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Copyright © Editora Perspestiva, 1978 Dados Intemacionais de Catalogago na Publicagdo (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) (O Romantismo/J. Guinsburg , organizasio .— ‘io Paulo : Perspectiva, 2005. — (Stylus 3 /dirigida porJ. Guinsburg) 1 reimpr. da 4. ed. de 2002. Bibliografia. ISBN 85-273-0287-X 1, Romantismo - Histraeexstica . Guinsburg, J. UL Série, 05-4336, cDD-700.4145 Indices para catflogosstemiico: 1, Romantismo : Artes 700.4145 A edigho— I*reimpressio Direitos reservados 8 EDITORAPERSPECTIVAS.A. ‘Ay. Brigadeiro Luts AntOnio, 3025 (1401-000 Sto Paulo - SP — Brasil ‘Telefax: (11) 3885-8388 wwweditoraperspectiva.com br 2005 2. OS FUNDAMENTOS HISTORICOS DO ROMANTISMO Nachman Falbel i L. Introdugéo Um dos mais autorizados estudiosos da hist6- ria européia contempordnea, ao tragar 0 plano de sua obra sobre a época do Romantismo, escre- ve “serem poucos os periodos da historia, como os anos entre 1815 ¢ 1848, que realcam com tanta evidéncia 0 fato de cada periodo nao ser mais do que uma etapa no proceso histérico ™, i: Na verdade, 0 exame do perfodo nao permite a0 historiadot fixar balizas cronolégicas nitidas en- tre causas e efeitos ¢ nem tampouco determinar uniformemente 0 inicio € o fim do grande movi- mento espiritual que tZo profundas rafzes deixou no Ocidente, Hl Pré-Romantismo e Romantismo nascem do ial i in i if KK i HGH! «mesmo movimento histérico e o seu inicio coinci- i Hh \ | [| dente em vérios lugares, com diversos grupos que | ie Bl i Revisio especial deste trabatho: Fany Kon. Been ta Remaptiona e Revolte, Europa 105.108 Listas, et Verba 1967" OS FUNDAMENTOS HISTORICOS DO ROMANTISMO 23 entio se desconhecem uns 20s outros, mostra o quanto tentaram resolver os mesmos problemas humanos nas circunstincias que favorecem a ruptura com o passado préximo, ou com o mun- do “ordenado” da Idade Média, permitindo uma nova transmutagiio de valores. © perfodo do Romantismo & fruto de dois grandes acontecimentos na hist6ria da humanida- de, ou seja, a Revolugao Francesa e suas deriva- goes, e a Revolugdo Industrial. As duas revolu- (Ges provocaram’ e geraram novos processos, desencadeando forcas que resultaram na forma- G0 da sociedade moderna, moldando em grande parte os seus ideais (sociais). As instituigdes poli- s tradiconais sofreram fortes abalos ¢ as fron- teiras entre os povos foram modificadas criando novo equilibrio entre as nag6es. O nacionalismo esse tempo irrompe impetuosamente em cena, arrastando consigo boa parte dos povos europeus em diregio as suas aspiragées politicas © sociais. Novas ideologias e teorias acerca do Estado acom- panham as mudangas répidas inerentes a tal pro- cesso. As ciéncias se ampliam em um vasto né- mero de novas areas do conhecimento humano, gue se abrem para a investigacdo e 0 estudo. As artes recebem os novos elementos gerados em tais circunstincias, incorporando-os em suas vé- rias formas de expressio, j4 anteriormente pre- parados com a revolugio intelectual dos séculos XVII e XVII. © perfodo que se estende de 1770 a 1848 é agitado incessantemente por revolugdes ¢ basta~ ria lembrarmos as mais significativas para ava liarmos 0 quanto determinaram o espirito da época. De 1770 a 1783, temos a Revolugéo Ame- ricana que daria um ‘governo constitucional ¢ democrético aos Estados Unidos. De 1787 a 1790, deparamo-nos com uma onda de agitacéo revo- lucionétia nos Paises Baixos austrfacos que se sublevam contra o absolutismo ilustrado de José Il, De 1787 a 1789, assistimos 2 Revolugio Francesa, que determinaria de modo tao decisivo 08 destinos das nacdes européias. De 1788 a 1794, a Poldnia trava uma luta revoluciondria em prol de sua liberdade nacional. Boa parte das nagdes européias acabam por adotar as formas governa- mentais republicanas que substituem os Estados monérquicos absolutistas. Tais revolucées se alas- j trariam inevitavelmente a outros continentes, en- - contrando solo fértil nas colénias espanholas da ‘América e outras regides do Continente europeu, © fundo geral de tais revolugdes aponta causas ligadas & prépria estrutura da sociedade, a0 desenvolvimento econ6mico e as conjunturas politicas do tempo. A “idade do absolutism” 2, que se estende de 1660 a 1815, caracteriza-se pelo estabelecimento de governos fortes, assentados sob © absolutismo monérquico. & justamente contra © prinefpio politico absolutista que vao atuar as idéias ¢ os programas politicos dos revolucioné~ ios do século XVII, os quais fazem do ideal democrético sua bandeira de luta, de forma que a hist6ria da humanidade caminha cada vez mais esse rumo e as massas populares participam mais e mais nas decisdes politicas ligadas ao seu prdprio destino. Sob esse aspecto o Ancien Régime era na verdade fundamentado sobre classes ou grupos privilegiados, limitados a certas oligar- quias rurais urbanas concentradas téo-somente em seus proprios interesses.. Tal situagio,” que cingia a uma pequena minoria as conquistas cul- turais ¢ cientificas da civiliazedo, era o ideal para represar descontentamento ¢ revolta que iriam eclodir com violéncia a partir da segunda metade do século XVIII, O desenvolvimento de novas forgas: sociais e de novos credos politicos ¢ filo- sOficos se conjugaram no assalto as velhas insti- tuigdes que j4 apresentavam sinais de fissura ¢ anacronismo. ‘As revolugées, Americana e Francesa, seriam as primeiras de uma longa série de revolugées que teriam como cendrio as mesmas ou idénticas causas. Mas ao movimento politico antecede um proceso econémico e social profundo, que ocor- reu na Europa aproximadamente a partir de 1750: a Revolugao Industrial. 2. Beioer, Max. The Age of Absolution, 1660-1815. Nora ‘York, Harper’ Foresboaks, 1962, Il. A Revolucéo Industrial e intelectual ¢ rendas, onde no faltam as artimanhas da es- peculagao que a caracterizaré futuramente. Na Inglaterra, desenrola-se 0 inicio de uma evolucdo industrial que vai substituir as oficinas ¢ tendas dos artesios pelas grandes manufaturas e abrir o caminho a um avango tecnolégico decisivo na histéria da economia ocidental, O fendmeno paralelo que acompanha e’parti- ipa desse processo € 0 crescimento demogréfico que, numa demonstragio estatistica ligada a re- Bido da Inglaterra e a0 Pals de Gales, aponta que o niimero de habitantes em 1700 era ao redor ‘As miltiplas inovagdes ocorridas na técni- ca industrial a partir dos meados do século XVIII tinham por fundo histérico mais longin- {quo 0 desenvolvimento do comércio que levou, como conseqiiéncia, ao desenvolvimento ¢ ao estimulo dado a indiistria. © comércio maritimo, que se fazia entre as metrépoles e as coldnias espanholas © portuguesas, até as do Extremo Oriente, traz ao Continente europeu um gran- de afluxo de metais preciosos. A Inglaterra, com sua politice colonial e, utilizando-se de tratados que a favorecem abertamente, tais co- mo o de Methuen, em 1703, ¢ 0 de Paris, em 1763, adquire privilégios comerciais imensos que acabam canalizando para seus cofres quan- tidades significativas de metal precioso. Também a Franca se beneficia do comércio intenso com a Espanha e acumula continuamente o metal tio procurado pelos governos das nacdes implicadas nesse comércio internacional. Além do mais, j& naquela época, pela facilidade e carter prético, € introduzido 0 papel-moeda que acompanha a di- fusio da técnica bancéria, bastante aperfeigoada pelo aciimulo de uma experiéncia que vinha des- de as grandes cidades medievais ligadas a0 comér- cio internacional, tais como as cidades costeiras da Itélia e outras como Antuérpia, Amsterdé, que receberdo posteriormente no século XVII, incen- tivos. Os bancos conquistam os Estados europeus do Ocidente ao Oriente, ¢ as transagbes comer- ciais ja no se fazem habitualmente com 0 empre- go direto do valor metélico, mas de um meio cir- culante mais cémodo e rapido, como o papel- -moeda, titulos de banco, letras de cfmbio, que acabam por sobrepujar o anterior. Os bancos ¢ 0s banqueiros incentivam a ind@stria, desenvolvendo uma técnica de crédito que encoraja os empreen- dimentos e os negécios industriais através de empréstimos faceis, &s vezes, em troca de ti- tulos e ages. Esse 6 0 passo dado para a criagao de sociedades de ages que encontram na Bolsa ‘© seu mercado de transacées, onde pululam os agentes de cambio que vendem ages, obrigagdes de 5,5 milhdes, em 1750 de 6,5 milhdes ¢ em 1801 de 9 milhes, atingindo em 1831 a cifra de 14 milhées®. © fato é que na segunda metade do século XVIII a populacdo havia aumentado em 40% ¢ nas trés primeiras décadas do século XIX 0 crescimento foi superior aos 50%. No Continente, por volta de 1700, a populagio passa- tia de 118 milhdes para 180 milhdes no fim do século. Este aumento populacional nfo era con- seqtiéncia somente da taxa de natalidade, mas de outras causas, tais como a queda do indice de mortalidade, que decresceu quase continuamente a partir de 1740. Segundo Ashton, a introducdo das colheitas de tubérculos tornou possivel ali- mentar mais gado nos meses de invemo, tornando maior 0 fornecimento de carne verde durante'todo © ano. A produedo cada vez mais elevada do irigo ¢ de cereais forneceu alimento importante para aumentar a resisténcia dos individuos as doen- gas. A imunizagio contra as enfermidades tam- bém cresceu devido A aquisigéo de hébitos de higiene pessoal melhor difundidos. O emprego de tijolos em lugar de madeira e da pedra em lugar do colmo na feitura dos telhados das casas pro- tegeu melhor as populagdes contra as epidemias. O cuidado com a localizacao das habitagées ope- rérias longe dos lugares insalubres ¢ nocivos trouxe mais conforto doméstico. O desenvolvi- mento urbano levou ao emprego da pavimenta- Go das ruas € A utilizacdo de esgotos e dgua Pub, 3. Asnton, TS. A. Revolupdo Industrial, Lishos, EuroparAmérie, 1971, 9.23. OS FUNDAMENTOS HISTORICOS DO ROMANTISMO 25 corrente, tomando a vida da cidade mais saudé- vel do que era antes. A evolugo das ciéncias mé- dicas, da higiene, da cirurgia e construgao acele- rada’ de hospitais contribuiram para combater doengas que até entao ceifavam as populagdes menos favorecidas. O progresso industrial deu também sua ajuda ao cerscimento populacional, pois a multiplicacao dos meios de subsisténcia aju- dou a desenvolver o nivel do consumo em rela- go a0 passado préximo. A introdugdo de novas culturas € dissemina- Go de outras, como o nabo ¢ a batata, além de fornecerem uma alimentacgao mais substancio- sa a0 gado € aos homens, Ievou a um aproveita- mento maior das areas a’serem lavradas. Houve ampliaggo da superficie cultivada, pantanos ¢ Aguas estagnadas foram drenados e antigas pas- tagens comunais transformadas em solo ardvel. O aumento do capital que se verifica na época também é acompanhado de um acréscimo na capacidade de poupanca em largas camadas da sociedade, poupanga essa aplicada no mercado de capital que experimenta grande impulso nessas condigdes. A diminuigéo gradativa da taxa de juros em meados do século XVIII constituiu um sério fator que acentuou o desenvolvimento eco- némico, pois a livre iniciativa era estimulada por encontrar capital relativamente barato, As relagdes comerciais com os paises ultra- marinos, a intensificagio das trocas, a demanda cada vez maior de produtos, as necessidades ou os gostos especiais dos novos clientes, a luta con- tra os concorrentes haviam operado uma con- centracdo comercial na indistria*. Tal situacdo faria com que a indistria doméstica, principal- mente a industria da 1a, onde trabalhavam nu- merosos proprietérios das méquinas que utiliza- vam, sofresse a pressio das novas necessidades do mercado. Até agora o artesio comprava a matéria-prima, trabalhava-a em sua méquina, para depois vendé-la pessoalmente, como produto, no mercado. Normalmente era ele um camponés que 4. Movanien, R. ¢ E Lassovete, C. 0 Séealo XTIT. Sio Paulo, Difusdo Eutopdia do Livro, 1968, 0. 138 26 também exercia alguma atividade agricola ao par do seu trabalho artesanal onde produzia teci- dos, armas e outros artigos que entravam no circuito do mercado nacional e eram também ex- portados para as coldnias no estrangeiro. Mas, quando os comerciantes se dedicam a indéstria, altera-se_o sistema de produgdo; eles. mesmos passam a fornecer a matéri papel de distribuidor do produto no mercado, li- dam diretamente com o comprador e o fornece- dor, sendo que o passo final e decisivo sera a transformacao do arteséo independente em as- salariado com a apropriacdo das mAquinas pelo comerciante, quer pelo fato de o artesdo nao | poder cumprir com os compromissos financeiros assumidos com 0 comerciante-empresdrio, quer por causa de adversidades ligadas a atividade agr- cola do produtor artifice. Nesse perfodo, o da manufatura, encontramos as primeiros escalas na divisio do trabalho que se aprofundarao na in- diistria moderna. A divisdo de trabalho esté liga- da introdugdo da técnica do fabricante em série, que encontra um modelo precursor na in- | distria da la’ e na de alfinetes onde, segundo Adam Smith, em 1776, os operdrios, executando uma, duas ou trés das dezoito operagées em que se dividia o fabrico, conseguiam produzir & mio, 48 000 alfinetes por um modo generalizado, caracterizava-se pelo fa- -prima e a exercer 0 ia = Se a manufatura, de to de a produgao se fazer em pequenas oficinas | individuais que trabalhavam para um comercian- te, paralelamente encontramos grandes oficinas onde se realiza o acabamento final do produto, oficinas que ja pressupdem as fébricas da nova sociedade industrial. -A Revolugao Industrial também se realizou gracas a empresérios ambiciosos que souberam empregar a imaginacgio a fim de combinar os fatores produtivos em funcio do atendimento dos mercados, ampliando-os em beneficio pro- prio. Tal espirito empreendedor era acompanha- do de uma nova mentalidade e de novos senti- mentos cuja biissola econémica foi a livre em- 5. Idem, Midem, 9. 137, esa. A regulamentacio da inddstria e, a0 mes- mo tempo, sua limitacio por meio de corpora- es, leis municipais ¢ pelo Estado, cede lugar livre-iniciativa, e foi nas regides menos submeti- das & regulamentacao e onde néo se faziam sentir ‘as organizacdes corporativas, tais como Manches- ter e Birmingham na Inglaterra, que se deu um rapido desenvolvimento industrial. espirito inventivo, devide aos fatores con- cretos mencionados anteriormente, levou a uma verdadeira ecloso de inventos, que vieram so- jucionar problemas ligados diretamente & técnica de produgao. A indiistria, a tecnologia e a ciéncia estavam indiscutivelmente atendendo as mesmas necessidades econémicas e sociais, ainda que m tas vezes o sistema de patentes, destinado a esti- mular 0 inventor, apresentasse 0 paradoxo de di- ficultar o caminho a novas criagdes pelo fato de confirmar privilégios durante espago de tempo excessivo. Contra esses abusos criaram-se asso- ciagdes que ndo s6 visavam a contestar a legali- dade dos direitos exigidos pelos patenteadores, mas procuravam convencer os inventores a colo- carem seus inventos & disposi¢ao de todos, como no caso da Sociedade Promotora das Artes, Ma- nufaturas ¢ Comércio, fundada em 1754, que também os premiava. O Parlamento, por seu la- do, concedeu igualmente recompensas Aqueles que abrissem mio dos produtos de seu engenho em favor da sociedade e em beneficio direto dela, Desta forma podemos encarar a Revolugio In- dustrial como ligada a diviso de trabalho, sendo em parte causa e em parte efeito dessa divisio, que significava uma ampliagéo do principio da especializagao. Devemos ainda considerat que o surto de inveng6es durante o periodo em questo, especial- mente na Inglaterra, € fruto de um processo de actimulo de conhecimentos teéricos, a partir de Francis Bacon, que contribuiu para o estabeleci- mento da cigncia experimental, com a contribui- gio de uma pléiade de filésofos e cientistas, tais como Robert Boyle e Isaac Newton, que assen- taram os fundamentos do método cientifico mo- demo. Nao parece ser algo firmado que os inventores fossem homens sempre destituidos de saber tedrico, como muitos autores afirmam com insisténcia, pois ninguém ignora que fisicos ¢ quimicos, assim como cientistas de vdrias dreas, estavam vinculados por diferentes lacos de ami- zade a muitas das personalidades da indistria, 0 que envolve de certo modo uma via de comuni- cacao entre a ciéncia do pesquisador de gabinete ou laboratério e a experimentagdo na oficina de trabalho, para a solugo dos problemas surgidos na produgio. ‘Uma longa série de inventos ocorrem em pri- meiro plano na indistria do algodao, livre dos entraves corporativos e em rapido desenvolvimen- to. Em 1733 John Kay introduziu no tear im- portante melhoria, a lancadeira. Ligada a um sistema de duas rodas era atirada de uma ourela a outra por meio de martelos, atravessando com a trama toda a urdideira, Tal inovagio, a lan- cadeira volante, acarretava grande economia de trabalho e permitia a um tinico tecelao confeccio~ nar panos de uma Jargura que antes exigia o tra~ balho de dois homens. J4 em 1760, apés serem vencidas as dificuldades da inovacao, a lancadeira estava difundida na indistria téxtil. Em 1738 Le- wis Paul introduziu o cilindro de torgdo que de- sempenhou enorme papel na indistria da fiaco. A partir desse marco, os aperfeicoamentos técnicos na indistria téxtil se sucederam num encadeamento continuo, tais como a fiagdo com mais de um fuso ou spinning-jenny, em 1764, de James Hargreaves; a water-frame, a maquina movida a 4gua, em 1767, de Thomas Highs; o engenho mecAnico de fiagao, um desenvolvimento da méquina automatica de Lewis Paul, foi a con- tribuigao decisiva de Richard Arkwright, em 1768, para o avango da técnica téxtil; a mule-jenny, em 1774, de Samuel Compton, que permitiu a urdidura ‘de fios finos e resistentes; em 1784, Cartwright constréio tear inteiramente mecanico €, no mesmo ano, Delaroche, na Franca, a mé- quina de aparar o tecido, Na metalurgia, a fun- digdo do coque, em 1735, por Darby, resolve 0 problema da escassez do carvao vegetal, devido 4 constante ampliagio dos pastos e a conse- OS FUNDAMENTOS HISTORICOS DO ROMANTISMO 27 giiente derrubada das florestas. Em 1740, Ben- jamin Huntsman inova a técnica do aco, inven- tando a fundicéo por cadinho que abre caminho & producdo industrial ligada a metalurgia. A pudelagem e a laminacdo foram patenteados por Henry Cort, cerca de 1784, libertando a Inglater- ra da necessidade de importar grandes quantida- des de carvao vegetal do Béltico e deslocando as forjas para as zonas carvoeiras, onde o preparo de ferro fundido se podia fazer ao lado dos altos-for- nos produtores da gusa. A producao de ferro au- mentou extraordinariamente e o metal substituiu a madeira e a pedra em muitos dos produtos que habitualmente eram usados. A méquina a vapor de Newcomen, inventada no século XVI, foi aper- feicoada por James Watt em 1765 e utilizada em varios tipos de indiistria, nas fabricas de cerveja, nas destilarias, nas salinas, nos reservatérios de Agua, e outras atividades. A engenharia civil desenvolve-se como uma nova indistria impulsionada pelas necessidades comerciais que levam A melhoria dos meios de comunicagao. Construiram-se novas estradas, pontes, canais, bem como se aplicaram novas técnicas no travejamento das minas de carvao além de se aperfeigoar a sua exploragdo. O grave problema da infiltragdo de 4gua nas minas, amea- ¢a permanente a este setor industrial, foi sendo aos poucos solucionado pelo aperfeigoamento dos meios de bombeamento e extracao da 4gua. Outro invento cuja plenitude técnica seria atingida pos- teriormente, mas que teve seus primérdios nesse periodo, € ‘a locomotiva a vapor, que substitui tia 0 cavalo como tracdo. Houve alguns prece- dentes antes que George Stephenson construfsse © seu “Foguete”, a primeira locomotiva a' vapor empregada na tracdo por ferrovia. Este foi um dos maiores trunfos da Revolugio Industrial. Todos os setores das principais atividades do homem em sua luta econémica participaram, de certo modo, na Revolugdo Industrial, que no’ seu todo representou uma conjuntura onde as cres- centes disponibilidades de terra, m&o-de-obra e capital favoreciam a grande expansao industrial. A medida que os novos inventos se impoem e so- 28 lucionam os entraves técnicos da producio, de- sencadeia-se uma verdadeira caudal de aperfei- goamentos industriais, que procuram incrementar a produgao e baratear o custo da mercadoria, ampliando e estimulando o mercado de consumo. Um invento provoca outro, numa sucesso inin- terrupta, que leva uma indistria a auxiliar a outra, para a melhoria de todas. O fenémeno das concentragdes industriais também faz parte do proceso ligado 4 Revolugdo Industrial. Onde, até hd pouco, a dispersdo imperava, passava-se a concentrar certas indistrias em determinadas ica-se, ndo somente a concentracao mas a chamada concentragio verti- cal, de forma que certos capitalistas retinem em suas mos os mais variados ramos da atividade industrial, desde a possessio de minas até fun- igdes € outros ramos. Algumas vezes a concen- tragdo se dé em um Gnico ramo tendendo & mo- nopolizar certa producdo industrial. Toda essa transformacdo estava ligada ao grande comércio de importagio e exportagio, como no caso da Inglaterra, bergo e centro da Revolugao Indus- trial, que’ importava do estrangeiro madeira, fi- bras, seda, algodio, produtos de tinturaria e ou- tros como ché, café, tabaco, e exportava produ- tos manufaturados de 14, ferro, couro, para as regides pouco desenvolvidas, desde a Africa até as Indias Ocidentais. Tratava-se de um comércio por vezes triangular em que a Inglaterra trocava com a Africa quinquilharias e bugigangas por escravos, que, por sua vez, eram cambiados nas Indias Ocidentais por matéria-prima e artigos de luxo, © comércio intenso com as Indias Ociden- tais e 0 Béltico teve importincia capital na acumulago de grandes fortunas por determina das familias participantes dessas empresas. Mas a Revolucao Industrial nao se produziu sem marcar profundamente a vida social. Em meio @ grande expansio econémica, 20 sibito enriquecimento de uma minoria, da’ desabalada corrida dos inventos ¢ inovagdes no setor tecno- logic, e 2 crenga na prosperidade e progresso humanos, surgiram graves problemas de ordem social em relacdo as massas de trabalhadores que Da ere nT ac este processo mobilizava e proletarizava, junta- mente com suas familias, e que, no fundo, eram 2 base humana na qual se apoiava a profunda trensformagao sofrida pela sociedade européia daguele tempo. Muito j4 se escreveu sobre as dificeis condigées de trabalho que envolveram ‘a vida operdria durante a Revolugio Industrial. Os ganhos desses trabalhadores eram insuficien- tes ena maioria das vezes recebiam seus magros saKirios de uma forma irregular, através de in- termediérios duros, que viam unicamente a quan- tidede produzida, pois normalmente a paga era feita pelo niimero de pecas produzidas. A pre- cariedade das instalacdes industriais, a falta de seguranga, as péssimas condicdes higiénicas dos locais onde mulheres e criancas constitufam a mio-de-obra a0 lado de homens, respirando o ar contaminado das minas, das oficinas mal ins- taladas, tudo isso convertia o perfodo em um dos mais cruéis para a grande massa que sempre viveu do suor do rosto, Da escravidao na Anti guidade @ nova escravidao, poucas eram as d ferengas, mesmo se do Angulo jurfdico-legal o trabalhador agora nao fosse propriedade do em- pregador ou do industrial. Na realidade, a depen- déncia do operério sob 0 aspecto financeiro, muitas vezes, era tal que 0 peso das dividas o le- vava a ficar inteiramente ao dispor de seu pa- trdo. A falta de regulamentagdo quanto & jornada de trabalho, ao emprego de aprendizes e & limita- gio de idade tornava o labor nas fabricas em um castigo divino e um sofrimento sem fim, por mais, que se procurassem justificativas para tal fato. Os contratos de trabalho, em certas atividades, eram de longos anos, ainda que com 0 tempo co- megassem a ser restringidos, como no caso do servigo nas minas. Os saldrios passaram a depen- der do jogo da oferta e da procura, sujeitando-se as variagdes Co mercado de mao-de-obra, mas vale notar que uma boa parte subiu, o que se tra- duziu na melhoria do nivel de vida, ocasionando melhores condigdes de alimentagio e saide ¢, por conseqiiéncia, prolongando a duracéo da existéncia humana. Porém, muitos setores da ati- vidade industrial continuaram apresentando con- digdes de trabalho assaz precéria para a vida do trabalhador que consumia seus dias junto as maquinas. O desenvolvimento econémico-industrial des- crito anteriormente apresentaria as contradicoes que passaram a ser conhecidas, devido a certas freqiiéncias, como os fendmenos de superpro- ducdo, da livre-concorréncia descontrolada e, por outro lado, das tentativas de regulamentar a pro- duco, assim como controlar os pregos e 0 mer- cado. Do mesmo modo que se formavam clubes associagées de indistrias e de homens de negé- cios nos mais diversos niveis, também os traba- Ihadores (e isto desde a primeira metade do século XVIII) se associavam em organizacdes varias, tais como as de cardadores de 14, alfaia- tes, teceldes, fabricantes de prego, segundo um molde que em média se aproximava da antiga corporago ¢ do sindicato moderno. Tais asso- ciagdes visavam a varios objetivos ligados aos seus interesses de classe. Enquanto a dos industriais procurava ampliar sua influéncia junto ao poder governamental, a ponto de fundar na Inglaterra, uma Camara Geral da Inddstria em 1785, para combater a politica de admitir a participacio da Holanda no comércio externo e colonial inglés;, a dos trabalhadores, além de procurar regulamen- tar questées ligadas diretamente ao salério, assu- mia posicdes cada vez mais radicais, chegando a ongenizar greves, quebrar engenhos, maquinas ¢ casas, motivados pela fome e opressio. Tais asso- ciagGes tinham na maioria das vezes cardter pro- visério e se destaziam logo que eram_atendidas em suas reivindicagoes imediatas. Somente no fim do século € que a organizacao sindical apa- receré como capaz de impor uma politica traba- Ihista de longo alcance. Por isso mesmo seré combatida pela legislacio vigente na época em que, segundo a lei de 1799, qualquer pessoa que se unisse a outra para tentar obter um aumento de salério ow redugio de horas de trabalho, se- ria levada a jufzo. Este perfodo de individualismo e de laisser-faire, que eliminou a interferéncia do poder do Estado nos assuntos econdmicos nada OS FUNDAMENTOS HISTORICOS DO ROMANTISMO 29 mais deixando-Ihe sendo 0 papel de preservador da ordem em seu favor, voltar-se-d na Franca diretamente contra a estrutura estatal, eliminando 60 tiltimos entraves politicos do processo que ha- via se iniciado com a Revolucao Industrial. Ill. © Periodo Revolucionario: A Revolugéo Francesa e as Revolucées Européias. Podemos falar na existéncia de um perfodo revolucionério que se inicia a partir da Revolu- gio Americana e se estende até a Revolucdo Francesa. A colénia inglesa na América, bem su- cedida em seu desenvolvimento econémico, rei- vindicou a independéncia em relacao & Inglater- ra, apés uma fase de luta intensa contra 0 do- minio briténico. A Revolucdo Americana foi provocada pela imposigdo inglesa proibindo a colénia de além- -mar de comerciar com qualquer outro pafs que no fosse a metrépole, ou seja, a imposi¢ao de um comércio unilateral e exclusivo que limiteva a colonia e beneficiava a metrépole. Uma politica de impostos opressiva criou o ressentimento entre populacao da colénia e fortificou o sentimento de revolta. A sucessio de protestos contra a Stamp Act de 1765 e contra os impostos do cha, papel, vidro, chumbo, apoiavam-se nas as~ sembléias coloniais que, por sua vez, se basea~ vam na sustentagdo popular. O boicote e a agita- cdo aumentaram a tensdo entre os colonos ame- icanos e os soldados ingleses, a ponto de se da- rem os primeiros recontros violentos em marco de 1770, na conhecida “matanca” de Boston. Em prosseguimento a esse conflito, que se travava entre a Companhia das Indias e as co Iénias americanas, 0 centro da disputa se desloca para o monopélio do ch4. Além das leis coer- citivas contra os interesses dos colonos, a Quebec Act de 1774, aumentou mais ainda ‘o descon- tentamento geral, originando o Congresso antibri tanico, organizado pelas colénias em 1774. Logo 2 guerra frontal eclodiria contra os ingleses, revelando pela primeira vez, nas batalhas de 30 Concord e de Lexington, que um exército civil poderia se sobrepor a um exército militar, der- rotando-o. Jé em 1775, apés 0 segundo Con- gresso “Continental”, os patriotas americanos, sob © comando de George Washington, organizaram as milicias a fim de lutar contra as forgas da me- trépole. Sua plataforma politica era anunciada por Thomas Paine num folheto onde pregava a independéncia das colénias e, mais do que isso, a sua transformaco em repiblica. Em 4 de julho de 1776, apés o Congresso que constituira a Federagio Americana, declarava-se a indepen déncia. A Revolugio Americana antecedia assim © movimento revoluciondrio europeu ¢ fortifica- ria os sentimentos de independéncia entre aque- les que observavam os acontecimentos ¢ cons- tatavam a sua vit6ria. Voluntarios vindos da Eu- ropa, tais como o polonés Kosciusko e o fran- cés La Fayette, mostravam que os acontecimen- tos no solo americano eram vivamente acompa- nhados pela Europa, pois a independéncia ame- ricana alteraria 0 poderio colonial inglés. A Franca nao deixou de enviar forgas para lutar ao lado dos americanos, até que a vitéria militar se decidiu favoravelmente aos revolucionérios. Em 1783, com o tratado franco-inglés de Versa- Thes, a propria Inglaterra reconheceria a inde- pendéncia dos Estados Unidos, que agora passa- riam a inspirar outros povos que tinham as mes- mas aspiracdes politicas. Se a revolucio ou a independéncia americana foi haurida nos esc tos dos filésofos europeus desde Locke, Mon- tesquieu e Rousseau, cujas teorias politicas foram adaptadas as aspiragdes locais das colénias, por ‘outro lado, as constituigdes e as declaragdes de de direitos por ela elaborados serviram de mode- lo a serem imitados pelos europeus em geral ¢ em particular pelos franceses durante a sua revolu- So. (© movimerto de idéias que antecede a Re- volugéo Francesa conhecido sob 0 nome genérico de “Filosofia das Luzes” serviu de fundo ideol6gi- co para as teorias revoluciondrias. Observa-se que Lock, em seu tratado sobre 0 governo civil, em 1689, isto é, cem anos antes da Revolucio | | | | | | 0 Vogio de Terceira Classe, por Daumier. Rainha Victoria e 0 Duque de Wellington passando a ‘guarda em revista, c. 1839, por Sir Edwin Landseer. Francesa, afirmava que todo governo deve se fun- damentar em um contrato entre soberano e go- vernados e que a condicio de um governo bem sucedido seria a separacdo dos poderes legislati- ‘vo, executivo ¢ judicidrio. Cerca de sessenta anos mais tarde, Montesquieu, no Espirito das Leis, estudaria a’ propria origem e fundamento do po- der e a influéncia exercida por fatores exteriores ‘na organizagao da socieéade humana. Voltaire, © grande demolidor de verdades convencionadas do passado, mesmo ndo negando a monarquia, apoiava-a sobre o povo e a orientava pelos fi lésofos. Atacando os privilégios da aristocracia e condenando os clérigos, Voltaire lembra que todos sto iguais perante a monarquia e segundo o direito natural. Em Rousseau se manifestam as ias democriticas novamente fundamentadas no direito natural e expressas pela teoria de que 0 poder legislativo deveria ser exercido por todos 0s cidadios e o poder executivo seria subordina- do a ele. © Estado ideal para Rousseau é a pe- quena Repiiblica do tipo existente na Antiguida- de grega tal qual a de Atenas. Essa concepgao re- percutiria além das intencdes de seu autor € pos- teriormente sofreria acréscimos significativos. Os escritos de Rousseau — o Discurso sobre as Artes e Ciéncias (1755), 0 Discurso sobre a De- sigualdade (1755) € 0 Contrato Social (1762) — constituem a literatura politica de onde todas as tendéncias modernas encontrario uma filoso- fia para a organizacao do Estado e da sociedade. Foi a Enciclopédia, publicada a partir de 175! e traduzida em muitas linguas, que reuniu em seus verbetes a grande elaboragao intelectual do Tiuminismo. Na cfervescéncia politica ¢ cultural desse periodo, surgiram uma infinidade de socie- dades para divulgar as novas idéias dos Enciclope- distas e seus discipulos. Antes que derrubassem a Bastilha, simbolo do Ancien Régime, minaram os seus alicerces com as novas idéias. ‘A revolugio de 1789 pode ser considerada como parte da grande onda revoluciondria que atingiu todo o Ocidente europen na luta contra 0 Antigo Regime. E claro que causas particulares agiram favoravelmente para o sucesso da Revo- 32 lugdo Francesa, que atirou burgueses e campe. sinos contra a nobreza monopolizadora dos car. gos e das grandes propriedades de terras. Un | grave crise econdmica, que vinha se alastrando | or muitos anos sem que se encontrasse solugio | f adequada, comprometia seriamente a estabilidade | do regime, Além do mais, a multiplicidade dos #1 impostos constituia um verdadeiro peso para as camadas mais pobres da populagio, Uma ten- tativa de Turgot, inspetor geral, de modificar a politica financeira de impostos foi criticada pe- los nobres e pelo alto clero, devendo ser abando- | nada. Com o ingresso da Franca na guerra ame- ricana 0 deficit acumulado dos anos anteriores se avoluma cada vez mtis, e 0 ministro das Fi nangas, Necker, foi destituldo quando apresen- | tou em 1781 um compte rendu au roi, onde se revelavam os pesados tributos que o rei outorga- va A nobreza cortesa. Ao lado da crise financei- | ra, a crise econdmica era também profunda, © era motivada, em parte, por fatores indepen- dentes da vontade humana. Mas colheitas que se acumularam durante alguns anos, a grande seca” de de 1785, que dizimou parte dos rebanhos e | do gado, arruinou o campesinato francés tio” pressionado pelos imposes. De fato, nota-se um Gecréscimo de nascimentos em contraste com 0 aumento da mortalidade, & medida que se pas- sa do esplendor do reinado de Luis XV a deca- déncia do reinado de Luis XVI. Tanto no co- mércio como na indistria, a Franga se achava numa posicao inferior ¢ de atraso em relacéo a Inglaterra e uma politica econémica desastro- sa de exportagéo ajudou mais a outros paises do que & prépria Franca. Desde 1783, quando Ca. | Tonne & nomeado inspetor geral de Finangas, a | inguietagao em torno dos problemas financeiros aumenta consideravelmente, em grande parte de- Vido aos projetos de reforma do novo ministro. ‘A Assembléia dos Notéveis, reunidos em 22 de fevereiro de 1787, que deveria aprovar os pro- jetos de reforma, ‘nao 0s accitou Calonne foi substitufdo pelo ‘arcebispo de Toulouse, Lomé- nie de Brienne, para esta fungo. Diante da opo- sigdo reiterada da Assembléia frente ao novo | ministro, Luis XVI acabou por dissolver a As- sembléia, encerrando com este ato a primeira manifestagdo da nobreza contra a monarquia. Isto serviria de predmbulo ao futuro movimento politico da revolugao. Quando o ministro Brienne recorreu a0 Parlamento de Paris para aprovar os seus projetos de reforma, viu-se rechacado no mais importante de todos, que era o da subven- gio territorial, e mais ainda, o Parlamento exi- giu a convocacio dos Estados Gerais. Mediante tal pressio, € em conseqiiéncia da agitacdo aris- tocrética que estava se formando, o governo foi forcado a ceder. A monarquia, a essa altura, comegara a perder o apoio da aristocracia, e os parlamentares para obter o apoio da burguesia falavam em nome dos “direitos da nagdo”. Nao é de se estranhar que se tenha formado um par- tido de luta contra 0 governo com o nome de “na- cional” ou “patriota”, liderado pelos nobres Ii berais, por alguns magistrados, periodistas, “filo- s6fos” e advogados. Um comité de coordenacio centralizava a ago desse “partido” e uma de suas exigéncias basicas era a convocacéo dos Estados Gerais, ainda que divergisse da aristocra- quanto a0 nimero de representantes do Ter- ceiro Estado e & exigéncia do “voto por cabeca” e de uma “constituicZo". A situagdo politica torna- vya-se cada vez mais delicada, quando um decreto anunciou que os Estados Gerais deveriam ser con- vocados a primeiro de maio de 1789. Desde os primérdios de 1789 comecaram os preparativos para as eleicdes dos Estados Gerais, dando opor- tunidade & burguesia de reivindicar livremente a supressdo dos privilégios, a elaboragao de uma constituicao e também a introducao do liberalis- mo econdmico, Em suma, a Revolugéo Francesa principia como uma revolta dos corpos consti- _ tuidos pela oposigdo aristocratica ¢ passa em © seguida a ser substitufda por uma revolta da bur- guesia, que recebe 0 apoio macico do campe- sinato. Este movimento no seu todo resultaré na queda do velho regime ®, 6. Goveenor, J. Les Reswlnciones (770-1700, Barce‘ons, [oers sh. 1965" pat Com a formacdo da Assembléia Nacional, o © Terceiro Estado estava preparado para uma i vestida politica que procurava representar os inte- esses do povo francés, comecando por impor os seus projetos ao rei, a ponto de Luis XVI perm tir aos nobres que se juntassem aos “comuns”, na Assembléia. A interpretacio desse movimento politico por parte da burguesia e do campesinato, a certa altura, foi de temor e desconfianga em rela~ a0 a um possivel complot da aristocracia contra 6s interesses do povo. Em principios de julho de 1789, tanto 0 campo como as cidades francesas, € em especial Paris, passaram a hostilizar aberta~ ‘mente a aristocracia. Com a destituigo de Necker, a rebeliéo explodiu com violencia, e, em 14 de julho, 0 povo de Paris, apés ter assaltado os depé- sitos de armas, se dirigiu 4 Bastilha, simbolo do poder real. A revolta alastrou-se por toda a Fran- a em pouco tempo e 0 povo, desenfreado, pés-se contra os poderes municipais. O campesinato em faria, encontrando resisténcia, queimava os caste- los feudais © as mansdes senhoriais, querendo abolir pela violéncia o regime feudal. A violencia gerou 0 terror e entre os préprios insurgentes im- perava o panico, la grande peur. © medo ao ter- ror campesino impés 8 Assembléia Nacional uma alteragéo em sua agao politica, pois se tornou urgente a necessidade de terminar com a insurrei- sao do campo antes que ela atingisse a proprie- dade burguesa. A forma de fazé-lo era canalizar as reivindicagées dos camponeses para os do Terceiro Estado. Por isso. a Assembléia Na- cional decretou a abolicZo do regime de privilé- gios, a igualdade perante os impostos, a supressio dos dizimos, resolucdes que repercutiram por todo © pais e arrefeceram o impeto revolucionétio do campo. A Assembléia Nacional, através de seus cons- tituintes, iniciou em seguida a elaboracao da De- claragao dos Direitos do Homem e do Cidadao, cujo teor acentuadamente universalista ultrapas- sou, em significado, o documento elaborado pelos revoluciondrios americanos. A énfase dada a liberdade, fundamentada na afirmacéo de que “os homens nascem livres e devem viver livres”, OS FUNDAMENTOS HISTORICOS DO ROMANTISMO 33 6 0 que se destaca no documento. A liberdade in- dividual é incorporada ao individualismo da socie- dade burguesa, que nascia politicamente com a Revolugao. A liberdade € formulada juridica- mente como um pressuposto basico na nova so- ciedade e se expressa sob a forma de liberdade de opiniéo e liberdade de imprensa. Outro prin- cipio que a Declaracao enfatiza é a igualdade, pois “os homens nascem iguais”. Perante a ju: tiga, perante a lei, todos os cidadaos séo iguais. Também perante a responsabilidade do fisco a igualdade é consagrada. A Declaragéo dos Di- reitos do Homem se preocupa com a proprie- dade privada como um dos direitos naturais ¢ 1a que @ propriedade é inviolavel e sagra- da, base do novo regime politico. A Declaracéo esmiugard em varios itens ¢ artigos outros aspectos ligados & nova organizacao politico-social, que a bem-sucedida revolugio do Terceiro Estado che- gou a elaborar. Mesmo o direito a rebelido ou de resisténcia & opressdo entra como principio nesse documento que separa o antigo regime do novo. ‘A sociedade do Antigo Regime estava funda- mentada na hierarquia € no privilégio de classes. Ainda que a Declaracdo dos Direitos do Homem proclamasse a igualdade perante a lei, as discus- ses em torno da concessio de igualdade aos judeus, bem como a supressio das discriminacdes entre brancos e negros nas colénias francesas, evi- denciavam quéo fragil era o principio perante a realidade social. Contudo, a igualdade de direitos permitiu maior mobilidade social, fazendo com que 0 monopélio tradicional dos cargos piblicos, que se encontrava em mos da nobreza, fosse deslocado para a burguesia, pois era, de fato, a nica preparada culturalmente para exercé-los. No exército, também ocorreram certas modificagées, que permitiram uma limitada ascensio de cle- mentos oriundos das camadas mais baixas da po- pulacdo. Mas a grande transformagio deu-se mesmo na legislagéo, que conseguiu abolir os entraves caracteristicos do regime feudal ?. 7. Gookenor, J. Op. cit pp. 48. 34 A Revolugio Francesa serviu de modelo ¢ comunicou a chama revolucionéria a todo con- tinente europeu. Os clubes “jacobinos” forma. ram-se na Inglaterra, nos Paises Baixos, na Suiga, espalhando-se 0 processo revolucionério pela Eu- ropa central, isto é Alemanha, Austria até a Hun- gria, Polonia e Suécia. Na Europa meridional, em / especial na Itélia, ardor revolucionério mani. festou-se também na formagdo dos clubes “jaco- || binos”, que foram pesadamente perseguidos pelas | autoridades oficiais. : ‘Ao movimento revolucionério seguiu-se 0 mo- / vimento contra-revolucionério, que atuou na esfera #| ideol6gica-doutrinéria de um modo bastante fré gil e mais eficientemente no campo da ago pré- tica, reprimindo com violéncia os clubes de agi- tadores. Um dos poucos trabalhos significativos no campo tedrico foram as Reflexdes sobre a Re- volucéo da Franca, escrito pelo inglés Burke, que que teve como efeito principal isolar a burguesia inglesa das idéias revolucionérias. Além da obra importante de Burke, escreveram em apoio as idéias contra-revolucionarias 0 suico Mallet du | Pan ¢ José de Maistre. Em esséncia, tais escritos servem de cendrio para uma politica radical con- tra o elemento revolucionério, a ponto de mo- narcas ilustrados, que se destacavam por um go- verno modemo,, passarem a abandonar a linha de toleréncia e a atitude racionalista em face das idéias ligadas & formacdo de repdblicas demecra- ticas e de regimes liberais. A coligacao dos paises anti-revolucionérios levou a Franga & guerra 2 a0 terror interno como reacdo contra o perigo que ameacava a Revolugio. Por fim, apés enfrentar os exércitos coligados, a Franca sairia vitoriosa, mas nos demais paises, os que se preparavam pa- ra derrubar o Antigo Regime, nao alcangaram 0 mesmo éxito e, pior ainda, teriam suas pétrias dividas entre ‘0s aliados, como no caso da Poldnia, que apés a batalha de Valmy em fins de 1792 foi partilhada entre a Prissia e a Russie. ase IV. © Despertar das Idéias Sociais A filosofia politica do Terceiro Estado nao satisfez a todos os espiritos da época em que a Revolugdo Francesa causava o maior impacto na vida social européia, O pensamento social, a partir desse tempo, criticou os sistemas sociais do passado como fundamentados na violéncia e no egofsmo que impediam o livre desenvolvimento da natureza privilegiada do ser humano, épice da criacdo divina. O socialismo passou a fazer parte de todas as doutrinas politicas que procuravam criar condigées que permitissem o surgimento de uma sociedade harmoniosa e justa, onde o homem poderia dar expresso ao seu ser ¢ a criatividade, livre de entraves econémicos e sociais. A Revolucio Francesa, ainda que abolisse os direitos ¢ as instituigdes feudais, néo aboliu a desigualdade entre os homens. A liberdade sem a igualdade foi considerada insatisfatoria, pro- pondo-se, jé naquela ocasido, que a propriedade fosse limitada perante a lei ¢ se reduzisse a dis- tancia abissal entre pobres e ricos, ou entre os possuidores e “os que nada tinham’a perder”, A politica revolucionéria formulou a teoria da to- mada do poder e a tdtica de manutencdo no poder. A resisténcia dos privilegiados e da aristocracia provava que toda transformacdo social era im- possivel sem coagio ou opressio social através do uso da violéncia: A idéia de que a revolucdo exigia a formacio de um governo revolucionério ou de uma ditadura revoluciondria tinha como fundamento a experiéncia francesa © os dias do Terror que visava a combater a reagdo contra-re- voluciondria. A igualdade social e o regime de propriedade foram alvo de novas teorizagdes por parte dos pensadores franceses e ingleses. Esses siltimos seguiam principios filos6ficos que vinham desde Locke e se estendiam através de Adam Smith, penetrando no terreno mais sdlido da economia, © capital, na interpretacdo dos socialistas, era © fruto do trabalho dos operdrios, apés terem eles recebido 0 seu quinhio em forma de salé- tio; portanto, eram os trabalhadores os criadores da riqueza social. Assim sendo, era injusto que no tivessem o direito ao valor integral do pro- duto de seu trabalho e ficassem limitados apenas uma parte do valor que permite apenas a sua subsisténcia. Os observadores da vida social tam- bém perceberam 0 paradoxo criado pela riqueza, de um lado, e a extrema miséria, do outro, de modo que, em meio da abundancia, grassava a fome provocada muitas vezes por crises decorren- tes de um regime de producdo desordenado e andrquico, conceituado pelo liberalismo econé- ico. Os pensadores mais extremados, como Blan- gui, Babeuf, Buonarrotti, partiram’ das posiges jacobinas radicais para formularem uma doutri- na social esteada na igualdade absoluta. Esses pensadores ndo tratam somente da revoluco po- litica mas também da revolucao social e acredi- tam na transformagdo do homem considerado como um animal social capaz de evoluir cada vvez mais, se 0 meio o favorecer, Na afirmacao de Blanqui, de que a moralidade € o fundamento da sociedade, encontra-se uma crenga otimista quan- to A natureza humana, bem como fé na ciéncia e no valor da educacdo. Mas esse progressismo de Blanqui néo o impede, por outro lado, de se mostrar intolerante, chauvinista e anti-semita, atributos que passarao a ser tipicos da burguesi francesa no fim do século XIX, O jargio revolucionério que antecede o sur- gimento do marxismo, posteriormente, aparece nos escritos daqueles pensadores cujo “socialis- mo” transparece em concepcdes confusas € muito vagas, ainda que um Blanqui escreva ser ‘8 emancipagio dos trabalhadores, o fim do regime de ex- ploragio. .. 0 advento de uma nova ordem social destina- da a libertar os trabalhadores da tirania do capitalismo aquilo que a repiblica deve realizar 8 Buchez, em 1833, na Introduction a la Science de Histoire, considera que é a sociedade dividida em classes, uma das quais possui os instru- mentos de trabalho, terra, fébricas, casas, capi- tais, nada possuindo a outra, “que trabalha para a primeira” 8, $e Tovenarn, J. Historin de tas deat Poti Ed, Teenon. 1970, p. 442. 9 Taem, idem, pe AAS. Madi, OS FUNDAMENTOS HISTORICOS DO ROMANTISMO 35 © romantismo politico manifesta-se muitas vezes com tendéncias sociais contraditérias, sendo, portanto, impossivel determinar-se qual a ligagao Gireta do socialismo da época com todas as dire~ goes que o Romantismo tomou em termos po- liticos. Podemos até diferenciar entre 0 roman- tismo politico alemao, nitidamente conservador, € © italiano, em sua maioria liberal, o inglés apre- sentando as duas tendéncias em varios de seus representantes, como poderiamos exemplificar em Byron e Coleridge. Na Franca, vatias foram as fases do roman- tismo politico, ‘nao se encontrando nenhuma finha uniforme que permita fazer uma caracterizagio precisa, Se, de um lado, o saudosismo sentimen- tal para com a antiga Franca impera nos primei- ros roménticos, j4 em Chateaubriand e Lamarti- ne se visualiza uma concepcao inteiramente mo- nérquica, Na Revolugao de 1830 contra a monar- quia dos Bourbons, os revoluciondrios parecem a0 mesmo tempo querer derrubar 0 romantismo difundido nos meios intelectuais franceses. Mais tarde, com Victor Hugo, que se identifica com as idéias de progresso, fraternidade e democracia do povo, deparamos com uma nova tendéncia do romantismo politico, Certos valores sobressaem-se nesse romantis- mo politico, valores esses que o definem melhor e © qualificam historicamente como pertencente a0 século XIX, pois ele se alimenta das evocagdes da Revolugio Francesa e do Império que a sucede. © heroismo, o sacrificio, o sangue derramado vinculam-se a essa evocacdo do pasado préxi- mo.,No 4mago ocorte a etema idealizacéo do passado representado pelos grandes acontecimen- tos histéricos. O Romantismo, em sua expresso historicista, através de Walter Scott, Lamartine, Thierry, Guizot, Michelet, sera, sob esse aspecto, imensamente rico e criador. A ‘idealizagio ocorre também em relagéo a politica que, desde Ma- quiavel, estava ligada as manifestagoes _m: “feias” da alma humana, assentando-se na habili- dade da manipulacao pessoal, secreta e enganado- ra. Agora, a politica é arejada pela participacao piblica do acontecimento € pelo apelo verbal 36 participagio popular. Chegou a vez do vetbo, do # convencimento, do entusiasmo, todos eles confi. | gurados pela literatura politica tipica do Roman. | tismo. A literatura hist6rica € parte da literatura © politica. As grandes obras, como a Histoire de la Révolution Francaise de Thiers, escrita entre 1823 e 1827, a Histoire des Girondins de Lamar- tine, escrita durante os anos de 1848-1849, ov ainda a Histoire de la Révolution de Michelet, em 1847, foram elaboradas com conceitos impregna- dos de romantismo politico, procurando, ao mes- mo tempo, extrair do passado uma orientagdo para © futuro da sociedade humana. A Hist6ria oferece 0s argumentos para a luta politica, comprovando as concepcdes pessoais dos historiadores @ tal in- tengao é expressa: por Thierry no prefacio ao Dix Ans D'études Historiques, quando escreve que em 1817, preocupado pelo vivo desejo de contribuir para o triunfo das idéias constitucionais me propus a procurar nos livros de Historia provas ¢ argumentos fem apoio as minhas erenzas politicas ". ‘A imaginagao do historiador ¢ sua participa. ao politica pessoal nos acontecimentos da época, bem como suas convicgdes intelectuais sao ele- mentos que interferem na ciéncia histérica desses homens. E inegével, forém, que a ciéncia histé- rica da época se vincule ao romantismo politico € aos sentimentos mais profundos sobre um pe- riodo considerado de transigio, paralelamente do- minando o entusiasmo para com o futuro e a nostalgia para com o pasado. ‘A “questéo social” encontra lugar na histo- riografia romantica e, novamente de um modo proprio, se manifesta como piedade para com os humildes, as classes nao privilegiadas ou, ainda, para com a grande massa do povo. As obras de Lamennais, L’Essai Sur L’Indifference en Ma- tidre de Religion e Livre du Peuple, foram escritos com este espirito, tendente a um socialismo senti- mental de uma personalidade roméntica. Nele se mesclam e acabam se identificando ética religio- sa com ética social, onde “o que o povo quer, 10. Idem, ibidem, 9. 400. mesmo o quer”, sendo a causa do po- Pevima causa. santa, ‘a causa de ‘Deus, Mu tos 0 verdo como 0 precursor da democra- cia crista. Buchez (1796-1865), que escreveu uma significativa Histoire Parlementaire de la (Revolution Francaise, entre 1834-1838, influen- tiado pelas doutrinas de Saint-Simon, procura- 14 demonstrar que os principios do Revolu- ao Francesa nfio se acham em contradi¢o com (5 principios cristios, mas que decorrem deles. Para Buchez, a civilizacdo crista culmina na Re- volugio Francesa e a civilizagdo moderna se inspira no Evangelho. Entre as idéias socializan- tes que Buchez desenvolve, j4 nos deparamos com a afirmacao teérica da associacao operéria e do cooperativismo de produgao. Sua influéncia foi importante nos meios operérios e constata-se certa relacdo entre suas idéias, que formulam um socialismo cristo, e as de Pierre Leroux (1797- -1871), que tenta uma sintese entre o Evange- Iho e a Revolugo em um vasto conjunto de obras dedicadas as questées sociais. No mesmo periodo temos o nome de Louis Blanc (1811-1882) cujas idéias deixaram a burguesia francesa preocupada, devido a énfase dada & “organizacao do trabalho”. Em um folheto publicado em 1840, sob o titulo L’Organisation du Travail, propde um plano de reforma com 0 objetivo de eliminar a concorrén- cia e melhorar o destino de todos, mediante a participacao livre dos individuos e a sua frater- nal associacdo #1, Blanc propaga a idéia de “ofici- nas sociais”, que dariam aos trabalhadores a possi- bilidade de comprar os instrumentos de producao, preconizando que estes deveriam pertencer-lhes, 3 medida que fossem educados e preparados para tanto. O Estado seria o vefculo natural e capaz de criar tais oficinas sociais, podendo-se ainda contar com a generosidade dos capitalistas, que estariam interessados no empreendimento como socios, de modo que todos acabariam se beneficiando igual- mente, e, dadas as vantagens reais que 0 fato traria, ao fim substituiria todo e qualquer outro tipo de organizacio econémica. O pensamento de T. Tdem, idem, p. 440 de Blanc, muitas vezes mal interpretado, teve aceitacéo bastante ampla no meio operério da €poca¢ calou fundo no romantismo popular, préprio do movimento revolucionario daquelas décadas. ‘Uma boa parte das idéias socialistas que fer- mentavam no século passado derivou das doutrinas ropagadas pelo aristocrata Conde de Saint-Simon (1760-1825), que havia participado na Guerra de Independéncia americana, a qual assistiu e deu um significado histérico-politico transcendental, crendo, mesmo, que levaria a transformagio 3 sociedade européia entdo vigente. O saint-simo- nismo chegou a formar uma verdadeira escola com a multiplicagao de adeptos que o seguiram e adaptaram as doutrinas originais do fundador. Um centro de irradiagao de suas doutrinas foi a Escola Politécnica de Paris, onde se destacaram nomes, como Enfantin, Michel Chevalier e ou- tros engenheiros, que seguiram o espirito positivis- ta das férteis idéias de Saint-Simon, O positivis- mo filoséfico saira do arsenal de idéias de Saint- -Simon através de seu famoso secretério Augusto Comte. Touchard diré com razio que o saint-si- monismo é um positivismo apaixonado, impregna- do de romantismo #, Saint-Simon ressalta, antes de tudo, o papel vital da producdo na existéncia da sociedade hu- mana, exemplificando o seu ponto de vista com a famosa parébola segundo a qual a perda de trés mil dos principais sdbios, artistas ¢ artesios da Franga, envolveria praticamente todas as clas- ses_produtoras, causando uma catéstrofe bem maior do que poderia causar a perda de trinta mil representantes mais eminentes do Estado, desde a familia real, ministros, altos funcionérios, alto clero, juizes e 0s proprietérios mais ricos do pais. Portanto, os produtores ou o que ele chama de classe industrial, passam a ser a classe mais impor- tante na sociedade. No pensamento saint-simonia: no encontramos a afirmagdo de que organizacdo econémica é primordial e mais relevante do que a Preocupagio politico-institucional, pondo mesmo 2. Idem, ibidem, p. 428 OS FUNDAMENTOS HISTORICOS DO ROMANTISMO 37 em diivida 0 liberalismo politico ¢ a democracia. Se cabe exigir do Estado uma ado em favor da mudanca social, ele deve empreendé-la organi- zando a economia e em particular o crédito. O go- verno ideal seria um governo tecnocratico que ti- vesse a capacidade de planejar os assuntos econd- micos. Mas seria simplificar em demasia se visse- mos em Saint-Simon apenas o formulador de uma reforma econémica, incapaz de extrair conclusées mais amplas sobre’ a vida social. Desde jé deve- mos declarar que 0 aristocrata francés antecede, em suas conclusdes, boa parte das premissas te6- ricas de Marx e seus seguidores mais préximos. Porém em Saint-Simon ¢ sua escola 0 progresso 6 representado como uma linha continua que deveré Jevar a uma nova sociedade da fartura onde reina- ré a harmonia universal. A realizagdo desses so- nhos ficaré a cargo de engenheiros, como Fer- dinand de Lesseps, que abriré o Canal de Suez; dos irmios Péreire, que organizario o crédito mobilidrio, de financistas, administradores, como Michel Chevalier, expoentes da economia capita- lista em franca expansio. A utopia social saint- -simoniana vai ao encontro do préptio desenvol- vimento do capitalismo e do bem-estar que ele po derd promover em toda a sociedade. Menos influente do que Saint-Simon, porém mais imaginativa, é a obra de Charles Fourier (1772-1837), homem de origem humitde e que passou a vida de pequeno comerciério sonhando com a reforma da sociedade humana. Critica radicalmente, em sua obra, a sociedade capitalista, propondo, porém, solugdes que fogem inteiramen- te as possibilidades de concretizacdo, Nas suas concepgées, o elemento utdpico se mescla 2 um romantismo etéreo, onde nao hé lugar para a in- distria nem para’ o comércio. Fourier 6 mai incisivo em relagdo ao comércio, que descreve como ums. atividade parasitéria e em contraste com a miséria do proletariado urbano — que cle viu de perto em Lyon — considera a agricultu- ra como a mais salutar das atividades humanas. Sua preocupagdo nfo é o aumento de producto mas o bem-estar dos consumidores e a organiza- 80 da sociedade ideal que denomina falanstério. © falanstério serviria de modelo para refor. mar a sociedade, tomando como base um néme- To limitado de 1'600 pessoas que assumiriam to- | das as fungdes do pequeno micleo social reve. zando-se uns aos outros. A arquitetura do falans- ‘tério obedece a critérios que devem favorecer a criagdo de um ambiente agradavel e atraente aos seus habitantes. O trabalho dever4 ser organiza- do de modo a evitar 0 cansago e a rotina desgas- tante, alternando-se o labor artesanal com a fama agricola. Também Fourier, que no preconiza exa- tamente um sistema comunista, quer associar os capitalistas & criagio dos falanstérios, sob a pro- messa de que as inversdes de capital resultario em bons lucros, Na composicao da sociedade ideal, isto é, do falanstério, haveria que levar em conta a diversidade da natureza humana e as paixdes que movem o homem em sua agdo a fim de combinar os caracteres em grupos harménicos e integrados. Orientadas com inteligéncia, as paixées favoreceriam a fraternidade e a colabo- ragGo entre os membros do falanstério, qué seria 0 modelo de uma sociedade racional, au- todirigida e capaz de satisfazer os anseios huma- manos. Com a,morte de Fourier, suas doutrinas con- tinuaram sendo divulgadas 'principalmente _por Victor Considerant, que teve de enfrentar as diver- sas interpretagdes dadas as concepg6es fourieristas, ‘Alguns experimentos falansterianos foram reali- zados na Franga, Inglaterra, Estados Unidos e outros lugares, mas, na prética, fracassaram co- mo tentativas de criar uma nova sociedade, resul- tando, em alguns casos, em bem sucedidas associa- des cooperativas 3. Assim, a contribuicéo de Fourier também ter4 uma ligacdo indireta com 0 movimento cooperativista, que se estendera pelo mundo como uma tentativa adicional de encon- trar 0 remédio certo para os males sociais. Na Inglaterra, 0 socialismo utépico tem seu representante num empresdrio de talento, bem sucedido economicamente, que pouco especulou 1. Pocust, E. 4, de Minit, "1987, Les eahicre munnnssrite de Bowne, Vat sobre a natureza humana, mas que se empenhou com energia € aplicagdo metédica em realizar a reforma social. Robert Owen (1771-1858) co- mega seu programa de reforma assumindo uma atitude filantrépica perante o trabalhador de sua propria empresa, melhorando sua habitacio, re- quzindo a jornada de trabalho, construindo esco- las, desenvolvendo as condigdes de higiene, au- mentzndo 0s salérios e dando-Ihe boas condigdes de trabalho, Nesse sentido, o experimento em New Lanark foi uma inovagdo para os padrées da época, apresentando-se Owen como um empre- sério pioneiro e ilustrado, assim como um capi- talista inovador em relagio classe produtora. Por outro lado, o pensamento de Owen recorre a ajuda do Estado para que se imponha uma le- gislacdo social capaz de proteger 0 trabalho de menores €, em 1819, tal legislacéo foi adotada, ainda que com um espirito diverso ao de seu au- tor. A semelhanga de Fourier, adota uma posicéo critica perante a industria e favorece a agricultura, sonhando com a criacéo de pequenas comunida- des coletivas, onde seria abolida a propriedade privada e a producdo seria fundamentalmente agricola. O modelo de tal comunidade se realizou em New Harmony nos Estados Unidos, mas, apés certo periodo de existéncia, a experiéncia redundou em fracasso. Owen toma a iniciativa de fundar um banco onde se intercambiam bénus de trabalho, pois considera 0 trabalho como a me- dida de valor. Tal projeto também malograra logo apés sua fundagdo em 1832. Esse socialismo mutualista esta muito préximo das idéias preconi- zadas pelos francés Proudhon, mas tal socialismo, que se mantém no Ambito do intercimbio, néo serd levado & producdo econémica. Por esse moti- vo, 0s seguidores de Owen so participantes no desenvolvimento de cooperativismo, que recebeu ajuda imensa do empresério-filéntropo. Owen acredita profundamente na possibilidade de mol- dar a natureza humana, produto de condicdes exteriores, e na educagéo do homem para uma vida melhor. Talvez seja essa a razdo pela qual nos diltimos anos de sua vida se fixa na idéia na crenga de que se aproxima o tempo em que reinaré uma nova moral e imperard a felicidade entre os homens, concepgdes que express, no Catecismo do Novo Mundo Moral em O Novo Mundo Moral. O pragmatismo de Owen, que con- fiava na reforma da sociedade sem a necessidade do emprego de meios politicos, contrasta com 0 cartismo, que no inicio foi impulsionado por owenistas dissidentes e antigos discipulos do indus- trial inglés. O movimento cartista adotou essen- cialmente uma linha politica e a Working Men's Association, fundada em 1836, era composta somente de trabalhadores, apresentando-se como uma organizagio popular, Animado por uma ideo- logia de classe, transforma-se em um movimento revolucionério que penetrard nas regi6es. mais industrializadas da Inglaterra, mas que comecaré a esmorecer a partir de 1848, ‘Notével seré a influéncia de Proudhon (1809- -1865) na formacao do pensamento socialista do século XIX, Apés estar ligado ao grupo e A pessoa do fundador do chamado socialismo cientifico, que foi Karl Marx, Proudhon a partir de 1846, ano em que publicou o Systme des Contradictions Economiques ou Philosophie de la Misére, rom- perd com os radicais alemaes, para cultivar con- cepcdes sociais proprias mas nem sempre expostas sistematicamente. Daf associar-se, muitas vezes, seu nome a um socialismo francés independente do marxismo. Proudhon, assim como Owen, tam- bém considera que a questéo social nio po- de ser resolvida pela politica mas que deve ser objeto da ciéncia da sociedade representada pela economia politica. Tampouco acredita na demo- cracia parlamentar, porém aceita como importante a educacao do povo para a modificagio da socie- dade. Anti-religioso convicto, justifica sua ruptura com Marx por se colocar o marxismo na posi- a0 de uma nova religido, “ainda que essa religiao fosse a religido da légica, a religiio da razio” Assim como nao cré na democracia, muito menos confia no Estado ou em outro tipo qualquer de autoridade, Sua visio social, em ultima instancia, € de uma sociedade andrquica, onde o poder poli- tico seria substitufdo pela livre associagao dos tra- balhadores. A sua concepedo de Estado é federa- OS FUNDAMENTOS HISTORIGOS DO ROMANTISMO 39 lista, pois no seu entender, essa, instituizao é con- seqiiéncia da reunido de vérios grupos diferentes, por natureza e por objetivo, “formados cada um para o exercicio de uma fungao especial ¢ a cria~ 0 de um objeto particular, unidos sob uma lei comum © com um interesse idéntico”*, O principio federalista também se estende ao campo internacional, apresentando-se como solugo para as relagdes entre paises; nesse sentido, escreveu uma obra em 1863 sob o titulo Du Principe Fédé- ratif. A diferenga de Proudhon com respeito a muitos dos socialistas contemporéneos 0 iguali- tarismo extremado, e a famosa frase segundo a qual “a propriedade é um roubo” advém de uma conviegio profunda na igualdade de condigées, Proudhon considera o prinefpio universal da sociedade. A liberdade e a igualdade devem en- contrar 0 seu equilibrio, sem o sacrificio de uma outra, mas se realizando pela solidariedade fra- ternal. Em Confessions d’'Un Révolutionnaire for- mula seu ponto de vista, dizendo: Do Angulo social, liberdade ¢ solidariedade sio termos id@nticos: a liberdade de cada um encontra na liberda- de dos demais, ndo um limite, mas um apoio: 0 ho- ‘mem mais livre € 0 que tem mais relagdes com os seus semelhantes 15, Na aplicagio pratica dessas idéias, ¢ como uma possibilidade de resolver o problema social sem violéncia e sem luta de classes, propée como modelo a associaco mutualista, que garante a seguranga econémica e social aos seus afilia- dos. Proudhon imaginou 0 Banco do Povo co- mo. uma das formas mutualistas sem que tal projeto fosse jamais concretizado na prética. ‘Apesar de tudo, encontra-se_no proudhonismo uma exaltagio radical de valores morais, fun- damentalmente o da justica, que justifica as revoluces na hist6ris da humanidade. A esséncia da justiga € 0 respeito a dignidade humana no tempo e no espaco, sem compromissos com os ‘obstaculos que se possam apresentar em sua de- fesa. Aqui surge o fundamento do humanismo 14. De le ustce, quarto estudo, opud Tovesano, Op. cit. a AR! tovenane, OP. cit, p. 437. 40 prometéico de Proudhon e, mesmo que se possa criticar as f6rmulas pouco aplicdveis que propds para aliviar as enfermidades sociais, nao deixa | de ser admirdvel até os dias de hoje a riqueza que manifesta sua obra. x (© anarquismo que frutificou, a0 lado do soci lismo como uma forma do romantismo politico da época, também teve em Proudhon um de seus doutrinadores, Os historiadores do anarquismo, como George Woodcock, apontam o papel rele- vante que as idéias proudhonianas exerceram no movimento: Em 1840, Pierre-Josepb Proudhon, aquele tempes. tuoso, argumentativo individualista que se orgulhav de ser um homem de paradoxo e provocador de con. tradig6es, publicou a obra que o firmou como um pen- sador libertério pioneiro. Foi O que é a propriedade?, | onde deu & sua propria pergunta a célebre resposta “A propriedade & um roubo”. No mesmo livro tornou-se © primeiro homem a reivindicar voluntariamente o titulo de anarquista 16, © socialismo do século pasado, que se le-- vantara contra o liberalismo, defensor das posi- des da classe'média, proclamando os direitos das classes trabalhadoras "7, reuniu em sua formacao | trés contribuigdes, segundo a feliz interpretacao de Moises Hess: a francesa, no campo da teoria _ revolucionéria; a inglesa, no campo da economia; ¢ a alema, na esfera da filosofia. A intencdo univer- | salista dos pensadores socialistas néo era suficien- temente forte para impedir a manifestagao de ca- rater nacional, onde poderiamos encontrar as raizes mais profundas de sua inspiracao. E im possivel entendermos 0 romantismo politico da época sem levarmos em conta-a poderosa forsa do nascente nacionalismo. V. A questo nacional e o surgimento do nacionalismo © golpe de Estado de 18 de brumério do ano VIII (9 de novembro de 1799) passou a ser 1s, Wooncoce, G._Anarchiom. Penguin Books, 1970, p. 2 Ye, Laan Hi J. Ei lberaliome exropes. México, Bd,’ Fonde de Cultura Bednbaies, 1983, p. 205.

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