Você está na página 1de 2

Em América Latina, de modo parecido com em outras regiões que até 1991 faziam

parte do chamado «Terceiro Mundo», a tradição convive com a modernidade, a religião com a
ciência, a riqueza com a pobreza. A existência dos extremos não se dá de modo
compartimentado, mas lado a lado, como a Vila 31 em Buenos Aires ou a Rocinha no Rio de
Janeiro. Como negar a tradição num local como esse, no qual as igrejas evangélicas avançam
a cada segundo? Contudo, como negar a modernidade num lugar desses, no qual há mais
smartphones com acesso à internet que rede de esgoto? Os pontos de intersecção aqui são
mais visíveis que em outras localidades.
Desde ao menos 1492, com a «Descoberta da América», o que por si só é algo sobre o
qual se refletir, afinal, por que «descoberta», se aqui há povos vivendo desde há ao menos 15
mil anos? E por que «América», se Vespúcio foi apenas um homem?, a Nossa América vive
um peculiar fenômeno de constante reflexão sobre si, uma espécie de crise identitária
constante, tendo em vista que aqui se misturaram ao menos três troncos étnicos – autóctones,
africanos escravizados e europeus, sobretudo os mais pobres –, com ao menos duas visões
distintas: os dois primeiros, viam-se como parte da natureza, como parte do mundo; não à toa,
não há palavra correspondente a «mundo não humano» nas milhares de línguas nativas,
porque não havia aqui, ou em África, o homem não se percebia como algo separado daquilo
que o cerca. Por outro lado, os velho-continentistas se viam não só como distintos à natureza,
mas, também, como possuidores do direito de submetê-la às suas vontades, sejam elas quais
fossem.
No decorrer dos séculos essa amálgama tornou-se mais e mais diversa, visto que, além
das imposições das elites, locais e metropolitanas, seja a conquista do Império Inca, no século
XVI, seja a Operação Condor, no século XX, surgiram, indivíduos e movimentos
contestatórios, como Felipe Guamán Poma de Ayala, descendente das elites incaicas e tido
como «o primeiro nacionalista peruano», ou o Sendero Luminoso, as FARC, as Duas Grandes
Marchas, etc., adicionando mais e mais noções, interpretações e soluções a situações ora
encaradas como naturais ora encaradas como problemáticas.
Com esse histórico, de experimento social tão complexo e traumático, não é de se
espantar que tenha surgido o movimento decolonial, do qual Canclini é parte, que tem como
um de seus objetivos distanciar-se do referencial franco-anglófono para filosofar, porque ali
se vive a moda de um «movimento intelectual não movimento», que é o pós-modernismo, que
pouco tem a ver com o nosso continente. Olhando para sua formação acadêmica e percurso
profissional, oriundo de uma universidade latino-americana, UNLP, um dos escudos da
diferença, mesmo nas várias ditaduras vividas por Argentina, e com contato tão íntimo com
este continente, são compreensíveis suas ideias, segundo as quais: em oposição ou que diziam
os teóricos do capitalismo avançado, o mundo moderno, como idealizado, não chegou, e o
mundo tradicional, mesmo após tanto ser amaldiçoado, não se foi. Assim, cabe a nós, latino-
americanos, prefiro o termo «terceiro-mundistas1», deixarmos de lado o eurocentrismo para
que «caminemos sobre nuestras propias piernas».

1
A explicação terminológica ficará para outra ocasião!

Você também pode gostar