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Digressões Hegelianas – Sobre o Hegel da Doxografia Materialista

Ainda que se deva evitar demasiados anúncios de profissão de fé, e que não possamos ser
completamente o que dizemos ser: minha tradição é a marxista.

Não sou especialista nenhum, procurei fazer meu caminho através dos seus textos. Consegui
aprender duas coisas, apenas duas coisas, mas coisas que se instalaram em mim e, de certo
modo, falam em mim. Antes de falar sobre o que vou falar, devo expor ao escrutínio de vocês
o meu conhecimento sobre o assunto, porque o meu argumento depende para ter sentido de
que eu de fato saiba do que estou falando quando falo em marxismo, nem que seja num
sentido limitado, no domínio dos princípios e não das conclusões doutrinárias que se podem
tirar a partir deles.

A primeira coisa que aprendi é que somos seres subordinados em certa medida; temos um
lado de passividade que é inultrapassável. Seres naturais, dependemos de um processo de
trocas incessantes com a natureza, com aquilo que ela nos dá. Essa apropriação é sempre
coletiva, o que testemunha a fraqueza do indivíduo da nossa espécie. Fora da comunidade, da
união que faz a força, o indivíduo não é. Essa apropriação da natureza, através do trabalho,
que anula suas intratabilidades, tornando o dado próprio à constituição humana, implica
sempre relações sociais, relações entre pessoas, em que uma age em função de outra, com a
consciência de ações concomitantes à sua e com relação de correspondência entre elas.

A segunda é que essas relações simbióticas que devemos incessantemente travar com a
natureza, coletivamente, têm uma importância fundamental para o modo de existência do
indivíduo. E que sua ocupação nessa cadeia apropriativa tem grande influência em suas ideias.
Há formações subjetivas correspondentes aos momentos da produção e manutenção da
existência da espécie. Mas que a tomada de consciência das formas dessa produção, da forma
com que se dá as trocas na sociedade, de certo modo nos libertaria de seu jugo. Esse trazer à
consciência da importância dos modos com que se dá a apropriação da natureza e as relações
que se estabelecem nesse processo, a isso eu chamaria de consciência de classe - sei que há
um mar de ideias sobre isso, e eu não me arrisco a dizer que meu recorte é adequado. Mas de
cabeça fraca, e dado à distração, foi o que pude perceber. Talvez esse seja o lado ativo da
humanidade.

Percebi algumas outras coisas, mas estas são ainda menos relevantes, já que falam da minha
percepção sobre o ambiente intelectual do marxismo. Exponho-as com ressalvas; mas quem
sabe a percepção subjetiva vaga não seja um momento, unilateral sim, mas um momento da
verdade?

A primeira coisa que percebi foi o medo do idealismo. Medo, veja bem: sentimento que
sofremos sem escolher, gut feelings, como diria a anglofonia, ou parte dela. O medo é tal que a
pessoa se paralisa, e acaba por se contentar com a distância de relatos e testemunhos de
materialistas sobre a questão. É como se o idealismo fosse um monstro aterrador, e apenas
aventureiras se tenham dignado a enfrentá-lo diretamente, e seus testemunhos da batalha são
o máximo de proximidade que podemos ter do monstro. Como marxistas, deveríamos ter de
cor o ditado de que quem vence é que conta a história. Enfrente você mesmo o idealismo -
não dependa de relatórios jesuítas sobre a China, conheça você mesmo, da maneira que
puder. Afinal de contas, o idealismo está mais próximo que a China. Muitas pessoas militantes
que conheci jamais se engajaram diretamente com os argumentos idealistas. Elas são
materialistas por princípio - o que é irônico, vindo de pessoas que dizem pertencer a uma
tradição racionalista. Se você é racionalista a sério, o seu materialismo deve ser resultado da
meditação e do estudo, não uma mera posição anunciada, asserida e, desde sempre,
inegociável.

Um clichê: Marx retirou o núcleo racional das mistificações hegelianas. Pois bem, tudo bem.
Mas vá você mesma a Hegel ver que mistificação é essa. Ou tem medo de, lendo idealistas, ser
infectada? Como se a leitura fosse algo de doença epidêmica. Se você pode, você deve em
algum momento da sua formação intelectual se assenhorar seriamente, ao menos, dos
contornos das opções de pensamento disponíveis a você. Só trabalhando através delas você
deixa, em alguma medida, de depender da autoridade de comentadores e do seu necessário
enviesamento. Não tema o idealismo. Seja racionalista: se engaje, como Marx se engajou, no
estudo dos escritos e veja por seus próprios olhos.

A segunda coisa é a questão da dialética. A dialética, essa magia misteriosa, paira vaporosa no
ar sem que ninguém possa agarrá-la de jeito. De fato, quem ousará responder em tom
definitivo o que seja a dialética, sem cair no ridículo? Talvez, dizer o que ela não é, seja mais
adequado. Algumas pessoas se agarraram à grosseira, formalista caricatura de Engels sobre a
dialética, e passam a aplicar a forma sem considerar o conteúdo em questão, como se a
dialética fosse uma espécie de forminha de massa de modelar, que aplicamos à realidade -
uma receita de bolo. Por um lado, ninguém ousa dizer o que é a dialética em termos simples.
Por outro, agem como se soubessem, invocando as tais leis dialéticas para fundamentar uma
reflexão externa, descuidada sobre qualquer tema. Quem o diz também é culpado; por acaso
não farão parte da formação esses erros grosseiros, essas simplificações terríveis? O problema
é se satisfazer aí estando.

Mais uma vez, não sou especialista, estou no início de meus estudos, e dizê-lo é uma forma de
me defender de quem pensa que este texto seja escrito do alto da colina da sabedoria. Explico-
me: não sou um erudito, mas comecei minha caminhada. E vendo que muitos falam como se
nem tivessem começado, me senti no direito de tentar alertá-los que somos ignorantes. E, pra
isso, tive de falar naquilo que sei e eles não. Perdoem essa audácia, mas ela parece inevitável!

Mas quero dizer com isso tudo: o marxismo deveria ser uma tradição que se orgulha da solidez
e amplitude da sua formação intelectual. Que não tem pudor de se engajar seriamente com o
idealismo, e mesmo de questionar essa dicotomia, por trás da qual penso que se esconda
muita complexidade. Conheça profundamente a sua tradição, mas mais ainda a tradição a que
ela diz responder - uma questão de contexto e honestidade, talvez. Não estou certo.

Lênin disse que o lema deve ser: estudar, estudar e estudar. Não só os dirigentes e as
dirigentes-mor devem ter conhecimento primário sobre a ciência da lógica. Porque não se
pode pretender militar a partir de vulgarizações mesquinhas.

Dando continuidade a essa reflexão, e como forma de exemplificar o tipo de vulgarização que
procede da arrogância de quem não estuda, mas emite asserções peremptórios sobre o que
desconhece, gostaria de tecer um breve comentário à seguinte afirmação, que penso
expressar um entendimento estreito da filosofia de Hegel, o idealista favorito.

“A oposição não pode ser resolvida filosoficamente.”

Esta é uma tese interessante. Expressa, quando direcionada a Hegel, um dos mais comuns
desentendimentos sobre sua filosofia. É dito que, para Hegel, a filosofia, o pensar filosófico, é a
causa; instituições jurídicas, artísticas e sociais seriam meros efeitos da filosofia, ou do
pensamento propriamente dito. Eis aqui um erro grosseiro, uma mistificação mesquinha.
Leiamos as aulas sobre a história da filosofia, suas aulas de Berlim: lá, Hegel expõe claramente
sua posição nesse assunto em particular, ao falar sobre as relações entre história e filosofia.

Ele coloca algumas teses sobre essa problemática: por exemplo, fala sobre a ideia de um fator
prévio determinante que decide sobre todos os outros. Esse fator pode ser concebido de
diversas formas: instituições jurídicas, crenças religiosas, sistemas econômicos, visões artísticas
e até mesmo o pensamento filosófico: todos estes podem ser tomados como fatores primeiros
de determinação que decidem sobre a forma de todos os outros fatores de uma certa
totalidade.

Hegel se coloca claramente contra essa ideia que, na formulação de que nos ocupamos, pode
ser pensada como o pensamento filosófico resolvendo, pensadamente, oposições sociais e
equivalentes. O homem diz o seguinte: o pensamento filosófico, instituições de mediação
social, crenças religiosas, práticas artísticas estão todas numa unidade sistemática entre si – a
essa unidade sistemática de todos os “fatores” de uma totalidade, Hegel chama de espírito.
Um movimento em um desses domínios significa um movimento na totalidade. Não há tal
coisa como a filosofia arrogantemente tentando resolver pensadamente problemas sociais –
esta é uma distorção vulgar da posição de Hegel que tem grande circulação, talvez por ser fácil
ver o quão errônea ela é.

Na verdade, Hegel coloca a filosofia como, num certo sentido, um resultado de certos
processos históricos, totais; quando o espírito já não se sente em casa na sua presente
configuração, quando ele não mais adere imediatamente à sua atual forma de vida, em outras
palavras, em períodos de decadência, o pensamento se retrai em isolamento, de modo a
pensar, retrospectivamente, seus desenvolvimentos prévios, tornando-os conscientes a si
mesmo. Este é um dos sentidos da famosa frase de Hegel sobre o voo da Minerva que se dá
apenas no fim do dia.

Então, o que Hegel parece dizer é exatamente o contrário da ideia da filosofia como sendo a
disciplina que resolve as tensões do espírito: ao invés disso, a filosofia marcaria o fim, o pensar
de um processo já dado; a filosofia é o espírito a sistematizar seus feitos imediatos, elevando-
os ao pensamento autoconsciente.

A premissa aqui está errada. Não há muito que se discutir, contra tamanha vulgarização – que,
em alguns meios, passa por perspicácia. Hegel jamais pensou da filosofia que ela resolveria,
interviria nas tensões de uma era de modo a reconciliar os opostos – por isso, ele não pode ser
acusado de pretender resolver teoricamente aquilo que apenas a práxis pode.

A filosofia é um sintoma de decadência; sintoma de um espírito que perdeu a confiança em si


mesmo, estranhando a si consigo mesmo – a filosofia é, na verdade, a ressaca de uma era, o
resultado do culminar de um cansaço que obriga o espírito a parar por um momento, de
maneira a recolher pensadamente seus próprios fazeres passados – algo que falta e muito a
uma militância cada vez mais impulsiva, cada vez mais fígado, cada vez menos cérebro.

A filosofia de Hegel é infinitamente superior a uma teoria fatorialista de tudo; na verdade, sua
filosofia pode ser pensada como a mais consequente resposta a este tipo de pensamento,
preso a operar com pares como a essência e aparência, o fundamento e a consequência, a
causa e o efeito... em termos mais técnicos, essa é uma interpretação que tenta reduzir a
filosofia de Hegel a um pensamento que opera sob a lógica da essência.

Então, afinal, do que se trata Hegel? Quem é esse homem misterioso, de que só ouvimos falar
através de Kierkegaard, Schelling, Engels, Marx, Proudhon e afins? Homem de que só temos
notícias e testemunhos, mas com quem raramente travamos diálogo? A partir de um certo
recorte, de um recorte particular e, por isso, limitado, procurarei dar a conhecer um pouco de
um dos aspectos centrais de seu pensamento, sem cair em demasiadas complexidades. Este
aspecto, enuncio-o assim: Hegel busca dar conta da análise extensiva dos conceitos mais
básicos que usamos para pensar o mundo e a nós mesmos.

Pergunto-lhe: o que significa dizer que X é algo? O que queremos dizer quando afirmamos que
algo tem realidade? Que ele é a causa de outras coisas? Estas são categorias básicas com as
quais estamos completamente familiarizadas. No entanto, normalmente, nós não refletimos
sobre elas. Usamo-las todas as vezes que pensamos sobre alguma coisa, seja o que for, sem
que reflitamos sobre elas mesmas, sem torná-las objetos de pensamento em si mesmas.
Injustificadamente, nós pressupomos seus significados.

Este é um dos temas centrais do livro A Ciência da Lógica, de Hegel. Tomar dessas categorias
básicas do pensamento e pensar através delas, vendo se, assim, podemos como que gerar um
sentido apropriado e consciente sobre elas.

Vamos dar um breve passeio agora, entregando-nos a reflexões externas. O sentido desse
passeio deve permitir a quem lê atentamente o intuir da categoria mais básica do
pensamento: a categoria do ser.

Eu ando pelas ruas da minha cidade; vejo silhuetas, cores, ouço sons dos mais diversos
timbres; alguém passa por mim, sinto o seu perfume, ou farejo o cheiro de pão fresco sendo
feito na padaria do outro lado da rua. Sinto o chão sob meus pés, minha consciência é
transpassada, continuamente, por uma imensurável quantidade de sensações de todos os
tipos. Internamente, surpreende-me o emergir de uma velha memória; sou invadido por
afecções íntimas quando alguém me insulta, afecções que muito pouco posso controlar – e
que não posso fazer desaparecerem por um ato de vontade. Interna e externamente, eu sou
esse contínuo colorido e vibrante de conteúdos.

Pensando sobre isso, percebo que posso apenas afirmar tal coisa lembrando. Presentemente,
eu não sinto todas essas sensações de uma só vez, mas apenas um recorte delas por vez. O
fundo azul do céu, anúncio de um verão precoce, chama a minha atenção, e enquanto o
contemplo, eu não reparo em nenhum cheiro em particular, mesmo que, alguns momentos
depois, refletindo, eu possa confirmar que havia um cheiro presente enquanto eu pensava
sobre o céu azul. Em suma, eu tenho essa capacidade de, aliás, eu sou compelido a ignorar
muito daquilo que compõe a minha experiência – estou continuamente subtraindo uma
grande parte do conteúdo que está presente diante de mim, já que sou capaz de agarrar-me a
uma e apenas uma sensação, ou pensamento, por vez.

Mais do que simplesmente ignorar, eu sou capaz de, pensadamente, abstrair – essa é a palavra
própria aqui para se referir a esse suspender, ignorar ou subtrair – uma só característica de
algo que contemplo. O céu azul – agora passo a contemplar apenas o azul, um azul que, penso
para mim, é difícil de encontrar em outros objetos naturais. Olhando para o céu, esqueço-me,
ignoro a ideia de que contemplo um inteiro céu, e deixo-me focar apenas em sua cor, cor que
subsiste diante dos olhos da minha mente, depois de ser separada do objeto a que pertence. O
puro azul, sem céu. Eu agora considero a cor sem referência ao que ela colore. Eu abstraí, a
partir do pensamento do céu, apenas uma propriedade que, por sua vez, se tornou um objeto
de pensamento em si mesma. Veja que estranho: eu tenho essa capacidade de separar aquilo
que se apresenta unido, e considerar isoladamente aquilo que se apresenta apenas entre
outras coisas. Eu nego algumas partes de uma totalidade, focando-me apenas em algumas
delas – eu digo não ao céu, eu digo sim ao azul. Eu nego a maior parte dos conteúdos que
passam através dos meus sentidos, sejam eles externos ou internos.

Imagine que não tivéssemos tal poder: êxtase mística, talvez? O sentimento de se estar
completamente submergido numa pura diversidade, caótica e confusa. Ouçamos Bach, uma de
suas belas fugas. Quão difícil é não se sentir saturado, confuso diante de tanto movimento!
Nossos ouvidos ignoram todas as linhas senão uma, fazendo-a a estrela primeira, as outras
então passam ao fundo, são ouvidas sim, mas como uma mera aura distante.

Agora, estou completamente consciente do poder negativo do meu pensamento – abstrair,


ignorar, agarrar-se a uma certa característica isolada, subtraindo-a da coisa aonde a encontrei.
E se então levássemos esse poder de abstração até seu limite último? E se operássemos agora
um ato radical de abstração?

Eu esvazio minha consciência – de qualquer insinuação sensorial. Cores, silhuetas, sombras,


formatos, memórias, desejos, fantasias, afecções, qualquer que seja do escutar, do ver, do
tocar; nenhuma paixão interior deve ser considerada, nem a inveja, nem o amor! Em outras
palavras, o que resta senão a indeterminada e morta, vazia e radicalmente cópula do juízo que
é minha vida – um simples, indeterminado e radicalmente abstrato é é o que resta e nada
mais.

Esse ser, esse é, não pode ser pensado como tendo nada que o diferencie de outra coisa
qualquer – simples é, ou melhor, é um é sem uma coisa. Eu não sou capaz de falar, de
discursar sobre aquilo que não possui propriedades nenhumas; não há maneira de comparar
esse é, resto que sobra de nossa abstração radical, com qualquer outra coisa, visto que
comparar implica uma certa procura sobre as diferenças e semelhanças entre, ao menos, duas
coisas determinadas. Depois de termos abstraído de tudo, resta apenas o quê? A pura
indeterminação. O restolho vazio de um ato violento e radical de abstração – o vazio ele
mesmo, sem que esse vazio seja o vazio de algo em particular.

Como posso pensar sobre esse ser, esse é? Não posso pensá-lo como resultante de nada, nem
do meu próprio ato de abstração, porque a abstração também foi abstraída. Pensar algo como
sendo resultante de é pensá-lo numa série de relações de determinação, relações com outras
coisas; como pensar a indeterminação desse ser em referência à diversidade, se ele é
ultimamente abstrato – isolado e vazio? Temos uma lição aqui: aquilo que é plenamente
abstrato não pode manter relações com outras coisas, outros aquilos, já que ser abstrato é
justamente ser isolado, e ser isolado é não estar em relações, é não ser pelas relações que
mantém com outras coisas e processos.
Esse é o vazio de conteúdo que dá o início da exposição na Ciência da Lógica. Isto é o que
Hegel nos apela a pensar sobre: puro ser e nada mais. A análise das categorias básicas do
pensamento começa a partir da categoria do ser. Por quê?

Porque ela é a mais geral categoria de todas. Se dizemos que algo causa outro algo, dizemos
que, de algum modo, esse algo é. O predicado “ser” é o predicado mínimo, digamos assim;
todas as outras categorias implicam um certo pôr, uma certa positividade – o ser. Eu não
poderia começar minha análise dos conceitos mais básicos do pensamento com a categoria da
causa, por exemplo – esta categoria implica em si diversos outros conceitos, tais como os
conceitos de limite, outro, constituição, determinação etc. Portanto, se começássemos pela
categoria da causa, eu teria que tomar por garantidos os sentidos de todas as categorias
implicadas aí.

Todo o discurso predica. Todo o discurso diz: isto é aquilo, isto causou aquilo; isto é o
fundamento daquilo. Repare: você está constantemente a usar esses conceitos, mesmo que
eles estejam, muitas vezes, misturados, vagamente sugeridos apenas.

O que Hegel está dizendo ao nos convocar a pensar sobre os conceitos mais básicos do
pensamento, é o seguinte: sabemos o que significa dizer que algo é algo? Quando dizemos que
algo de repente mudou, o que significa isso? Cada ato de fala está cheio desses conceitos:
alteração, constituição, limite, nascer, perecer, qualidade, realidade, negação. Mas nós temos
de nos perguntar: qual o significado próprio desses conceitos? E quais as relações que eles
mantêm entre si? Não estaríamos submetidos a um pensamento arbitrário caso o nosso uso
cotidiano desses conceitos não correspondesse ao seu sentido adequado, se é que é possível
estabelecê-lo? Repare: Hegel está tentando dar conta do pensamento da determinidade sem
recorrer a pressupostos injustificados.

Daí que seja simplesmente errado falar de Hegel como se ele estivesse simplesmente fazendo
avançar algumas teses aqui e acolá, escrevendo ora sobre o Estado, ora sobre a Arte, ora sobre
a Religião. Infelizmente, isso hoje em dia passa por filosofia. Mas todos esses discursos sobre
poder, tempo, ser-aí, finitude, e outros, não se engajam com um tratamento crítico prévio das
categorias que usam para determinar seus objetos. Esses discursos simplesmente tomam a
verdade das suas determinações por garantida. Eles podem até refletir acerca da verdade da
relação entre um sujeito e um predicado – mas jamais questionam a verdade do predicado em
si mesmo.

Essas considerações são de todo limitadas; não espero com elas, de modo algum, dizer a
última palavra sobre o assunto – quem ousaria? No entanto, penso que aqui haja elementos
suficientes para desmistificar algumas simplificações grosseiras sobre o velho alemão. Por fim,
gostaria de deixar-vos com um breve comentário acerca dos primeiros dois parágrafos da
introdução à Ciência da Lógica, parágrafos que tratam do difícil começo num projeto que
procura dar conta da própria determinidade sem partir de pressuposições.

Por onde começar na exposição da verdade filosófica? Como começar? Em que sentido a
exposição ela mesma, ao menos no seu começar, deveria ser verdadeira, como se a forma da
exposição devesse se adequar ao assunto da exposição? E se a forma da exposição deve se
conformar ao conteúdo do que é exposto?
Poderíamos, aqui, dar um salto de fé, já que não parece ser possível encontrar a justificação da
exposição e seu início; afinal de contas, em que sentido podemos afirmar que a filosofia
deveria, em seu início, refletir sobre seu próprio início, enquanto não pode se certificar que
este é o próprio começo justificado? Por que não então dizermos: a filosofia se encontra
diante de um problema? Para esse problema, há infinitas formulações; não apenas há disputas
acerca da resposta, como também da própria formulação do problema. Se pensarmos na
atitude usual de uma jovem cientista natural, os problemas, na sua formulação, são
geralmente consensuais. A formulação do problema, em si, não é motivo de disputa. A única
questão que se coloca é responder ao problema, dar-lhe uma resposta justificada. Já na
filosofia, mesmo formular o problema enquanto um problema já aparece como expressão de
uma posição filosófica particular. Parece que introduções, comentários – como este mesmo
comentário – estão sempre, em certo sentido, fora da filosofia, sendo ao mesmo tempo
necessários à filosofia. Então vamos admitir de uma vez por todas: nós começamos com um
recorte arbitrário de uma tradição monumental, e refletimos no erro que isso representa,
mesmo que cheguemos à conclusão de que é um erro impossível de se evitar.

Mantenhamo-nos, por isso, nos limites desse corte arbitrário, num comentário que não pode
dar conta de si senão referindo a si mesmo. Há um problema. E a filosofia trata,
primeiramente, de formulá-lo. Dar-lhe expressão linguística, talvez, elaborar discursivamente
as determinações de um problema. Então há, diante de nós, interpelando-nos por aderência,
diversas, distintas formulações para o problema; cada qual afirma de si que é a formulação
definitiva do problema, a formulação em que pensamos o problema como ele é em si mesmo.
Veja, repare: formular o problema como sendo um problema com diversas formulações é, em
si, um ato filosófico, passível de ser disputado filosoficamente. Mas veja também que há algo
de curioso acontecendo aqui. Parece que quem pensa deve conformar seu pensamento ao
problema, a um problema existente. O problema já estava lá, plenamente constituído, e nosso
papel, como inquiridores, é pensá-lo e expressá-lo tal como ele é em si mesmo! Esta seria a
verdade do problema; a inverdade de todas as outras formulações, digo eu, é devida à sua
conformação parcial ao problema em si mesmo.

Ao pensar sobre isso, outra coisa interessante surge: o problema parece existir
independentemente de suas formulações. Ele está. Ele possui atributos próprios aos quais
nosso conhecimento deve conformar-se de forma a estabelecer a sua verdade. Se tal problema
existe independentemente do seu pensar, ele é entre outras coisas, ele é uma certa coisa que
já estava plenamente constituída antes de nós pensarmos sobre ela! Como é pensado o
pensamento aqui? O pensar é tomado como uma espécie de artefato, ou aparato vazio, que se
preenche com o conteúdo do problema. O pensar aproxima-se de algo já plenamente
estabelecido, o que significa dizer que pensá-lo não pode ser testemunhar no pensamento a
sua origem: o nosso início é distinto do início do problema. O problema é real. Estamos
confiantes de que nosso pensamento é capaz de apreendê-lo. Agora deixa-me introduzir uma
dificuldade fundamental: como saber se o meu pensamento se conforma ao problema se não
posso sair dessa relação e adquirir uma visão exterior a ela, de modo a garantir que represento
o problema tal como ele é antes de ser pensado? Difícil, não? Mas este é o esforço de
pensamento que falta a quem pensa que pode mudar o mundo com o fígado.

Essa nova preocupação introduz uma desconfiança no pensamento. E se o pensamento está


alterando o problema? E se o pensamento tem suas próprias atividades, e nós chegamos ao
conhecimento não do problema como ele é em si mesmo, mas como ele é depois de ter sido
apreendido em pensamento? O pensamento aqui trabalha contra seus próprios fins: ele quer
saber, mas seu próprio ato de apreensão muda o objeto, tornando impossível conhecê-lo tal
como ele é antes de ser pensado. Somos jogados completamente fora da possibilidade da
verdade: só podemos conhecer os efeitos do problema em nós, sem sermos capazes de
transcender essa situação de maneira a chegar ao problema ele mesmo! Aqui, o pensamento
não mais está em concordância com o seu objeto. De certo modo, o pensamento fá-lo, e a
estrutura do pensamento é a única coisa que podemos conhecer – o problema, tal como ele é,
está para sempre fora de nosso alcance. A ideia da verdade enquanto correspondência,
conformação do pensamento ao problema está em ruínas. Mas talvez possamos pensar: todo
o pensamento tem a mesma estrutura! Poderíamos, a partir daí, imaginar uma nova noção de
verdade, a verdade enquanto consenso entre diversas pensadoras particulares, o consenso
enquanto aquilo que refletiria a universalidade da estrutura do pensamento. No entanto, em
ambos os casos expostos, o pensamento é pensado como um enquadramento meramente
formal, absente de qualquer conteúdo próprio. É uma forma vazia que, num caso, deve
conformar-se ao objeto e, noutro, conformar o objeto a si mesmo.

Mas e se o pensamento, ele mesmo, possui um conteúdo? Neste caso, a questão muda. O
problema não mais se apresenta como exterior ao pensamento; aqui, forma e conteúdo,
matéria e método coincidem: e se assumimos cedo demais que a vocação própria ao
pensamento é confrontar-se com algo fora de si mesmo? E se o nosso problema puder ser
formulado enquanto um problema do pensamento? Aqui, o pensamento passa a pensar algo
que não mais é distinto de si mesmo; já não mais encontra algo fora de si, plenamente
constituído, que é preciso ser estabelecido intelectualmente de forma adequada. O
pensamento se torna o inquiridor e o inquirido. Quais as consequências da identidade entre a
inquiridora, a atividade do pensamento, e o problema ele mesmo? Primeiro, dentre outras
coisas, o problema já não me se constitui fora do pensamento; o problema já não aparece
mais como um dado, lá fora. Ele será constituído conforme o pensamos; estranha situação: um
objeto que é gerado pelo pensamento que o pensa! Que objeto poderia ser esse? Apenas e só
o pensamento, é claro!

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