos atores, Na verdade nenhum sistema normativo é suficientemente estrutu- \ ere eid, ea eee el ine eal eee \ 180. Us05 6 ABUSOS 4 HisrORIA ORAL nipulagio ou de interpretagio das regras, de negociagéo. A meu ver a Diografia é por isso mesmo o campo ideal para verificar © caréter ins- fersticial — e todavia importante — da liberdade de que dispdem os ‘agentes e para observar como funcionam coneretamente os sistemas nor- mativos, que jamais estio isentos de contradigées. Obtém-se assim uma perspectiva diferente — mas nao contraditéria — daquela adorada pelos que preferem salientar mais os elementos de determinagio, necessérios e inconscientes, como faz, por exémplo, Pierre Bourdieu, Ha uma relagio permanente e reciproca entre biografia e contexto: a mudanca ¢ precisa- mente a soma infinita dessas inter-relagSes. A importancia da biografia é permitir uma descrigio das normas e de seu funcionamento efetivo, sendo este considerado néo mais o resultado exclusivo de um desacordo entre tegras e préticas, mas também de incoeréncias estruturais e inevitéveis en- tre as préprias normas, incoeréncias que autorizam a multiplicago ¢ a di- Yersificaglo das priticas. Parece-me que assim evitamos abordar a realidade hist6riea a partir de um esquema tinico de ages e reagbes, mos- trando, a0 contrério, que a repartigfo desigual do podes, por maior e mais, coercitiva que seja, sempre deixa alguma margem de manobra para os do- minados; estes podem entio impor aos dominantes mudangas nada des- preziveis, Talvez seja apenas uma nuanca, mas me parece que nfo se pode analisar a mudanea social sem que se reconhega previamente a exis- téncia irvedutivel de uma certa liberdade vis-i-vis as formas rigidas e as origens da reprodugéo das estruturas de dominagzo. ‘Tais consideragées convidam a uma reflexio acerca do tipo de racionalidade que é preciso idealizar quando se tenta descrever os atos histéricos. Na verdade raramente nos afastamos dos esquemas funciona- listas ou da economia neoclissica; e estes supdem atores perfeitamente in- formados e consideram, por convencio, que todos os individuos tém as ‘mesmas disposigSes cognitivas, obedecem aos mesmos mecanismos de de- iso € agem em funcéo de um eélculo, socialmente normal ¢ uniforme, de Iucros e perdas. Tais esquemas levam pois & construgio de um homem inteiramente racional, sem dtividas, sem incertezas, sem inéria, A maioria das biografias assumiria porém outta feigo se imagindssemos uma forma de racionalidade seletiva que néo busca exclusivamente a maximizagao do lucro, uma forma de agéo na qual seria possfvel abster-se de reduzir as Us08 04 Blognaria 181 individualidades a coeréncias de grupo, sem renunciar & explicagio dind- mica das condutas coletivas como sistemas de relagéo. ‘Afora a caracterfstica intersticial da liberdade individual e a questo da racionalidade limitada, creio que resta destacar um dltimo ponto. Roger Chartier afirmou recentemente que a oposico entre “andlise micro-histérica ou case studies” e hist6ria sécio-econémica, entre estudo da subjetividade das representagdes e estudo da objetividade das estruturas, pode ser superada contanto que consideremas “os esquemas geradores de sistemas de classificagéo e de percepeio como verdadeiras ‘instituigées so- ciais, que incorporam sob a forma de representacdes coletivas as divisées da organizagdo social".1® Tal observagéo me parece plenamente justificada (exceto, talvez, pela identificagdo da micro-hist6ria aos case studies € a0 estudo das representacdes subjetivas), porém insuficiente: se a énfase recai sobre 0 grupo, a relativa estabilidade das coeréncias e das coestes de gru- po é tida como pacifica, assim como o fato de que elas constituem o nivel minimo no qual se pode ainda estudar com proveito as representagées do mundo social ¢ 0s conflitos que elas provocam, A meu ver, privilegiando a importincia do grupo, subestima-se o problema de sua constituigio, as- sim como a apreciagio de sua solidez, de sua durabilidade, de sua am- plitude, € conseqiientemente esvazia-se a questio da relagio entre indi viduo e grupo. Chartier identifica deliberada e explicitamente as repre- sentagdes individuais as representagdes coletivas, como se sua génese fosse formalmente semelhante, E certo que se descarta assim a observagio de grupos sociais e conceituais indeterminados (cultura popular, mentalidades, classes) para construir uma sociedade fragmentada © conflitante, na qual as represen- tages do mundo se tornam motivo de luta, Mas subsiste uma boa medida de indeterminacéo: 0s agregados de grupo so dados como certos e de- finidos; estudam-se as lutas pelo poder e os conflitos sociais como se estes ocorressem entre grupos ciija coesto & pressuposta, como se a andlise das diferencas individuais — em tiltima instancia tao numerosas que se tor- © Ghariey Roger La storia cultural fia rappresentazo el sociale. Saget di storia elturale. Torino, 1989. p. 14. pratiche. In: La rappresentazione te2 Uso @ ABUSOS DA HistOnA Oat nam impossiveis de interpretar — nada tivesse a acrescentar. Também aqui, trata-se talvez de mera questo de ponto de vista: insistindo na “gé- nese social das estruturas cognitivas” € no aspecto “de incorporagio, sob forma de disposigées, de uma posicéio diferencial no espaco social”, deixa- se vaga a atividade dos atores, concebida unicamente como o resultado de incontdveis operagbes de ordenagéo pelas quais se reproduz © s¢ trans- forma continuamente a ordem social”.'® A nogio de apropriagao sob for- ma de “uma histéria social dos hébitos e das interpretagdes, ligados a suas determinagées fundamentais (que so sociais, institucionais, culturais) e inseridos nas praticas especificas que os produzem”,*” por mais impor- tante e til que seja, também deixa em aberto o problema da relagéo en- tre individuo e grupo. Nao se pode negar que hd um estilo préprio a uma 6poca, um habitus resultante de experiéncias comuns e reiteradas, assim como h4 em cada época um estilo préprio de um grupo. Mas para todo individuo existe também uma considerdvel margem de liberdade que se origina precisamente das incoeréncias dos confins sociais e que suscita a mudanga social. Portanto nao podemos aplicar os mesmos procedimentos cognitivos aos grupos e aos individuos; e a especificidade das agdes de ca- da individuo nao pode ser considerada irrelevante ou ndo pertinente. Fois © isco, nfo banal, & subtrair A curiosidade histérica temas que julgamos dominar plenamente, mas que ainda continuam largemente inexplorado: por exemplo, a consciéneia de classe, ou a solidariedade de grupo, ou ain- da 05 limites da dominagéo e do poder. Os conflitos de classificagSes, de distingbes, de representagSes interessam também a influéneia que o grupo socialmente solidério exerce sobre cada um dos membros que o compéem, além de revelarem as margens de liberdade e de coagéo dentro das quais se constituem © funcionam as formas de solidariedade. Creio que, nessa perspectiva, a biografia poderia permitir um exame mais aprofundado des- ses problemas. pourdieu, Pier. La noblesse dat. Grandes éeoles et esprit de corps. Paris, Minuit, Le sens commum, 1988. p. 9. Capitulo 13 ilusdo biografica* Pierre Bourdieu A hhistéria de vida € uma dessas nogdes do senso comum que entraram como contrabando no universo cientifico; inicialmente, sem muito alarde, entre os etndlogos, depois, mais recentemente, com estar- dalhago, entre os sociélogos. Falar de \histéria de vida}é pelo menos pres- supor — e isso no € pouco — que a vida & uma histéria e que, como no Titulo de Maupassant, Uma vida, uma vida é inseparavelmente 0 con- Junto_dos_acontecimentos de_uma_existéncia individual concebida como uma histéria ¢ 0 relato dessa histéria. E exatamente o que diz 0 senso co- ‘num, isto é, a Tinguagem simples, que desereve a vida como um caminho, ume estrada, uma carreica, com suas encruzilhadas (Héreules entre 0 vicio € a virtude), seus ardis, até mesmo suas emboscadas (Jules homaing fala das “sucessivas emboscadas dos concursos e dos exames"), ot como um encaminhamento, isto é um_caminho que percorremos e que deve ser percorrido, um tajeto, uma corrida, um cursus, uma passagem, uma via- gem, um_percurso_orientado, um deslocamento linear, unicirecional (a_ “mobilidade”), que tem um comego (“uma estréia na vide”), etapas ¢ um fim, no duplo sentido, de término e de finalidade (“ele fard seu caminho” significa ele terd éxito, fard uma bela carreira), um fim da histéria. [sto € accitar tacitamente a filosofia da histéria no sentido de sucesséo de * Bourdieu, Pierre. Lillusion biographique, Actes de la Recherche en Sclences Sociales (62/

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