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ALGEBRA E PENSAMENTO ALGEBRICO NA SALA-DE-AULA Rémulo C. Lintz po, de Moerdtice «UNESP Rio Cro -5P Comecemos com uma pergunta: por que & que 0 ensino da élgebra feito daquelo ‘moneira tradicional —que também chamamos de “formalista’-funciona para alguns alunos e ‘lungs, mos néo funciona para outros tantos? Por que é que muitos dos que s6o copazes de lidar com @ élgebra formal, nunca a utilizam para resolver problemas, o menos que explici- tomente solicitados? Neste artigo, ev ndo vou tentar respon: der o estos pergunias direlamente. Vou, co invés, sugerir uma atividade para o salo-de-ou- lo. Enquanto vocés seus alunos e olunas trabalham nela, sugiro que vocé v6 pensando um pouco naquelos perguntos. E eu ndo me surpreenderia se, ao final do trabalho, as per- guntos parecessem mais acessiveis do que quando vocés comegaram Voce acha que seus alunos ¢ alunas de quinta e sexta séries sd0 capazes de lidor sem dificuldade com expressées literais? N6o? En- 80 vamos tentar uma coisa. Comegamos com uma situagéo absolu- tamente simples, represeniada na figura 1. Temos dois tanques de mesma capaci- dode, que chamamos de T) e Tz. No tonque Ty) hé um certo tanto de égua, e no tanque T2 hé um outro tanto de égua, menos que em T} Vocé diz aos alunos e alunas que parc comple- tor T) seriam necessérios mais 3 baldes de gua, @ para completar T2 seriam necessdrios mais 7 baldes de égua. Estes ndmeros de baldes faltando poderiam ser outros maiores, se vocé quiser; 0 que importa é que eles enten- dam a situagéo. 26 (0 ENSINO DA MATEMATICR HO 1* GRAU Arado anc Pronto. Pode comecar. Como? © que? £ verdade! Comecor 0 que? Ev ainda néo falei qual 6 © problema .. E nem vou falar, simplesmenie porque ndo hé um "problema" para ser resolvido. A atividade € a seguinte: vamos falar a respeito da situagdo. dos tongues. Eu sugiro que, antes de continuar © leiture, vocé goste uns minutos pensondo sobre coisas que se pode falar o respeito do situagdo dos tonques. cats irdatvoto tombamn's pars taRSP voc o pensar um pouco sobre os tangues. Mos aproveito para dizer umas outras coisas. Por exemplo: que esta atividede foi roba- hada com duas classes do sexta sé- rie do Escola de A- plicagéo do USP, em 1990 e, tam. bém, com um gru- po de alunos ingleses. Eu trabo- Ihei assim: primei- ro em pequenes grupos, de dois ou tras alunos. De- pois, © trabalho dos grupos, sendo comunicados pora © grande grupo, forgaos alunos ealunas afolor Uns com 0s outros e a registrar tudo que véo dizendo, mesmo que ndo estejam muito segu- ros de estar certo ou néo. No {ose do comunicagée do que os grupos fizeram, of o regra geral 6 um falar de cada ver, embora acontegam discussées es- ponténeas muito interessantes, que néo preci- som ser "cortadas’. Jogo de cintura em coordenar trabalho em grupo ajuda, & claro, mos esta otividade 6 dirigida 0 bastante para que néo seja uma coodernagéo dificil, 4s pensou? Vejamos ... Vocé de blusa azul. O que vocé quer dizer sobre a situagao dos tonques? Sei, que T) é igual a Tz. Certo. ‘A vagfoueno eres son Eset > Com mais 3 baldes de égua o tanque da esquerdo ficaré cheio: com mais 7 baldes de dgua o tanque do direito ficaré cheio, Figuro 1 Noo, ndo! Nado de ficar dizendo que essa é ébvia demais! Ninguém folou que o Sbvio néo pode ser dito. No verdade, é de tanto nGo discutirmas "o dbvio" nas aulos de Mote- mético que muitos alunos se perdem. "E ébvio" que num segmento de reta hé infinitos pontos... "E 6bvio' que um quadrado 6 um quadrado mesmo que esteja "inclinado' ... O dbvio 6 se toma dbvio depois que é dito e examinado e, muitas vezes, a constatacdo de que algo "era" ébvio pode ser fonte de grande prazer intelectual, como quando achamos o solugéo simples para um problema que nos desatiava hé dios. De volta. Vocé deve ter notado que me aproveitei um pouco da situagéo. E claro que ‘aquela primeira afirmagéo 8 ébvio. Mas pode- ‘mos fazer um bom uso dela; pode- mos usé-la como motivo para esta- belecer ume nota- 60: “Certo, se que Ty é igual o Tp; alguém discor- do que eu escrevo T)=Te, poro dizer isto?" E Sbvio que ninguém vai estra- har. Qeem quer dizer outro frase? A senhora of... sim, 0 senhora que ojei- tou 0s éculos, poderia falar mais alto? Um, sei, colocando mais sete baldes de égua em 12 ¢ tr@s baldes de dgua em Ti, eles ficam com a mesmo quontidade de égua. Certo. E como podemos escrever isto de formo mois sim- ples? T + 7 baldes = T) mais 3 baldes. Eu acho que tem alguma coisa errada ai, pois ‘acabamos de concordar que Ti = Tp... £. Parece que temos um problema de notacdo. NGo seria melhor se tivéssemos um nome. especial para a gua em cada tanque? Serd gue posso usar Xe Y, X para a égua em T} Y para a égua de Tz? Vamos completar 0 desenho. Bem, agora fica mais fécil evitar a con- SINO DA MATEMATIC fusdo: Y + 7 baldes = X + 3 baldes. Ev estou vendo que o Professor Paulo & 0 Professor Bigode, af no fundo , estéo conversando, Seré que & sobre os tanques? Ah! Vocés néo gosta- ram de eu ter usado a palavra "baldes"? Parece que a Professora Solange também reclama que "baldes" néo € muito formal, mas o Professor Nesselmon esté dizendo que a nolagéo sinco- pada jé feve sua gléria em outras épocos, Claro, Paulo, podemos usar b co invés de "bol. des’. Todo mundo entendev o que 6 0 b? E "baldes’.Entéo a fraseY +7 baldes = X + 3boldes vira Y + 7b =X + 3b" Eocrita a frase esté, mas quem disse que elo esté correto com relacéo aos nossos ton- ques? Precisamos de uma justficago que diga por que acreditamos que o frase esté correta. Esto sugerindo que Y + 7b = 3b’ esté correta porque ‘se junta- mos 7 baldes de gua a Y nés com- pletamos T2, € se iuntamos 3 baldes de agua. X com- pletamos Ti, eT1e T2 so igue Alguém discorda desta justificagéo? Ae agi demos trés passos, todos igualmente importantes: (1) o- presentora situacéo e a alvidode;(2) estabele- cer uma nolagio; (3) estobelecer que, para coda frase gerada, iremos tombém geror uma iuslfieagéo, que diga por que a frase esté correto, Ao apresentar a atividade, ndo deve- mos querer nos certificar, totalmente e desde o inicio, que todos os alunos e alunas entende- ram tudo, aos poucos e, na medida em que vamos solicitando que todos falem, vamos ten- do oportunidede de fazer esta verificagdo e esclarecer os divides. & por isso que é to importante circular pelo grupos e acompanhar, nem que seja um pouco, o trabalho de cada um, Podemos, também, contar que os proprios alunos vao tirar muitas dévidos de seus colegos, IMO DA MATEMATICA HO ‘Com mais 3 baldes de gua o tanque da esquerda ficaré cheio; com mais 7 baldes de dgua o tonque do direita ficoré cheio. Figura 2 i6 que @ falta de entendimento da atividade pode levor o discordéncia entre eles Quonio & notagdo, esta ¢ uma parte chave. Talver alguns dos leitores estejam cachondo que minha obordagem foi muito dire- tivo, mas eu tenho um argumento forte, Tudo 0 ‘ve fiz foi indicar aos alunos que eu, professor, considero satisfotério a pritica de usar letras para indicar quantidades. Podernos comparar esta situagéo com o uso de letras para escrever polovros: se deixéssemos nossos alunos usan- do ideogramas para comunicagéo escrita, sem inlervengdo nossa no sentido de chomar a ‘tendo deles para o mundo de palovres que existe & nossa volla, quanto tempo eles leva- riam oté chegarem & escrita habitual? Ev dirio ‘que oles, como i dividuos, no che- goriam nunco o ela. Pode-se argu: mentor que eles haviam visto palo- ros escritos com letras, ou que em breve iriam ver, e6 aqui, precisamen- fe, que gosto de meu argumento. ‘onde, em nossa vi- do cotidiana, te- mos oportunidade de ver uma nota- {¢60 literal usada para quantidade? Quase em rnenhum lugar. Acredito que a escola mostro-se como um lugar privilegiodo neste ospecto; a- credito também que "ser econémico" na nota- G60 néo é um principio que "brote noturalmente'. Se o professor prefere que os ‘alunos percebam lentamente que ele € 0 resto de uma certa coletividade, no qual esté sendo inserido, volorizam este principio, tudo bem, mos 6 ingénuo ocreditar que 0 uso de letras no lugor de palovros, no tipo de situagéo que estamos examinando, envolva algum profundo dilema da teoria do conhecimento. AAiiés,penso que & muito a0 contrério. De tanto fazer mistério a este respeito, de tanto acreditar que 0 uso de letras,com a finalidade com a qual estamos usando até aqui,s6 pode ser feito por pessoas que jé atingiram o "perio- Asario meen ess oe Heise do operatério formal", 6 que vamos atrosando sua introdugéo de tol forma, que, quando o fazemos, 0s dificuldades se amontoam. Jé hou- ve quem observasse,correlamente,ev penso que, se fossemos tomar & risca os niveis de desenvolvimento intelectual que 0 modelo pia- getiano propde, s6 comecariamos o ensino do linguo escrita aos 14 onos de idade Voce sobio que um russo, V.V. Davydov, fez uso de notagéo literal para trabalhar com relagées quantitative, numa classe de criangos de 8 onos? A010, 0 importéncio dos jusiificagoes. INo atividade que estou opresentado, os 1¢6es nGo sdo importantes s6 para saber ius se 0 cluno "sabe de fato o que esté dizendo. Este tipo de uso para as justificagées no é dos mais interessantes; € 0 que mi professores @ professoras fozem quando déo errado em questées de prova para o aluno que resolve um problema sem "escrever 0 equocéo". Hé algo de muito mais importante nas justificogées. E que através delas, e apenas através delos, podemos saber por que o aluno acredita no que acredita, isto &, como é que ele esté pensando, como chegou a sua concluséo, qual o légica dos operagées que esté efetuan. do. No préximo bloco, vocé veré de que modo isto é essencial, e de que forma o trabalho com as justificagées oferece a oportu- nidade de se superar as resisténcias e dificulda- des com © manipulagio direta de express6es lterais. T Deve estar cloro, a esto altura, que, nesta primeira fose do trabolho, estamos inte ressados em gerar frases sobre a situagéo dos tonques e gerar justificagées para estos frases. No quadro abaixo apresento, junto com os que {6 temos, outras frases e justificagées gerados pelos olunos. eiro Bloco Observe que os juslficagdes sd0 sempre relativas & situagdo do tanque: na justificagao de coda nova frase ¢ feito referéncio a um nucleo, que é 0 situogéo dos tanques. Esto 1)T=T2 Os tanques so iguais, 2)Y +7b=X+ 3b completamos Ti, eT] @ Ta séo iguais. 3)Y+4b=X completar T} faltam sé 3. AN + 6b =X42b ficam iguais. 5)¥ + 2b = 2b ¢ fazemos -2, fica -5. OY +3b=Xb também serdo 4 foltando. 7VY = X-Ab A diferengo entre Xe Y é de 4 boldes. Frases X Justificagoe: Se juntomos 7 baldes de ¢gua a Y, completomos T2, e se juntamos 3 baldes de dquo o X A diferenga entre X e Y é de 4 boldes, pois pora completar 12 faltam 7 boldes, e parar Juntando 6 baldes a Y ele fica com dois baldes a mais que X, e juntando 2 baldes a X eles Y + 2 baldes vai encher o tanque com 5 baldes faltando. E se em X hd 3 baldes faltando, 4 baldes véo estar foltando em Y, e em X esto faltando 3; se um outro ficar faltando, | oucagio mgendne EM RESTA BEM. WD Sen. 94 sar 9 1 DAMATEMATICA NO 1 GRAU 29 nucleacéo é caracteristica do modo de produzir iustificagées que estamos empregando. Veja 0 diagrame abaixo: Y+7.b=X+3.b 2 pete ftonqué a Ss Y+3.b=X-b Y+2.b=X-2b Podemos ir além de gerar e justificar froses. Podemos, por exemplo, procurar agru- par frases que expressam uma mesma situocao, como 6 0 caso das froses (3) e (7) : & no iustificogé0" a diferenca entre Xe Y é de quatro baldes' que podemos perceber que as duos {roses expressam a mesma coisa. E agora per- ‘guntomos : que outra frase pode corresponder ‘Qquela justificagéo? E bem possivel que vérios dos alunos digam , corretamente, que 6. frase X-Y = 4b, Temos aqui uma excelente oportu- nidade para introduzir a nogdo de que as trés froses a + b = c,b = c~a,e0 = c-b so, num certo sentido, « mesma coisa, que cada uma implica nas outras duos. Esse tipo de discussdo pode, 6 claro, ser feito com outros grupos de frase. Quarto ° [Neste ponto podemos dar um passo importante, que comegar a trabalhar a trans- formagéo direta de expressdes. Por que ndo fizemos isto de safda’ Simplesmente porque & essencial garantir que as expressdes as quais vamos monipular sejam plenas de significado pora os alunos e alunos, e isto quer dizer que ‘08 expressdes devem ser objetos que os alunos e alunas reconhegam como legitimos indepen- dentemente do processo de manipulagio direta. Agora que estamos trabalhando com expressées, que produzimos significado para elas dentro do campo seméntico dos tanques, podemos propor aos alunos que inventem ‘re- gros" para transformar uma frase correta em outro frose correta. Comecamos sugerindo que (O ENSINO DA MATEMATICA NO 1 GRAU tronsformem ¥ + 7b =X + 3bemY + 4b =X. Nao se deve estranhar se os alunos disserem que * basta tirar trés baldes de cada lado’. Excelente! E frases como correspondendo o transformacées de situagdes que montomos coms tanques. O melhor é que esta regro, de ‘tirar dois lados", pode ser oplicada a outras frases verficados, gerando novos frases corre- tas. Ndo vou me alongar aqui, pois acredito que oleiior pode pensor em outras regros. Mais importante 6 observar que este novo modo de produrirjustificogdes ¢ completamente diferen- fe do anterior : ndo ficamos sempre pensondo pelo nicleo, trabalhando, ao invés, com as regros, que podem ser pensadas como princi- pios que obedecem as expressées que gera- mos. O diagramo absixo ilustra como mudou a.situacéo : Yo db=X ss. V4 9b =X4 5b Y + 3b =X-b ——___-. Y +2b = X-2b Voce de i6 ter notado que este segun- do modo de produzir jusificagées é bem préxi- mo doquele que chamamos de pensamento algébrico, no quel manipulagdo de expres- 3608 6 feito openos com base em propriedades da igualdade em relagéo as operagées aritmé- ticas, E essencial, no entanto, que os alunos reconhecam essa diferenco entre os dois mo- dos de produrir justificacées que eles esto usando e é por isso que, mesmo depois da invengo dos regros para manipulagto direta, continuei pedindo que cada nova frase fosse iustificade dos dois modos, uma justificagéo com referéncia aos tanques e outra por trans- formocéo de alguma frase i6 justificado. AA partir daqui hé muitos possibilidades. Eu, em particular, gostei de propor desafios do seguinte tipo: dou uma frose incompleta, por exemplo 'Y - 2b = ...", peco que os alunos gerem a frase completa. Muitas coisas interes- re sante pode acontecer, como quando pedi que, a partir do frase ‘20 —b = x’, escrevessem outra frase onde s6 aparece a de um dos lados, e uma cluna escreveu... ‘a = x-b-a'l Una outra possibilidade & dar valores pora Xe Y e pedir que achem o valor de b, ov dar 0 valor de be ver o que dé pora descobrir, Ov outras combinagées. O interessonte é pedir que user as transformagées de expressdes que estavom usando antes. Nico preciso dizer que muitos outros contextos podem servir para este tipo de ativi- dade. Devemos, no entanto, manter os olhos no que é principal: (I) que as frases a serem di- retamente trans- formadas devem ter significado, de- vem ser objetos para os alunos; (I) que, em geral, hé mois de um modo de pro- duzir significado para novas frases, diferentes modos de se produzir jus- tificagées, do que a transformagéo direta ape- nas, e os alunos tém que estor conscientes disto; (il) que é importante trabolhar em situa- gdes em que o qualificagéo genérica, pora que 05 alunos possam concentrar-se nos méto- dos endo em resultados numéricos. Este ltimo ponto 6 importante o bastan- te para que ev sugira uma releitura deste artigo com ele em mente. Procure comparar ¢ otiv- dade que propuser com ume sitvagéo em que 08 alunos tivessem um problem." com ndme- ros" para resolver. Vale a peno experimentar e ver 0 que acontece... Pora terminar, vou colocor uma ques- 160: a frase 'Y + 1007 b = X + 1003 b’ pode A stucag atndna est WTS 9 ser obtida por transformogao direto, mos certo mente néo pode ser interpretada na situagao dos tanques. Como voc faria uso desta sitvo- 60? ense também no uso de balancas de dois protos para trabalhar na resolucéo de equogées: que tal tentor ‘montar’ uma balan- 60.0 equacdo 3x + 100 = 10? Que relacao vocé vé entre esto situacéo e do parégrafo anterior? Boo aula! Pense também no uso de balangas de dois pratos para trabalhar na resolucdo de equagées. Indicag&o de leituras complementares: irs, LC: (1993 Epsomclogi, Haro Ed {oma sss ox bos de pens, Rovio de Edvcnsbo Moles ‘cada SocedadeBrosiare de Edvcogto Netematen~ S60 Pov, ne nimero 1 etembr, co Melembice orn ‘Un RC. 1996, oaporce) © Modelo Tesco dos Como Sandro ‘ume andi piterelegica do Aga ita Dram, undoghe Unie dadeRapianalde Blomarau ths ENSINO DA MATEMATICA HO 1* ORAU 31

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