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MÉTAMORPHOSES 
La Merionnette au XX Siécle 
 
Henryk Jurkowski 

Tradução de: Eliane Lisboa 
Gisele Lamb 
Kátia de Arruda 

Éditions Institut International de la Marionnette 
Charleville‐Mézières, 2000 
SUMÁRIO

Ao Leitor ...................................................................................................................v
Introdução .............................................................................................................. vi
I ‐ PREMISSAS .............................................................................................................. 10
UM MODERNISMO SOB MEDIDA........................................................................10
O ator ideal .............................................................................................................. 12
Da teoria à prática................................................................................................... 15
A PROFISSIONALIZAÇÃO ..................................................................................... 17
Baty: uma lenda francesa....................................................................................... 18
Obraztsov: um mestre inconteste.........................................................................20
Nascimento de um ofício....................................................................................... 22
Uma nova profissão ............................................................................................... 23
Ator ou bonequeiro? .............................................................................................. 24
Artista ou artesão?.................................................................................................. 25
Que caminho para o teatro? .................................................................................. 26
A formação profissional ........................................................................................ 26
II ‐ REFORMAS ............................................................................................................. 28
AS PEQUENAS FORMAS......................................................................................... 28
O impulso dos solistas ........................................................................................... 29
Signos e símbolos plásticos ................................................................................... 32
A abstração pura..................................................................................................... 34
A poética da forma ................................................................................................. 35
A linguagem teatral................................................................................................ 38
O Teatro Lalka: Jan Vilkowski .............................................................................. 38
O Teatro Tandarica: Margareta Niculescu.......................................................... 41
III ‐ CONVENÇÕES...................................................................................................... 48
HOMOGENEIDADE ................................................................................................. 48
Continuidade ou ruptura? .................................................................................... 48
Nas fontes da plástica ............................................................................................ 49
Rumo à caricatura................................................................................................... 50
A ilusão dramática.................................................................................................. 50
O repertório musical .............................................................................................. 51
Nas fontes do clássico ............................................................................................ 53
HETEROGENEIDADE .............................................................................................. 56
A entrada do ator.................................................................................................... 56
Brincadeiras de crianças ........................................................................................ 58
Os primeiros adeptos ............................................................................................. 59
O repertório dramático em jogo: Michael Meschke .......................................... 60
No cruzamento dos meios de expressão............................................................. 61
Uma teoria da metamorfose.................................................................................. 63
A matéria entra em cena........................................................................................65
O distanciamento.................................................................................................... 65
IV ‐ FORMAS E ESTILOS ........................................................................................... 68
ANIMAÇÃO E SINERGIA ....................................................................................... 68
Do bom uso da tradição......................................................................................... 68
Um mestre da metáfora: Josef Krofta .................................................................. 69
As técnicas vindas do Oriente ..............................................................................73
Da literatura à metáfora plástica .......................................................................... 75
A intimidade da narração...................................................................................... 77
Entre sonho e realidade ......................................................................................... 78
Sinergia..................................................................................................................... 81
Signo ou símbolo?................................................................................................... 83
ARTES PLÁSTICAS E BONECOS ........................................................................... 84
As cenografias no teatro ........................................................................................ 85
O teatro cenografado.............................................................................................. 86
Teatro de autor........................................................................................................ 88
OS PINTORES NO TEATRO .................................................................................... 92
Miró, Mata, Saura ................................................................................................... 93
Magritte e os surrealistas....................................................................................... 95
Teatro visual ............................................................................................................ 96
Interferências........................................................................................................... 98
Teatro de artistas..................................................................................................... 99
Teatro plástico ....................................................................................................... 103

 
METAMORFOSES 

Do objeto à matéria............................................................................................... 105
Philippe Genty ...................................................................................................... 108
Florilégio de teatro de objetos............................................................................. 109
Teatro de projeção ................................................................................................ 111
Teatro da matéria.................................................................................................. 114
V ‐ SOCIEDADE.......................................................................................................... 119
Teatro de contestação...........................................................................................119
Teatro pobre .......................................................................................................... 123
Teatro ritual ........................................................................................................... 127
Fazer frente à história...........................................................................................128
DENTRO DO CONTEXTO DA TRADIÇÃO POPULAR................................... 130
NA PERSPECTIVA DO MITO................................................................................ 136
Fausto ..................................................................................................................... 137
Don Juan ................................................................................................................ 139
Mitos e folclores .................................................................................................... 139
A ópera barroca..................................................................................................... 140
Mitos de origem .................................................................................................... 141
O eterno retorno.................................................................................................... 142
Teatro dos estados da alma................................................................................. 145
CONCLUSÃO .............................................................................................................. 153
 
Ao Leitor 

Do modernismo ao pós‐modernismo, a arte contemporânea provocou profundos 
abalos ao longo deste século. Foi assim que o vivi: como um verdadeiro tremor de terra, 
e nada será mais como antes. Hoje me pergunto se a arte do boneco não terá sofrido a 
mesma  sorte?  Como  observador  atento,  partidário  e  testemunha  de  seu  destino,  tento 
comentar, analisar e explicar aqui os acontecimentos artísticos que influenciaram essas 
transformações, privilegiando os artistas, instigadores de uma nova abordagem que dá 
novas perspectivas ao boneco. Na passagem de um acontecimento a outro, busquei um 
afastamento,  porque  cada  pedra  trazida  ao  estudo  minucioso  dessa  arte  influenciava 
minha visão final. O afastamento não reaproxima? É uma questão de foco ou de época? 
Seja como for, o nascer do terceiro milênio dá a este ensaio um novo horizonte.  
As  metamorfoses  do  boneco  no  século  XX  resultam  de  uma  série  de  ações  e 
diligências iniciadas por artistas de grande qualidade: todos têm em comum o fato de 
serem portadores de idéias inovadoras e únicas conforme seu talento, de enriquecerem 
a  arte  do  boneco  e  paradoxalmente,  também,  de  colocarem  em  risco  seus  valores 
essenciais.  O  boneco  primeiro  afirma  sua  própria  existência,  descobre  e  analisa  seus 
meios de expressão, depois conclui seu ciclo abandonando‐se ou se auto‐destruindo em 
proveito de figuras animadas, de objetos ou de atores. Mesmo no caso de uma extrema 
fidelidade  ao personagem cênico,  observei  que  ela progressivamente  se privou de  sua 
função de sujeito teatral fictício para pôr em valor sua função real: a de um objeto. 
Considero  o  boneco  uma  forma  artificial,  articulada,  fabricada  segundo  os 
princípios  das  artes  plásticas,  dotado  de  capacidades  técnicas  para  ser  utilizada  num 
espetáculo,  diante  de  um  público,  enquanto  sujeito  fictício.  Esta  definição  poderia 
surpreender algum observador de teatro que associasse a noção de sujeito fictício à de 
ser humano, mas não é verdade que a energia de um sujeito cênico é transmitida pelo 
homem ao boneco, isto é, por quem o concebe e manipula? Essa energia não é a herança 
de  um  longo  processo  cultural  onde  a  função  de  sujeito  foi  dada  à  marionete  em  sua 
vida  pré‐teatral,  como  ídolo,  fetiche  ou  forma  articulada  de  uma  divindade  nas 
sociedades  primitivas?  Essa  tradição  justifica  o  fato  de  que  o  objeto  possa  ascender  à 
vida  autônoma  de  sujeito  fictício.  Sujeito  cênico  fictício  e  objeto  real  são  as  duas 
alternativas  desenvolvidas  pelos  artistas  que  vou  evocar.  Esta  oposição  abre 
simbolicamente o caminho à compreensão das metamorfoses do boneco no século XX. 
Enfim,  este  livro  não  é  mais  uma  história  do  teatro  de  bonecos.  Ele  quer 
simplesmente  conduzi‐los  a  um  fenômeno  cultural  singular,  digno  de  estudos  mais 
profundos.  Trata‐se  de  um  gênero,  saído  da  arte  popular,  que  cativa  os  artistas, 
submete‐os às  leis  da arte, da  criação,  da  inovação e  da  originalidade e quase chega  a 
uma  auto‐destruição  total!  Meus  contemporâneos  fazem  uma  análise  similar  da  arte 
teatral  à  exceção  do  ator  que,  enquanto  ser  humano  protegido  pela  lei,  se  mostrou 
intocável.  O  ator  assumiu  novas  funções,  sendo  às  vezes  mesmo  marionetizado,  sem 
jamais ter sua integridade violada. O boneco não se beneficiou desta proteção. Criatura 
artificial, criação do homem, ele se submeteu a sua vontade. O homem pode reconstruí‐
lo,  animá‐lo,  mas  também  pode  destruí‐lo,  encerrá‐lo  numa  loja  de  antiguidades,  ou 
relegá‐lo para sempre a um museu. 


Introdução 

O  caminho  que  conduz  o  boneco  às  tábuas  do  teatro  foi,  para  dizer  o  mínimo, 
particularmente longo. À serviço dos charlatões e dos contadores de histórias, o boneco 
suscitou formas diversas indo do circo ao espetáculo de variedades e da ópera aos balés. 
Substituto do ator, ele poderia tê‐lo sido do jogral, do atleta, do dançarino e mesmo do 
cantor. Sua prática multidisciplinar foi socialmente reconhecida como uma arte popular 
que,  pouco  a  pouco,  se  voltou  para  as  crianças  e  recebeu  a  etiqueta  de  teatro  para 
crianças.  Criadores  de  divertimentos  populares,  os  bonequeiros  jamais  usufruirão  de 
grande prestígio. O mesmo se dá com os atores de teatro, mas estes figuravam no alto 
da  lista  das  artes  do  espetáculo.  Os  bonequeiros  nela  ocupavam  uma  posição  muito 
mais modesta já que eram precedidos pelo pessoal do circo.  
Falo  de  bonequeiros,  mas  os  manipuladores  de  bonecos  se  qualificavam 
diversamente:  artistas,  atores,  mecânicos,  maquinistas  reais,  responsáveis  teatrais, 
proprietários de empresa. Eles não tinham a consciência de exercer o mesmo ofício, com 
algumas  exceções.  Na  Inglaterra,  no  século  XVIII  existiam  teatros  de  bonecos 
permanentes  cujos  manipuladores  e  fabricantes  de  bonecos,  às  vezes  renomados, 
formavam uma verdadeira corporação. Havia pois de um lado o boneco e seu potencial 
estético  e  dramático,  e  do  outro  uma  multidão  de  organizadores  de  espetáculo,  com 
freqüência  amadores  de  origens  diversas,  que  só  recorriam  ao  boneco  após  terem 
esgotado  todas  as  outras  formas  de  expressão  para  atrair  o  público.  Uma  situação 
paradoxal onde o boneco e seu potencial artístico foram mal explorados.  
Como meio de expressão artística, o boneco não está ligado a nenhum estilo ou 
corrente artística precisa. Neutro, ele estava à disposição dos artistas qualquer que fosse 
sua orientação. O boneco evidentemente possui características particulares, e enquanto 
obra plástica pode se transformar segundo os desejos de seu criador. O boneco sempre 
foi mais popular que elitista, mais próximo do folclore do que da arte com A maiúsculo. 
Desse ponto de vista, pode ser considerado como “conservador”. O teatro de bonecos, 
aliás,  conhece  ainda  hoje,  certas  formas  de  teatro  que  o  teatro  esqueceu.  O  que  não  o 
impediu  de  suscitar,  na  época  do  modernismo,  o  interesse  dos  “artistas”.  Seu 
renascimento  no  século  XX  fez  com  que  o  teatro  de  bonecos  se  tornasse  mais  artístico 
que popular ou plebeu.  
Maurice Maeterlinck, Alfred Jarry e Edward Gordon Craig, em busca de um ator 
anti‐naturalista,  foram  tomados  de  paixão  por  essa  arte.  Logo  após  foi  a  vez  dos 
futuristas  (Enrico  Prampolini),  expressionistas  (Oskar  Kokschka),  dadaístas  (Sophie 
Taueber‐Arp)  e  nunistas  (PierreAlbert‐Biron),  cujo  protesto  contra  a  cultura  burguesa 
levou‐os a abrir bem os braços a gêneros até então desprezados, como os espetáculos de 
variedades, o circo ou o teatro de bonecos. Mas o interesse pelo boneco, o manequim e a 
super‐marionete  tem  causas  mais  profundas  que  os  estímulos  artísticos:  Todos  os 
movimentos  literários  do  início  do  século  XX  e  do  entre‐guerras  têm  que  levar  em  conta  a 

vi 
desumanização  do  mundo  moderno:  impulso  da  técnica  e  da  mecânica,  reino  do  dinheiro, 
horrores da guerra, abalos das revoluções1 sublinha J. Blancart. 
Os bonequeiros certamente não tinham consciência do papel que podiam jogar e 
dos  meios  de  que  podiam  dispor.  Os  poucos  artistas  atraídos  por  esse  desejo  de 
modernidade precisavam voltar a um boneco figurativo e antropomorfo se desejassem 
encontrar um grande público e obter alguma renda com suas atividades. Seu programa 
teatral  e  artístico  foi  bem  pouco  revolucionário.  Eles  se  contentavam  em  seguir  os 
princípios  estéticos  tradicionais  e  sentiam‐se  obrigados  a  justificar  sua  escolha  por 
manifestos  que  na  maior  parte  sublinhavam  o  aspecto  artificial  do  boneco.  Partindo 
deste princípio, eles buscaram um movimento próprio e atribuíram ao boneco o papel 
de  um  ator.  Mesmo  se  o  espetáculo  de  variedades  e  todas  as  outras  formas  de 
espetáculos de bonecos perduraram artisticamente, os artistas consagraram sua energia 
à  criação  de  uma  arte  dramática.  Por  menores  que  fossem  suas  intenções,  elas 
permitiram  assegurar  uma  continuidade  na  história  e  o  boneco  antropomorfo 
reencontrou  seu  prestígio.  A  influência  da  vanguarda  foi  bastante  limitada  e  o 
modernismo não obteve nova vitória.  
Sem  querer  desorientar  o  leitor,  este  livro  necessita  de  algumas  explicações 
terminológicas.  Devo  condenar  o  uso  da  palavra  boneco  em  seu  sentido  mais  amplo 
possível  e  o  emprego  quase  abusivo  de  um  vocabulário  metafórico,  que  se  sobrepõe 
aqui  a  uma  abordagem  puramente  descritiva?  A  cortesia  me  obriga  a  definir  certas 
convenções,  a  fim  de  que  sua  leitura  prossiga  o  mais  eficazmente  possível.  O  termo 
ʺboneco  dramáticoʺ  parece  estranho,  mas  caracteriza  perfeitamente  o  repertório 
dramático desse teatro em oposição aos espetáculos de bonecos do circo, das variedades 
ou do  cabaré.  Esta distinção  é  necessária  em  razão da diferença formal e do estetismo 
desses  espetáculos.  O  boneco  dramático  domina  a  arte  do  boneco  durante  várias 
décadas  e  estimula  inúmeras  reflexões  sobre  sua  especificidade  e  suas  capacidades  de 
expressão.  Certos  teóricos  quiseram  mesmo  estabelecer  regras  de  funcionamento  bem 
definidas.  Os  bonequeiros  se  interrogaram  sobre  sua  especificidade  e  sobre  a  maneira 
de adaptá‐la a sua prática teatral. Era necessário imaginar uma linguagem específica e 
uma  convenção  própria  ao  teatro  de  bonecos  homogêneo.  Esta  convenção  teatral  tem 
por  princípio  que  o  boneco  é  um  substituto  do  personagem  dramático,  cujos  gestos  e 
voz  provêm  de  um  bonequeiro  inteiramente  dissimulado  aos  olhos  do  público.  Este 
princípio  vai  se  tornar  progressivamente  uma  verdadeira  amarra  para  a  maioria  dos 
bonequeiros.  Só  alguns  artistas  tiveram  a  coragem  de  se  liberar  dela.  Pois  esta 
especificidade viu sua existência ameaçada pela evolução da arte dramática. Após uma 
primeira  onda  de  reformas  sob  a  influência  de  Adophe  Appia,  de  Craig,  de  Antonin 
Artaud  e  de  Bertold  Brecht,  uma  nova  onda  apareceu  nos  anos  50  com  Beck,  Malina, 
Grotowski e muitos outros, que abriram a via à subjetividade na representação teatral. 
Uma via assumida pela arte e que se conclui, em nossos dias, com o pós‐modernismo.  
                                                 
1 J.Blancart.  A  intrusão  de  manequins  e  de  personagens  desumanizados  no  teatro  europeu  do  século  XX.            In 
Sylvie  Jouanny  (ed.)  Teatro  europeu  ,  cenas  francesas,  cultura  nacional,  diálogo  de  culturas.  Edições 
L1Harmattan, Paris, 1995, p. 195.  

vii 
METAMORFOSES 

Uma nova etapa se esboça nos anos 50 e 60 com a aparição do teatro de bonecos 
heterogêneo onde o boneco deixa de ser o elemento dominante. Ele não é mais do que 
um  componente  entre  outros,  com  o  ator  bonequeiro  à  vista,  o  ator  mascarado,  os 
objetos e os acessórios de todos os gêneros. Esta evolução conduz a uma nova reflexão e 
muitos  procuraram  explicar  esta  ruptura.  Em  1983,  Natalia  Smirnova,  historiadora, 
tentou definir sua natureza. Entretanto, quando atribui o cetro de reformador a Serguei 
Obraztsov e a seu Teatro Central de Bonecos de Moscou, ela se deixa ultrapassar pela 
realidade  teatral.  Obraztsov  jogou  realmente  um  papel  importante,  mas,  sem  dúvida 
podemos considerá‐lo mais próximo de Stanislavski que de outros reformadores que o 
sucederam como Meyerhold, Artaud e Barba. 
Os  bonequeiros  tinham  outras  aspirações,  em  particular  a  de  utilizar  o  boneco 
como  um  meio  de  expressão  dramática  possuindo  qualidades  plásticas.  Tinham  a 
sensação  de  ter  ficado  a  reboque  das  experimentações  de  vanguarda.  Nos  anos  50,  na 
Polônia,  o  encenador  Jan  Wilkowski,  estimava  este  atraso  em  torno  de  um  quarto  de 
século.  Harry  Kramer,  criador  de  espetáculos  de  móbiles,  herdeiro  espiritual  de 
Schlemmer  e  de  Calder,  permanecia  ainda  convencido  disso  nos  anos  80 2 .  Kramer 
exagerava  um pouco.  Ele  analisava  o  teatro  de  bonecos comparando‐o à  evolução das 
artes  plásticas.  Suas  razões  eram  fragmentárias  e  antípodas  ao  teatro  de  marionetes 
dramático. Como é freqüente, a verdade está entre os dois. O teatro de bonecos está na 
fronteira das artes plásticas e da arte dramática. Sua forma depende das mudanças que 
sobrevivem tanto num  quanto na  outra. Alain Recoing,  bonequeiro, ligava o  teatro de 
bonecos contemporâneo ao teatro e às artes plásticas modernas. Ele declarava em 1980: 
Salvo  raras  exceções,  pode‐se  considerar  que  o  teatro  de  bonecos,  ao  menos  na  Europa,  está 
totalmente em ruínas no fim do século XIX. O teatro de bonecos contemporâneo não se ergueu 
dessas ruínas, nem se reconstruiu sobre elas:ele se desenvolveu noutro lugar e de outro modo a 
partir do fim da Primeira Guerra Mundial.3 
Recoing analisa bem a situação, pois é verdade que a arte moderna foi a principal 
impulsionadora do teatro de bonecos contemporâneo. Mas afirmar que esta evolução se 
produziu  bruscamente  exige  um  certo  cuidado.  Essa  idéia  poderia  ser  defendida  se 
dissesse  respeito  aos  séculos  precedentes,  mas  ele  se  refere  a  uma  época  em  que  a 
continuidade  da  história  do  boneco  me  parece  devidamente  estabelecida  e  inconteste. 
Ele  não  parece  antever  a  interessante  metamorfose  do  teatro  popular,  nem  a 
consideração  artística  por  ele  alcançada.  Porque  o  teatro  de  bonecos  tradicional  e 
popular exerceu uma influência direta sobre o teatro contemporâneo. Ele se perpetuou 
em  países  como  a  Inglaterra,  a  Bélgica  ou  a  Itália,  e  para  um  bom  número  de  artistas 
ainda é uma referência.  

                                                 
 Harry  Kramer.  Vortrag.  In  “Forum  Puppentheater    1988”,  Wurzburg  im  Hobbit  Puppentheater  am 
2

Neunerplatz am 18 Juni 1988. 
3 Alain  Recoing.  Os  bonequeiros  do  outro  lado  do  espelho.  Teatro  público  “o  teatro  de  bonecos”,  revista 
bimestral publicada pelo Teatro de Genevilliers, no. 34‐35, ago‐set‐1980, p. 38.  

viii 
De  minha  parte  estou  convencido  da  continuidade  da  arte  do  boneco,  pelo 
menos desde que se decidiu descrever e comentar sua evolução. Que um novo teatro de 
bonecos surgisse logo após a Primeira Guerra Mundial não é, a meus olhos, a prova de 
uma  mudança  de  qualidade  significativa.  Ele  é  testemunha,  ao  contrário,  da 
perenização  das  formas  artísticas  precedentemente  adquiridas  (mesmo  que  por  sua 
negação).  As  tendências  poéticas  e  anti‐realistas  só  se  manifestaram  com  força  após  a 
Segunda  Guerra  Mundial.  Essa  época  traz,  inegavelmente,  a  marca  da  metamorfose  e 
da história do teatro de bonecos no século XX. Ele se torna uma arte por inteiro. Desde 
então, os bonequeiros deram prova de uma energia sem limite, deixaram seu encrave e 
desenvolveram  idéias  originais,  fazendo  empréstimos  à  arte  dramática  e  às  artes 
plásticas.  Poder‐se‐ia  comparar  essa  transformação  a  um  casamento  entre  um  gênero 
artístico  tornado  nobre,  o  boneco,  com  a  arte  dramática,  cujo  dote  comporta  a  maior 
parte  dos  princípios  da  arte  moderna?  Não  foi  assim  que  a  arte  do  boneco  tomou  o 
caminho da originalidade e se fez absolutamente presente?  
Na busca de um boneco não figurativo, o bonequeiro encontrou no seu caminho 
coisas, objetos utilitários de nosso cotidiano que podiam se metamorfosear em boneco e 
interpretar um papel dramático. Submetido a uma análise artística, a uma crítica de sua 
natureza  artificial,  o  boneco  revelava  todas  as  suas  fraquezas  enquanto  ser  figurativo 
numa época em que dominavam a arte abstrata e a subjetividade, tanto sobre o plano 
psicológico  como  sobre  o  plano  semântico.  Ao  tomar  emprestado  o  véu  da  arte,  ele 
tornou‐se  vulnerável,  frágil  e  submisso  à  vontade  de  seu  mestre.  Também  é  verdade 
que  ao  longo  dos  três  últimos  séculos  o  homem,  a priori,  aceitou  o  teatro  de  bonecos 
como um gênero teatral e um divertimento popular bem enraizado na vida cultural. A 
estética  fenomenológica  dos  anos  30  propôs  uma  poética  normativa  que  reforçava  a 
posição do teatro de bonecos no seio do teatro e na qual os criadores se comprometiam 
a servir ao boneco enquanto personagem dramático. O mito funcionou durante algumas 
dezenas  de  anos.  Analisar  o  boneco  enquanto  meio  de  expressão  artística  confirma  a 
hipótese  de  que  o  homem  só  lhe  concede  provisoriamente  seus  privilégios  de 
personagem dramático. O individualismo e o subjetivismo levaram os criadores a expor 
suas obras, durante o processo de criação, em seu próprio nome. É uma das razões que 
explica  a  passagem  do  boneco  para  o  objeto.  O  trabalho  do  bonequeiro  é  então,  de 
algum modo, um vestígio de arte anônima. Ei‐lo a partir de então face ao público, para 
dar prova de seu talento.  
Cada um dos grandes artistas bonequeiros tem contribuído para a metamorfose 
do teatro de bonecos de nosso século. A imagem do boneco se encontrava transformada 
e esses artistas, verdadeiras referências na história e na estética dessa arte, se engajaram 
em novas perspectivas, tanto por sua compreensão quanto por sua ascensão ao tablado 
do  teatro.  Nós  vivemos  enfim  uma  época  onde  as  idéias  criativas  e  o  pensamento 
estético  fervilham  sem  cessar,  onde  o  termo  genérico  de  teatro  de  bonecos  não  é 
equivalente  ao  de  teatro  dramático  nem  ao  do  teatro  em  geral.  Seu  campo  é 
verdadeiramente  mais  vasto.  Meu  prazer  é  ficar  à  espera,  vendo  emergir  as  novas 
experiências  artísticas,  e  incapaz  de  imaginar  a  surpresa  que  me  proporcionará  cada 
amanhã.  

ix 
 

I - PREMISSAS

UM MODERNISMO SOB MEDIDA 

A  estética  do  teatro  de  bonecos  vai  conhecer,  na  primeira  parte  do  século  XX, 
duas etapas sucessivas e preliminares a sua profunda transformação. Primeiramente, o 
boneco  se  adapta  às  exigências  da  arte  teatral,  descobre  as  idéias  modernistas  e 
apropria‐se delas. Essa seqüência não deixa de ser surpreendente, pois em seu tempo, 
os  teatros  ambulantes,  ao  menos  na  França  e  na  Alemanha  do  século  XIX,  imitavam 
francamente o teatro de atores. Reiterar a experiência poderia parecer inútil, mas de fato, 
o boneco vai adquirir uma dimensão artística e ganhar assim todo o seu sentido.  
Devemos as primeiras experiências modernas ao Petit Théâtre, ao Théâtre d’Art e 
ao Théâtre de l’Oeuvre em Paris. Henri Signoret, Paul Fort e Aurélien Lugné‐Poe (pode‐
se falar de bonequeiros?) perpetuam, na virada do século XIX, a imitação do teatro de 
atores  (a  despeito da  estilização  dos bonecos e  de seu gestual),  sem imaginar então as 
reformas que a vanguarda provocaria no início do século seguinte. Na realidade, todas 
essas tendências teatrais terminarão por se cruzar para dar vida, no alvorecer do século 
XX,  a  uma  forma  moderna  do  teatro  de  bonecos,  inspirada  em  certas  experiências 
artísticas  do  século  precedente.  Nesse  sentido,  o  modernismo  herda  dos  românticos 
alemães  e  franceses, esse  interesse singular  pelo boneco  através do qual  se cristaliza a 
imagem do ator ideal. No final do século XIX, o boneco entra em moda pelo teatro de 
Maurice Maeterlinck, os delírios burlescos de Alfred Jarry e as experiências teatrais de 
Paul  Fort  e  Lugné‐Poe.  A  “super‐marionete”  de  Craig,  as  diversas  experiências  dos 
futuristas, dadaístas ou surrealistas elevam sua imagem ao patamar de gênero artístico. 
Esta  homenagem  não  se  deve  somente  à  imaginação  poética  de  Maeterlinck,  nem  à 
idéia  excêntrica  de  Craig  ou  à  provocação  das  vanguardas,  mas  a  razões  mais 
profundas.  A  nova  percepção  da  realidade,  a  redefinição  da  arte,  assim  como  o 
subjetivismo  filosófico,  ‐  que  confere  ao  sujeito  um  papel  maior  nos  processos 
cognitivos  e  sublinha  sua  importância  capital  no  ato  de  criação  –  são  essenciais  para 
quem quer compreender as metamorfoses do boneco.  
O modernismo é uma reação à arte realista e às idéias naturalistas que rejeitam a 
idealização  do  real  e  exigem  uma  “verdadeira”  verdade.  Os  modernistas  buscam 
transmitir  uma  verdade  íntima,  a  dos  estados  da  alma  humana.  A  análise  dos  traços 
fundamentais  da arte  lhes fez descobrir  que  qualquer  obra de arte, no fim das contas, 
não  passa  de  um  artefato.  Estas  obras  pertencem  à  realidade  enquanto  criações 
artificiais do homem e não transgridem seu critério de autenticidade. Movido por estas 
premissas, Craig reivindica um teatro autônomo ‐ uma obra de arte autônoma – nascida 
da  vontade  de  um  artista  teatral  utilizando  um  material  que  ele  submete  aos  seus 
desejos.  Ele  imagina  mesmo  uma  “falsa”  marionete  que  substituiria  o  ator  vivo, 
aconselha buscar inspiração no “país da morte” e não encontra modelo melhor do que o 
boneco  para  realizar  suas  idéias.  O  teatro,  enquanto  criação  artificial,  não  pode  e  não 
deve  pretender  ao  papel  de  espelho  fiel  da  realidade.  Uma  nova  tarefa  lhe  cabe. 
10 
PREMISSAS 

Instrumento  de  uma  expressão  subjetiva,  ele  sublinha  seu  caráter  artificial  e  sua 
teatralidade.  Assim  nasce  o  “teatro  teatral”  onde  o  encenador  se  apropria  do  poder, 
reina não apenas sobre os atores, mas também sobre os cenógrafos e sobre os autores. 
Ele não ilustra mais um texto apenas, mas impõe suas idéias.  
A  renovação  do  teatro  de  bonecos  é  assegurada  por  uma  geração  de  artistas, 
pintores  ou  escultores  que  não  são  bonequeiros  profissionais.  Eles  introduzem 
imitações  de  bonecos  nas  peças  de  teatro  (Picasso),  nos  balés  (Léger)  ou  no  cinema 
(Alexandra  Exter).  Os  futuristas  Fortunato  Depero  e  Enrico  Prampolini  trabalharam 
para Vittorio Podrecca, em Roma. Eles fabricaram bonecos inspirando‐se na geometria e 
em  modelos  mecânicos.  Sophie  Taeuber‐Arp  e  Otto  Morach,  no  Teatro  de  Bonecos  de 
Zurique,  esculpiriam  bonecos  dadaístas  e  cubistas,  em  formas  ingênuas,  fazendo  uso 
sem  constrangimento  de  cores  puras,  vivas  e  trazendo  a  marca  das  ferramentas 
utilizadas. Alguns deles fundaram seu próprio teatro de bonecos, outros se engajaram 
nos  teatros  reivindicando  uma  identidade  artística.  Seja  como  for,  a  participação  de 
grandes  artistas  foi  pequena,  seus  espetáculos  tiveram  uma  vida  efêmera,  e  o  grande 
público ficou indiferente a estes valores artísticos.  
Outros ainda adaptaram a tradição a seus projetos artísticos. Assim, em Viena, o 
pintor e ilustrador Richard Teschner, se inspira em bonecos do wayang golek de Java, 
para encenar lendas indonesianas e criar seus próprios personagens. Na Rússia, Ivan e 
Nina  Efimov  perpetuam  o  antigo  teatro  de  Petrouchka  e  experimentam  magníficas 
esculturas em movimento em adaptações de fábulas de Krylov e peças de Shakespeare. 
Josef  Skupa,  na  Checoslováquia,  retoma  com  felicidade  a  tradição  do  personagem 
cômico e cria dois novos personagens – Spejbl e Hurvinek ‐ que reatam com a tradição 
dos  jogos de  palavras  e  outros  trocadilhos  para  ironizar os comportamentos pequeno‐
burgueses. Uma abordagem intuitiva e um interesse pela plástica vão direcionar esses 
poucos artistas ao universo do teatro de bonecos, sem que eles tenham conhecimento de 
seu funcionamento dramático.  
Em  Munique,  Paul  Brann,  é  talvez  a  única  exceção.  Homem  de  letras, 
colaborador  de  Max  Reinhardt,  ele  é  seduzido  pela  harmonia  artificial  que  reina  no 
teatro de bonecos a fim de criar um verdadeiro teatro artístico. Ele se volta assim para o 
boneco na esperança de encontrar ali a unidade dos meios de expressão que ele anseia 
encontrar no teatro. Brann monta velhas peças de bonecos – mistérios na época de Natal 
e  o  Doutor  Fausto  ‐,  depois  amplia  seu  repertório  com  peças  do  repertório 
contemporâneo (Schnitzler, Maeterlinck), espetáculos musicais, sem desprezar as obras 
pós‐românticas do conde Franz Pocci. Ele utiliza bonecos estilizados que evocam o ser 
humano  com  uma  força  de  expressão  espantosa,  acentuando  às  vezes  o  traço  para 
mostrar o artifício do boneco enquanto intérprete. Mais moderado que os vanguardistas, 
suas idéias e seu teatro encontraram um eco muito favorável junto ao grande público e 
bonequeiros  da  nova  geração.  Seu  sucesso  foi  total.  Brann  exerceu  uma  grande 
influência  e  foi  seguido  por  inúmeros  bonequeiros  poloneses,  checos,  rumenos, 
iugoslavos e americanos.  

11 
METAMORFOSES 

O ator ideal  

Ao tentar definir a natureza artificial do boneco, Brann, após Maeterlick e Craig, 
aborda  inevitavelmente  a  questão  do  ator  ideal.  Ele  contribuiu  para  esta  reflexão 
levantada  por  tantos  grandes  renovadores  do  teatro,  artistas  e  poetas  (Maeterlinck, 
Ghelderode,  Garcia  Lorca),  para  quem  o  boneco  é  um  fenômeno  misterioso,  um  tanto 
marginal, mas oh! quão fascinante. O boneco aparece aí honrado e adulado. De fato são 
inúmeros  os  bonequeiros  a  considerar  que  o  boneco  só  encontrará  sua  salvação 
respeitando as convenções do teatro clássico, tanto no que concerne ao espaço cênico, ao 
jogo,  quanto  no  tema  do  espetáculo.  Após  anos  de  vãs  tentativas  e  discussões,  Craig 
renega  sua  “super‐marionete”  e  tributa  ao  ator  seus  agradecimentos.  Sua  teoria  resta 
inegavelmente  como  um  ponto  de  referência,  tanto  para  seus  partidários  quanto  para 
seus  detratores.  Entre  estes  últimos,  Julia  Slonimska,  sob  a  influência  de  Evreinov, 
empreende com um grupo de amigos a reconstituição de um teatro de feira popular do 
século  XVII.  Numa  revista  de  São  Petersburgo,  ela  afirma  a  necessidade  do  teatro  de 
bonecos  enquanto  gênero  independente:  O  elemento  essencial  do  teatro  –  o  movimento  – 
cristalizou‐se  em  estado  puro  no  teatro  de  bonecos.  O  boneco  propõe  uma  forma  de  teatro  sem 
elementos  de  corporeidade.  Do  mesmo  modo  que  os  signos  algébricos  substituem  grandezas 
numéricas determinadas, o corpo fictício do boneco substitui o corpo real do homem. O lugar do 
boneco no teatro lembra o papel dos números infinitamente pequenos na matemática ‐ é como se o 
boneco  integrasse  os  fenômenos  complicados  do  teatro  mostrando  nele  as  formas  originais,  as 
formas primitivas.4 
Slonimska  opõe‐se  radicalmente  a  Craig.  Segundo  ela,  o  ator  é  tão  necessário 
quanto o boneco, um e outro trazendo ao teatro valores diferentes: Os métodos de criação 
do ator e do boneco são quase antípodas um do outro, o que exclui toda possibilidade de inveja e 
de rivalidade. O ator, em cena, realiza sua concepção por meio de seu corpo e lhe dá assim sua cor 
pessoal.  O  boneco  vai  do  particular  ao  geral,  mostrando  no  cruzamento  dos  fenômenos  um 
motivo eterno, essencial. A criação do boneco é uma síntese artística, a criação do ator é a análise 
de um personagem poético. Foi essa diferença fundamental que permitiu comparar o ator real ao 
ator fictício. No imenso mundo do teatro, o ator e o boneco são tão indispensáveis quanto o são 
estes dois métodos de pesquisa, a análise e a síntese 5,no mundo da ciência. 
Nina  Simonovitch  Efimova,  por  seu  lado,  opta  pelo  boneco  de  luva,  mais  de 
acordo com a tradição do teatro de bonecos popular russo. Sua força artística é ser uma 
escultura  e  o  teatro  de  bonecos  uma  “escultura  em  movimento”.  Por  isso,  ela 
desenvolve  as  capacidades  expressivas  do  boneco,  seu  gesto  e  seu  movimento.  Para 
afirmar a superioridade do teatro de bonecos, ela não pode evitar compará‐lo ao teatro 
de atores porque eles mantêm as mesmas relações que o rico e o pobre da parábola do 
rico e de Lázaro. Agonizante, um rico se dirige a um pobre miserável: “Mergulhe a ponta 
de teu dedo na água para me refrescar a língua”. As pesquisas dos modernistas confirmam a 
verdade  dessa  parábola:  “O  teatro  de  atores  também  chega  a  um  dado  limite  e  clama  pelo 
                                                 
4 Julia Slonimska. Marioneika (O boneco) Apollon, São Petersburgo, 1916, no.3 
5 Julia Slonimska. Marioneika (O boneco) Apollon, São Petersburgo, 1916, no.3 

12 
PREMISSAS 

boneco:“Refresque‐me, purifique‐meʺ! Você fala sério quando fala de igualdade entre o teatro de 
bonecos e o teatro de pessoas? E não se trata só de igualdade (compreendida como fraternidade)? 
Mas ainda não se sabe em que lábios vai aparecer um sorriso de indulgência6. 
Efimova  superestima  as  qualidades  do  boneco,  como  muitos  outros,  mas  sua 
tomada de posição me parece justificada. O teatro, com freqüência recorre ao boneco em 
busca  de  novas  fontes  de  energia  criadora.  Efimova  se  concentra  nas  capacidades 
expressivas do boneco e será nesse espírito que desenvolverá suas criações.  
Estas reflexões nos conduzem ao reconhecimento da particularidade do boneco. 
A esse respeito, a escola formal de Praga, na pessoa de Otakar Zich e de Petr Bogatyrev, 
estuda  a  linguagem  específica  do  teatro  de  bonecos.  Zich  analisa  o  efeito  produzido 
pelo boneco sobre o público e conclui que ele se situa em dois níveis: Nós consideramos os 
bonecos como bonecos, o que quer dizer que ressaltamos sua natureza inerte. Para nós ela é real, 
nós  a  tomamos  a  sério.  O  que  implica  em  que,  por  isso  mesmo,  não  podemos  levar  a  sério  as 
palavras e os gestos dos bonecos; “suas marcas de vida”, a nossos olhos, são cômicas, grotescas. O 
fato de que os bonecos sejam pequenos, rígidos, ao menos em parte (o rosto, o corpo) e que isto 
torna seus gestos estranhos, “de madeira”, também reforça a impressão cômica. Não é um cômico 
vulgar,  mas  talvez  um  humor  sutil  que  se  destila  desses  pequenos  personagens,  que  se 
comportam  em  aparência  como  seres  humanos  vivos.  Nós  os  consideramos  como  bonecos, 
enquanto  eles  querem  que  nós  os  tratemos  como  humanos,  e  é  isso  justamente  que  nos  traz 
satisfação.  Sabemos  que  é  este  mesmo  o  efeito  produzido  pelos  bonecos.  (...)  A  impressão  de 
inércia  dada  pelos  bonecos  passa  então  ao  segundo  plano  ao  gerar  uma  sensação  de  algo 
inexplicável, de um enigma que nos enche de espanto. Os bonecos nos fazem então o efeito de um 
mistério.7  
Zich constrói sua análise a partir dos espetáculos de bonecos populares que pôde 
ver e emite hipóteses sobre o futuro do teatro de bonecos, que concebe sob a forma de 
uma  estilização  plástica:  Nós  dissemos  que  no  primeiro  caso  consideramos  os  bonecos  como 
uma  matéria  inerte,  que  suas  “marcas  de  vida”  não  nos  causam  grande  impressão,  quer  sejam 
cômicas  ou  grotescas.  A  estilização  que  corresponde  a  essa  concepção  do  boneco  é  o  cômico 
plástico, ou seja, uma caricatura plástica. Para o artista, a plástica se situa em todo lugar. Um 
outro tipo de estilização pode produzir um novo tipo de teatro de bonecos, se ele se apóia sobre as 
artes plásticas sólidas. A análise acima mostrou que nós levamos muito a sério as marcas de vida 
dos bonecos, que são marcas de um gênero particular (...) Se fosse impossível, se essa tomada de 
consciência  se  impusesse  demais  a  nós,  isso  poderia  dar  nascimento,  como  vimos,  a  um 
sentimento de animosidade ou de horror. Mas se esquecemos a inércia dos bonecos, e seu pequeno 
tamanho contribui para que a esqueçamos, não resta mais do que o sentimento de um enigma: os 
bonecos  tornam‐se  misteriosos  e  nos  aparecem  mesmo  como  seres  sobrenaturais.  A  estilização 

                                                 
6 Nina  J.  Simonovitch‐Efimova.  Zapiski  Petruchetchnika  (As  notas  de  um  tocador  de  Petrouchka)   
Gosudarstvennoë Izdatelstvo, Moscou‐Leningrado, 1925, p. 10 
 Otakar Zich, Loutkové Divadlo (O teatro de bonecos), Drobné umeni‐Vytvamé snahy. Praga, 1923, no. 4. 
7

Ver também Frantisek Sokol, Svet loutkového divadla  (O universo do boneco), Albatros, Praga, 1987, p.26. 
 

13 
METAMORFOSES 

plástica dos bonecos deve levar em conta sua tendência à desmaterialização, e ela pode chegar a 
isso com meios anti‐realistas. O boneco se tornará então o símbolo de um personagem, não de um 
personagem particular, mas de um personagem geral, o que pode corresponder a uma tendência 
anti‐realista de estilização. Se no primeiro caso o boneco era uma caricatura plástica, no segundo 
ele é o símbolo plástico de um personagem geral8. 
Outros teóricos além de Zich se interessam pela equivalência entre boneco e ator. 
Para  muitos, o teatro  de  bonecos não passa de um substituto do teatro de  atores,  e  só 
poderá  ganhar  sua  independência  como  gênero  dramático  ao  se  comparar  com  este 
último.  Na  Rússia,  Petr  Bogatyrev,  folclorista  e  semiólogo,  colabora  com  os  teóricos 
checos  e  critica  severamente  Zich: Otakar Zich comete um erro fundamental ao recusar ver 
no teatro de bonecos um sistema de signos independente sem o qual não se poderia compreender, 
de fato, nenhuma obra artística. Todas as observações de Zich sobre o teatro de bonecos podem se 
aplicar sem problema a todas as artes... O erro fundamental de Otakar Zich, segundo nosso ponto 
de vista, é de não admitir este sistema de signos enquanto tal, sui  generis, e de compará‐lo ao 
jogo  dos  atores  vivos.  Ora,  se  tomarmos  o  sistema  de  signos  dos  atores  vivos  na  cena  não  por 
signos de teatro, mas por signos da verdadeira vida, teríamos a mesma impressão de Zich quando 
ele observava bonecos.9  
O interesse da escola de Praga pelo boneco é confirmado pelos estudos feitos na 
Alemanha  durante  o  entre‐guerras.  Eles  se  apóiam  na  estética  subjetiva  de  Max 
Schassler e em estudos fenomenológicos. O boneco é percebido como um substituto do 
personagem. Ele interpreta um papel e pode pretender tornar‐se um sujeito cênico. Esta 
corrente  aceita  a  especificidade  do  boneco,  suas  qualidades  e  seus  limites  para  definir 
suas capacidades expressivas. A obra de Lothar Buschmeyer, Die Kunst des Puppenspiels 
(1931), é um estudo extremamente detalhado disso. Ele situa o teatro de bonecos na arte 
teatral e  toma o boneco  como  objeto de estudo porque ele “é a base material de qualquer 
análise estética e (que) ao se concentrar a atenção sobre ele, pode‐se definir os limites do gênero 
inteiro”.  Os  limites  são  definidos  pela  vontade  do  artista  ou  por  sua  imaginação, 
qualquer  que  seja  a  natureza  do  boneco.  Se  não  busca  produzir  voluntariamente  outros 
efeitos,  o  teatro  de  bonecos  é  sempre  cômico.  Isso  diz  respeito  a  seu  caráter  esquemático,  a  seu 
simbolismo e a seu primitivismo.10  
Todos  os  bonequeiros  estariam  de  acordo  com  esta  análise  um  tanto  quanto 
redutora?  Fora  do  cômico,  nenhuma  salvação?  Buschmeyer  descreve,  com  efeito,  os 
diferentes  tipos  de  bonecos  em  função  de  critérios  estéticos  tais  como  o  trágico,  o 
sublime,  a  sátira  burlesca  e  o  humor,  depois  segundo  diversos  gêneros  literários  tais 
como o conto, a lenda, a fábula, o mito e o mistério. Em resultado de sua análise conclui 
que, enquanto intérpretes, os bonecos são bastante universais, à exceção do boneco de 
luva que convém melhor, segundo ele, ao burlesco e ao humor. É fácil imaginar que os 
bonequeiros  fizeram  pouco  caso  do  estudo  subjetivo  de  Buschmeyer  e  que  ele  não 

                                                 
8 Frantisek Sokol, Svet loutkového divadla  (O universo do boneco), Albatros, Praga, 1987, p.26‐27. 
9 Peter Boagatyrev. Lidovle divadlo ceske a slovenske  (O teatro popular checo e eslovaco). Borovy, Praga,   1940.  
10  Lothar Buschmeyer. Die Kunst des Puppenspiels (A arte do boneco). Erfurt, 1931, p. 164‐165. 

14 
PREMISSAS 

apresenta  interesse  muito  maior  hoje  para  estudar  o  método  pregado  pelo  autor. 
Buschmeyer toma como base de seu raciocínio a idéia de que o boneco e seu gestual são 
imutáveis,  e  distingue  quatro  tipos  de  bonecos:  o  boneco  de  luva,  o  boneco  de  fio,  o 
boneco de vara e as figuras planas das sombras. O tema do espetáculo teatral deve ser 
adaptado  às  capacidades  expressivas  de  cada  tipo.  Assim,  nos  anos  30,  os  próprios 
teóricos,  sem  falar  dos  bonequeiros,  partem  da  idéia  de  que  o  boneco  é  o  elemento 
essencial  e  que  o  repertório  não  é  mais  do  que  a  resultante  de  suas  capacidades  de 
expressão. Os teóricos são incapazes de imaginar a situação inversa, ou seja, que o tema 
escolhido pelo artista possa determinar a escolha dos modos de expressão.  
Fritz  Eichler reduz ainda mais seu campo  de pesquisa. Como a mão constitui a 
alma ou o centro do boneco de luva, falando propriamente, Eichler considera esse tipo 
de boneco como o prolongamento da expressão do ator. Para ele, a manipulação de um 
boneco de luva é uma variante da pantomima e perpetua o jogo do antigo mímico. Um 
sentimento  compartilhado  pelos  bonequeiros  que  garantem  uma  tradição  do 
personagem  cômico.  Max  Jacob,  da  trupe  do  Hohnsteiner,  declara  que  o  próprio 
bonequeiro  precisa  se  sentir  Kasperle  para  obter  bons  resultados.  O  que  autoriza 
visivelmente Eichler a dizer que o boneco de luva não é um boneco, e que o verdadeiro 
boneco,  é  aquele  que  joga  afastado  de  seu  animador  e  possui  suas  próprias  leis 
mecânicas,  é  a  marionete.  Eichler  lamenta,  com  efeito,  que  um  meio  de  expressão 
dramática que apresenta tamanho interesse tenha sido, durante tantos anos, submetido 
às  convenções  do  teatro  de  atores  e  que,  além  disso,  os  marionetistas  alemães 
acreditavam dever imitar. Ele propõe redefinir o estilo da marionete: A qualidade artística 
da  marionete  reside  no  acento  posto  sobre  seu  próprio  caráter  específico.  Para  atingir  essa 
qualidade,  é  preciso  obter  o  máximo  de  expressão  própria  à  marionete.  Como  o  ator  do  teatro 
“vivo”, é ela o ponto central e o problema principal. As tarefas do ator se deslocam do sujeito ao 
objeto, do elemento pessoal ao elemento impessoal e supra‐pessoal. Toda a subjetividade do jogo 
do ator, todas suas grandes possibilidades e sua ação direta desaparecem. O caráter do jogo não é 
mais  subjetivo,  ele  é  objetivo  e  passivo,  ele  não  é  direto  e  vital,  mas  indireto  e  objetivado.  O 
boneco  durante  o  jogo  não  vive  a  vida  do  homem,  mas  sua  própria  vida  mecânica.  Todas  as 
emoções às quais o jogo deve dar uma forma artística são expostas de uma maneira desumanizada 
e estilizada por um personagem totalmente factício. 11  
Partindo das idéias de Kleist para proceder a uma análise teórica da marionete, 
Eichler  se  aproxima  sensivelmente  de  Schlemmer  e  de  seus  estudos  sobre  as  relações 
entre espaço e ator na Bauhaus. Eichler estabelece uma ponte entre a especificidade do 
teatro de bonecos e os postulados da vanguarda.  
Da teoria à prática 

A história nos ensina que os comportamentos e a criação dos artistas são muito 
raramente  influenciados  pelos  manifestos  artísticos,  as  interpretações  e  os  postulados 
dos  teóricos.  Além  disso,  parece  pouco  provável  que  bonequeiros,  mesmo  alemães 
                                                 
 Fritz Eichler. Das Wesen des Handpuppen und Marionettenspiels (A natureza do boneco de luva e a marionete). 
11

Emsdetten, 1937, p. 27 

15 
METAMORFOSES 

como Fuhonny e Max Jacob, eles próprios engajados numa reflexão estética tenham lido 
assiduamente  os  estudos  de  Buschmeyer  e  de  Eichler.  No  entanto,  é  certo  que  os 
apresentadores  de  bonecos  do  mundo  inteiro  sentiram  confusamente  a  presença  de 
novas tendências e se consideraram, de fato, como os criadores de um novo teatro. Sua 
visão  foi  modelada  pelo  teatro  clássico  mesmo  se  a  necessidade  de  aperfeiçoá‐lo  e  de 
fazer  dele  uma  arte  se  impôs  por  si  mesma.  Para  isso,  era  fundamental  que  tivessem 
consciência  da  especificidade  do  boneco  e  do  teatro  de  bonecos  enquanto  gênero 
dramático.  A  abertura  da  arte  moderna  a  uma  estética  subjetiva  se  metamorfoseia,  no 
seio  do  teatro  de  bonecos,  numa  poética  normativa  quase  aristotélica.  Os  teóricos  do 
teatro de bonecos e os bonequeiros sentiram a mesma necessidade de codificar o teatro 
de  bonecos  enquanto  gênero,  definir  os  valores  estéticos  e  servir  a  sua  arte.  Um 
paradoxo a mais! Uma decisão espantosa nessa primeira parte do século vinte, de fato 
contestadora face às regras e códigos. Por outro lado, é facilmente compreensível que os 
novos bonequeiros, artistas ou neófitos, evoquem tanto a qualidade estética e teatral de 
sua  arte  dado  o  atraso  a  cobrir.  Aristóteles  não  leva  em  conta  o  teatro  de  bonecos  em 
suas  reflexões  sobre  a  natureza  da  arte  dramática,  e  outros  após  ele  também  não.  À 
exceção  de  algumas  metáforas ou  resenhas  às  vezes  zombeteiras,  o  boneco  não  teve  o 
dom de provocar os literatos a elaborar uma teoria estética. Os ensaios de Samuel Foote, 
Heinrich von Kleist, Goerge Sand e Charles Magnin se atêm a alguns aspectos do tema 
mas não podem rivalizar com a imensa literatura consagrada ao teatro e aos atores.  
Por  outro  lado,  a  maior  parte  das  reflexões  esboçadas  pelos  teóricos  tem  um 
caráter  puramente  especulativo,  e  nesse  campo  os  bonequeiros  manifestam  com 
freqüência  interesse  por  tais  profissões  de  fé,  bem  anteriores  à  aparição  de  novas 
correntes.  Única  exceção,  Vladimir  Sokolov,  ator  e  encenador  do  Teatro  Alexandre 
Tairov de Moscou. Sob a influência das idéias de Craig e aluno de Tairov, ele se opõe ao 
realismo  na  arte  e  no  teatro  de  bonecos.  Fascinado  pelas  particularidades  formais  do 
boneco, busca extrair dele um estilo de jogo. Segundo ele, existem duas possibilidade de 
se  chegar  a  isso:  um  teatro  burlesco,  excêntrico,  e  um  teatro  de  dinâmica  musical:  Em 
meu teatro, numa cena, uma figura perde literalmente a cabeça ao ver sua bem amada a bordo de 
um dirigível. Uma outra figura poderia ter duas cabeças, uma para o domingo, outra para os dias 
de semana. Podemos ter figuras sem tronco, compostas unicamente de braços e pernas, e outra 
com vários braços fixados ao tronco (foi assim que representei um empregado ou garçom de um 
restaurante que serve seus clientes com muita rapidez, sempre pronto a responder ao chamado). 
Numa  cena  de Uma  Lágrima  de  Diabo, de  Théophile  Gautier, frente  aos olhos  de um jovem 
ainda inexperiente nas coisas do amor sucede‐se um verdadeiro jogo amoroso do qual participam 
os objetos que o cercam. Um sofá aperta com ternura uma cadeira em seus braços, uma escova 
seduz  um  pente,  e  duas  lâmpadas  acesas  se  consomem  de  amor  antes  de  se  incendiarem  numa 
relação amorosa.  
A esse teatro de excentricidade burlesca Sokolov prefere seu “teatro de dinâmica 
musical”: Eu o chamo de caminho do verdadeiro movimento. Desaparece toda aproximação, por 
mais  ínfima  que  seja,  com  qualquer  forma  humana:  o  boneco  se  libera  da  própria  idéia  de 
figuração objetiva. Talvez isso faça desaparecer ao mesmo tempo a palavra “boneco”, nascida por 
acaso num pequeno burgo da França. Nesse tipo de espetáculo, a imagem se exprime com formas 

16 
PREMISSAS 

conhecidas  ou  abstratas,  planos,  linhas  ou  grupos  de  pontos,  e  também  com  variações  de 
iluminação  e  de  cor.  Nasce  assim  um  conjunto  de  movimentos  que  se  penetram  e  se  fundem 
incansavelmente, que  tendem  em permanência a se separar, que se  modificam indefinidamente. 
Quanto mais um ritmo musical é necessário para o movimento do boneco em geral, mais ele se 
torna uma lei fundamental, um princípio essencial nesse teatro. É a última conseqüência desse 
teatro  que  chamo  de  teatro  de  dinâmica  musical.  Ele  pede  a  elaboração  e  a  definição  de  um 
contraponto  dinâmico  preciso  com  todas  as  regras  a  ele  relacionadas.  Assim,  em  meu  teatro 
apresento  a  sinfonia  de  Tchaikovski  Francesca  da  Rimini.  Do  mesmo  modo,  não  se  teria 
nenhum problema em representar simbolicamente a sinfonia dinâmica de uma cidade moderna, 
de fazer existir todas as suas particularidades, seu movimento e todas as suas forças elementares. 
12  

A idéia do teatro de dinâmica musical é totalmente original. Pode‐se estabelecer 
um  longínquo  paralelo  com  a  pintura  abstrata.  De  todo  modo,  seus  contemporâneos 
vêem  em  suas  idéias  uma  prova  da  originalidade  da  “jovem  arte  dramática  russa” 
oposta ao teatro de ilusão, sem imaginar que elas possam estar diretamente ligadas ao 
teatro  de  bonecos.  Extraídas  de  sua  prática  teatral  e  experimentadas  nas  inúmeras 
turnês do teatro Tairov e de seu próprio teatro de marionetes, as idéias de Sokolov vão 
ser  mais  conhecidas  no  estrangeiro  que  na  Rússia.  Os  alemães,  aliás,  propõem‐lhe 
publicá‐las em 1923.  
Em conclusão, não seria lógico que os artistas e os bonequeiros definissem com 
prioridade a função artística de seu teatro? Nosso século é, sem dúvida, o mais rico e o 
mais promissor que se lhes oferece para formular e experimentar novos preceitos, como 
o  de  definir  a  essência  artística  (eidética  segundo  a  fenomenologia)  do  boneco  e 
introduzir  em sua linguagem a noção de sua especificidade. Esse encaminhamento foi 
assumido, primeiramente,  no  sentido  de  uma  norma  obrigatória,  depois  como  critério 
de qualidade artística. Mas na mesma rapidez com que essa definição foi elaborada, ela 
não  correria  o  risco  de  restringir  e  de  limitar  os  bonequeiros?  Assim  como  a  lei  que  a 
exprime? Felizmente, as leis não são feitas para serem infringidas? Cada artista cria seu 
próprio  sistema  e  sua  hierarquia  de  valores estéticos. Os bonequeiros, na sua maioria, 
aceitaram  a  noção  de  “especificidade  do  boneco”,  pedra  filosofal  da  perfeição  de  sua 
arte.  O  modernismo  estaria  então  à  medida  do  teatro  de  bonecos?  Do  boneco?  Ou  ele 
próprio  não  é  limitado?  Os  bonequeiros,  de  fato,  não  anteciparam  a  transformação  de 
sua  arte.  Sua  primeira  preocupação  foi  assegurar  um  status  artístico  pela  criação  de 
uma  teoria  própria,  por  uma  real  integração  na  cultura  teatral  e  pela  vontade  de 
adquirir uma formação profissional.  
A PROFISSIONALIZAÇÃO 

Para  se  evadir  da  arte  popular  e  de  um  certo  diletantismo,  o  teatro  de  bonecos 
experimenta  a  necessidade  de  se  confrontar  a  profissionais,  de  se  enriquecer  de  suas 
experiências,  de  aperfeiçoar  seu  ofício  e  de  inscrever‐se  na  história.  Assim  Signoret, 
                                                 
 Vladimir  Sokolov,  Gedanken  zu  meinem  Theater  musikalischer  Dynamik  (Pensamentos  sobre  meu  teatro  de 
12

dinâmica musical) Das Puppentheater, 1923, Heft 3,p. 36‐38. 

17 
METAMORFOSES 

Efimova e Brann se profissionalizam com sua prática teatral e no contato com o público. 
O  teatro  de  atores  lhes  traz  um  conhecimento  e  um  saber  teatral.  O  boneco  deve 
mergulhar na água sagrada da cultura teatral para receber o batismo e uma consagração 
artística? Este ritual foi cumprido, na França, por um diretor de teatro: Gaston Baty e na 
União Soviética, por Sergueï Obraztsov, jovem ator do teatro de Arte de Moscou. Eles 
jogaram  um  papel  essencial  nas  metamorfoses  do  teatro  de  bonecos  e  exerceram  uma 
grande influência sobre o teatro de bonecos contemporâneo; Baty na França, Obraztsov 
em escala mundial.  
Baty: uma lenda francesa 

Baty  é  uma  “lenda”  do  teatro  de  bonecos  francês.  Já  no  final  de  sua  vida, 
decepcionado  com  o  Teatro,  ele  se  volta  para  o  teatro  de  bonecos  levando‐lhe  sua 
experiência  teatral.  Como  Craig,  ele  se  obstina  durante  vários  anos  em  realizar  um 
teatro artístico de bonecos sem sucesso aparente. Ele não deixa de ser um personagem 
simbólico enquanto diretor de teatro no auge de sua glória, da qual os bonequeiros 
vão  se  apropriar  na  continuação.  Literato  de  formação,  Baty  manifesta  muito 
cedo  seu  interesse  pelo  boneco.  Foi  sem  dúvida  em  Lyon,  onde  fez  seus  estudos  nos 
anos  vinte,  que  descobriu  sua  tradição,  as  representações  de  Natal  e  o  Teatro  de 
Guignol.  Suas  pesquisas  dão  origem  a  várias  obras,  das  quais  uma  é  consagrada  ao 
teatro  de  bonecos  ambulante  na  França  no  século  XIX  e  ao  seu  repertório.  Primeiro 
busca perpetuar esta arte popular caída em desuso, acolhe bonequeiros tradicionais no 
Teatro  Montparnasse  e  colabora  com  a  União  Nacional  e  Corporativa  dos 
Apresentadores de Marionetes, no seio da qual estabelece laços de amizade com vários 
deles,  entre  os  quais,  Marcel  Temporal,  arquiteto  e  inspirador  dessa  união.  Foi  só  em 
1942,  ao  abandonar  a  direção  do  Teatro  Montparnasse,  que  Baty  introduziu  o  boneco 
em  cena.  Desenvolve  experiência  em  laboratório  a  fim  de  estudar  todas  as  suas 
capacidades  expressivas.  Durante  meses,  com  um  grupo  de  seis  pessoas,  dirige  os 
ensaios de uma peça de Maurice Sand, Nous Dinons chez le Colonel (Nós Jantamos na Casa 
do Coronel)  e  consagra  um  ano  inteiro  ao  Médico à Força  para  finalmente  só  fazer  uma 
única apresentação. André‐Charles Gervais, membro de seu primeiro grupo e autor de 
uma obra sobre o teatro de bonecos francês nos anos 20 e 30, evoca assim os métodos de 
Baty:  Nós  pesquisamos  três  anos.  Nossa  equipe  de  seis  entusiastas,  animados  pelo  maior 
entusiasta  de  todos,  pacientemente  arrancou  do  desconhecido  os  primeiros  elementos  de  uma 
técnica  cuja  primeira  parte  desta  obra  dava  uma  idéia.  Durante  dias  inteiros,  sob  o  olhar 
benevolente, mas impiedoso de Gaston Baty, tentamos fazer exprimir, através de um gesto, um 
novo sentimento de nossos bonecos 13. 
Baty, sem justificar sua escolha, utiliza bonecos de luva, tornados popularizados 
pelo Teatro Lyonês de Guignol. Seriam eles mais teatrais que a marionete? Pode‐se ver 
em sua escolha o triunfo da escola teórica francesa representada por George Sand sobre 
a  estética  alemã  que  utiliza  habilmente  as  idéias  de  Kleist  para  elogiar  os  méritos  da 

                                                 
13. André‐Charles Gervais. Bonecos e bonequeiros da França. Bordas, Paris, 1947, p. 114 

18 
PREMISSAS 

marionete, boneco ideal? Gervais confirma a idéia de Baty: No mundo dos bonecos todas as 
inverossimilhanças são permitidas porque nada é real, todo o prazer estético é feito de concessões. 
Os bonecos permitem atingir este realismo superior, mais verdadeiro que o verdadeiro, que é para 
nós o fim de toda arte autêntica14 . 
Baty  une‐se  à  extensa  corte  dos  que  idealizam  o  boneco  e  superestimam  suas 
capacidades. Ele busca antes de tudo produzir uma ilusão cênica e sua admiração pelo 
boneco  não  foi  a  única  razão  de  sua  saída  do  teatro  de  Montparnasse.  Os  crescentes 
conflitos no seio do teatro e a atmosfera da França ocupada o convidam a buscar refúgio 
num  mundo  mais  tranquilo.  Não  por  acaso,  o  último  espetáculo  que  apresenta  ao 
público evoca a Belle Époque do romantismo francês. Trata‐se de La Queue de la Poele (O 
Cabo da Frigideira), espetáculo fantástico, em três atos e cinco quadros, à maneira do Boulevard 
do  Crime  segundo  Marianville,  Sirodin,  Clairville,  os  irmãos  Cogniard  e  outros  clássicos  do 
gênero, representado no pavilhão de Marsan de 2 de maio a 8 de julho de 1944. A  peça  evoca 
personagens  conhecidos  dos  parisienses  dos  anos  20  do  século  XIX,  Robert  Macaire  e 
Bertrand, aos quais Baty acrescenta o elegante parisiense Billembois que sai em viagem 
através  da  velha  França  romântica.  Jean‐Loup  Temporal  nos  esclarece  sobre  a  escolha 
do tema feita por seu mestre, mas não explica o fato de que Baty se volte para o boneco. 
Jamais pretendi que o boneco substitua o ator. Nas oitavas médias do teclado teatral, este lhe é 
sensivelmente  superior.  Mas  quando  se  trata  de  atingir  e  exprimir  os  mitos,  os  seres  irreais,  o 
boneco  é  um  modo  de  expressão  insubstituível  nas  fronteiras,  por  assim  dizer,  e  no 
prolongamento da humanidade15. 
Eis  aqui  um  primeiro  esboço  de  resposta:  “exprimir  o  mito”.  Trata‐se,  claro,  do 
mito de Robert Macaire, que tinha sido representado por Frédérick Lemaître, espécie de 
gentleman‐ladrão  cujas  peripécias  são  pretexto  para  uma  mordaz  sátira  social  e 
suscitam  o  entusiasmo  da  crítica  e  do  público  parisiense.  No  seu  íntimo,  Baty  sonha 
com  um  mundo  melhor  e  encontra  no  boneco  uma  forma  de  liberdade  no  sentido 
amplo do termo. Em março de 1946, ele confia a Henri‐René Lenormand: Faz cinquenta 
anos que morri. É por isso que não quero nem posso me interessar pelo tempo presente. O mundo 
no qual fui feito para viver, é o da liberdade. E só o boneco conhece a liberdade que o teatro perdeu. 
Ele obstinadamente volta as costas para o real. Ele só toma vida dos nossos sonhos. Não se pode 
submetê‐lo, nem fazê‐lo servir. Ele é nossa única salvação. Desta época envenenada, eu não quero 
nem saber 16... 
Após  a  guerra,  com  o  mesmo  grupo  mas  sob  uma  nova  consigna:  Os Bonecos à 
Francesa,  Baty  monta  quatro  outras  peças  entre  as  quais  o  Fausto  popular,  adaptado  e 
criado em 1948, e faz um grande sucesso entre os bonequeiros. Os críticos, cronistas fiéis 
de  suas  encenações,  ficam  perplexos.  Pol  Gaillard  fala  desta  “nova  quimera  de  Gaston 

                                                 
14  André‐Charles Gervais. Bonecos e bonequeiros da França. Bordas, Paris, 1947, p. 12 
   C.  Cezan.”No Palácio do Louvre, graças a Gaston Baty, o boneco conclui uma viagem de três séculos”,  Paris‐
15

Midi, 1º de abril de 1944 
16  Arthur Simon, Gaston Baty teórico do teatro. Edições Klincksieck, Paris, 1972 
 

19 
METAMORFOSES 

Baty” como de uma tentativa infeliz de encontrar seu caminho. Os bonequeiros deram‐
lhe  reconhecimento  a  despeito  do  caráter  literário  de  seu  teatro.  Eles  acolheram  seus 
outros  espetáculos  com  entusiasmo.  Baty,  a  partir  de  então,  vai  estar  do  seu  lado.  Os 
meios e as convenções do teatro de bonecos se encontram enriquecidos pelo exemplo de 
uma encenação perfeita e aspiram a tornar‐se um verdadeiro teatro segundo as regras 
da arte. Infelizmente, os bonequeiros foram praticamente os únicos a se darem conta.  
Os  espetáculos  e  os  métodos  de  trabalho  de  Baty  entram  logo  para  a  história 
graças a seus discípulos Alain Recoing e Jean‐Loup Temporal, que tornam públicas suas 
experiências e proclamam, não sem orgulho, a excelência de seu mestre. Eles irão dirigir, 
na  continuidade,  suas  próprias  trupes.  Temporal  toma  suas  distâncias  em  relação  às 
idéias  de  Baty,  mas  seus  espetáculos  “literários”  dão  prova  de  suas  raízes  comuns. 
Recoing segue também os ensinamentos de seu mestre e resta fiel à técnica do boneco 
de luva, sem dúvida ainda mais impulsionado pela realidade teatral dos anos 60. Baty 
permanece  na  memória  de  todos  os  bonequeiros  franceses  como  o  homem  que  fez  o 
teatro de bonecos se beneficiar de seu profundo saber e de suas competências no campo 
da arte dramática.  
Obraztsov: um mestre inconteste 

Obraztsov vai se engajar nesse mesmo caminho. Suas primeiras experiências de 
ator dramático inspiraram amplamente suas inovações no teatro de bonecos ao assumir, 
em  1930,  a  direção  do  teatro  Central  de  Bonecos  de  Moscou.  Inicia‐se  primeiro  como 
amador e obtém um franco sucesso com seus bonecos que lhe permitem exprimir todos 
os  seus  talentos:  canta  antigas  romanças  russas  e  ciganas,  contrapondo‐as  à  imagem 
provocadora  de  seus  heróis;  o  efeito  cômico  é  garantido.  Além  disso,  seus  estudos  do 
canto,  artes  plásticas  e  sua  prática  teatral  o  prepararam  perfeitamente  para  abraçar  a 
profissão  de  bonequeiro.  Obraztsov  mostra  o  homem  sob  um  aspecto  bem  divertido, 
revelando  um  dom  extraordinário  para  a  observação  da  natureza  e  das  fraquezas 
humanas.  O  homem,  o  personagem  dramático,  está  no  coração  de  seus  interesses. 
Buscando exprimi‐lo com um espírito essencialmente satírico, ele estuda todos os meios 
de expressão. Suas pesquisas sobre o boneco de luva o levam a abandonar, nos anos 20, 
a  roupa  do  boneco  para  pôr  a  mão  sem  nada.  Ele  cria  um  gênero  onde  a  mão  pode 
encarnar personagens, confronta seus bonecos a um objeto, um acessório miniatura ou a 
um  objeto  autêntico.  Afastando‐se  assim  do  verossímil,  a  diversidade  das  funções  da 
matéria cênica o fascina. Cantando frente ao pano A Berceuse de Moussorgsky para um 
bonequinho  chamado  Tiapa,  Obraztsov  mostra  ao  público  seu  antebraço  que  é  ao 
mesmo  tempo  o  corpo  de  Tiapa  e  o  seu.  A  dupla  função  da  matéria  constitui,  para 
Obraztsov,  uma  descoberta  da  essência  do  teatro  de  bonecos.  Ainda  hoje,  o 
funcionamento  cênico  de Tiapa resta  como referência do fenômeno de  dupla visão  ou 
de opalinização no teatro de bonecos.  
Quando  Obraztsov  dirige  o  Teatro  Central  de  Bonecos  de  Moscou,  ele  elabora 
um novo repertório socialista e respeita o realismo socialista, como o testemunham seus 
primeiros  espetáculos  muito  politizados  do  início  dos  anos  30  (a  discriminação  dos 
negros nos Estados Unidos, as greves operárias na Itália, etc.). Oriundo da intelligentzia, 

20 
PREMISSAS 

Obraztsov julga que a revolução é sem dúvida bem fundamentada, como a maioria dos 
artistas da época. Entretanto, ele jamais se pronuncia sobre nenhuma questão de ordem 
política. Desde que ele teve a possibilidade de voltar ao conto, mesmo tratado à moda 
socialista –  À Ordem do Lúcio (1936) ‐, e  à representação dos  valores morais – O Alezan 
segundo Tchekov ‐, ele se libera de um sistema de pensamento político que não é o seu. 
Os  bonecos  de  luva  de  seu  início  introduzem  um  elemento  grotesco,  mas  este  não  é 
suficientemente forte para atenuar o realismo da animação e o da história. O mimetismo 
se  desenvolve  nos  seus  espetáculos  quando  ele  introduz  bonecos  de  vara  (variante 
européia do wayang), melhor adaptados para imitar o homem. A Lâmpada Maravilhosa 
de  Aladim  (1940)  parece  muito  poética  a  inúmeros  críticos,  e  suas  criações  sucessivas 
testemunham  a  que  ponto  este  boneco  parece  corresponder  à  estética  do  realismo 
socialista.  
Recusando‐se  a  considerar  o  boneco  como  uma  escultura  em  movimento, 
insistindo  sobre  sua  função  teatral  enquanto  personagem,  ele  desenvolve 
essencialmente a idéia da especificidade do boneco. Em O Ator e o Boneco, primeira obra 
que  consagra  ao  assunto,  surgida  em  1936,  ele  escreve:  A realidade do boneco se exprime 
por  sua  oposição  direta  à  imitação  do  homem.  Sobre  isto,  estou  em  desacordo  com  meus 
companheiros  de  armas,  bonequeiros  e  pedagogos,  que  por  diversas  razões  consideram  que  o 
boneco  deve  absolutamente  assemelhar‐se  ao  homem  e  que  este  é  o  único  boneco  que  agrada  às 
crianças. Esta semelhança, que faz do boneco uma minúscula figura de museu é apavorante, e de 
todo modo é falsa. A realidade do boneco reside no fato de que por sua natureza ele permanece um 
boneco e está livre da crítica de ser um objeto de museu e do desejo místico que se tem de fazer 
dele  um  ser  humano.  O  mistério  do  boneco  está  na  é  sua  metamorfose  sob  os  olhos  dos 
espectadores em ator de possibilidades infinitas enquanto continua evidentemente se tratando de 
um boneco.17 
As  obrigações  ideológicas  do  Teatro  Central  de  Bonecos  não  lhe  permitem 
desenvolver  sua  teoria  dos  anos  30,  ao  menos  no  que  diz  respeito  aos  espetáculos 
contemporâneos. Quanto mais seu programa de solista faz a unanimidade, tanto mais 
seus espetáculos no Teatro Central são objeto de uma outra atenção e põem em causa a 
estética  adotada.  Isto  não  impede  Obraztsov  de  aparecer,  no  pós‐guerra,  como  um 
mestre  inconteste  do  boneco.  Diretor  artístico  de  uma  trupe  importante,  ele  se  engaja 
num  trabalho  de  tipo  laboratorial,  como  o  faz  Baty,  e  tenta  harmonizar  os  meios  de 
expressão e o tema da peça a fim de obter um espetáculo o mais bem acabado possível. 
Em seus primeiros tempos, o Teatro Central de Bonecos é itinerante. Estimulado 
pela carência de salas de teatro, Obraztsov inventa um dispositivo cênico original para 
cada uma de suas criações. Um princípio que poderia fazer sonhar a todos os diretores, 
e  que  ele  conserva  até  1937  quando  o  Teatro  Central  se  instala  na  praça  Maiakovski, 
com  um  teatro  miniatura  permanente  e  uma  cena  fixa  que  servem  de  base  a  todas  as 
suas  encenações,  muito  diferentes  das  do  período  itinerante.  A  seguir  esse  modesto 
teatro  não  lhe  basta.  Em  1970  o  Estado  lhe  oferece  um  teatro  moderno  no  qual  ele 
                                                 
 Serguei  Obraztsov,  Akter  s  Kukloi  (O  ator  e  o  boneco).  Gosudarstvennoe    Izdatelstvo  Iskusstvo, 
17

Moscou‐Leningrado, 1938, p. 78.  

21 
METAMORFOSES 

próprio define as necessidades técnicas. Encontro aí as razões de seu sucesso e de seu 
fracasso.  O  teatro  compreendia  dois  auditórios.  Na  sala  para  adultos  ele  constrói 
espaços  específicos  para  a  representação  e  coloca  sob  o  chão  e  no  teto  espaços 
reservados para os alto‐falantes permitindo efeitos sonoros e uma estereofonia perfeita. 
Entretanto, Obraztsov utiliza muito pouco os equipamentos desse teatro: eles punham 
um freio à sua imaginação.  
Nascimento de um ofício 

Obraztsov atrai o público pela perfeição de seu jogo e pela qualidade de sua arte. 
Seja em Moscou ou em turnê, os espetáculos do Teatro Central de Bonecos são sempre 
teatrais. Ele põe em prática os fundamentos teóricos elaborados pelo próprio Obraztsov, 
que gosta de comentar e teorizar sua prática para transformá‐la em regras profissionais. 
Minha Profissão, publicado  em  1980,  descreve  sua  tomada  de  consciência  de  um  ofício 
que ele tinha a sensação de estar criando. Suas idéias coincidem, aliás, com o interesse 
que  toda  a  Europa  manifesta  então  pela  especificidade  do  teatro  de  bonecos.  No  5º 
Congresso da UNIMA, que acontece em Bucareste em 1958, ele destacou a importância 
do teatro de bonecos e do lugar ocupado por ele entre os gêneros dramáticos: O homem 
sempre  sentiu  a  necessidade  de  generalizar  os  fenômenos  de  sua  vida  de  uma  maneira 
particularmente expressiva. Assim, o teatro de bonecos deve existir ao lado da sátira e da epopéia 
romântica,  ao  lado  de  Swift  e  de  Homero,  de  Rabelais  e  de  Gogol.  Ele  é  necessário  aos  homens 
enquanto  arte  do  espetáculo  única  em  seu  gênero,  insubstituível.  Nenhum  ator,  com  efeito, 
poderia jamais representar o homem em geral, pela simples razão de que ele próprio é um homem. 
Só o boneco pode fazê‐lo, pela simples razão de que ele não é um. Um boneco animado possui uma 
enorme força de ação, pelo próprio fato de que ele se anima. Mas essa ação perde sua força se o 
boneco, em lugar de representar, deve substituir o homem porque o acumulam de tarefas que o 
ator realiza em cena.18 
 Foi  nesse  critério  que  se  baseou  Obraztsov  ao  longo  de  sua  carreira.  Pode‐se 
acrescentar que seus bonecos têm um caráter de boneco e esse lado boneco agradava ao 
público.  Entretanto,  seu  repertório  permanece  bastante  limitado:  admirável  mestre  da 
ilusão  no  campo  do  conto,  excelente  autor  de  sátiras,  em  particular,  de  espetáculo  de 
variedades – Um Concerto Excepcional (1946) fez o mundo inteiro rir – ele insiste sobre o 
milagre da vida do boneco, sobre a necessidade de provocar o espanto no espectador ao 
ver  esses  bonecos  de  aparência  inerte  possuir  vida  própria  e  evocar  os  problemas  da 
existência.  Esses  bonecos  se  movem  com  perfeição  (um  único  boneco  pode  ser 
manipulado  por  vários  animadores  dissimulados),  dialogam,  mantêm  um  contato 
visual,  olham‐se  uns  aos  outros,  depois  ao  público  de  quem  esperam  uma  reação.  Os 
bonecos de Obraztsov vivem, é incontestável, e o milagre da animação faz a felicidade 
das crianças como dos adultos. Mas eles permanecem no mundo da fábula animal, do 
conto  de  fadas,  da  fábula  satírica,  de  uma  visão  caricatural  da  realidade  cotidiana.  As 

                                                 
18 Sergueï  Obraztsov.  Znaczenie  teatru  lalek  i  jego  miejsce  wsród  innych  rodzajów  sztuki  teatralnej.  (A 
importâancia do teatro de bonecos e seu lugar entre os outros gêneros da arte dramática).  Teatr Lalek, Varsóvia, 
1958, p. 12  

22 
PREMISSAS 

relações  entre  personagens,  os  conflitos  e  as  alianças  são  tratadas  de  tal  maneira  que 
evocam,  segundo  a  crítica  da  época,  os  princípios  de  Stanislavski.  Obraztsov  reagia  a 
isso  com  vigor:  Se  a  fórmula  de  Stanislavski  “eu  numa  situação  complicada”  é  uma  boa 
consigna  para  um  ator, ela  deve  ser  colocada  na  terceira  pessoa  pelo  ator  do  teatro de  bonecos: 
“ele  numa  situação  complicada”  (...)  O  que  é  que  muda  na  psicologia  do  ator  se  em  lugar  da 
palavra “eu” se emprega a palavra ele? Muitas coisas. O ator torna‐se o diretor do papel. Ele vê 
seu herói. Ele o vê realmente. E ele não decide simplesmente a ação física do boneco, ele observa 
também os resultados de seu jogo.19 
A  idéia  de  que  o  ator  é  ao  mesmo  tempo  intérprete  e  diretor  do  papel  ilumina 
muitos aspectos e mistérios da profissão de bonequeiro. Entretanto, por mais justa que 
seja  esta  definição  do  papel  do  ator  marionetista,  os  bonequeiros  dos  anos  60 
consideram  os  espetáculos  de  Obraztsov  como  uma  realização  de  seu  puro  desejo  de 
imitar  o  mundo  dos  homens.  De  minha  parte,  acrescento  tranqüilamente  que  essa 
necessária  dispersão  da  atenção  do  bonequeiro  sobre  varias  ações  simultâneas  marca 
toda  a  diferença  entre  o  jogo  do  bonequeiro  e  o  do  ator.  Obraztsov  pensa  que  o 
bonequeiro  é  o  próprio  diretor  de  seu  boneco,  isto  é,  que  ele  cria  seu  papel  enquanto 
observa  o  resultado  de  seu  jogo.  Trata‐se  aí  de  um  outro  aspecto  dessa  relação.  Eu 
constatei  que a  possibilidade  de identificação de um bonequeiro com  seu  personagem 
restava muito limitada.  
Uma nova profissão 

Baty  e  Obraztsov  trazem  ao  teatro  de  bonecos  sua  experiência  e  sua  prática  do 
Teatro. Com regularidade são encenadas obras literárias, dramáticas de preferência, nas 
quais  o  boneco  torna‐se  um  sujeito  cênico  que  prolonga  a  existência  do  personagem 
dramático.  De  outro  lado,  o  profissionalismo  prospera  no  teatro  de  bonecos  e  os 
bonequeiros,  para  alcançar  o  sucesso  tão  esperado,  se  limitam  à  aquisição  de 
capacidade  para  interpretar  o  texto,  organizar  o  espaço  cênico  em  colaboração  com  a 
cenografia,  a  ensaiar  e  experimentar  para  permitir  ao  ator  interpretar  seu  papel  e 
aperfeiçoar  sua  atuação.  Quaisquer  que  sejam  as  críticas  que  se  possa  formular  com 
respeito  aos erros  artísticos de Baty e aos meandros estéticos do  realismo socialista  ao 
qual  Obraztsov  às  vezes  cede,  não  resta  nenhuma  dúvida  que  esses  dois  artistas 
trouxeram  benefícios  ao  boneco  com  seu  profissionalismo,  inauguraram  uma  nova 
profissão e contribuíram enormemente para a metamorfose do teatro de bonecos. 
As  mudanças  das  políticas  culturais  de  vários  países  após  a  Segunda  Guerra 
Mundial trouxeram de volta ao debate o problema das tradições e das particularidades 
nacionais. Na Checoslováquia, as relações entre teoria e prática influíram na renovação 
do teatro de bonecos. Erik Kolar volta ao tema que opôs, nos anos 30, Nina Efimova e 
Obraztsov.  Kolar  segue  o  ponto  de  vista  de  Obraztsov  e  rejeita  a  noção  do  teatro  de 
bonecos enquanto arte plástica. Ele defende a tese de que o boneco responde às leis da 
arte  dramática:  As  convenções  da arte dramática dizem respeito do mesmo modo ao teatro de 

                                                 
19 Serguei Obraztsov. Moïa profesia (Minha profissão) . Iskusstvo, Moscou, 1980, p.388. 

23 
METAMORFOSES 

bonecos,  em  particular  a  regra  do  jogo  cênico  (físico  e  verbal),  a  importância  do  conflito,  a 
necessidade  de  produzir  um  efeito  emocional  e  de  fazer  passar  uma  mensagem  intelectual,  o 
desenvolvimento  da  ação,  o  caráter  bem  marcado  dos  personagens,  expresso,  sobretudo,  pelas 
ações mas em geral explicado por uma linguagem específica. Do que foi dito, deduzo que o teatro 
de bonecos enquadra‐se no campo do teatro. E ainda que não considere o teatro de bonecos um 
ramo das artes plásticas, não posso negar que nele as artes plásticas jogam uma papel muito mais 
importante do que no teatro de atores. No teatro de bonecos, com efeito, o personagem dramático 
é em parte  representado por uma voz humana e  por  um artefato plástico em  movimento. Dado 
que no teatro de bonecos – como no teatro de atores ‐, as artes plásticas são um elemento auxiliar 
submisso às intenções do diretor, elas jogam o papel de uma arte utilitária. 20 
Ator ou bonequeiro? 

Este desejo de elevar a marionete na hierarquia das artes é retomado pela maioria 
dos artistas. De fato, a análise das estruturas do teatro de bonecos e a abordagem teórica 
do  jogo  encontram  um  novo  campo  de  exploração.  A  concepção  do  teatro  de  bonecos 
enquanto  teatro  torna‐se  uma  novidade  quase  revolucionária.  Assiste‐se  a  uma 
especialização  profissional  que  dá  nascimento  a  uma  nova  terminologia.  Começa  a 
falar‐se  de  diretores  de  bonecos  e  de  atores  bonequeiros  que  substituem  os  antigos 
bonequeiros‐manipuladores.  A  noção  de  ator‐bonequeiro  ganha  espaço  nos  teatros 
nacionais  e  principalmente  na  Europa  do  Leste,  onde  provoca  reações.  Obraztsov 
emprega o termo “bonequeiros”, mas sua obra se intitula O Ator e o Boneco. Logo após a 
guerra, os bonequeiros poloneses nomeiam seus teatros “teatros do boneco e do ator”, para 
surpresa  de  seus  homólogos  estrangeiros.  Na  Checoslováquia,  o  editorial  do 
Ceskolovensky Loutkar de fevereiro de 1965 lança um debate teórico: “Ator com boneco ou 
manipulador?”.  A  maioria  dos  artistas‐bonequeiros  são  favoráveis  à  assimilação  do 
bonequeiro ao ator. Mas como este ator deve jogar? Essa questão vai ficar para sempre 
sem resposta? 
Nos  anos  60,  os  adeptos  desta  assimilação  se  perguntam  se  o  realismo 
stanislavskiano  convém  mesmo  ao  jogo  do  ator  no  teatro  de  bonecos.  Não  podemos 
utilizar o conjunto do sistema de Stanislavski no teatro de bonecos, mas isso não significa, por 
outro  lado,  que  não  possamos  utilizar  alguns  de  seus  elementos,  sobretudo  os  que  têm  relação 
com os estados de criação interior, ou seja, a técnica do jogo interno, sem esquecer a técnica do 
jogo externo. O que um bonequeiro deve, sobretudo, reter de Stanislavski, é seu postulado de fé 
ingênua. O bonequeiro deve permanecer uma criança, deve acreditar no maravilhoso e não perder 
seu talento para o jogo, seja para representar um dragão, um duende ou a lua. Só esta fé ingênua 
“na situação dada”, com a qual começa todo teatro, permite realizar‐se o milagre da encarnação. 
21 

                                                 
 Erik  Kolar.  Je  loutkove  divadlo  formou  vytyrvaného  ci  divadelniho  umeni?  (O  teatro  de  bonecos  é  uma  arte 
20

plástica ou uma arte teatral?) Ver: Frantisek Sokol, op. cit., p. 188. 
 Erik  Kolar.System  Stanislavskeho    a  loutkove  divadlo  (O  sistema  de  Stanislavski  e  o  teatro  de  bonecos). 
21

Ceskoslovensky Loutkar, 1965, no. 6,p. 123. 

24 
PREMISSAS 

O milagre  da encarnação repousa sobre a inocência de um jogador que deve se 
defrontar com tarefas mais difíceis do que as de um ator. Os estudos de Kolar trazem 
preciosas  observações  sobre  a  especificidade  do  jogo  do  ator,  em  particular  sobre  a 
concentração, ou melhor, sobre a dispersão de sua atenção (atraída pelo boneco de seu 
parceiro,  por  seu  próprio  boneco,  pela  pessoa  de  seu  parceiro,  pelo  público),  que, 
enquanto ponto de partida do jogo, necessita uma nova técnica.  
A  oposição  entre  bonequeiro  e  ator  não  reveste  unicamente  um  caráter 
terminológico,  mas  filosófico.  O  bonequeiro  serve  o  boneco  e  a  presença  em  cena  do 
ator  modifica  sua  relação.  Se  a  noção  de  ator  põe  o  acento  sobre  a  pessoa  que  está 
“ativa“  em  cena,  o  ator  que  manipula  o  boneco  em  cena,  força  responsável  de  seu 
movimento, não se coloca em dúvida a especificidade do boneco. A manipulação à vista 
só  faz  aumentar  seu  alcance  e  assim,  à  especificidade  das  atitudes  virtuais do  boneco, 
acrescenta‐se a do conjunto do sistema teatral. 
Artista ou artesão? 

Se no Oriente, os teatros nacionais podem introduzir uma especialização teatral, 
no Ocidente o bonequeiro permanece um artista artesão, que cria sozinho seu teatro: da 
confecção dos bonecos à realização em solista do espetáculo (ás vezes com um ou dois 
assistentes).  Nesse  espírito,  Jan  Bussell  escreve  em  1950:  “O  bonequeiro  deve  ser 
considerado ao mesmo tempo como um artista e como um artesão. O artesanato é tão importante 
para  ele  quanto  para  um  pintor.  Mas  esta  é  apenas  a  primeira  das  exigências  que  se  têm  em 
relação a ele. Há bonequeiros que não se elevarão jamais acima do nível do artesão e outros que 
têm  talentos  artísticos  e  nenhum  para  o  artesanato.  Esses  dois  grupos  só  podem  alcançar  o 
sucesso  se  tomam  consciência  de  seus  limites  e  se  engajam  um  pouco  para  compensar  suas 
carências.22 
Bussell  se  interessa  igualmente  por  outros  aspectos  do  teatro  de  bonecos,  em 
particular a marionete: afastada do marionetista, é muito difícil para este transmitir‐lhe 
suas  emoções,  se  é  que  isto  é  possível.  Os  apresentadores  de  bonecos  de  luva  ou  de 
bonecos de vara, sobre neste plano, foram sempre privilegiados. Então, se as tarefas de 
um ator bonequeiro se limitam à criação de um personagem cênico ao utilizar o boneco, 
o trabalho de um bonequeiro artesão não tem nada em comum com o “jogo do ator”, e 
Bussell completa: Os bonequeiros devem respeitar os seguintes princípios: o bonequeiro, em seu 
teatro, deve reinar sobre o boneco, a técnica e o público. Ele escolhe formas que lhe dão prazer. Ele 
exprime sua opinião sobre a humanidade, seja pela sublimação, seja pela caricatura. E o boneco 
deve  ser  um  trampolim  para  a  imaginação.  O  bonequeiro  deve  entreter  a  mistificação  e  seu 
trabalho lhe proporcionar alegria.23. 

                                                 
22 Jan Bussell, The Puppet and his Master (O boneco e seu Mestre). British Puppet Theatre, julho de 1950, p. 20.  
23 Jan Buessel, Ibidem, p. 13 

25 
METAMORFOSES 

Que caminho para o teatro? 

Essa  reflexão  nos  leva  a  uma  outra,  ligada  ao  uso  da  voz.  Assunto  amplo  e 
complexo, no que respeita à tradição. As primeiras figuras articuladas são mudas como 
os primeiro bonecos. Se um “primeiro“ bonequeiro decide produzir uma voz de boneco, 
trata‐se  sempre de uma voz  artificial ou deformada pelo emprego de um instrumento 
chamado  “pivetta”,  “apito”,  ”pratique”  ou  ʺswazzle”.  Quando  as  autoridades  civis  e 
teatrais  aceitam  que  o  boneco  fale  com  voz  clara,  o  texto  da  peça  é  dito  pelo  chefe  da 
trupe enquanto seus assistentes manipulam. Pode‐se ver aí uma razão para qualificar o 
bonequeiro de manipulador mais do que de ator? Inúmeros bonequeiros pensam, aliás, 
que no espírito da tradição, a voz e a fala são os atributos naturais do boneco e muitos o 
pensam ainda. A deformação da voz do boneco praticada há vários séculos exprime o 
desejo de encontrar uma forma que corresponda a sua natureza artificial. Na Inglaterra, 
a tradição sofre essas mesmas restrições, e Miles Lee trouxe‐as a público nas colunas de 
Puppet  Master,  em  1956:  Embora  a  palavra  seja  um  elemento  vital  para  o  personagem  do 
boneco,  não  é  o  mais  importante,  pois  muitos  bonecos  têm  “emocionado“  seu  público  sem 
palavras. Para mim, só existem dois meios satisfatórios de utilizar a palavra no teatro de bonecos. 
O primeiro, e sem dúvida o mais difícil, é que o próprio manipulador fale e atue em nome de seu 
boneco.  O  segundo  é  um  ator  recitante  que  colabore  com  o  manipulador  da  maneira  a  mais 
próxima possível24. 
Uma prática igualmente difundida nos países do Leste. Nos anos 50, Margareta 
Niculescu  introduz  um  novo  meio  técnico.  No  final  do  último  ensaio,  as  vozes  dos 
personagens  são  gravadas  numa  fita  pelos  atores  do  teatro  de  Bucareste  a  fim  de 
enriquecer a cor e o timbre sonoro e romper com os limites das posições tomadas pelos 
bonequeiros  no  exercício  de  seu  jogo.  Bussell  se  interroga  sobre  essa  prática.  O 
animador  deve  falar  em  nome  do  boneco  quando  há  um  texto  no  espetáculo?  Sem 
imaginar  que  o  teatro  de  bonecos  possa  utilizar  textos  dramáticos,  ele  sublinha  a 
importância  e  o  prestígio  do  bonequeiro  que  sabe  interpretá‐lo.  Entre as tarefas do ator 
figura  a  arte  de  falar.  O  animador  deve  pois  falar  no  lugar  de  seu  boneco.  Todo  ator  que  se 
respeita ficaria terrivelmente incomodado se lhe dissessem para elaborar seu papel unicamente no 
plano visual enquanto um outro dissesse suas réplicas atrás da cortina, ou elas fossem gravadas 
25. 

A formação profissional 

A  formação  dos  bonequeiros  vai  modificar  consideravelmente  o  teatro  de 


bonecos.  Ele  se  enriquece  com  o  jogo  do  ator,  a  máscara,  o  acessório  e  o  objeto.  O 
boneco  não  está  mais  sozinho,  ele  descobre  outros  meios  de  expressão.  O  teatro  de 
bonecos se liberta pouco a pouco de uma relação exclusiva e mimética entre o homem e 

                                                 
24 Miles Lee. Speech and the Puppet (A fala e o boneco) The Puppet Master, setembro de 1965, p. 18 
25 Jan Bussell. O teatro de bonecos e seus laços com as outras disciplinas artísticas com uma menção especial para o 
cinema  e  a  televisão,  in:  Conferência  da  UNIMA  O  teatro  de  bonecos  e  seus  laços  com  as  outras  disciplinas 
artísticas. Varsóvia, 19‐24,junho de 1962, p.3. 

26 
PREMISSAS 

o  boneco.  Ele  tem  a  oportunidade  de  aceder  a  uma  linguagem  teatral  e  poética.  A 
especificidade  do  boneco  não  desaparece,  no  entanto.  A  tradição  e  os  impulsos  dados 
pelo  teatro  estão  na  origem  de  sua  metamorfose.  Além  disso,  ela  se  inscreve  numa 
lógica  em  que  a  experiência  coletiva  vem  substituir  um  percurso  individual,  de  um 
ponto de vista diacrônico e sincrônico, para se desenvolver no mundo do teatro.  
O  teatro  de  bonecos  se  profissionaliza,  reforça  sua  prática  e  desenvolve  uma 
cultura  teatral.  Ele  é  devedor  dos  atores  e  diretores  de  arte  dramática  evocados  neste 
capítulo,  mais  sensíveis  que  outros  à  especificidade  do  boneco.  O  funcionamento  do 
trabalho dos bonequeiros tinha mudado pouco. Na primeira metade do século, um bom 
número dentre eles não tinha freqüentado a família do teatro nem tido a ocasião de se 
impregnar  de  seu  potencial.  Em  certos  casos,  o  bonequeiro  prefere  o  papel  de 
“performer”, em particular nos espetáculos de cabaré ou de variedades, ao de ator. As 
contribuições da arte dramática ao teatro de bonecos foram um verdadeiro choque para 
esses  bonequeiros.  Eles  reivindicaram  seu  direito  à  improvisação,  tanto  no  plano 
plástico  como  na  concepção  de  seus  espetáculos.  Essa  profissionalização  os  prepara 
para uma futura e inevitável confrontação com as outras artes do espetáculo.  
 

27 
 

II - REFORMAS

AS PEQUENAS FORMAS 

A  Segunda  Guerra  Mundial  marca  uma  ruptura  na  evolução  do  teatro  de 
bonecos. As relações profissionais entre bonequeiros dos diferentes países foram quase 
totalmente  cortadas. No fim da guerra,  o  teatro  provém das  trincheiras, dos campos e 
barracas  de  soldados.  Os  bonequeiros  conservaram  a  lembrança  dos  grandes  mestres, 
de  suas  consagrações  e  do  renascimento  do  boneco.  Eles  também  têm  na  memória  os 
princípios elaborados nos anos 30 e a necessidade de uma prática profissional definida 
pela  teoria  da  especificidade.  Mas  de  outro  lado,  os  artistas  plásticos  que  garantiram 
uma  abertura  aos  novos  meios,  trabalhando  à  margem  da  profissão  e  sem  levar  em 
conta  a  poética  normativa  admitida  por  todos,  não  necessariamente  eram  vistos  como 
referência.  
Na França, Geza Blattner, diretor do Teatro do Arc‐en‐Ciel em Paris desde 1929, 
é  um  bom  exemplo  disso.  Ele  é  o  primeiro  artista  a  transgredir  voluntariamente  a 
homogeneidade  do  teatro  de  bonecos.  Apaixonado  por  esta  arte,  ele  não  adapta  seu 
repertório,  mas,  ao  contrário,  inventa  novas  formas  necessárias  às  suas  criações.  Ele 
começa  por  utilizar  bonecos  de  luva  e  marionetes,  que  modifica  ao  máximo,  depois 
imagina  bonecos  com  chaves  permitindo  gestos  nobres  e  hieráticos  assim  como 
algumas  variantes  do  wayang  indonésio.  Ele  elabora  bonecos  dobráveis  que  podem 
representar de frente  e de perfil. Seus bonecos de luva têm cabeça de arame para que 
projetem sua sombra no fundo do cenário; o valor estético do material é posto a nu, e 
ele utiliza manequins imóveis e “bonecos máscaras” que têm a aparência de fantasmas. 
De uma inventividade prodigiosa, ele fabrica um personagem narrador, um boneco cuja 
cabeça é uma antena de rádio, as orelhas, receptores telefônicos, com um diamante no 
lugar  do  coração  e  rodas  de  bicicleta  no  lugar  das  pernas,  como  para  evocar  certas 
idéias  expressionistas  de  George  Grosz.  A  imaginação  de  Blattner  e  seu  gosto  pela 
experimentação  fazem  dele  um  artista  à  parte  no  mundo  dos  bonequeiros.  Sua 
atividade  faz  um  anúncio  prematuro  da  grande  metamorfose  do  teatro  de  bonecos 
dessa  segunda  metade  do  século?  A  ironia  da  sorte  quis  que  sua  influência  fosse 
relativamente pouco importante, sua obra não atravessasse as fronteiras da França e a 
Segunda Guerra Mundial suspendeu temporariamente o interesse dado à inovação.  
Ao fim da guerra segue‐se a cortina de ferro que só faz reforçar o isolamento de 
todo  mundo.  Os  países  do  Oeste  temem  a doutrinação  comunista,  aqueles  do  Leste,  a 
insensibilidade e a decadência da arte “capitalista”. A desconfiança reina até a morte de 
Stalin.  Desde  então,  as  mudanças  políticas  na  União  Soviética  permitiram  sair  desse 
impasse.  A  continuidade  da  guerra  fria  não  impedia  os  artistas  dos  blocos  políticos 
inimigos  de  se  encontrarem  (e,  entre  eles,  os  bonequeiros).  O  futuro  está  nas  mãos  de 
homens e mulheres dispostos, prontos a deixar de lado a desconfiança dos políticos, e 
às  vezes  mesmo a dos artistas que se identificavam com as ideologias políticas. Harro 
Siegel,  na  Alemanha  do  Oeste  (1957),  Roger  Pinon,  na  Bélgica  (1958)  e  Margareta 
28 
REFORMAS 

Niculescu,  na  Romênia  (1958)  tomaram  a  iniciativa  de  organizar  encontros  para 
contribuir  com  o  desenvolvimento  de  uma  colaboração  internacional  e  criar  uma 
atmosfera propícia à pesquisa de novas orientações. Em Liége, Pinon e a Comissão do 
Folclore decidiram fazer o inventário dos teatros tradicionais sobreviventes da tormenta 
da guerra. Em Brunswick, Siegel, escultor e marionetista realiza seu desejo de reunir as 
mais  recentes  inovações  artísticas.  Em  Bucareste,  Niculescu  inaugura  um  grande 
festival  que  apresenta  um  extraordinário  panorama  das  diferentes  correntes  artísticas 
da  marionete  mundial.  Estes  encontros,  e  em  primeiro  lugar,  o  Festival  Mundial  do 
Teatro  de  Bonecos  de  Bucareste  (1958)  termina  com  as  hierarquias  entre  artistas 
bonequeiros. Skupa, Podrecca e Obraztsov vêm afirmar‐se como uma nova geração de 
artistas  que  traz  ao  teatro  uma  energia  renovada  e  uma  nova  visão  da  arte,  tanto  dos 
espetáculos de cabaré e de pequenas formas quanto dos espetáculos dramáticos. Todos 
estes encontros alimentam reflexões e mudanças sobre a teoria da arte do boneco, suas 
relações  com  as  outras  artes  assim  como  sobre  os  aspectos  estéticos  da  linguagem 
teatral. 
O impulso dos solistas 

A  Semana  do  Teatro  de  Bonecos  de  Brunswick  em  1957  é  dominada  por 
pequenas  formas  e  inúmeros  solistas  da  marionete.  Essas  marionetes  e  seu  potencial 
estético,  formal  e  gestual  vão  literalmente  centralizar  a  atenção  dos  profissionais  e 
estimular  inúmeros  estudos.  Marcel  Marceau,  no  prefácio  do  livro  de  Tankred  Dorst, 
mostra‐se muito impressionado por Baptista, marionete do jovem marionetista Michael 
Meschke. Ele evoca as semelhanças entre mímico e marionete, que, se exprimem, tanto 
um como outro, por meio do gesto. Marceau tem uma boa compreensão da técnica e da 
expressão dessas marionetes. Ele depreende nisso uma dimensão metafísica. O boneco 
de  luva  é  dramático,  a  marionete  é  lírica.  Seus  movimentos,  lentos  e  econômicos  são 
carregados de significação. Criando assim sua própria poesia, o bonequeiro joga com os 
objetos  como  se  fossem  vivos,  como  instrumentos  poéticos.  Uma  das  grandes 
possibilidades  desse  jogo  é  exatamente  a  de  poder  romper  os  entraves  da  realidade26. 
Movimentos  e  gestos  carregados  de  sentido  são  um  postulado  natural,  lógico  e 
importante  numa  prática  profissional.  Os  amadores  se  contentam  com  um  simples 
tremor  ou  uma  sacudidela  para  sugerir  vida.  O  desafio  era  encontrar  o  caminho  para 
chegar a um movimento que tivesse sentido.  
Ladislav Fialka, mimo, julga o teatro de bonecos através de suas experiências no 
cinema  de  bonecos  e  sua  colaboração  com  o  grande  mestre  do  cinema  de  animação 
tcheco: Jiri Trnka. Fialka está convencido que o bonequeiro deve respeitar a natureza do 
boneco,  sua  qualidade  de  objeto  e  movê‐lo  segundo  suas  capacidades  materiais  e 
técnicas. Ainda que imperfeito para descrever o comportamento exterior do homem, o 
boneco conserva uma chance de transmitir a verdade sobre suas experiências interiores. 
A  seus  olhos,  a  pantomima  de  bonecos  é  muito  diferente  dos  espetáculos  de  mímica. 

                                                 
 Tankred  Dorst.  Geheimnis  der  Marionette.  Mit  einen  Vorwort  von  Marcel  Marceau  (O  segredo  do  boneco. 
26

Prefácio de Marcel Marceau.) Hermann Rinn Verlag,Munique, 1957, p. 8‐9. 

29 
METAMORFOSES 

Antes de mais nada, e em particular, porque a pantomima moderna fundamenta‐se numa tensão 
ao  mesmo  tempo  física  e  psíquica,  que  o  boneco  não  tem  e  não  pode  ter.  O  boneco  serve‐se  da 
forma do movimento, orienta‐se por sua conclusão e não por seu desenvolvimento. Mais do que a 
tensão  do  movimento,  o  homem  vivo  exprime  o  próprio  movimento.  Impossibilitado  de  fazer 
movimentos fluidos, o boneco só consegue ser convincente no início e no fim do seu movimento, 
que evolui de uma fase a outra, de uma pose a outra, de um gesto a outro. Para o boneco, o que 
acontece durante essa passagem não tem nenhuma importância 27. 
A análise da representação feita por Fialka chega, de fato, a um grau extremo que 
foi  bem  pouco  praticado  pelos  bonequeiros  de  seu  tempo.  Muitos,  com  efeito,  só 
trabalharam de modo intuitivo.  
Na  Alemanha,  Roser,  jovem  solista,  aborda  a  pantomima,  próxima  do  método 
proposto por Fialka. Ele apresenta em 1951 seu primeiro boneco, o clown Gustavo – seu 
alter ego. Escultor, fabricando bonecos para artistas conhecidos, ele se lança na criação 
após a guerra e apresenta: “Gustaf und sein Ensemble” em Brunswick. Um ano mais tarde, 
em Bucareste, ele é aclamado por um grande público de bonequeiros e críticos, saudado 
como um verdadeiro mestre.  
Os  solos  são  uma  forma  bastante  difundida  que  se  ligam,  com  toda  evidência, 
aos espetáculos de variedades tão populares no século XIX. Eles foram retomados pelos 
grandes mestres da primeira metade do século XX como Podrecca e Skupa. Os bonecos 
de variedades também fazem parte dos espetáculos de trupes itinerantes de atores que, 
após  ter  apresentado  a  peça  principal,  divertem  o  público  com  desfiles  de  bonecos, 
vedetes  do  circo  e  da  cena.  Os  solistas  de  nossa  época  conservam  este  princípio  para 
expôr  sua  habilidade  em  imitar  atletas,  dançarinos  e  cantores,  ou  para  representar 
curtos  sainetes.  Às  vezes,  retomam  as  marionetes  da  era  vitoriana,  como  o  esqueleto 
saindo de seu caixão e a ele voltando após se ter deslocado. Neste registro, Eric Bramail 
tornou‐se célebre graças a seu Arlequim que, por sua vez, também dirige um Arlequim 
menor; o sumo da técnica.  
Roser  se  distingue  de  seus  contemporâneos  não  apenas  pela  qualidade  de  sua 
interpretação e a renovação dos temas, mas também por sua concepção do boneco, num 
contexto  social  e  artístico  novo,  ou  seja,  um  boneco  “figurativo”,  retrato  estilizado  de 
um  personagem  humano  ou  de  qualquer  outro  personagem  (alegorias,  personagens 
fantásticos,  animais).  Roser  continua,  ao  menos  em  seu  primeiro  período,  no  universo 
da  mímese  estilizada,  que  inspira  sua  própria  expressão  artística.  Seu  espetáculo 
compreende diferentes seqüências, entre as quais estudos maravilhosos do movimento 
com  a  “Cegonha”,  uma  reflexão  sentimental  sobre  a  natureza  do  ser  humano  em  “O 
Clown das  Flores”;  uma  sátira  das  reações  humanas  estereotipadas  com  “O Conselheiro 
Secreto”  que  pronuncia  um  discurso  estúpido,  os  encantos  da  vida  de  cabaré  de  “A 
Beleza da Noite” e, na seqüência, um comentário sobre as recentes experiências humanas 
da  Segunda  Guerra  Mundial.  No  fim  do  espetáculo  Gustaf  desvenda  seu  caráter 

                                                 
 Jindrich  Halik,  Navstevou  u  Ladislava  Fisalky  (Visitando  Ladislava  Fialka),  Ceskoslovensky  Loutkar, 
27

Praga,1964,no.5, p. 54. 

30 
REFORMAS 

narcísico e generoso, e “Oma” comenta os últimos acontecimentos. Gustaf entra em cena 
de fraque, espera os aplausos, mia para agradar o público, incomoda a assistente: como 
grande  vedete,  ele desfila a cavalo ou representa os virtuosos ao piano. Esta brilhante 
demonstração de jogador de variedades forma toda sua personalidade. Mas o momento 
importante do espetáculo acontece quando Roser desvenda a natureza artificial de seu 
clown. Gustaf era efetivamente uma vedete, mas o mais engraçado eram suas relações com Roser. 
Certo, via‐se Roser puxar o fio para que Gustaf levantasse a mão e tocasse seu joelho, mas isso 
não impedia de parecer autônomo o gesto de Gustaf. Ele levantava os olhos para Roser tentando 
atrair  sua  atenção  e  indicando‐lhe  com  a  outra  mão  uma  pequena  cadeira  que  era  preciso 
aproximar do piano. Ina, a assistente de Roser, a aproxima. Gustaf senta‐se e vai se pôr a tocar 
quando  um  de  seus  fios  se  prende  na  guarda  da  cadeira,  impedindo‐o  de  levantar  o  braço.  Tal 
incidente  às  vezes  gera  catástrofes  e  todos  os  marionetistas  o  temem.  Dessa  vez,  o  perigo  é 
conjurado por Ina que solta o fio. Gustaf se volta e lhe agradece por um movimento de cabeça. Os 
espectadores reagiram com risos e aplausos. Gustaf era ao mesmo tempo uma marionete ‐ cujo fio 
se tinha enganchado – e uma criatura viva ‐, ele agradecia a Ina por tê‐lo soltado28. 
Obraztsov apodera‐se imediatamente dessa dicotomia existencial de Gustaf. Sua 
análise  parece  evidente  hoje,  mas  nos  anos  50,  ela  constituía  um  ponto  forte  do 
funcionamento estético. Alguns anos mais tarde ela me serviu para desenvolver a teoria 
da  opalinização29 e  nesta  mesma  perspectiva,  Steve  Tillis30 propõe  sua  teoria  da  dupla 
visão.  
Respeitando em aparência as convenções do teatro de marionetes clássico, Roser 
lhe  dá  um  novo  fôlego.  O  teatro  clássico  tem  por  princípio  que  a  marionete  seja  um 
sujeito e que só ela detém o privilégio de suscitar a emoção do público. Roser contesta 
este princípio sem renunciar a ele inteiramente. Ele lembra que o homem, o animador, 
permanece  o sujeito e que  a marionete  só  joga  esse  papel se  seu  criador  exprimir  essa 
vontade.  Os  espetáculos  de  Roser  desmistificam  a  marionete  enquanto  sujeito  e  nos 
fazem imediatamente duvidar da verdade desta desmistificação. Este resultado é obtido 
por  dois  métodos:  a  opalinização,  ou  seja,  mostrando  as  duas  facetas  da  marionete, 
objeto  e  personagem  (portanto  sujeito)  que  passam  alternativamente  de  uma  vida  à 
outra.  De  outro  lado,  a  remistificação  da  vida  da  marionete,  isto  é,  sugerir  que  a 
marionete  tem  uma  vida  mágica,  que  ela  toma  também  consciência  de  sua  vida  de 
marionete  (Gustaf  pede  a  Roser  para  desenganchar  seu  fio).  O  próprio  Roser  está 
convencido  da  existência  de  um  diálogo  entre  a  marionete  e  seu  animador.  Cabe 
exclusivamente ao marionetista encontrar a linguagem de seu boneco. Ele deve escutá‐lo, senti‐lo, 
pressentir  seus  movimentos  e  ficar  à  escuta  de  seus  gestos.  Melhor  dizendo,  a  iniciativa  se 
encontra sempre nas mãos da marionete. Enquanto ator, eu não tenho direito a nenhum desejo. A 

                                                 
28 Serguei Obraztsov.  Festiwal w Bukareszcie (O festival de Bucareste). Teatr Lalek, 1960, no. 10, p.38. 
   Henryk  Jurkovski.    Aspects  of  puppet  theatre  (Aspectos  do  teatro  de  bonecos).Puppet  Theatre  Trust, 
29

Londres, 1988, p. 41 
 Steve  Tillis,  Toward  an  aesthetics  of  the  puppet  Puppertry  as  a  theatrical  art.  (Para  uma  estética  do  boneco. 
30

Boneco como uma arte teatral) Greenwood Press, New York, 1992, p. 64. 

31 
METAMORFOSES 

marionete  deve  jogar  comigo,  cabe  a  ela  me  transmitir  seus  desígnios.  São  necessários  anos, 
talvez uma dezena de anos, para descobrir esse segredo31 
A remistificação proposta por Roser seduz muitos outros marionetistas, tal Milos 
Kirschner, diretor do Teatro de Spejbl e Hurvinek desde 1957, que retoma a idéia sob a 
forma de um diálogo entre marionetes e animadores. Numa criação de Philippe Genty, 
“Pierrot” tendo observado a presença de seus fios, arranca‐os todos um a um em sinal 
de  revolta,  até  que  a  morte  chegue.  Vamos  encontrar  o  mesmo  tema  em  Henk 
Boerwinckel,  que  desenvolve  amplamente  a  cena  de  Genty.  Entretanto,  a  presença 
desse tema, diversa e abundantemente tratado, não prova que os marionetistas tenham 
tido gosto pelo imitação. Ela significa simplesmente que inúmeros artistas se voltaram 
para  a  problemática  existencial  do  boneco.  Em  princípio,  nesse  jogo,  o  boneco  é 
essencialmente  figurativo  e  antropomorfo.  Mesmo  se  Roser  utiliza  marionetes 
estilizadas  ou  às  vezes  atomizadas  (A  cabeça  separada  do  belo  ventre  de  uma 
dançarina), elas são claramente ícones de seres humanos. Ele se esforça em seguida para 
transformá‐los de acordo com certas regras da vanguarda para obter criaturas artificiais 
totalmente  dependentes  de  seu  mestre.  Um  encaminhamento  que  é  o  signo  de  uma 
nova consciência artística dos bonequeiros.  
Signos e símbolos plásticos 

Roser  não  é  o  único  a  se  inspirar  nas  idéias  da  vanguarda.  Na  Suíça,  Fred 
Schneckenburger  associa  o  conceito  de  seu  pequeno  teatro  a  números  de  cabaré  com 
intenções  satíricas  e  marcadas  por  uma  grande  tolerância  pela  natureza  humana. 
Schneckenburger não tem formação artística. Seu interesse pela arte do boneco se deve 
muito  ao  acaso.  Em  1922,  ele  colabora  com  a  organização  de  uma  turné  do  Teatro 
Kamerniy  de  Moscou  e  faz  amizade  com  Tairov  e  Sokolov.  Vinte  anos  mais  tarde, 
Schneckenburger  inspira‐se  no  teatro  excêntrico  deste  último  para  construir  os 
personagens de seu Puppen‐Cabaré. Segundo seus amigos, Schneckenburger possui um 
olhar  absoluto  e  sabia  identificar  as  qualidades  plásticas  ao  primeiro  olhar. 
Freqüentador  assíduo,  nos  anos  30,  do  cabaré  Cornischon,  em  Zurique,  para  o  qual 
escreve seus primeiros textos, ele dá continuidade a essa atividade após a guerra com 
esquetes para o cabaré Camelote e retomará alguns deles no seu. Sem esperar o fim da 
guerra,  Schneckenburger  lança‐se  em  suas  primeiras  criações,  confeccionando  seus 
bonecos  na  tradição  da  luva  antes  de  passar  às  varas.  Em  1947  faz  suas  primeiras 
improvisações em público, depois apresenta com bastante regularidade sessões do Fred 
Schnckenburger’s Puppen Cabaret, até sua morte, em 1966. Seus bonecos remetem bastante 
às  tendências  plásticas  da  vanguarda  do  entre  guerras.  Também são  comparados  com 

                                                 
 Albrecht Roser. .(Gustaf und sein Ensenble.(Gustaf e seu Conjunto) Publicação do Jubileu). Bleicher Verlag, 
31

Gerlingen, 1992, p. 55. 
 
 
 

32 
REFORMAS 

frequência  à  obra  de  Picasso,  de  Paul  Klee  e  de  Jean  Miró.  Eles  não  são  imitações 
figurativas do homem, mas puras criações, com elementos abstratos e metafóricos. Fred 
Schneckenburger,  escreve  Hana  Ribi,  ultrapassou  a  imitação  naturalista  do  homem  ainda 
corrente  no  teatro  de  bonecos,  para  criar  um  mundo  de  figuras  estranhas:  ciclopes  e  monstros 
com  cabeças  arrebentadas,  personagens  se  dividindo  ou  sem  cabeça.  Eram  símbolos  (diz 
Sinnbilder)  cuja  idéia  e  conteúdo  eram  fixados  e  codificados  em  sua  construção.  O  público 
rapidamente  compreendia  seu  sentido,  reforçado  pelo  gesto,  o  movimento  e  o  texto,  e  o 
acompanhava divertido. Assim, Schneckenburger cria sobre a cena do boneco uma nova poesia da 
metáfora visual.32  
Seus  temas  alternam‐se  entre  questões  existenciais  e  a  ironia  pacífica.  Seu 
interesse se coloca sobretudo sobre o tipo humano do qual ele esboça retratos de grande 
fineza  utilizando  canções,  esquetes  e  monólogos.  Procurando  escapar  aos  clichês 
habituais,  ele  propõe  ao  público  observar  com  ele  os  novos  fenômenos  da  vida.  Os 
títulos  de  seus  números  são  reveladores:  “Um  Anjo  da  Guarda  Bem  Educado”,  “Com 
Hesitação”,  “Uma  Má  Influência”,  “Leiamos  os  Críticos”,  “  O  Rosto  Ferido”,  etc.  O 
personagem  de  “Kasper”  figura  também  no  repertório  com  seu  próprio  número: 
“Leiamos  a  Crítica”,  uma  sátira  da  imprensa  realizada  com  meios  muito  simples.  À 
medida em que lê as imensas páginas de um jornal, o público o vê diminuir cada vez 
mais como sob o efeito das informações e dos comentários lidos. Quando ele atinge seu 
menor tamanho, ele se revolta, destrói os jornais com suas mãos (as de Schnekenburger) 
e retoma seu tamanho inicial. Esse contraste surrealista entre um boneco abstrato e um 
verdadeiro jornal é uma metáfora dinâmica, fundada entretanto sobre uma idéia muito 
simples. Com  esse  processo  dramático, Schneckenburger  entra  no  caminho  metafórico 
de um teatro plástico.  
O  cabaré  de  Schneckenburger  não  tem  a  menor  preocupação  com  o  respeito  às 
convenções do teatro de bonecos. O público o acolhe com entusiasmo e ele suscita uma 
certa  inquietação  entre  os  críticos.  Alguns  rejeitam  pura  e  simplesmente  sua  poética. 
Inspirada nos anos 20, ela podia dar a impressão, em 1957 de ser a obra de um epígono. 
Jan Malik, porta‐voz do realismo socialista na Tchecoslováquia, teve uma reação muito 
negativa  a  seu  respeito.  Ele  percebe  ali  um  beco  sem  saída  e  um  nihilismo  estético, 
resultado  da  “fuga  da  realidade  que  caracteriza  a  vanguarda”.  Ele  recusa  o  nome  de 
bonecos para preferir aquele de símbolos esculpidos em qualquer tipo de material. As 
esquetes  também  não  lhe  agradaram,  marcadas  pelo  ceticismo,  ironia,  desilusão  e  um 
vago  cinismo  lírico.  O  quadro  intitulado  “O  Indeciso”,  retrato  de  Schneckenburger, 
intelectual  indeciso,  sugere‐lhe  uma  aproximação  política  com  Trotski 33 .  Malik  não 
escapa dos clichês do realismo ideológico. Da mesma geração que Schneckenburger, ele 
é incapaz de efetuar uma aproximação entre a arte deste e as inquietações da sociedade 
do pós‐guerra. Comprometido em excesso com o conceito de uma especificidade teatral, 

                                                 
 Albrecht  Roser.  Gustaf  und  sein  Ensenble.  Jubileumsausgabe  (Gustaf  e  seu  conjunto.  Publicação  do  Jubileu) 
32

Bleicher Verlag, Gerlingen,1992,  p.55. 
 Jan  Malik.  I Festivalovy Tyden EvropskehoLoutkrstvi y Braunscheigu 1957  (A primeira semana do festival de 
33

bonecos europeu) Ceskolovensky Loutkar, 1957, p. 135 

33 
METAMORFOSES 

ele  não  pode  aderir  a  essa  louca  abstração.  Primeiro  bonequeiro  a  se  inspirar  com 
sucesso na arte abstrata, ele se deixa seduzir por esta visão plástica e sacrifica por ela os 
valores do teatro de bonecos fundados em motivos psicológicos. Seus bonecos, e desse 
ponto de vista Malik tem razão, não tem nada a fazer com a verossimilhança psicológica, 
eles vivem sua vida de criação plástica. Signos e símbolos, eles abrem caminho para o 
boneco moderno. 
A abstração pura 

As  experiências  da  Bauhaus  também  vão  inspirar,  mesmo  que  tardiamente,  os 
primeiros  ensaios  de  teatro  mecânico.  Harry  Kramer  apresenta  um  espetáculo 
intitulado 13 Cenas Pesquisa com Bonecos (13 Szenen Versuch mit marionetten). O programa 
distribuído  aos espectadores anuncia  “treze cenas ligadas à lógica do sonho, numa sucessão 
de relações de tensão horizontais idênticas: cortes dos refluxos, transversais do paralelo da ação. 
Rodas, piões, barras: mecanismos, sem sono, sem contato”. A maioria das cenas, de fato, são 
estudos de figuras móveis cuja construção é ostensivamente aparente, uma diferente da 
outra.  A  arte  de  Kramer  rompe  com  a  tradição  do  teatro  de  bonecos  e  se  inspira  na 
escultura e nos móbiles. Atraído pelo movimento e pelas possibilidades formais desses 
bonecos – compostos de um torso provido de pés, de uma mão que se estende muito a 
sua frente, e de uma grande cabeça desproporcional suspensa acima de uma construção 
– esses bonecos dão a impressão de que o personagem se desagrega em três pedaços e 
anunciam, talvez inconscientemente, a atomização do personagem.  
A  influência  de  Kramer  foi  modesta,  porque  o  teatro  de  bonecos  da  segunda 
metade  do  século  XX  responde  cada  vez  com  mais  freqüência  às  exigências  da  arte 
dramática  e  se  libera  do  rigor  das  artes  plásticas.  Algumas  de  suas  idéias,  entretanto, 
vão  ser  encontradas  nas  obras  de  outras  companhias,  como  por  exemplo  em  certos 
espetáculos  do  teatro  Die  Klappe,  de  Göttingen,  cuja  longevidade  foi  superior  à  das 
experiências de Kramer. Seu fundador, Alfred Köhler, enriquecido com a experiência da 
Bauhaus  e  a  teoria  de  Kleist,  cria  seu  primeiro  espetáculo  em  1957.  Descobrindo  esse 
espetáculo em Varsóvia em 1962, Krystyna Mazur nota: Die Klappe demonstra pelo truque 
do boneco uma coisa que jamais um homem de carne e osso mostraria. Breve estudos nos fazem 
assistir  ao  nascimento  do  movimento  e  do  gesto,  mas  o  boneco  não  é  um  personagem,  é  uma 
abstração, um esquema do esqueleto e do aparelho muscular do homem. Ele anima um esquema. 
Mas  esses  jovens  alemães  são  extremamente  coerentes.  A  imagem  plástica  não  está  apenas  em 
conformidade com sua função, ela é também sustentada pelo som. Nas Poções, nós escutamos o 
esquema  fônico  das  entonações  e  das  modulações  da  voz,  que  é  também  uma  abstração  sui 
generis e, sem dúvida, uma síntese muito elaborada34 
Esse  espetáculo  está  em  ruptura  com  o  teatro  de  bonecos  desse  período: 
nenhuma  história,  nenhum  boneco  figurativo  nem  semelhanças  com  seres  humanos. 
Apenas  um  conjunto  de  signos  ideográficos  a  associar‐se  como  pequenas  peças  de 
tecido para representar uma multidão face a um demagogo ou diante de uma caserna. 

                                                 
34 Krystyna Mazur   Nihil novi sub sole. Teatr Lalek, 1962, no. 21, p. 16‐17. 

34 
REFORMAS 

O  esquema  do  grupo  humano  torna‐se  aqui  uma  imagem  plástica  sintética.  Die 
Klappe35 foi  uma  trupe  tão  original  quanto  importante.  Ela  levou  o  teatro  de  bonecos 
clássico  à  abstração  sublimada  que,  em  sua  última  concepção,  era  uma  arte  de  puro 
movimento.  Este  curioso  resultado,  como  aliás,  o  conceito  de  Sokolov,  não  gerou 
imitação  nem  qualquer  outra  pesquisa  paralela.  Seria  um  beco  sem  saída?  O  teatro 
requereria absolutamente a  presença  do homem ou pelo menos  formas humanizadas? 
Ou ainda não estamos suficientemente maduros para aceder ao prazer da comunicação 
abstrata?  A  guisa  de  resposta,  constato  simplesmente  que  a  maioria  dos  bonequeiros 
ficaram fascinados pelo boneco dramático. Restando no universo do boneco figurativo, 
o bonequeiro dificilmente escapa a sua magia. Os românticos foram sem dúvida os mais 
sensíveis a esse traço de humanidade na criação.  
A poética da forma 

Na  França,  Yves  Joly  é  quem  mais  transgride  a  poética  do  teatro  de  bonecos 
clássico.  Ele  é  desses  bonequeiros  que  se  apresentam  nos  cabarés  parisienses.  Seu 
público  não  é  particularmente  exigente,  mas  logo  se  cansa.  Os  artistas  estão,  pois, 
permanentemente  em  busca  de  novidades.  Joly  de  início  utiliza  bonecos  clássicos,  de 
forma  humana,  conforme  o  habitual.  Em  1949,  ele  muda  de  registro.  Ombrelles  et 
Parapluies., Les Mains Seules, Bristol revolucionam  tanto  a  visão  do  boneco  quanto  a  do 
teatro de bonecos. Ele introduz em cena mãos, objetos, figuras planas de papelão para 
representar  curtas  historietas,  em  geral  banais.  A  qualidade  de  seu  espetáculo  não 
repousa  na  intriga,  mas  na  maneira  metafórica  de  contar  a  história.  Seu  programa 
encoraja inúmeros bonequeiros e artistas de cabaré.  
Em  seus  espetáculos,  ele  declina  as  leis  do  teatro  moderno.  Diante  do  público, 
cria  personagens  em  cena,  seres  artificiais  que  dota  de  traços  humanos  (Os  Apaches), 
introduzindo‐os na ação para terminar por destruí‐los e devolvê‐los a seu estado inicial, 
o  de  matéria.  Este  jogo  com  materiais  foi  sua  primeira  e  nova  preocupação.  Num 
número:  Tragédia  de  Papel,  figuras  planas  são  recortadas  em  papel  bristol.  Todas 
representam  um  personagem  tradicional:  o  amante,  o  personagem  positivo  ou  o 
personagem  de  caráter  sombrio.  Reencontramos  as  histórias  clássicas  do  cabaré,  mas 
traduzidas  por  uma  matéria.  No  momento  mais  dramático,  o  personagem  positivo  é 
cortado em pedaços com tesouras de verdade e queimado. A comparação do destino da 
cartolina com o do homem faz nascer uma sensação trágica. Trata‐se de uma metáfora, 
de  um  oxímoro,  de  um  efeito  de  opalinização  devido  à  presença  alternativa  de  um 
personagem  fictício  sobre  dois  planos  existenciais  (aqui,  o  universo  do  homem,  a 
historieta,  e  o  universo  da  matéria,  as  operações  sobre  a  cartolina).  O  artista  rejeita  a 
mímese  e  introduz  seu  universo  (as  figuras  de  papel  confrontadas  às  destruidoras 
ferramentas  de  verdade)  mas  também  sua  poética  com  um  efeito  de  opalização 
(alternância entre o caráter e a materialidade da figura). 

                                                 
   Sobre  o  desenvolvimento  da  companhia  Die  Klappe,  ver:  Harro  Siegel,    Aus  Göttingen:  Die  wieder 
35

aufgetauchte  Klappe  (Die  Klappe  surgindo  de  novo).  In:  Puppensspiel  information,  Verband  Deutsch 
Puppentheater, 1980, no. 43, p. 45‐46. 

35 
METAMORFOSES 

A mão enquanto material, a mão do homem enquanto pars pro toto, a parte pelo 
todo  são  figuras  retóricas  conhecidas  há  muito  tempo,  e  já  utilizadas  por  Obraztsov. 
Joly as ultrapassa numa clássica história de amor. Ao substituir os personagens cênicos 
por  mãos  vestidas  de  várias  luvas  (vestido,  saiote,  etc),  provoca  uma  inversão  dos 
papéis que as torna muito expressivas. Ele reforça assim o efeito cômico,  em razão da 
“espessura  única”  da  luva.  Imagine  uma  jovem  –  uma  mão  –  efetuar  um  strip‐tease 
tirando  sucessivamente  as  “luvas”  que  compõem  seu  traje!  Joly  utiliza  igualmente  a 
técnica do “teatro noir” para atingir, num quadro de animais marinhos feitos de mãos, 
um  grau  máximo  de  ilusão.  A  redescoberta  da  matéria  (as  mãos)  provoca  a  emoção 
estética  pelo  efeito  de  estranheza.  O  efeito  de  opalinização  é,  pois,  um  elemento 
importante no espetáculo. 
Após a mão, ele dá um passo em direção ao teatro de objetos. Os guarda‐chuvas, 
pretos,  cinzas,  vermelhos,  quadrados,  multicores,  de  tecido  ou  de  papel,  imitando 
personagens  ou constituindo a  estrutura de construções  mais complexas (uma  carroça 
de  casamento)  entram  em  cena.  Aí  também,  a  intriga  é  banal.  Um  jovem  casal  se 
reencontra.  Vivendo  felizes,  entram  num  cabaré  e  assistem  a  um  can‐can  francês  de 
guarda‐chuvas.  Estão  permanentemente  sendo  seguidos  por  dois  inspetores  cinzas, 
comandados, ao que parece, pela família da jovem. Mais do que proteger a virtude da 
jovem, os dois homens cuidam para que a aventura termine, como devido, no cartório 
civil. A ação se conclui com a imagem do cortejo de casamento e sua carroça de guarda‐
chuvas.  
O uso de objetos como alegorias do homem tem inúmeros modelos na literatura, 
no  conto  em  particular.  No  teatro  de  bonecos,  Joly  foi  o  primeiro  a  romper  o  tabu  da 
fidelidade  icônica  utilizando  objetos.  A  intervenção  do  artista  confere  ao  objeto  –  um 
guarda‐chuva,  por  exemplo,  uma  nova  mobilidade  encarregada  de  significar  um 
acontecimento  humano.  O  valor  icônico  do  objeto  desaparece  diante  da  ação  poética. 
Encontramo‐nos, em definitivo, no campo da metáfora e do oxímoro. O espectador não 
está  consciente  da  manipulação  da  retórica  teatral  e  esses  guarda‐chuvas  o  divertem. 
Esse estudo aprofundado da linguagem dramática caracterizando a arte poética de Joly, 
vai  terminar  por  surpreender  a  ele  próprio.  Geralmente  a  criação  tem  um  caráter 
espontâneo  e  o  artista  nem  sempre  está  consciente  da  significação  de  suas  novas 
inspirações. Ao ser interrogado sobre sua experiência, nos anos 60, ele se furta, falando 
de sua espontaneidade: Eu devo me inclinar diante dos fatos evidentes: não tenho nada a dizer, 
não tenho  nenhuma  opinião, e em minha  experiência não há nada  de laborioso, tenho pavor  de 
qualquer  idéia  de  dificuldade,  a  única  coisa  que  faço  com  prazer  é  amar.  Se  minhas  mãos 
conseguem  alguma  coisa,  não  é  porque  decidi  fazer  tal  ou  qual  coisa,  seguindo  tal  ou  qual 
princípio,  tal  ou  qual  saber,  para  chegar  a  algum  resultado,  faço  o  que  me  oferece  diretamente 
prazer, porque em mim uma força leva‐me a tal gesto ou a tal descoberta, como talvez a força da 
primavera leva as plantas a saíram da terra para a luz, para a alegria de existir. Crio coisas para 
celebrar a alegria se estou possuído por ela. Se fosse dançarino, eu dançaria esta alegria; se fosse 
pintor,  transformaria  esta  alegria em dança de cores, e como  não sou  nem  um nem outro, e  ao 

36 
REFORMAS 

mesmo tempo tenho uma pequena parte de cada um deles, descubro assim uma nova forma e, com 
ela, seu movimento.36 
Esta visão do artista tomado pela inspiração e concretizando sua felicidade sem 
qualquer dificuldade é muito agradável. Mas por outro lado, ela reflete o imenso papel 
do acaso no desenvolvimento da arte e talvez – coisa surpreendente – da metamorfose 
do teatro de bonecos do pós‐guerra. Essa confissão de Joly não é perturbadora em nossa 
reflexão sobre as transformações do boneco? 
Joly  não  foi  o  único,  na  França,  a  tomar  este  caminho.  Em  1943,  George  Lafaye 
funda  sua  companhia,  O  Teatro  do  Capricórnio,  utilizando  bonecos  clássicos  e  monta 
vários  espetáculos  de  Vieilles  Chansons  Françaises  (Velhas  Canções  Francesas).  Lafaye, 
influenciado pelas teorias de Craig e a tradição do boneco francês, não se definia como 
bonequeiro,  mas  como  um  artista  que,  por  analogia  a  Blattner,  escolhe  passo  a  passo 
seus meios de expressão. Nos anos 50 ele cria uma série de números de cabaré nos quais 
utiliza formas geométricas abstratas e objetos, expõe o material, constrói‐o de modo que 
não reste nenhuma dúvida sobre sua natureza de criaturas fictícias. Elementos abstratos 
tomam  forma  humana  ou  uma  grande  cartola  representa  uma  cena  de  amor  com  um 
boá de plumas (John & Marscha, 1952). Figuras geométricas feitas com jornais aparecem 
de  repente  aos  espectadores.  Em  cena,  um  gentleman  (um  boneco),  lê  seu  jornal  cujas 
páginas se transformam numa grande galinha de papel. Trata‐se de uma das primeiras 
experiências  no  campo  da  abstração  animada.  No  número  Strip‐Tease  uma  mulher  é 
representada  apenas  por  um  espartilho,  luvas,  um  colar  de  pérolas  e  três  pares  de 
pernas  femininas  que  se  cruzam uma  sobre a  outra  verticalmente.  Esse  tipo  de  ação  é 
possível  graças  à  técnica  do  “teatro  negro”  que  Lafaye  utiliza  anos  antes  da  Lanterna 
Mágica de Praga. É inegável que Lafaye foi um precursor da metamorfose que se opera 
no teatro de bonecos. Mas ele não se ateve muito tempo às formas abstratas e ao teatro 
de objetos. Aparentemente consciente de romper os limites desse teatro destacando‐se 
entre  os  bonequeiros  dos  anos  60,  Lafaye  tem  concepções  artísticas  muito  à  frente  da 
maioria  de  seus  contemporâneos.  Lafaye,  assim  como  Joly,  inventou  seus  próprios 
meios de expressão, em ruptura com os bonequeiros ainda ligados às técnicas clássicas. 
Entre os solistas, do teatro ou do cabaré, os marionetistas são os mais próximos 
de  uma  teoria  da  especificidade  do  boneco.  Seus  solos  estão  mais  próximos  de  uma 
demonstração  técnica  que  de  uma  apresentação  tradicional.  Desse  ponto  de  vista,  o 
boneco evoca a arte do circo. O solista é, em seu gênero, um prestidigitador que busca o 
efeito pela técnica. Se introduz uma história em seu espetáculo, é uma historieta ou uma 
esquete  muito  simples.  Essa  demonstração  técnica  pode  ser  comparada  ao  uso  de 
técnicas  narrativas ou auto‐temáticas (esse termo  se inspira no espetáculo  que põe  em 
cena  seu  próprio  processo  de  criação)  da  arte  dramática?  Até  os  anos  50,  os 
marionetistas  e  os  bonequeiros  de  cabaré  de  todo  tipo  tomam  iniciativas  então 
impensáveis no teatro de bonecos clássico. Tudo leva a crer que certas inovações foram 
ditadas por um boneco não teatral e não dramático. Deve‐se concluir que a fórmula do 
                                                 
 Yves  Joly.  Voilà...  In:  Puppentheater  der  Welt  Zeitgenössisches  Puppenspiel  in  Wort  und  Spiel, 
36

Henschelverlag, Berlim, 1965, p. 47. 

37 
METAMORFOSES 

cabaré foi mais fecunda no plano da criação que a encenação de textos dramáticos? A 
evolução  do  teatro  de  bonecos,  na  França,  o  confirma.  Essa  generalização  seria 
apressada, porque nos países sem tradição de cabaré novas idéias também vão surgir.  
A linguagem teatral 

A  oposição  entre  pequenas  formas  e  espetáculos  dramáticos  não  basta  para 


explicar  a  transformação  do  boneco.  Se  os  números  de  variedade  perduram,  dá‐se  o 
mesmo, há séculos, com os espetáculos do repertório dramático; dos contos populares e 
literários  para  crianças  aos  textos  contemporâneos.  O  pós‐guerra  dá  verdadeiramente 
uma  outra  dimensão  ao  boneco:  a  estrutura  de  um  teatro  regular,  um  gênero  teatral 
com ambições artísticas e novas perspectivas quanto a sua posição no seio das artes do 
espetáculo. Um entusiasmo provocado de um lado por Craig e de outro lado por uma 
reação  psíquica  face  aos  horrores  da  guerra.  O  desejo  de  recriar  um  mundo  novo 
incendeia  o  teatro  de  bonecos  e desse  ponto  de  vista, a  política  cultural  dos  países  do 
leste  foi  um  ganho  nesta  reconquista  com  a  criação  de  teatros  fixos  dotados  de  infra‐
estrutura técnica, de recursos humanos e de uma base no desenvolvimento da formação 
profissional.  Uma  efervescência  e  um  dinamismo  que  permitiram  realizar  inúmeros 
sonhos graças a estas estruturas institucionais, equipes permanentes e a criação de um 
repertório. Vai ser preciso esperar o período de liberalização do regime comunista para 
que  esses  teatros  de  marionetes  criem  e  desenvolvam  quase  livremente  sua  arte,  sem 
incertezas sobre seu futuro. 
O  primeiro  grande  festival  de  marionetes  aconteceu  nesta  atmosfera,  em 
Bucareste,  em  1958.  Todos  os  grandes  mestres  e  inúmeros  jovens  artistas  tiveram  a 
ocasião de se encontrar pela primeira vez diante de um público internacional. O festival 
revelou  as tendências  novas  e  seus  novos mestres.  Ele  confirma  o  talento  de  Joly  e  de 
Roser.  Mas  as  revelações  desse  festival  foram:  o  Teatro  Lalka  de  Varsóvia  e  o  Teatro 
Tandarica  de  Bucareste.  Seus  espetáculos  afirmaram  valores  inovadores  da  arte 
dramática  do  boneco.  Todos  os  dois  são  teatros  nacionais  subvencionados,  bem 
equipados e organizados sobre o modelo dos teatros de arte dramática com seu corpo 
de  trabalho:  uma  trupe  permanente  composta  de  encenadores,  cenógrafos, 
compositores e de atores‐manipuladores.  
O Teatro Lalka: Jan Vilkowski 

Jan  Wilkowski,  encenador  e  ator,  dirige  na  Polônia  o  Teatro  Lalka  desde  1950. 
Seus primeiros espetáculos são de estilo realista, temperado pela presença de elementos 
burlescos  e  simbólicos.  Os  Contratempos  de  Guignol  (Guignol  w  Tarapatach),  de  Leon 
Moszczynski  e  de  Jan  Wilkowski,  com  cenografia  de  Adam  Kilian  (1956)  foi 
apresentado  em  Bucareste.  Trata‐se  da  adaptação  de  uma  antiga  peça  de  Guignol,  Le 
Déménagement (A Mudança), de Laurent Mourguet. A trama da peça é a história de um 
bonequeiro  –  Jean  –  que  busca  um  lugar  para  fazer  uma  apresentação  enquanto  é 
perseguido  por  um  agente  de  polícia  mascarado.  Le Déménagement  é  interpretado  por 
bonecos de luva que são interrompidos pelos comentários do bonequeiro, no espírito do 
teatro  brechtiano  onde  um  personagem  corta  a  ação  com  uma  canção  e  convida  o 

38 
REFORMAS 

público  a  refletir  sobre  os  acontecimentos  apresentados.  Quando  canta,  Jean  fica  no 
papel do bonequeiro e ilustra suas canções com bonecos e objetos. Depois vão aparecer 
sucessivamente  a  Fome  e  a  Guerra  que  aterrorizam  uma  armada  de  guignols,  um 
desfile  de  sapatos  (nesta  versão  da  peça,  Guignol  é  o  sapateiro)  com  as  cabeças  dos 
heróis do Déménagement, um enorme pé que fecha a marcha e dá um grande pontapé no 
sapato  de  Canezou,  O  proprietário.  Além  destas  sinédoques,  o  espetáculo  congrega 
soluções  metafóricas  e  plásticas  novas:  a  prisão  de  Guignol  é  uma  gaiola,  pequenas 
nuvens brancas de fumaça saem da corbelha com uma inscrição cômica “Boum!” para 
significar  um  canhoneio.  Alguns  bonecos  evoluem  segundo  sua  forma  plástica  (uma 
esfera  para  Canezou,  grande  e  fina,  o  Comissário  tem  um  imenso  nariz  que  o 
desequilibra e o faz cair como uma árvore). No final Jean canta e parafraseia um slogan 
operário: “Para lutar contra o mal, pessoas honestas, uni‐vos!”. Esta citação parece ser 
mais universal que a original.  
Esta  peça  é  um  testemunho  da  primeira  pesquisa  de  um  teatro  de  diretor 
associando o postulado de Craig sobre o teatro teatral e a fórmula brechtiana do teatro 
épico  engajado.  O  teatro  é  pura  criação  e  deve  ser  apresentado  assim  ao  público  – 
reivindicava  Craig.  Wilkowski  envereda  por  este  caminho  ao  escolher  como  cena  de 
exposição um conflito entre dois atores – o agente de polícia e o bonequeiro. Wilkowski 
comenta  assim  o  destino  humano  nos  entreatos  e  o  princípio  do  teatro  no  teatro.  A 
representação de uma peça tradicional do  repertório torna‐se  um  motivo teatral em si 
mesmo.  Ela  augura  a  passagem  do  mundo  homogêneo  dos  atores  ao  mundo 
heterogêneo  do  teatro  de  meios  de  expressão  variados.  Algum  tempo  depois,  os 
bonequeiros  farão  o  mesmo,  mas  a  partir  do  mundo  homogêneo  do  boneco  para 
introduzir atores em seus espetáculos.  
Humanista  e  engajado,  Wilkowski  afirma  também  suas  convicções  nos 
espetáculos  para  crianças.  O  que  afinal  queremos  dizer  à  criança?  A  beleza  da  terra,  a 
crueldade  do  mundo,  a  bondade  do  homem  e  seu  egoísmo,  o  horror  da  guerra,  a  competição 
permanente entre o bem e o mal, em histórias inventadas e também em torno dela e nela. E outra 
coisa ainda. A beleza da arte, seus encantos e seus mistérios37.  
Suas  observações  sobre  a  natureza  e  a  existência  do  homem  não  o  fizeram 
esquecer dos problemas técnicos da criação. Como bom número de artistas, Wilkowski 
está em busca de uma linguagem teatral moderna para o teatro de bonecos. O teatro de 
bonecos não pode, nem deve imitar o teatro de atores, ele não tem o direito. O sentido de nossa 
arte não repousa sobre uma imitação do homem pelo boneco, mesmo se este boneco tem a forma de 
um homem. O boneco é uma forma plástica e sua vida é a vida desta forma. A vida das cores, das 
formas, não pode ser fundada sobre os mesmos princípios dramatúrgicos que o drama do “teatro 
vivo”.  Então,  sobre  quais  princípios?  Se  apenas  soubéssemos!  O  teatro  de  bonecos  se  encontra 
num  período  semelhante  ao  que  conheceu  a  teoria  da  pintura  há  cinquenta  anos.  Um  período 

                                                 
 Jan  Wilkowski.  Tylko dla doroslych – o teatrze dla dzieci (Reservado aos adultos – do teatro para crianças).  In: 
37

Program jubileuszowy: Panstwowy Teatr Lalka 1944‐1955, Varsóvia, 1959, p. 3. 

39 
METAMORFOSES 

onde  ela  definia  suas  funções,  suas  tarefas  essenciais,  sua  substância.  Liberar‐nos  da  imitação 
passiva do “teatro vivo” é para nós uma necessidade vital.38 
Estas interrogações o impulsionam a seguir a via do “teatro teatral” e do “teatro 
da metáfora”, ou seja, representar de maneira a que o espectador tome consciência de 
que  a  ação  cênica  é  o  resultado  de  uma  criação  artística  e  que  ela  deve  ser 
compreendida como um diálogo com o artista, não como um paliativo da realidade.  
Para  Wilkowski,  mostrar  as  fontes  de  sua  arte  virou  lei.  No  Piano  Encantado 
(Zaczarowany  Fortepian,  1957),  o  instrumento  que  um  verdadeiro  pianista  toca  produz 
sons que vão animar os bonequeiros e dar‐lhes vida. Essa animação sonora fascina Erik 
Kolar: (...) regadores substituíam a chuva, o sol era um balão cor de rosa, etc. O que é 
interessante,  é  que  as  crianças  compreendem  perfeitamente  a  linguagem  poética  da 
cena. O espetáculo era uma maravilhosa lição de poesia39. 
De  um  lado,  Wilkowski  sublinha  o  caráter  artificial  e  teatral  do  espetáculo,  de 
outro  ele  desenvolve  metáforas  cênicas.  Inspirado  no  folclore,  Zwyrtala  o  Músico  ou 
Como um Montanhês Sobe ao Céu (O Zwyrtale Muzykancie Czyli Jak Góral Dostal sie do Nieba, 
1958,  adaptação  de  textos  populares:  Kazimierz  Przerwa  Tetmajer),  esse  espetáculo 
começa  com  uma  orquestra  de  montanheses  colocados  diante  de  um  imenso  quadro 
representando Zwyrtala pronto a dar o último suspiro ao som da música. Zwyrtala sobe 
nos ares e canta árias populares. Cada canção é ilustrada por seus heróis que aparecem 
nos  quadros  à  imagem  dessas  pinturas  em  vidro  feitas  pelos  montanheses.  Zwyrtala 
canta e os personagens saem de seus quadros para ilustrar suas palavras. A pedido dos 
anjos,  ele  canta  a  história  de  Janosik  que  queria  tornar  todos  os  homens  iguais.  A 
miséria abateu‐se sobre o povo oprimido pelos ricos. Os pobres se reúnem e vão pedir 
ajuda  a  Janosik.  Ele  chama  seus  companheiros,  bandidos  como  ele,  e  partem  para  o 
castelo  de  um  conde  húngaro.  Janosik  ama  Weronika  que  o  ama.  O  Conde  Húngaro, 
sabendo  que  não  conseguirá  vencer  Janosik  num  combate  direto,  recorre  a  um  ardil. 
Janosik  é  preso  e  executado.  Os  anjos  ficam  tristes.  Enfim  São  Pedro  intervêm.  As 
canções não podem continuar porque contrárias à ordem celeste. Zwyrtala deixa o céu 
para ir se instalar numa estrela. Mas Zwyrtala quer voltar para a terra, ao seu vale dos 
Tatras, e diz em seu dialeto: “Não quero outro céu. Meu céu está lá onde está meu coraçãoʺ. 
A história de Janosik é uma citação com a qual o autor se identifica. A pintura em 
vidro e os elementos folclóricos, fontes de inspiração popular, participam da elaboração 
de uma linguagem poética: o vidro quebrado é sinônimo de uma morte simbólica, um 
quadro no  cortejo fúnebre tem um caráter metafórico. Zwyrtala o Músico é a obra mais 
importante de Wilkowski. Ela faz descobrir o folclore montanhês sob uma forma muito 
teatral dando ao boneco sua presença plástica. Ela é a prova de que se esboça uma nova 
corrente,  como  o  observa  o  crítico  italiano  Vito  Pandolfi:  Somos incapazes de definir com 
                                                 
38  Ibidem. 
 
39 Panstwowy  Teatr  Lalka  1944‐1955.  Programa  jubileuszowy  (O  Teatro  Nacional  Lakla..  Programa  do 
jubileu), Varsóvia, 1959, p. 12. 

40 
REFORMAS 

precisão  por  que  concurso  de  circunstâncias  se  deve  este  fato  evidente  (talvez  uma  reação 
psicológica  irrepreensível):  as  loucuras  de  Jdanov  e  a  intransigência  de  Stalin  definitivamente 
desapareceram e obras artísticas marcadas de sutileza e de romantismo começam a nos chegar dos 
países  do  Leste  (...)  Zwyrtala  o  Músico  através  do  folclore  liga‐se  com  Chagal  e  Klee,  com  a 
poesia  de  Pasternak  e  a  encenação  de  Vakhtangov.  Num  certo  sentido,  é  um  retorno  aos 
procedimentos  artísticos  de  vanguarda  que  floresceram  na  União  Soviética  nos  anos  que  se 
seguiram à revolução. Este movimento progressista, bruscamente interrompido, recomeça a dar 
frutos e o espetáculo do Teatro Lalka (que não deve ser subestimado por tratar‐se de bonecos) é 
um exemplo claro disto.40 
Essa  crítica  mostra  a  importância  da  estética  de  Wilkowski  e  de  seu  cenógrafo 
Adam  Kilian  que  transgrediram  as  injunções  do  regime  e  obedeceram  a  seu  instinto 
para  criar  a  partir  do  universo  dos  valores  populares.  Eles  não  foram  os  únicos  a  se 
inspirar  no  folclore.  Margareta  Niculescu,  Kato  Szoni  e  Michael  Meschke  fizeram  o 
mesmo.  Eles  se  inspiraram  tanto  nas  representações  visuais  quanto  nas  estruturas 
narrativas e formais elaboradas ao longo dos séculos.  
Cada espetáculo é para Wilkowski a ocasião de renovar seus meios de expressão. 
Le Petit Tigre Pietrek (Tygrys Pietrek, 1962) é um conto alegórico para crianças cujo tema é 
a  coragem.  Os  bonecos  aparecem  sobre  a  empanada  num  plano  de  três  dimensões  – 
enquanto  que  o  quadro  geral  da  ação  resta  plano  e  forma  uma  vasta  perspectiva. 
Tomando  de  empréstimo  certos  elementos  da  técnica  cinematográfica,  o  diretor  pode 
criar  efeitos,  como  um  zoom  sobre  o  biombo  graças  à  intervenção  de  grandes 
personagens mascarados que se dirigem ao público. Para Nós e Nossos Anões, (My i nasze 
krasnoludki, 1967), Wilkowski utiliza a convenção do ensaio teatral. Ele faz o papel do 
diretor e seus bonequeiros o papel dos atores do Teatro Lalka ensaiando a peça Marysia 
a Pequena Òrfã e os Anões (Sierotka Marysia i Krasnoludki). Foi a oportunidade de mostrar 
diferentes  convenções  entre  boneco  e  teatro,  com  a  interrupção  do  ensaio  pelo 
aparecimento  de  verdadeiros  anões  na  cena.  Os  atores  se  apossam  dessas  criaturas 
imaginárias e tentam convencê‐las a colaborar com eles. Ao mostrar anões de verdade, 
Wilkowski  volta  à  mitificação  da  vida  do  boneco.  Teatralização  e  ilusão  constituem  o 
programa  de  seu  teatro;  o  desejo  de  jogar  continuamente  com  realidade  e  ficção, 
verdade e ilusão. Renunciar a um ou a outro, seria negar a verdade do teatro.  
O Teatro Tandarica: Margareta Niculescu 

O Teatro Tandarica, na Romênia, dirigido desde 1949 por Margareta Niculescu, 
diretora, afirma outros valores. Humor com Fios (Umor pe Sfori, 1954) renova inicialmente 
o  espetáculo  de  variedade.  Composto  de  vários  números,  esse  espetáculo  formiga  de 
invenções  onde  a  matéria  é  utilizada  num  sentido  puramente  metafórico.  Para  os  três 
bonecos  de  marinheiro  que  dançam  o  Rock  and  Roll,  em  plena  voga  nesta  época,  são 
utilizadas  molas  no  lugar  de  pernas  para  parodiar  o  movimento  desses  dançarinos 
frenéticos.  No  quadro  do  “Barômetro”,  duas  figuras  saem  de  sua  casinha  para  dar 

                                                 
40 Vito Pandolfi. |Lalki polskie (Os bonecos poloneses).  Teatr Lalek, 1961, no.17‐18, p. 44. 

41 
METAMORFOSES 

informações  meteorológicas.  Uma  pane  do  mecanismo  fornece‐lhes  a  ocasião  para  se 
reencontrarem.  O  concerto  do  instrumento  os  separa  de  novo  e  provoca  melancolia  e 
poesia.  Essa  nova  inclusão  de  materiais  como  metáforas  no  espetáculo  de  variedades, 
inaugura uma renovação do gênero.  
Em  1958,  Niculescu  põe  em  cena  A  Mão  de  Cinco  Dedos  (Mina  cu  Cinci  Degete, 
cenários: Stefan Hablinski, bonecos: Ioana Constantinescu). Inédito no teatro de bonecos, 
o  pastiche  da  história  policial  faz  aqui  sua  entrada  em  cena.  Ou  quem  sabe,  seria  o 
desejo de evocar a natureza mágica e a aura misteriosa do boneco sob a forma de uma 
autoderrisão teatral? 
Já  na  entrada  do  teatro,  os  espectadores  se  encontram  em  presença  de  indícios 
anunciando  os  acontecimentos:  na  calçada,  marcas  de  sangue  e  de  passos,  que  vão 
reencontrar no hall, depois na sala deserta e mergulhada na obscuridade. Por todo lado 
a inscrição “Mister X”. A cortina improvisada se ergue e aparece aos olhos do público, 
um  camarote  de  ópera  no  qual  está  sentado  um  casal.  A  mulher  porta  um  colar  de 
diamantes. Ouve‐se um tiro. A luz se apaga. Quando volta, os espectadores percebem 
uma  enorme  faca  em  que  estão  enfiadas  três  silhuetas.  A  mulher  leva  a  mão  a  seu 
pescoço, seu colar desapareceu. Mudança de cenário. A cena representa uma rua. Sob a 
luz de um poste dois personagens se encontram. Sombra imensa de uma mão armada 
de uma faca. Um tiro. Um cadáver cai na rua. A lua aparece por trás de uma nuvem e 
chora.  Ouve‐se  uma  marcha  fúnebre  longínqua.  Uma  alma  sobe  ao  céu,  duas  asas  a 
empurram no caminho. E a história segue assim. A linguagem é muito lacônica. Após 
os crimes, procuremos o criminoso! Aparece o herói principal, o Detetive – no estilo de 
Sherlock Holmes com seu fiel companheiro, um cachorro que imita sempre seu mestre. 
Nosso herói tem nobres motivações e desta vez, ele quer ajudar a Filha do caixa atacado. 
Ele  encontra  rapidamente  uma  pista  e  começa  uma  corrida‐perseguição  de  carro.  Ele 
chega  à  beira  de  um  barranco  com  a  Filha  do  caixa,  o  carro  hesita:  ele  faz  uma  ponte 
com  seu  corpo  para  permitir  que  a  Filha  do  caixa  alcance  a  outra  margem.  Num  bar, 
uma  briga  explode  entre  a  gang  de  Mister  X  e  as  forças  da  ordem.  Mesas,  cadeiras, 
garrafas,  tudo  voa  no  ar.  As  cabeças  se  deslocam,  esta  briga  grotesca  é  um  balé  bem 
organizado. Desde o começo, os espectadores vivem no mundo do impossível. Policiais 
entram no banco, de motocicleta. A Filha do caixa chora. A natureza se mostra solidária: 
chuva, relâmpagos, sons de trovões. Uma música inquietante. Mister X atira na lua, que 
se parte em mil pedaços.  
A  Mão  foi  um  sucesso  tanto  pelo  tema  paródico,  pelo  modo  de  desmistificar  a 
matéria  artificial  com  que  o  boneco  é  construído  quanto  pelo  emprego  de  uma 
linguagem  radicalmente  nova.  Niculescu  faz  apelo  às  estruturas  do  cinema  e  rompe 
com  a  exposição  textual  da  ação  do  drama  clássico.  Alguns  episódios  dinâmicos 
preliminares introduzem o tema da investigação e da perseguição, na qual ela conserva 
o  laconismo  e  a  concisão  das  imagens  da  narrativa.  Do  mundo  da  literatura,  os 
espectadores  se  transportam  a  um  mundo  de  signos  visuais  que  nascem  com  uma 
facilidade muito grande e permitem introduzir novas idéias. O laconismo das imagens 
se deve ao fato de que só se mostra a causa (o tiro) e a conseqüência (o Caixa amarrado), 
sem nenhuma ação intermediária. Ele contribui para materializar a vontade de ocupar o 

42 
REFORMAS 

espaço  de  outro  modo,  povoar  a  sala  assim  como  o  exterior  do  teatro  de  indícios  do 
drama e romper com o jogo frontal do primeiro plano. Na cena, três planos, horizontais 
e verticais, deixam alternativamente aparecer elementos de cenários que se compõem e 
desfazem à vista do espectador. Niculescu tende aqui voluntariamente para um teatro 
metafórico.  
Convencida de que a metáfora pode nascer com muita facilidade da confrontação 
de  disciplinas  artísticas  diferentes,  ela  expõe  suas  reflexões  sobre  a  questão  no 
congresso  da  UNIMA  que  acontece  em  Varsóvia  em  1962:  Na  busca  da  metáfora,  os 
criadores  transpõem  os  limites  que  separam  os  diferentes  gêneros  artísticos  como  o  cinema,  o 
teatro  de  atores,  a  opereta  ou  o  music‐hall  e  o  teatro  de  bonecos.  Podemos  citar  exemplos 
interessantes de espetáculos onde os meios próprios a uma dada arte foram utilizados em proveito 
de  uma  outra  sem  que  a  autonomia  tenha  sido  violada.  Em  Os  Contratempos  de  Guignol 
montado pelo Teatro Lalka, por exemplo, a guerra é mostrada com a ajuda de meios gráficos. O 
que  não  diminui  em  nada  a  tensão  dramática.  Muito  pelo  contrário.  A  necessidade  de  fazer 
nascer  a  ilusão  de  um  filme  policial  deu  aos  autores  de  A  Mão  de  Cinco  Dedos  a  idéia  de 
recorrer  a  meios  cinematográficos  com  os  quais  a  marionete  se  sentiu  totalmente  a  vontade.  A 
famosa garrafa de leite descoberta pelo Detetive é “recortada” no cenário por meio de um “olho”, 
como um grande plano num filme. Outra cena “cinematográfica”, aquela onde Mister X lança 
sua cúmplice de um trem. O vagão não se mexe. Só um leve tremor, postes de luz que desfilam 
diante das janelas e um cachecol que flutua ao vento dão a impressão de que o trem avança. Em 
muitos  de  nossos  espetáculos  nós  utilizamos  efeitos  especiais  para  dar  a  impressão  de  que  um 
personagem percorre uma distância, numa variante dos travellings nas filmagens em estúdio.41  
Foi no festival organizado em Varsóvia por ocasião desse congresso que o Teatro 
Tandarica  apresentou  O  Livro  de  Apolodor  (Cartea  cu  Apolodor,  direção:  Niculescu) 
que  traz  novidades  técnicas  e  estéticas  sendo  a  principal  delas  a  apresentação  de  um 
duplo ponto de vista. O do herói, o pinguim Apolodor que deixa Bucareste para partir 
em busca de seus primos pinguins, e o dos amigos de Apolodor, pequenos animais que 
cantam  com  ele  num  coral  de  Bucareste.  Apolodor  vive  suas  aventuras  no  meio  de 
grandes marionetes. Os coristas cantam em cima do biombo, fazendo aparecer imagens 
da  viagem  de  Apolodor  representadas  por  pequenos  bonecos  de  luva.  Lá  também, 
muitas  idéias  são  tomadas  do  cinema,  como  o  globo  terrestre  visto  de  cima  ou  as 
pegadas do pinguim que avançam sozinhas. Há também reduções plásticas que evocam 
o mundo dos brinquedos, como Apolodor que se desloca sobre um bastão munido de 
uma cabeça de cavalo. 
Em 1965, Niculescu monta uma outra peça importante, As Três Mulheres de Dom 
Cristobal (Cele Trei Neveste ale lui don Cristobla, adaptação de Valentin Silvestru das farsas 
populares de Garcia Lorca). Um teatrólogo russo fez a seguinte descrição da encenação: 
O lençol que funciona como cortina se ergue. Aparecem pessoas. Originais, troncos planos feitos 
de um retângulo trançado como uma cesta, e cabeças que deslizam para baixo com traços que dão 
                                                 
 Margareta  Niculescu.  Metafora jako srodek wryazu lalki (A Metáfora enquanto meio de expressão do boneco). 
41

In:  Conferência  da  UNIMA:  O  teatro  de  bonecos  e  seus  laços  com  as  outras  disciplinas  artísticas. 
Varsóvia, 19‐24 de junho de 1962, 9.40.  

43 
METAMORFOSES 

a impressão de terem sido feitos às pressas. Cristobal, homem afortunado e velho rico, decidiu se 
casar. (...) A jovem Belissa voa por cima de sua casa ao ser informada de que Dom Cristobal em 
pessoa  tem  a  intenção  de  desposá‐la.  O  negócio  se  conclui.  As  casas  balançam  primeiro 
docemente depois vogam lentamente ao encontro uma da outra, ela se juntam para formar uma 
sólida  construção.(...)  Belissa  foge  para  sua  casa.  Ouvem‐se  assobios,  risos.  Eles  são  cinco. 
“Cinco  homens  entraram  em  sua  casa  esta  noite”  conta  a servente  de Cristobal.  Mas  é  mesmo 
Cristobal, este que agora surge com uma roupa de um verde berrante, e enorme chifres de veado 
azuis  na  cabeça.  Sim,  é  ele.  E  Belissa  partiu.  As  casas  se  põem  a  oscilar  levemente,  a  gemer, 
depois  se  separam.  O  casamento  não  durou.  Resta  ao  Dom  senescente  sair  em  busca  de  nova 
esposa. Mais uma vez, bem nova. À direita, a casa de Cristobal. À esquerda, a de Rosita. A jovem 
agrada a Cristobal. Os sinos tocam. Nova ocasião para se divertir, são as núpcias. Depois nada 
mais de sino. Nada mais de empanada também. Uma imensa cama ocupa todo o cumprimento da 
cena, do leito surgem os tacões de nosso herói, percebem‐se as pernas de trapo esbranquiçadas de 
Cristobal e as de Rosita cobertas de meias vermelhas com os dedos saindo prá fora. Eles dormem. 
Depois Rosita se ergue sem ruído, um homem entrou na casa. E eles dançam. Um outro homem 
aparece. Depois um terceiro. Rosita é levada pelo vento numa dança diabólica. Só seus pequenos 
pés cobertos de meias vermelhas não se mexeram da cama. Mais uma vez Cristobal aparece com 
chifres de veado azuis. A história do terceiro “sol”, do terceiro casamento de Cristobal, não tem 
mais  esta  alegria  infantil,  esta  despreocupação  burlesca.  (...)  Elvira  ama  Kokolitché  e  é 
correspondida.  Mas  Cristobal  seduziu  Elvira.  Música  de  igreja.  Dos  olhos  de  Kokolitché  caem 
grossas lágrimas como ervilhas. Uma atmosfera de tragédia. Quando de repente surgem quatro 
indivíduos  encapuzados.  Eles  estendem  os  braços  para  Cristobal,  o  estendem  sobre  um  lençol. 
Eles o atiram no ar, o aparam... atiram de novo. Quando descobrem seus rostos, reconhece‐se os 
olhos  risonhos  dos  atores.  Eles  sorriem  com  um  ar  travesso  lançando  Cristobal  no  ar.  Depois 
repõem o capuz e levam Cristobal no lençol como numa mortalha. 42  
Crítica  e  público  ficaram  inteiramente  entusiasmados  com  o  espetáculo  cujos 
elementos  na  sua  totalidade  constituem,  nos  anos  60,  um  espetáculo  de  bonecos 
moderno. Assim também, o fato de mostrar a natureza teatral do espetáculo (os atores 
no  papel  de  deus  ex  machina),  o  emprego  generoso  de  todo  tipo  de  metáforas,  sejam 
sinédoques, metonímias ou “realizações de metáforas” caras a Niculescu. Mas esta essa 
nova linguagem não é, por si só, uma garantia de sucesso. È preciso também um ritmo 
arrojado, uma dinâmica, criar atmosferas, humor e a sensação de uma necessidade (de 
uma idéia) superior que reuna todo o grupo em torno de um mesmo projeto. Em 1967, 
Niculescu  comenta  assim  seu  trabalho:  Temos  procurado  os  meios  que  nos  permitam 
substituir  textos  de  versos  admiráveis  por  metáforas  cênicas  breves  e  expressivas.  Além  disso, 
não  estamos  indiferentes  aos  problemas  sociais  e  morais.  Nosso  desejo  é  falar  dos  valores 
humanos  eternos  que  são  sempre  válidos.  Eles  determinam  o  que  o  homem  tem  de  bom  e  de 
estúpido. O que ele tem de autêntico e de artificial, determinam o que é importante na vida. 43 

                                                 
 Natalia Smirnova. 10 otcherkov o teatre Tandarica (10 esboços sobre o Teatro Tandarica), Iskusstvo, Moscou, 
42

1979, p. 195‐198. 
 Natalia Smirnova. 10 Otcherkov o teatre Tandarica (10 esboços sobre o Teatro Tandarica), Iskusstvo, Moscou, 
43

1979, p. 195‐198. 

44 
REFORMAS 

Esse  testemunho  permite  pensar  que  as  descobertas  estilísticas  do  teatro  de 
bonecos vem com muita freqüência acompanhadas do sentimento de responsabilidade 
que  o  artista  experimenta  frente  ao  destino  da  humanidade  e  a  ordem  do  mundo. 
Encontramos  esta  mesma  abordagem  em  Wilkowski,  e  a  mesma  reflexão  sobre  o 
homem e a ordem social em Schneckenburger e Roser. O Teatro Tandarica aprofunda o 
estudo das capacidades expressivas do teatro de bonecos numa série de peças como A 
Festa  Popular  do  Anãozinho Clip  (Iarmarocul  Piticului  Clip,  direção:  Lenkisch,  cenografia: 
Buescu  e  Conovici,  1966),  onde  participam  de  uma  espécie  de  jogo  infantil,  bonecos  e 
atores,  que  parecem  fazer  parte  do  cenário  mas  são  ao  mesmo  tempo  personagens 
alegóricos (árvores, sol, vento). Os autores do Mágico de Oz (Vrajitorul Din Oz), direção 
de  Lenkisch,  cenografia  de  Hablinski  e  de  Buescu,  1967)  estabelecem  novas  relações 
entre  os  personagens.  A  heroína,  a  pequena  Dorotéia,  é  uma  marionete.  Seus 
companheiros,  o  Espantalho,  o  Homem  de  Ferro  e  o  Leão  são  atores  mascarados. 
Dorotéia  inicialmente  é  manipulada  por  uma  única  animadora,  depois  por  seus 
companheiros.  Uma  maneira  clara  de  mostrar  que  o  animador  visível  não  é  um 
elemento neutro na imagem e que ele pode engendrar significações importantes para a 
peça.  Dorotéia  aparentemente  os  conduz  ao  Mágico,  mas  na  realidade  são  eles  que  a 
conduzem. No mesmo ano, 1967, foi criada A Bela Ileana (Ileana Sinziana), numa direção 
de  Niculescu  (cenografia  de  Buescu  e  Conovici).  Os  bonecos  são  fabricados  à  imagem 
de  brinquedos  de  terra.  O  coração  que  comenta  a  ação  anuncia  o  lugar  crescente  da 
narração no teatro de bonecos.  
As realizações do Teatro Tandarica fazem pensar que o teatro de bonecos entra 
em  sua  idade  de  ouro.  O  crítico  Iordan  Chimet  faz  a  apologia  de  seus  sucessos: 
Inscrevendo‐se  na  nova  linha  das  duas  últimas  décadas,  nosso  teatro  moderno  de  bonecos 
significa uma aspiração à certeza, uma necessidade de sentimento, às vezes presente sob a forma 
mais pura na cena de nossa arte. Um horizonte insuspeito se abre diante dele. Wagner falava, em 
sua  época,  de  obra  de  arte  completa,  total.  Craig  se  perguntava  se  o  boneco  não  se  tornaria  no 
futuro, numa época ainda imprevisível, o meio de expressão mais fiel das mais belas aspirações e 
pensamentos artísticos. Esse futuro, na hora atual, não está longe de se tornar presente! Nosso 
teatro de bonecos responderá logo a esta questão. Pode‐se dizer com certeza que estamos no bom 
caminho e avançamos com confiança44.  
Observando  a  evolução  do  teatro  de  bonecos  na  virada  dos  anos  50  e  60,  nós 
partilhamos o otimismo de Chimet. Os espetáculos do Lalka e do Tandarica provam o 
imenso  potencial  artístico  do  boneco  e  anunciam  significativas  mudanças  nas  regras 
clássicas.  A  mais  importante  delas  foi  o  abandono  do  teatro  ilusionista  e  o  caminho 
escolhido de uma criação autônoma, onde o artista não esconde a artificialidade da obra 
criada,  e,  longe  disso,  revela  os  segredos  da  criação.  As  tentativas  de  transformar  a 
linguagem  teatral,  pelo  abandono  das  descrições  diretas  (da  ilustração  do  mundo 
representado), também foram capitais. Os artistas concebem a linguagem teatral como 
uma linguagem especificamente composta, exprimindo assim seu desejo de abandonar 

                                                 
 L. Gitza,I . Chimet, V. Silvestru, Teatrul de Papusi in Romania (O Teatro de Bonecos na Romênia), Bucareste, 
44

1969, p. 243.  

45 
METAMORFOSES 

a linguagem descritiva, tanto no plano plástico como no plano verbal, em favor de uma 
linguagem  poética  fundada  sobre  figuras  de  retórica  que,  ainda  que  emprestadas  à 
literatura, funcionam perfeitamente no plano visual.  
As  mudanças  trazidas  por  Niculescu  e  Wilkowski  a  partir  do  final  dos  anos  50 
são  a  expressão  da  energia  criadora  dos  artistas  bonequeiros  da  nova  geração,  para 
quem  o  boneco  se  inscreve  na  arte  e  na  sua  metamorfose.  Assim  não  é  de  causar 
espanto  que  eles  tenham  rompido  o  tabu  do  teatro  de  bonecos  homogêneo  e 
desencadeado  uma  avalanche  de  experimentações  criadoras  e  divertidas  das  quais 
ninguém, na virada dos anos 50 e 60, podia prever o resultado. Trinta anos de distância 
permitem  apreciar  as  experiências,  que  as  descobertas  e  as  idéias  dos  anos  50  e  60 
fizeram nascer. Assim, no início dos anos 80, Niculescu volta‐se para uma nova forma 
que prefigura o teatro da matéria. Uma peça do grande poeta romeno Mihail Eminescu, 
intitulada  Príncipe  Nascido  de  uma  Lágrima  (1982),  montada  no  Teatro  Tandarica, 
forneceu‐lhe  a  ocasião.  Ela  se  associa  com  uma  jovem  cenógrafa,  Doina  Spitzeru.  Nas 
lembranças  que  me  evocou  recentemente,  ela  sublinha  o  papel  da  obra  mítica  de 
Eminescu enquanto fonte de inspiração: Eu gostava muito deste texto poético e decidi tentar 
fazer um trabalho teatral a partir das imagens, a partir de uma inspiração que podia vir de outra 
coisa  que  não  o  boneco  figurativo  e  articulado,  que  pudesse  vir  da  matéria  tal  como  ela  é  e 
pudesse tomar forma no movimento. Com Doina Spitzeru, procuramos materiais que pudessem 
inspirar esse lado primitivo, esse lado bruto, como a juta, por exemplo, para exprimir esse mundo 
que existia antes do mundo, o mundo primário. Os personagens eram mais ou menos marcados, 
mas  havia  no  início  a  idéia  de  tentar  criar  um  espetáculo  de  imagens  poéticas  que  se 
personalizassem  pelo  movimento.  Que  podiam  restar  como  uma  massa  inerte,  informe,  bela, 
como  uma  escultura,  como  uma  natureza  morta.  Tornaram‐se  personagens  metafóricos.  Por 
exemplo, havia um monte de juta, com braços, à qual acrescentei uma máscara feita de pequenos 
elementos  que  podiam  se  destacar  e  cobrir  uma  grande  superfície.  Sob  essa  massa  de  tecido  se 
encontravam  três  atores  que  lhe  davam  formas  diversas  colocando  nela  toda  sua  energia.  Era 
uma  imagem  poética  do  que  queria  ser  este  personagem,  a  mãe,  a  matriz  da  terra.  Senti  que  o 
boneco  articulado,  animado,  com  gestos,  jamais  poderia  me  ajudar  a  exprimir  esta  imagem 
telúrica, esta imagem da mãe possessiva, esta imagem da mística da  
vida precedente45.  
Existem,  claro,  inúmeros  espetáculos  onde  a  criação  se  manifesta  sob  outros 
aspectos,  como  o  do  espaço  cênico  aberto  nas  peças  de  Hans  Sachs,  ou  as  funções 
simbólicas dos personagens, da luz e do espaço, em Peer Gynt de Ibsen, no Ricksteater 
de  Oslo  (1978).  Somos  obrigados  a  constatar  que  as  obras  dos  artistas  que  abriram 
caminho à grande metamorfose do teatro de bonecos nos anos 50, continham em germe, 
todas  as  grandes  idéias  dos  anos  90.  Isso  vale  também  para  a  obra  de  Wilkowski. 
Afastado do teatro no final dos anos 60 em resultado de um desacordo com a burocracia 
comunista, ele encontra refúgio na televisão simultaneamente como autor e diretor. Nos 
anos 70, retoma sua atividade no teatro. Revela‐se então seu perfeito domínio de novos 
                                                 
 Entrevista  de  Henryk  Jurkowski  com  Margareta  Niculescu,  Charleville‐Mézières,  17  de  novembro  de 
45

1993.  

46 
REFORMAS 

meios  de  expressão,  entre  outros  em  Confissão Talhada na Madeira (Spowiedz w drewnie, 


1983) criada num teatro de Szczecin. Ele esboça aí o retrato quase autobiográfico de um 
escultor  popular  contra  o  qual  se  levantam  suas  próprias  criações.  Só  um  Cristo 
inacabado em sua grandeza lança um olhar benevolente sobre seus atos. Em Biografias 
dos Santos (Zywoty Swietych, 1983) ele se interessa pelo teatro de máscaras, em A Gansa 
Verde  (Zielona  Gèß,  1984),  pelo  teatro  de  objetos  assim  como  em  O  Decameron  85 
(Dekameron,  1986,  cenografia:  Adam  Kilian)  onde  recorreu  ao  teatro  no  teatro:  os 
refugiados de Florença são atores cujos relatos eróticos são representados por peças de 
xadrez,  frutos  e  bonecos  a  dedos.  Para  Wilkowski,  esse  espetáculo  deve  ao  teatro 
político.  A  seus  olhos,  a  Polônia  de  1985  está  ameaçada  pela  peste  (era  a  época  do 
estado de guerra) como Florença no tempo de Bocage. O talento criador destes grandes 
artistas  parece  inesgotável.  Ambos,  Niculescu  e  Wilkowski,  concebem  o  teatro  de 
bonecos  como  uma  arte  dramática  nascendo  da  imaginação  comum  do  escritor  e  do 
diretor. Essa foi sua especificidade e seu triunfo.  
 

47 
 

III - CONVENÇÕES

HOMOGENEIDADE 

Quando  chega  ao  fim  a  Segunda  Guerra  Mundial,  o  teatro  de  bonecos 
homogêneo  não  é  unicamente  um  teatro  de  formas  ultrapassadas  e  de  investigação 
esgotada.  Ao  contrário,  ele  é  mais  respeitado,  desenvolve  suas  qualidades  formais, 
experimenta novos materiais, torna‐se um campo de investigação para as artes plásticas 
– do boneco mimese do homem ao boneco estilizado – e herda metamorfoses do teatro 
de  bonecos  tradicional.  Se  Brann,  Puhonny  e  Teschner  se  aproximaram  das  artes 
plásticas, eles vão desenvolver, a partir do final dos anos 40 suas tendências artísticas e 
utilizar novas formas de bonecos, de matérias e de materiais. São inúmeros os teatros e 
os  artistas  precedentemente  evocados  que  têm  esta  vontade:  Joly,  die  Klappe,  Kramer 
assim  como  Wilkowski  e  Niculescu.  Nos  anos  50,  todos  eles  praticam  um  teatro  de 
bonecos homogêneo e estilizado, sem falar dos teatros soviéticos que não vão renunciar, 
por vários anos ainda, à homogeneidade de seus meios.  
Continuidade ou ruptura? 

Esse teatro de bonecos homogêneo não é nada mais do que um teatro de bonecos 
não  contaminado  por  outros  meios  de  expressão.  Ele  possui  todas  as  condições  para 
desenvolver  seu  próprio  estilo,  sem  medo  de  perder  seu  público.  O  público  aceita  a 
presença  do  boneco  clássico,  contrariamente  a  certos  artistas.  Aliás,  engana‐se  quem 
imagina  que  o  surgimento  do  teatro  de  bonecos  com  meios  de  expressão  variados 
resultou do esgotamento do teatro de bonecos homogêneo.. De fato, no que respeita a 
alguns  teatros  clássicos  isso  faz  sentido,  mas  a  criação  contemporânea  dá  testemunho 
do contrário e a história me dá razão por não privilegiar um em proveito do outro. Por 
essa razão, os anos 60 transbordam de teatros de bonecos clássicos. Eles coexistem com 
o teatro de bonecos heterogêneo e os dois polarizam o interesse de diferentes artistas. O 
desenvolvimento  das  artes,  a  estilização  plástica  e  gestual,  oferecem  as  condições  de 
uma  profunda  transformação  para  o  teatro  de  bonecos  clássico.  Não  é,  pois, 
surpreendente  que  este  teatro  tenha  tido  uma  quantidade  tão  grande  de  adeptos.  Por 
outro lado, o fato de que estes bonequeiros tenham se sentido ameaçados pela pressão 
dos modernos, era muito mais surpreendente! 
Henryr  Ryl,  diretor  polonês,  defende  o  teatro  de  bonecos  como  um  gênero 
artístico à parte. Sua convicção nasce das idéias de Craig e das reações dos espectadores, 
crianças e adultos. Enquanto diretor, ele é favorável às experiências teatrais e mesmo à 
diversidade dos meios de expressão utilizados nos espetáculos. Enquanto avô e porta‐
voz  do  boneco,  ele  exige  permanecer  a  seu  serviço.  Seus  espetáculos,  de  um  estilo 
realista,  alcançam  um  verdadeiro  triunfo,  como  O  Médico  à  Força  (1954),  baseado  em 
Molière,  cujos  elementos  burlescos  e  eróticos  –  chocantes  se  fossem  assumidos  por 
atores  –  tornam‐se  cômicos  ao  serem  interpretados  por  bonecos.  Ryl,  no  entanto, 
permanece  aberto  a  certas  inovações  formais  que  devem  imperativamente  servir  ao 

48 
CONVENÇÕES 

boneco:  a  utilização  de  diferentes  meios  de  expressão  (a  associação  de  máscaras, 
bonecos e atores), a contribuição do teatro de objetos, do grande espetáculo em relação 
ao número pequeno e do processo de criação se efetuando sob o olhar do público. No 
Moinho  de  Café  (Mlynek  do  Kawy,  cenografia:  S.  Fijalkowski,  1959),  Ryl  segue  este 
princípio,  defende  a  fidelidade  ao  boneco  e  declara  em  1963:  Assim,  pois,  os  aliados  do 
boneco no seu início: o homem, a máscara, o objeto, o acessório, tornaram‐se pouco a pouco seus 
adversários.  Eles se  puseram a  reinar  sobre a  cena  do  teatro  de bonecos  marginalizando  a este. 
Quiseram mesmo roubar‐lhe seu nome, chegaram disfarçar‐se dele, semeando a confusão no meio 
do público. Não é de espantar que este já se sinta perdido e sem vontade de ir ao teatro, pois os 
julgamentos e as opiniões das críticas mais sérias, especialistas na matéria, reunidas neste corpo 
coletivo  pomposamente  batizado  de  júri,  estavam  gravemente  deturpados.  Aqui  e  lá  surgiram 
vozes pedindo que se arrumasse este estado de coisas. Elas afirmavam que tinha sido jogado fora o 
bebê  com  a  água  do  banho.  Mas  estes  protestos  não  foram  acompanhados  de  reflexões  mais 
profundas. Elas ecoaram no deserto.46  
Esse  adepto  do  boneco  clássico  não  pode  deter  as  mudanças.  Os  críticos  são 
apenas os catalizadores de um processo inevitável e se o boneco foi marginalizado, os 
bonequeiros são os primeiros responsáveis por isso. 
Nas fontes da plástica 

Entre  os  novos  teatros  de  bonecos  que  se  distinguiram  por  sua  originalidade 
citamos o Teatro Central de Bonecos de Sofia. Ele conquista o público do mundo inteiro 
com  espetáculos  como  A  Escola  dos  Coelhinhos,  Pedro  e  o  Lobo,  O  Relojoeiro  e  Krali 
Marko,  e  oferece  um  leque  indo  de  formas  universais,  quase  abstratas,  a  formas 
pessoais  refletindo  a  experiência  de  uma  cultura  nacional.  No  Segundo  Festival 
Mundial de Bucareste, em 1960, o teatro apresenta: A Escola dos Coelhinhos, conto de 
animais do repertório de Obrazstov numa tradição realista e Pedro e o Lobo, música de 
Prokofiev, uma criação moderna. A Escola dos coelhinhos é uma alegoria vitoriosa (os 
coelhinhos representam crianças) e uma dinâmica de teatro de bonecos naturalistas. Em 
Pedro  e  o  Lobo  (direção  de  Atanas  Ilkov  e  de  Niculina  Georguieva,  1960),  triunfam 
formas  plásticas  que  enriquecem  a  música  programática  do  compositor.  Formas 
geométricas  compõem  cenários  e  bonecos,  como  se  a  música  encontrasse  seu 
correspondente em linhas retas e curvas, em círculos, esferas e elipses. Alguns bonecos 
têm um corpo espiralado escondido debaixo da roupa, mas que se faz visível ao longo 
da  ação.  Os  personagens  humanos,  de  cabeça  esférica,  são  desprovidos  de  traços 
precisos,  ao  contrário  da  música  de  Prokofiev  e  suas  formas  abstratas  evocam  bem 
pouco os heróis da história. O entusiasmo por poéticas tão diferentes se deve ao fato de 
que  os  bonequeiros  apreciam  tanto  as  normas  da  arte  clássica  aqui  expressa  na 
perfeição da manipulação de A Escola dos Coelhinhos quanto às inovações de Pedro e o 
Lobo, diretamente inspiradas nos princípios do teatro de vanguarda. 

                                                 
46 Henryk Ryl. Lalkarskie tak i nie O sim e o não dos bonecos. Teatr Lalek, 1963, no. 26, p. 2 

49 
METAMORFOSES 

O Relojoeiro, de I. Teofilov (direção: L. Dotcheva, cenografia: I. Conev, 1965), traz 
novas  soluções  plásticas;  todos  os  personagens  têm  a  forma  de  tubos  de  papelão.  A 
opção  formal  determina  um  modelo  de  personagens  e  dá  uma  mesma  tonalidade  ao 
conjunto  do  espetáculo.  As  idéias  pacifistas  de  O  Relojoeiro,  construídas  em  torno  do 
destino de um homem simples, renascem graças à utilização de meios inesperados que 
deliciam  o  público,  emocionado  e  tomado  pela  originalidade  do  espetáculo.  Esta 
capacidade  mistificadora  do  boneco  é  de  fato  um  dos  segredos  deste  teatro  e  dá  uma 
nova dimensão a todos os elementos cênicos. O poema heróico Krali Marko de Teofilov 
(direção:  Teofilov,  cenários:  I.  Conev,  1967)  conserva  a  originalidade  da  forma  de 
antigas tradições icônicas, a serviço da dinâmica interna da imagem. As fontes plásticas 
estão em perfeita harmonia com o tema e dão ao espetáculo um caráter monumental. 
Rumo à caricatura 

Na  União  Soviética,  à  exceção  de  alguns  adeptos  das  novas  correntes  (como 
Ablynin), o boneco clássico predomina. Alguns artistas em voga, como Mikhail Korolev 
ou então Viktor Sovdarouchkine tentam liberar‐se da poética reinante de Obraztsov. O 
primeiro tende para um teatro realista e poético em que a caricatura plástica é reforçada 
por fantasias e idéias surrealistas, o segundo, seu sucessor enquanto diretor artístico do 
Grande  Teatro  de  Bonecos  de  Leningrado,  vê  no  teatro  de  bonecos  uma  imagem 
estilizada  da  realidade.  Em  O  Elefantinho,  baseado  em  Kipling  (cenografia:  V.  e  V. 
Kharlamov,  1964),  Evguenil  S.  Kalmanovski,  crítico,  sublinha  o  modo  de  criação  de 
Sovdarouchkine: Se o Elefantinho é ainda uma criança, um ser humano na aurora de sua vida, 
ainda  irresponsável,  ainda  inocente,  seus  antagonistas  têm  particularidades  psicológicas.  Sua 
semelhança evidente com o homem sublinha seus traços físicos, transforma‐os em qualquer coisa 
arrasadora,  estranha  ao  homem  e  antinatural.  Durante  toda  uma  cena,  o  Hipopótamo,  a 
Avestruz,  a  Girafa,  o  Pavão  permanecem  encerrados  num  mutismo  renitente.  No  entanto, 
resfolegam, bufam, gorgolejam, estalam a língua, suspiram47. 
A ilusão dramática 

Allami Babszinhaz, Teatro de Estado de Budapeste, dirigido por Dezso Szilagyi 
nos anos 60 e 70, dá testemunho de uma outra problemática estética do boneco clássico. 
Apoiando‐se  na  psicologia,  Szilagyi  constata  que  o  público  infantil  reage  de  modo 
diferente  dos  adultos  ao  boneco.  As  crianças  aceitam  o  jogo  com  toda  confiança, 
consideram‐no verdadeiro porque não distinguem a ficção da realidade, enquanto que 
os  adultos  já  possuem  uma  certa  distância  em  relação  à  ação  dramática,  ainda  que  se 
deixem  seduzir  pela  ilusão.  Os  bonecos  também  devem  mostrar  certas  relações  humanas, 
atuais  e  concretas,  devem,  pois,  oferecer  a  possibilidade  de  viver  uma  “verdade  cênica”  para 
conseguir  um  contato  com  os  adultos.  De  fato,  as  coisas  não  se  passam  da  mesma  maneira  no 
teatro  de  bonecos  e  no  teatro  dramático.  No  teatro  de  bonecos  a  ilusão  é  mais  completa  que  no 
drama. A unidimensão natural do boneco – tudo é aí representado com o mesmo material – não 
suscita  no  público  este  sentimento  mesclado  que  faz  nascer  a  dualidade  do  personagem 

                                                 
47 Evguenii S. Kalmanovski, Teatr Kukol, den’ sevodnashnii (Teatro de bonecos hoje), Leningrado, 1977, p. 18:  

50 
CONVENÇÕES 

representado  na  cena  dramática  (simulacro  de  ser  humano)  e  do  intérprete,  o  ator  presente  em 
carne  e  osso.  O  espectador  do  teatro  de  bonecos  só  percebe  o  personagem  cênico,  e  não  seu 
intérprete. Essa homogeneidade do teatro de bonecos é em si uma das fontes da emoção estética no 
espectador adulto48. 
Assim,  Szilagyi  desenvolve  o  programa  artístico  de  seu  teatro  a  partir  desses 
valores. Tudo é ilusão; o artista se assume criador, a matéria inerte se metamorfoseia e é 
percebida  como  verossímil.  O  mundo  do  boneco  é  um  mundo  homogêneo,  e  mesmo 
tendo  recorrido  a  outros  meios  de  expressão,  como  atores,  com  ou  sem  máscaras, 
Szilagyi permanece um adepto das idéias de Paul Brann e de Schlemmer. Esta tomada 
de  posição  poderia  levantar  objeções  se  o  valor  artístico  do  teatro  de  bonecos  fosse 
julgado  por  seus  meios  de  expressão.  Ora,  não  se  trata  disso,  eles  não  tem  valor 
enquanto  tal,  mas  dependem  de  seu  uso,  de  sua  função  estética,  de  sua  aptidão  a 
transmitir  sentido  e,  portanto,  sua  importância  é  relativa.  A  história  do  teatro  sugere 
que as mudanças dos meios de expressão ou dos estilos de representação estão sempre 
ligados  ao  surgimento  de  novos  temas  e  necessitam  fazer  uso  de  novos  meios,  sem 
seguir sistematicamente a moda. A prática de criadores contemporâneos o confirma e a 
história nos esclarece sobre outras verdades também universais. Qualquer tema, parece, 
pede  meios  de  expressão  apropriados  e  que  não  são  necessariamente  modernos.  O 
Allami  Babszinhaz  considera  o  boneco  um  meio  essencial  de  uma  ilusão  consciente, 
baseado em reflexões teóricas. Este teatro sabe ser moderno, aberto a todas as correntes 
nascentes, e utiliza bonecos estilizados em seus espetáculos tanto para crianças (contos 
tradicionais  ou  tirados  do  folclore)  quanto  para  adultos  (repertório  de  peças  de 
Shakespeare, Brecht e Mrozek.). Com uma coerência admirável, ele adapta o boneco a 
obras de grandes compositores como Bartok, Kodaly e Stravinski.  
O repertório musical 

Essa associação entre música e bonecos permite ao Allami Babsinhaz realizar seu 
principal objetivo: conservar a ilusão teatral sem deixar de manter o boneco no registro 
do  simbólico.  A  música  contribui  para  a  convenção  do  jogo,  onde  os  gestos  e 
movimentos  dos  bonecos  exprimem  as  obras  numa  pantomima  dançante,  como  em 
Petrouchka, de Igor Stravinski, e O Mandarim Maravilhoso, de Bela Bartok. Petrouchka foi 
criado  (direção:  Kato  Szonyi,  cenografia:  Ivan  Koos,  1965)  no  período  de  maior  fausto 
do  teatro.  A  música  e  os  cenários  se  inspiram  no  folclore  russo:  barracas  de  festa 
popular,  desfile  de  monstruosidades  humanas,  números  de  prestidigitação, 
brincadeiras populares, desfile dançante de bonecos de vara. No meio da multidão, um 
teatro de marionetes, com seus três personagens: o Prefeito, a Dançarina e Petrouchka. 
Este  ultimo,  apaixonado,  se  revolta  contra  seu  destino  de  marionete  –  o  que  torna 
natural a metáfora da dependência do herói e de seu destino face ao animador – e foge 
do teatro, mudando de constituição técnica: de marionete passa a boneco de vara. O que 
não lhe evita um fim trágico. Peter Molnar Gal evoca o sentido metafórico dessa mini‐
                                                 
48 Dezso Szilagyi. Das heutige Puppentheater und sein Publikum (O teatro de bonecos atual e seu público). 
In: Puppentheater der Welt. Zeigenössisches Puppenspiel in Wort und Bild. Henscheverlag, Berlim, 1965,  p.40. 

51 
METAMORFOSES 

fábula:  A  cena onde ele é visto  escalando os  fios, puxando o  mecanismo que dirige esses  fios é 


insuportável e de enorme tensão. Ela traz a imagem da luta contra o opressor, a luta do artista 
reduzido  ao  papel  de  marionete,  e  ao  mesmo  tempo  de  um  homem  consciente  dos  fins  que 
persegue49. 
Desde as primeiras cenas do Mandarim Maravilhoso de Bartok (direção: K. Szonyi, 
cenografia: I. Koos, 1969), o espectador se vê mergulhado na atmosfera de um mundo 
moderno,  onde  as  máquinas  impõem  seu  ritmo,  o  homem  perde  sua  personalidade  e 
torna‐se  anônimo.  Nesse  contexto,  o  Mandarim,  em  roupa  de  cerimônia,  é  o  símbolo 
dos  valores  esquecidos,  dos  valores  românticos  que  se  exprimem  na  sua  fidelidade  e 
dignidade.  Silhuetas  humanas  sem  rosto,  neutras,  evoluem  num  cenário  composto  de 
grades  corrediças,  de  luzes  de  postes  que  piscam,  de  construções  de  contornos 
imprecisos  pela  noite.  Contrastam  com  esse  cenário,  as  cores  e  o  comportamento  do 
Mandarim, o ritmo particular de seu jogo quase interiorizado, reflexo da nobreza de sua 
alma.  Aliás,  a  animação  admirável  dos  bonecos,  a  perfeita  sincronia  de  seus 
movimentos com a música, lhe fazem perder sua constituição quase escultural. Gyorgy 
Kroo descreve essas relações entre bonecos e música: O apogeu dessa adaptação é a corrida‐
perseguição  que  segue  o  extraordinário  dinamismo  e  o  terrível  crescendo  da  música  de  Bartok, 
sem  afetação  e  cheia  de  inspiração.  A  partir  desse  momento  até  o  acorde  final,  o  espetáculo 
provoca  um  deslizamento  que  transporta  o  espectador  a  um  outro  mundo.  A  simbólica  da 
descoberta  recíproca da jovem e  do Mandarim, o sentimento  de mistério  provocado pelo uso  de 
níveis  de  cena  diferentes,  correspondem  perfeitamente  à  música  dramática  do  Mandarim 
Maravilhoso50. 
A unidade dos cenários e dos personagens era um sonho de Brann? Szilagyi leva 
essa unidade até seu limite. O Mandarim Maravilho é uma obra decididamente moderna. 
Ela  constitui  uma  síntese  da  estilização  dos  bonecos,  confrontando  sua  expressão 
plástica e formal com a expressividade dramática da música.  
A música só nos interessa aqui na medida em que o teatro de bonecos toma seus 
temas do repertório musical. Ainda que o boneco tenha sido considerado, a uma certa 
época,  não  apenas  como  um  substituto  icônico  do  ator,  mas  também  como  um 
substituto do cantor. A partir do século XVII vai existir, em paralelo à Ópera, uma ópera 
de  bonecos,  como  existirá  mais  tarde  um  balé  de  bonecos,  em  paralelo  ao  balé.  Os 
teóricos  do  boneco  pensam  geralmente  que,  em  razão  de  suas  qualidades  formais,  o 
boneco se presta à execução de um repertório musical e introduz, como a música, um 
elemento de distanciamento.51 De um modo geral, os bonequeiros montam o repertório 
de  acordo  com  as  circunstâncias,  passo  a  passo.  O  Teatro  de  Bonecos  de  Salzbourg, 

                                                 
 Peter  Molnar  Gal.  Theatre  with  Puppets  (O  teatro  com  os  bonecos).  In:  Contemporary  Hungarian 
49

Puppet Theatre, editado por Dezso Szilagyi,Corvina Press, Budapeste, 1978, p. 25. 
 Peter  Molnar  Gal.  Theatre  with  Puppets  (O  teatro  com  os  bonecos)  In:  Contemporary  Hungarian  Puppet 
50

Theatre, editado por Dezso Szilagyi, Corvina Press, Budapeste, 1978, p.53 
 Holger  Sandig.  Die  Ausdrucksmöglichkeiten  der  Marionette  une  ihredramaturgischen  Konsequenzen 
51

(A capacidade expressiva da marionete e suas consequência dramátúrgicas).  

52 
CONVENÇÕES 

dirigido  sucessivamente  por  Anton  e  Hermann  Aicher,  é  a  única  exceção  no  caso.  Os 
Aicher  imitam  a  Ópera.  Seu  teatro  é  uma  cópia  em  miniatura  da  Ópera  com  seus 
cenários e seus atores. Os bonecos usam as mesmas  
roupas  que  os  cantores,  reproduzem  os  mesmos  gestos  e  introduzem  assim  o 
distanciamento evocado mais acima. Ele tem em geral uma dimensão cômica. O Allami 
Babszinhaz opõe‐se a essa prática criando um universo plástico específico em harmonia 
com  o  tema  musical,  signo  de  sua  modernidade.  O  caminho  que  leva  à  abstração  e  a 
uma total musicalidade é apenas esboçado pelo Allami Babszinhaz. Ele se aparenta ao 
esboçado e sonhado por Sokolov e seu teatro de “dinâmica musical”.  
O Teatro de Bonecos de Poznam também participa dessa experiência, sobretudo 
com  O  Mais  Bravo  (Najdzielniejszy  de  Ewa  Szelburg‐Zarembina,  música:  Krzysztof 
Penderecki  e  Mark  Stachowski,  direção  W.  Wieczorkiewicz,  cenografia:  J.  Berdyszak, 
1965). A ação da peça se desenvolve num mundo estilizado, compreendendo pardais e 
campos de papoulas. Os pardais tentam se colocar ao nível da abstração das frases e dos 
tons  musicais,  se  deslocando  fora  de  qualquer  associação  de  idéias,  e  traduzem  a 
música numa linguagem visual, como por analogia às notas e às pautas musicais.  
O uso do repertório musical e a associação feita através desses poucos exemplos 
entre  boneco  e  música  não  têm  a  mesma  significação  que  o  emprego  de  meios 
expressivos  variados.  A  música  é  apenas  um  dos  elementos  da  teatralidade,  pode  ser 
importante  na  expressividade  do  personagem,  mas  não  pretende  absolutamente 
determinar a independência da iconicidade do boneco. Ela cria uma atmosfera, orienta 
as tensões, assinala emoções e está mais ligada ao teatro sintético. Foram, pois, raros os 
teatros  que,  como  o  Allami  Babszinhaz,  souberam  permanecer  fiéis  ao  boneco  e  ao 
teatro  de  bonecos  homogêneo  sem  perder  ao  mesmo  tempo  sua  reputação  de  teatro 
artístico moderno. 
Nas fontes do clássico 

Em  meados  dos  anos  60,  o  Teatro  Miniatura  de  Gdansk  desenvolve  as 
capacidades expressivas do boneco em espetáculos de caráter monumental. Seu diretor 
artístico, Michal Zarzecki buscava a expressão de verdadeiras emoções humanas ou de 
seres antropomorfizados para restituir em cena o universo de um mundo fantástico ou 
lendário. Num estilo verista, os bonecos não tem movimentos apropriados e se limitam 
a  uma  gesticulação  sugestiva.  O  Moinho  de  Vento  Voador  (Latajacy  Wiatrak  de  A.  e  J. 
Afanassiev, direção: Michal Zarzecki) foi o acontecimento do Festival de Bucareste em 
1965.  Este conto  simbólico tratado num enquadramento plástico  muito  rico  (de Gizela 
Bachtin Karlowska), tem por tema a luta dos homens contra um bruxo moleiro que lhes 
impõe  viver  no  país  da  tristeza.  Os  bonecos  das  duas  crianças  percorrendo,  nesse 
moinho  voador, o  país da  tristeza,  o dos perfumes  e depois  o  dos jogos de cartas, são 
admiravelmente manipulados. A Vaca Cunegundes, personagem protetor do espetáculo, 
prodiga  amor  e  cuidados  para  proteger  as  crianças  da  ira  e  da  ameaça  de  seus 
agressores. Esses bonecos jamais deixaram o mundo do sonho e da poesia. Ilia Muromiec 
(de V. Kurdiumov, 1967), extraído das bilinas russas, toma a amplitude de uma epopéia 
cavaleiresca,  repleta  de  elementos  provenientes  da  imaginação  popular.  A  animação 

53 
METAMORFOSES 

dos  bonequeiros  é  de  uma  perfeição  espantosa,  às  vezes  mesmo  assustadora.  O 
universo  dramático  e  os  personagens  parecem  autênticos,  ainda  que  cercados  de  uma 
iconostase  estilizada.  O  primeiro  gesto  de  Muromiec,  um  herói  ruteno  sentado  há  33 
anos sobre o forno, tal uma escultura inanimada, perturba tanto os personagens quanto 
os  espectadores.  O  teatro  Miniatura  afirma‐se  mestre  na  arte  da  ilusão,  levada  ao 
extremo. 
Todos os grandes espetáculos criados num estilo clássico aconteceram na Europa 
nos anos 60. Menos numerosos nos anos que se seguiram, eles deixaram talvez também 
de  suscitar  o  interesse  da  crítica  e  dos  bonequeiros!  Mas  continuam  existindo  teatros 
praticando  a  homogeneidade  dos  meios  de  expressão.  Na  Inglaterra,  por  exemplo,  o 
Little Angel Theatre de Jon Wright ainda faz muito sucesso junto ao público do mundo 
inteiro, porque respeita os princípios da cena à italiana e as convenções da ilusão teatral. 
O teatro de bonecos dito homogêneo permanecerá por muito tempo a única referência 
para os artistas de outras disciplinas. Não é de espantar, portanto, que na Geórgia, Rezo 
Gabriadzé,  roteirista,  artista  plástico  e  diretor,  que  funda  em  1981  o  Teatro  de 
Marionetes  de  Tbilissi,  põe  em  cena  verdadeiras  marionetes.  Estilizadas,  elas 
representam o papel de herói, obedecendo às regras do cinema ou da arte dramática. No 
universo  de  Gabriadzé,  o  homem  é  um  homem  e  a  coisa  conserva  sua  função  primeira,  só 
penetrando em certos momentos no mundo de uma vida autônoma. Por exemplo, em Alfredo e 
Violeta,  onde  um  retalho  de  tecido  flutuante  simboliza  a  alma  desfalecida  de  Violeta  ou  uma 
folha de outono a morte da heroína, ou ainda em O Brilhante do Marechal de Fantieux, onde 
pombos  de  papel  trazem o  berço  de  Picasso  recém  nascido  ou brota  sob  nossos  olhos  uma  torre 
Eiffel de corda52.  
Gabriadzé  opta  por  um  mundo  artificial,  estilizado,  criado  por  um  artista  e  a 
marionete  clássica  lhe  convém  perfeitamente.  Teria  ele  sucumbido  a  seus  encantos  ou 
ela serve a seus interesses plásticos e a seu inesgotável senso de humor? 
A metamorfose do boneco não está em contradição com a existência de um teatro 
de bonecos dramático. Mesmo se o boneco, hoje, não ocupa mais exatamente a mesma 
posição,  ele  conserva  toda  sua  força  e  manifesta  claramente  sua  presença.  Um  jovem 
diretor, Piotr Tomaszuk é prova disso. Em seu período clássico, no teatro de bonecos de 
Bialystok,  ele  adapta  uma  obra  admirável,  A  Caça  à  Raposa,  de  Slawomir  Mrozek 
(cenografia: Mikolaj Malesza, 1989). O espetáculo surge num momento político particular, 
quando o regime comunista manifestava sinais de fraqueza. Tomaszuk reage à situação 
associando  em  seu  espetáculo,  três  peças  em  um  ato  de  Mrozek: A Serenata, A Raposa 
Filósofa e a Caça à Raposa, que segundo ele, formam um conjunto heterogêneo coerente.  
O  primeiro  ato  apresenta  a  Raposa  num  galinheiro.  No  poleiro,  galinhas  e  um 
galo  dormindo  –  bonecos  em  forma  de  sacos  cujas  cabeças  estão  apenas  esboçadas.  A 
raposa está a tal ponto maltratada pela vida, que seu pelo ruivo está todo sujo, seduz de 
uma em uma as mulheres do Galo, sem encontrar resistência. Mas na verdade o que ela 
quer é o Galo, que vai terminar por capturar. No ato seguinte, a Raposa vai visitar um 

                                                 
52 Audrone Girdzijauskaite. Maestro Rezo i jego teatr (Mestre Roze e seu teatro). Teatr Lalek, no. 3, 1998, p. 20. 

54 
CONVENÇÕES 

dignatário  da  Igreja,  um  Bispo  em  hábitos  de  cerimônia,  cujo  tamanho  monumental 
ultrapassa  em  várias  vezes  o  da  Raposa.  Ela  exprime  suas  dúvidas,  mas  não  encontra 
junto a ele nenhum reconforto. Segue‐se o ato III, a caça à raposa. A ação se passa num 
país que conheceu uma revolução. Todos os cidadãos agora são beneficiários do direito 
de  caça,  até  então  reservado  a  alguns  privilegiados.  Todos  caçam,  pois,  numa  floresta 
devastada,  destruída,  entre  aristocratas  decapitados  que  levam  sua  cabeça  debaixo  do 
braço.  É  obrigatório  usar  de  seu  privilégio,  mas  em  razão  da  falta  de  caça,  ninguém 
pode fazê‐lo. A Raposa, disfarçada de caçador, aconselha a caçar os animais domésticos, 
porque  ela  tem  justamente  o  Galo  ao  alcance  da  mão.  Os  caçadores  bebem  e  cantam 
para ganhar coragem, quando de repente ecoam os uivos dos lobos. É o salve‐se quem 
puder geral. A Raposa se refugia no alto de uma árvore, onde é atingida por uma bala 
perdida  atirada  pelo  Paralítico  que  desaparece  no  momento  oportuno.  Os  lobos 
continuam  a  uivar  sem  parar.  Eles  não  devem  mais  estar  muito  longe,  porque  seus 
lamentos parecem cada vez mais próximos. O crepúsculo se foi, a noite caiu. 
A Caça à Raposa entrou para a história do teatro polonês. Ele se inscreve no debate 
sobre  a  identidade  nacional  à  qual  o  teatro,  durante  o  comunismo,  consagrava  uma 
grande  parte  fazendo  uso  de  alusões  e  metáforas.  Quanto  à  forma,  esse  espetáculo  é 
uma peça moderna, que tenta uma vez mais nos convencer de que o teatro de bonecos 
homogêneo é de fato uma terra fecunda para a metáfora e o simbólico. Na continuação 
de  sua  carreira,  Tomaszuk  abandonou  esse  tipo  de  teatro  e  se  lançou  na  poética  da 
animação à vista, depois na do teatro de bonecos dos mais variados meios de expressão. 
Registremos apenas o fato de que ele inicia por meios clássicos, o que confirma o poder 
de  atração  desses.  Do  mesmo  modo,  se  duas  gerações  de  artistas  são  necessárias  para 
passar  do  teatro  clássico  ao  teatro  moderno,  essa  evolução  se  faz  agora  na  carreira 
pessoal  do  artista,  ao  fim  de  seus  três  ou quatro  primeiros  espetáculos.  Nosso  mundo 
vive uma tal aceleração que é natural que este ciclo se reduza rapidamente. Entretanto, 
é  importante  mantê‐lo  como  um  todo  e  que  o  primeiro  elo  reste  como  o  teatro  de 
bonecos clássico: homogêneo.  
Uma tal conclusão seria prematura se ela só se reportasse a um único caso. Por 
sorte,  existem  vários  assim.  Com  muita  freqüência  os  jovens  bonequeiros  iniciam  sua 
carreira  fazendo  uso  da  poética  clássica  do  teatro  de  bonecos  Esse  tipo  de  abordagem 
permite‐nos  supor  que  num  breve  prazo,  as  exigências  do  repertório  e  dos  criadores 
decidirão quanto à forma dos espetáculos, senão eles permanecerão num mundo onde a 
experiência humana é bastante limitada. Os espetáculos para crianças são, desse ponto 
de  vista,  particularmente  importantes.  Elas  geralmente  percebem  os  espetáculos  como 
uma  imagem  quase  autêntica  da  realidade.  Identificando‐se  quase  totalmente  com  os 
personagens,  elas  são  a  tal  ponto  tomadas  pela  ação  que  qualquer  amplificação  por 
diferentes  meios  de  expressão  é  inútil.  O  espetáculo  do  Teatro  Damiet  van  Dalsum, 
Hollebollebeer (direção: Cok Poelman, cenografia do autor, 1989) ilustra magnificamente 
esse  princípio.  Na  cena  deserta,  aparecem  bonecos  extraordinários,  de  formas 
fantásticas: crianças e entre elas, Jossi, diferente dos outros. Ninguém quer brincar com 
ele. Até mesmo seu urso de pelúcia que se perdeu. Só lhe resta refugiar‐se num mundo 
imaginário, aquele dos ursos. Na rosa dos ventos existem cabanas onde vivem ursos de 

55 
METAMORFOSES 

várias espécies. Também entre eles Jossi não pode mais ficar. Uma grande borboleta o 
leva então para um país onde jamais alguém fica sozinho. O mundo dos bonecos é uma 
criação à parte, e no entanto, as emoções aí pululam, a maior delas sendo a inquietação 
quanto à sorte do pequeno Jossi. O Teatro Damiet van Dalsum é um teatro figurativo, 
imaginativo  e  poético.  Ele  abre  uma  nova  perspectiva  para  o  teatro  de  bonecos 
homogêneo. Seus meios de expressão atraem o público e estimulam seu imaginário. Ele 
tem,  pois,  seu  lugar  garantido  e  confirma  essa  verdade  interior,  sentida  e  praticada 
ainda hoje por outros artistas.  
HETEROGENEIDADE 

A partir dos anos 50, a nova geração de bonequeiros não aprecia nenhum pouco 
restringir  seu  campo  de  criação.  Inicia‐se  a  ruptura  do  teatro  de  bonecos  com  sua 
poética tradicional. O primeiro obstáculo a ultrapassar é o das convenções do teatro de 
bonecos homogêneo.  
A entrada do ator 

Nada de mais fácil, já que o homem continua sendo seu fiel companheiro: cada 
punchman tem seu bottler e o criador de Petrouchka seu músico diante da empanada. Já 
não apareceram atores na cena do teatro dei Piccoli de Vittorio Podrecca ou do Teatro 
Central  de  Moscou?  Os  atores  apareciam  cada  vez  com  mais  freqüência  ao  lado  dos 
bonecos.  Ninguém  se  colocava  então  qualquer  questão  sobre  sua  presença  cada  vez 
mais  comum  no  palco,  enquanto  eles  integraram  logicamente  a  realidade  do  boneco. 
Hans  Richard  Purschke  se  insurge  contra  a  presença  simultânea  do  boneco  e  do  ator. 
Conservador, ele declarava em 1953, anteriormente a essa nova orientação: Ao surgir em 
seu mundo, (o homem) tira de imediato (ao boneco) sua realidade de boneco; ele perde sua força 
de persuasão, o encantamento se rompe e não se vê nele nada além de sua verdadeira natureza de 
papel  machê,  de  madeira  ou  de  pano.  Porque  o  aparecimento  do  homem  dá  ao  espectador  a 
possibilidade  de  comparar  e  ele  repara  então  na  imperfeição  da  aparência  e  dos  movimentos  do 
boneco. (...) O mundo  dos bonecos  e  o dos homens são  separados,  eles excluem  um  ao  outro. É 
flagrante no que diz respeito ao boneco e ao jogo de sombras irreal. Tem‐se vontade de dizer, para 
parafrasear Kipling, que um homem é um homem e um boneco um boneco e que eles jamais se 
encontrarão53.  
Sua  teoria  e  a  tradição  alemã  induzem  Purschke  ao  erro.  Ele  não  vai  tardar  a 
retratar‐se  publicamente,  reconhecer  que  a  colaboração  do  boneco  e  do  ator  dá 
excelentes resultados. Em 1958, ele acolhe Tankred Dorst, nas colunas de sua pequena 
revista  Perlicko‐Perlacko.  Dorst  vai  muito  mais  longe  do  que  o  teriam  imaginado  os 
partidários do teatro de bonecos homogêneo porque ele admite a presença do ator em 
todos  os  tipos  de  papéis  de  animação  à  vista:  O  boneco  conserva  a  distância  tanto  com 
respeito ao espectador quanto com respeito à coisa representada. Seus gestos não são “naturais”. 
Mesmo quando ele imita, ele cria uma distância, ele “mostra” também em conseqüência o que ele 
representa.  É  isso  que  torna  cômica  a  figura  que  imita  um  pianista  virtuoso.  É  importante 
                                                 
53 Hans Richard Purschke. Puppe und Mensch (O Boneco e o Homem) Perlicko‐Perlacko, I, 1953, p. 118 e 119.  

56 
CONVENÇÕES 

compreendê‐lo  para  o  estilo  do  espetáculo.  Tanto  nos  esforçávamos  ansiosamente  no  final  do 
século XIX em manipular as figuras da maneira mais dissimulada, mais misteriosa e mais opaca 
possível, quanto hoje admitimos revelar o indivíduo que manipula o boneco... E não é de modo 
nenhum uma idéia aberrante reutilizar, no lugar dos fios introduzidos pela primeira vez no final 
do século XIX, sólidos tubos metálicos aparentes, para dirigir as figuras. O espectador deve ficar 
consciente  de  que  essas  figuras  são  bonecos  que  atuam,  que  é  um  jogo,  uma  parábola  de  nossa 
realidade, um jogo observado até mesmo por aqueles que representam54. 
A partir de então o ator passa a ocupar um lugar na cena do teatro de bonecos. 
Com funções diferentes e segundo os personagens, ele pode ser de um lado o elemento 
lógico e natural do teatro de bonecos, (Gulliver no país de Liliput ou o bonequeiro Jean 
nas  ruas  de  Paris)  e  de  outro,  um  elemento  visível  da  convenção  teatral  enquanto 
animador  de  bonecos,  ponto  de  partida  da  animação  à  vista,  e  manter  relações 
metafóricas com eles, ou se transformar em matéria para “fabricar” um personagem. Os 
puristas  desconfiam;  eles  têm  a  impressão  de  uma  traição  da  parte  de  falsos 
bonequeiros  que  transformam  seus  meios  de  expressão  sob  pretexto  de 
experimentações  teatrais.  Outros  pensam  que  trata‐se  lá  de  um  problema  estético.  No 
colóquio  da  UNIMA,  em  1962,  Krystyna  Mazur  consagra  um  grande  espaço  aos 
elementos  plásticos  (artificiais)  presentes  na  arte  dramática  e  evoca  o  recurso  da  arte 
dramática contemporânea aos meios plásticos do boneco. Qualificando a convenção do 
teatro  de  bonecos  de  “convenção  absoluta”,  ela  pensa  também,  que  é  indispensável 
abri‐la a outros meios: Ainda que eu me incline diante da “especificidade” do teatro de bonecos, 
que eu me dê conta de que esta especificidade está hoje gravemente ameaçada no teatro polonês 
pelo abuso que se faz do ator vivo, da máscara e do objeto, ainda que eu saiba que é esta pequena 
figura  que  bate  ao  ritmo  de  seu  coração  e  não  uma  outra  forma  que  o  bom  bonequeiro  dota  de 
sentimento, eu penso, entretanto, que é preciso considerar esta forma de ação teatral como uma 
forma  de  ação  entre  outras  e  que  o  lugar  do  teatro  de  bonecos  na  arte  de  hoje  e  na  de  amanhã 
depende  disso.  Eis  porque  me  permito  tomar  um  pouco  de  vosso  tempo  para  essas  divagações 
sobre os amores do boneco e da arte teatral, sobre seus amores com o teatro de máscaras e mesmo 
com certas correntes da pintura, da escultura , da arte contemporânea. O fato de que o teatro de 
bonecos, na Polônia, não seja uma criação artificialmente isolada (no sentido artístico), algumas 
de  suas  experiências  tendo  mesmo  influenciado  outras  encenações  de  teatro  (poderia  se  falar 
longamente de sua influência sobre o cinema de bonecos e sobre os desenhos animados), é prova 
de sua evolução. Falar do teatro de bonecos, como de uma disciplina em si, ignorar suas relações 
com  as  outras  disciplinas  que,  no  entanto,  existem,  é  lançar  a  arte  do  boneco  num  impasse 
artístico levando‐o cedo ou tarde a sua degradação artística55.  
Mazur  ilustra  bem  o  clima  reinante  no  seio  dos  bonequeiros  na  Polônia,  na 
Tchecoslovaquia e em alguns outros países. Estar aberto a outros campos das artes deve 

                                                 
54 Tankred  Dorst.  Das Marionettentheater der Gegenwart (O teatro de bonecos do presente).  Perlicko‐Perlacko, 
II, 1958, p. 134‐135.  
 Krystyna  Mazur.  Os  amores  da  marionete  (ou  os  laços  do  teatro  de  bonecos  com  o  teatro  dramático  –  e  não 
55

apenas)  In:  Conferência  da  UNIMA:  O  Teatro  de  bonecos  e  suas  relações  com  as  outras  disciplinas 
artísticas. Varsóvia, 19‐24, junho 1962, p. 29. 

57 
METAMORFOSES 

ser uma atitude natural para cada artista. Certos teóricos do teatro quiseram fazer desse 
princípio  uma  lei,  um  critério  de  modernidade  do  boneco.  Os  “verdadeiros” 
bonequeiros se sentiam pegos  numa armadilha e adotaram uma atitude  intransigente. 
Que  compromisso  assumir?  Numa  reflexão  estética,  talvez,  mas  sem  que  ninguém  se 
engaje sobre a posição do boneco na hierarquia da arte. Harro Siegel dá o primeiro sinal 
e aparece como exceção. Ele publica o ensaio de Mazur em 1965 e o completa com suas 
observações:  Não  se  deveria exigir de modo dogmático que  o  teatro de bonecos mostre apenas 
bonecos e jamais seu animador humano. Mas é justamente porque recentemente nós temos visto 
muitas vezes bonecos e atores vivos apresentando‐se juntos, e isso nos mais diversos estilos, (os 
erros e os exageros próprios à moda não estando ausentes disso, claro), que é preciso assumir essa 
transformação do real como critério. Se o boneco e o ator servem todos os dois a um todo superior, 
se eles restam, por assim dizer, no mesmo nível de projeção, então entraremos numa nova e fértil 
região teatral tanto quanto reconquistaremos um “teatro em si”, fora do tempo56.  
Siegel cita exemplos de espetáculos conhecidos onde o teatro de bonecos utiliza o 
ator ou suas mãos. Favorável ao uso de máscaras e à prática da pantomima, ele evoca os 
diferentes  gêneros  dramáticos  japoneses  como  o  Nô,  o  Bunraku  e  o  Kabuki  que  se 
enriquecem  mutuamente. O  isolamento do teatro de bonecos se rompe na  medida em 
que  ele  entretém  relações  com  as  outras  disciplinas  artísticas  caucionadoras  de  sua 
evolução.  Siegel  teria  preferido  uma  certa  relatividade,  lamentando  os  erros  e  os 
exageros  da  moda  quanto  à  presença  do  ator,  mas  ele  foi  essencialmente  favorável  à 
abertura do teatro de bonecos a outros meios de expressão. 
Brincadeiras de crianças 

Se os bonequeiros dos anos 50 têm sua fonte no folclore, os dos anos 60 escolhem 
as brincadeiras infantis como modelo de estilização, estrutura de jogo e fonte teatral. O 
desenvolvimento  do  psicodrama,  o  jogo  enquanto  fonte  da  cultura  (Homo  Ludens  de 
Huizinga)  e  as  pesquisas  sobre  o  folclore  das  crianças  (a  enumeração  ou  a  recitação 
rítmicas)  influenciam vários  artistas  entre  os  quais  o  diretor  Jan  Dorman.  Em  1958  ele 
apresenta  no  Teatro  para  Crianças  de  Zaglebie,  na  Polônia,  O  Alfaiatezinho  Valente 
(Krawiec Nietczka), um  conto atualizado e interpretado  por  atores  que têm diante de  si 
bonecos  e  acessórios  enquanto  signos  icônicos  de  personagens.  Eles  interpretam  seus 
personagens sem realismo e declamam o texto ao ritmo das brincadeiras infantis. 
Arnold  Burov,  do  Teatro  de  Riga,  inspira‐se  no  universo  infantil  para  sua 
encenação dos Músicos de Breme, em 1963. O espetáculo acontece numa grande loja onde 
os  atores  (os  vendedores  da  sessão  de  brinquedos)  divertem  a  jovem  clientela.  Entre 
cubos  delimitando  o  lugar  da  ação,  personagens  representam  com  máscaras  e 
brinquedos. Eles os trazem sob o braço, falam em seu lugar (um cachorro, um gato, um 
galo)  e  executam  certos  gestos  em  seu  nome.  Tudo,  neste  espetáculo,  visa  à  metáfora. 
Pistolas de bandido servem de rolha para fechar o barril de cerveja, um pau substitui a 

                                                 
 Harro  Siegel.  Schauspieler  und  Puppenspieler  (O  ator  e  o  bonequeiro  ).  In:  Puppentheater  der  Welt, 
56

Henschelverlag, Berlim, 1965, p. 24. 

58 
CONVENÇÕES 

agulha de uma máquina de costura improvisada57. A convenção do jogo infantil serve 
de  trampolim  para  uma  linguagem  poética,  ingênua  e,  contudo  metafórica  no  sentido 
próprio da palavra. Na mesma época, no registro do teatro teatralizado, teatros tchecos 
fazem  tentativas  similares  e  retomam  esta  convenção  onde  os  atores  constróem  o 
espetáculo à vista. Após o Teatro Radost de Brno e o de Liberec, o princípio foi retomado 
na Tchecoslováquia por Miroslav Vildman, diretor, no Teatro Drak de Hradec Kralove 
numa divertida tragicomédia Conto Saído de uma Mala (Pohadkaz kufru, 1965). Esse título 
tornou‐se mesmo simbólico, oriundo simultaneamente do folclore, do jogo infantil e de 
um  elemento  cênico,  uma  mala.  Dois  palhaços  esvaziam  uma  mala  e  nela  descobrem 
um conto que eles fazem representar por uma trupe de atores com bonecos de barra – 
uma  estilização  elegante  de  bonecos  populares  tchecos.  Os  atores  emprestam  suas 
qualidades  motoras  e  vocais  a  esses  bonecos  experimentando  fisicamente,  com  eles, 
uma boa parte dos acontecimentos ora divertidos e agradáveis, ora desagradáveis. 
Inúmeros  outros  teatros  seguem  essa  convenção,  mas  rapidamente  deixam  de 
sentir necessidade de representar as cenas de exposição (uma brincadeira de criança ou 
um  número  de  clown).  Os  valores  semânticos  da  representação  foram  implicitamente 
modificados e ninguém levantou questões sobre a contribuição artística da animação à 
vista.  E  de  que  ela  pudesse  mudar  a  expressão  artística  do  boneco.  Para  muitos 
bonequeiros,  constatar  que  existe  uma  diferença  entre  dois  tipos  de  animação  (à  vista 
ou  oculta)  basta‐lhes  para  adotar  esse  princípio  como  nova  norma  da  modernidade  e 
praticá‐la.  Não  existe  aí  nada  de  novo  no  plano  da  psicologia  humana.  Felizmente,  os 
anos 60 possuem mais inventores do que epígonos. Eles se encaminham todos para um 
teatro de meios de expressão variados, conseqüência lógica da modernização do teatro 
de bonecos. Seria possível fazer remontar essa corrente à vanguarda teatral do início do 
século,  à  Pierre  Albert‐Birot,  Ivan  Goll  e  Enrico  Prampolini  ou  ao  teatro  de  Erwin 
Piscator?  
Os primeiros adeptos 

Entre os primeiros adeptos dessas novas convenções, muitos são jovens criadores 
que  se  opõem  á  tradição  realista.  Nós  conhecemos  poucos  deles  porque  vivem  em 
países  onde  as  condições  sociais  não  são  favoráveis  às  experiências  teatrais  e  a  sua 
difusão.  Na  Rússia,  o  diretor  Borys  Ablynin  demonstra  coragem  ao  se  lançar  nessa 
aventura,  a  dois  passos  do  teatro  de  Obraztsov  que,  na  época,  permanecia  hostil  a 
qualquer  mudança.  Aliás,  Ablynin  apreciava  o  trabalho  de  Mikhail  Korolev  (Grande 
Teatro  de  Bonecos  de  Leningrado)  mas,  provavelmente,  não  esperava  ver  eclodirem 
idéias mais audaciosas em Moscou. As idéias de Ablynin se manifestam na cena com a 
Cotovia  de  Jean  Anouilh  (1964)  e  nas  declarações  de  seu  mais  próximo  colaborador,  o 
cenógrafo  A.  Sinieckii:  Eu  sonho  com  um  teatro  poético.  Quero  que  nossas  reflexões  sobre  a 
vida  não  sejam  terrivelmente  prosaicas,  nem  empiricamente  mesquinhas,  que  viva  nelas  uma 
grande  idéia  poética  generalizadora.  Uma  idéia  metáfora,  uma  idéia  fulgurante.  Não  creio  no 
teatro que seja um reflexo da vida ou uma cópia da vida. Não creio na verossimilhança realista, 

                                                 
57 Henryk Jurkowski. Leningrado – Moskwa (Leningrado – Moscou) Teatr Lalek, 1964, no. 30, p. 18. 

59 
METAMORFOSES 

tenho medo de que a idéia se perca em detalhes derrisórios e cansativos. Também não creio que de 
um  milhar  de  detalhes  realistas,  por  mais  que  sejam  verossímeis  e  verdadeiros  achados,  possa 
nascer, jorrar e iluminar uma verdadeira idéia poética58.  
A  poética  da  Cotovia  repousa  sobre  os  atores,  máscaras  e  bonecos  de  diferentes 
tamanhos, recobertos de papel jornal, manipulados à vista ou ocultos. O resultado é um 
espetáculo  rico  e  simbólico,  comportando  inúmeras  cenas  cujas  perspectivas  mudam; 
ora  em  plano  aproximado  como  o  diálogo  entre  Joana  d’Arc  e  o  Capitão  montados  a 
cavalos  lançados  a galope, ora  na  fuga  de uma paisagem representada por um  desfile 
de  tropas  armadas  sob  a  forma  de  pequenos  bonecos  colocados  na  ponta  dos  dedos. 
Uma forte tensão dramática subentende o conjunto, como a cena do julgamento final da 
donzela,  onde  um  grupo  de  personagens  disformes  e  mascarados  cercam  a  heroína  e 
contrastam com sua palidez de atriz.  
O cronista da Vietchernaïa Moskva faz uma crítica elogiosa dessa jovem trupe, que 
consegue exprimir perfeitamente a tensão dramática da peça, transformada num “hino à 
liberdade de pensamento e à coragem e não recua diante de nada, nem mesmo diante da morte59. 
Essa  opinião  se  refere  mais  à  peça  de  Anouilh  que  ao  espetáculo  de  Ablynin. 
Entretanto,  a  interpretação  desse  espetáculo  não  foi  tão  fácil.  Bonecos  e  máscaras, 
confeccionados em papel machê, fazem alusão à atualidade dos jornais. Ao aceitar essa 
aproximação, compreende‐se que se trata da atualidade cotidiana e, querendo reforçar o 
efeito,  Ablynin  faz  seus  atores  lerem  LʹHumanité. A  palavra  “a  humanidade”  combina 
com  o  sentido  do  espetáculo  mas  se  identifica  imediatamente  ao  cotidiano  do  partido 
comunista  francês  O  título  do  jornal  salta  aos  olhos  dos  espectadores  e  complica  o 
sentido hermenêutico do espetáculo. Questionado a esse respeito, Ablynin declara que 
era  pura  casualidade.  Era  preciso  um  jornal  francês  e  L’Humanité  era  o  único  que  se 
conseguia  encontrar  em  Moscou.  Eu  não  podia  acusá‐lo  de  ter  dificuldades  materiais 
para  produzir  seu  espetáculo,  mas  foi,  na  época,  uma  boa  lição  de  semiologia  teatral 
para todos os bonequeiros. Cada elemento do espetáculo possui um sentido definido e 
só os espectadores (e os artistas) carecendo de conhecimento não percebem o “perigo” 
escondido no acaso.  
O repertório dramático em jogo: Michael Meschke 

Na  suécia,  Michael  Meschke  evita  esse  perigo  e  busca  sua  inspiração  no 
repertório do teatro dramático (Hoffman, Brecht, Kleist e Giraudoux). No que respeita 
às  doutrinas  artísticas,  podendo  escolher  livremente  seus  textos  e  seus  meios,  ele  põe 
em cena, em 1964, Ubu Rei (cenografia: Franiszka Themerson). Uma dupla confrontação, 
de um lado, entre um texto engajado e bonecos (planos e muito desenhados), de outra 
parte,  entre  bonecos  e  atores‐mímicos  (entre  eles  o  enorme  personagem  do  grotesco 
Ubu, papel criado por Allan Edwal e retomado pelo próprio Meschke). O domínio do 

                                                 
 Natalia Smirnova. Iskusstvo igraiouchtchikh kokol (A arte da representação com bonecos) Iskusstvo, Moscou, 
58

1978, p. 177. 
59 Natalia Smirnova. V teatre kokol  (Ao teatro de bonecos). Iskusstvo, Moscou, 1978, p. 11. 

60 
CONVENÇÕES 

tirano  sobre  seus  súditos  repete  o  terrorismo  do  homem  –  um  mímico  –  sobre  esse 
mundo  de  formas  gráficas,  desdobrando  assim  o  efeito  de  distância  do  grotesco 
existente.  Themerson,  inspirado  nas  ilustrações  de  Jarry,  cria  um  rico  universo  de 
criaturas  planas,  esboçadas  a  grandes  traços  de  lápis  preto  sobre  um  fundo  branco.  A 
maioria delas não são animadas, mas se deslocam alinhadas (para o desfile das tropas), 
submissas ao jogo do ator como na cena de tortura. Ubu veste uma roupa branca, como 
todos os  personagens.  Sobre seu  ventre está traçado um círculo concêntrico preto:  um 
alvo vivo. Seu rosto, pintado de branco, é acentuado por uma enorme boca voluptuosa. 
Ele  se  agita  desajeitadamente  entre  esses  personagens  que  só  dependem  dele.  Sua 
concupiscência grotesca e desajeitada se revela eficaz e lhe permite chegar a seus fins, o 
que a torna verdadeiramente aterrorizante. O uso da pantomima, em perfeita harmonia 
com o texto e o mundo gráfico, cria um espetáculo admirável, num estilo não‐mimético, 
entretanto, esteticamente e intelectualmente engajado.  
Como  se  dizia,  de  brincadeira,  no  Festival  de  Bucareste,  em1965,  Meschke 
representava o “teatro branco” em oposição ao “teatro negro” theco. Meschke situa‐se 
fora  da  moda  da  época  e  experimenta  suas  próprias  convenções.  Ele  sugeriu 
discretamente  aos  bonequeiros  que  a  presença  do  ator  só  enriquece  o  espetáculo  por 
contraste  com  um  mundo  plástico  de  traços  formais  e  expressivos.  Werner  Kliess,  do 
Theater  Heute,  descobre  no  espetáculo  de  Meschke,  uma  abordagem  nova  do  boneco: 
Não é a riqueza de idéias, nem a habilidade com a qual ele tira partido das diferentes convenções 
que  determinam  o  caráter  revolucionário  do  teatro  de  Meschke,  mas  sua  atitude  soberana  para 
com  o  boneco.  Enquanto  os  bonequeiros  estão,  de  modo  geral,  fascinados  pelo  boneco  e  se 
contentam em mostrar sua beleza ou a de uma história que lhe corresponde, Meschke considera‐o 
um material – um meio de expressão60. 
Sem desejo de subtrair nada ao julgamento de Kliess, é necessário precisar que a 
evolução  do  teatro  de  bonecos  nos  anos  60  se  desenvolve  graças  à  energia  criativa  de 
toda uma geração. Se a via escolhida por Meschke é original, muitos outros criadores, 
em toda a Europa, também tiveram idéias importantes.  
No cruzamento dos meios de expressão 

Andrzej Dziedziul, diretor e ator polonês cria sob o título de A Situação do Destino 
de  Fausto  (1968),  um  monólogo  inspirado  em  certos  temas  de  Marlowe  e  de  Goethe. 
Num  palco  pequeno,  um  enorme  globo  terrestre  indica  um  escritório  de  trabalho. 
Dziediul  encarna  Fausto.  Mefisto  é  um  boneco  ventríloquo  do  qual  um  ator  extrai  os 
sete  pecados  capitais.  O  globo  é  então  dotado  de  uma  cabeça  plantada  encima  de  um 
frágil pescoço, metáfora da perturbação que nele se produz. A mulher é a partir daqui 
seu único interesse exceto quando Fausto sobe a montanha onde assiste com Mefisto à 
noite  de  Walpurgis.  Uma  dezena  de  figuras  suspensas  na  beira  de  um  guarda‐chuva 
gira como um pião e representa a dança endiabrada das bruxas. Na cena final, Fausto 
conhece novos embates amorosos. Ele acaricia o manequim de Margarida (o globo e a 

                                                 
60 Marionetteatern (programa aniversário)Theater Heute, Estocolmo, 1968, p. 30  

61 
METAMORFOSES 

cabeça), tenta livrá‐la de seu espartilho e se atrapalha com os elementos do manequim. 
Nasce  assim  uma  nova  imagem  na  qual  Fausto  enredado  nos  fios,  se  afasta  de 
Margarida cujo ventre se abre para deixar aparecer  
o diabo. Mefisto conduz esta estranha equipagem puxada por Fausto. A metáfora 
final está de acordo com a tradição do Fausto da Renascença, cujos aspectos misóginos 
não se podem negar.  
Os  meios  de  expressão  modernos  e  a  linguagem  teatral  metafórica  permitem 
todas  as  visões  subjetivas  da  obra.  O  valor  emocional  e  filosófico  de  um  espetáculo 
dramático não dependem unicamente da linguagem teatral e material. Ele consiste em 
exprimir  as  experiências  humanas,  sem  separá‐las  dos  meios  de  expressão  do  homem 
ou  do  boneco.  A  expressão  da  linguagem  faz  parte  integrante  do  conteúdo  da 
mensagem,  ou  constitui  a  própria  mensagem.  Isso  estabelece  a  preponderância  do 
teatro de bonecos de meios de expressão variados sobre o teatro de ator: sua mensagem 
pode  ser  muito  mais  rica  e  com  muito  mais  nuances.  A  Situação  do  Destino  de  Fausto, 
representada por um único ator que manipula todos os acessórios, faz o subjetivismo da 
mensagem chegar ao extremo. Ele pode transmitir experiência e amargura pessoais. 
Um  outro  jovem  diretor,  Karel  Makojn,  segue  na  mesma  direção.  No  final  dos 
anos 60, ele funda um teatro em Praga, o Vedene Divadlo. No final de sua formação, ele 
se  rebela  contra  o  teatro  de  Estado,  opõe‐se  ao  mimetismo  do  teatro  de  bonecos 
homogêneo e reivindica um teatro de bonecos provido de contrastes e de justaposição 
de diferentes elementos. Em 1968, ele reúne em torno de si um grupo de estudantes da 
AMU,  bonequeiros  e  atores,  que  sobreviveram  à  invasão  da  Tchecoslováquia  pelas 
tropas do pacto de Varsóvia. Em razão dessas difíceis condições políticas, seu teatro só 
durará duas estações. Makojn recebeu o apoio dos críticos mais importantes, entre eles, 
o de S. Machonin que expõe claramente os motivos do surgimento desse teatro: O que 
caracterizava até o momento a evolução do teatro de bonecos tcheco, era a construção de diversas 
teorias que se exprimiam geralmente sob forma de proibições. Foi contra essas normas negativas 
que se levantou o Vedene Divadlo, e portanto, contra o fato de se confinar o boneco ao espetáculo 
para  crianças,  contra  idéias  datadas  do  início  do  século,  contra  essa  visão  do  teatro  de  bonecos 
que  faz  dele  uma  instituição  ética  e  não  estética,  e  contra  sua  falta  de interesse  pelas  correntes 
artísticas modernas61.  
O Vedene Divadlo monta peças que não figuram no repertório clássico do teatro 
de bonecos, como O Mal‐Entendido de Albert Camus, O Jardim Misterioso de F. E. Burnet, 
Hop, Signore! de Michel de Ghelderode. Na peça de Camus: duas estalajadeiras – a mãe 
e a filha – matam seus clientes atraídas pelo lucro. Um belo dia elas matam sem saber 
seu  filho  e  irmão  que  volta  da  guerra.  O  diretor  preocupa‐se  com  a  interação  entre 
diferentes elementos: ator e boneco, entre o mundo natural do homem (presente no jogo 
do  ator  vivo)  e  o  de  seus  mecanismos,  do  automatismo  e  da  determinação  que  se 

                                                 
 Wlodizimierz    Felenczak.  Teatry  bez  sceny:Vedene  Divadlo  (Teatros  sem  cena:  o  Vedene  Divadlo)Teatr 
61

Lalek, 1970, no. 4, p. 39.  

62 
CONVENÇÕES 

exprimem  num  boneco  estático.  Wlodzimierz  Felenczak,  diretor  e  amigo  de  Makojn 
escreve: O espetáculo se desenvolve em três planos que se entrecruzam: 
‐ o plano poético dos comentários filosóficos do autor, que vamos descobrir sobretudo no 
nível oral do espetáculo. 
‐  o  plano  da  realidade  nua,  de  um  naturalismo  de  feira.  Jean  arrota  bebendo  cerveja. 
Mulheres afiam uma faca, cortam a cabeça de um pombo e o depenam, elas observam “o homem”, 
lavam suas mãos ensanguentadas. 
‐ o plano mítico dos bonecos. Marionetes imensas de “oito quilos”, com cabeças grosseiras, 
articulações  aparentes  e  gestos  elementares,  sempre  os  mesmas,  dirigidas  por  marionetistas  à 
vista. Não há como a marionete para alcançar uma tal qualidade expressiva num gesto, um olhar, 
uma expressão tão perfeita da tristeza no movimento quase humano de um braço que se abaixa, 
numa agitação desesperada, no contraste entre as marionetes e os objetos com os quais os homens 
acabam de representar 62.  
Os  outros  espetáculos  de  Makojn  têm  qualidades  similares.  Ele  desenvolve  a 
função  simbólica  e  mitológica  da  atuação  do  boneco,  uma  proposta  que  ultrapassa 
inteiramente  a  consciência  estética  e  cultural  dos  bonequeiros,  particularmente  na 
Tchecoslováquia.  
Uma teoria da metamorfose 

Estabelecer uma primeira síntese teórica do que se passava no mundo do boneco 
tornou‐se uma necessidade urgente. Às mudanças pregadas pelas teorias singulares de 
Craig,  Brecht  depois  e  Artaud,  faltavam,  mesmo  intuitivamente,  a  elaboração  de  uma 
reflexão específica para a arte do boneco. Percebendo no fenômeno do cruzamento do 
teatro de atores e do teatro de bonecos, um “terceiro gênero”, tendendo para um teatro 
“teatral”,  eu  avançava  as  seguintes  idéias:  A  desmistificação  da  máquina  teatral,  os 
procedimentos revelados ao espectador, os inúmeros meios de expressão, de todas as origens, tudo 
isso  tende  há  alguns anos  para  um  “terceiro  gênero”  e  mostra que  o  teatro  de  bonecos  clássico 
aparentemente teve sua época (...) O plano de atuação: o do ator vivo e o do boneco, tais são seus 
principais  atributos.  A  noção  de  super‐marionete,  no  teatro  de  bonecos,  há  muito  tempo  está 
ultrapassada, está, de algum modo desvalorizada63.  
Depois disso eu me interrogava, para saber em que medida esse terceiro gênero 
podia  se  inscrever  na  continuidade  do  teatro  de  bonecos.  A  desmistificação  poderia 
estar na continuidade, pois ao quebrar a sacrossanta via mágica do boneco, ela estaria 
buscando  quebrar  a  da  materialidade  e  corporeidade  do  ator  vivo?  Numa  palavra,  a 
reforma do teatro de bonecos punha em primeiro plano o jogo  do homem, portanto o 
do  ator.  Em  1966,  eu  pensava  que  a  despeito  do  impulso  impetuoso  do  teatro  de 
bonecos  aos  diversos  meios  de  expressão,  o  teatro  de  bonecos  tradicional,  domínio 
                                                 
 Wlodizimierz    Felenczak.  Teatry bez sceny:Vedene Divadlo  (Teatros  sem  cena:  o  Vedene  Divadlo)Teatr 
62

Lalek, 1970, no. 4, p. 40 
 Henryk  Jurkovski.  Perspektywy rozwoju teatru lalek (As perspectivas de evolução do teatro de bonecos). Teatr 
63

Lalek, 1966, no. 37‐38, p. 3.  

63 
METAMORFOSES 

insubstituível do milagre da animação da matéria, ainda tinha chances de sobreviver e 
de  conservar  sua  glória.  Não  deduzam  disso  que  eu  não  apreciava  os  valores  desse 
terceiro  gênero  enquanto  gênero  dramático  dando  origem  a  figuras  da  linguagem 
poética.  Em  1971,  eu  concluía,  com  muito  otimismo,  uma  conferência  que  dava  em 
Bochum:  Quando  observo  a  evolução  do  teatro  de  bonecos  clássico  e  a  do  teatro  de  bonecos 
moderno,  sempre  me  espanto  de  que  ainda  se  possa  descobrir  tantas  formas  novas,  nesses  dois 
gêneros. Admiro a inesgotável riqueza desses dois gêneros artísticos. São belos e variados como só 
a  vida  pode  ser.  Tenho  às  vezes  o  sentimento  de  que  graças  à  esses  gêneros  artísticos  nós 
entramos no campo do infinito64. 
Esse  otimismo  foi  um  sinal,  para  a  maioria  dos  teóricos,  de  que  esse  teatro  de 
bonecos de meios de expressão variados tornava‐se norma. Mas o futuro do boneco, em 
sua forma primeira (figurativa e animada) permanecia sempre atual. Lenora Chpet, no 
simpósio de Lodz em 1967, exprime a inquietação geral quanto ao futuro do teatro de 
bonecos diante da forte aceleração das inovações que corriam o risco de pôr em causa 
seus  fundamentos.  Nós  transformamos,  diz  ela,  o  intérprete  em  objeto,  em  acessório,  em 
elemento  de  cenário,  enquanto  conseguimos  fazer  do  cenário  um  intérprete.  Para  terminar, 
fragmentamos  também  o  ator,  tiramos‐lhe  seus  principais  meios  de  expressão,  seu  corpo,  seu 
gesto, sua aparência, seus olhos e sua mímica, nós o privamos mesmo de sua voz confiando essa 
tarefa a aparelhos sonoros e ao gravador. Levamos o efeito de distanciamento do ator até limites 
que o próprio Brecht jamais teria imaginado. Poderíamos admitir que é exatamente a isso que nós 
chamamos teatro contemporâneo. Tudo já foi feito e se poderia acreditar que não há mais nada a 
analisar nem a destrinchar. O que nos resta, pois, a fazer? Seria preciso remontar todas as peças 
como um jogo que uma criança desmontou. (...) Nós já conhecemos todo o nosso alfabeto e chegou 
para nós o momento de falar algo mais, de dizer coisas mais importantes. (...) Deveríamos trazer 
idéias.  O  teatro  de  bonecos,  o  teatro  de  acessórios,  o  teatro  de  figuras  ou  o  teatro  de  imagens 
visuais e materiais – aliás, chamem‐no como quiserem – deveria ser um meio para exprimi‐las65. 
Lembrar  que  os  meios  de  expressão  devem  ser  um  meio  para  exprimir  idéias 
vinha  bem  a  propósito.  Os  bonequeiros,  fascinados  durante  dezenas  de  anos  pela 
especificidade do teatro de bonecos mesmo quando eles o tinham ultrapassado, indo às 
vezes até a fazê‐lo voar em pedaços, mantinham sua atenção concentrada nos meios de 
expressão,  Seria  injusto,  face  ao  conjunto  da  profissão  dizer  que  todos  os  artistas 
compartilhavam  desse  interesse.  No  Ocidente,  os  bonequeiros  tentaram  encontrar  seu 
lugar  nesse  novo  contexto  sem  abandonar  seus  hábitos  de  jogo  individual,  ou  em 
família. Eles não podiam utilizar tantos meios nem atores quanto os teatros dos países 
orientais,  mas  eles  podiam  sempre  mudar  a  estética  de  seu  espetáculo  e  resignar‐se  a 
imitar os seres vivos em favor de um jogo poético; as criações de Joly ou de Lafaye são 
um exemplo disso.  

                                                 
 Henryk  Jurkovski.  Die  Verbindug  von  Menschen.  Puppen  und  Masken  auf  der  Bühne  als  philosophische 
64

Metaphor (Os elos entre os homens, os bonecos e as máscaras sobre a cena enquanto metáfora filosófica). IN: A arte 
do Boneco da nossa época. Estudos da teoria do boneco. UNIMA. Varsóvia, 1972, p. 31.  
65 Lenora Chpet. Wypowiedz... (Declaração...) Teatr Lalek, 1967, no. 41‐42, p.. 57 

64 
CONVENÇÕES 

A matéria entra em cena 

Outros,  na  França,  como  Claude  e  Colette  Monestier,  foram  os  primeiros  a 
rejeitar  a  estética  do  teatro  clássico  criando  em  torno  de  1970  o  Teatro  no  Fio. 
Abandonando  a  empanada,  eles  substituem  primeiro  a  beira  da  empanada  e  a 
empanada  por  um  fio  estendido  horizontalmente  a  dois  metros  acima  do  chão.  Nesse 
espaço,  animando  à  vista  bonecos  e  figuras  criadas  com  todo  tipo  de  materiais,  eles 
tornavam‐se  os  protagonistas  de  um  teatro  material.  A  intriga  de  cada  peça  enquanto 
tal  e  o  processo  do  nascimento  da  realidade  teatral  tornaram‐se,  desde  então,  o  tema 
dos  espetáculos  dos  Monestier  e  de  muitos  bonequeiros  da  época.  Após  ter  aplicado 
esse  princípio,  eles  ficaram  fascinados  pelas  qualidades  do  papel,  material  de  uma 
elegância sem par, que se dobrava a sua imaginação tomando as formas traçadas pelas 
tesouras  e  participando  da  narrativa  poética  das  aventuras  dos  heróis.  Assistiu‐se  ao 
triunfo do papel que permanecerá seu material favorito. Garganteatro, para adultos, e O 
Pequeno Gargântua, para crianças a partir dos temas de Rabelais, narram as aventuras de 
Gargântua  com  enormes  rolos  de  papelão  ondulado.  O  papelão  lhes  permite  criar 
personagens, cidades, o mundo inteiro. Eles ali descobrem, em harmonia com o tema da 
peça,  uma  expressão  erótica  particular.  Um  rolo  de  papelão  ondulado  para  embalagem 
delimita  o  espaço  de  cena,  escrevia  Annie  Gilles,  sendo  ainda  utilizado  como  um  ou  vários 
bonecos.  Basta  então  desenrolar  o  papelão  e  depois  enrolar  as  duas  extremidades  para  formar 
duas colunas, basta que uma das colunas receba na parte superior uma dupla almofada rosa para 
“virar” Gargamelle e que a outra seja completada com um balãozinho de pele de intestino animal 
judiciosamente colocado para que ela represente Grangousier. É assim que os bonequeiros podem 
começar  a  revelar  o  caráter  espetacular  dos  temas  sexuais  da  obra,  que  uma  elocução  não 
conseguiria sublinhar com tanta eficácia, e que seria inaceitável com outros atores que não fossem 
o boneco reduzido a alguns signos engraçados e pertinentes66.  
Não é a primeira vez que os temas eróticos aparecem aqui, com distância, ironia 
e poesia, mas essa capacidade está ligada aos limites do realismo do ator. O boneco, o 
objeto  e  a  matéria  trazem  um  elemento  de  distanciamento  imediato  quando 
ultrapassam seus limites e, em particular, quando os bonequeiros representam à vista. 
Os  Monestier  serão  considerados,  na  França,  como  os  que  quebraram  o  tabu  da 
empanada e mostraram que a matéria de que é confeccionado o boneco, possui, por si 
só, uma tremenda força expressiva. 
O distanciamento 

Inúmeros espetáculos à vista lhes sucederão, até o momento em que reinará uma 
nova  geração  de  artistas  que  só  conhecerá  esse  princípio  de  jogo.  Esse  tipo  de 
espetáculo  revela  o  manipulador,  claro,  mas  não  unicamente.  Porque  se  o  animador 
pode  ser  assimilado  a  um  autor,  àquele  que  dá  a  vida  e  a  palavra,  ele  pode  ser 
assimilado a um contador, a um narrador. O jogo à vista anuncia a chegada do teatro 

                                                 
 Annie  Gilles.  Pequeno organum para o boneco. Centro  Departamental  da  Documentação  Pedagógica  das 
66

Ardennes, Charleville‐Mézières, 1976.  

65 
METAMORFOSES 

narrativo.  Esse  teatro  remonta  a  um  passado  muito  longínquo  e  não  é  preciso  ligá‐lo 
apenas  ao  teatro  épico  de  Brecht.  Na  Ásia  como  na  Europa,  existem  inúmeros 
contadores  ambulantes  que  ilustram  suas  histórias  com  bonecos,  desenhos  (como  os 
Mooritaten na Alemanha), ou figuras esculpidas (os retábulos na França e na Espanha, 
os raree show na Inglaterra). Eles associam palavras e imagens, que se completam umas 
as  outras,  e  geralmente  não  recorrem  ao  distanciamento  que  constitui  a  base  épica  do 
teatro  de  Brecht.  É  mesmo  útil  precisar  o  sentido  que  se  dá,  às  vezes  abusivamente,  a 
sua  noção  de  efeito  de  distanciamento  (Verfremdungseffekt).  De  acordo  com  Joachim 
Fiebach,  um  teórico  do  teatro:  esse efeito de distanciamento aparecendo nas  obras  de  Craig, 
Tairov e de Meyerhold, se exprime pelo contraste entre o ator e seu papel, pelo lugar da máscara, 
na acentuação de certos gestos, na introdução de material de atualidade, na separação do texto e 
do gesto, nas citações de poemas e de personagens, no fato de que o ator se dirige diretamente ao 
público67. 
É preciso, pois, tomar esse termo num sentido mais geral, como uma ruptura da 
ilusão cênica, como uma advertência ao fato de que os acontecimentos não são reais e 
que  a  ação  não  é  uma  ficção.  Essa  acepção  está  bastante  afastada  da  de  Brecht.  A 
ruptura  com  a  ilusão  cênica,  ele  a  faz  para  provocar  um  olhar  diferente  sobre  a 
realidade. Esse teatro deve sugerir uma interpretação ideológica e a ilusão é a condição 
sine qua non  de  todo  distanciamento  que  não  existe  sem  ilusão.  Um  teatro  que  rejeita 
qualquer ilusão pode reivindicar o título de teatro de anti‐ilusão, mas ele perde então a 
possibilidade de recorrer ao distanciamento. Posto em ação, o distanciamento só pode 
ser  “recolocado  à  distância”  por  um  retorno  da  ilusão.  Porque  para  que  haja 
distanciamento, é preciso um contraste, uma oposição. Por isso sustento que o teatro de 
bonecos narrativo que associa unicamente narração e imagens sem buscar o contraste, 
não tem nenhuma relação com as concepções de Brecht.  
Dorst  destacava  a  vida  artificial  do  boneco  e  a  identificava  com  o  conceito  de 
Verfremdungseffekt,  mas  ele  se  engana  ao  procurar  esse  “efeito  de  distanciamento”  no 
boneco.  O  distanciamento  brechtiano  é  um  efeito  temporário  e  a  manipulação  à  vista 
uma situação permanente privada desse momento de surpresa tão apreciado por Brecht. 
O  “efeito  de  distanciamento”  no  teatro  de  bonecos  tem  um  outro  aspecto,  ligado  ao 
paradoxo  evocado  pelo  bonequeiro  Peter  Waschinsky:  Voltemos  ao  “distanciamento”  no 
teatro de bonecos. Ele lhe é imanente, em princípio sempre presente. Os bonecos não passam de 
materiais, retomemos o exemplo da peça de Tchekov (Waschinsky evoca aqui a encenação de 
A Bruxa) Os personagens da peça são muito realistas. Os movimentos e a fala devem, pois, ser 
muito  “naturais”,  no  sentido  humano  do  termo.  Que  significa  “natural”  em  se  tratando  de 
bonecos?  Simplesmente  que  eles  se  comportam  como  matéria  inerte,  isto  é,  que  permanecem 
totalmente  inanimados,  ou  que  no  máximo  eles  executem  simples  movimentos  pendulares.  Ao 
obrigar  do  exterior  essa  matéria  a  se  comportar  de  uma  maneira  similar  à  dos  humanos,  ela  se 

                                                 
 Joachim Fiebach. Von Craig bis Brecht. Studien zu künstlertheorien in der ersten Hälfte des 20,. Jahrhunderts. 
67

(De Craig a Brecht. Contribuição às teorias na primeira metade do século XX). Henschelverlag, Berlim, 1975, p. 
299. 

66 
CONVENÇÕES 

torna estranha a ela mesma, é a isto que chamamos distanciamento. O boneco mais naturalista é, 
visto sob esse ângulo, o que se distancia mais 68.  
Trata‐se  aí  apenas  de  um  aspecto  do  jogo  entre  ilusão  e  realidade.  Tem‐se  a 
impressão  de  que  a  maioria  dos  artistas  apreciam  mais  a  realidade  da  criação  que  a 
ilusão da realidade. Essa querela sobre a maneira de representar a realidade no  teatro 
tem  um  caráter  ideológico.  Ao  lutar  contra  uma  realidade  cênica  de  ficção,  os 
modernistas  protestam  contra  essa  visão  burguesa  que  designa  à  arte  a  tarefa  de 
perpetuar  a  visão  do  mundo  estabelecido.  Admitir  que  a  arte  seja  concebida  como 
sendo  uma  obra  autônoma,  artificial,  abala  essa  visão  e  dá  ao  artista  poderes 
extraordinários  para  criar  sua  própria  imagem  da  realidade,  imagem  autêntica,  como 
qualquer expressão subjetiva. A discussão diz respeito, de fato, à concepção de mundo 
e  à  autenticidade  da  arte.  É  difícil  dizer  em  que  medida  os  bonequeiros  dos  anos  60 
vêem  sua  participação  na  metamorfose  formal  do  teatro  de  bonecos  como  um 
engajamento  ideológico.  Tem‐se  na  verdade  a  impressão,  quando  se  observa  o  meio 
artístico  da  época,  de  que  a  inovação  é  percebida  como  a  expressão  de  uma 
originalidade  criadora,  ou  no  melhor  dos  casos,  como  uma  tentativa  de  adaptar  os 
meios de expressão aos novos temas que fornece a realidade. Isso se compreende dado 
que  as  discussões  filosóficas  sobre  as  concepções  da  realidade  do  início  do  século 
tomam  novas  formas  e  se  manifestam,  em  geral,  em  outros  campos  da  arte.  Ao 
recuperar seu atraso, o teatro de bonecos se beneficia assim nos anos 50 e 60, do triunfo 
de certas idéias modernistas, mais formais que ideológicas.  
 

                                                 
 Peter  Waschinsky.  Teatro  de  bonecos  entre  ilusionismo  e  distanciamento.  Théâtre  Public.  “O  Teatro  de 
68

Bonecos”. Revista trimestral publicada pelo teatro de Genevilliers. No. 34‐35, agosto 1980, p.58. 

67 
 

IV - FORMAS E ESTILOS

ANIMAÇÃO E SINERGIA 

A  animação  à  vista,  a  diversidade  dos  meios  de  expressão,  a  nova  poética  do 
teatro de bonecos estabelecida em prejuízo das convenções tradicionais, atrai cada vez 
mais  artistas,  de  modo  que  os  espetáculos  de  manipulação  à  vista  vão  dominar.  Estas 
novas formas estão tão presentes que modificam a concepção do teatro de bonecos e sua 
definição. A análise semiológica do teatro permite redefinir os elementos constitutivos 
de  um  personagem  cênico,  apresentação  icônica  do  personagem,  responsável  de  sua 
energia motriz e de sua expressão vocal.  
Em  lugar  de  se  concentrar  no  boneco  enquanto  personagem  virtual,  trata‐se 
agora de privilegiar as relações que existem entre os signos dos personagens e as forças 
que os animam. Eu afirmava em 1978: as relações vibrantes entre o boneco e as fontes 
físicas  de  sua  energia  motora  conduzem  a  mudanças  importantes  na  percepção  do 
boneco. Num dado momento, o equilíbrio da dependência entre o boneco e suas forças 
motrizes  mostrou‐se  mais  durável  que  os  elementos  deste  equilíbrio.  O  equilíbrio  se 
mantém  mesmo  se  os  elementos  mudam.  O  boneco,  principal  elemento  distintivo  do 
teatro  de  bonecos,  também  sofreu  mudanças.  Mais  uma  prova  de  que  a  natureza  do 
teatro de bonecos se situa no nível das relações. 69 
Do bom uso da tradição  

A passagem de uma poética a outra se fez espontaneamente para os bonequeiros 
da  nova  geração.  Os  artistas  presos  aos  valores  tradicionais  solicitam  um  apoio 
intelectual  e  afetivo  para  evoluir.  Assim,  Recoing  ilustra  a  perfeição  este  período  de 
transição. Ele indica que as fontes de um teatro moderno, saído das idéias da vanguarda 
do  entre  guerras,  não  concernem  nem  o  teatro  de  bonecos  para  crianças  nem  o  teatro 
popular.  Ele  considerava  que  certos  elementos  da  tradição,  como  o  espaço  cênico 
limitado  do  boneco  tradicional  e  a  perfeição  técnica  da  animação  de  seu  precioso 
boneco, podiam ser o ponto de partida de um novo teatro. Essa convicção o anima até 
1970, data da criação de sua nova companhia, o Teatro de Mãos Nuas e de seu primeiro 
espetáculo: La Ballade de Mister Punch (O Passeio do Sr. Punch), de Paul Éloi (Éloi Recoing, 
1976) dirigido por Antoine Vitez.  
Terá  sido  sob  a  influência  de  Recoing  que  Vitez  assumiu  a  opinião  de  que  o 
boneco  representa  a  violência,  que  ele  não  tem  limites,  que  ele  mata  ou  morre?  Aos 
olhos de Vitez, Punch, que é o mal absoluto mas um mal feliz, é um excelente exemplo. 
Como o mundo que o cerca é mau, ele toma continuamente sua revanche, vinga‐se em 
seu  próprio  nome  e  no  de  todos  nós.  Vitez  experimenta  as  qualidades  de  objeto  do 

                                                 
69 Henryk  Jurkowski.  Jezyk  wspólczesnego  teatru  lalek  (A  linguagem  do  teatro  de  bonecos 
contemporâneo). Teksty, no. 6, 1978, p. 63. 

68 
FORMAS E ESTILOS 

boneco moderno. Este conflito entre o universo do boneco tradicional e a identificação 
do  boneco  com  um  objeto  saído  da  sociedade  de  consumo  é  revelador.  Vitez 
experimenta  alguma  dificuldade  em  escolher,  pressentindo  que  o  boneco  tradicional, 
ligado ao mito, ainda tem muito futuro pela frente. Ele se interroga sobre as chances de 
um  teatro  mítico  que  respeite  os  princípios  da  arte  tradicional:  a  empanada  e  seus 
bonequeiros  invisíveis.70 Seu  fascínio  pela  tradição  o  reaproxima  de  novo  de  Recoing 
para O Passeio do Sr. Punch, de Paul Éloi, onde o autor imagina confrontar Punch a uma 
nova  época.  Trata‐se  da  história  de  um  bonequeiro  (Recoing,  talvez?),  que  percebe  o 
mundo através da personalidade de seu herói. Ele deixa a empanada e se instala num 
apartamento onde ocupa simbolicamente o espaço e se desloca, de um móvel a outro, 
com  seu  boneco.  Punch  não  perde  nada  de  sua  brutalidade;  ele  é  cruel,  absurdo  e 
anarquista,  mas  a  absurdez  de  nossa  época  faz  dele  um  super‐homem  vingativo.  Esse 
espetáculo é uma visão contemporânea da comédia “puncheana”! 
Qualquer  criador  que  experimente  uma  inclinação  pela  reflexão  estética  deve 
estudar a natureza do teatro sob a forma de um espetáculo teatral. Em 1984, Recoing se 
lança  no  debate  sobre  a  natureza  ontológica  do  teatro  de  bonecos  com  Manipulsations 
(Manipulsações) de Paul Éloi. Um espetáculo que revela ao público a técnica do teatro de 
bonecos  e  seu  aspecto  mítico  expressos  nos  laços  recíprocos  entre  animadores  e 
animados.  As  lembranças  de  um  bonequeiro  profissional  são  o  ponto  de  partida  da 
peça. Os bonecos sentem, quase fisicamente, a presença de seu mestre (ainda que este 
não  passe  de  uma  sombra).  Palavra  mágicas  como  “polichinelo”  ou  “rei  zarolho”  dão 
vida  a  personagens  e  imagens.  Mais  do  que  num  mundo  imaginário,  é  num  mundo 
estereotipado  que  estamos,  onde  a  gama  dos  meios  utilizados  é  relativizada  e 
desmitificada por aforismos e trocadilhos  irônicos. Utilizados,  os  bonecos  de  trabalho, 
sem traços distintivos, quase idênticos, representam metaforicamente uma humanidade 
uniformizada. A revelação dos segredos e da técnica do teatro de bonecos é aqui uma 
nova  metáfora  das  dependências  que  existem  entre  os  humanos.  (Pode‐se  então 
designar  este  teatro  como  auto‐temático?).  Recoing  sugere  mesmo,  que  se  seu 
espetáculo conta uma história de aparência filosófica, ele põe o acento na problemática 
do teatro, o que não o impede de continuar fiel a sua concepção: o teatro é uma empresa 
comum onde as tarefas são distribuídas entre diferentes profissões. Esta atitude, legada 
por Baty, é rara entre os bonequeiros do Ocidente, enquanto se mantém uma regra no 
Oriente.  
Um mestre da metáfora: Josef Krofta 

Os  jovens  artistas  dos  anos  70  não  sofreram  este  momento  de  transição  entre 
clássico e moderno pois a mudança já tinha se efetivado. Os artistas do teatro Drak, de 
Hradec Kralové, na Tchecoslováquia, dela usufruíram. Fundado e dirigido em 1958 por 
Jan  Dvorak,  o  teatro  Drak  escapa  do  realismo  socialista  e  desenvolve  um  repertório 
                                                 
 A alma e “a parte pelo todo”, entrevista com Antoine Vitez. Théatre Public. “O teatro de bonecos”. Revista 
70

bimestral, publicada pelo teatro de Gennevilliers, no. 34‐35, agosto‐setembro, 1980, p. 72. 
 

69 
METAMORFOSES 

romântico  com  a  marionete  tcheca.  Em  1971,  Josef  Krofta  inicia‐se  como  diretor  no 
Teatro  Drak.  Ele  começa  por  estudar  as  capacidades  expressivas  do  boneco,  depois 
experimenta  o  teatro  de  objetos  antes  de  se  ligar  à  simbólica  dos  meios  de  expressão 
contemporâneos.  Todas  as  suas  obras  surpreendem,  ultrapassam‐se  umas  às  outras  e 
rivalizam em maturidade por suas inovações formais, pela capacidade de invenção de 
Krofta e seu engajamento humano. Ele se torna assim um mestre inconteste da metáfora.  
A  obra  mais  marcante  de  seu  primeiro  período  foi  Enspigl  (1974)  com  uma 
notável cenografia de Frantisek Vitek. Ela eleva a poética do teatro de bonecos clássico a 
um  nível  muito  alto  e  integra  a  ele  a  animação  à  vista  –  utilizada  sempre  com  fim 
artístico preciso, mesmo se esse tipo de manipulação reenvia à criação in statu nascendi. 
Ele  põe  o  acento  sobre  o  jogo  –  ingênuo  e  extravagante  –  dos  atores  ambulantes.  O 
espectador  assiste  à  história  de  Till,  o  Esperto,  e  admira  a  habilidade  dos  atores 
manipulando  os  bonecos  e  ocupando‐se  ao  mesmo  tempo  dos  cenários,  dos 
instrumentos  de  música  primitivos  e  da  iluminação.  O  teatro  tem  a  forma  de  um 
pequeno  retábulo  (à  imagem  dos  retábulos  religiosos)  com  painéis  esculpidos  sobre 
temas  laicos.  Os  porta‐painéis  do  “retábulo”  oferecem  inúmeras  possibilidades 
espaciais,  à  frente  e  no  interior  da  cena.  Mudanças  simples  permitem  fazer  surgir  os 
muros  de  uma  cidade,  uma  praça,  uma  hospedaria  ou  o  interior  de  uma  igreja  com 
raios de luz filtrando‐se através dos vitrais. Os bonecos, belos e esculpidos em madeira, 
são  manipulados  por  varas  e  fios.  Dois  atores,  acima  desse  teatro  de  madeira, 
interpretam o texto e manipulam todos os personagens. O cômico dos acontecimentos 
rivaliza  com  o  da  “cozinha”  teatral.  Os  atores,  Matej  Kopechy  e  Vera  Ricarova, 
representam  ao  mesmo  tempo  seu  papel  de  atores,  o  de  atores  do  teatro  ambulante  e 
entram psicologicamente na pele de cada personagem. Todos os meios postos em obra 
contribuem  para  fazer  passar  a  mensagem  da  peça,  resumida  pela  apoteose  do  herói 
popular, Till, o Esperto; o triunfo do amor sobre as intrigas burguesas.  
Após  um  tal  sucesso,  o  teatro  prossegue  suas  pesquisas  sobre  o  espaço  cênico. 
Em  Cinderela (Popelka,  1975),  a  ação  se  desenvolve  num  enorme  bufê  compreendendo 
vários  “locais”  que  formam  o  cenário.  A  Bela  Adormecida  (Sipkova  Ruzenka,  1976), 
baseada em música de Tchaikóvski, passa‐se nas coxias de um grande teatro. Durante 
um verdadeiro espetáculo, os dançarinos deixam a cena e os bonecos fazem incursões 
para representar sua própria versão dos acontecimentos com uma energia viva e muito 
humor. Com essa fórmula do teatro no teatro, o Drak atinge a perfeição absoluta.  
Jan  Dvorak,  diretor  artístico  do  teatro,  inquieta‐se  por  ver  o  sistema  político 
limitar  o  teatro  a  temas  clássicos  ou  populares.  Os  grandes  temas  humanistas  estão 
interditos.  O  que  não  foi  realizável  na  Tchekoslováquia  em  Hradec  Kralove,  fez‐se  na 
Polônia onde a margem de liberdade era maior. Krofta chegou ao teatro de bonecos de 
Poznan,  em  1976,  para  montar  Dom  Quixote.  Ele  próprio  faz  a  adaptação  e  conserva 
todos os motivos populares do romance, inclusive a cena do “Retábulo de Mestre Pedro”. 
Os atores estão com roupas de época e às vezes se servem de bonecos como signos de 
personagens  ou  como  duplos.  O  espectador  interpreta  este  universo  de  signos 
desintegrados  segundo  sua  vontade.  A  cena  mais  representativa  é  a  da  flagelação  de 
Dom  Quixote:  o  Valete  dá  bastonadas  num  banco  vazio  enquanto  um  ator,  Dom 

70 
FORMAS E ESTILOS 

Quixote, se torce de dor. Um outro quebra os membros do boneco de Dom Quixote e o 
último lança gritos de dor. A imagem cênica é assim completamente atomizada, o que 
não  deixa  de  lembrar  as  tentativas  feitas  pelos  artistas  plásticos  e  reforça  a  idéia 
condutora do espetáculo, a de julgar a loucura do cavaleiro da  Triste Figura, revelada 
na  cena  da  destruição  da  empanada  de  Mestre  Pedro.  Mas  atenção!  Dom  Quixote 
enquanto espectador é acorrentado, de medo que ele não viole uma vez mais a lei. Preso 
a uma cama de ferro, a guisa de prisão, na duração de O Rapto da Bela Melisande, o Dom 
Quixote  de  Cervantes  voa  ao  socorro  dos  amantes  ameaçados  pelos  Mouros.  Nosso 
herói quer fazer o mesmo, ele arranca seus grilhões para sair em socorro dos amantes 
em perigo, prova de sua loucura crescente, mas também de sua natureza humana, em 
sua versão romântica.  
Cada espetáculo de Krofta traz soluções formais e cênicas únicas. Enfim, Unicum 
(1978) é uma obra maior, próxima dos happenings revolucionários russos, e inscrita no 
universo do circo. O público assiste a cenas reais da vida do circo “um pequeno teatro 
do  mundo”  com  seus  ensaios,  seus  espetáculos  e  seus  conflitos  com  a  direção.  As 
pessoas do circo utilizam bonecos e manequins que lhes servem para os desfiles cênicos. 
Apesar  de  sua  perfeição  cômica,  eles  têm  uma  importância  secundária.  Nadejda,  uma 
acrobata joga um papel enigmático. Ela tem a aparência de um boneco, mal se mexe, e 
jamais é animada. Entretanto, todas as pessoas do circo têm os olhos fixos nela, fazem 
referência a ela, todas as suas esperanças se prendem a ela. Ela é seu único sustentáculo 
moral  e  vai  representar  a  promessa  da  vitória  quando  eles  se  revoltarem.  Em  suma, 
Nadejda  não  é  um  boneco,  mas  um  ídolo.  Ela  encerra  um  duplo  significado.  Oscila 
antes  de  tudo  do  mundo  revolucionário  (aqui  ligado  à  Revolução  de  Outubro,  pois  a 
peça  foi  apresentada  por  ocasião  de  seu  aniversário)  para  o  mundo  metafísico;  a 
Esperança (Nadejda) não existe como um fenômeno racional, mas como algo misterioso.  
Krofta  redefine  as  leis  fundamentais  da  animação.  O  boneco  só  pode  jogar  seu 
papel  se  o  público  aceita  a  idéia  de  que  ele  seja  vivo.  Para  analisar  suas  funções,  ele 
retorna à Pré‐História onde o animismo domina. Krofta, por intuição, retorna ao mundo 
dos ídolos, dos fetiches e dos talismãs. O boneco nasceu nesse mundo. Historicamente, 
perdendo seu valor sagrado, ele desenvolve suas funções de feira popular, depois entra 
no teatro, se paramenta do estatuto de sujeito teatral, e aparentemente o abandona hoje, 
para voltar a ser objeto. O animismo do objeto, um boneco objetivado por dezenas de 
experiências teatrais, é assim posto em cena. Krofta atribui‐lhe um papel de ídolo e o faz 
viver um novo ciclo cultural. Essa análise ontológica pode nos fazer acreditar que esse 
espetáculo  permite  a  Krofta  afirmar  que  a  natureza  do  teatro  de  bonecos  está  a priori 
definida.  Bastaria,  eventualmente,  perenizá‐lo  através  de  novas  convenções  ou 
abandoná‐lo  em  proveito  de  outros  meios,  como  o  objeto,  por  exemplo.  O  Drak 
permanece  fiel  ao  boneco  figurativo  e  seu  teatro  é  essencialmente  constituído  de 
bonecos  e  de  atores  escolhidos  de  acordo  com  o  repertório,  para  tirar  proveito  de  um 
ponto de vista poético, metafórico, marcado por fortes associações culturais. Nisso, ele é 
definitivamente moderno.  
Em seu percurso, O Canto da Vida (Pisen Zivota, 1985) ocupa um lugar particular. 
Krofta  não  esconde  que  essa  adaptação  da  obra  de  Evguenii  Schwartz,  intitulada  O 

71 
METAMORFOSES 

Dragão  (Ssmok)  é  um  compromisso  entre  sua  concepção  pessoal  e  as  exigências  da 
censura.  Esta  contestava  a  idéia  de  Schwartz  segundo  a  qual  uma  sociedade  que  se 
liberou  de  um  poder  totalitário  se  encontra  incapaz  de  usufruir  de  sua  liberdade  e 
aspira inconscientemente a estruturas totalitárias. Krofta, obrigado a transpor essa idéia 
para uma evocação da ocupação fascista e dos males engendrados pela guerra, defende 
seu espetáculo por uma força dramática e uma teatralidade exemplares. Assim como as 
metáforas de seus espetáculos precedentes são um elemento acessório da interpretação 
do  tema,  em  O  Dragão  elas  se  tornam  uma  componente  essencial  da  expressão 
dramática  e  um  verdadeiro  método  de  trabalho,  como  ele  explica  a  Hanna  Kodicek: 
Podia‐se acreditar, por exemplo, que O Dragão de Evguenii Schwartz, que é um conto alegórico 
sobre  a  usurpação  do  poder  numa  pequena  cidade,  é  uma  boa  ocasião  para  fazer  representar  o 
papel dos habitantes da cidade por atores e utilizar um boneco para o Dragão. Na verdade, era a 
solução recomendada por Schwartz. Entretanto, decidi fazer o contrário.  Dei a um ator o papel 
do dragão que manipulava no sentido literal os habitantes da cidade (marionetes) puxando seus 
fios. A meus olhos, era o melhor meio de representar sua ausência total de liberdade.71 
A manipulação, nesse espetáculo, é ainda mais complicada porque o defensor do 
povo –  Lancelot  –  também  é  um ator.  O  destino dos homens  – marionetes – se define 
acima  de  suas  cabeças.  Outras  metáforas  vêm  completar  essa  metáfora  diretriz.  O 
diálogo  entre  o  Dragão  e  Lancelot  evoca  uma  partida  de  bilhar.  O  uso  de  projetores 
manobrados  levados  pelos  assistentes  do  Dragão,  atores  vestidos  de  preto,  lembra  o 
universo  dos  campos  de  concentração.  Um projetor em cima de um pilar, explica  Krofta, 
não passa de uma fonte de iluminação teatral, mas nas mãos de um ator, um herói, por exemplo, 
ele ganha de imediato um sentido metafórico.  
Se  permanecemos  numa  perspectiva  ontológica  e  antropológica  do  boneco, 
poderemos ficar decepcionados! Esta parece ter desaparecido das reflexões de Krofta. O 
boneco  é,  em  O  Canto  da  Vida,  um  instrumento,  ou  melhor,  um  componente  da 
linguagem  teatral  para  evocar  figuras  retóricas,  no  sentido  poético.  As  conotações 
culturais  permanecem  ricas  e  dramaticamente  significativas.  Elas  nos  reportam  a 
acontecimentos históricos mais do que antropológicos. Seria esta a característica de um 
segundo  ciclo  do  boneco?  Na  seqüência,  Krofta  se  interroga  essencialmente  sobre  a 
problemática da linguagem e sua utilização. Em A Noiva Vendida (Prodana Nevesta), 
de  Bedrich  Smetana,  adaptada  por  Jiri  Vysohlid  (1986),  ele  desenvolve,  no  mais  alto 
grau,  os  princípios  do  teatro  épico  ao  mostrar  a  eficácia  do  boneco  ao  longo  da  ação 
dramática. Os atores formam um coro de contadores reunidos em torno de uma coluna, 
ou  melhor,  de  um  carrossel  de  cavalos  de  madeira  original  (sem  teto)  cujos  braços 
servem  para  transportar  os  bonecos  para  a  frente  da  cena,  a  uma  distância  bastante 
grande dos atores que, entretanto, lhes emprestam voz e mímicas. Assim autônomos, os 
bonecos tornam‐se puros signos icônicos de personagens. Os atores lhes restituem uma 
parte  da  ilusão  quando  eles  voltam  a  suas  mãos.  É  um  eco  do  animismo  à  distância 
evocado em Enfim, Unicum. 

                                                 
 A alma e “a parte pelo todo”, entrevista com Antoine Vitez. Théâtre Public.”O tearto de bonecos”. Revista 
71

bimestral publicada pelo teatro de Gennevilliers, no.  34‐35, agosto‐setembro 1980, p. 108. 

72 
FORMAS E ESTILOS 

Qualquer que seja a importância do papel representado pelos bonecos enquanto 
signos  icônicos  e  plásticos,  é  evidente  que  os  atores  ocupam  uma  posição  chave  no 
espetáculo.  Eles  são  os  verdadeiros  heróis  da  ação,  intérpretes  talentosos  que  cantam, 
animam  os  bonecos,  fazem  acrobacias,  fingidas  ou  reais,  e  são  capazes  de  representar 
não  importa  que  personagem.  É  preciso  constatar  uma  vez  mais  que  o  ator  (o 
bonequeiro) permanece o criador do personagem, ou de um grupo de personagens. No 
entanto  produziu‐se uma  variação importante  nesse  espetáculo. No passado,  o ator  (o 
bonequeiro) cedia ao boneco uma boa parte de sua aura. Num espetáculo como A Noiva 
Vendida,  o  boneco  está  sempre  presente,  mas  sua  aura  é  esmagada  pela  perfeição  da 
companhia. A magnanimidade humana parece condicionar a existência e a expansão do 
teatro  de  bonecos.  Fazer  com  que  isso  seja  compreendido  pelos  bonequeiros  e  pelo 
público, também tem um valor teórico. Krofta provavelmente se deu conta disso porque 
nos grandes espetáculos que seguiram, O Moinho de Kalevala (1987), Pinóquio (1992), ou 
na  nova  versão  do  Dom  Quixote  (1994),  ele  devolveu  aos  bonecos  suas  funções 
metafóricas.  Esses  espetáculos  tratam  de  teses  não  conformistas  (Pinóquio  não  quer 
entrar  no  mundo  dos  adultos,  o  herói  de  Dom  Quixote,  um  bonequeiro  ambulante, 
identifica  sua  loucura  com  sua  liberdade),  mas  não  trazem  novos  elementos  para  a 
compreensão do boneco.  
Krofta  faz  igualmente  algumas  incursões  na  cultura  de  outros  países  como  na 
Eslováquia  (Banska  Bystrzica)  e  na  Polônia  (Poznan)  onde  realizou  um  grande 
espetáculo sobre as aventuras de um herói popular, o nobre bandoleiro, Janosik (1974). 
Na Dinamarca (Teatro Dramático de Odinsee) ele põe em cena A Princesa Dagmar (1988) 
onde  os  acontecimentos  históricos  e  a  justaposição  dos  meios  de  expressão  dominam. 
Mesmo  que  as  obras  do  teatro  Drak  não  exprimam  todas  as  pesquisas  possíveis  e  as 
maneiras de empregar esses meios de expressão figurativos, na impossibilidade de um 
recuo  temporal  não  se  poderia  então  fazer  uma  classificação  do  uso  do  boneco 
metafórico  dos  anos  90?  Ou  trata‐se  de  um  período  de  calma  conceitual,  após  o  de 
buscas tão múltiplas quanto profundas?
As técnicas vindas do Oriente 

Para quem quer compreender o impulso da manipulação à vista e o uso de uma 
imagem  do  personagem  atomizado,  uma  passeio  pelo  teatro  japonês,  sobretudo  o 
ningyo joruri cuja  forma  conhecida  é  o bunraku,  se  impõe.  Este  teatro  muito  célebre  no 
Japão,  com  três  séculos  de  tradição,  desenvolve  uma  forma  de  teatro  épico  com  um 
narrador  presente  na  cena  e  bonecos  manipulados  por  três  bonequeiros  visíveis. 
Descoberto  tardiamente  na  Europa  em  meados  do  século  XX,  esse  teatro  inspira  um 
modelo  de  personagem  composto  de  um  boneco  enquanto  signo  icônico,  de  três 
manipuladores  como  fontes  de  energia  motriz  e  de  um  narrador,  como  fonte  de 
expressão vocal e textual. Vinte anos foram necessários aos bonequeiros para obter um 
modelo  inspirado  no  bunraku. Eles  adotaram  essencialmente  seu  aspecto  técnico  ou  às 
vezes  sua  estrutura  como  quadro  do  espetáculo  e  a  manipulação  à  vista  alcança  o 
sucesso que se conhece.  

73 
METAMORFOSES 

A  Companhia  Houdart/Heuclin  foi  uma  das  primeiras  a  recorrer  a  esta  técnica 


em Arlequim Polido pelo Amor, de Marivaux, em 1972. Dominique Houdart não buscava 
imitar o bunraku 72 mas justapor alguns de seus elementos e inúmeros outros meios de 
expressão,  como  a  projeção  de  slides,  reproduções  de  Goya  essencialmente,  signo  da 
crueldade humana. Respeitando a prática  do  bunraku, Houdart  introduz  recitantes em 
roupa do século XVIII, que ele coloca à frente da cena. Os bonecos são manipulados por 
animadores  vestidos  de  preto,  o  rosto  descoberto.  Esta  técnica  verdadeiramente 
renovou  a  prática  do  teatro  épico  na  Europa,  mas  no  caso  presente  ela  é  secundária, 
frente ao universo de Goya (reforçado pela maquiagem e a expressão dos bonecos) que 
se justifica pela interpretação que Houdart faz da obra de Marivaux: a imagem de uma 
crueldade  mascarada.  De  fato,  o  espetáculo  é  importante  em  razão  da  escolha  de  um 
clássico francês, não tem relação direta com a tradição histórica japonesa e seu caráter 
sagrado. 
Meschke adota por sua vez uma atitude diametralmente oposta em Antígona, de 
Sófocles,  que  ele  monta  em  1977  no  Teatro  de  Bonecos  de  Estocolmo.  Seus  bonecos 
bunraku  são  fabricados  em  cerâmica  preta  a  partir  dos  adornos  de  vasos  gregos,  cada 
um  manipulado  por  três  bonequeiros,  o  texto  interpretado  por  vários  recitantes 
sentados  sobre  um  estrado  especial,  separado  dos  personagens.  O  espetáculo  fez  um 
grande  sucesso,  em  razão  do  encontro  desses  dois  sistemas  culturais,  cada  um  deles 
representando valores sagrados e mitológicos. O estilo japonês do ningyo joruri introduz 
a  tradição  de  um  refinamento  cultural,  quase  religioso;  o  estilo  grego,  um  tema 
mitológico.  A  forma  mitológica  do  ningyo  joruri  corresponde  exatamente  ao  mito 
europeu. Como os espetáculos do ningyo joruri, o de Antígona é solene e cerimonioso à 
imagem da expressão ritual dos mistérios mais sagrados. Como o lembra Meschke, nem 
o  público  nem  os  críticos  questionaram  a  forma  do  espetáculo  –  ela  fazia  parte 
integrante da tragédia grega. 73 
Zlatko  Bouret,  do  teatro  ITD  de  Zagreb,  em  sua  montagem  do  Hamlet  de  Tom 
Stoppard  (1982)  dá  o  exemplo  de  um  feliz  empréstimo  à  tradição  do  kuruma  ningyo, 
segunda forma adotada pelos bonequeiros na Europa. Cada boneco é animado por um 
único  manipulador  sentado  sobre  um  tamborete  de  rodinhas,  o  que  dá  um  contraste 
cômico  entre  a  forma  majestosa  do  boneco  e  seu  rápido  deslocamento.  Ela  convinha 
perfeitamente à concepção grotesca do tema: Um animador está sentado sobre um tamborete 
de rodinhas e tem um boneco a sua frente de modo a poder animar sua cabeça e sua boca com uma 
das mãos e a mão do boneco com a outra. As pernas do animador são as pernas do boneco e estão 
vestidas  nos  mesmos  tons  da  roupa  do  boneco,  o  que  dá  a  impressão  de  que  os  bonecos  se 
deslocam sozinhos na cena; animadores de branco, a cabeça dissimulada, fazendo todo o possível 
para  atrair  a  atenção  do  público  para  o  boneco,  essa  técnica  de  animação  oferece  múltiplas 

                                                 
72  Annie Gilles, O Jogo do boneco. Publicações da universidade de Nancy II, Nancy 1981, po. 99‐104.  
 Michael Meschke. Una estetica para el teatro de títeres (Uma estética para o teatro de bonecos). Bilbao, 1988, p. 
73

84. 
 

74 
FORMAS E ESTILOS 

possibilidades  de  provocar  o  espanto  e  criar  todo  o  tipo  de  relações  no  jogo  do  bonequeiro  e  do 
boneco.  Por  exemplo,  quando  o  ator  levanta  o  boneco  tão  alto  que  o  corpo  deste  se  destaca  das 
pernas do animador, e o espectador se dá conta de que são pernas humanas, e que o boneco pode 
representar também sem elas.74  
Por meio desses poucos espetáculos, compreende‐se melhor que a manipulação à 
vista se tenha desenvolvido a partir de empréstimos às culturas tradicionais, a do Japão 
em particular, como a de outros países, a China ou a Indonésia. É significativo que os 
bonequeiros,  no  Ocidente  como  no  Oriente,  tenham  se  apropriado  apenas  das 
capacidades expressivas desses modelos para enriquecer sua técnica e sua estética, sem 
integrar seus valores culturais.  
Da literatura à metáfora plástica 

Entre  os  novos  meios  experimentados  na  manipulação  à  vista,  o  teatro  de 
bonecos dirigido por Valery Volkhovski, primeiro em Tcheliabinsk, depois em Voronej, 
reflete  uma  outra  tendência:  a  da  metáfora  plástica  que  se  torna  uma  regra  na  União 
Soviética,  nos  anos  80.  Este  teatro  se  torna  célebre  com  as  Almas  Mortas,  de  Nicolas 
Gogol  (direção:  V.  Volkhovski,  cenografia:  E.  Lutsenko,  1985).  É  um  espetáculo  épico 
onde  a  função  do  narrador  é  entregue  a  um  ator  que  interpreta  Gogol.  Ele  comenta  o 
que  vê  numa  voz  suave  e  pouco  expressiva.  Há  nisso  uma  intenção  oculta:  sua  voz 
reflete o seu terror ao descobrir a verdade sobre um mundo cujo absurdo o ultrapassa. 
Uma  projeção  gigantesca  deste  mundo  se  encontra  no  centro  da  cena.  Essa 
simultaneidade se desenvolve na vertical. Por cima da plataforma, uma porta com dois 
batentes bastante grandes, é dominada por uma imagem reduzida de um cemitério e de 
uma  igreja  ortodoxa.  Abaixo  da  plataforma,  cenas  da  vida  no  campo  mostram  as 
condições  primitivas  nas  quais  o  homem  vive  semelhante  a  animais.  Os  bonecos  têm 
cerca  de  sessenta  centímetros  de  altura,  rostos  característicos,  às  vezes  caricaturais, 
movimentos  expressivos,  quase  humanos.  Eles  são  admiravelmente  servidos  pela 
interpretação do texto e parecem sentir profundamente a situação dramática. Os russos 
associam  essa  estética  a  uma  influência  do  sistema  de  Stanislavski.  Essa  análise  me 
parece  simplista  demais.  Essa  maneira  específica  de  interpretar  o  texto,  essas  atitudes 
humanas cheias de tensão, essa variedade de relações, exprimem a tradição literária e a 
visão  da  realidade  que  ela  encerra.  De  Gogol  a  Ostrovski  e  a  Zochtchenko,  passando 
por  Sukhovo‐Kobylin,  os  heróis  do  espetáculo  de  Volkhovski,  ainda  que  se  trate  de 
bonecos, são seres determinados pelas circunstâncias e suas condições de vida. Há em 
sua  imagem  menos  de  técnica  de  jogo,  menos  de  “escola”  e  mais  de  verdade  sobre  o 
homem, dessa verdade que a literatura russa perpetuou. 
O realismo dos personagens é ponderado pela animação à vista assegurada por 
atores  disfarçados de arlequins  mascarados ou de servidores de  grandes proprietários 
rurais. Simples “gente de teatro” com as quais Vachtangov tinha outrora sonhado e de 
quem Okhlopkov retoma a idéia anos mais tarde. A ação do espetáculo se desenvolve 
                                                 
 Livija Kroflin, Zagrebacka Zemlja Lutkanija (O país zagrebiano do boneco). Medunarodni centra za usluge u 
74

kulturi, Zagreb, 1992, p. 89. 

75 
METAMORFOSES 

em  todo  o  espaço  cênico  mas,  sobretudo,  sobre  a  plataforma.  A  porta  fechada  indica 
que o personagem de Tchitchikov está de viagem. Ela tem a forma de uma sinédoque 
coletiva; num quadro, cabeças de cavalo. Num outro, uma roda que gira. Num terceiro, 
o personagem de um cocheiro. Ao nível inferior se encontram homens rebaixados, mas 
também hipócritas, que restam na miséria enquanto eles são importantes em razão das 
“almas” que possuem. Lá, o mundo dos homens convive com o mundo dos animais em 
situações  de  um  humor  provocante.  Há  também  um  outro  plano  de  jogo  cênico,  o 
espaço  exterior  ao  cenário,  um  espaço  neutro,  mas  ao  mesmo  tempo  simbólico,  que 
recria o mundo dos pensamentos e dos sonhos do herói principal. Entre as pessoas de 
teatro, entre os bonecos que representam os heróis da peça, vagueia um rapaz de malha 
preta,  usando  um  chapéu  da  mesma  cor.  De  início  tem‐se  a  impressão  de  que  ele 
garante  o  elo  entre  o  passado  e  o  presente.  Quando  ele  conclui  uma  negociação  com 
Tchitchikov e parte esquecendo seu chapéu, após ter‐lhe prometido evitar a deportação 
para  a  Sibéria,  o  público  descobre  em  sua  cabeça  duas  saliências  características.  Pista 
atemporal que vamos reencontrar na literatura contemporânea, em Boulgakov. A peça 
termina,  o  público  aplaude  os  atores,  a  cortina  interior  grosseira  se  ergue  e  sobre  a 
plataforma,  como  em  O  Inspetor  Geral  de  Meyerhold,  levanta‐se  uma  multidão 
compacta  de  arlequins  e  Gogol  no  centro.  Eles  são  sonhadores,  preocupados  e  sem 
dúvida  temerosos  da  mesquinharia  e  da  tolice  do  mundo  que  eles  próprios 
desencadearam.  
A  poética  do  teatro  de  bonecos  de  meios  de  expressão  variados  associa‐se  aí  à 
prática  teatral  dos  grandes  representantes  da  vanguarda  russa,  em  particular  à  de 
Vachtangov e de Meyerhold – na origem, aliás, da prática do boneco contemporâneo. A 
referência à tradição modernista, mesmo em 1985, é um ato cultural muito importante, 
sobretudo no teatro de bonecos. Os russos podiam encontrar neste espetáculo as fontes 
inesgotáveis  de  seu  pensamento  cívico  e  de  sua  tradição  reformista.  Para  nós,  trata‐se 
de um encontro novo com a literatura russa e seu potencial dramático, que pode invadir 
e  transformar,  a  seu  bel‐prazer,  todas  as  técnicas  teatrais  como  todos  os  gêneros.  Eles 
vão servir‐lhe, como esses múltiplos meios de expressão lhe serviram dessa vez.  
Volkhovski  tem  um  temperamento  reflexivo.  Várias  de  suas  obras  refletem  seu 
pensamento  sobre  o  homem.  O  Menino  do  Lago  (1988)  de  Pavel  Velinov,  criado  em 
Voronej é uma peça psicológica (que surpresa no teatro de bonecos!). O espetáculo é um 
elogio fúnebre contado por um adulto, amigo casual de um adolescente que acaba de se 
suicidar.  Esse  narrador  é  o  único  personagem  de  carne  e  osso.  Os  outros,  ou  seja  o 
menino,  seus  parentes  e  sua  professora,  são  bonecos  animados  por  homens  em  roupa 
de luto. O caráter cerimonioso de sua atitude sugere que estes personagens participam 
interiormente da reconstituição da história. Os bonecos, que medem cerca de um metro, 
são manipulados por trás. Seu rosto fixo reflete os sentimentos dos heróis. Evocações do 
passado permitem traçar um retrato psicológico do jovem herói que sonhava com uma 
vida  melhor  e  se  deixou  seduzir  pelo  azul  do  mar,  no  qual  buscava  apaziguar  sua 
solidão. É também uma análise sobre a insensibilidade dos que o cercam, de sua classe, 
dos professores, de sua família. Vários meios de expressão correspondem aos diferentes 
planos  da  ação  e  a  direção  assim  ataca  os  preconceitos  sobre  os  limites  do  boneco 

76 
FORMAS E ESTILOS 

quanto aos temas e aos papéis trágicos. Graças à ação simultânea desses meios, o teatro 
de  bonecos  contemporâneo dá  novas provas de sua universalidade. Com O Menino do 
Lago, o teatro aborda de um ponto de vista psicológico os problemas do homem. 
A intimidade da narração 

Essa  descoberta  não  foi  um  feito  apenas  dos  russos.  Os  artistas  do  teatro  de 
bonecos,  na  Europa,  aspiravam  a  liberar  seus  próprios  temas  da  atmosfera  e  dos 
assuntos impostos pelos meios de expressão clássicos, e os temas existenciais ganharam 
então  importância.  Enno  Podehl  dá  testemunho  dessa  nova  tendência.  É  em  1985,  em 
Charleville‐Mézières,  que  ele  apresenta  Hermann.  Trata‐se  da  evocação  pessoal  de  um 
drama vivido, o da guerra. A história, muito íntima, é narrada por um ator que anima 
ao  mesmo  tempo  bonecos  e  objetos  sobre  uma  mesa  oblonga  e  baixa.  Podehl,  ator, 
cavoca  em sua  memória  para  encontrar    os  fatos  e  o  fio  dos  acontecimentos,  e  projeta 
suas  emoções,  intensas,  sobre  os  bonecos  e  os  objetos.  Podehl  animador  experimenta 
um verdadeiro prazer em manipular o boneco concreto de Hermann. Podehl roteirista 
conta  a  história  passando  constantemente  da  realidade  à  metáfora  e  vice‐versa.  Enno 
anima  um  boneco  de  madeira  de  Hermann  com  grande  cuidado  e  sensibilidade.  Um  rosto 
marcado pela idade, faces encovadas, um nariz saliente e algumas mechas brancas na cabeça. Um 
tronco sem braços e com pernas (articuladas nos quadris, joelhos e tornozelos). Atrás do pescoço, 
uma  vara  para  manipular  a  cabeça.  Hermann  faz  sua  ginástica  matinal  e  revela  suas 
surpreendentes capacidades de movimento. Hermann, vestido, provido de uma mão de Enno que 
sai do punho de sua camisa, prepara seu café da manhã.  Enno narrador conta como ele conheceu 
Hermann.  Hermann  acende  um  fogareiro  de  verdade,  faz  uma  verdadeira  omelete  numa 
frigideira de verdade, come uma parte e dá o “resto” a Enno. De repente a História irrompe nesta 
vida  pobre  e  sem  histórias.  Hermann  acolhe  uma  mulher  e  sua  filha  Rosa.  Uma  luva  preta 
arranca  brutalmente  esta  mulher  deste  casulo  aprazível.  Só  resta  o  lenço  florido  no  qual  ela 
envolveu sua filha. A guerra acabou, Hermann tenta em vão refazer sua vida. O incêndio de seu 
apartamento toma traços simbólicos. A cinza recobre o passado e Hermann, reconciliado com a 
História, retorna a suas ocupações cotidianas. 75  
Podehl  contribui  para  enriquecer  os  temas  do  teatro  de  bonecos  de  meios  de 
expressão  variados.  O  jogo  à  vista  é  aqui  uma  convenção  não  intervindo  nas  relações 
entre  boneco  e  animador.  O  testemunho  a  seguir  é  interessante  porque  nos  permite 
ampliar nossa reflexão sobre os procedimentos artísticos e épicos do teatro de bonecos. 
Hermann  confirma  assim  esta  chance  que  se  oferece  ao  teatro  de  bonecos  enquanto 
teatro  de  narração,  onde  contam  não  apenas  o  desenrolar  inesperado  da  ação  e  sua 
tensão,  mas  também  o  caráter  íntimo  próprio  ao  boneco.  Entretanto,  a  dramaturgia  do 
teatro de bonecos não repousa unicamente nas palavras e na ação, mas com freqüência e muito 
simplesmente em pequenos gestos, no silêncio, no jogo de luz, no abandono ou na reanimação de 
tal  ou  tal  “figurinha”  chamada  boneco,  e  enfim  na  perturbação,  na  movimentação  do  espaço 
cênico.76 

                                                 
75 Tereza Ogrodzinska. Charleville 85, Teatro Lalek, no. 4, 1985, p. 9. 
76 Enno Podehl. Para uma dramaturgia do teatro de figuras. Marionnettes, no. 13, 1987, p. 7 

77 
METAMORFOSES 

Codificar  e  descrever  o  material  textual  e  épico  do  teatro  de  bonecos 


contemporâneo  seria  uma  vasta  tarefa,  porque  cada  artista  tem  sua  própria  visão, 
critérios  pessoais,  e  existem  tantas  criações  possíveis  quanto  criadores.  Entretanto,  de 
um  ponto  de  vista  histórico,  gostaria  de  lembrar  que  o  subjetivismo  dos  artistas  hoje 
aboliu  todas  as  leis  objetivas  e  todas  as  normas  genéricas.  Dos  antigos  princípios  só 
subsiste a necessidade de criar, com todos os meios possíveis, um jogo teatral, o da arte 
do boneco.  
O  teatro  de  bonecos  com  meios  de  expressão  variados  orienta‐se  para  a 
construção de imagens poéticas que se sucedem para formar uma ação. Esta convenção 
torna‐se  possível  porque,  na  prática,  o  homem  assumia  o  mesmo  valor  que  os  outros 
meios de expressão. O artista ordena suas relações com os espectadores, estabelece um 
código relativo ao tempo, ao espaço e ao comportamento dos personagens. O espaço do 
sonho  favorece  outras  motivações  e  outros  comportamentos  irreais.  Na  convenção  do 
“teatro no teatro” a peça interna deve ser “verdadeira”, porque ela não aspira à verdade 
e  não passa de uma citação.  Admitir esta convenção significa aceitar  um  certo  tipo de 
linguagem  teatral.  É  verdade,  nas  relações  com  o  público  é  muito  importante  ter  um 
ponto  de  partida  comum.  Se  admitimos  que  o  teatro  nasce  do  encontro  entre  atores  e 
público,  que  ele  está  condicionado  pela  convenção  estabelecida  no  início  quanto  à 
linguagem cênica e, eventualmente, ao tema do espetáculo, então o processo de criação 
cênica parece natural e espontâneo. Este, entretanto, é raramente o caso, porque o teatro 
do século XIX, que aspirava a representar a realidade com realismo, permanece sempre 
muito  presente  em  nosso  espírito.  Hoje  ainda,  quando  buscamos  definir  o  teatro 
contemporâneo,  tomamos  obrigatoriamente  como  referência  o  teatro  mimético, 
portanto  ilusionista.  O  mimetismo  tem  uma  natureza  muito  diversa,  quase 
convencional.  Às  vezes  mesmo,  o  gênero  menos  realista  seja  considerado  uma 
representação direta da realidade.  
Entre sonho e realidade 

No início dos anos 80, o teatro de sombras, outro teatro, vai viver uma profunda 
transformação.  O  impulso  do  desenho  animado  tinha  provocado,  no  pós‐guerra,  uma 
perda  de  interesse  por  esta  forma  de  “espetáculo  impessoal”  que  parecia  não  ter 
nenhuma  chance  de  sobreviver,  à  exceção  de  algumas  variantes  tradicionais  como  o 
wayang e as sombras indianas com o herói do Râmâyana, as sombras chinesas com o Rei 
dos Macacos, as sombras turcas e gregas com Karagöz e Karagiosis.  
Na  Austrália,  perseverando  no  estilo  de  Henri  Séraphin,  o  entusiasmo  de 
Richard Bradshaw traz seus frutos. Na França, o mérito cabe a Jean‐Pierre Lescot que, 
após anos de tentativas (é preciso ter muita paciência para domar a noite) utiliza em seu 
espetáculo  Taema  ou  A  Noiva  do  Timbaleiro  (1981)  sombras  impressionistas  cujas 
proporções mudam em função das variações da luz e do grau de transparência de seus 
materiais. Elas se revelaram muito teatrais, vibrantes e vivas, de uma presença imediata.  
É na Itália que a verdadeira metamorfose se opera. O teatro Gioco Vita, fundado 
em  1970,  em  Piacenza,  explora  novas  técnicas:  o  deslocamento  das  fontes  de  luz  ou  a 
simbólica das cores e das proporções, como em Gilgamesh (1982). O mundo onde reina 

78 
FORMAS E ESTILOS 

Gilgamesh  emerge  da  atmosfera  cinza.  Trata‐se  de  um  palácio‐fortaleza  monumental. 
Os súditos são silhuetas negras e cinzas, corcundas, de rostos marcados pelo sofrimento. 
Nós contemplamos com o olho da câmera, a imagem de um povo oprimido. Gilgamesh 
aparece  numa  carruagem.  Engalanado,  com  uma  abundância  de  púrpura,  a  cor  dos 
soberanos,  ele  lança  seus  cavalos  sobre  seus  súditos.  Ele  é  grande,  eles  são  pequenos. 
Depois as proporções se invertem. O sistema de valores é abalado, há uma opalinização 
da simbólica. 
Outro tema novo: o nascimento de Enkidu, um grande e maravilhoso selvagem 
que  reina  sobre  os  animas  no  meio  dos  quais  vive.  As  proporções  de  uns  e  de  outros 
mudam.  Enkidu  chega  na  cidade,  luta  contra  Gilgamesh  para  finalmente  se  tornar 
amigo deste adversário digno dele. Quando Enkidu morre num combate com o Touro, 
Gilgamesh fica desesperado. Sua figurinha multicor vai e vem em passos miúdos sobre 
o  enorme  corpo  de  Enkidu.  É  a  simbólica  das  elegias:  o  defunto  é  grande,  enche  o 
mundo  inteiro;  o  que  chora  mal  consegue  apreender  a  dimensão  de  sua  perda.  O 
espetáculo  não  omite  nenhum  tema  da  lenda  de  Gilgamesh.  A  tela  é  muito  viva.  Ela 
vibra, surpreende e provoca o inesperado.  
Gilgamesh  não  iguala  as  experiências  de  Taema A  construção  das  figuras  é  sem 
dúvida menos audaciosa, mas esse espetáculo marca, entretanto, uma etapa importante 
nas pesquisas sobre o teatro de sombras e suas capacidades expressivas. O jogo entre as 
proporções das figuras e suas dimensões simbólicas interiores encorajam o Gioco Vita a 
prosseguir suas pesquisas. O Castelo da Perseverança (The Castle of Perseverance, 1984), de 
um  célebre  apólogo  inglês,  desenvolve  consideravelmente  a  técnica  do  teatro  de 
sombras. A tela não é esticada, ela explode em vários quadros de diferentes dimensões, 
o que dá uma nova dinâmica à ação. Em torno das clarabóias, sobre o fundo preto de 
uma grande cena de teatro, um homem nasce entre os anjos. É o único momento calmo 
da peça. O homem empreende um périplo que o conduz à Corte do Mundo e ao Reino 
do  Corpo.  Ele  viaja  com  companheiros  de  estrada  pouco  recomendáveis;  primeiro  a 
Avidez,  depois  o  Orgulho  e  enfim  Bélial  com  toda  uma  armada  de  diabos.  Algum 
tempo  depois,  ele  encontra  o  Arrependimento  graças  ao  qual  ele  se  aproximará  um 
pouco da Virtude. As silhuetas dos personagens são pretas. Nas seqüências iniciais os 
anjos  resplandecem  em  cores  pastéis.  O  tamanho  das  sombras  varia  em  função  das 
relações entre os personagens e sua força moral que também muda e é opalinizada. O 
espaço  cênico  tem  um  caráter  cósmico.  A  tela  não  tem  nem  alto  nem  baixo.  Os 
personagens se encontram no lugar e na posição que lhes são fixadas. Se necessário, o 
enquadramento da tela se modifica. O momento mais dramático é aquele onde o espaço 
se  desloca,  quando  o  homem  quer  entrar  no  seio  da  Graça.  As  forças  do  mal  põem  o 
mundo em pedaços. Na cena aberta do teatro, negro como um forno, aparecem aqui e 
ali  alguns pedaços de tela,  cada um  envolvido por uma força diferente. O homem,  no 
entanto,  consegue  alcançar  o  castelo  da  Perseverança  onde  passa  pelo  ataque  das 
potências do mal. Sua derrota, entretanto, está escrita em seu destino. A Morte o espera. 
Sua  presença,  sob  a  forma  de  um  imenso  esqueleto  de  sombras  tomado  por  um 
movimento  turbilhonante,  vela  todo  o  espaço.  A  Moral,  no  entanto,  prevê  a 

79 
METAMORFOSES 

possibilidade  do  Perdão.  Chegam  enfim  anjos  que  erguem  a  figura  atormentada  do 
Homem e o levam ao céus. 
O  espetáculo  se compõe de duas partes diferentes. a  primeira  utiliza a unidade 
do mundo. A da tela. A segunda acontece num mundo desagregado, em fragmentos de 
tela.  Esta  estrutura  corresponde  à  mensagem  filosófica  da  peça.  A  eloqüência  da 
metáfora  foi  sem  nenhuma  dúvida  a  primeira  preocupação  de  Gioco  Vita,  o  alcance 
dramático  só  apareceu  na  seqüência.  Como  os  bonecos  que,  vinte  anos  antes,  tinham 
abandonado a empanada para se colocar frente ao público e mostrar‐lhe o universo de 
ficção  no  processo  fragmentário  da  criação,  os  criadores  do  teatro  de  sombras 
romperam  sua  tela  para  substituí‐la  por  projeção  em  lugares  imprevistos,  sobre  telas 
improvisadas.  Se  todos  os  artistas  do  teatro  de  sombras  não  adotaram  imediatamente 
esse princípio, Giovo Vita nunca mais voltou à tela clássica. Em espetáculos tais como 
La  Boite  à  Joujoux  (A Caixa  de  Brinquedos)  (1986)  ou  Orlando  Furioso  (1991),  ele  põe  sua 
técnica a serviço do teatro de bonecos de meios de expressão variados.  
Outros artistas, na França, como Luc Amoros e Michele Augustin escolheram um 
caminho  diferente.  Eles  utilizaram  gravuras  antigas  das  quais  fizeram  figuras  de 
sombra. Eles tiraram a tela de seu quadro tradicional e a inseriram num espetáculo de 
estilo rock com piano e percussão (Püberg e a Megamore, 1982). Bonequeiros intervinham 
na  história,  interrompendo  a  ação,  introduzindo  um  relato  no  relato  ou  propondo 
diferentes versões de um mesmo acontecimento. A arte gráfica resta para eles uma fonte 
de  inspiração  e  de  criação.  Ao  se  prender  a  culturas  distantes,  eles  dão  novos 
significados  aos  meios  de  expressão  que  utilizam  em  seus  espetáculos.  A  experiência 
levada  por  Luc  Amoros  com  a  Trupe  Ki‐Yi,  de  Abidjan,  é  um  belo  exemplo  disso: 
Sunjata  ou  a  Epopéia  Mandingue  (1989).  Os  africanos  fornecem  a  história,  ou  melhor 
apresentam  a  história  de  Sunjata,  herói  da  África  Ocidental,  assim  como  os  atores,  de 
forte presença vocal, gestual e musical. O texto foi escrito por Were Liking, diretora da 
troupe Ki‐Yi. Os artistas franceses compõem o quadro geral do espetáculo e os meios de 
expressão  sob  forma  de  placas  de  sombras  com  grupos  de  figuras  e  figuras 
individualizadas. A idéia das placas é emprestada do teatro de corte tailandês, o nang 
yai,  mas  o  tema  e  a  expressão  são  tirados  da  cultura  africana.  Essa  prática  é  pouco 
corrente, pois a África Negra mal conhecia o teatro de sombras e a dança, representação 
figurativa dos personagens sobre uma placa decorativa presa acima da cabeça, era‐lhe 
também desconhecida. Estes elementos aparecem no entanto perfeitamente integrados. 
O caráter épico do espetáculo permite unificar os meios. Todas as imagens servem para 
revelar  o  segredo  do  heroísmo,  e  seu  ritmo  mutante,  a  passagem  de  quadros  de 
conjunto a detalhes expressivos, sublinhando a africanidade do espetáculo.  
O diretor, Luc Amoros, não buscava fazer uma síntese artística das duas culturas. 
Na  verdade,  ele  tinha  confiado  em  seu  instinto  criador:  De  fato,  eu  não  conhecia  bem  o 
teatro  africano,  eu o  conhecia  um pouco  pelo trabalho  do  Ki‐Yi  que  vi  em  Charleville, pelo  que 
pude  ler  e  ver  ao  longo  de  nosso  encontro.  Quanto  ao  teatro  de  sombras,  não  pode  haver  aí 
verdadeira referência porque isto não existe verdadeiramente na África sob forma dramática. Se 
pensarmos  na  estética  do  espetáculo,  a  cenografia  e  o  grafismo,  há  certamente  um  parentesco 
porque eu trabalhava sobre a África. Eu não queria ir à África, voluntariamente, antes de criar o 

80 
FORMAS E ESTILOS 

espetáculo,  para  conservar  uma  visão  fantasmática.  Eram  meus  fantasmas  sobre  a  África  que 
deviam  sair  no  grafismo  e  na  estética  geral.  Assim  o  que  existe  como  referências  africanas  no 
espetáculo,  cabe  ao  público  dizer,  se  meus  fantasmas  correspondem  aos  do  público,  às  idéias 
recebidas ou não sobre a África.77 
E  era  certamente  a  única  maneira  de  garantir  a  expressividade  e  a  coesão  do 
espetáculo. O teatro de sombras contribui, com atraso e de modo impressionante, para 
enriquecer  o  teatro  de  bonecos  moderno.  Ele  estaria  assim  assumindo  o  valor  de  um 
sincretismo cultural?
Sinergia 

Na  Alemanha  Oriental,  no  final  dos  anos  70,  os  bonequeiros  fazem  esforços 
importantes para definir as possibilidades de um teatro moderno, realista e justificar a 
utilização  de  metáforas  e  imagens  poéticas.  O  teatro  de  bonecos  é  uma  espécie  de  arte  da 
representação  (Darstellende  Kunst).  Ele  consiste  em  representar  as  relações  entre  os  homens  e 
sua  atitude  com  respeito  à  realidade  social  por  meio  da  animação  consciente  (do  processo  de 
animação).  Não  é  apenas  uma  forma,  é  também  um  princípio  de  espelho  estético.  O  que 
representa (o homem) não passa de um signo material determinando a estrutura das pessoas que 
representam  (Menschen).  Um  instrumento  toma  seu  lugar,  é  uma  figura  artificial,  elaborado 
artisticamente  (um  boneco).  O  que  representa  (o  Darsteller)  se  afasta  assim  da  imagem  do 
homem unicamente para formar com esta imagem uma unidade funcional durante o processo da 
representação.78 
O  teatro  de  bonecos  enquanto  espelho  exprime  bem  as  ambições  de  uma  arte 
realista.  A  unidade  funcional  do  boneco  e  do  homem  garantem  a  realização  dessas 
ambições. Konstanza Kavrakova‐Lorenz procede a uma análise muito aprofundada dos 
diferentes  elementos  do  teatro  de  bonecos.  Ela  se  apóia  na  semiologia,  na  teoria  da 
comunicação e propõe uma definição do teatro de bonecos enquanto teatro de sinergia e 
de  Verfremdung.  O  termo  sinergia  designa  geralmente  a  ação  coordenada  de  dois 
elementos.  Na  filosofia  de  Melanchthon,  ele  designa  a  ação  coordenada  da  vontade 
humana e do Espírito‐Santo, o que nos leva à metáfora do boneco. Segundo Kavrakova‐
Lorenz, a sinergia implica naturalmente no nascimento do distanciamento, mas ela não 
tem o mesmo caráter que no teatro de atores: A apresentação de bonecos, enquanto sinergia 
de uma escultura e do jogo de atores, que situa o boneco entre as artes da representação, funciona 
por  intermédio  da  relação  de  tensão  entre  as  particularidades  e  as  funções  essenciais  de  seus 
elementos. Para resolver estas contradições permanentes procura‐se dinamizar exteriormente os 
objetos (Dinglichen), o que leva a um distanciamento perrmanente dos dois elementos de base. A 
dinamização que se faz por intermédio do movimento, do gestual e das poses (atitudes) esboça o 
processo  de  “animação”  dos  objetos  (Dinglichen).  Este  processo  que  não  permite  eliminar  o 

                                                 
77  Entrevista com Luc Amoros e Richard Harmelle. Marionettes  UNIMA‐França, no. 26, p. 25. 
 Hartmut  Lorenz,  Mit  Poesie,  Witz  und  Phantasie    (Com  poesia,  humor  e  fantasia).  Theater  der  Zeit,  no.  11, 
78

1980, p. 57. 
 

81 
METAMORFOSES 

distanciamento,  pede  que  seja  objetivado  o  homem  que  representa  (      )  A  diferença  entre  o 
distanciamento  enquanto  método  e  técnica  de  representação  no  teatro  de  atores  e  o 
distanciamento permanente no jogo dos bonecos tem uma importância fundamental: se se pode 
imaginar  um  jogo  de  atores  sem  distanciamento,  inversamente  não  se  pode  imaginar  jogo  de 
bonecos  sem  este  distanciamento  interno  que  é  o  elo  de  tensão  de  sua  dualidade  em  vias  de 
desintegração79. 
Segundo ela, o distanciamento é por conseqüência um elemento constitutivo do 
teatro  de  bonecos.  Já  evoquei  minha  posição  contrária  a  respeito,  ao  observar  que  a 
noção de distanciamento permanente contém uma contradição. Um teatro que recorre em 
permanência  ao  distanciamento  merece  um  nome,  é  simplesmente  um  teatro  de  anti‐
ilusão.  Brecht  estimula  as  aspirações  realistas  e  ideológicas  dos  bonequeiros  da 
Alemanha Oriental, e esta foi uma dificuldade a ser superada.  
Os  julgamentos  e  os  postulados  de  Kavrakova‐Lorenz  tiveram  uma  grande 
influência  sobre  a  prática  do  teatro  da  Alemanha  Oriental.  A  interação  do  ator  e  do 
boneco, sua sinergia, não permite apenas criar um personagem, ela também é utilizada 
para fazer nascer a metáfora. Dada a facilidade com que nasce esta metáfora sinérgica, 
as  declaração  de  Knut  Hirche,  ator  principal  do  teatro  de  bonecos  de  Neugranderbur, 
são significativas. Ele evoca, sobretudo, a criação deste teatro, a relação com o teatro, as 
relações com o público e a evidência da metáfora: Nós preparamos vários espetáculos onde a 
interdependência do ator e do boneco era utilizada de uma maneira evocativa simples. (...) Não 
demoramos para  perceber  que  ao  nos  concentrarmos  nesse  único  problema,  fazíamos  do  boneco 
um tema em si e que o desviávamos do tema ou assunto da peça. As interpretações de primeiro 
grau,  pouco interessantes, dominavam, como  por exemplo, o homem entravado  por seu destino 
ou pelo poder, ou então, ao contrário, o homem dirigindo os bonecos. Chegamos à conclusão de 
que este problema é importante para o processo de criação, mas deve permanecer invisível para o 
espectador, que não deve tomar consciência dele.80 
Em suas pesquisas, Hirche concede assim um lugar importante ao personagem. 
Era fascinante ver como os bonecos chegavam a ter uma representação estritamente teatral; eles 
tornavam‐se personagens, personagens dramáticas. A seu jogo se acrescentavam efeitos de uma 
intensidade  extraordinária  pelo  simples  fato  de  que  se  tratava  de  marionetes.  Pode‐se  sem 
problema  aspirar  ao  naturalismo  sob  esta  forma:  a  “matéria  inerte”  resistirá  sempre,  criando 
assim uma abstração espontânea e, portanto, submissa a uma poetização. A tensão, este fio tenso 
entre a ilusão e a desilusão, deve poder ser reconstituído,e não pode se romper81. 
Se Hirche e seu teatro de repertório estão mais próximos de Waschinsky que de 
Kavrakova‐Lorenz, subsiste um hiato entre teoria e prática.  

                                                 
79 Konstanza Kavrakova‐Lorenz, Thesen zur Dissertazionschrift (Tese de doutorado manuscrita), 1987, p. 16. 
 Knut Hirche. O stylu pracy w Teartz Lalek w Neubrandenburgu (O estilo de trabalho do teatro de marionetes de 
80

Neubrandenburg) ,Teatr Lalek, no. 1, 1989, p. 19.  
81 Ibidem 

82 
FORMAS E ESTILOS 

Os marionetistas de Neubrandenburg criam, em 1980, duas peças em um ato, A 
Bruxa  e  O  Urso,  baseados  em  Tchekov.  Num  estilo  realista,  com  marionetes  jogando 
atrás  de  um  tecido  de  musselina  suspenso  no  quadro  da  cena  para  reforçar  a  ilusão, 
estes espetáculos põem à prova o princípio da Verfremdung, dissipando por momentos o 
efeito  de  ilusão  e  deixando  aparecer  a  mão  do  animador.  Os  espetáculos  criados  na 
Alemanha  Oriental,  apesar  da  excelente  técnica  dos  atores,  um  audacioso  repertório 
para  adultos  (Rostand,  Brecht,  Müller)  bonecos  de  vara  (emprestados  certamente  do 
teatro tcheco do início dos anos 70) substituídos a seguir por bonecos manipulados por 
trás,  e  enfim  princípios  estéticos  e  ideológicos  aplicados  com  uma  perfeita  coerência, 
não  trazem  elementos  novos  para  o  conhecimento  de  nosso  teatro,  salvo  Senhora Julia, 
de  Strindberg,  montada  pelo  teatro  de  Neubrandenburg  em  1987,  que  foi  um 
acontecimento.  Este  espetáculo  é  interpretado  por  atores  e  bonecos  onde  cada  um  só 
constitui  uma  metade  do  personagem.  Segundo  certos  críticos,  os  atores  personificam 
os  instintos,  o  subconsciente  e  o  psiquismo  dos  heróis  do  drama,  os  bonecos 
representam  os  papéis  sociais.  O  boneco  de  Jean,  um  robusto  capataz  de  fazenda  que 
parece pouco à vontade em sua libré de lacaio, é animado por um ator encarnando um 
mestre  de  dança  cheio  de  sutileza.  Senhorita  Julia,  encarnada  por  uma  boneca,  choca 
por  sua  delicadeza,  seu  charme  e  a  nobreza  de  sua  atitude,  mas  sua  vida  interior,  de 
uma  desesperante  indigência,  é  expressa  pela  maquiagem  vulgar  e  os  movimentos 
bruscos da atriz. Esta dupla vida dos personagens ilustra claramente a dicotomia do ser 
humano, ao menos no caso da peça de Strindberg.  
As relações entre os personagens se efetuam em diferentes níveis e com graus de 
significação diferentes: ator – atriz, boneco – boneca, ator – boneco ou ainda ator e seu 
lado  boneco,  por  exemplo,  no  caso  de  um  conflito  entre  a  forma  e  a  alma  do 
personagem.  O  boneco  é,  às  vezes,  considerado  como  a  melhor  salvaguarda  do  eu.  A 
cena  culminante  é  a  realização  de  um  ato  sexual.  Ele  se  faz  na  cena  transformada  em 
cama, onde as figuras emergem, ligadas entre si de modo fantástico. O jogo dos atores 
exprime passo a passo a cumplicidade, a intimidade, enfim a agressividade com relação 
ao parceiro e o medo de se ter desonrado.82.  
Signo ou símbolo?

Se  a  interpretação  subjetiva  do  espetáculo  pode  suscitar  algumas  reservas  de 
nossa  parte,  é  inegável  que  os  artistas  de  Neubrandenburg  ultrapassaram  a  teoria  do 
boneco  sinérgico.  Em  suas  relações  com  os  bonecos,  a  distância  torna‐se  um  elemento 
que  decide  uma  nova  situação  e,  portanto,  a  função  do  boneco.  Acontece  de  o  ator 
animar o boneco à vista, mas geralmente ele se serve dele como uma coisa informe, que 
pode inclusive rejeitar. Nesse sentido, o boneco não é a imagem de um personagem, ele 
só representa uma parte de que se torna símbolo. Krofta tinha utilizado o animismo à 
distância em Enfin, Unicum, mas Marlis e Knut Hirche o ultrapassam. Nas suas mãos, o 
boneco,  mais  do  que  o  signo  de  um  personagem  é  seu  signo  plástico.  Eles  chegam  a 
renunciar  à  idéia  de  que  o  boneco  participa  da  criação  do  personagem,  com  suas 

                                                 
82 Joana Rogacka.Od braci Grimm da Strindberg (Dos irmãos Grimm a Strindberg). Teatr lalek, no. 3, 1987, p.19.  

83 
METAMORFOSES 

reações  e  sua  dinâmica  artificiais.  Eles  o  utilizam  como  uma  alegoria,  uma 
personificação  plástica  de  certos  traços  desses  personagens.  Quanto  mais  Krofta  se 
aproximava  do  rito,  tanto  mais  os  esposos  Hirche  entravam  no  campo  do  teatro 
simbólico.  
Segundo  Samuel  Foote,  ator,  escritor  e  bonequeiro,  vivendo  em  Londres  no 
século  XVIII,  o  boneco  surge  no  momento  em  que  o  ator  se  distingue  do  papel  que 
interpreta.  Hoje,  nós  atropelamos  o  seu  percurso.  Entende‐se  que  o  boneco 
antropomorfo,  portanto  clássico,  desprovido  de  animação  e  privado  de  animismo, 
continua a estimular do mesmo modo o artista. Ele é obrigado a utilizá‐lo de diversas 
maneiras,  como  por  exemplo,  atomizando  psiquicamente  o  personagem.  O  que,  aliás, 
fez  Krofta,  enquanto  os  Hirche  insistiram  no  plano  psíquico  portanto  alegórico  do 
boneco. O processo de atomização do personagem cênico foi oposto às pesquisas feitas 
sobre a constituição de um personagem integrando diversas funções.  
Voltemos, ainda que brevemente, ao esplendor da ilusão que em outros tempos 
tinha  o  personagem.  Entre  os  teatros  da  Alemanha  Oriental,  o  teatro  de  bonecos  de 
Erfurt atrai há muito tempo a atenção da crítica. O Teatro Waidspeicher utiliza meios de 
expressão  variados,  mas  não  hesita,  quando  as  circunstâncias  se  prestam  a  isso,  em 
voltar  à  convenção  do  teatro  de  bonecos  homogêneo.  Todos  os  seus  espetáculos  têm 
qualidades  dramáticas  significativas  como  Quem  tem  Medo  do  Homem  Negro?  (Wer 
Füchten sich Vorm Schwarzen Mann?), de Lars Frank (1990, adaptação do autor, direção: 
Anne Frank). Lars Frank conta uma história de sua infância. Partindo em cruzeiro com 
seus pais que o deixam sozinho à noite no camarote, ele experimenta um medo terrível 
do  mundo  da  noite.  Os  personagens  da  peça  são  grotescos,  às  vezes  deformados  (do 
ponto  de  vista  da  criança).  No  ponto  culminante,  um  fantasma  aparece  e  o  narrador 
(Frank) desaparece. Tudo começa a ganhar vida “realmente”; os espectadores, inclusive 
adultos,  deixam‐se  tomar  por  esta  mistificação  e  vivem  as  aventuras  com  o  fantasma. 
Assim a ilusão, geralmente rejeitada e com freqüência desprezada, volta sob uma nova 
forma enquanto elemento de uma outra convenção teatral. Brecht jogava com a ilusão, é 
verdade. Frank talvez não faça mais do que explorar a idéia de seu mestre. Mas se for 
este o caso, é preciso dizer que ela é explorada inversamente: a ilusão não se rompe, ela 
surge para reforçar o sentido da prática teatral.  
Um espetáculo teatral repousa no jogo. Não o dos atores, mas o jogo de todos os 
elementos  do  teatro.  E,  sobretudo,  o  da  ilusão  e  da  realidade.  Ele  pode  se  dar  em 
diferentes níveis: tempo real e tempo ideal, personagem e ator enquanto elementos da 
realidade,  ação  cênica  enquanto  história  e  acontecimento  que  vivemos  com  os  heróis. 
Inscritos  na  realidade  para  respeitar  as  convenções  do  teatro  contemporâneo  (a 
narração,  o  artifício  do  teatro,  o  teatro  teatral),  sempre  temos  a  possibilidade  de  nos 
evadirmos no mundo da ilusão. Se esta é a nossa chance, ela é também a do teatro!  
ARTES PLÁSTICAS E BONECOS 

O  boneco  é  um  ícone,  signo  de  um  personagem  vivo,  em  geral  de  um 
personagem dramático. Concebido e realizado pelo homem, coisa ou objeto, ele é uma 
obra  plástica  cuja  expressão  artística  depende  de  nosso  olhar.  O  espaço  cênico  tem 

84 
FORMAS E ESTILOS 

também  um  caráter  plástico  assim  como  o  bonequeiro  que  se  produz  na  rua  com  um 
boneco,  sem  empanada.  Todos,  à  exceção  do  homem,  são  artificiais.  Esta  é  a  razão 
porque  certos  artistas  qualificam  o  teatro  de  bonecos  de  “teatro  de  artes  plásticas 
animado”. 
A  vanguarda  dos  anos  20  estimula  uma  pesquisa  sobre  a  plástica  e  sobre  a 
estilização  das  personagens  indo  da  caricatura  ao  simbólico.  Mas  o  ingresso  das  artes 
plásticas  no  teatro  de  bonecos  não  se  faz  por  decreto.  O  teatro  tem  suas  regras,  suas 
convenções;  as  do  texto,  da  tensão  dramática,  da  luz,  da  música,  o  mais  importante 
sendo  a  capacidade  de  organizá‐los  harmoniosamente.  Mas  a  harmonia  pode  ser 
entediante e contrária aos verdadeiros valores artísticos, submetidos à subjetividade do 
artista.  Constata‐se  que  em  reação  imediata  à  declaração  de  Richard  Wagner  sobre  a 
concepção do Teatro Sintético, os artistas se opõem a isso e desenvolvem cada um sua 
própria linguagem. Ao privilegiar o texto, o espetáculo torna‐se literário, ao voltar aos 
palcos vazios, o jogo dos atores se impõe, e quando se escolhe a plástica, o espetáculo 
ganha as características desta. Não existe um teatro sintético, mas múltiplas variantes. O 
boneco  vai  viver  a  mesma  aventura.  Cada  artista  propõe  sozinho  o  tipo  de  teatro  que 
deseja defender. E o boneco, artefato fabricado por um artista plástico, segue a evolução 
da arte e ocupa rapidamente a frente da cena.  
Lembremos que o boneco figurativo reina durante muito tempo como senhor no 
teatro  de  bonecos,  com  personagens  realistas  ou  estilizados  saídos  do  folclore  (Adam 
Kilian,  Ivan  Koos,  Frantisek  Vitec)  ou  da  iconografia  nacional  (Ivan  Conev).  Atraídos 
pela  sedução  plástica  da  matéria,  e  o  jogo  anti‐naturalista,  certos  cenógrafos  vão  se 
inspirar  no  surrealismo  (Kazimiertz  Mikulski),  outros  em  objetos  encontrados 
(Zenobiusz Strzelecki), outros ainda vão buscar inspiração na iconografia histórica (Ali 
Bunsch). Esses cenógrafos, artistas plásticos, tornaram‐se então parceiros dos diretores 
enquanto  criadores  de  personagens,  idealizadores  de  espaços  cênicos  e  colaboradores 
fiéis na interpretação da obra dramática. 
As cenografias no teatro 

Mais  do  que  com  a  limitação  espacial,  foi  sobretudo  com  a  própria  forma  do 
teatro e da empanada que estes artistas romperam. Obraztsov, em seu tempo, adapta o 
espaço  cênico  às  necessidades  da  ação  de  cada  um  de  seus  espetáculos.  O  Teatro 
Tandarica em A Mão de Cinco Dedos, desloca uma parte da ação para o espaço da platéia. 
Podia‐se  também  dispensar  completamente  a  empanada,  criar  num  espaço  aberto  em 
razão  das  condições  materiais  (companhias  de  bonequeiros  sem  espaços  fixos  e 
renunciando  também  mais  facilmente  à  empanada)  ou  em  respeito  ao  tema  da  peça, 
como a Companhia Jane Phillips, de Cardiff, em 1967 com Pilgrim’s Progress, cuja ação 
se situa no interior de uma roda, conforme à tradição de um mistério.  
Os  cenógrafos  do  teatro  de  bonecos  de  Poznan,  Leokadia  Serafinowicz  e  Jan 
Berdyszak  generalizaram  a  representação  no  meio  dos  espectadores  ao  utilizar  um 
teatro  circular,  em  O  Rouxinol  (Slowik)  de  Josef  Ratajczak  (1965),  Os  Banhos  Públicos 
(Bania)  de  Maiakowski  (1967),  ou  em  O  Mais  Valente  (Najdzielniejszy,  1965),  de  Ewa 
Szelburg‐Zarembina.  A  boca  de  cena  é  encoberta  de  modo  a  concentrar  o  olhar  do 

85 
METAMORFOSES 

espectador  com  a  ajuda  de  um  dispositivo  idêntico  ao  da  objetiva  de  uma  máquina 
fotográfica.  Em  Que  Horas  São?  (Która  Godzina?  1964)  de  Zbigniew  Wojciechowski,  há 
vários  níveis  de  atuação  diferentes  que  permitem  enquadrar  livremente  o  corpo  dos 
bonecos  e  dos  atores,  jogando  assim  com  torsos,  cabeças  ou  pernas  representando  as 
personagens.  
Com  a  mesma  inventividade,  o  espetáculo  do  Teatro  de  Bonecos  de  Constanza 
Copilul din Stele baseado  em  Oscar  Wilde  (A Criança de uma Estrela,  1970,  direção:  Geo 
Berechet,  cenografia:  Eugenia  e  Serban  Jianu,  Lucia  Trontonghi)  utiliza  em  cena  um 
biombo  “vivo”.  Bonequeiros  dissimulados  sob  um  tecido  deslocam  seu  corpo  e 
transformam o biombo de tecido no desenrolar da ação. Em Petrouchka de Stravinski no 
teatro  Tandarica  (direção:  Irina  Niculescu, cenografia:  Mioara  Buescu  e  Anca  Zbarcea, 
1982),  o  efeito  dramático  do  final  destaca  a  morte  patética  de  Petrouchka,  ferido  pelo 
Mouro, as costas atravessadas por uma adaga. Esta ruptura de escala reforça o contraste 
entre  o  espaço  de  representação  da  empanada,  a  grande  cena  onde  o  público  se  torna 
sua última esperança.  
Todos  esses  cenógrafos  interpretam  uma  obra  teatral  adaptada  de  um  texto 
literário.  Criando  seus  espetáculos  a  muitas  mãos  e  às  vezes  eles  próprios  os 
representando, jamais procuraram impor seu material como uma espécie de universum. 
A  evolução  se  fez  progressivamente,  tanto  no  emprego  de  novos  materiais,  como  no 
teatro  dos  Monestier,  quanto  na  cenografia  tradicional  que  conheceu  uma  nova 
dinâmica. A este respeito, o estúdio experimental de Allami Babszinhaz, de Budapeste, 
adapta em 1972 uma pequena peça de Jean‐Claude Van Italie, Motel. Uma Máscara para 
Três Bonecos (Motel. A Masque for Three Dolls, direção: K. Szonyi, cenografia: I. Koos). O 
espaço cênico é uma pequena empanada‐personagem: a proprietária de um motel. Na 
cena, isto é no interior da Proprietária, dois bonecos de luva buscam um momento de 
tranqüilidade para saciar seu desejo. A vida barulhenta do motel põe os dois heróis fora 
de  si  de  tal  modo  que  eles  destróem  tudo  que  os  cerca,  isto  é,  o  motel,  a  cena  e  a 
empanada a um só tempo. Os cenários são explorados de modo dinâmico e metafórico 
já que suas transformações exprimem o sentido da peça. 
O teatro cenografado 

Somente  nos  anos  70  vamos  assistir  ao  surgimento  de  companhias  que  irão  se 
consagrar inteiramente à pesquisa de soluções plásticas e espaciais. Assim, na Itália, em 
Lucca, o teatro Il Carretto fundado e dirigido por uma arquiteta, Grazia Cipriani, e um 
ilustrador,  Graziano  De  Gregori,  rejeita  o  espaço  plástico  homogêneo.  Na  cena, 
diferentes quadros (grupos de personagens) possuem um valor plástico autônomo e se 
distinguem  uns  dos  outros  por  suas  dimensões:  variação  de  escala,  modificação  do 
olhar.  Brunella  Eruli83 observou  com  justeza  que  Cipriani  e  De  Gregori  optaram  pela 
empanada tradicional fazendo dela novos usos: seus personagens ora deixam o espaço 
da empanada, ora  voltam a  ele, intensificando assim a dimensão  emocional,  como  em 

                                                 
83 Brunella Eruli. Desenhos do mito. A Ilíada de Il Carretto. PUCK, 1989, no. 2, p. 35. 

86 
FORMAS E ESTILOS 

Branca de Neve (Biancaneve, 1983), onde os anões e a Madrasta – uma atriz – representam 
num  espaço  aberto  enquanto  a  pequena  boneca  de  Branca  de  Neve,  que  se  encontra 
embaixo  de  sua  redoma,  fica  fechada  na  empanada.  A  variação  dos  tamanhos  dá 
origem a uma metáfora dramática. Em Romeu e Julieta, dirigido por Graziano de Gregori, 
o  palco  (como  na  Commedia  dell’Arte)  tem  várias  funções.  Ele  pode  se  transformar 
num palco plano e representar uma cidade, suas janelas, e tornar‐se o campo do conflito 
opondo  os  Montechios  aos  Capuletos.  Em  A  Dama  das  Camélias,  Margarida  agoniza 
numa  carroça  cuja  forma  evoca  uma  empanada,  e  a  atriz  é  assombrada  pela  visão  de 
personagens do passado, simbolizados por bonecos.  
Na Ilíada (1991), a empanada toma toda a boca de cena onde representam atores 
monumentais,  em  meio  a  signos  plásticos  que  evocam  as  experiências  humanas  do 
passado.  No  palco  vazio,  citação  teatral,  a  exibição  da  maquinaria  necessária  à  realização  das 
ações lembra implicitamente a empanada dos bonecos e sublinha a paciência artesanal exigida por 
qualquer criação artística. A luz redesenha os espaços, o claro‐escuro fazendo destacar o pathos e 
a distância mítica dos acontecimentos. A Ilíada não é um espetáculo sobre a Grécia antiga, mas 
sobre os horrores da guerra e da violência, sobre a fúria cega que quebra a harmonia da natureza. 
As  inúmeras  e  sábias  citações  iconográficas  tiradas  das  esculturas,  dos  baixo‐relevos  ou  das 
decorações  dos  vasos  gregos,  a  referência  ao  espaço  como  ao  de  uma  empanada  de  bonecos,  os 
gestos  marionetizados  dos  atores  refletem  uma  visão  do  mundo  clássico  aliando  uma  grande 
coerência plástica a uma releitura sutil.84 
Nesses  quatro  espetáculos,  a  plástica  domina  e  fascina.  Se  os  três  primeiros 
conservam  elementos  da  ação  dramática  e  a  levam  até  o  final,  a  Ilíada já  não  passa  de 
uma  montagem  de  cenas  em  torno  de  um  tema,  uma  impressão  plástica  que  se  apóia 
em  documentos  históricos.  Trata‐se  de  uma  colagem  de  imagens  que  aspiram  a  uma 
póética do teatro plástico. 
Ainda  na  Itália,  o  Teatro  delle  Briciole,  de  Parma,  também  encontra  excelentes 
soluções,  no  campo  do  repertório  para  crianças.  Ele  utiliza  um  espaço  aberto  no  qual 
introduz quadros de imagens para A Chamada da Floresta (Il Richiamo della Foresta, 1987), 
de Jack London. Pode‐se falar aqui de espaço no espaço cênico, à imagem do teatro no 
teatro.  Em  1987,  em  Hvidovre,  na  Dinamarca,  o  Teatro  delle  Briciole  apresenta  O 
Flautista.  Ao  entrar  na  sala  do  teatro,  os  espectadores  se  encontram  nas  muralhas  de 
uma cidade. Trata‐se, claro, de uma maquete, mas a porta da cidade é quase verdadeira. 
O Guardião, um ator, anuncia o espetáculo e introduz os espectadores por uma ponte 
levadiça. No interior, um espaço é previsto para sentar sessenta pessoas. Em volta delas, 
fragmentos de uma paisagem urbana: o plano geral da cidade, a casa do burgomestre, 
uma pequena ponte, as muralhas. É lá que a ação acontece. O Guardião, sem mudar de 
roupa,  assume  as  funções  do  flautista,  toma  contato  com  o  Burgomestre,  mas  como  a 
recompensa  prometida  não  lhe  é  entregue,  ele  deixa  a  cidade  levando  consigo  as 
crianças, isto é, os espectadores. Esta tirada era inesperada, sobretudo para o público. A 

                                                 
84 Brunella Eruli. Desenhos do mito. A Ilíada de Il Carretto. PUCK, 1989, no. 2, p. 36 

87 
METAMORFOSES 

concepção  plástica  do  espaço  cênico  servia  à  expressão  dramática  da  peça  e  os 
espectadores, tais como os ratos, tornavam‐se os protagonistas do espetáculo.  
Na  Polônia,  no  Teatro  de  Bonecos  de  Wroclaw,  a  peça  Gyubal Velleÿtar  (Gyubal 
Wahazar 85 ),  de  Stanislaw  Ignacy  Witkiewicz  (direção:  Wislaw  Hejno,  cenografia: 
Jadwiga Mydlarska‐Kowal, 1987), apóia‐se inteiramente nos cenários. A supremacia da 
forma  plástica  e  seu  papel  privilegiado  se  impõem  com  toda  evidência  desde  os 
primeiros minutos. A galeria dos personagens do drama emerge da penumbra. Fixados 
num  gesto  esboçado  como  num  plano  fixo  cinematográfico,  eles  ficam  mudos  diante 
dos  espectadores,  em  poses  sugestivas,  os  olhos  fixos  intensamente  num  ponto  do 
espaço,  sentados  nas  cadeiras  em  forma  de  casa,  inspirados  pelos  princípios  da  cena 
simultânea  da  Idade  Média.  Mydlarks‐Kowal  voluntariamente  não  leva  em  conta 
nenhuma das didascálias e se deixa guiar por sua imaginação e sua intuição teatrais. Ao 
grotesco  se  mescla  o  trágico,  ao  engraçado  a  crueldade.  O  diretor  desejara  construir  a 
ação  do  espetáculo,  fazer  passar  sua  visão  de  uma  autocracia  nutrida  de  metafísica,  a 
partir  das  concepções  do  autor.  Mas  as  impressões  plásticas  que  se  depreendem  são 
mais  fortes.  Mydlarska‐Kowal  afirmava,  talvez  hipocritamente,  se  remeter  sempre  ao 
diretor. Ela considerava o teatro como a expressão da emoção, mas não deixava de ser a 
herdeira do modernismo e gostava de repetir, baseada em Léger e Witkaci, que o ator 
não  passa  de  um  elemento  da  composição.  O  ator,  no  teatro  dramático,  é  um  material 
plástico. No teatro de bonecos, em troca, ele põe em obra o espaço e as formas que eu crio em mim, 
enquanto cenógrafo. Eu penso que o ator, no teatro de bonecos, deve ter uma imensa imaginação 
plástica.  O  ator  mexe  com  a  forma,  ele  deve  viver  esta  forma,  ele  deve  senti‐la.  É  uma  tarefa 
muito importante. E é o que distingue o ator do teatro de bonecos do ator do teatro dramático86. 
Teatro de autor 

Encontramo‐nos  aqui  bem  longe  das  pesquisas  dos  primeiros  reformadores.  O 


que  estaríamos  no  direito  de  esperar  de  um  teatro  plástico,  de  uma  obra  inteiramente 
concebida por um artista plástico, escultor ou pintor, vamos encontrar na Holanda, na 
pessoa de Henk Boerwinckel, artista plástico. Ele apresenta seu primeiro espetáculo em 
1963. Tendo efetuado seu serviço militar num hospital psiquiátrico, seu universo, triste 
e quase deprimente, não é simplesmente pura formalização de seu imaginário, mas de 
seu passado. Comecei como desenhista, há muito tempo. Talvez por isso só possa conceber meus 
espetáculos  desenhando.  Eu  não  penso  em  pequenas  histórias,  em  Geschichten,  ou  em 
Erzählungen, em contos, mas em imagens móveis. Quando desenho, anoto indicações de medidas 
para  estudar  a  escala  dos  objetos  que  quero  realizar.  Indico  detalhes  técnicos  e  esboço  as 
descrições  sumárias  das  ações  que  às  vezes  se  mostram  irrealizáveis  na  prática.  Como  chego  a 
essas  idéias,  é  um  mistério  para  mim  também.  Não  sei  de  onde  me  vêm  essas  imagens.  Elas 
pertencem  ao  mundo  dos  sonhos,  ao  lado  mais  sombrio  da  vida  interior.  No  fundo,  não  posso 

                                                 
 Stanislaw  Ignacy  Witkiewcz.  Gyubal    Velleytar.    La  Cité,  Lausanne,  1971.  Tradução  de  Alain  van 
85

Crugten (N.d.T.) 
 Chce miec mój wlasny teatr  (Eu quero ter meu teatro). Entrevista com Jadwiga Mydlarska‐Kowal. Teatro 
86

Lalek, 1988, no. 1‐2, p. 31.  

88 
FORMAS E ESTILOS 

dizer  nada  a  esse  respeito.  Quando  concebo  minhas  imagens,  penso  de  imediato  na maneira  de 
fazê‐las  se  movimentarem.  Ainda  é  preciso  encontrá‐la.  O  caminho  é  cheio  de  pequenas 
complicações e sua solução pede noites de reflexão, mesmo se tudo parece simples quando a gente 
fala  disso.  Eu  só  pinto  e  desenho  pensando  nos  bonecos.  Num  certo  momento  de  minha  vida, 
pintei  muitas  paisagens  e  personagens.  Mas  em  seguida  não  conseguia  mais  avançar.  Para 
desenhar, eu tinha necessidade de ser inspirado por qualquer coisa a minha frente: uma paisagem, 
um homem, uma mulher nua... Eu não era capaz de criar meu universo interior unicamente pelo 
desenho. Enquanto que com os bonecos, eu fabrico meu universo interior87. 
Boerwinckel percebe os homens em tons cinza escuro, com uma textura de pele 
rugosa e de roupas grosseiros, em forma de saco. Seus traços são deformados, às vezes 
muito  exagerados,  Às  vezes  apenas  marcados  por  um  traço  forte.  Eles  olham  numa 
direção bem definida, mas seu olhar é marcado por um algo mais, um sofrimento e às 
vezes  hostilidade.  Os  bonecos  de  Boerwinckel  são  tão  expressivos  que  poderiam 
constituir por si só o tema de uma exposição ou de um happening. Mas ele lhes dá vida, 
considera‐os  como  motivos  a  partir  dos  quais  inventa  histórias  e  cenários  maliciosos, 
surrealistas.  
Um realismo fantástico. No palco quase vazio, um cíclope de torso impressionante. 
Um  único  olho,  um  nariz  deformado,  uma  longa  barba.  O  cíclope  se  apossa  de  uma 
caixinha  que  coloca  a  sua  frente.  Ele  tira  seu  olho  do  rosto  e  o  põe  na  caixinha.  Ele 
fabrica assim um aparelho fotográfico. Ele o vira para o público. Um clarão, uma foto. 
Ele tira o olho da caixinha e o recoloca em sua órbita. Depois tira uma foto da caixinha. 
Ele a examina com seu único olho e a mostra ao público – é a fotografia do público. E 
ele aponta para ele com um dedo ameaçador. 
O Anão I. Uma marionete de rosto envelhecido e usando uma roupa marrom de 
listras violeta percebe acima dela os fios e a mão que os dirige. Ele gostaria de conhecer 
seu  animador.  Tenta  escalar  os  fios  até  a  cruz.  A  mão  lhe  ordena  que  fique  embaixo, 
mas  a  marionete  teima.  A  mão  intervém  de  novo,  mas  a  marionete  se  obstina  em  sua 
ascensão. A mão então intervém e a marionete se imobiliza, sempre suspensa a seus fios. 
O Anão II. Um homem velho, um boneco de luvas, vestido de uma touca de noite, 
trabalha,  escreve  sem  cessar.  Uma  mão  lhe  traz  papéis.  O  velho  dorme.  Durante  seu 
sono os  papéis se  invertem. A mão se encontra  numa caixa  fechada. O  velho  chama  a 
mão e lhe bate. Depois de um momento, ele é tomado de piedade e a acaricia. Da caixa 
sai uma mão de cadáver que ataca o velho. Ele se acorda. O homem se põe de novo ao 
trabalho. A mão lhe traz papéis e acaricia‐lhe a cabeça.  
O  Anão  III.  O  mesmo  personagem,  uma  marionete.  Ela  percebe  os  fios  que  a 
dirigem. Ela resiste a eles, puxa‐os revelando a presença das mãos do animador. Ela lhe 
arranca a cruz das mão e cai por terra, inerte. As mãos designam e animam o miserável 
destino  da  marionete  tão  pouco  inteligente,  mas  eis  que  logo  elas  também  ficam 
suspensas, sem vida. Então a marionete se levanta. Ela se serve da cruz como de uma 
muleta e deixa a cena mancando.  
                                                 
87 Henk Boerwinckel. Um sonho em três dimensões. PUCK, 1989, no. 2, p. 30 

89 
METAMORFOSES 

A maioria dos quadros representados tem a mesma característica surrealista. As 
três  sainetes  do  Anão  introduzem,  além  disso,  elementos  deste  teatro  que  denominei 
auto‐temático.  Elas  evocam  o  estado  de  dependência  no  qual  se  encontra  a  marionete 
em relação a seu animador, trata‐se de uma espécie de desmistificação da natureza do 
boneco e de seu simulacro de vida. Entretanto, ao final da terceira sainete a marionete 
desmistificada  é  de  novo  mistificada:  ela  deixa  a  cena  por  seus  próprios  meios.  Isso 
confirma  a  sensibilidade  de  Boerwinckel  à  magia  da  vida  do  boneco.  Assim,  o  teatro 
plástico  de  Boerwinckel  encontra  facilmente  seu  lugar  entre  as  tendências  do  teatro 
moderno. 
Boerwinckel fez outras experiências teatrais que, como O Filho da Mãe Terra ou As 
Estações,  conservam  uma  visão  plástica  do  mundo  surrealista  e  mesmo  mágico,  mas 
renuncia ao humor negro, aos efeitos de surpresa repousando sobre o jogo dos bonecos. 
Seus espetáculos são muito mais plásticos, no sentido em que evocam mais esculturas a 
serem  contempladas  que  atores  tendo  um  papel  preciso.  Seu  último  espetáculo,  Trio 
para Pierrot (1989),  também  tem  origens  autobiográficas.  Boerwinckel  conserva  de  sua 
infância a lembrança onde está sentado no assoalho de uma bela peça, na qual havia um 
buraco. Nesse buraco ele descobre um mundo caótico em ruínas. O espetáculo conta a 
história de uma criança que brinca de boneca. Na janela aparecem cabeças horripilantes 
que a observam. Elas observam sua inocência. De repente abre‐se uma espécie de caixa 
que  revela um buraco  negro. A menininha  olha no buraco e seu rosto desaparece. Ela 
entra no buraco, entra na vida. Ela perde sua inocência, para ela a vida começa. O teatro 
de Boerwinckel merece incontestavelmente o nome de teatro de autor. É um fenômeno 
bastante  corrente  entre  os  solistas,  que  encontramos  em  companhias  ou  grupos 
marcados pela forte personalidade de um artista. O teatro porta então seu nome. Com 
frequência as pessoas se referem ao teatro de Brook, de Grotowski ou de Mnouchkine, e 
poder‐se‐ia, do mesmo modo, falar do teatro de Obraztsov, de Nicolescu, de Meschke, 
ou de Krofta. Trata‐se de fato de um teatro de diretor.  
A experiência é mais breve em Zygmunt Smandzik que só cria dois espetáculos 
de  autor:  O  Pássaro  (Ptak,  1976)  e  A  Gavetinha  (Szufladka,  1978).  Utilizando  formas 
plásticas  originais  que  reduzem  o  homem  a  um  ideograma  atuando  entre  objetos 
simbólicos,  ele  expõe,  num  como  noutro,  suas  reflexões  pessoais  sobre  a  natureza  e  a 
condição humana. Seu primeiro espetáculo causou grande impressão na França como o 
relata  Annie  Gilles:  “O  Pássaro,  espetáculo  visual  e  musical  sem  texto  do  teatro  polonês  de 
Opole,  exibia,  durante  quarenta  minutos,  uma  coerência  temática  certa:  a  humanidade  (ou  um 
grupo  humano)  comprometida  numa  evolução  necessária  pela  própria  duração  do  espetáculo, 
seus sofrimentos, a produção de seus ídolos, seus sonhos, em particular o de Ícaro ou de Leonardo 
da Vinci. Das conversas após o espetáculo, destacava‐se um reconhecimento comum desses temas, 
mas também a divergência das percepções individuais enriquecidas pela afetividade e a cultura de 
cada  um,  quando  esses  mesmos  fatores  associados  a  hábitos  de  leitura  linear  e  intelectualizada 
não conduziam a uma recusa categórica do espetáculo88.” 

                                                 
88 Annie Gilles. Pequeno organon para o boneco. CDDP des Ardennes, Charleville‐Mézières, 1977, p.20‐21 

90 
FORMAS E ESTILOS 

O Teatro de Fogo e de Papel (Teatr Ognia i Papieru, 1984),  de  Grzegorz  Kwiecinski, 


também pode ser considerado como um teatro de autor. Kwiecinski, sob a máscara de 
um  demiurgo  ou  do  destino,  mostra  encima  de  uma  mesa  uma  série  de  figurinhas 
recortadas  num  papel  branco.  Elas  representam  personagens  cujo  tamanho  exprime  a 
função  social,  e  uma  série  de  símbolos  emprestados  na  sua  maior  parte  à  cultura 
judaico‐cristã.  Ele  os  anima  sucessivamente  incendiando‐os,  ou  seja,  “animando‐os” 
com fogo. O holocausto de dezenas de figuras de papel simboliza o destino do homem e 
da  civilização.  Não  se  sabe  exatamente  se  trata‐se  de  uma  destruição  total  ou  de  uma 
tentativa  de purificação. Além disso, o fogo não  é apenas  um elemento  metafísico,  ele 
preenche  também  funções  estéticas,  trazendo  incessantes  modificações  à  composição 
original  e  tornando‐se  ele  próprio  um  elemento  provisório.  Não  resta  dúvidas  de  que 
Kwiecinski  propõe  um  novo  tipo  de  narrativa  teatral  que,  dada  sua  estrutura  –  uma 
sucessão  de  imagens  –,  pode  ser  considerada  como  uma  narrativa  plástica,  ou  pelo 
menos como um embrião de narrativa plástica.  
Entre  os  bonequeiros  da  nova  geração,  Liz  Walter  e  Gavin  Glover  que  dirigem 
desde 1987 o Faulty Optic Theatre of Animation, em Londres, aprenderam seu ofício no 
teatro de John Wright,  The Little Angel Theatre. Ao conhecer seus espetáculos, eu me 
perguntava  se  seu  mestre  não  fora  na  verdade  Boerwinckel.  Eles  criam  seu  universo 
plástico com o rebotalho de nossa civilização, no qual inscrevem criaturas humanas que 
se lhes assemelham. São bonecos cinzas ou marrons, deficientes, que se encontram em 
situação de perigo. Eles não têm a expressividade dos de Boerwinckel, mas essa falta é 
compensada pelo contexto da história: encontramo‐nos num mundo extravagante, um 
mundo de pesadelo onde desfilam sob nossos olhos indivíduos perdidos num universo 
que possui suas próprias leis.  
Em Snufhouse Dusthouse (1990), descobrimos na cena uma construção que poderia 
ser  uma  residência  de  vários  níveis  ou  um  simples  espaço  teatral  terrivelmente  cheio; 
anda de lá para cá um aleijado, dispondo de todo um aparato técnico que lhe permite se 
deslocar  com  a  ajuda  de  um  bonequeiro  visível).  Essa  criatura  dá  mostras  de  uma 
extrema  mobilidade  e  previdência.  O  espectador  descobre,  ao  mesmo  tempo  que  ela, 
todos  os  seus  tesouros,  cujo  sentido  e  utilidade  lhe  escampam.  Sem  nenhuma  palavra 
(seus  espetáculos  são  todos  mudos),  a  ação  dos  personagens  é  o  elemento  mais 
importante,  chega‐se  a  compreender  que  a  obsessão  desse  homenzinho  é  deslocar‐se. 
Como ele não tem pés, a cena onde tenta calçar um sapato toma uma dimensão trágica. 
Outras  ações  vão  permitir  ao  herói  superar  essa  falta  e  na  cena  final  ele  tentará  voar, 
num  vôo  tão  desajeitado  quanto  o  é  ele  próprio.  Com  toda  evidência,  trata‐se  de  um 
teatro  plástico  poético  cujas  metáforas  permitem  uma  parábola  sobre  a  força  vital  do 
homem  e  a  pequenez  de  suas  soluções.  Esta  obra  é,  aliás  totalmente  aberta,  há  mil  e 
uma interpretações possíveis.  
Liz Walker e Gavin Glover manipulam à vista seus bonecos com empunhaduras 
fixadas a seu pescoço ou costas. Eles não têm nenhuma relação com elas e animam sua 
visão do mundo, cheia de alegorias, alusões e imagens surrealistas. Mas esse teatro não 
tem  um  caráter  pictural,  é  feito  de  objetos  encontrados  e  de  esculturas  em  três 
dimensões. O impulso criador reside no tema que é sua primeira preocupação e os leva 

91 
METAMORFOSES 

a  construir  personagens  e  imagens.  A  história  nasce  num  segundo  momento.  Primeiro 


pensamos no tema que gostaríamos de aprofundar e, depois, nas diversas imagens com as quais 
poderíamos  exprimi‐lo.  A  partir  dessas  imagens,  deixamos  uma  pequena  história  eventual  se 
desenvolver. Sentimos então que certas idéias funcionam e outras não. Por exemplo, o  tema  de 
Snufhouse Dusthouse era o “isolamento”. Tínhamos esboçado em dezenas de pedaços de papel 
todo tipo de croquis e imagens. Delas retivemos Mabel como personagem principal. Ele emergiu 
rodando num carro improvisado num universo autônomo, mas totalmente isolado. Construímos 
uma  grande  grua  de  quatro  metros  de  altura  para  cavar  simbolicamente  seu  passado,  depois 
abandonamos essa idéia por um modelo menor. Infelizmente, como o carro também era incômodo 
para  manipular,  tivemos  que  renunciar  a  ele.  Nós  nos  encontramos  então  frente  ao  seguinte 
problema:  como  Mabel  iria  se  deslocar?  Ela  não  tinha  pernas  e  tentava  se  lembrar  de  como  as 
perdera. Seus pais as tinham cortado quando ela era pequena, para puni‐la por ter saído de casa, e 
ela vive numa solidão total desde que morreram. Assim, uma história se desenvolveu a partir dos 
primeiros desenhos, através das diferentes etapas de produção, ensaios e finalmente ao longo das 
primeiras apresentações, e estávamos sempre prontos a modificá‐la. Este modo de trabalhar dá às 
vezes dor de cabeça, mas é extremamente estimulante. 89 
Escolher  um  tema  existencial  ou  emocional  torna‐se  assim  um  procedimento 
comum.  Além  do  mais,  quando  esse  faz  uso  da  plástica  e  do  boneco,  ele  se  revela 
particularmente  rico,  graças  à  interação  entre  conceito  e  matéria.  E  essa  confrontação 
entre  elementos  linguísticos  e  matérias  brutas  ou  objetos  encontrados,  ultrapassa  com 
frequência  a  primeira  intenção  do  criador.  Acontece  o  mesmo  nas  relações  entre  a 
pintura e o teatro. Ela foi por muito tempo o único meio de “ilustrar” o espaço cênico 
antes  que  os  cenários  tridimensionais  não  a  expulsassem  do  teatro.  Ela  retorna  com 
força,  afirmando  sua  materialidade  e  sua  picturalidade,  mas  delicada  demais,  ela  se 
submete.  Acontece  o  mesmo  no  teatro  de  bonecos.  Em  As  Estações  do  Pônei  (direção: 
Irina Niculescu, cenografia: Ana Puschila,1980) criado no teatro Tandarica de Bucareste, 
a tela de fundo e o tapete do chão representam uma paisagem com um delicado jogo de 
cores e elementos naturais. As marionetes são feitas de tule e de madeira leve. Por meio 
de  um  jogo  de  cores,  a  luz  modela  as  variações  sazonais  desse  espetáculo  poético  e 
pictural,  quase  “impressionista”  de  marionetes  clássicas,  cuja  força  criativa  deixa 
transparecer os efeitos visuais.  
Os  espetáculos  de  Boerwinckel,  Glover,  Hejno  e  Irina  Niculescu  respeitam  a 
convenção  do  teatro  de  bonecos  homogêneo.  Eles  dão  ao  universo  plástico  um  papel 
principal. Se penetrar nesse universo o homem se tornará por sua vez uma forma, uma 
figura geométrica ou uma cor. Os artistas plásticos são assim adeptos naturais do teatro 
de bonecos homogêneo, quer ele seja ou não realista.  
OS PINTORES NO TEATRO 

Para  muitos  artistas,  a  cenografia  pictural  é  um  procedimento  insuficiente.  Nos 


anos  40,  na  França,  o  bonequeiro  Jacques  Chesnais  se  inspira  na  pintura  de  Léger. 

                                                 
89 Entrevista de Henryk Jurkovski com Gavin Glover, em 30 de junho de 1993,  a Charleville‐Mézières.  

92 
FORMAS E ESTILOS 

Outros se perguntam se o teatro não poderia fazer o mesmo com as obras de Bosch, de 
Breughel  ou  de  um  pintor  polonês,  Makowski.  Somente  alguns  poucos  tentaram 
realizar esse sonho, convidando grandes pintores para colaborar com eles.  
Miró, Mata, Saura 

Joan  Baixas,  o  fundador  do  teatro  La  Claca  em  Barcelona  (1968‐1988),  fez  da 
animação da pintura um programa teatral: A pintura representa para mim um dos motores 
principais da arte dos bonecos. É no seio da imobilidade plena de energia do espaço pictural que 
encontro o ponto de partida do movimento das figuras. Este movimento, por definição, não pode 
ser nem naturalista nem representativo – nem simbólico também, porque deve ser antes de tudo 
original, próprio a si, autêntico. O movimento é a vida, a base de nossa arte, a essência mesma do 
personagem.  E  ele  é  também  a  vida  do  espetáculo,  sua  própria  respiração.  Devo  precisar  que 
quando  falo de figuras, não faço  nenhuma distinção  entre bonecos e  máscaras, entre objetos  ou 
formas  abstratas.  A  arte  das  figuras  consiste  numa  emoção  criada  pelo  jogo  cênico  de  objetos 
encarregados de significações e assumidos por um ator. Que este se sirva de seu rosto, de sua mão 
ou  de  não  importa  que  outro  meio  mecânico  não  tem  para  mim  nenhuma  importância.  O 
espetáculo das figuras estabelece um diálogo muito enriquecedor com a pintura. O pintor fornece 
não  apenas  as  formas  que  os  personagens  vão  adotar,  mas  oferece  essencialmente  o  ritmo  e  o 
movimento, a atmosfera e a pulsação vital, a casa e a paisagem, a existência física e mental dos 
personagens e, por consequência, da peça. 90.  
Baixas convida Miró e lhe propõe conceber de outro modo seu trabalho. O pintor 
propõe  e  La  Claca  realiza  o  seu.  “O  trabalho  teatral,  isso  é  com  vocês!”  declarou 
abruptamente Miró. O artista, de oitenta nos de idade, aceita o convite com entusiasmo. 
Seduzido pela idéia de montar Ubu Rei de Jarry como um comentário do regime fascista 
em plena decomposição quando da morte do general Franco. Durante o trabalho, Baixas 
e  ele  decidem  de  comum  acordo  mudar  de  tema,  sem  renunciar  entretanto  à  idéia 
inicial. Foi assim que nasceu A Morte do Tirano (Mori el Mesma, 1978). Sem intriga precisa, 
o  espetáculo  provoca  a  mesma  impressão  que  a  pintura  ou  a  música.  Miró  inventa 
personagens  de  formas  fantásticas,  que  ele  próprio  confecciona  e  pinta.  O  assunto  o 
obriga, no entanto, a abandonar as cores claras e as formas otimistas. O que não escapa 
à  crítica  de  Cristian  Armengaud:  É  de  fato  todo  um  mundo  sangrento  e  erótico,  grotesco  e 
arruinado,  levando  às  vezes  a  incongruência  aos  limites  da  escatologia,  que  vai  se  recriar  sob 
nossos  olhos.  Por  trás  do  surrealismo,  o  espírito  de  Dada  (Miró  ilustrou  Tzara)  e  o  sentido  de 
inúmeros  símbolos  escapa  ao  observador  não  advertido.  Num  canto  da  cena,  silencioso,  sem 
máscara  nem  maquiagem,  uma  jovem  mulher  numa  jaula  de  madeira,  única  personagem 
totalmente humana, desfia alguns raros gestos cotidianos... Trata‐se de uma imagem da condição 

                                                 
 Joan Baixas, Le boulot théatral, c’est votre affaire! (O trabalho teatral, isso é com vocês!)  PUCK, 1989, No. 2, p. 
90

14 
 
 
 

93 
METAMORFOSES 

feminina? Ou duma bela adormecida no bosque cujos sonhos se materializam? “O sono da rainha 
engendra  os  monstros”;  de  fato  não  estamos  longe  de  Goya  em  quem  por  muitas  vezes, 
esquecendo Miró, nos surpreendemos a pensar91. 
A  participação  de  Miró  na  elaboração  do  espetáculo  não  deixa  de  ser  um 
acontecimento.  Ele  está  presente  em  todas  as  etapas  de  sua  gestação,  controla  a 
construção dos personagens (das  máscaras, dos figurinos)  pinta‐os ele mesmo em  três 
dimensões e deixa o cuidado da encenação e da animação a Baixas, que se esforça por 
interpretar e transpôs para a cena o ritmo plástico interno da obra de Miró. 
La  Claca  colabora  igualmente  com  Antonio  Saura  e  Roberto  Sebastian  Mata. 
Baixa  realiza  com  Saura  Peixes  Abismais  (Peixos  Abismals,  1982).  Saura  sempre 
manifestou interesse pelas máscaras das sociedades primitivas que constituem o ponto 
de  partida  do  espetáculo.  Ele  as  simplifica  bastante,  reduzindo‐as  quase  à  geometria. 
Ele as branqueia e marca de leve os olhos. Trata‐se de fato de pré‐máscaras, de larvas ou 
de  arquétipos  de  máscara,  que  convidam  ao  ritmo  e  à  expressão  de  ritos.  Com  Mata, 
Baixas cria O Labirinto porque percebe nas telas de Mata uma imagem do labirinto do 
mundo.  Inspirando‐se  um  no  outro,  eles  atingem  uma  forma  ideal.  O  espetáculo  se 
desenrola sob uma barraca. Na primeira parte, o público se encontra num labirinto feito 
de uma rede de cordas e de aprestos, observando aqui e ali acontecimentos transpostos 
de  uma  exposição  de  Mata  sobre  o  tema  de  Dom  Quixote  intitulado  Dom  Qui.  Um 
labirinto de acontecimentos e seu Minotauro constituem a segunda parte, em referência 
à  mitologia  grega.  Não  resta  nenhuma  dúvida  que  Miró  e  Mata  exerceram  uma 
influência considerável sobre os espetáculos de La Claca. Podemos em troca perguntar‐
nos  em  que  medida  uma  obra  plástica  pode  ser  transposta  a  uma  obra  teatral,  se 
levarmos em conta as teorias de Baixas. Será o teatro que interpreta a obra plástica ou a 
obra plástica que impõe suas regras? E quanto ao cenógrafo ou pintor, qual deles criou 
uma  obra  que  possa  resistir  ao  efêmero?  O  primeiro  está  submisso  ao  diretor,  a  sua 
visão  do  universo  teatral,  do  único  e  do  efêmero  da  representação,  enquanto  que  o 
segundo pode criar obras que atravessam os séculos? É sem dúvida por essa razão que 
muitos  teatros  convidam  pintores  para  aceitar  o  papel  de  cenógrafo  plástico:  eles  não 
têm em mente uma animação da pintura, mas um olhar ou uma técnica plástica nova.  
Por  essas  mesmas  razões,  alguns  artistas  tentam  adaptar  à  cena  o  mundo  de 
Enrico Baj. Os primeiros a fazê‐lo foram criadores de ópera, mas eles não conseguiram 
sair das trilhas batidas da cenografia nem utilizar plenamente a riqueza da pintura e as 
colagens de Baj. A colaboração de Baj com Monaco de Pistola foi mais frutuosa. Pistola 
propõe  ao  pintor  a  montagem  de  Pinóquio  em  seu  Teatro  Porcospino.  Baj  começa  por 
recusar depois se contenta em enviar‐lhe uma pilha de catálogos e de desenhos cobertos 
de  vampiros,  de  fadas  e  de  monstros.  Pistola,  com  a  colaboração  de  Andrea  Rauch, 
extrai  uma  imagem  coerente  de  um  mundo  fantástico  e  realiza  um  Pinóquio  (1980) 
totalmente pictural.  

                                                 
 Christian  Armengaud.  Mori el Merma. Miró – Claca, uma estréia em Barcelona.   Marionnettes.  UNIMA‐
91

França, 1978, no. 61, p. 15. 

94 
FORMAS E ESTILOS 

O sucesso de Pinóquio teve efeitos positivos sobre Baj, que se deixa então seduzir 
pelas proposições de Massimo Schuster e confecciona, com peças mecânicas, os bonecos 
de Ubu Rei (1984). Schuster, por seu lado, com a força de expressão que o caracteriza, dá 
as  réplicas  dos  personagens  de  Jarry  deslocando,  transportando  ou  batendo 
violentamente  peças  mecânicas  de  todas  as  cores.  Este  sucesso  garante  a  colaboração 
entre os dois artistas. A Ilíada surge em 1988. Baj cria bonecos de madeira semelhantes a 
simples  brinquedos  com  traços  aparentes  segundo  os  diferentes  personagens.  Baj  está 
completamente encantado com a expressão dramática de Schuster e da visão clara que 
ele tem dos temas escolhidos. É sem dúvida por essa razão que vai intitular suas notas 
do  relato  dessa  colaboração:  “Eu, o Boneco”.  Foi  um  episódio  de  sua  vida  artística  que 
ele  aprecia  particularmente.  Gosto  de  fazer  bonecos,  escreve  ele;  é  como  fazer  mundos  e 
representá‐los nos quadros. É como colocar neles personagens, esperando então que os quadros e 
as figuras aí façam das suas, se mexam, se animem, falem, discutam, zombando e ridicularizando. 
Eu gosto  do boneco, porque pode ser feito  de qualquer coisa, como uma colagem. Ou  melhor,  é 
uma colagem de coisas, de histórias, de objetos e de homens. Porque quando Schuster empunha 
esses pobres aqueanos, ele faz com que falem, sofram, divirtam‐se e gritem, esses pobres pedaços 
de madeira, feitos para amar92. 
Magritte e os surrealistas 

Uma obra plástica pode também inspirar uma criação teatral sem a participação 
do autor. Assim, o primeiro a adaptar a pintura de Magritte à cena foi Ray Nusselein, 
de quem o Paraplyteatret, de Copenhaguen, apresenta no festival de Hvidovre, em 1987, 
um  espetáculo  intitulado  Le  Ciel  en  Poche  (O  Céu  no  Bolso).  A  organização  do  espaço 
cênico é aí muito importante. Constituída de um espaço livre em círculo reservado aos 
espectadores,  ele  é  limitado  por  divisórias  de  tecido,  como  uma  tenda.  Os  atores 
convidam docemente o público a penetrar nesse espaço. Enquanto isso, um harpista dá 
um recital. O espetáculo propriamente dito começa no momento em que é descoberta a 
cena (uma parte do tecido é erguido), que representa uma colagem surrealista, em três 
dimensões, de quadros de Magritte. Pouco a pouco a realidade do teatro (o Homem, a 
Harpista)  penetram  no  mundo  da  colagem  e  certos  elementos  se  deslocam  na  sala, 
cercam  o  público,  sugerem‐lhe  associações  de  idéias.  Os  elementos  mais  importantes 
são o céu e um pombo. O céu, saído de uma luva da Harpista, se desloca por todas as 
paredes  da  construção.  O  pombo  segue  o  céu,  mas  ele  é  estático,  ele  não  voa,  desliza, 
não  passa  de  um  elemento  da  composição.  O  céu  e  o  pombo  são  símbolos  que  se 
mostram invasivos. Estão em todo lugar, oferecem novas perspectivas. Os personagens 
em  cena  (o  Homem,  a  Harpista)  têm  relações  com  esses  elementos  impessoais  da 
colagem  a  fim  de  suscitar  novas  imagens  poéticas  das  quais  nem  sempre  é  possível 
verbalizar  o  sentido.  Essa  tentativa  de  transpor  as  qualidades  poéticas  da  pintura  de 
Magritte  num  espaço  teatral  de  três  dimensões  é  bem  sucedida.  O  surrealismo  das 
imagens não choca; ao contrário, ele dá destaque a seu sentido poético.  

                                                 
92 Enrico Baj, Eu, o boneco. PUCK, 1989, no. 2, p. 62. 

95 
METAMORFOSES 

Os  criadores  de  Céu  (1990),  do  teatro  Taptoe  de  Gand,  tentam  extrair  acentos 
surrealistas, uma poética do sonho adormecido. Não é por acaso que o céu é o lugar, real ou 
sonhado, da ação. O céu, as nuvens que atravessam livremente o quadro da janela, as rochas e os 
pequenos  objetos  suspensos  nos  espaços  celestes  –  desafiando  todas  as  leis  da  gravidade,  são  o 
principal  leitmotiv  da  criação  do  artista.  Os  realizadores  preenchem  esse  cenário  de  acessórios 
absurdos: por uma janela do quarto celeste, percebemos um outro céu, maior, onde voam maçãs e 
peixinhos, a porta está bloqueada por um armário sem fundo que fornece aos dois heróis objetos 
que  o  doutor  Freud  em  pessoa  não  teria  desprezado  analisar.  O  movimento  cênico  começa  pelo 
tremor de uma cortina sanfonada, pintada de azul céu com pequenas nuvens brancas como todo o 
quarto. Tem‐se a impressão de que é o céu que lança profundos suspiros. Por trás do parapeito da 
janela, descoberto por uma nuvem edredom se destaca um pente gigantesco, do tamanho de um 
homem,  que  serve  de  escada  a  um  senhor  magro  e  longuilíneo  usando  um  chapéu  coco,  com 
bigodes também em forma de pente. Um senhor gordo e baixo chega num balão. O senhor magro 
se diverte e limpa a casa, o pente tem várias funções: ora é um aeroplano, ora uma vassoura de 
esfregar  o  parquê.  Com  a  chegada  de  seus  companheiros  começa  um  jogo  de  espelho  dos 
personagens  que  se  imitam  uns  aos  outros.  Logo  o  céu  faz  parte  do  jogo,  fornecendo 
indefinidamente novas visões e novos objetos a esses senhores de chapéu coco, como um guarda‐
chuva azul turquesa no qual chove93... 
Nesse espetáculo, as idéias surrealistas fusionam sem atingir as de Magritte. Mas 
a questão não é esta. O importante é que esse teatro toma emprestada sua linguagem à 
arte  pictural  e  tenta  adaptá‐la  a  jogos  no  espaço.  Uma  maneira  bem  diferente 
comparada  à  de  utilizar  as  artes  plásticas  para  fins  cenográficos.  Temos  lá  a  interação 
das estruturas dos meios de expressão das artes plásticas e da arte dramática. O boneco 
permanece um ícone. Ele vive mais sua vida de material que a de significado, ao qual 
deve servir. 
Teatro visual 

Quer  sejam  ação  de  cenógrafos  ou  inspirados  pela  arte  pictural,  os  teatros  e 
espetáculos  evocados  acima  permanecem  no  campo  do  teatro  de  bonecos.  Consciente 
de que o termo genérico boneco tinha então conotações desusadas, tenta‐se substituí‐lo 
pelo termo figura. Procurava‐se também pelo lado do teatro de animação ou do teatro 
da  matéria.  Mas  foram  bem  raros  os  bonequeiros  que  desejaram  sublinhar  os  elos  de 
seu teatro com as artes plásticas. O teatro alternativo Bama, de Jerusalém, que se define 
como “teatro visual”, está entre essas exceções.  
Saído  diretamente  do  teatro  de  bonecos,  fundado  em  1980  por  um  grupo  de 
jovens  artistas  dirigido  por  Hadass  Ophrat,  ele  traz  primeiro  o  nome  de  The  Train 
Theatre.  Ophrat  não  demora  a  se  dar  conta  de  que  é  necessário  encontrar  um  novo 
nome  para  o  trabalho  de  seus bonequeiros.  Ele  propõe  o  nome  de  “teatro  visual”  que 

                                                 
93 Hanna Baltyin. Okno w niebie (Uma janela no céu). Teatr Lalek, no. 3, 1992, p. 6 

96 
FORMAS E ESTILOS 

concebe como uma mistura das artes plásticas e da performance94. A atividade do grupo 
reunido em torno do Train Theatre hoje se desenvolveu muito.  
Ophrat dirige no momento o Conservatório do Teatro Visual e organiza bienais 
internacionais  de  teatro  em  Jerusalém.  Mario  Kotliar,  novo  diretor  do  Teatro  Bama, 
como  o  relata  Fa  Chu  Ebert,  considera  que:  A  arte  dramática  entrou  numa  etapa  de 
“composição  aberta”  onde  a  comunicação  verbal  perdeu  sua  supremacia  e  onde  as  concepções 
realistas  e  psicológicas  do  teatro  não  bastam  mais.  O  teatro  se  encontra  assim  submisso  à 
subjetividade  dos  espectadores  que  reagem  sobretudo  às  imagens.  O  papel  do  ator  perdeu  sua 
importância, e sua situação se reduziu a de um elemento da composição. Isto abre caminho a um 
teatro  visual  que  reúne  vários  meios  de  expressão  e  não  é  freado  pelas  categorias  tradicionais 
porque se volta para as artes plásticas, a poesia, a música e a dança. No drama convencional, o 
espectador  se  encontra  num  mundo  identificável  e,  mesmo  se  esse  drama  exprime  uma 
subjetividade,  ele  obedece  a  leis  universais.  No  teatro  visual,  é  a  lógica  “pessoal”  que  dá  a  lei, 
repousando sobre as livres associações de idéias do artista. E o visual sempre suplanta o verbal. 
As  concepções  do  artista  são  às  vezes  de  tal  modo  herméticas  e  subjetivas  que  podem  ser 
incompreensíveis. É um risco a correr95. 
Esse teatro visual reúne artistas vindos de todos os horizontes, que se exprimem 
cada  um  em  sua  língua.  Entre  estes  criadores  Marit  Benisrael  que  trabalha  sozinha, 
apresenta  trabalhos  muito  interessantes.  Suas  “miniaturas”  respondem  a  todas  as 
condições  de  um  teatro  visual  poético.  Ah, se Apenas (Ach, if Only,  1990)  é  a  obra  mais 
representativa de sua criação: Essa obra, inspirada em As Três Irmãs de Agnon, representa 
os  fantasmas  de  mulheres  envelhecendo  que  ganham  sua  vida  confeccionando  vestidos  de 
casamento. O espetáculo é uma espécie de strip‐tease, onde uma atriz, à medida em que se despe, 
revela as diferentes camadas de sua intimidade. Em certo momento, ela exibe um seio murcho que 
ela  abre  por  um  fecho  éclair  e  de  onde  tira  os  símbolos  de  suas  frustrações  adormecidas:  uma 
roupinha de criança, um pijama de boneca, etc. Esse espetáculo – de grande sensualidade tanto 
pelo  tema  quanto  pela  material  utilizado:  a  pele,  os  cabelos,  o  pain  kacher  ‐  contém  o  calor  e  o 
sentido  da  vida.  O  conjunto,  que  compreende  elementos  do  teatro  de  bonecos,  da  música,  da 
dança  e  dos  diversos  acessórios,  apresenta  associações  de  idéias  muito  pessoais  que  não  são 
desprovidas  de  humor  nem  de  tragicidade.  É  difícil  descrever  esse  espetáculo,  tamanho  é  o 
domínio da imaginação subjetiva. Se vai‐se assistir a uma obra de S. Y. Agnon, corre‐se o risco 
de  ficar  decepcionado,  porque,.  de  fato,  o  que  se  vê  é  Marit  Benisrael.  Mas  esse  seu  universo 
pessoal, de dor, de riso e de magia, ou seja, de teatro, vale a pena ser descoberto96. 
Benisrael  pratica  a  metáfora  com  muita  liberdade.  O  seio  feminino  enquanto 
veículo  de  frustrações  recobre  um  campo  muito  amplo  de  associações  de  idéias.  As 

                                                 
94 Hadass  Ophrat.  Puppet  Theatre;    Medium  and  Message  (Teatro  de  bonecos;  meio  e  mensagem).  Ariel, 
Jerusalém, 1987, no. 69, p. 44. 
 Fa Chu Ebert. Bama, Jerusalem’s Visual Theatre (Bama, o teatro visual de Jerusalém). Assaph, 1990, no. 6, p. 
95

180. 
96 Hadass  Ophrat.  Puppet  Theatre;    Medium  and  Message  (Teatro  de  bonecos;  meio  e  mensagem).  Ariel, 
Jerusalém, 1987, no. 69, p. 164. 

97 
METAMORFOSES 

diferentes  soluções  trazidas  são  todas  do  mesmo  gênero.  As  três  irmãs  são 
representadas  por  uma  mão  (uma  sinédoque),  que  se  reflete  em  três  espelhos  (uma 
metáfora).  Esses  meios  que  são  também  uma  marca  da  engenhosidade  e  da 
ingenuidade  femininas,  seriam  um  elemento  de  humor  sem  a  mensagem  trágica  do 
espetáculo.  Classificar  esse  tipo  de  espetáculo  no  teatro  visual  implica,  claro,  numa 
questão  subjetiva.  Esse  espetáculo  põe  em  evidência  uma  problemática  feminina,  que 
na  obra  de  Benisrael  encontra  uma  expressão  universal  e  oposta  a  nossa  cultura, 
dominada até o momento por uma mentalidade masculina.  
Na Finlândia, surgem as mesmas preocupações. Algumas artistas exprimem com 
a ajuda do boneco uma parte de sua vida íntima. Não há lá nenhum acaso, porque elas 
podem  desde  então  se  apossar  de  meios  de  expressão  poéticos  como  o  testemunha  a 
obra de Kristina Hurmerinta, atriz e diretora do teatro Peukalopotti de Vaasa, fundado 
em 1976. Ela começa com espetáculos para crianças onde o objeto substitui o boneco (A 
Casa de Vidro da Infância, 1985),  depois  faz  A Cena de Pandora associando‐se  com  Anna 
Proszkowska,  diretora  e  Eeva  Siltavouri,  pintora  e  poetisa.  Todas  as  três  criaram  um 
tríptico:  A  Divina  Comédia  seguindo  uma  ótica  feminista  na  escolha  dos  acessórios  (A 
Ceia,  1986),  na  escolha  dos  disfarces  (A Arena, 1987)  e  na  escolha  de  uma  situação  de 
espera  como  sujeito  dramático  (Ítaca,  1990).  Essas  três  mulheres  quiseram  elevar  suas 
preocupações a um nível universal e humano, como observa Marjatta Ripsaluoma que 
faz  o  prefácio  do  programa  do  tríptico:  A  cena  de  Pandora  tentou  tornar  visível  o  que  é 
inconsciente em nós: o ideal, o sonho, o mistério, a inclinação para o maravilhoso. Para chegar a 
isso, o teatro aplicou em seus espetáculos todo tipo de experiências no campo da cor, da forma, da 
luz e da música, utilizadas como metáfora do mito arquétipo tão fortemente encravado em nossa 
herança cultural ocidental. A cena de Pandora propôs sua interpretação do mito – cabe ao público 
criar a sua a partir do que vê e entende.  
O mito toma aqui uma nova cor e esses espetáculos se aproximam mais de uma 
comunhão,  uma  partilha  do  próprio  sofrimento  do  artista.  Essas  mulheres  buscam 
estabelecer um elo material com os espectadores para sugerir que suas experiências de 
artistas podem também ser a do público e em particular a de Hurmerinta que descobre 
no fim do espetáculo seu rosto de mulher. 
Como classificar esses espetáculos? A história dos gêneros do espetáculo possui 
termos  como  “cena  muda”,  “apresentação  de  mímica”  ou  “teatro  poético”  ainda 
“exposição”  ou  “cena  com  acessórios”.  Nada  parece  suficiente.  Ficaremos  com  a 
proposição de Ophrat, porque ela exprime o desejo de se liberar da literatura dramática 
para dar livre espaço a todos os elementos da composição cênica. O teatro plástico é o 
apogeu disso.  
Interferências 

As  iniciativas  de  Baixas,  Nusselein  ou  Neyrinck  sublinham  a  contribuição  de 
artistas plásticos  e  a vontade dos  bonequeiros  de se reaproximar  de  outras disciplinas 
artísticas. O tempo da especificidade do boneco estaria terminado? De fato, a autonomia 
do  boneco  não  é  questionada,  mas  os  meios  visuais  ou  plásticos  ganham  em 
importância  sobre  o  aspecto  “literário”  do  teatro.  Ao  reduzir  o  papel  da  literatura,  o 

98 
FORMAS E ESTILOS 

teatro de bonecos se reaproxima do teatro plástico, nas fronteiras do teatro de atores e 
das  artes  plásticas.  Ainda  é  muito  cedo  para  falar  de  uma  identificação  total.  Os  dois 
gêneros nasceram de princípios diferentes e numa época diferente. Quando falamos do 
teatro  de  bonecos,  privilegiamos  o  teatro  e  por  consequência  a  noção  de  papel  e  de 
personagem.  Há  apenas  quinze  anos  atrás,  o  boneco  podia  ser  considerado  como  um 
sujeito cênico (ou pelos menos seu substituto). O teatro plástico partiu do princípio de 
que  todos  os  seus  elementos  são  objetos  submetidos  à  composição  e  o  sentimento  da 
reificação  do  boneco  parece  cada  vez  mais  impregnante  no  teatro  de  bonecos 
contemporâneo. Ele permanece um signo de um personagem, e não é um elemento de 
composição entre outros. Do mesmo modo, a despeito de seus inúmeros pontos comuns, 
o teatro de bonecos que se orienta para as artes plásticas e o teatro estritamente plástico, 
não  têm  a  mesma  origem.  A  evolução  das  artes  plásticas  e  o  aparecimento  de  novas 
técnicas  como  a  colagem,  o  meio  ambiente,  a  reunião,  os  happenings,  vão  presidir  ao 
nascimento desse teatro. Nos anos 70, os fenômenos para‐teatrais como os happenings 
foram pouco a pouco substituídos por um teatro plástico autônomo. Uma vez rompidas 
as barreiras entre diferentes disciplinas artísticas, a assimilação e a interpretação desses 
diferentes universos foram com frequência concebidos de maneira estrutural. A música 
não  bastava  mais  para  exprimir  as  emoções  dos  heróis,  os  artistas  de  teatro  como  os 
coreógrafos se inspiravam na estrutura das obras musicais para compor as sequências 
de quadros cênicos. O teatro empregava os meios do teatro de bonecos, a pantomima, 
meios plásticos artificiais e os músicos se interessavam pela ontologia do som. Tratava‐
se de uma enésima revolução da arte dramática.  
Teatro de artistas  

Artistas de disciplinas “não teatrais” fazem então sua entrada no teatro. Eles não 
se  inserem  no  mundo  do  boneco  propriamente  dito,  mas  utilizam  na  verdade 
simulacros  do  homem  (como  o  manequim  ou  outras  apresentações  icônicas).  Estes 
artistas  plásticos  buscam  com  freqüência  respostas  a  questões  fundamentais  da  arte 
teatral,  exprimindo  seu  ponto  de  vista  sobre  a  vida  e  tratam  às  vezes  de  problemas 
escatológicos. Esse foi o caso de Tadeusz Kantor.  
Excelente  pintor,  ele  pôs  em  aplicação  sua  concepção  do  teatro  com  o  teatro 
Cricot 2, que fundou em 1955 em Cracóvia com um grupo de amigos. Sua abordagem 
do  teatro  evoluía  constantemente.  Cada  comentário  que  Kantor  fazia  sobre  seus 
espetáculos  tornava‐se  um  manifesto  artístico.  Ele  fala,  portanto,  primeiro  de  teatro 
autônomo, individual, de teatro “informal”, antes de praticar um teatro do impossível, 
e  enfim  o  “Teatro  da  Morte”.  Essa  última  concepção  foi  a  mais  duradoura  desde  A 
Classe Morta (Martwa Klasa) até o último espetáculo que preparou antes de sua morte 
em 1992, Hoje é Meu Aniversário (Jutro Beda Moje Urodziny). 
Quando  Kantor  se  interroga  sobre  a  interpenetração  das  diferentes  disciplinas 
artísticas (a música, as artes plásticas, a literatura), e fala de “realidade de nível inferior”, 
ele  não  se  refere  ao  teatro  de  bonecos.  Ele  o  situa  com  freqüência  entre  o  objeto  e  o 
manequim que introduz na cena. A teoria de Marcel Duchamp, inventor do ready‐made 
e  do  termo  surrealista  objeto encontrado,  lhe basta.  Ele  transpõe  esses  termos ao  espaço 

99 
METAMORFOSES 

de seu teatro. Os objetos fazem parte da realidade, eles não vêm de um mundo de ficção, 
não são criados para a ficção. Eles constituem a matéria do espetáculo que se torna uma 
espécie de composição de objetos encontrados, de que o texto da peça e o ator fazem parte 
integrante.  Pode  acontecer  mesmo  que  este  último  seja  objetivado  pela  anulação  dos 
sentimentos. Kantor representa aqui uma atitude própria a muitos artistas plásticos que 
se  interessaram  pelo  teatro.  Basta  lembrar  a  ambição  que  nutria  Léger  por  reduzir  o 
papel  do  ator:  Separar a sala da cena, fazer de modo que o indivíduo desapareça, mas utilizar 
elementos humanos. Introduzir na cena a invenção. Aparecerá então um elemento humano, que 
terá tanta significação quanto um objeto e os cenários97. 
Segundo  Kantor,  o  “ator  vivo”  se  opõe  ao  manequim  (e  portanto  à  super‐
marionete). Ele escreve no Teatro da Morte: Eu não penso que um manequim (ou uma figura 
de cera) possa substituir, como o queriam Kleist e Craig, ao ator vivo. Seria fácil e além do mais 
ingênuo. Eu me esforço por determinar os motivos e a destinação dessa entidade insólita surgida 
inopinadamente  em  meus  pensamentos  e  em  minhas  idéias.  Sua  aparição  se  combina  com  esta 
convicção cada vez mais forte em mim de que a vida só pode ser expressa na arte pela falta de vida 
e o recurso à morte, por meio das aparências, da vacuidade, da ausência de qualquer mensagem. 
Em meu teatro um manequim deve tornar‐se um modelo que encarna e transmite um profundo 
sentimento da morte e da condição dos mortos – um modelo para o ator vivo98. Este “ator vivo” 
é  um  elemento  da  realidade,  é  um  ator  que  representa  um  personagem  morto.  Neste 
sentido, é um manequim vivo, um engodo. Ele não deve ser um material responsável, 
como o queria Craig: basta‐lhe ser, situar‐se entre a morte e a vida.  
São inúmeros os espetáculos nos quais Kantor recorre a objetos e manequins. Só 
há  um  onde  estes  últimos  possuem  os  traços  do  boneco,  ainda  que  Kantor  pudesse 
acreditar  no  contrário.  Trata‐se  de  A  Máquina  do  Amor  e  da  Morte,  apresentada  na 
Documenta  de  Kassel,  em  1987.  A  Máquina  do  Amor  e  da  Morte  retoma  A  Morte  de 
Tintagiles,  de  Maeterlinck,  espetáculo  de  bonecos  montado  por  Kantor  em  sua 
juventude e que continha, em germe, todas as suas máquinas e seus manequins. As três 
Nornes  a  serviço  da  terrível  Rainha  são  representadas  sob  forma  de  três  autômatos 
insensíveis,  portadores  de  destruição.  Na  primeira  parte  de  A  Máquina  de  Amor  e  da 
Morte,  estamos  no  teatro  de  bonecos  de  Tadeusz  Kantor,  em  193799.  Isso  explicaria  o 
caráter  “marionetizado”  do  espetáculo,  ainda  que  tenhamos  todas  as  razões  para 
duvidar  que  a  essa  data,  Kantor  tenha  podido  optar  por  uma  manipulação  à  vista, 
antecipando assim de uma vintena de anos a prática do teatro de bonecos profissional. 
Por  outro  lado,  esses  animadores  se  comportam  como  os  personagens  de  seus  outros 
espetáculos (Wielopole, Wielopole); um mundo de fracassados e de cômicos de chapéu 
coco e roupas pretas. Os personagens de A Morte de Tintagiles são bonecos esqueléticos 
                                                 
97 Andrzej  Matynia.  Tradycja  i  filozofia  dzialan  plastycznich  Leszka  Madzika  (Tradição  e  filosofia  dos  “jogos 
plásticos” de Leszek Madzik) em: Teatr Bezslownej Prawdy (Teatro da verdade sem fala). Scena Plastyczne 
Katolickiego Uniwersytetu Lubelskiego. Sob a redação de Wojciech Chudy, p. 53 
 Tadeusz Kantor. O Teatro da morte. Em: International Theatre Informations, Paris, hiver‐printemps 1976, 
98

p. 10.  
99 Franca Silvestri. Volta ao Teatro mecânico de bonecos.  

100 
FORMAS E ESTILOS 

manipulados à vista (as irmãs do herói e o tutor deste, Agloval). Os servos da Rainha 
são autômatos impassíveis. A Rainha, um ator sinistro vestido de preto. A diversidade 
dos  meios  de  expressão  utilizados  reaproxima  esse  espetáculo  do  teatro  de  bonecos 
contemporâneo. Os bonecos‐esqueletos são manipulados à vista, os atores –animadores 
lhes  dão  poses  correspondendo  ao  texto  dito  em  play‐back.  O  drama  da  ameaça,  tal 
como escrito por Maeterlinck, se realiza através do comportamento dos atores. Eles são 
de  início  inconscientes  do  perigo  que  paira  acima  do  menino  e  conservam  seu  bom 
humor  e  sua  alegria  maníaca  quando  eles  conseguem  colocar  convenientemente  seus 
bonecos. Mas pouco a pouco, eles pressentem o perigo, e seu terror se comunica então 
aos  espectadores.  A  convergência  entre  o  animismo  à  distância  praticado  pelos 
bonequeiros e a aproximação de Kantor parece evidente. A Morte de Tintagiles é o único 
exemplo disso, e é praticamente certo que Kantor tinha um objetivo totalmente diverso 
dos bonequeiros. A coincidência resta espantosa e merecia ser sublinhada.  
Essa  analogia  leva  a  uma  outra  sobre  a  vida  de  certos  objetos  e  manequins 
animados  pela  memória  e  a  lembrança.  Nós  vemos  nossas  lembranças  vivas  e  as 
acreditamos  vivas.  A  diferença  é  tão  fina  entre  acreditar  e  fazer  crer.  Os  povos 
primitivos  tinham  essa  crença  e  é  por  esta  mesma  razão  que  o  boneco  fez  parte  do 
mundo  dos  mortos  (ao  menos  em  certos  mitos).  Nesse  contexto,  Kantor  ficou  sem 
dúvida  mais  perto  do  boneco  do  que  o  imaginava.  Ele  não  pertence,  no  entanto,  ao 
mundo do teatro de bonecos e restringi‐lo exclusivamente ao mundo do teatro plástico 
seria  talvez  abusivo,  mesmo  se  a  crítica  o  define  como  artista  plástico  do  teatro  ou  o 
criador de um teatro plástico.  
Leszek  Madzik,  que  dirige  a  Cena  Plástica  da  Universidade  Católica  de  Lublin 
desde 1970, é um outro testemunho desta via aberta para o teatro plástico. Ele inicia sua 
carreira como cenógrafo. Os cenários, concebidos como um espaço plástico, servem de 
ponto de partida para imagens sugestivas, formando‐se segundo uma ordem temática e 
atingindo  um  alto  grau  de  abstração.  Ele  renuncia  quase  totalmente  aos  atores 
tradicionais. Se há presença do homem, em geral é para jogar o papel de uma “imagem 
de homem” mais do que o de uma personagem. Esses quadros são seu principal meio 
de expressão. Eles se compõem, com uma grande precisão, de humanos, de manequins, 
de  personagens  –  meio‐figurinhas,  meio‐bonecos  –  e  de  todo  tipo  de  materiais  que  os 
membros do grupo, dissimulados nas coxias, manipulam com muita habilidade.  
Os  primeiros  espetáculos  de  Madzik,  como  Ecce  Homo  e  Ícaro,  têm  referências 
culturais e mitológicas evidentes. Eles permitiram considerar a Cena Plástica como um 
teatro  de  bonecos  de  meios  de  expressão  variados  onde  a  distribuição  dos  papéis  e  a 
criação  de  metáforas  servem  para  desenvolver  harmoniosamente  a  simbólica  geral  do 
espetáculo.  O  espetáculo  é  uma  sucessão  de  imagens  sem  comentários:  O vôo de Ícaro 
para  o  sol  (longa  corrida  de  um  ator  sem  máscara)  sua  queda  e  seu  encontro  com  a  terra.  Em 
seguida, aparece a doença de Ícaro (um ator com máscara). Ícaro é condenado à cadeira de rodas, 
se  debate  com  sua  poltrona,  com  enormes  bonecos  que  dão  voltas  em  torno  dele,  tenta  se 
comunicar com seu entorno, rompe o isolamento provocado pelo sofrimento e a enfermidade; ser 
liberado para o amor, ter a visão da Morte, do Julgamento, da Justiça, do Bem, do Mal, e enfim 
arrojar‐se sobre um público de manequins todos semelhantes e sentados em praticáveis – como se 

101 
METAMORFOSES 

eles fossem seu reflexo num espelho. Para encerrar o espetáculo, a morte de Ícaro. Ele cai de sua 
cadeira de rodas numa estreita passagem entre a sala e seu reflexo100. 
Nos espetáculos seguintes, ele aborda temas universais, que fazem abstração do 
contexto  cultural  e  histórico.  O  artista  obriga  o  espectador  a  renunciar  à  busca  das 
referências culturais, e o empurra para uma reaproximação com a natureza e a biologia 
humana.  Acuado  pela  crítica,  sem  ter  elaborado  uma  teoria  de  sua  prática,  ele  define 
seu processo de criação como um pensamento por imagens. Entretanto, sua atividade é 
bastante próxima da do teatro de bonecos. Sua poética e seus meios de expressão têm 
fontes teóricas  comuns  às  do boneco: Não é o desejo de eliminar o homem, escreve ele em 
1983,  que  faz  com  que  o  papel  do  ator,  depois  o  do  objeto  concreto,  sejam  reduzidos  em  meus 
espetáculos. Eu tenho talvez a mesma obsessão de Gordon Craig, que consagrou uma boa parte de 
seus  esforços  criadores  e  teóricos  a  aliviar  o  herói  (o  ator)  de  uma  corporeidade  que  esmaga  o 
drama por sua excessiva riqueza de concretude e tira ao sujeito seu caráter geral, entretanto tão 
indispensável ao teatro.101 
O teatro de Madzik como o de Kantor tiveram uma influência considerável sobre 
o  teatro  contemporâneo,  onde  os  meios  plásticos  estão  o  serviço  de  um  conteúdo 
filosófico  e  escatológico.  Poder‐se‐ia  mesmo  falar  de  uma  escola  polonesa  do  teatro 
plástico  se  se  toma  em  consideração  as  concepções  de  Szajna,  Grzegorzewski  e 
Wisniewski. 
Entre as novas orientações, é preciso ainda evocar uma nova geração de artistas 
plásticos  que  afirma  ambições  teatrais.  Ela  é  representada  por  Andrzej  Woron  que 
dirige  desde  1990  o  Kreaturentheater  de  Berlim.  Duas  encenações  atraíram  nossa 
atenção:  O Fim do Asilo Noturno (Das Ende des Armenhauses), baseado  em  Isaak  Babel,  e 
As Lojas de Canela (Sklepy Cynamonowe), baseado em Bruno Schulz. Woron expõe na cena 
um  panorama  do  gênero  humano  representado  por  atores‐bonecos,  manequins, 
bonecos  e  uma  espécie  de  criaturas  híbridas  que  Kantor  com  certeza  qualificaria  de 
“bio‐máquinas”. 
Woron  parte  da  percepção  fragmentada  da  realidade  que,  segundo  ele, 
condiciona  a  fragmentação  dos  espetáculos  artísticos  que  as  capacidades  limitadas  de 
nossa  memória  confirmam.  O  inconsciente,  é  pois,  nossa  única  chance  de  fazer 
funcionar  nossa  imaginação.  Eis  aqui  uma nova  oportunidade  para  o  teatro  e  o  teatro 
visual. Woron está apaixonado pelas oposições, levadas às vezes ao extremo. Ele rejeita 
a imagem do homem belo e bem cuidado. A verdade é muito diferente: todos os seres 
humanos  são  criaturas  e  se  ele  utiliza  bonecos,  não  é  no  mesmo  espírito  dos 
bonequeiros: Nossa atividade, diz ele, não tem nada a ver com o teatro de bonecos. O teatro de 
bonecos  talvez  seja  formidável,  mas  para  mim  é  utilizar  uma  matéria  inerte  a  partir  de  um 
princípio  visual.  Conosco  é  diferente.  Eu  utilizo  o  ator  enquanto  organismo  vivo,  e  portanto 
enquanto ser humano. A reaproximação do homem‐ator, de seu talento e de sua sensibilidade com 

                                                 
100 Anna Maria Klimanlanka. Parma 95. Scena, 1976, no. 3. 
 Leszek  Madzik.  Mysle  abrazami  (Eu  penso  por  imagens).  Em:  Teatro  da  verdade  sem  palavras  (Teatr 
101

bezslownej prawdy) op. cit. p. 101. 

102 
FORMAS E ESTILOS 

a  matéria  inerte  me  proporciona  um  terceiro  tipo  de  ator.  E  é  este  ator  que  nós  buscamos  em 
nosso  teatro102.  O  teatro  plástico  de  Woron  se  inscreve,  de  fato,  na  esfera  do  teatro  de 
bonecos  de  meios  de  expressão  variados,  sem  que  nosso  artista  tenha,  visivelmente, 
conhecimento  de  todas  as  suas  extensões.  O  teatro  de  bonecos  de  meios  de  expressão 
variados, sendo o resultado da convergência de diferentes correntes artísticas, de que o 
boneco  e  as  artes  plásticas  são  os  pontos  de  partida,  é  bastante  provável  que  eles 
possam se reencontrar um dia, sem nenhum preconceito, mesmo se eles persistem hoje.  
Teatro plástico 

É devido a sua ligação com a plástica e aos restos de uma intriga, uma história às 
vezes linear, que o teatro plástico traz este nome. Basta que o artista beba numa outra 
tradição  para  que  esses  meios  sirvam  a  outros  fins.  Na  Suíça,  os  Mummenschanz 
(mummen = jogo  de  dados  ou  de  cartas,  e  Schanz,  simplesmente  a  sorte)  compostos  de 
Bernie Schurch e Andres Bossard, desviam esses meios plásticos para outros horizontes, 
menos estruturados e menos filosóficos. A prática do grupo se situa entre pantomima, 
teatro de objetos e teatro plástico. Bossard e Schurch se interessaram pela pantomima e 
fizeram  cursos  na  Escola  Jacques  Lecoq  (Paris),  onde  conheceram  Florianna  Frassetto 
vinda dos Estados Unidos.  
Seu  primeiro  espetáculo,  no  final  dos  anos  60,  tem  por  título  À Frente e Perdido 
(Verlor und Vorher), e foi depois rebatizado de Jogo de Louco e de Máscara. Os bonecos são 
para  eles  um  meio  de  enriquecer  os  meios  da  pantomima.  É  a  partir  dos  elementos 
plásticos  da  roupa  dos  personagens  que  eles  evoluem  para  uma  nova  estética  da 
mímica. No início, essas roupas eram cubos de polietireno de onde saíam as cabeças e 
as mãos dos atores. As esquetes solicitam astuciosamente a colaboração do público ao 
lhe propor, por exemplo, enrolar para o lado direito todos os rolos de papel higiênicos 
embrulhado ao contrário. Os Mummenschanz aperfeiçoaram  seu programa  ao  utilizar 
máscaras  abstratas  ou  personagens  com  cabeças  “objetivadas”,  depois  máscaras  do 
corpo  inteiro,  utilizando  grandes  formas  plásticas.  Os  espectadores  ficaram  surpresos 
pelos  materiais  –  almofadas,  cadernetas,  papel  higiênico  ‐,  que  compunham 
personagens  e  representavam  com  um  humor  não  desprovido  de  uma  certa  poesia. 
“Blod”,  um  de  seus  números  é  descrito  assim:  ...  uma  bola  muito  mole  repousa  no  chão, 
começa  a se animar,  choca‐se  com a ponta  do  praticável que está na  cena. Ela tateia o intruso, 
depois  resolve  escalá‐lo,  parte  ao  ataque,  se  agarra,  sofre,  sobe,  sim,  ela  chega,  não,  ela  perde  o 
equilíbrio, se recupera, sim, não, aah, num último suspense, ela se estabiliza no alto. Ela triunfa. 
E o espectador solta o braço da poltrona. Em alguns minutos, essa massa informe semelhante a 
nada  exprimiu  a  surpresa,  a  curiosidade,  o  espanto,  a  coragem,  o  desencorajamento,  o  intenso 
esforço, o medo, a vitória.  
Para  alguns  espectadores  esta  será  a  história  de  um  troço‐que‐quer‐subir‐numa‐coisa. 
Mas  é  também  a  descoberta  do  mundo.  É  o  homenzinho  que  se  ergue  sobre  seus  dois  pés  pela 
primeira vez, assim como um tratado de darwinismo – um protozoário no caminho inelutável da 
                                                 
 Kristiane  Balsevicius.  Schnsucht  nacht  einer  anderenRealität  (  A  nostalgia  por  uma  outra  realidade). 
102

Puppentheater Information,  no. 66, p. 22. 

103 
METAMORFOSES 

evolução, a função vai criar o órgão. É ainda, porque não, um condensado de dramaturgia. Todas 
as  histórias  do  mundo,  ou  quase,  da  Odisséia  a  Dallas,  via  Commedia  dell’arte,  seguem  este 
esquema:  o  herói  encontra  um  obstáculo  imprevisto,  luta,  ganha,  final  feliz.  Com  variantes 
evidentemente, o pobre plancton não pode fazer tudo103. 
Ainda estamos no mundo do boneco? Sim, se nos referimos à prática de algumas 
outras companhias! Os personagens dos Mummenschanz são proteiformes e fabricados 
com  todo  tipo  de  material.  Os  tubos  de  plástico  que  serviram  para  a  criação  do 
Prematuro  (Slinky)  conheceram  um  sucesso  importante.  Um  cano  e  um  balão  formam 
uma  espécie  de  grande  inseto.  Quando  a  bola  desaparece  a  boca  do  cano  se  transforma  em 
corneta ou numa cabeça que examina atentamente o público. Há o polvo, um robô de espuma, e 
um  “colchão  revoltado”  (com  mãozinhas  alcochoadas),  que  briga  com o  seu  dormidor,  a  cabeça 
em forma de travesseiro. As idéias dos Mummenschanz contêm sempre uma mensagem, mesmo 
se esta resta oculta; uma sátira social, por exemplo, uma crítica das relações afetivas que entretêm 
os americanos com os objetos que utilizam e jogam fora sem se ter ligado a eles, ou ainda, uma 
sátira  política  em  germe...”  como  o  diz  Frasseto,  que  evoca  essa  possibilidade  nos 
personagens  de  cabeças  objetivadas104.  Os  Mummenschanz  preferem  deixar  o  público 
decifrar  o  conteúdo  de  suas  esquetes.  É  importante  para  eles  revelar  o  caminho  e  a 
linguagem dos objetos e obrigá‐los a falar a sua maneira, se possível com humor.  
Comparado  ao  boneco,  o  universo  dos  meios  plásticos  parece  ter  também  a 
mesma vastidão. Podemos associá‐los às técnicas da dança ou da projeção de imagens, 
seguir  certos  conceitos  do  Bauhaus  com  a  intenção  de  desenvolvê‐los  ou  praticar  a 
colagem com ajuda do laser. Em meio a essa diversidade de tendências, a Companhia 
Jean‐Paul  Cealis  ocupa  um  lugar  específico.  Cealis  se  lança  num  teatro  de  união  das 
artes  plásticas,  da  música  e  da  dança  e  põe  em  cena,  nos  anos  80,  Jardim à Francesa  e 
Senha;  uma  composição  de  jogos  plásticos  que  consistem  em  realizar  objetos  (na 
verdade construções de madeira) engenhosos, muito funcionais, que não têm nenhuma 
relação com a vida cotidiana. Seu objetivo é estar presente em cena, eles são, pois, como 
um  gesto  do  artista  que  propõe  aos  espectadores  participar  do  processo  da  criação 
cênica.  A  riqueza  das  possibilidades  técnicas  pontuadas  por  um  senso  absoluto  de 
humor e a música composta e tocada pelo grupo (sons de objetos, play‐back, voz) dão 
seu ritmo ao jogo dos atores. As possibilidades técnicas que oferecem os objetos e sua 
aptidão á composição plástica são o tema. É, pois, uma experiência teatral que faz uso 
da  natureza  das  estruturas  plásticas:  Se existe uma escrita ‐ diz Mustapha Aouar –, ela se 
situa na relação do homem com seu instrumento. A plástica do gesto é condicionada pelo objeto 
manipulado.  Não  se  trata  para  ele  de  interpretar  ou  de  transmitir  ao  objeto  emoções.  Ele  faz 
questão de ficar numa atitude neutra, evitando destacar sua destreza, para não cair no número de 
circo.  Mas  no  correr  das  apresentações,  ele  não  pode  evitar  que  um  certo  arredondamento  no 
gesto  se  instale,  unicamente  pelo  prazer  de  ser  visto,  e  pela  facilidade  que  se  adquire  para 

                                                 
103  Michel Bührer. Mummenschanz. Edições Pierre‐Marcel Favre, Lausanne, 1984, p. 26.  
 
104  Ibidem, p. 123 

104 
FORMAS E ESTILOS 

manipular os ditos objetos. Entretanto, ele consegue deter‐se numa imbricação de dois elementos 
formados pelo instrumento e o homem. Assim, somente as curvas traçadas no espaço marcarão as 
memórias.  105  A  arte  plástica  atravessa  um  longo  caminho  que  a  leva  da  figuração  à 
abstração; uma abstração pictural, gestual e cênica em Jean‐Paul Cealis.  
Como  a  arte  do  boneco  vai  digerir  essa  última  proposição?  Os  artistas  que 
exprimem suas emoções através dos meios de expressão impessoais não podem evitar 
entrar  em  contato com o boneco. A  estética e  o valor antropológico  desse  sem dúvida 
não têm mais muito interesse para alguns deles que ao invés dele vão preferir figuras 
de  cera,  manequins,  autômatos  ou  imagens.  Os  bonequeiros  contemporâneos  podem 
considerar o teatro plástico106 como um gênero similar, que efetua experiência com um 
ator  desumanizado  e  se  opõe  ao  teatro  literário.  A  partir  de  então  o  homem  está  em 
questão,  torna‐se  a  temática  essencial  enquanto  que  as  pesquisas  formais  tendem 
inexoravelmente para a abstração. O homem é um parceiro poderoso demais – podendo 
devorar  o  boneco  e  lhe  impor  suas  vontades.  Entrementes,  todos  os  países  do  mundo 
abriram suas portas ao teatro visual. Os bonequeiros que fizeram a volta ao mundo com 
seus  programas  de  cabaré  ou  de  variedades  sabem  muito  bem  disso.  Entretanto,  não 
gostaria  de  me  levantar  contra  o  visual,  quer  seja  no  teatro  em  geral  ou  no  teatro 
plástico em particular. Se temos a impressão de que o visual nos priva parcialmente dos 
valores  intelectuais,  aceito  de  boa  vontade  que  o  teatro  tenha  sempre  feito  parte  das 
artes “olhadas”. E se os diferentes elementos que formam o teatro se organizam de uma 
nova  maneira,  (menos  falas,  mais  imagens  ou  vice‐versa‐  ao  gosto  do  artista)  no 
processo das metamorfoses da arte, deduzo simplesmente que artistas com uma outra 
sensibilidade, possuindo uma outra visão da realidade se apropriam do teatro. Não será 
este o sinal de uma interpretação otimista?
Do objeto à matéria  

Reflexo do homem, o boneco é um corpo material que traz em si uma marca, a da 
idéia  de  um  objeto.  De  modo  que  ainda  que  todos  os  bonecos  desaparecessem  do 
mundo inteiro, nossa consciência continuaria guardando em si esta marca da idéia do 
objeto, ao menos por um certo tempo. A idéia do boneco pertence à humanidade e cada 
um de nós poderia fabricar um ou mesmo utilizá‐lo num espetáculo. O boneco está aqui 
e  acolá,  conosco.  Já  vimos  que  vários  artistas,  no  entanto,  o  vêm  abandonando 
progressivamente. Enquanto ator artificial, o boneco nos mostrou o caminho em direção 
a  seus  substitutos:  o  mundo  artificial  dos  objetos,  com  a  esperança  de  que  o  homem 
possa  fazê‐los  falar.  Para  mim  é  difícil  dizer  quais  motivos  conduziram  ao 
estilhaçamento  do  teatro  de  objetos.  Do  ponto  de  vista  do  teatro  de  bonecos,  o 
esgotamento do boneco, enquanto sujeito cênico, foi uma das causas mais importantes. 
Na  verdade,  o  teatro  de  objetos  se  desenvolveu  espontaneamente.  Num  primeiro 

                                                 
105 Mustapha Aouar. Um artista plástico, Jean‐Paul Cealis. Marionettes UNIMA‐França, no. 17‐18, p. 74. 
 Erik  Kolár.  Das Puppentheater, eine Form der bildenden Kunst oder der Theaterkunst? (O teatro de bonecos é 
106

uma arte plástica ou uma arte teatral?) .In: Puppentheater der \Welt. Zeitgenossisches Puppenspiel in Wort 
und Bild. Henschelverlag, Berlim, 1965, p. 34‐35. 

105 
METAMORFOSES 

momento, os críticos o consideraram como uma corrente inovadora e ele  se  destacava 


claramente pela quantidade de espetáculos tão diferentes dos do teatro de bonecos.  
Se  procuro  uma  explicação  filosófica,  meus  primeiros  argumentos  seriam 
tomados de empréstimo à fenomenologia dos objetos e dos atos de Husserl, à reificação 
de  Tadeusz  Kotarbinski  e  às  pesquisas  contemporâneas  consagradas  ao  objeto  de 
Maurice Rheims e de Jean Baudrillard.107 Parece‐me, entretanto, que a fórmula de Franz  
Brentano  (1838‐1917)  pode  explicar  melhor  a  tomada  de  consciência  dos  bonequeiros 
sobre este assunto: ʺA coisa é um conceito bastante amplo que abarca tudo o que existe”.  Eles 
habilmente  adaptaram  esta  fórmula  ao  teatro  de  bonecos  e  não  por  acaso  seus  mais 
eminentes representantes afirmam: “o objeto é um conceito bastante amplo que abarca tudo o 
que pode se produzir em cena”. A valorização do objeto não passa, pois, de uma colocação 
em  prática  de  acordo  com  a  comunicação  artística.  As  fontes  dessa  comunicação  são 
extremamente diversas.  
Desde a aurora da humanidade, o objeto possui o estatuto de sujeito e, enquanto 
tal,  suscita  o  interesse  do  homem.  É  mesmo  difícil  dizer  até  que  ponto  o  animismo 
persiste  em  nosso  subconsciente,  mas  é  preciso  notar  que  os  criadores  do  teatro  de 
bonecos fazem correntemente apelo a ele nas relações que entretêm com o público. Os 
quartos  de  crianças  transbordando  de  brinquedos  inspiraram  outras  utilizações  do 
objeto.  As  crianças,  ao  brincar  com  as  bonecas,  ursos  de  pelúcia  ou  cavalinhos, 
atribuem‐lhes papéis de acordo com as histórias que conhecem ou inventam.  
A  utilização  teatral  do  objeto  é,  entretanto,  sensivelmente  diferente  daquela  do 
brincar.  O  essencial  não  é  o  prazer  daquele  que  brinca,  mas  o  prazer  daquele  que 
observa  o  jogo.  O  teatro  transpõe  elementos  do  jogo  da  criança  com  os  objetos,  é 
verdade,  mas  esta  transposição  extrai  sua  significação  dos  princípios  artísticos  que  a 
determinam.  Os  objetos  sempre  têm  sido  utilizados  na  literatura  alegórica  onde 
simbolizam,  como  os  animais,  os  defeitos  e  as  paixões  humanas.  Eles  também 
invadiram  o  conto,  como  o  testemunham  os  contos  de  Andersen.  Ao  lado  de 
personagens  como  o  Soldadinho  de  Chumbo,  o  Limpador  de  Chaminés  ou  a  Pastora, 
vamos reencontrar muitos objetos familiares, como o Velho Farol, o Pequeno Colarinho, 
a Liga, a Escova e o Cofrinho. Esses objetos falam entre eles, discutem e às vezes mesmo 
apresentam espetáculos de teatro. Em geral, não são alegorias de traços humanos. Eles 
só representam a si mesmos, isto é, objetos aos quais o poeta deu o dom do gesto e da 
palavra.  Todos  têm  funções  muito  diferentes.  De  fato,  Andersen  propunha  várias 
maneiras possíveis de empregar o objeto na literatura e no teatro.  
As experiências de vanguarda foram igualmente uma fonte de inspiração para o 
emprego  dos  objetos  no  teatro.  Dada  e  o  movimento  surrealista  punham  em  cena 
personagens aos quais davam, por provocação, nomes de objetos ou de partes do corpo 
humano  tratadas  como  elementos  autônomos.  Assim  Tristan  Tzara  introduz  em  Le 
Coeur à Gaz (Coração a Gás), criado em Paris em 1921, personagens como Senhora Boca, 

                                                 
 Maurice Rheims,La Vie étrange des Objets. Plon, Paris,  1959. Jean Baudrillard,Lçe Système des objets.Paris, 
107

1968. 

106 
FORMAS E ESTILOS 

Senhor  Pescoço,  Senhora  Orelha  e  Senhor  Sobrancelha.  André  Breton  e  Philippe 


Soupault,  num  esquete  de  1920  intitulado  Vous  m’Oublierez  (Você  me  Esquecerá), 
puseram em cena Guarda‐Chuva, Roupão e Máquina de Costura. Todos os personagens 
eram  representados  por  atores.  Não  era  um  verdadeiro  teatro  de  objetos,  apenas  uma 
provocação para chocar o público. Essa torção no realismo e na lógica permitia ampliar 
o campo da imaginação e pensar em novos meios de expressão.  
Os  artistas  e  os  bonequeiros  puderam,  pois,  utilizar  todas  as  formas  e  todas  as 
funções  vitais  dos  objetos,  do  animismo  à  técnica  da  colagem  para  descobrir  as  suas 
conjugações. Seguindo os passos dos surrealistas, davam aos objetos novas significações 
e  funções  simbólicas.  Muito  rapidamente  viram‐se  no  centro  das  experiências,  dos 
prazeres  e  das  hesitações  da  sociedade  de  consumo  com  seus  refrigeradores,  seus 
aspiradores,  seus  carros  e  seus  aviões.  Nós  os  possuímos,  servimo‐nos  deles 
cotidianamente,  e  de  repente  vamos  encontrá‐los  em  cena,  transformados  em 
personagens (miniaturizados se for preciso). Como é grande a tentação de utilizar esses 
objetos,  de  uma  diversidade,  de  uma  riqueza,  e  de  um  refinamento  inigualáveis! 
Atraentes, coloridos, multi‐funcionais, obras da indústria, eles encerram possibilidades 
ilimitadas. Prontos para serem tomados, só pedem por isso. Sem complicação, o boneco 
tem as mesmas qualidades. Para alguns, o boneco está em desuso e diz respeito a um 
artesanato em vias de desaparecimento. A escolha parece então fácil. O paradoxo quer 
que  ao  introduzir  os  objetos  no  teatro,  nós  nos  liberemos  de  sua  autoridade.  Os 
bonequeiros que utilizam objetos com fins dramáticos e espetaculares devem esquecer 
suas funções utilitárias. Em cena, um aspirador, no lugar de limpar tapetes, transforma‐
se em dragão, em guardião, em papa‐moscas. Se precisar de um barco ou um avião para 
as necessidades do seu espetáculo, o bonequeiro pode miniaturizá‐lo para se tornar seu 
senhor  absoluto.  No  teatro  de  objetos,  os  objetos  veiculam  as  idéia  e  a  imaginação  do 
artista. Pode‐se imaginar que, em nome da sociedade, os artistas vingam‐se da excessiva 
imponência  dos  objetos  na  vida  cotidiana,  lembrando  que  o  homem  é  sim  o  senhor  e 
que só depende dele, querer dar‐lhes uma nova significação espiritual e estética.  
O  teatro  de  objetos  atinge  seu  apogeu  nos  anos  80.  Já  evoquei  as  primeiras 
tentativas de Joly em 1948 com Parapluies et Ombrelles (Guarda‐Chuvas e Sombrinhas), 
de  Lafaye  ou  de  Ryl.  A  Polônia  conhece  suas  próprias  experiências  pela  iniciativa  de 
escritores,  como  com  a  peça  bastante  popular  de  Zbigniew  Wojciechowski,  Que Horas 
São?  (Która  Godzina?,  1964)  narrando  uma  greve  dos  relógios  e  de  outros  objetos.  Os 
tchecos  os  seguiram  com  o  Teatro  Drak:  Se  as  Crianças  Soubessem  (Si  les  Enfants 
Savaient...) (1972) e Como Nós Tocamos e com que Instrumento? (Comment Jouons‐Nous et 
de  Quel  Instrument?)  (1975)  Os  objetos  fazem  sua  primeira  entrada  em  cena, 
interpretam personagens e tomam parte na ação. Alguns anos mais tarde, os elementos 
épicos  unem‐se  a  eles  para  transformar  o  espetáculo  em  falas  de  narradores  que 
utilizam  bonecos  ou  objetos  para  ilustrar  o  tema  da  peça.  O  objeto  torna‐se  então  um 
campo de experiência para os bonequeiros.  

107 
METAMORFOSES 

Philippe Genty 

A  evolução  da  arte  de  Philippe  Genty,  em  seu  primeiro  período,  é  bastante 
esclarecedora com respeito a essa passagem do teatro de marionetes ao teatro de objetos. 
Genty começa sua carreira nos anos 60, com uma viagem de estudos pelo mundo que 
lhe faz descobrir a arte do boneco em todas as latitudes. Influenciado pela tradição do 
cabaré de bonecos, ele aprecia os esquetes curtos que compõem os programas de Music‐
Hall  (Olympia  ou  Casino  de  Paris).  Entre  seus  maiores  sucessos  da  época  figura  o 
melancólico Pierrot a que já me referi. Les Autruches (As Avestruzes) é um outro número 
célebre  utilizando  a  técnica  do  “teatro  negro”.  Um  grupo  de  avestruzes  dança 
acompanhada por uma música de Tchaikovski. Uma delas perde suas calças, suscitando 
a curiosidade de suas vizinhas que continuam a dançar. Aquela, para grande surpresa 
de  suas  vizinhas,  põe  um  ovo  quadrado,  o  que  é  uma  atração  suplementar.  A 
simplicidade  do  tema  é  compensada  pela  acentuação  das  reações  das  avestruzes,  nas 
quais o público reencontra suas próprias reações: incômodo, curiosidade, sentimento de 
superioridade,  vergonha...  Reatando  com  a  tradição  dos  espetáculos  alegóricos  com 
animais,  Genty  faz  nascer  como  por  encanto  um  universo  teatral  próprio,  onde  os 
pequenos problemas são resolvidos com humor.  
Após  seu  sucesso  com  bonecos  clássicos,  Genty  lança‐se  nas  experiências  que  o 
conduzem ao teatro da matéria. Em Rond comme un Cube (Redondo como um Cubo), ele 
faz uso de um tecido, em que os atores se dissimulam atrás ou dentro compondo a seu 
gosto. Este tecido se metamorfoseia em personagem de uma ou duas cabeças (cabeças 
de boneco), tomando dimensões e formas as mais variadas, ocupando às vezes mesmo 
toda  a cena. Além disso, a  iluminação  por baixo  do  tecido  oferece  novos  recursos.  Ele 
representa  um  grande  lago  onde  brincam  flora  e  fauna,  dentro  ou  fora  da  água. 
Múltiplas metamorfoses fazem aparecer todo tipo de personagens, até que se destacam 
duas personagens bicéfalas (cada uma delas é dirigida por dois animadores escondidos 
atrás),  que  saltam  sobre  a  cena  dançando  e  mudando  de  forma.  A  vida  da  matéria 
torna‐se  então  o  tema  dos  espetáculos  de  Genty.  Seu  teatro  assume  assim  uma  nova 
orientação artística que se sobressai na utilização de matérias, de atores e de dançarinos 
a serviço de uma mensagem visual coerente.  
Por  trás  desse  humor  de  cabaré  abriga‐se,  ao  que  parece,  um  credo  artístico, 
talvez uma filosofia que se manifesta claramente nos espetáculos seguintes: Désir Parade, 
Dérives e Ne m’Oublie Pas, que Genty evoca com frequência durante suas entrevistas: O 
que me apaixona cada vez mais é a questão do homem em conflito consigo mesmo, a confrontação 
entre  a  coisa  animada  e  o  que  a  anima,  quando  o  personagem  torna‐se  ora  um  espelho,  ora 
diretamente  o  objeto  do  conflito  e  que  ele  exprime  o  interior  e  o  exterior  do  ator.  É  fascinante. 
Perturbador também. Porque isso chama ao animismo que cada um traz em si – manipulador ou 
espectador. A muralha do consciente é abalada, mergulhamos nas angústias e nos fantasmas. Na 
mesma  tensão,  o  mesmo  combate  entre  o  homem  e  o  boneco.  Na  mesma  relação  de 
enfeitiçamento.108  

                                                 
108 Didier Méreuze. Philippe Genty. Théâtre de la Ville, temporada  91‐92, p. 4 

108 
FORMAS E ESTILOS 

Genty  está  convencido  de  que  para  o  artista  o  mundo  material  é  uma  fonte  de 
inspiração tão rica quanto a natureza: seu encontro com o oceano e o choque provocado 
por  sua  descoberta  do  deserto  modelaram  sua  imaginação  e  sopraram‐lhe  que  um 
objeto, um material, um tecido, bem utilizados, podiam igualmente tornar‐se uma fonte 
de  atração  e  guiar  suas  pesquisas  artísticas:  Nosso  trabalho  a  partir  do  material  (o  termo 
material  devendo  ser  tomado  em  seu  sentido  amplo:  formas  realistas,  abstratas  ou  matérias 
brutas) é uma fonte constante de descobertas e de renovação, mas também de frustrações porque a 
matéria  tem  seu  próprio  discurso,  às  vezes  em  contradição  com  o  caminho  da  encenação. 
Qualquer volume traz em si uma dinâmica que lhe é própria e que difere segundo a natureza do 
material. É preciso então ficar totalmente disponível para a escuta, mas quanta frustração para o 
autor. Entretanto, embora sabendo disso, a cada criação caio de novo na armadilha, encontro‐me 
fascinado pela forma que se desprende da matéria, impõe seu caráter, se desenvolve, se expande, 
evolui,  depois  se  sufoca,  se  esgota,  para  atingir  seu  declínio.  Durante  esse  tempo  ela  produziu 
outras formas que, por sua vez, propõem outras direções de pesquisa109.  
A  matéria  é,  pois,  um  “texto  do  possível  e  do  limite”,  que  abriga  novas 
possibilidades.  Certos  artistas  mostram‐se  prontos  a  se  tornarem  escravos  do  objeto 
para evitarem sê‐lo da palavra. Eles, aliás, estão conscientes disso. Genty pensa ganhar 
assim sua liberdade, já que o objeto e a matéria são mais aptos do que a palavra para 
transmitir símbolos suscetíveis de todas as interpretações possíveis110.  
Florilégio de teatro de objetos 

Nesse espírito, inúmeras companhias de teatro de objetos se distinguem desde os 
anos  80  nos  festivais  internacionais.  Elas  são  principalmente  italianas  (Teatro  delle 
Briciole,  Alessandro  Libertini,  Assondelli  e  Stecchettoni,  Hugo  e  Ines),  e  francesas 
(Manarf, le Vélo Théâtre e le Théâtre de Cuisine). Christian Carrignon e Cathy Devillle, 
fundadores  do  Théâtre  de  Cuisine,  não  escondem  que  seu  teatro  não  tem  nada  a  ver 
com  o  teatro  de  bonecos  e  que  eles  absolutamente  não  conhecem  o  universo  dos 
bonequeiros 111 .  Ele  define  o  teatro  de  objetos  como  sendo  o  resultado  da  relação 
existente  entre  os  olhos,  as  mãos,  as  coisas  e  a  energia  pessoal  que  nisso  se  coloca. 
Designa,  pois,  um  papel  particular  ao  ator  e  precisa  que  é  formidável  controlar  as 
emoções  com  uma  chave  de  fenda112.  Journal  de  Voyage  (Diário  de  Viagem)  conta  as 
experiências da vida corrente ilustradas por objetos com os quais Carrignon se diverte 
como com brinquedos. As metáforas visuais se sucedem. O herói (um homem) encontra 
um amigo, uma pequena figura que traz apertado junto ao corpo um globo terrestre. Ele 
põe seu amigo no bolso, o globo em sua mochila e, equipado de amizade e de sonhos, 
toma  o  caminho.  Outro  exemplo:  uma  cena  de  escalada  do  mobiliário  de  um 
apartamento. Quando a figurinha cai da parede rochosa formada pelo encosto de uma 

                                                 
109 Philippe Genty.La Compagnie Philippe Genty. Actualité de la scénographie, 1987, no. 31, p. 98. 
110 Jean‐Loup Temporal interroga Philippe Genty. UNIMA‐França, 1983, no. 81, p.7. 
111 Théâtre d’objets: L’objet même du théâtre. Marionnettes, 1985, no. 7, p.45. 
112 Ibidem,p. 44. 

109 
METAMORFOSES 

cadeira,  ela  mergulha  num  abismo  correspondente  a  sua  altura.  Reencontramos  aí  a 
mudança  de  perspectiva  das  Viagens  de  Gulliver.  Há  a  imaginação  do  autor  e  a 
ingenuidade da criança. 
Manarf  construiu  seu  renome  com  o  espetáculo  Intime,  Intime  (Íntimo,  Íntimo) 
que  nada  mais  é  do  que  uma  nova  interpretação  de  Chapeuzinho  Vermelho.  O 
fundador  da  companhia,  Jacques  Templereau,  joga  o  papel  do  clown  Giglo  que  conta 
esta  história  clássica  numa  cozinha,  verdadeiro  cafarnaum.  Chapeuzinho  Vermelho  é 
representada por uma maçã verde, o Lobo por uma verdadeira cabeça de bacalhau de 
dentes  poderosos,  a  Avó  por  uma  cozida.  Templereau  utiliza  objetos‐personagens  e 
outros  acessórios  em  situações  incomuns  que  suscitam  todo  tipo  de  associação  de 
idéias113. 
O fato de poder criar novas conotações e suscitar metáforas torna esse teatro de 
objetos muito atraente. Charlot Lemoine e Tania Castings, que criaram o Vélo Théâtre, 
formularam  assim  as  razões  que  os  levaram  a  escolher  o  teatro  de  objetos:  Os objetos, 
mostrados  e  manipulados,  tomam  uma  significação  particular  e  tornam‐se  uma  espécie  de 
linguagem.  Tanto  para  o  espectador  como  para  o  ator,  aqui  se  esconde  o  caminho  que  leva  à 
imaginação das pessoas, compreendida em qualquer língua e em qualquer cultura114.  
Aos objetos comuns, que, de fato, utilizam raramente, eles preferem brinquedos 
ou miniaturas da realidade. Assim em Appel d’Air (Pedido de Ar), o Menino (um ator) 
vive  em  sonho  suas  experiências  e  suas  quimeras  cotidianas.  Ele  está  cercado  de 
imagens de arranha‐céus de cimento de onde só é possível escapar de avião. O Menino 
alimenta  os  aviões  como  se  alimentasse  pombos,  amarga  metáfora  das  necessidades 
atávicas  do  ser  humano.  Um  poeta  pode  exprimir  seu  talento  em  qualquer  tipo  de 
teatro e sobretudo no teatro de objetos.  
A  colaboração  entre  duas  companhias  de  teatro,  o  Théâtre  Écarlate  e  Nada 
Théâtre, leva à criação de um espetáculo onde o lugar cênico, mais do que os próprios 
objetos, diz respeito ao teatro de objetos. Em Grandir (Crescer), três atores estão frente a 
uma  grande  mesa  com  várias  gavetas.  Eles  contam  sua  vida  servindo‐se  de  pele  de 
camurça. Estes três personagens são seu alter ego e fazem desfilar seus vida sem sair do 
lugar. A mesa asssume uma função simbólica enquanto mundo cheio de furos (gavetas) 
para  dissimular  surpresas  e  acontecimentos  inesperados.  As  gavetas  fornecem  aos 
atores cenários, símbolos dos lugares da ação, sob forma de pedras, areia, folhas, água, 
uma  série  de  elementos  de  paisagens  que  jogam  um  papel  ativo.  O  efeito  é  dos  mais 
teatrais,  essa  dupla visão desses símbolos,  às  vezes  pegando  o  espectador  de surpresa 
em  função  de  seus  aspectos  físicos  e  autênticos.  A  originalidade  do  espetáculo  se 
manifestava  pela  técnica  de  substituição  dos  cenários,  efetuada  segundo  as  mesmas 
regras que a dos personagens pelos objetos.  

                                                 
113 Isabelle Hervouet, Le Théâtre d’objets,Mémoire. E.S.N.ªM. Charleville‐Mézières, 1989. 
 Penny  Francis.  Velo  theatre..  Drama  made  of  things.  (Vélo  Théâtre.  O  teatro  feito  de  objetos).  Animations, 
114

1989, no. 4, p. 79. 

110 
FORMAS E ESTILOS 

Assim, os objetos (em tamanho natural, miniatura ou sinédoque) ora são ícones 
representando o mundo dos objetos, isto é nossa realidade imediata, ora os veículos de 
significações  novas  dadas  pelo  artista.  O  objeto  pode  também  jogar  os  dois  papéis, 
como os guarda‐chuvas de Joly e a maçã verde no papel de Chapeuzinho Vermelho do 
Théâtre Manarf. Gyulio Molnar segue o mesmo caminho com um programa miniatura 
intitulado Les Petits Suicides (Os Pequenos Suicidas). Sentado a uma mesa, ele apresenta 
pequenas histórias, fábulas, com objetos dos quais conserva seus traços característicos. 
Em  La  Tragédie  de  l’Aspirine  (A  Tragédia  da  Aspirina),  ele  encena  um  grupo  de  balas 
(caramelos) que brincam em cima da mesa como crianças. A aspirina gostaria muito de 
se  juntar  a  elas,  mas  as  balas  a  rejeitam.  Ela  então  se  disfarça  de  bala,  mas  é 
desmascarada. Desesperada, vencida por sua solidão, ela salta num copo de água e se 
dissolve fazendo dezenas de bolhinhas. Se essa historinha evoca o universo infantil e os 
problemas  que  encontram  as  crianças,  o  suicídio  da  aspirina  obedece  as  propriedade 
naturais  do  medicamento.  Assim,  o  jogo  com  o  objeto  se  realiza  em  espaços  cênicos 
muito diferentes; desde pequenos esquetes como La Tragédie de l’Aspirine a espetáculos 
mais elaborados como Grandir. 
Teatro de projeção 

À  luz  dos  exemplos  citados,  fica  evidente  que  o  teatro  de  objetos,  que  utiliza 
objetos do cotidiano, objetos fabricados, os ready‐made ou objetos amorfos que jogam o 
papel de personagens virtuais, mesmo de personagens dramáticos, impõe novas tarefas 
ao  animador  ou  a  seu  parceiro,  em  geral  visíveis  para  o  espectador.  Roger‐Daniel 
Bensky  tem  uma  outra  visão  deste  teatro.  Ele  desenvolve  a  idéia  de  “projeção”  que 
justifica  a  atitude  do  ator  em  relação  ao  boneco  e  ao  objeto  num  processo  de  criação 
teatral. Segundo ele, essa atitude é a mesma tanto em relação ao boneco como quanto ao 
objeto:  O  jogo  com  o  objeto,  que  na  realidade  é  um  solilóquio  quando  se  produz  fora  de  um 
espaço cênico, só visa a vencer simbolicamente o que surge como a indiferença ou a passividade 
do outro, por uma projeção sobre o objeto de conflitos subjetivos. Na ausência de um público, o 
personagem  dramático  desaparece,  para  ceder  lugar  ao  mito  pessoal.  A  plasticidade  do  objeto 
torna‐se o meio de “teatralizar” o pensamento. Este “joga” seus conflitos materializando‐os sobre 
o  objeto.  Visto  desse  ângulo,  compreende‐se  que  o  teatro  de  bonecos  tenha  podido  desencadear, 
por uma relação de parentesco, uma reflexão sobre o objeto que ultrapassa o teatro propriamente 
dito.  Tendo  abolido  a  visão  dramática  que  lhe  propunha  o  espetáculo  teatral,  a  imaginação  é  a 
partir daí livre para se projetar sem entrave algum sobre a matéria e torná‐la eloqüente115.  
Se  o  princípio  da  projeção  artística  é  respeitado,  seu  desenvolvimento  é, 
entretanto,  muito  mais  complexo.  Cada  boneco  (teatral)  possui  em  si  mesmo  um 
programa  de  jogo,  constituído  por  sua  expressão  plástica,  sua  construção  e  suas 
capacidades de animação. Para realizar esse programa, o bonequeiro deve obedecer ao 
boneco, como se vê nas relações que existem entre a boneca “mágica” e seu animador. 
O bonequeiro está a serviço do boneco, o que quer dizer que ele lhe permite realizar seu 
programa  definido,  desde  o  momento  em  que  lhe  é  dada  a  vida.  Os  críticos  italianos 

                                                 
115 Roger‐Daniel Bensky. Pesquisas sobre as estruturas da simbólica da marionete ª G. Nizet, Paris, 1971, p. 110..  

111 
METAMORFOSES 

Pietro  Bellasi  e  Pina  Lalli,  abordam  o  teatro  de  bonecos  por  um  outro  viés.  Ele 
representa  para  eles  um  conjunto  de  signos  dinâmicos,  testemunha  da  cultura 
contemporânea,  e  servem  ao  processo  de  comunicação:  Em todo caso, o teatro de objetos 
deve  ser  considerado  como  uma  tentativa  de  estudar  (num  plano  panorâmico  e  interno)  um 
labirinto de signos  e  de formas  de caráter social. Parece que esse terreno arqueológico  oferece a 
possibilidade de compreender a dinâmica social do mito, do rito, das diferenças, das metáforas. O 
quadro complexo do mundo contemporâneo poderia ser representado em toda sua polifonia: antes 
de tudo numa “polifonia cultural”, na qual se escondem as modulações de um discurso ao mesmo 
tempo subjetivo e coletivo, psicológico e social, antropológico e histórico.116  
Essa  visão  não  teve  continuidade,  e  deu‐se  o  mesmo  caso  com  o  Teatro  das 
Coisas (Thing Theatre), proposto por Dennis Silk, poeta israelense e teórico do teatro de 
bonecos.  Seu  objetivo  foi  o  de  pôr  em  evidência  a  fraqueza  do  ator  dramático  que 
perdeu a força das coisas, força disseminada nas dezenas de emoções pessoais inseridas 
em seus papéis. De onde a idéia de criar um teatro das coisas que concentre com força e 
talento  a  expressão  dramática.  Craig  propunha  ao  ator  aprender  a  gestualidade 
estilizada do boneco, Silk aconselha ao mesmo ator ir se formar nas grandes lojas. Não é 
pura provocação, porque ele revela pouco a pouco suas preferências amadurecidas por 
sua experiência do teatro de bonecos e do teatro plástico. Elas vão em direção ao objeto, 
a máscara (a concentração do olhar), o boneco e as partes objetivadas do corpo humano. 
Uma verdadeira escola de atores deveria ter aulas onde o ator vivo e a escova de sapatos fizessem 
seus estudos juntos. O ator vivo imitaria a força de expressão de alguma maneira mascarada da 
escova de sapatos, e a escova a dinâmica e a diversidade do ator pessoal. E um verdadeiro teatro 
deveria oscilar entre a vitalidade de uma vida pessoal e a letargia da vida das coisas. A saúde, no 
teatro tanto quanto na vida, é um equilíbrio entre esses dois extremos.117  
As  proposições  de  Silk  são  bastante  precisas:  ele  imagina  mesmo  inventar  uma 
linguagem dos objetos, mas só um artista que pusesse sua teoria do teatro de coisas em 
prática poderia confirmar o seu bom fundamento. Em sua obra dramática, Silk ateve‐se 
apenas  ao  mundo  dos  homens  e  dos  bonecos.  A  teoria  do  teatro  de  coisas  não  passa 
então de pura fantasia de poeta? 
De  minha parte,  constato que o objeto não  é portador  de nenhum  programa  de 
jogo teatral, mas dotado de um programa utilitário. O bonequeiro rejeita este programa 
e inventa, para o objeto, um programa de atuação em função de sua imaginação. Não é 
o bonequeiro que está a serviço do objeto, mas o contrário. Esta é, entre outras, a razão 
porque  a  maior  parte  dos  bonequeiros  contemporâneos  têm  objetivado  seus  bonecos, 
rejeitando  o  que  restava  de  sua  força  mágica.  Eles  fizeram  deles  instrumentos  dóceis 
respondendo  aos  élans  criadores  do  artista.  O  boneco  viu  suas  funções  culturais 
evoluírem; o objeto viu suas funções utilitárias rejeitadas para substituí‐las por funções 
teatrais.  

                                                 
 Pietro Bellasi e Pina Llali. Gli esploratori dell’imaginario (Os exploradores do imaginário). In: Recitare com gli 
116

oggetti. Microteatro e vitta quotidiana. Cappelli, Bologne, 1987, p. 9.  
117 Dennis Silk.When We Dead Awaken. Animations, 1989, no. 4, p. 83. 

112 
FORMAS E ESTILOS 

Essa distinção entre boneco e objeto não encontra unanimidade. Influenciado por 
Francis Ponge (La Rage de l’Expression (A Raiva da Expressão), Gérard Lepinois pensa que 
o mundo dos objetos forma um todo e conserva sua característica principal, sejam quais 
forem  a  forma  e  as  funções  que  tomem  esses  objetos:  Nós  estamos  nos  antípodas  da 
expressão, em todo caso, direta dela, do antropomorfismo mais ou menos pessoal. Ora, face a seus 
bonecos ou objetos ou figuras, a alternativa do bonequeiro é a mesma. Ou ele terá a facilidade, a 
complacência  da  humanidade  indolente,  de  os  antropomorfizar,  seja  na  sua  aparência,  em  sua 
manipulação ou por seu tipo de jogo ou ausência de jogo, se ele é à vista, ou ele aproveitará a lição 
de Ponge e inverterá o problema: ele enriquecerá o espetáculo, e a si mesmo, passando realmente 
por seus objetos, não para fazer o elogio do inumano – objeto, animal ou deus ‐, mas para ter uma 
chance de ampliar as fronteiras do que Ponge chama o “espírito humano118”. 
Nesse  caso,  quem  organiza  a  expressão  dos  objetos  em  cena?  É  o  animador,  o 
narrador  ou  um  performer  (um  ator)  que  também  joga  o  papel  de  testemunha  dos 
acontecimentos? Enquanto tal, ele deve atestar de sua autenticidade por suas próprias 
reações,  provar  que  todos  os  acontecimentos  que  se  produzem  no  mundo  dos  objetos 
arbitrariamente  reunidos  suscitam  nele  verdadeiras  emoções  profundas.  O  jogo  dos 
objetos  distingue  esse teatro dos  outros teatros,  mas põe de novo também em causa o 
bem  fundado  de  seu  nome.  Os  Teatros  de  Cozinha  tentam  nos  persuadir  de  que  a 
projeção da ação se faz pela intermediação do ator que continua sendo ele mesmo: No 
teatro  de  objeto,  o  ator  jamais  entra  na  pele  de  personagens.  Eles  são  eles  mesmos  em  cena, 
desenvolvem certas particularidades de sua personalidade, mas jamais a serviço, por exemplo, de 
um texto. Jacques Templereau fazendo Chapeuzinho Vermelho permanece Jacques Templereau119. 
Será  o  jogo  do  ator  “no  meio”  de  objetos  e  não  “com”  objetos  que  constitui  a 
natureza  do  teatro  de  objetos?  Só  a  fé  intensa  e  manifesta  do  ator  nos  acontecimentos 
que  se  desenvolvem,  pode  nos  convencer  de  que  sobre  a  cena  se  passam  coisas 
importantes? O jogo do ator repousa essencialmente sobre a sugestão e a concentração. 
É por essa razão que aprecio particularmente esta história citada por Isabelle Hervouet 
a  respeito  do  teatro  de  objetos: Um Marajá, precisando escolher seu ministro, anunciou que 
ficaria  com  o  homem  que  fosse  capaz  de  dar  a  volta  na  cidade  caminhando  encima  de  suas 
muralhas  e  levando  na  mão  um  copo  cheio  de  leite  sem  derramar  uma  única  gota.  Inúmeros 
candidatos tentaram, mas assustados ou distraídos pelos gritos lançados a sua volta, derramaram 
o leite. “Estes, disse o Marajá, não serão meus ministros.” Chegou um homem a quem nenhum 
grito, nenhuma ameaça, nenhuma distração pode fazer levantar os olhos que ele mantinha fixos 
na beira do copo. 
“Fogo!” ordenou o comandante das tropas. 
Ele não se mexeu.  
“Este  é  um  verdadeiro  ministro!”  disse  o  maharadjah.  ʺVocê  não  ouviu  os  gritos?” 
peguntou‐lhe depois.  
                                                 
 Gérad  Lepinois,  Intervenção  no  Encontro  Internacional  dos  críticos  de  teatro.  Instituto  Internacional  da 
118

Marionete, Charleville‐Mézières, setembro de 1988.  
119 Teatro de objeto: o objeto mesmo do teatro.  Marionnettes, 1985, mno. 7, p. 44 

113 
METAMORFOSES 

“Não”. 
“Você ouviu os tiros?” 
“Não, eu olhava o leite”.120 
Concentrar‐se sobre o objeto e fazer crer aos espectadores na vida dos objetos é 
uma  nova  tarefa  para  um  ator  de  teatro.  A  força  de  sua  atitude  e  de  seus 
comprometimentos condiciona a ilusão de lhes dar vida. Tal o bonequeiro que dá vida 
ao  boneco  por  meio  da  manipulação,  o  ator  jogando  com  objetos  os  faz  viver  mas, 
atenção, por meios intermediários, pela projeção de sua crença na vida do objeto e pela 
atenção do espectador. É uma atitude comparável ao animismo, entretanto ligeiramente 
diferente. O animismo é um ato de crença inscrito no texto do espetáculo. A ação de um 
ator  com  objetos  se  destina  intimamente  aos  espectadores,  num  élan  comum,  creio 
comigo. Por esta razão este ator me parece ser mais próximo do xamã ou do charlatão 
do que do homem de teatro. 
Teatro da matéria 

O teatro de objetos fez uma irrupção retumbante nos anos 80, parecendo às vezes 
ameaçar a existência das outras formas de teatro de bonecos. Hoje, a onda de interesse 
pelo teatro de objetos caiu um pouco, mas ele não deixa de ser um gênero importante e 
mesmo rival dos outros gêneros de “teatro impessoal”. Seu primo próximo, o “teatro da 
matéria”  de  nome  talvez  menos  conhecido,  possui  já  um  certo  renome  e  uma  teoria, 
posta  em  prática  pelos  bonequeiros  alemães.  Nós  a  devemos  a  Werner  Knoedgen, 
bonequeiro  e  educador,  que  publicou  em  1990,  Le Théâtre Impossible. Phénoménologie du 
Théâtre de Figure121. Uma obra na qual ele tenta definir o lugar do teatro de bonecos entre 
os gêneros vizinhos e definir as características desta forma derivada que é o “teatro de 
figuras” e, sobretudo, o “teatro material”. 
O  que  é  o  teatro  de  figuras?  O  “teatro  de  figuras”  é  caracterizado  por  sua 
similitude  com  o  “teatro  material”  (Materielles  Theater),  que  compreende  várias 
variantes.  A  primeira  variante  é  um  teatro  fundado  sobre  uma  matéria  informe  (que 
toma  forma  durante  o  espetáculo);  o  verdadeiro  “teatro  da  matéria”  (Materialtheater) 
faz parte disso. Segunda variante: os teatros que se apóiam sobre um material de forma 
definida, como o teatro de objetos, o teatro de máscaras, o teatro de bonecos moderno 
ou o teatro a partir de elementos do corpo humano (das mãos, por exemplo). A tarefa 
do teatro de figuras (portanto do Darsteller) é de criar um papel. Knoedgen, com toda 
lógica,  evita  o  termo  de  “personagem”  que  ele  substitui  por  este  termo  formal  de 
“papel”. Seja lá como for, criar um papel, no teatro de figuras, não é a mesma coisa que 
no teatro dramático: Devido ao fato de que ele sugere a vida nas coisas privadas de vida, devido 
ao fato de que ele representa o ativo em ajuda a uma coisa passiva, o ator do teatro de figuras se 
                                                 
120  Isabelle Hervouet. O teatro de objetos. Mémoire. E.S.N.ªM. Cahrleville‐Mézières, 1989.  
 Werner  Knoedgen.  Das Unmögliche Theater. ZurPhänomenologie des Figurentheaters  (O Teatro impossível. 
121

A respeito da fenomenologia do teatro de figuras). Verlag Urchhaus  Johannes M. Mayer, Stuttgart, 1990.  
 

114 
FORMAS E ESTILOS 

distingue  do  ator  dramático.  Ele  transfere,  com  efeito,  seu  papel  a  um  objeto  material  e  toma 
assim  suas  distâncias  com  relação  a  esse  papel,  como  se  ele  pudesse  negar  a  si  mesmo  embora 
sabendo  que  esse  objeto‐papel  jamais  poderá  substituí‐lo,  a  ele,  isto  é,  ao  único  sujeito‐
manipulador presente: ele resta um meio de expressão objetivado, um simples instrumento de seu 
espetáculo 122.  
Essa  análise  poderia  se  aplicar  a  todas  as  variantes  do  teatro  material,  mas  a 
distinção entre o objeto (o material) e o sujeito (o ator animador) não é tão simples como 
parece. Acontece com freqüência que objeto e sujeito estejam igualmente presentes num 
papel  e  que  não  se  possa  distingui‐los  claramente  (por  exemplo,  quando  o  ator 
empresta  ao  equivalente  material  do  papel  suas  próprias  mímicas).  Knoedgen  se 
interroga sobre os inúmeros aspectos do trabalho com o material, seja ele trabalhado ou 
bruto. É interessante ver que a despeito da originalidade de sua teoria do jogo em “seu” 
teatro  material,  encontramos  aí  observações  feitas  em  trabalhos  anteriores  sobre  os 
bonecos.  Assim,  ele  chama  “dualidade  do  teatro”  (Doppelung  des  Theaters),  a 
“opalinização”  do  boneco  ou  a  “visão  dupla”  do  teatro  de  bonecos,  isto  é,  o  jogo 
permanente  de  elementos  de  ficção  e  de  elementos  extraídos  da  realidade.  No  teatro 
material,  o  ator  não  saberia  se  identificar  com  seu  papel,  como  no  teatro  de  atores.  A 
imagem representada nesse teatro é composta de dois elementos, o que incita Knoedgen 
a  tirar  a  seguinte  conclusão:  Dado  que  a  imagem  no  teatro  de  figuras  é  dividida,  o  sujeito 
cênico pode escolher livremente aparecer num papel ou fora do papel. Entretanto, é verdade que a 
imagem é contraditória, e que esta formidável liberdade pode ser percebida como sendo ao mesmo 
tempo  funcional  e  criadora,  este  teatro  de  figuras  à  retroação  permite  aos  espectadores 
participarem  de  um  ato  de  criação  formidável:  o  comportamento  do  ator  se  transforma  em 
matéria,  a  matéria  começa  a  agir.  Os  objetos  tornam‐se  atores.  Aquele  que  atua  e  seu  papel,  o 
sujeito e o objeto, constituem a síntese suprema, dialética, de um espetáculo comum123.  
Os  detalhes  fornecidos  devem  seu  sabor  ao  trabalho  de  Knoedgen.  É  um  dos 
raros  livros  que  tenta  esboçar  de  uma  maneira  nova  e  numa  linguagem  nova,  um 
quadro do teatro saído do boneco tradicional. Os fenômenos artísticos que aborda são 
tão  ricos  que  sua  descrição  é  mais  complexa  do  que  lhe  pede  a  autópsia.  O  rigor 
intelectual  da  teoria  de  Knoedgen  é  colocado  em  prática  por  um  círculo  de  artistas 
restrito (e essencialmente pela escola do teatro de figuras de Stuttgart). Ao se agarrar ao 
conceito  de  papel,  limita‐se  a  universalidade  da  teoria  de  Knoedgen  sem,  entretanto, 
diminuir  o  alcance  enquanto  sistema  para  descrever  as  orientações  do  teatro 
“impessoal”. 
O  rigor  da  poética  desse  prático  e  teórico  que  é  Knoedgen  pode  nos  servir  de 
baliza. Entretanto a criação artística, como vimos, escapa facilmente a todas as regras e 

                                                 
 Werner  Knoedgen.  Das Unmögliche Theater. ZurPhänomenologie des Figurentheaters  (O Teatro impossível. 
122

A respeito da fenomenologia do teatro de figuras). Verlag Urchhaus  Johannes M. Mayer, Stuttgart, 1990, p. 19. 
123 
 Werner Knoedgen. Das Unmögliche Theater. ZurPhänomenologie des Figurentheaters  (O Teatro impossível. A 
respeito da fenomenologia do teatro de figuras). Verlag Urchhaus  Johannes M. Mayer, Stuttgart, 1990, p.109 

115 
METAMORFOSES 

aparece  com  freqüência  como  expontânea,  inesperada  e  quase  fácil.  Bem  no  início  de 
sua  carreira,  o  grande  bonequeiro  Feike  Boschma,  foi  tentado  por  diferentes  materiais 
que ele transformava em “bonecos” conservando ainda seu caráter material. Por ocasião 
de seu aniversário de 75 anos ele revelou seus segredos: Às vezes, enquanto eu caminhava 
pela rua, meu olhar se fixava numa peça de tecido ou num xale, numa vitrine ou num carro de 
um vendedor, que me excitava enormemente. Sem saber ainda o que eu faria disso, eu sentia a 
necessidade  de  adquiri‐lo.  Quando  voltava  para  casa,  começava  um  processo  estranho:  eu 
improvisava diante do espelho sem nenhuma idéia particular. Eu estabelecia, entretanto, em que 
lugar eu deveria tomar o pano para descobrir uma forma interessante levando em conta a cor e o 
movimento. As coisas começavam então a ganhar forma. Eu colocava o tecido embaixo e prendia 
a ele alguns fios de linha para lhe dar uma forma correspondente à imagem improvisada. Aqui e 
ali  eu  acrescentava  alguns  arames  para  ter  a  possibilidade  de  mover  o  tecido.  Assim  nasciam 
certas relações entre formas pré‐estabelecidas ou nascidas do movimento.124 
Depois  ele  buscava  um  tema.  Uma  escolha  ditada  pelo  material  posto  em  cena 
pelo bonequeiro e guiada por suas intuições e suas capacidades. Tudo terminava pela 
representação de um papel onde a parte do acaso era muito importante. Este acaso não 
corresponde exatamente ao intelectualismo da teoria de Knoedgen.  
É importante se perguntar se essa teoria descreve a realidade do teatro de figuras, 
do  teatro da  matéria,  ou se  ela é o  seu programa. Seria uma resposta  às  interrogações 
inquietas que nos colocamos então sobre o sentido da prática do teatro de bonecos e do 
teatro impessoal em geral? Knoedgen estabelece uma classificação de todas as correntes 
inovadoras  e  tenta  situá‐las  segundo  as  convenções  clássicas  do  teatro.  A  intenção  é 
nobre  se  se  admite  que  o  artista  e  o  espectador  de  hoje  se  sentem  solidários  dessa 
terminologia. Mas, quer a teoria de Knoedgen seja ou não um programa, é preciso levar 
em  conta  a  prática  teatral.  E,  nessa  prática,  existe  um  lugar  para  o  teatro  da  matéria? 
Sim, e os antigos alunos da escola de Stuttgart, como Sigrun Kilger ou Hartmut Liebsch, 
empregam cada vez com mais freqüência o termo de teatro da matéria e aplicam‐lhe as 
regras  com  sucesso,  como  em  La  Ballade des Pendus (A Balada dos Enforcados),  segundo 
Villon.  Sózinhos,  os  espetáculos  da  escola  de  Stuttgart  dão  a  melhor  garantia  de  seu 
futuro. 
O  exemplo  citado  abaixo  é  importante  porque  foi  escolhido  pelos  criadores  da 
escola Albrecht Roser e Werner Knoedgen: No meio da peça, vê‐se no chão duas escadas de 
cabeça para baixo. Elas estão cobertas pelo tecido. Aparece então uma forma que se pode tomar 
por um barco. Sobre este barco se encontram agora personagens que se escondem sob um tecido. 
O  tecido  é  então  como  um  manto  de  neve  que  recobre  uma  paisagem  com  personagens.  E  este 
grande manto muda de significação a cada vez que um personagem se manifesta embaixo e lhe dá 
uma nova forma. Cada modificação fecha um campo de imagens e abre um novo. A sucessão das 
imagens faz nascer nos espectadores associações de idéias muito fortes. Por essa razão, a palavra é 

                                                 
124 
  Feike  Boschma. Uber Marionetten (Sobre a marionete). Traduzido  do  holandês ao  alemão  por  Cilli  Wang 
Osterreichische Puppespiel‐Journalette “Opus” 1996,   No. 48, p. 9. 

116 
FORMAS E ESTILOS 

totalmente deixada de lado. É portanto uma peça sem palavras. Só existem tons, murmúrios. No 
início, uma orquestra toca uma música mecânica que evoca a produção de uma usina. Depois se 
utilizam  ruídos  de  tecido  originais  –  pode‐se  dizer  assim  –  enquanto  fonte  de  linguagem.  As 
coisas começam a falar, elas ganham uma linguagem acústica própria.125  
Nós encontramos aqui a prática do teatro contemporâneo (não apenas a do teatro 
da  matéria),  que  ao  modificar  o  papel  dos  acessórios  e  dos  objetos,  transforma  sua 
significação primeira. Mas o que no teatro dramático não passa de um elemento de uma 
gama de jogo mais extensa, constitui aqui a matéria de todas as ações. A concentração 
da expressão e da forma dota o teatro de um novo traço característico. O tempo nos dirá 
se os postulados de Knoedgen têm mais futuro que as experiências do teatro plástico e 
do teatro da matéria que nós já conhecemos. Ele ainda tem uma relação com o teatro de 
bonecos, suas tradições e sua história? Garante a sua continuidade? O teatro de bonecos 
não é, ao contrário, uma das aspirações seculares do homem de encontrar uma maneira 
de substituir o teatro de rosto humano? 
Sob diversas formas, em particular na performance, chegou a se utilizar o corpo 
humano  enquanto  material  como  os  Acionistas  de  Viena  tais  como  Gunther  Brus, 
Rudolf  Schwarzkloger  e  Hermann  Nitsch 126 .  Assim,  além  da  invasão  em  cena  dos 
objetos  da  vida  cotidiana,  assiste‐se  a  uma  reificação  do  corpo  humano.  Entre  os 
bonequeiros  contemporâneos,  Hugo  e  Inês,  uma  companhia  de  pantomima,  faz  um 
enorme sucesso com as mãos, pés, cabeças e joelhos que cenicamente têm vida própria. 
Os  personagens  principais  de  Un  Jour,  Les  Mains  (Um  Dia,  As  Mãos)  espetáculo 
apresentado pela Companhia Pascal Sanvic dispõem da mesma autonomia. Do mesmo 
modo, na Polônia, o diretor Krzysztof Rauy, apresenta em seu Teatro Trzy Czwarte (Os 
Três‐Quartos)  de  Zusno  o  espetáculo  Jan,  Jean,  Giovanni,  John,  Ivan...  (1995),  no  qual 
utiliza mãos como material para criar personagens dramáticos. A novidade repousava 
no  fato  de  que  elas  não  eram  personagens,  mas  serviam  de  matéria  bruta.  Os 
personagens  são  assim  criados  a  partir  de  várias  mãos;  os  rostos  evocam  os  retratos 
alegóricos  de  Archimboldo,  chegando  a  sugerir  palavras  e  cantos.  Os  espectadores 
ficaram  mais  impressionados  por  essa  nova  matéria,  essa  evocação  teatral  da  vida 
humana  do  nascimento  à  velhice,  do  que  pelos  personagens  que  as  mãos  buscavam 
imitar.  
O boneco cristaliza o desejo do homem de encontrar um substituto artificial para 
o  ator,  talvez  um  substituto  para  o  homem.  A  humanidade  se  contentou  durante 
séculos em criar golems, andróides, autômatos, robôs e todo tipo de bonecos. Mas hoje, 
e é isto que faz a originalidade de nossa época, descobrimos que elementos da realidade, 

                                                 
125 Eine  neue  Aesthetik  des  Figurentheaters.  Gespräch  anläslich  des  Figurentheater‐Festivals  in  Ljubljana, 
Jugoslavien,  mit  Albrecht  Roser  und  Werner  Knoedgen  (A    nova  estética  do  teatro  de  figuras.  Conversa  entre 
Albrecht  Roser  e  Werner  Knoedgen  por  ocasião  de  um  Festival  do  teatro  de  figuras  em  Ljubljana,  Yugoslávia)  . 
Bühnenkunst, 1988, no. 2, p. 81‐82. 
       Peter  Simhandl,  Bildtheater.  Bildende  Kunstler  des  20  .  Jahrhunderts  als  Theaterreformer  (O  teatro  de 
126

Imagens. Os artistas  plásticos do século XX reformadores do teatro). Gadegast, Berlim, 1993.  

117 
METAMORFOSES 

objetos  e  mesmo  corpos  humanos  reificados  podem  nos  servir  de  intermediários, 
significantes ou não, para descrever, apreender e refletir o mundo. 
 

118 
 

V - SOCIEDADE

Mudar o estilo do teatro de bonecos corresponde mais ao desejo de modernizá‐lo 
do  que  à  vontade  de  reagir  à  certas  situações  sociais.  Já  empobrecido  durante  seu 
período  itinerante  ao  curso  dos  séculos  XVIII  e  XIX,  não  há  outra  preocupação,  um 
século  depois,  que  a  de  conquistar  um  status  artístico.  Além  do  mais,  os  adultos 
tomaram  o  lugar  das  crianças  nas  salas,  e  os  bonecos  são  obrigados  a  responder  à 
demanda  de  três  públicos:  as  crianças  e  seus  pais,  os  responsáveis  pela  educação, 
representantes  frequentemente  das  instituições,  e  o  público  adulto,  supostamente 
conhecedor do valor artístico do boneco.  
Quando têm um suporte oficial, os bonecos cooperam com o sistema educativo e 
são    pressionados  a  aceitar  a  ideologia,  o  que  pouco  apreciam.  Um  marionetista  que 
atua  para  crianças,  consciente  da  importância  de  sua  missão,  compõe  ele  mesmo  seu 
programa  artístico  e  educativo.  Quase  todos  os  marionetistas  declaram  seu 
compromisso  com  este  senso.  Leokadia  Serafinowicz  e  Wojciech  Wieczorkiewicz, 
diretores  do  Teatro  de  Marionetes  Marcinek  de  Poznan,  assumiram,  nos  anos  60‐70,  a 
idéia  de  um  teatro  cognitivo  e  provocante.  Tido  o  pesar  do  espectador,  nós  assumimos  o 
dever de sensibilizá‐lo aos problemas da vida contemporânea. Sem negar‐lhe o direito de rir e de 
se  divertir,  tampouco  de  se  emocionar,  nós  queremos  confrontá‐lo  com  diferentes  problemas  e 
obrigá‐lo  a  assumir  uma  posição.  Nós  queremos  dizer‐lhe  a  verdade  sobre  a  complexidade  do 
mundo e a necessidade de fazer escolhas. Esta é nossa necessidade de realismo. Não escondemos 
nossas  próprias  idéias,  mas  utilizamos  habitualmente  insinuações.  Para  nós,  a  verdade  que  se 
descobre sozinho tem mais valor que a verdade dada127.   
Esta  atitude  tem  pelo  menos  duas  funções:  ela  define  a  posição  ideológica  do 
teatro  e  delimita  um  campo  de  pesquisa  artística.  Na  Polônia,  é  necessário  esperar  os 
anos  60  para  que  as  autoridades  aceitem  o  programa  sem  nenhuma  intervenção.  O 
mesmo aconteceu nos outros países socialistas. Os teatros voltaram‐se em seguida para 
‘valores  humanos’,  diferentes  da  ideologia  totalitária,  imposta  ao  teatro  da  Alemanha 
Oriental  e  na  Rússia.  O  teatro  de  alusão  política,  realmente  de  oposição  –  a  palavras 
cobertas‐  e  de  contestação  apareceu  lá,  mas  sua  linguagem  continuaria  metafórica  e 
deixaria de lado o estilo do teatro oficial.  
Teatro de contestação 

A  contestação  se  exprime  pela  escolha  do  repertório.  No  teatro  infantil,  as 
adaptações do folclore desenvolvem o sentimento nacional e têm uma função política e 
cultural. O folclore não suscita nenhuma reserva já que a doutrina leninista concilia um 
lugar priviliegiado à cultura popular. Ao contrário, trabalhar com os autores proibidos 
(como  Mrozek  e  Beckett  no  Teatro  de  Marionetes  de  Budapeste),  expõe  os  teatros  à 
censura.  A  pressão  desta  varia  conforme  o  país,  a  data  de  instauração  do  regime 
                                                 
127 Programa do Festival internacional de teatro de marionetes, Varsóvia, 16‐26 de junho de 1962. 

119 
METAMORFOSES 

comunista e a tradição local: se os teatros de marionetes poloneses e húngaros podiam 
montar  as  peças  de  Brecht  nos  anos  60,  os  teatros  russos  só  o  fizeram  dez  anos  mais 
tarde.  Os  teatros  do  Leste  alemão  só  se  interessaram  por  ele  no  final  dos  anos  70, 
quando a moda do dramaturgo já havia passado a algum tempo. 
Nos  países  socialistas,  como  a  Polônia,  o  poder  controlava  a  evolução  da  arte 
através de estruturas administrativas e uma parte da crítica não negligenciava o teatro 
de  marionetes.  Os  Aborrecimentos  de  Guignol,  de  Jan  Wilkowski,  criado  na  época  de 
Khrouchtchev,  foi  uma  denúncia  de  todas  as  formas  de  exploração,  inclusive  as  do 
poder  socialista,  e  isso  é  um  segredo  de  Polichinelo.  Alguns  anos  depois  esta  peça 
tornou‐se  ideologicamente  perigosa,  conforme  um  crítico  de  Torun, em  1965:  «Guignol 
parece  dirigido  contra  o  poder  burguês,    mas  nós  temos  hoje  a  impressão  de  que  ele  se  eleva 
contra todas as formas de poder ».  O  Teatro  Drak  escolheu  temas  emprestados  do  teatro 
russo  para  falar  dos  problemas  da  Tchecoslováquia  contemporânea.  Daí  nasceu  a 
metáfora  da  sede  de  liberdade,  Enfin,  Unicum  (1978)  e  a  análise  da  sociedade  cativa 
através  da  adaptação  de  Dragon  de  Evguenii  Schwartz,  O  Canto  da  Vida  (1985).  A 
maneira como estes espetáculos foram administrados no leste e no oeste é reveladora. 
No leste, o sucesso de um espetáculo é medido pela liberdade de expressão, fortemente 
discutida pela censura ou pelo comitê do partido comunista. O Canto da Vida é, portanto, 
considerado como o resultado de um compromisso. Ainda que no oeste a crítica evoque 
a  resistência  dos  artistas  em  interpretar  os  espetáculos  –  foi  o  caso  deste  espetáculo  – 
como uma manifestação de oposição.  
No oeste poucos teatros de bonecos abordaram os problemas da sociedade e as 
questões políticas. Pelo que se sabe, a participação do teatro de marionetes no Maio de 
68 nunca foi confirmada128. Os programas satíricos de televisão, como The Bebette Show 
ou Spiting Image, servem tanto à crítica como à popularidade dos homens políticos e dos 
artistas  que  são  seus  objetos.  Os  bonequeiros,  preocupados  com  sua  sobrevivência, 
raramente  procuravam  seu  público  nos  grupos  contestatórios.  Um  estudo  sobre  a 
responsabilidade da crítica e de sua influência sobre a vida cultural e sobre o teatro de 
bonecos,  tudo, como  os  meandros  de intenções e significações ocultas que  o público  e 
algumas  vezes  os  cúmplices  do  poder  descobriam  nos  espetáculos,  merece,  alhures, 
uma análise mais profunda.  
Os  bonequeiros  podiam,  em  um  contexto  de  liberdade,  mostrar‐se  sensíveis  à 
situação política. Em Estocolmo, Michael Meschke marcou seu comprometimento desde 
a criação de Ubu Rei, em 1964. Este espetáculo, dentro de uma social‐democracia como a 
da Suécia, pode ser outra coisa que não um comentário filosófico sobre a tirania? Dentro 
de  um  país  totalitário,  a  peça  poderia  ter  um  impacto  político,  mas  alguns  recusaram 
seguir  Meschke,  outros  o  convidaram  depois.  A  história  da  criação  política  apresenta 
mais  um  paradoxo.  As  peças  revolucionárias  não  traduziam  necessariamente  a 
expressão de um compromisso como o conta Meschke com preplexidade: Nós montamos 
da  mesma  maneira  A  Morte  de  Danton,  em  1971.  Em  nosso  espírito,  era  nossa  maneira  de 
                                                 
 Julia  Bloch‐Frey,  As  marionetes  e  a  contestação  social  em:  Cultures,  volume  II,  n.3,  1975,  Théâtre  et 
128

artisanats contemporaines, Presses de l’Unesco et de la Bâconnière, UNESCO, 1975, p.58. 

120 
SOCIEDADE 

contribuir  para  o  debate  sobre  a  revolução,  que  naqueles  anos  atingiu  seu  ápice.  Nós  dizíamos 
que  a  revolução  era  tanta  que  ela  assegurava  o  restabelecimento  da  sociedade.  Na  peça  de 
Buchner  sobre  a  revolução  francesa,  os  objetivos  da  revolução  e  a  justificação  da  violência  são 
postas  em  dúvida:  Danton,  racionalista  que  ama  a  vida,  foi  vencido  pelo  reino  de  terror  de 
Robespièrre, que abriu o caminho para o fascismo de Napoleão. Na atmosfera carregada dos anos 
70, quando apareceu o terrorismo, representar este drama no teatro com a sombra e o pó sobre a 
figura parecia deslocado. Nossa realidade cotidiana devia ser retratada. Havia, portanto, melhor 
lugar que o Parlamento sueco, cena da ação da verdadeira vida política? Nós o pudemos realizar 
porque o prédio estava provisoriamente fechado para trabalhos129.  
O  lugar  é  muito  bem  pensado.  Os  espectadores  ficavam  muito  impressionados, 
ao deixar o Parlamento, em ver a guilhotina chegando a ser utilizada.  
Os protestos dos intelectuais liberais são ʺbelosʺ demais para serem verdadeiros? 
É possível fazer um teatro de contestação? É este o verdadeiro teatro? E qual é a força 
da  contestação  se  ela  é  um  jogo?  Peter  Schuman  dá  uma  resposta.  Aquele  que  deseja 
protestar  contra  a  injustiça  levanta  e  cria.  A  revolta  deve  ser  espontânea.  Ela  não  é  boa  como 
profissão. Um espetáculo contestatório mesmo que bem montado não provoca mais que risos. É 
uma catástrofe130.  
Evidentemente, Meschke não pratica a contestação profissional e alimenta nobres 
intenções  com  seu  engajamento.  No  entanto,  a  observação  de  Schuman  leva  a  pensar 
sobre a parábola bíblica do rico e da cabeça da agulha. O profissional do teatro perdeu a 
virgindade,  que  é  a  condição  sine qua non  do  contestador.  Neste  período,  o  apolitismo 
da  maioria  dos  marionetistas  inquieta  certos  artistas  e  espectadores  do  teatro  de 
bonecos  como  Michel  Poletti,  que  declarou em  1971:  Guignol pertence ao século XIX. Ele 
abriu  uma  via  que  nem  aqueles  que  crêem  ser  seus  herdeiros,  nem  os  novos  marionetistas 
seguiram. A marionete deveria fazer mais que Guignol, ela não faz nem tanto quanto. Ela perdeu, 
tecnicamente  falando,  sua  violência.  Socialmente,  a  coragem  da  subversão.  Ela  tornou‐se  um 
produto  de  consumo,  mesmo  que  seus  criadores  creiam  agir  dentro  da  gratuidade  do  rosa  e  do 
lenga‐lenga.  Ou  para  tornar‐se  mais  que  uma  batata  finamente  decorada,  a  marionete  deveria 
começar por seguir o exemplo de Guignol. Ela poderia em seguida preocupar‐se com a estética, o 
humor, ou a metafísica. Não há teatro “mignon” que seja uma arte131.  
Poletti  pesquisa  um  teatro  total  com  as  marionetes  e  figuras  de  todos  tipos, 
manipuladas ou acionadas por mecanismos; os dispositivos, as técnicas de iluminação 
modernas  com  seus  tubos  stroboscópicos,  o  cinema,  uma  música  pop  ensurdecedora, 
geralmente  composta  por  Corry  Knobel.  Seus  bonecos  são  geralmente  feios, 
freqüentemente plásticos, de cores desagradáveis. Suas qualidades reais não aparecem 
senão  no  curso  da  ação.  Barthélémy (1970)  dá  uma  perfeita  imagem  de  seu  estilo:  um 
herói assiste a diversos episódios sangrentos da História, tanto como ator quanto como 
                                                 
 Michael Meschke, Em busca de uma estética da marionete (À la recherche d’une esthétique de la marionnette). 
129

Indira Gandhi National Centre for the arts & Sterling Publishers Private ltd, Nova Déli, 1992, p.116. 
130 Stefan Brecht. Peter Schuman’s Bread and Puppet Theatre. The Drama Review, n.14/3, 1970, p.64. 
131 Michel Poletti. <Guignol est mort. Vive Guignol!>. Puppenspiel und Puppenspieler, n.2, 1971, p.32‐33. 

121 
METAMORFOSES 

observador.  Aparecem  sobre  a  cena,  atores  e  bonecos,  gravuras  do  passado  (em 
diapositivo), documentos apresentados com uma ironia mordaz e um humor que choca 
a sensibilidade e a imaginação do espectador. ʺA noite de São Bartolomeu de 1572 conta a 
vida  à  12.000  pessoasʺ,  declaram  os  autores  do  espetáculo,  antes  de  convidar  os 
espectadores a procurar analogias com o mundo contemporâneo132.  
A crítica e teórica do teatro para crianças, Melchior Schedler atribui‐se ao teatro 
de marionetes moderno e sobretudo à sua interpretação educativa pelas mesmas razões. 
Ele  denuncia  violentamente  a  recuperação  dos  heróis  populares  como  Hanswurst  ou 
Kasperle. Estes personagens têm representado sempre o cidadão comum, opondo‐se às 
classes dominantes. Com o conde Pocci, a sociedade burguesa tinha tentado recuperar 
Kasperle  de  seus  fins  ideológicos.  Na  Alemanha,  as  ambições  de  Max  Jacob, 
marionetista  do  entre‐guerras,  pregavam,  no  lugar  da  revolta,  a  aceitação  e  a  auto‐
satisfação.  Depois  de  Schedler,  esta  atitude  correponde  à  espera  dos  movimentos  de 
jovens  fascistas,  e  determina,  na  Alemanha,  o  primitivismo  educativo  do  teatro  de 
marionetes  e  seu  apolitismo.  Que Kasper seja fascista é evidente, escreve  ele.  É o ʺferreiro 
das almasʺ que ʺmostra às pessoas a importância da comunidadeʺ, uma super‐figura no sentido 
pedagógico,  sobre  quem  podemos  dizer  ʺeu  gostaria  de  ser  como  eleʺ.  Por  outro  lado,  nós  já 
atingimos  este  ideal,  que  é  uma  projeção  interior  de  sua  imagem.  Ou,  para  retomar  a  idéia  de 
Albert  Drach:  ʺela  representa  o  que  desejamos  serʺ.  Poderíamos  colocar  estas  palavras  como 
explicação de toda a história de Kasperle depois Pocci. Uma vez privado das particularidades de 
sua classe social e arrancado de seu meio, ele perdeu sua humanidade vibrante e imobilizou‐se, 
homúnculo  vagando  livremente,  portador  de  uma  mensagem  educativa  ou  responsável  pela 
expressão da opinião da maioria silenciosa133. 
Recoing, na mesma época, sonha com uma marionete «arte da revanche, arte da 
vingança».  Ele  conhece  suas  tradições,  suas  capacidades  expressivas  e  trata  da 
atualidade,  dos  problemas  da  imigração  operária,  por  exemplo,  em  Les  Contes  de  ma 
Charrette.  Consciente  dos  perigos  do  conformismo  e  interrogado  em  1979  por  Yvon 
Davis sobre o radicalismo possível dos bonecos, ele respondeu: ... a marionete é uma arte 
da  vingança.  Ela  é  capaz,  com  os  meios  primitivos,  de  afirmar  uma  enorme  superioridade. 
Antoine  Vitez  diz  substancialmente  que  seria  insuportável  que  um  ator  arrancasse  em  cena, 
diante do público, as asas de uma borboleta; ao contrário, se é uma marionete que corta a cabeça 
de  uma  outra,  seria  irresistível  e  completamente  justificado!  A  marionete  representa  uma 
metáfora  possível  da  vingança  do  homem  contra  as  forças  que  o  oprimem.|...|  o  teatro  de 
marionetes deve voltar a ser um teatro de classe, o que ele finalmente sempre fora. O que ele tem 
de triste, é que nos países onde  retomou sua vocação de teatro de classe, ele tornou‐se um teatro 
conformista. Na França, felizmente, podemos ainda fazer um teatro irritante para os poderosos134.  

                                                 
 Ursula  Bissegger,  Puppentheater  in  der  Schweiz  (O  Teatro  de  bonecos  na  Suíça).  Éditions  Theaterkultur, 
132

Zurique, 1978, p.237. 
 Melchior  Echedler,  Shlachtet die blauen Elefanten! Bemerkungen über das Kinderstück (Matamos os elefantes 
133

azuis! Observações sobre as peças para crianças). Beltz Verlag, Weinheim und Basel, 1973, p.166. 
 La marionnette: un art de la vengeance (A marionete: uma arte da vingança). Entrevista com Alain Recoing. 
134

Théâtre public, novembro‐dezembro 1979, p.27. 

122 
SOCIEDADE 

Teatro pobre 

ʺTeatro  contestadorʺ  e  ʺteatro  irritanteʺ  se  opõem,  pois  eles  não  têm  nem  o 
mesmo contexto nem os mesmos objetivos. Nessa situação, a chegada de Peter Schuman 
e  da  trupe  americana  do  Bread  and  Puppets  Theatre  na  Europa,  em  1968,  foi  um 
verdadeiro  evento.  Françoise  Kourilsky 135  consagra  uma  obra  à  historia  deste  teatro 
contestador  tornado  tão  célebre.  Depois  de  estudos  artísticos  na  Alemanha,  Schuman 
parte nos anos 60 para os Estados Unidos, com sua esposa Elke, onde desenvolve pouco 
a  pouco  sua  atividade  de  marionetista.  Em  um  primeiro  momento  instintivamente, 
depois  conscientemente,  ele  se  situa  fora  do  Teatro  e  lá  permanece.  É  a  partir  daí  que 
sua  resplandecência  se  espalha  sobre  seus  vizinhos  de  rua,  e  sobre  o  mundo  inteiro. 
Tendo  assim  o  prazer  de  fazer  a  festa,  sem  remorso  nem  características  de  uma 
civilização sempre pressionada, não faz do teatro mais uma comunidade sem dinheiro, 
mais  preocupado  em  se  divertir  e  em  fazer  pequenos  trabalhos  que  em  fazer  arte. 
Schumann ensaia todas as formas espetaculares, vinculando‐se  às  verdades primeiras: 
os  espetáculos  com  bonecos  de  pequeno  tamanho,  chegando  a  uma  forma  de  teatro 
íntimo;  os  espetáculos  de  rua  com  marionetes  gigantes,  renovando  com  os  desfiles  de 
carnaval e os  mistérios.  Seus primeiros espetáculos têm como tema as dificuldades  da 
vida  cotidiana.  Os  seguintes  abordam  os  problemas  morais  de  nossa  época,  que  o 
conduz  à  política.  Então  foi  notada  a  força  de  seus  espetáculos,  que  associam  a 
simplicidade do julgamento moral à simplicidade dos meios, nas fronteiras na arte naif.  
O  Bread  and  Puppets  Theatre  foi  sensação  na  Europa,  em  parte  porque  utiliza 
temas  míticos  que  todo  mundo  conhece,  e  em  outra  porque  estabelece  uma  real 
comunhão  com  o  público.  Schuman  volta‐se  para  as  fontes  do  teatro,  da  cultura 
humana e dos problemas sociais; ele renova a forma teatral, a relação com o público e 
encaminha‐se na direção de uma forma ritual. Dessa forma, ele constrói um forno para 
fazer  ele  mesmo  seu  pão  e  dividí‐lo  com  os  espectadores  no  fim  do  espetáculo  e 
organiza  os  desfiles  de  rua  para  todos  os  participantes  que  desejam  reunir‐se  com  os 
ʺPuppetsʺ,  com  os  bonecos  ou  com  as  máscaras,  a  pé  ou  sobre  as  pernas  de  pau.  Ela 
organiza igualmente os encontros anuais com o público, em Glover, em sua fazenda em 
Vermont, para improvisações teatrais.  
Em 1964, ele inaugura seu programa através de uma célebre declaração: ʺDo pão 
e das Marionetesʺ: É um pedaço de pão que nós vos damos ao mesmo tempo que um espetáculo 
de marionete porque pão e nosso teatro vêm juntos. Há muito tempo a arte e o estômago foram 
separados. O teatro era um divertimento. O divertimento pela epiderme, o pão pelo estômago. Os 
antigos  ritos  do  pão,  o  cozimento,  o  consumo,  a  oferenda  do  pão  foram  esquecidos.  O  pão  se 
decompôs, ele virou mingau. Nós queríamos que vocês retirassem seus calçados quando viessem 
ver  as  marionetes,  ou  então  nós  desejávamos  abençoar‐vos  com  um  arco.  O  pão  os  lembra  o 
sacramento  do  alimento.  Nós  queremos  que  vocês  compreendam  que  o  teatro  não  é  uma  forma 
estabelecida, que não é um lugar de comércio como vocês pensam, o lugar onde se paga e se recebe 
qualquer coisa. O teatro é outra coisa. Ele tem mais de pão, ele é mais um desejo. O teatro é uma 

                                                 
135 Françoise Kourilsky, Le Bread and Puppet Theatre (O Teatro Bread and Puppet). La cite, Lausanne, 1971. 

123 
METAMORFOSES 

forma de religião. Ele é a alegria. Ele pronuncia os sermões e constrói um ritual próprio dentro do 
qual  os  atores  tentam  elevar  sua  vida  à  pureza  e  ao  êxtase  que  contêm  as  ações  das  quais 
participam136. 
O primeiro espetáculo em que falou disto é Le Feu (Fogo), em reação à crueldade 
do napalm utilizado durante a guerra do Vietnã. A ação se desenrola em uma semana, 
um  toque  de  campainha  do  narrador  (Schuman)  e  um  cartaz  de  papelão  com  os  dias 
marcando  o  tempo  que  passa.  Atores  mascarados  apresentam  as  cenas  da  vida 
cotidiana  dentro  de  uma  aldeia  vietnamita,  onde  a  vida  beira  a  morte,  da  qual  eram 
prisioneiros.  O  fogo  surge  no  último  dia.  Eis  aqui  a  cena  final:  Schuman  dá  toque  na 
campainha e sai. Entra uma vietnamita toda de branco. Ela se senta no meio da cena, a cabeça 
voltada para o público. Ela se imobiliza. Três homens com capacetes – de americanos‐ entram em 
cena armados com grandes bastões, cordas e grades. Eles montam ruidosamente uma clausura ao 
redor da mulher. Eles saem. Um momento de silêncio. Depois a vietnamita se inclina na direção 
do chão e se coloca a desenrolar um rolo de fita adesiva vermelha: sem se apressar, metodicamente, 
ela corta dois pedaços dessa fita e os cola sobre sua roupa branca, ao redor de suas mãos e de seus 
braços.  No  momento  em  que  a  Vietnamita  se  inflama,  os  três  homens  entram.  Eles  trazem 
máscaras de cego.  Eles fazem a volta na jaula tateando. Saem. A mulher se meche cada vez com 
mais dificuldade. Mas ela prossegue sua autodestruição. O barulho do rolo que se rasga ecoa no 
silêncio; diríamos as chamas que crepitam e a fritura dos corpos que queimam. A mulher gruda 
imediatamente  o  adesivo  sobre  as  bochechas,  a  boca  e  os  olhos.  De  repente  ela  cai  e  se  contrai 
sobre  si  mesma.  Ela  conduz  em  sua  queda  a  jaula  que  a  aprisiona.  Aparece  um  cartaz  com  a 
palavra «Fim»137. 
Será em seguida L’Appel du Peuple pour la Viande, criado em Nova Iorque em 1969 
e apresentado um pouco depois na Europa, que produzirá a maior impressão na crítica 
e  no  público.  O  espetáculo,  a  história  da  humanidade,  conduz  à  guerra  do  Vietnã.  Os 
atores utilizam máscaras, marionetes e imensos bonecos de vara cuja maioria já figurara 
nos espetáculos precedentes. O espetáculo começa com a dança de Urano com sua Mãe, 
a Terra, na ocasião de seu casamento, e termina com a morte de Urano e o nascimento 
de  Cronos.  Depois  de  ter  feito  justiça  à  pré‐história,  Schuman  passa  ao  Antigo 
Testamento.  Antes  da  aparição  do  homem,  o  mundo  é  habitado  por  animais  brancos 
vestidos com máscaras munidas de proibições de solidão. Coro e auxiliares do drama, 
eles desenvolvem um papel importante para o desenvolvimento da ação. A criação de 
Adão e Eva foi feita através de metáfora: eles saem de um plástico transparente que faz 
nascer  todas  formas  de  associação  de  idéias.  Segue  uma  série  de  cenas,  das  quais  a 
genealogia  de  José  utiliza,  ela  também,  uma  forma  metafórica:  os  atores  atiram  sobre 
José adormecido pedaços de tecido que simbolizam as gerações sucessivas. A segunda 
parte  mostra  a  cólera  de  Herodes.  Uma  marionete  de  vara  tricéfala  segurada  por  um 

                                                 
 Françoise  Kourilsky,  Le Bread and Puppet Theatre (O Teatro Bread and Puppet). La  cite,  Lausanne,  1971, 
136

p.249. 
 
137  Kazimierz Braun, op.cit., p.123‐124. 

124 
SOCIEDADE 

ator representa os Reis Magos. Ela corre através da cena, perseguida por um rebanho de 
animais.  José  e  o  Menino  Jesus  fogem,  eles  também.  Mas  a  violência  conquistou  o 
mundo.  Na  terceira  parte,  assistimos  ao  massacre  dos  inocentes  e  ao  bombardeio  de 
Belém.  Sobre a cena resta nada  a não ser os  soldados, as mulheres  e as crianças. Uma 
mulher  relata  o  testemunho  de  um  vietnamita  sobre  o  ataque  de  sua  aldeia  pelos 
ʺaviões  em  forma  de  peixeʺ.  Em  Belém  também,  ouvimos  o  zumbido  de  aviões,  um 
enorme avião‐peixe é projetado sobre a cena por detrás. As mulheres caem no chão. Na 
parte  seguinte,  um  apólogo  moderno.  Os  atores  citam  aforismos  do  Evangelho.  Na 
presença  de  uma  grande  marionete  de  vara  que  representa  Cristo,  eles  contam  as 
ʺhistórias de Jesusʺ, dentre as quais a história do trigo e da boa semente (o entágono, o 
homem de negócios e Cuba) e a dos falsos profetas (Nixon). Seguem os preparativos da 
Ceia. Uma mulher munida com uma grande panela se aproxima da marionete de Jesus 
e tira sangue de seu flanco, por um longo momento, enquanto os atores repartem o pão 
com o público. 
Um  artista  dificilmente  pode  ir  muito  além  da  condenação  de  sua  própria 
civilização,  e  um  crítico  constatar  com  mais  que  severidade  sua  queda.  Schuman 
persegue  sua  revolta  permanente  contra  a  crueldade  e  a  injustiça,  aperfeiçoando  sua 
técnica, sem dúvida mais teórica que prática. Espetáculos como L’Attrapeur d’Oiseaux en 
Enfer, Jeanne d’Arc, Le Chemin de Croix, Le Boucher du Cheval Blanc são a expressão de seu 
inconformismo e de sua incapacidade de calar‐se diante do mal e da opressão. A arte de 
Schuman  perturba  a  boa  consciência  dos  espectadores  e  artistas,  os  força  quase  a  se 
mobilizar.  Os  efeitos  foram,  no  entanto,  demasiado  limitados.  Dezenas  de  artistas 
americanos e europeus dividiram durante algum tempo a vida da trupe, com o desejo 
de  comer  cada  dia  seu  pão,  de  participar  de  sua  arte.  Eles  constituem  hoje  uma  boa 
parte  da  geração  de  artistas  do  teatro  e  do  teatro  de  bonecos  que  mais  adotaram  os 
valores estéticos do Bread and Puppets Theatre.  
Schuman  tinha  outras  ambições  que  as  de  reformar  o  teatro  de  marionetes  nos 
anos 50 e 60. Criar uma nova arte do boneco não era seu objetivo principal. Seu teatro 
pobre,  engajado,  e  seus  meios  de  expressão  estão  em  completa  harmonia  com  suas 
conquistas  de  posição  e  contêm  quase  todos  os  princípios  da  transformação  da 
marionete, já adquiridas na Europa, a saber: o abandono da tendinha, a busca por novos 
espaços teatrais, a mistura entre meios de expressão, a liberdade daquele que anima a 
marionete  para  se  mostrar,  a  passagem  da  linguagem  descritiva  e  mimética  para  uma 
linguagem poética, e finalmente, a renúncia ao texto dramático em proveito da narração. 
A força de Schuman é ter reformado as estruturas dramáticas. Sua influência dentro de 
seu  domínio  foi  considerável,  pois  ele  associou  os  motivos  literários  que  todos  nós 
poderíamos reconhecer. O teatro já utilizara este tipo de colagem no passado e, entre os 
marionetistas, Jan Dorman foi o único a isso recorrer, em grande escala. Schuman fez o 
mesmo pela necessidade de improvisação e para atualizar os eventos míticos ou fictícios. 
Em L’Incendie, ele liga a história da aldeia vietnamita ao ciclo dos Sete dias, evocando a 
Paixão  e  a  Ressurreição.  The  Cry  of  the  People  for  Meat,  evoca  claramente  temas  do 
Evangelho  e  da  atualidade:  o  bombardeio  de  Belém  é  uma  síntese  do  massacre  dos 
Inocentes  e  dos  camponeses  vietnamitas;  a  Crucifixação,  um  ato  universal  da  aviação 

125 
METAMORFOSES 

americana. Ao atualizar o mito, Schuman afirma seus princípios dramatúrgicos. Assim, 
Notre Cirque de la Résurrection Domestique compara  a  história  da  Crucifixação  com  a  da 
sociedade americana.  
Cada  espetáculo,  ou  quase,  contém  elementos  de  ritual.  Mas  é  com  Domestic 
Resurrection  Circus,  apresentado  pela  primeira  vez  no  Godard  College,  em  1974, 
reprisado todo ano em Glover, que se encarna o melhor dessa idéia. O espetáculo138 tem 
ao  mesmo  tempo  um  quê  de  festa  de  feira,  de  circo,  de  festa  religiosa  e  de  teatro  de 
vanguarda.  A  entrada  é  livre.  A  multidão  se  acomoda  num  campo  de  doze  hectares 
onde se desenrolam numerosos espetáculos em pequena escala. Pequenos ou grandes, 
os  espetáculos  têm  um  tema em  comum:  Le Combat Contre la Fin du Monde.  Ao  cair  da 
noite, os espetáculos começam com um incrível cortejo do qual participam mais de cem 
atores e bonecos gigantes. O cortejo chega a uma antiga pedreira de cascalho em forma 
de  ferradura,  um  anfiteatro  natural,  que  pode  acolher  dezenas  de  milhares  de 
espectadores. É  la que  acontece  o  espetáculo principal, que geralmente  termina com  o 
pôr‐do‐sol.  É  uma  sucessão  de  quadros  de  estrutura  flexível,  que  representam  os 
grandes temas do ano.  
A ação comporta geralmente quatro movimentos. O primeiro apresenta «a ordem natural 
do  mundo».  Ao  redor  do  anfiteatro,  os  bonequeiros  passeiam  com  um  enorme  boneco  chamado 
Face  de  Deus,  cantando  um  hino  tradicional.  O  segundo  é  consagrado  aos  eventos  históricos  e 
políticos.  O  terceiro  apresenta  a  luta  do  bem  contra  o  mal  e  termina  com  a  grande  Dança  da 
Morte. O movimento final começa com a aparição de uma personagem gigantesca, Mãe Terra. A 
Mãe  Terra  carrega  uma  tocha  com  a  qual  ela  coloca  fogo  nas  figuras  representantes  de  forças 
negativas dispostas pela arena, no mesmo momento em que a noite cai. Acima do fogo se elevam 
passáros  brancos  na  ponta  de  longos  bastões  animados  pelos  atores,  ao  som  melodioso  de  uma 
orquestra. Este espetáculo revela a crença no rito e no divertimento popular. Poderíamos 
compará‐lo  aos  mistérios  da  Idade  Média,  bem  que  Schuman  pesquisa,  lembra  ele,  a 
associações  de  idéias  muito  maiores  e  menos  evidentes:  ao  modificar  a  pompa  religiosa 
tradicional  com  uma  dose  de  divertimento  popular,  Schuman  criou  um  meio  que  condiz  ao 
tikkun,  para  curar  ou  reparar  o  mundo.  Os  bonecos  gigantes  ajudam  a  transmitir  e  a 
personificar as forças cósmicas do bem e do mal, que geralmente são o tema principal do teatro de 
Schuman.  Eles  também  ajudam  a  inscrever  toda  a  paisagem  dentro  da  cena.  Dessa  forma  os 
arquétipos humanos, os animais, as colinas, a floresta, o sol, o céu e as estações são unidos dentro 
da reconstituição épica anual da decadência da humanidade e de sua Redenção139.  
O  fim  tem  uma  característica  otimista,  em  perfeita  harmonia  com  o  mito 
universal da Redenção. Não esqueçamos que Schuman é capaz de glorificar ou destruir 
o  valor  do  mito.  Ele  denuncia  o  mito  do  sucesso  americano  para  revelar  o  seu  outro 

                                                 
 Stephen  Kaplin.  Signs  of  Life:  An  Analysis  of  contemporary  puppet  theatre  in  New  York  City.  A  thesis 
138

(manuscript)  (Análise  do  teatro  de  bonecos  contemporâneo  em  Nova  Iorque.  Tese  (manuscrita).  New  York 
University, 1989, p.53. 
139 Ibidem, p.56. 

126 
SOCIEDADE 

lado  do  cenário  e  cria  Christophe  Colombe,  na  ocasião  da  celebração  da  descoberta  da 
América, para evidenciar o caráter mentiroso desse mito.  
Teatro ritual 

Na Espanha, nos anos 70, próximo do Bread and Puppet Theatre, Els Comediants 
baseiam seu procedimento sobre o ritual e a ironia do mundo moderno. Eles respeitam 
os  postulados  dos  reformadores  do  teatro  do  início  do  século,  a  saber:  romper  com  a 
divisão  fixa  entre  cena/sala,  retomar  as  relações  com  o  mito  e  o  ritual,  fazer  do 
divertimento  um  elemtno  cultural,  liberar  o  teatro  da  ditadura  da  literatura.  Eles 
renunciam  ao  texto  para  colocar  sua  inspiração  dentro  de  imagens  e  de  personagens 
representantes  da  vida  cotidiana  catalã  e  se    voltam  na  direção  de  uma  atmosfera  de 
divertimento geral. A peça era politicamente suspeita porque naquela época Barcelona 
permanecia uma cidade tomada pelo regime franquista. Ela era tanto mais uma ruptura 
com  as  convenções  teatrais  que  os  jovens  atores  tinham  recursos  das  marionetes,  dos 
atores, das máscaras, das cabeças e dos gigantes. 
Na  tradição  espanhola,  durante  a  fiesta,  personagens  diversos  desfilam  na  rua, 
dentre os quais os cabezudos, como se chama os personagens com enormes cabeças que 
representam  os  tipos  populares  da  cidade  ou  da  região.  Os  corpos  desses  gigantes  e 
suas  cabeças  são  movidos  do  interior.  Nos  desfiles  tradicionais,  eles  representam  os 
Mouros, para comemorar a invasão da península ibérica. Els Comediants atribuem aos 
gigantes  um  novo  papel:  o  de  encarnar  o  poder,  todos  os  poderes,  governamentais, 
locais  e  religiosos.  Este  novo  papel  é  portador  de  tensão  e  de  ação  dramática.  Assim, 
Non  Plus  Pris  (1972)  é  um  divertimento  desenfreado,  em  que  o  jogo  instantâneo  dos 
participantes  constitui  a  trama.  Este  jogo  desaparece  desde  que  os  representantes  do 
poder  fazem  seu  carnaval  e  privam  o  povo  de  sua  festa.  As  críticas  não  faltam  para 
fazer notar a imoralidade desse rito.  
Entre  1977  e  1979,  a  companhia  encontra  seu  verdadeiro  estilo  e  seus  temas  de 
inspiração.  Els  Comediants  renunciam  aos  temas  autóctones  para  interessar‐se  por 
temas de uma dimensão universal e antropológica. O início da festa e do desfile de rua 
não muda, mas o conteúdo é muito mais forte. Qual fosse o tema, a fiesta é para eles um 
divertimento  puro,  uma  recusa  à  seriedade  e  às  obrigações.  Eles  desejam  semear  a 
alegria de viver, sem patronagem laica, nem santos padroeiros e evocam as lendas e os 
mitos,  mais  frequentemente  pagães,  porque  eles  trazem  uma  explicação  ao  seu  desejo 
de  viver.  Basta  evocar  os  saturnais,  ʺas  liberdades  de  dezembroʺ,  as  festas  de  bufões 
para virar o mundo do avesso, para fazer por pouco tempo um mundo onde os papéis 
são  invertidos,  onde  o  Riso  toma  o  lugar  da  Seriedade  e  o  Bufão  o  do  Rei  para 
reencontrar  a  harmonia  perdida  do  mundo.  ʺPara  nós,  explica  Joan  Font,  é  mais 
importante  emocionar  o  público  do  que  nos  fixarmos  em  uma  idéia,  desejamos  produzir  um 
choque elétrico que transmite melhor qualquer mensagemʺ. 
Dimonis,  apresentado  no  exterior,  não  corresponde  às  mesmas  inspirações.  Os 
atores,  vestindo  máscaras  de  diabo,  triunfam  forças  do  bem  representadas  por  anjos. 
Joan‐Anton  Benach  interpreta  este  espetáculo  como  prova  da  radicalização  dos  Els 
Comediants:  Eu  não  preciso  de  manifestos  éticos  e  estéticos  para  dizer  o  que  penso,  Els 

127 
METAMORFOSES 

Comediants  são  uma  trupe  feroz  e  de  um  radicalismo  absoluto  em  seus  espetáculos.  Esta 
radicalização  é  a  pura  consequência  de  uma  motivação  que  é  muito  mais  profunda  que  a  de 
empurrar para a direita ou para a esquerda. É a conseqüência de uma vocação e de um instinto 
dramático  notável  ou,  se  preferirmos,  da  esperteza  e  da  diversão.  Nós  não  avançamos  com 
argumentos  racionais  contra  o  poder,  não  discutimos  com  ele,  não  nos  expomos  a  grandes 
reclamações.  O  poder  é  uma  estrutura  superior,  contestada  por  princípio,  digna  de  ser 
regularmente ridicularizado pelo encontro de suas forças e os símbolos marginais são a pressão 
dos  impulsos  lúdicos  e  vitais  dos  homens  de  nosso  tempo,  prontos  para  ridicularizar  todas  as 
convenções  sociais  que  freiam  esses  impulsos  (...).  Igrejas,  palácios  e  prefeituras  são  os  lugares 
que provocam Els Comediants e que neles suscitam um violento desejo de se combate‐los através 
de  uma  alegoria  perversa.  O  ataque  ao  castelo  de  Maschio  Angioino  em  Nápoles  (1982), 
interpretado  pelos  nossos  «demônios»  espanhóis  como  o  intuito  de  resgatar  os  prisioneiros 
capturados  pelos  Franceses,  era  mais  que  um  divertimento  recordado  de  um  episódio  histórico; 
era  um  protesto  contra  a  hipocrisia  e  todas  as  formas  de  colonialismo.  Em  1983,  a  multidão 
massageada sobre  as  praças  e  nas  ruas  d’Avignon  puderam  assistir  à  conquista  do Palácio  dos 
papas  pelos  diabos  catalães.  Durante  o  último  grande  momento  do  festival,  Els  Comediants 
abandonaram suas barcas sobre as margens do Rhône e ocuparam literalmente os monumentos 
centrais da cidade, seguindo sua inspiração, mas a conquista do imponente bastão do papado e o 
anúncio à cidade e ao universo do triunfo das forças subterrâneas sobre o poder eclesiástico eram 
a verdadeira razão de ser do espetáculo140. 
Xavier Fabregas, outro crítico, qualifica dimonis d’auto sacramentales da mitologia 
pagã, é o que os torna às vezes tão medievais e tão escandalosamente contemporâneos. 
Prefiro, no entanto, a definição de Benach, para quem a atitude dos Les Comediants é 
um ʺarqueo‐anarquismoʺ. 
Que  alguns  refiram‐se  à  numerosos  temas  míticos  e  à  prática  do  rito,  como  o 
Bread and Puppets Theatre, ou que outros tentem contestar as verdades míticas dentro 
de um rito do mundo ao inverso, como Els Comediants, estas práticas teatrais estilizam 
os  problemas  da  vida  a  partir  de  antigos  comportamentos  populares  e  utilizam  uma 
linguagem adaptada à nossa época. Se aceitamos que o senso do poder e da autoridade 
dominam nossa realidade é secundário, o essencial de nosso encontro com esses grupos 
permanece nas suas proposições em aceitar uma nova forma de comportamento social, 
quer dizer, o ritual como lugar de expressão das tensões individuais e sociais. Como é 
que o povo, conhecido o ritual da revolução, se satisfará com seu equivalente teatral e 
artístico?  
Fazer frente à história 

Se  desconfio  do  ritual  renovado  como  forma  contestatória,  não  se  pode 
negligenciar sua função cultural e social. A comunhão ʺdo pão e da marioneteʺ cria uma 
comunidade  universal.  Ela  conserva,  malgrado  a  desvalorização  do  conceito  de  mito, 
referências  longínquas  com  uma  comunidade  sagrada.  Les  Saturnales  e  o  ʺmundo  ao 
                                                 
 Joan‐Anton  Benach,  Crónica  de  una  fascinante  transgresión  (Crónica  de  uma  transgressão  fascinante).  Em: 
140

Comediants 15 Anos. Centre de documentación teatral, El Publico, Madri, janeiro de 1988, p.16.. 

128 
SOCIEDADE 

inversoʺ  são  conceitos  históricos  e  o  riso  considerado  como  comportamento  humano 


conserva sua força purificadora. Sem fanfarras e sem outras declarações de engajamento 
político,  o  teatro de  bonecos  continua a tratar, de sua maneira, os problemas morais  e 
sociais,  em  particular,  através  de  retrospectivas  sobre  os  eventos  trágicos  da  guerra  e 
sobre os problemas sociais e políticos que caracterizam nossa sociedade. 
Os  primeiros  concernem  à  tragédia  do  holocausto.  Privilegio  a  análise  de 
situações  escatológicas  ou  a  descrição  de  reações  de  pessoas  tendo  padecido  a  um 
choque  psicológico,  tendo  sobrevivido  à  guerra  com  heroísmo  e  se  deparando  com  a 
incapacidade  de  viver  sem  os  seus  próximos.  O  Teatro  da  Comuna  de  Aubervilliers 
monta  em  1984  O  Marionetista  de  Lodz,  de  Gilles  Segal.  Esta  encenação  de  Jean  Paul 
Roussillon  faz uso da marionete para  evocar um certo  judeu,  Finkelbaum,  evadido  de 
um campo de concentração. Esta peça de teatro dramático foi igualmente encenada no 
teatro  de  bonecos,  como  o  Figurentheater  em  Rogenbogen  ou  o  Theater  ACT,  em 
Nuremberg. O Théâtre Banialuka, de Bielsko‐Biala monta em 1986 O Pequeno Grande Rei, 
de Joanna Kulmowa, que nos fala dos últimos instantes do grande pedagogo polonês de 
origem  judia  Janusz  Korczak,  antes  de  sua  execução.  O  mesmo  tema  é  tratado  por 
artistas  russos  e  ucranianos  no  Teatro  Municipal  de  Kiev,  em  Tudo vai bem... (Vse Bude 
Garazd...,  1996)  por  Irina  Uvarova,  onde  o  holocausto  e  os  sofrimentos  das  crianças 
judias se inscrevem em uma sucessão de eventos trágicos e inumanos que constituem a 
história da humanidade.  
Dos  temas  da  atualidade  abordados  pelos  teatros,  evocarei  o  Théâtre  de  la 
Poudrière,  que,  na  Suiça,  optou  por  tatar  a  vida  dos  imigrantes  na  Europa:  Exilados 
(1990,  Neuchatel).  Gustav  Gysin  testemunha:  os exilados almejam a presença daqueles que 
permaneceram  no  país.  Eles  enderessam  suas  cartas,  mas  acabam  por  nunca  contar  sobra  elas. 
No momento em que os pensamentos dos emigrantes se voltam para seus compatriotas, sentados 
sobre  os  balanços  acima  da  área  de  jogos,  os  marionetistas  tocam  os  balanços  e  os  colocam  em 
movimento.  Em  Noel,  uma  pequena  luz  brilha  em  cima  de  cada  personagem.  De  tempos  em 
tempo, um balanço desce numa tentaiva inútil de tocar aqueles que vivem embaixo, no exílio141.  
O  teatro  se  utiliza  também  do  eco  da  atualidade  das  mudanças  políticas  da 
Europa  Oriental,  como  o  testemunha  o  espetáculo  alegórico  de  Vitalis  Mazuras,  A 
Desinteria, montado em 1989 no Théâtre de Marionnettes de Vilnius, na Lituânia. Trata‐
se  de  uma  crônica  da  história  do  seu  país  báltico,  desde  a  Segunda  Guerra  Mundial, 
interpretada  pelos  atores  e  com  recursos  plásticos.  A  metáfora  da  convalescência  da 
cultura lituana (um campanário queimado envolto por ataduras) é o ponto culminante. 
Esta  retrospectiva  política  foi  uma  prova  de  coragem  cívica  no  momento  em  que  a 
independência  da  Lituânia  era  novamente  o  objeto  de  negociações  com  seu  poderoso 
vizinho.  
Outros acontecimentos como a divisão da antiga Iugoslavia em pequenos estados 
nacionais, a guerra étnica da Bósnia, o sofrimento de milhares de pessoas, o choque da 

                                                 
 Gustav Gysin. Exiles – le spectacle en création suisse à la Chaux‐de‐Fonds. Puppenspiel und Puppenspieler, 
141

Zurique, 1991, n.2, p.25‐26. 

129 
METAMORFOSES 

comunidade  internacional,  levaram  artistas  a  se  perguntar  sobre  a  solidariedade 


humana  e  as  dimensões  dos  horrores  perpetrados  pelo  homem.  Alguns  protestaram 
contra este estado de coisas através de declarações ou de ações humanitárias, mas não 
vimos  muitas  produções  teatrais  próprias  a  emocionar  um  público  maior.  Não  havia 
muitos  espetáculos  de  caráter  artístico  que  fizesse  ressentir‐se  o  caráter  trágico  do 
destino humano. Não vimos mais que espetáculos de intervenção, como As Crianças de 
Saravejo (texto, cenário e marionetes: M. Mescke), no Marionetteatern de Estocolmo, em 
1994. Em cena, casas em ruinas, atiradores de elite escondidos e habitantes fazendo fila 
pela água. Nada mais do que o relatado pela imprensa cotidiana, mesmo que Meschke 
substitua os rostos dos civis por alvos142.  
As  grandes  mudanças  sociais  são  às  vezes  acompanhadas  por  uma  tomada  de 
consciência dos artistas sobre o destino dos homens e da sociedade. A arte, através de 
sua  história,  nos  esclarece  com  numerosos  exemplos.  A  modernização  do  teatro  pode 
ser  ela  mesma  um  sinal  dessas  mudanças  fundamentais?  E  a  atitude  modernista,  com 
sua  aspiração  ideológica,  procura  um  senso  político  nos  espetáculos?  Schumann,  que 
ama  formular  manifestos  artísticos,  responde:  A  que  o  modernismo  nos  conduziu?  Ele 
destruiu  o  tabu  da  percepção.  Ele  liberou  a  força  das  mãos  e  dos  espíritos,  força  cujas  mãos  e 
espíritos não tinham consciência.  O drama do Modernismo é seu  fracasso político e social,  sua 
incapacidade em aplicar na situação histórica outra coisa que as descobertas formais. O processo 
liberatório do Modernismo foi recolocado entre as mãos da arte e de tudo o que a ela se liga. Os 
gloriosos ideais do Modernismo não se podem penetrar nem dentro dos hábitos nem dentro dos 
atos dos órgãos de poder. Pode ser necessário questionar até onde o Modernismo teve intenção de 
ir? Em um momento ou em outro seus sonhos ultrapassaram a Revolução russa a qual superou 
para sobreviver? Kandinsky e Schoenberg acreditavam nas aspirações superiores, quase religiosas, 
do  Modernismo,  mas  a  Alemanha  nazista  e  o  capitalismo  moderno  fizeram  com  que  estas 
esperanças  se  degenerassem  e  deram  uma  especialização  dentro  do  domínio  de  suas  práticas 
puras, esotéricas, que nós associamos atualmente à ʺArte Modernaʺ143.  
DENTRO DO CONTEXTO DA TRADIÇÃO POPULAR 

Diante  das  múltiplas  transformações  do  teatro  de  marionetes,  a  marionete 


popular seguiu inexoravelmente seu caminho. Da tradição do bufão, do Evangelho ou 
dos  arquétipos  modernos  da  literatura,  ela  leva  os  marionetistas  no  sentido  dos  mitos 
de  nossa  civilização.  Este  retorno  às  fontes  é  circunstancial  desde  que  as  pesquisas 
antropológicas  ocuparam  a  imaginação  de  alguns  encenadores  contemporâneos  como 
Brook, Grotowski e Barba. 
A transformação da arte da marionete na Europa não afeta a marionte tradicional 
e  seus  valores  intrínsecos.  Não  há  contradição  entre  as  transformações  dos  meios  de 
expressão  do  teatro  dito  artístico  e  a  manutenção  da  característica  local,  muitas  vezes 
                                                 
 Michael  Meschke.  Grenzüberschreitung  zur  Aestherik  des  Puppentheatres  (Ultrapassar  fronteiras  através  da 
142

estética das marionetes). Wilfried Nold, Frankfurt‐am‐Main, 1966, p.158‐160. 
 Peter  Schuman.  The  Radicality  of  the  Puppet  Theatre  (O  radicalismo  do  teatro  de  bonecos).  The  Drama 
143

Review, vol.35, n.4, Winter 1991, p.82. 

130 
SOCIEDADE 

nacional,  de  certos  gêneros  teatrais?  Todos  os  sistemas  culturais  podem  facilmente 
legitimar  seu  funcionamento  paralelo  e  não  contraditório.  Mesmo  o  romantismo 
procurava  uma  legitimação  dentro  da  tradição  folclórica.  A  obra  folclórica  preserva 
efetivamente os valores que podem revestir um caráter único quando certas condições 
são reunidas: o isolamento geográfico, político, ideológico. Este isolamento favorece no 
curso dos  séculos o nascimento e a perenidade de teatros locais  os quais qualificamos 
hoje  de  teatros  folclóricos,  populares  ou  tradicionais.  Estes  teatros  existem  ainda  nos 
nossos  dias  e  sua  sobrevivência  carrega  um  sentido  particular  no  contexto  das 
mudanças  incessantes  dos  meios  de  expressão.  São  os  pupi  siciliani  e  os  teatros  de 
marionetes  de  fio  da  França,  Bélgica,  Espanha  ou  Portugal,  ou  os  pequenos  teatros 
ambulantes dos heróis populares, como Pulcinella, Polichinelo, Punch, Petrouschka ou 
Kasperle,  ou  ainda  os  teatros  de  sombras  com  Karagoz  e  Karagiosis;  os  teatros  que 
fazem uso do repertório do Mistério e da Natividade, de Fausto ou de Don Juan.  
Os  artistas  e  os  amadores  apaixonados  pelo  folclore  mantêm  esses  teatros  em 
atividade,  porque  ele  praticamente  não  existe  mais  como  ambulante,  com  pessoas 
simples para as quais a marionete era um meio de subsistência, de sobrevivência muitas 
vezes, e com marionetistas de rua que estendiam seu chapéu em troca da representação. 
Os ambiciosos homens de teatro da província que desejavam imitar os espetáculos dos 
teatros  parisienses  ou  berlinenses  com  seus  bonecos  também  desapareceram.  As 
condições  que  precederam  ao  nascimento  desta  arte  popular,  no  campo  como  nas 
cidades,  são  descritas  por  sociólogos  da  cultura  como  Arnold  Hauser144,  que  fez  uma 
distinção entre  a cultura do  campo, a cultura popular e  a cultura  de massa, aquela de 
países da Europa e da América do Norte, que hoje produzem uma arte homogeinizada.  
A  tradição  do  personagem  cômico  permanece  a  mais  popular.  O  teatro  de 
marionetes  utilizou‐se  da  personagem  alegre,  do  rebelde,  do  bufão  e  abusou  de 
jovialidade, estes personagens cômicos, de Vidusaka à Kasperle e Guignol passando por 
Pulchinella.  Spejbl  e  Hurvinek  foram  os  últimos  moicanos  desta  família.  Mesmo 
privada de seu público popular, a tradição se manteve. Os heróis ainda desempenham 
um papel que não é o seu. Assim, Kasperle torna‐se um herói do teatro para crianças e se 
engaja, momentaneamente, na política (Kasper o Vermelho). Nos anos 70, ele reaparece, 
tal como uma citação, nos espetáculos de Waschinsky e de Podehl. O Petrouschka russo 
se  engaja  na  luta  de  classes  (principalmente  em  benefício  da  Revolução  de  Outubro), 
depois é destituído por Obraztsov, que o considerava um personagem inútil.  
O  repertório  de  Stravinski  dá  um  novo  renome  artístico  tanto  aos  teatros 
húngaros  quanto  aos  romenos  nos  anos  60.  Ele  igualmente  recupera  os  personagens 
dramáticos populares do teatro tcheco e polonês nos anos 70. Laszlo Vitez, em Budapeste, 
é  um  fenômeno  excepcional.  A  tradição  desse  herói  popular  perpetuou‐se  graças  a 
Henrik  Kemeny,  marionetista  mambembe,  extremamente  habilidoso,  que  deu‐lhe 
novamente  vida  na  época  de  múltiplos  festivais,  ainda  que  ele  seja  obrigado  a  deixar 
seu castelete e suas marionetes no estoque do museu do teatro.  
                                                 
 Arnold  Hauser.  Filozoficzna historia sztuki (História filosófica da arte). Panstwowy  Intytut  Wydawniczy, 
144

Varsóvia, 1970, p.269. Trad. De Danuta Danek e Janina Kamionkowa.  

131 
METAMORFOSES 

Na Inglaterra, a comédia de Punch e Judy provou uma extraordinária longevidade, 
cerca de duzentos anos (sem contar os anos de celibato de Punch), graças a artistas que 
são às vezes marionetistas, clowns ou mágicos. Ela é, por isso, um simples meio dentre 
todos  os  que  eles  têm  a  sua  disposição.  Evoluindo  no  decorrer  dos  anos,  Punch  hoje 
domina  a  cena,  como  o  provam  as  incontáveis  interpretações  que  ele  conheceu  no 
século XIX. Nossos contemporâneos fizeram inclusive interpretações feministas e punk.  
A  comédia  de  rua  suscita  também  o  interesse  dos  teatros  de  repertório.  Na 
França, Alain Le Bon, artista de espírito mambembe, se utiliza de Punch considerando‐o 
como essência da natureza humana, ele interpreta sua ʺcomédiaʺ e mantém a tradição. 
Le  Bon  compôs  o  papel  de  um  personagem,  o  clown‐  balbuciante  Grossalino  e  batiza 
sua  trupe  de  Cirk’Ubu,  unindo  assim  a  tradição  do  teatro  mambembe  com  as 
tendências  grotescas  da  vanguarda.  Punch  (1984)  foi  sua  primeira  criação.  Nem 
reconstrução nem pastiche, o espetáculo é digno do verdadeiro, do grande e belo teatro, 
no  qual  a  filosofia  é  atirada  aos  espectadores.  Seu  teatro  é  um  espaço  coberto  de 
acessórios de circo ou de uma peça rural de outrora. Uma trupe de marionetes músicos 
sai astuciosamente do lugar da cena, um paravento surge dos quadros sobre os quais se 
desenvolve a ação em conformidade com o espírito anarquista de Punch. O repertório 
se  enriquece  com  Punch ou o Outro Don Juan  (1987)  e  A Tentação de Existir ou a Cômica 
Ilusão (1991). 
Grossalino  tece  comentários  truculentos  sobre  a  existência,  caindo  muitas vezes 
num  discurso  moralista  ou  em  uma  filosofia  barata.  O  amor,  a  violência,  a  existência 
humana, a insignificância de nossos desejos são seus temas favoritos. Le Bon aborda o 
texto  da  comédia  respeitando  os  hábitos  dos  artistas  populares  que  cortam  o  material 
dramático em função de suas necessidades. Punch luta com seu vizinho, um médico e 
um carrasco, e, sobretudo, com a morte, porque ele deseja aproveitar a vida em todos os 
seus aspectos. A cena com a Morte se distingue de todas as outras. Ela não é cômica. É 
um  discurso  existencial,  escatológico.  Em  suma,  a  criação  de  Le  Bon  tem  uma 
caracterítica  –  à  primeira  vista‐  perversa,  que  consiste  em  utilizar  uma  forma  grotesca 
para exprimir reflexões bastantes sensíveis sobre o teatro, a arte e a vida em geral.  
Em  Bruxelas,  Jose  Geal,  ator,  autor,  diretor  de  um  teatro  para  crianças,  é 
doravante Toone VII. Ele atingiu a perfeição no papel de diretor do Théâtre Toone, um 
dos  teatros  populares  mais  famosos,  que  se  constitui  em  uma  das  atrações  da  capital 
belga,  na  qual  os  turistas  poderiam  ser  assimilados  a  um  público  popular.  Segundo  a 
tradição, Geal recita ele mesmo todos os textos, altera sua voz quando se faz necessário, 
à vista e nas coxias. Ele faz com que artistas experientes construam os bonecos e engaja 
marionetistas  experientes  para  anima‐los.  Ele  possui  um  senso  desenvolvido  do  papel 
artístico e folclórico do Théâtre Toone, segundo um cronista de Bruxelas, Alain Viray145. 
Geal‐Toones  tem  consciência  de  que  é  em  vão  querer  impedir  que  um  estilo 
desapareça.  Assim  ele  tem  a  iniciativa  de  renovar  e  aumentar  o  repertório 

                                                 
 Andrée Longcheval e Luc Honorez. Toone et les marionnettes de Bruxelles. Paul Legrain, Bruxelas, 1984, 
145

p.87‐88.  

132 
SOCIEDADE 

melodramático  e  de  colaborar  com  artistas  à  margem  das  correntes  tradicionais.  Ele 
monta  peças literárias renomadas, como El Cid, Ruy Blas, Cyrano, Escola de Mulheres,  as 
quais adapta e encena no dialeto bruxelense. Em 1979, Geal se lança em uma importante 
inovação.  Na  encenação  de    Geneviève de Brahant,  a  ópera  de  Erick  Satie,  ele  introduz 
atores e cantores ao lado de seus gordos bonecos. Eles foram muito aplaudidos tão logo 
se apresentaram nos palcos da Ópera Cômica, em Paris. Refletindo sobre mudanças de 
maior amplitude, Geal convida Margareta Nicolescu para encenar, no Teatro Toone, As 
Três Esposas de Don Cristóbal, de Garcia Lorca (cenografia: Mioara Buescu, 1985). 
Tal  convite foi sintomático. Em entrevista que fiz  com Margareta  Nicolescu, ela 
lembrou  de  sua  experiência  bruxelense,  e  compartilhou  comigo  as  dúvidas  que  a 
perseguiram  antes  de  começar  seu  trabalho.  Decidida  a  respeitar  a  tradição,  desejava 
igualmente  ser  fiel  a  si  mesma  e  à  sua  estética  pessoal:  eu  eliminei  o  castelete  e  deixei 
apenas  o  platô.  Não  disse  que  mudei  a  tradição:  foi  uma  ruptura  com  a  tradição.  Ela  se  fez 
presente  durante  os  processos  de  teatralização.  Em  seguida,  a  equipe  de  intérpretes  era 
normalmente  submissa  à  voz  do  narrador  (diga‐se  José  Geal)  e  eles  trocavam  entre  si  seus 
bonecos a fim de seguir essa voz). Eu redistribuí os papéis, e para sua grande surpresa eles foram 
solicitados a interprestar os personagens. Eles aceitaram um outro processo de realização teatral, 
era  um  teatro  de  personagens  que  respondiam  às  situações  dramáticas,  aos  eventos  dramáticos 
sugeridos  pelo texto  de Garcia Lorca, interpretado  por  uma única voz,  a de José  Geal.  Sua  voz 
tinha  todos  os  registros,  como  de  costume.  Em  seguida  fabricamos  os  bonecos.  Eu  não  queria 
compra‐los em uma grande loja, onde há milhares de marionetes que podem fazer tão bem o papel 
de  um  cavaleiro  quanto  de  um  rei  ou  uma  vítima.  Confeccionamos  os  bonecos  conforme  a 
identidade  visual  de  cada  personagem,  já  que  a  idéia  do  espetáculo  era  diferente  nos  planos 
plástico  e  estético.  Seu  movimento  se  aproximava  ao  dos  bonecos  de  vara,  mas  eles  tinham  a 
possibilidade  de  tornarem‐se  personagens,  de  não  permanecer  como  efígies.  Meu  trabalho  com 
José Geal como narrador foi muito interessante. José ditava o texto normalmente e a equipe em 
cena seguia seu ritmo, na atitude dos corpos, nas entradas e saídas. Ela seguia o ritmo que ele 
impunha  com  sua  energia  e  sua  voz.  Sugeri  a  ele  que  o  teatro  vive  também  de  silêncios,  de 
mudanças de ritmo e também de precipitações e atrasos. Eu desejava que  trabalhássemos o texto 
com  um  espírito  que  se  aproxima  do  jogo.  Às  vezes  o  jogo  é  gestual,  o  movimento  que  vive, 
permitamos, portanto, que viva, que jogue146.  
Nicolescu  introduziu  um  elemento  do  jogo  dramático  moderno.  Ela  propôs  um 
novo  tipo  de  teatralidade  que  se  exprime  particularmente  pela  utilização  vertical  da 
cena, pelas metamorfoses do espaço e da cenografia, a partir das novas relações entre o 
narrador do texto e os manipuladores dos bonecos. Tal confrontação trouxe à tona todas 
as  diferenças,  às  vezes  imperceptíveis,  entre  teatro  tradicional  e  teatro  artístico.  O 
espetáculo  foi  bem  recebido  pelo  público  e  pela  crítica,  mas  José  Geal  não  repetiu  a 
experiência nem com Nicolescu, nem com outro encenador. Podemos com isso entender 
que  ao  ter  consciência  de  um  limite  possível  para  a  arte  que  ele  praticava,  preferiu 
retornar à prática tradicional.  

                                                 
 Entrevista de Henryk Jurkowski com Margareta Nicolescu em 17 de novembro de 1993 em Charleville‐
146

Mézières.  

133 
METAMORFOSES 

Estes tipos de teatro foram dirigidos cada vez mais freqüentemente por gestores 
ou  por  artistas  cultuados.  Jacques  Ancion,  diretor  do  teatro  Al  Botroule,  em  Liège, 
comprou  a  marionete  de  seu  Tchantchès, uma  personagem  popular  incontornável  para 
todos marionetista valão, em um antiquário onde estavam à venda objetos importantes 
de um famoso marionetista, Pierre Wislet. Em 1989, ele publica uma breve evocação de 
seus vinte e cinco anos de atividade, na qual dá provas de seu senso criativo e de sua 
erudição:  O  que  é  uma  marionete?  Darei  uma  definição  à  lá  belga:  como  bem  sabemos,  a 
marionete  é  uma  matéria  personalizável.  O  miraculoso  na  marionete  é  que  nela  tudo  é  de 
madeira. Exceto a língua. E que ela pode, com a cumplicidade do espectador, animar‐se sobre o 
recital. Pouco a pouco, de objeto ela se torna uma presença – dizia Claudel. Ela não é um ator que 
fala, é uma palavra que age. Contigo, ela têm lugar, soberbamente. 147 
No  boletim  regularmente  publicado  há  quinze  anos,  Ancion  comenta  e  oferece 
extratos  de  textos  literários  em  contato  com  seus  espetáculos.  Eles  constituem  uma 
excelente e prazerosa fonte de documentação de repertório. Eles são também a crônica 
de um percurso artístico.  
Na Itália, Bruno Leone, um dos maiores criadores de Pulcinella em espetáculos de 
rua,  contribuiu  muito  para  a  renovação  desta  personagem  no  teatro  italiano 
contemporâneo.  Consciente  de  sua  missão,  suas  reflexões  teóricas,  comentários  sobre 
seu  papel  e  sua  estrutura  dramática  servem  muito  bem  ao  conhecimento  desta  arte 
pelos  mecenas  culturais.  Os  numerosos  diálogos  e  ações  do  espetáculo  de  marionetes 
constituem  o  desdobramento  e  a  oposição  de  um  mesmo  elemento:  de  um  lado,  Pulcinella,  que 
reúne todos em um, e do outro seu alterego, sob a forma de uma mulher, de um cachorro, de um 
policial, da morte.  Quando falamos dos sentidos ocultos e da origem da marionete, não podemos 
esquecer  que  paralelamente  à  antiga  tradição  que  aborda  temas  universais  da  alma  humana  e 
popular, existe também o caráter da personagem, nascido da aproximação que cada marionetista 
separadamente  mantém  com  seu  público  e  sua  experiência  de  vida.  Em  todo  caso,  temos  dois 
espíritos  e  duas  origens  aparentemente  muito  distantes  uma  da  outra,  mas  tão  estreitamente 
ligadas,  que  separá‐las  seria  absurdo;  o  marionetista tem  um  papel  de  mágico,  que  consiste  em 
formar um todo fundado em um distante saber e na experiência presente.148 
Mimmo  Cutichio,  de  Palermo,  fez  o  mesmo.  Proveniente  de  uma  família 
conhecida  como  pupari  siciliani,  ele  renovou  e  perpetuou  a  tradição  das  marionetes 
sicilianas,  de  modo  que  conservou  o  repertório  e  as  convenções  do  jogo.  Os  irmãos 
Pasqualino,  de  Roma,  procedem  diferentemente.  Giuseppe  Pasqualino  dirige  o  Teatro 
dei  Pupi  Siciliani  dei  Filii  Pasqualino,  para  o  qual  Fortunato  Pasqualino,  conhecido 
escritor italiano, elabora novos textos. Os irmãos Pasqualino conservam as marionetes e 
as  formas  de  jogo  tradicionais,  mas  tentam  aumentar  seu  repertório.  Os  resultados  de 
seus  esforços  nem  sempre  são  convincentes,  mesmo  que  tentem  corresponder  às 
expectativas  do  público  romano.  Podemos  compreender  que  eles  desejem  substituir  o 

                                                 
147 Jacques Ancion, Éloge de la Tringle, Liège, 1989, p.5.  
 Bruno Leone. La Guarattella. Burattini e burattini a Napoli (La Guarattella. Les Guignols et les guignolistes à 
148

Naples). Clueb, Bologne, 1987. 

134 
SOCIEDADE 

personagem  cômico  siciliano  por  um  Pulcinella  mais  popular  e  mais  ativo  no  sentido 
dramático  em  Pulcinello  parmi  les  Sarrasins,  e  adaptar  à  cena  siciliana  o  tema  de  Dom 
Quixote  em  Triomphe, Passion et Mort du Chevalier de la Manche. Mas  daí  a  introduzir  a 
personagem do Pinóquio à corte de Carlos Magno (Pinocchio alla Corte di Charlemagno)! É 
evidente  que  o  teatro  popular,  como  o  feito  por  eles,  não  se  preocupa  muito  com  os 
anacronismos  que,  aos  olhos  do  público,  seriam  uma  figura  de  estilo.  Utilizar 
voluntariamente e com criatividade o anacronismo demanda um difícil equilíbrio entre 
os  temas.  Por  isso,  não  parece  que  as  colagens  de  Fortunato  Pasqualino  tenham 
enriquecido de alguma maneira os temas escolhidos.  
Podemos  nos  perguntar  se  atualmente  existe  algum  tipo  de  espetáculo 
tradicional  que  permanecera  tão  intacto  como  as  representações  da  Natividade.  Na 
Europa  do  Leste,  todos  espetáculos  eram  realizados  por  companhias  autenticamente 
populares. Todos adolescentes de uma vila ou de um burgo conservavam em casa, de 
um ano ao outro, os bonecos e um pequeno teatro (um vertep, um betljka, une szopka149). 
À  época  das  festas  de  Natal,  eles  iam  de  casa  em  casa  apresentar  seu  espetáculo 
cantando  os  cânticos.  Tal  tipo  de  espetáculo  foi  proibido  na  União  Soviética,  por  ser 
considerado  como  uma  propaganda  religiosa.  Na  Polônia  as  proibições  foram  mais 
breves,  e  a  szopka volta  a  figurar  nos  programas  dos  teatros  nos  anos  60,  mas  poucos 
marionetistas  profissionais  se  apoderaram  do  tema.  Russos,  Ucranianos  e  Bielo‐russos 
aguardaram  os  anos  90  para  resgatar  vertep  e  betlejka.  A  tradição  dos  cantores  e  dos 
comediantes camponeses renascerá? Nada é menos certo! 
A situação era diferente no Oeste, onde quase todos os teatros tradicionais (Liége, 
Bruxelas, Roubaix, Cadix) montavam a cada ano a  história do  Nascimento do Menino 
Jesus.  Também  em  Besançon  (com  a  participação  de  Barbizier,  célebre  personagem 
local), o Teatro dês Manches, em Balai, sob a direção de Jean‐René Bouvret, adaptou o 
tema.  Mas  os  marionetistas  que  representavam  a  Natividade  buscaram  sua  inspiração 
fora  do  Evangelho.  Eles  foram  procura‐la  nos  apócrifos,  na  tentativa  de  renovar  a 
tradição  popular  e  misturar  numerosos  anacronismos.  Assim,  o  Menino  Jesus  da 
Natividade de Besançon, nasceu em uma garagem, aonde chegaram os Reis Magos e o 
Ministro  da  Cultura.  Pela  mesma  razão,  em  um  vertep  encenado  em  Kiev  em  1993, 
apareceu um mercador ucraniano que introduziu fraudulosamente os merchandises na 
Polônia.  
Certos  artistas  acreditam  na  possibilidade  de  conservar  uma  arte  popular 
autêntica  e  o  reivindicam,  como Alexandre Passos d’Evora, em Portugal, que fez  uma 
reprise  dos  espetáculos  da  trupe  Bonecos  de  Santo  Aleixo.  A  cenografia  e  os  bonecos 
desta  trupe  representam  uma  tradição  que  remonta  ao  século  XVI  (com  as  varas 
suspensas verticalmente na abertura da cena para esconder as varas dos bonecos), mas 
o tema das histórias é deste século. O último a utilizar tais marionetes foi o camponês 
Antonio Talhinhas, que, nos anos 70, representava o Auto da Criação do Mundo e Auto do 
                                                 
 Henriyk Jurkowski. A History of European Puppetry. From its origins to the end of the 19th century (L’histoire 
149

de  la  marionnette  en  Europe.  De  son  origine  jusqu’`a  la  fin  du  XIXe  siècle).  Edwin  Mellen  Press,  Lewiston  NY, 
1996, p. 291‐300.  

135 
METAMORFOSES 

Nascimento  do  Menino  Jesus.  Em  1979,  o  Conselho  Regional  de  Évora  adquiriu  o  seu 
teatro e seus bonecos, os quais confiou ao Centro Cultural da cidade. É dessa maneira 
que Alexandre Passos recria os espetáculos de Talhinhas e os mostra com sucesso nos 
anos  80,  geralmente  nas  vilas,  sobretudo,  em  época  de  festivais.  Se  Passos  seguia  as 
precisas indicações de Talhinhas, ele não pôde garantir a seus artistas de madeira nem 
seus animadores agricultores sazonais, nem seu público camponês.  Os autos não seriam 
mais  que citações de uma época  que não voltará. Uma peça de museu que de tempos 
em tempos pode ser admirada pelo público. 
Encontramos, assim, duas aproximações da tradição popular. A primeira procura 
conservar as formas do teatro popular ou plebeu na tentativa de reconstituir as formas 
desaparecidas  e  conquistar  um  público  de  conhecedores,  público  o  qual,  em  outro 
tempo,  exerceu  um  papel  considerável  para  manter  este  teatro  vivo.  Numerosos 
marionetistas  preferem  esta  primeira  solução,  visto  que  alguns  conservam  os  teatros 
populares em sua forma antiga e consagram seus esforços a organização de festivais e 
conferências. A segunda aproximação consiste em adaptar e modernizar a tradição ou 
nela inspirar‐se artisticamente. 
NA PERSPECTIVA DO MITO 

A  história  da  cultura  é  uma  lenta  assimilação  da  experiência  continuamente 


renovada da humanidade, desde suas origens. Os antropólogos gostam de dizer que os 
primeiros impulsos datam da era do mito. Felizmente, tal época ainda não terminou! O 
homem ainda é  capaz do pensamento mítico;  ele pode criar novos mitos,  coletivos  ou 
individuais,  e  confronta‐los  à  realidade.  O  conhecimento  do  mundo  também  não  tem 
limites.  A  mitologia  nos  ajuda  a  construir  uma  imagem  coerente,  interrogá‐la  e 
compreendê‐la.  Claude  Lévi‐Strauss  sublinha  que  nada  lembra  tanto  o  pensamento 
mítico  quanto  as  ideologias  políticas.  Ele  se  refere  à  história  da  Revolução  Francesa, 
época  em  que,  segundo  Michelet,  “tudo  era  possível  ...  o  tempo  desaparecera  ...pois  fora 
partido  por  um  raio  de  eternidade” 150 ,  já  que  o  pensamento  mítico  favorece  uma  certa 
liberdade  de  não  se  dizer  a  verdade  total  (o  mito  do  eldorado  americano  ou  do 
comunismo).  
O  pensamento  mítico  é  uma  imagem  que  se  forma  sem  que  busquemos 
inevitavelmente  verificar  sua  autenticidade.  Quando  um  outro  cria  uma  imagem  do 
mundo,  ele  procede  a  uma  operação  cosmológica  (afirma  Umberto  Eco).  O  público 
visualiza  a  imagem,  mas  ela  depende  de  seus  conhecimentos  culturais,  e  assim  o 
público  assume  a  responsabilidade.  Por  analogia,  o  Teatro  pode  muito  bem  se  tornar 
um vasto campo de criação de mitos, e por isso não surpreende que isso o interesse. Da 
mesma  forma  a  psicologia  revelou  novos  aspectos  do  mito;  a  expressão  do 
subconsciente do indivíduo e do inconsciente coletivo se refere à memória psíquica do 
homem, que vive em um mundo de pulsões e de situações primordiais. O mito assim 
perpetuado se manifesta através da arte sob a forma de arquétipos ou de topos. 

                                                 
150 Claude Levi‐Strauss. Anhtropologie structurale. Plon, Paris, 1958, p.231.   

136 
SOCIEDADE 

A  marionete  e  o  teatro  de  marionetes  alimentam  seus  próprios  mitos  e  suas 


próprias  mitologias?  O  tema  é  vasto,  assim  me  limitarei  a  explicar  como  os  diferentes 
aspectos do mito encontram expressão no teatro de marionetes, enquanto o repertório, 
por  sua  vez,  se  alimenta  de  mitos.  Empregamos  o  mito  original,  aquele  que  explica  a 
ordem do mundo: o nascimento dos deuses, dos homens, o destino da humanidade, a 
genealogia  das  instituições  e  as  regras  morais  humanas  expressas  através  de  ritos  e 
rituais,  conservados  até  hoje  pela  narração  e,  de  uma  forma  deformada,  a  fábula.  O 
ritual mítico está na origem do fundo e da forma da arte dramática. Com sua prática, o 
teatro  se  apóia  nos  arquétipos  que  revelam  imagens  subconscientes,  constituem  a 
matéria  da  expressão  artística  sob  a  forma  de  contos  modernos  como  Fausto,  Dom 
Quixote, Don Juan. Ele é alimentado por todos que participam do pensamento mágico e 
vivem os mitos contemporâneos.  
Na  Europa  Central,  por  exemplo,  os  teatros  cultivam  a  tradição  dos  temas  da 
Renascença,  com  Fausto  e  Don  Juan,  enquanto  os  folcloristas  alemães  e  tchecos  do 
século  XIX  enumeraram  um  número  impressionante  de  encenações  no  teatro  de 
marionetes.  Este  tema  continua  a  suscitar  bastante  interesse,  ainda  que  os  meios  de 
expressão mudem. 
Fausto 

O  Fausto  tcheco  encenado  por  Matej  Kopecky,  no  Teatro  Drak,  conheceu  sua 
glória.  Carl  Schröder,  marionetista  de  Dresden,  consagra  sua  vida  à  Fausto,  e  suas 
numerosas realizações se afastam pouco a pouco do apólogo popular para aproximar‐se 
da  concepção  de  Marlowe,  quer  dizer,  de  Fausto  a  procura  de  sua  verdade  sobre  a 
realidade. Schroeder representa sempre o sujeito, desesperado por nunca encontrar seu 
ideal  de  apreender  o  “Espírito  Renascença”  autêntico  da  obra.  151  O  Doktor  Faust 
realizado  por  Helena  Sitar  em  Ljubljana,  em  1990,  inspira‐se  em  uma  encenação  dos 
anos 20 do célebre marionetista esloveno, Milan Klemencic, e reconstitui perfeitamente 
seu estilo.  
Fausto, um dos arquétipos mais importantes da cultura européia, faz parte de um 
grande  repertório.  Já  lembrei  de  L’Etat du Destin de Faust (Stan Losow Fausta, 1966),  de 
Andrzej  Dziedziul,  que  apresenta  uma  visão  misógina  do  mundo.  Quase  vinte  anos 
depois,  em  1984,  o  artista  e  marionetista  Neville  Tranter,  criador  do  Stuffed  Puppet 
Theatre, apresenta Fausto em um outro jogo em Os Sete Pecados Capitais (Seven Deadly 
Sins). Tranter, no início, parece interessar‐se pelas fraquezas da natureza humana. Ele se 
vestiu  como  Mefistófeles,  seus  bonecos  representam  os  sete  pecados  capitais.  Cada 
boneco (pecado) revela suas paixões em um monólogo: o Orgulho, a Luxúria, a Inveja e 
cada um tenta negociar seus desejos, tanto com Mefisto quanto com o público. (A Inveja: 
Deixem‐me  vossos bens,  de  qualquer  maneira  amanhã  vocês  não  estarão  mais  aqui...).  Mas  os 
pecados  aludem  à  presença  de  Fausto  na  sala.  Eles  lhe  falam.  Eles  o  chamam. 
Finalmente  Fausto  cai  nas  mãos  de  Mefisto  e  lhe  arranca  a  máscara  sob  a  qual 
                                                 
 Inge  Borde.  Das  Puppenspiel  vom  Doktor  Faust  (La  pièce  de  Docteur  Faust  à  la  marionette).  Mitteilugegn, 
151

Dresde, 1977, n. 1‐2, p.33.   

137 
METAMORFOSES 

descobrimos  o  rosto  de  Tranter,  que  grita  desesperado.  Tranter  não  propõe  um 
comentário  original  sobre  Fausto,  mas  confirma  o  caráter  metafórico  de  todas  as 
representações existentes.  
Em  1989,  o  Théâtre  du  Fleuve  cede  à  tentação  de  Fausto.  Para  nosso  assombro, 
podemos  reconhecer  uma  filiação  ao  pensamento  misógino  de  Andrzej  Dziedziul. 
Depois de uma perspectiva histórica do sujeito, o espectador se depara com um busto 
decomposto e cortado de Marguerite, para descobrir uma verdadeira máquina infernal. 
Aqui,  tal  visão  surrealista,  barroca  e  a  destruição  de  corpos  humanos  não  servem  a 
outra coisa que a busca das razões do pecado.152  
No  mesmo  ano,  Fausto  foi  representado  com  a  colaboração  de  Jadwiga 
Mydlarska‐Kowal  na  cenografia.  Ele  inclui  o  tema  em  uma  obra  dramática  que 
representa  a  condição  humana  sob  três  ângulos  diferentes.  Esta  encenação  de  Goethe 
coroa  sua  interpretação  moralizante  de  O Processo, de  Kafka,  e  um  comentário  irônico 
sobre  a  metafísica  do  exercício  de  poder  de  Gyubal  Vlleÿat,  de  Stanilaw  Witkiewicz. 
Depois  da  exposição  do  destino  humano,  Hejno  mostra  as  instâncias  que  animam  o 
indivíduo  e  que  ele  reconhece  no  Prologue au Ciel,  de  Goethe,  em  que,  como  sabemos, 
Deus e Mefistófeles apostam sobre o destino de Fausto.  
O  espetáculo  é  encenado  em  muitos  planos,  dentre  os  quais  um  castelo  e  um  teatro 
miniatura arrumado como um interior todo com cortinas negras estendidas. O Prólogo ao céu é 
encenado  em  um  teatro  de  marionetes.  Deus  e  os  Arcanjos  são  representados  com  pequenos 
bonecos brancos, que se parecem com miniaturas de gesso. Nesta companhia, Mefistófeles é um 
joguete,  negro,  encapuzado,  turbulento.  O  teatro  de  bonecos  se  expande.  Mefistófeles  escorrega 
pelo  biombo  com  uma  forma  humana.  Vestido  com  uma  roupa  de  couro  negro  que  se  adapta  à 
suas formas. Apenas sua cabeça e mãos a ultrapassam. Sobre seus ombros, uma capa preta e asas 
de  morcego  de  gaze.  Mefistófeles,  dissimulado  de  serpente,  íncubo  e  sucubo  às  vezes.  Ele  é 
interpretado  por  uma  mulher  e  não  deixa  Fausto  em  nenhum  passo.  É  entre  eles  que  as  coisas 
acontecem e são eles que provocam todos os acontecimentos. Fausto é interpretado por um ator, 
dissimulado  com  uma  toga  de  sábio  que  anima  a  cabeça  e  os  braços  de  um  boneco.  Hejno 
interpreta seu Fausto nestes dois teatros que se enquadram na convenção e são teatro dentro do 
teatro. Neste contexto, tudo é demonstração, experiência e verificação – é um jogo, não é um jogo 
sério. É também o tema de Fausto. 153 
Este  é  um  ponto  em  que  estou  em  desacordo,  ainda  que  este  julgamento  se 
inscreva  na  lógica  da  descrição  do  espetáculo.  ʺTudo  é  jogoʺ,  como  nos  assopra  nosso 
espírito pós‐moderno, mas isso não significa dizer que o jogo não é um jogo sério. Bem 
jogar é um ato muito sério, mesmo que ele não resulte necessariamente em uma ilusão 
cênica.  Dez  dezenas  constituem  um  remarcável  modelo  das  dependências  existenciais 
do homem e dos esforços que ele faz para satisfazê‐las. Ele será jogado por tanto tempo 
quanto o homem se interrogue sobre seu destino. 

                                                 
 Simona  Souckova.  Le  Poème  scénique.  Sur  le  Faust  du  Théâtre  du  Fleuve.  Marionnettes  UNIMA‐France, 
152

n.23‐24, p.50. 
153153 Henryk Izydor Rogacki. Trzy teatry Fausta (Les trois théâtres de Faust). Teatr Lalek, 1990, n.1, p. 10‐11. 

138 
SOCIEDADE 

Don Juan  

O tema literário de Don Juan ultrapassa o de Fausto quanto ao número de peças 
escritas.  Mas  o  tema  parece  ter  perdido  boa  parte  de  sua  força  em  função  de  suas 
inumeráveis  variações.  Em  uma  delas  aparece  um  Don  Juan  velho  que  perdeu  seu 
charme juvenil. A revolução dos costumes também reduziu a importância do problema 
colocado  por  este  sedutor.  No  entanto,  os  teatros  continuam  montando  Don  Juan  por 
diversas  razões:  para  renovar  algum  costume  religioso  local  (na  Espanha),  para 
recuperar o estilo do teatro popular (na República Tcheca e na Polônia), para retomar o 
tema das melhores versões literárias. 
Nas  interpretações  populares  de  Don  Juan,  o  elemento  aventureiro  figura 
primeiro no século XVIII, montado por uma companhia de marionetistas amadores. A 
encenação  do  texto  de  Molière  por  Dominique  Houdart  (1984)  não  renovou  esta 
tradição,  ele  se  interessa  pela  arte  barroca  na  qual  o  mito  de  Don  Juan  se  inscreve 
naturalmente.  Segundo  Houdart,  Don  Juan  não  existe.  Ele  nada  mais  é  do  que  uma 
máscara,  sucessivamente  sedutora  e  atéia,  audaciosa  e  desonesta.  Além  disso,  ele  não 
tem rosto, apenas uma luz, um reflexo, uma armadilha, uma ilusão barroca. Por isso ele 
não pensou em fazer uma encenação moderna do tema, mas teatralizar o mito tal como 
o entendiam Molière e Mozart, e, bem entendido, Houdart ele mesmo: o comediante está 
presente, ele é o homem contemporâneo que faz reviver o mito de Don Juan, que o coloca em cena. 
Ele é o mestre de cerimônia; o ator lúcido do papel que interpreta, a serviço do mito que se jogam 
aos outros, a sociedade, a moral, a religião, Deus. 154 
Mitos e folclores 

É difícil invocar a tradição quando o mito e suas funções universais são também 
afirmados. Os mitos ontológicos existentes remontam ao estado de formas primárias e 
imutáveis. Os arquétipos literários estão à disposição dos artistas que se deparem com 
seu  conteúdo,  para  explicá‐lo  ou  racionalizá‐lo.  Depois  de  múltiplos  ensaios,  eles 
utilizam a  força do mito para extrair uma explicação secundária (Fausto misógino) ou 
expiatória  (Don  Juan  não  existe).  Através  do  percurso  do  repertório  destes  dois 
arquétipos que são Fausto e Don Juan, a marionete clássica se afirma como responsável 
pelas versões populares de seu mito e os marionetistas progressivamente incorporaram 
diversos  elementos  da  modernidade  em  seus  espetáculos.  No  Teatro,  numerosos 
artistas  fizeram  o  mesmo  retorno  às  fontes,  como  Henri  Cohen,  Emil  Burian,  Leon 
Schiller,  Giorgio  Strehler,  ...  No  teatro  de  marionetes,  lembramos  a  atividade  de  Julia 
Slonimska, de São Petersburgo, e a dos encenadores tchecos e poloneses. Na República 
Tcheca, os bonecos de varas tradicionais seriam utilizados para montar o repertório do 
renascimento  nacional  no  espírito  da  tradição.  As  peças  patriotas  atribuídas  a  Prokop 
Konopasek  (Oldrich  et  Bozena)  e  as  de  Jan  Lastovka  (um  ciclo  de  peças  sobre  o  chefe 
hussita  Jan  Zizka)  seriam  particularmente  apreciadas  pelos  teatros  e  público  tchecos, 
apresentadas com os grandes eventos glorificados pela lembrança da grande época. Os 

                                                 
154 Dominique Houdart. Dom juan. Compagnie Dominique Houdart. Marionnettes UNIMA‐France, n.3, p.14. 

139 
METAMORFOSES 

marionetistas  tchecos  não  tiveram  a  chance  de  que  este  tipo  de  emoção  pudesse  ser 
evocada pelos espetáculos de marionetes? 
Na  Polônia,  a  ligação  com  a  tradição  da  marionete  se  exprime  pela  memória 
coletiva  da  szopka,  cujas  interpretações  religiosas  são  inumeráveis.  Seu  lambe‐lambe 
(um teatro em miniatura desmontável) freqüentemente serviu de modelo, notadamente 
para  as  cenografias  de  Adam  Kilian  e  de  Ali  Bunsch.  Nos  beneficiamos  com  grandes 
encenadores  do  teatro  como  Leon  Schiller  e  Kazimierz  Dejmek,  e  do  teatro  de 
marionetes  polonês,  como  Stanislaw  Ochmanski,  cujo  grande  sucesso  foi  Tryptique 
Vieille‐Pologne  (Tryptik  staropolski,  cenografia:  Zenobiusz  Strzelecki,  1972).  O  texto 
retoma temas muito populares do teatro barroco da Europa central: Judyta e Holofernes 
(Judyta  i  Holofernes),  O  Filho  Pródigo  (Syn  Marnotrawny)  e  A  Decapitação  de  Dorotéia  a 
Mártir  (Sciecie  Panny  Doroty).  O  contraste  da  linguagem  histórica  com  as  marionetes 
estilizadas  teve  um  efeito  revelador,  o  mesmo  que  a  transcrição  de  composições 
barrocas  de  Stefan  Sutkowski.  Mas  o  grande  valor  do  espetáculo  é  manter  sua 
mensagem universal e atual, que não se perde em uma reconstrução estilística. Poderia 
ela servir de modelo para tratar o repertório antigo? 
A ópera barroca 

É neste espírito que, nos anos 80, a Ópera Barroca para marionetes suscita uma 
certa  efervescência?  Particularmente,  as  óperas  francesas  e  italianas,  para  as  quais 
alguns  artistas  fizeram  um  trabalho  de  pesquisa  e  reconstrução  histórica,  chegando  a 
reconstruir um teatro de marionetes barroco. Assim, Vasa Marionette Opera, de Malmö, 
monta Girello, de Filippo Accaioli, sobre a música de Jacopo Melani. Les Menus Plaisires 
du Roy,  da  Bélgica, L’Ombre du Cocher Poète, Pierrot Romulus ou Le Ravisseur Poli, de Le 
Sage e de Orneval. Na origem destas iniciativas, respectivamente o compositor Gabriel 
Bania  e  o  músico  e  musicólogo  Jean‐Luc  Impe.  O  primeiro  espetáculo  respeita  as 
convenções da ópera italiana do fim do século XVII, o segundo figura entre as primeiras 
experiências  da  ópera  cômica  na  França,  por  volta  de  1720.  Bania  e  Impe,  com  muita 
intuição,  observam  atentamente  o  acento  sobre  a  interpretação  musical  (com 
instrumentos antigos) e distinguem o programa de música vocal e instrumental, que se 
desenvolvia  na  frente  da  cena  ou  no  limite  das  coxias,  da  ação  cênica  das  marionetes. 
Tudo leva a crer que é, com efeito, assim que as marionetes se apresentavam em cena 
como ilustração animada da música. Observamos este mesmo interesse pelo barroco em 
Portugal, onde tentaram fazer renascer a obra de Antonio Jose da Silva, excelente autor 
de óperas do início do século XVIII. Da Silva compôs a maior parte destas óperas para 
marionetes e popularizou as tradições italiana e francesa em Portugal. As companhias 
de  marionetes  portuguesas  montam  freqüentemente  tais  obras.  A Vida de Ésopo (La Vie 
de Ésope, 1991),  encenada  pelo  Teatro  de  Marionetes  de  Porto,  parece  ser  o  espetáculo 
que mais se aproxima dos espetáculos antigos, mesmo que os animadores à vista e seu 
jogo  interativo  com  o  público  reflitam  as  tendências  modernas  do  teatro.  Da  Silva 
explorou  muitos  temas  populares,  como  Dom  Quixote,  Medéia  e  Anfitrion,  que 
traduziam bem o espírito do teatro barroco. 

140 
SOCIEDADE 

A  experiência  diacrônica  da  cultura  é  um  fato  evidente.  Tão  evidente  quanto  a 
utilização  feita  do  patrimônio  dos  séculos  precedentes.  Tal  regra,  uma  das  mais 
importantes da evolução da cultura, concerne todos os domínios da arte. Neste plano, a 
experiência  dos  artistas  marionetistas  nada  tem  de  extraordinária  que  pudesse 
distinguir a particularidade do teatro de marionetes. Salvo uma coisa: certas formas de 
arte  tradicional  ainda  são  persistentes  enquanto  que  outras  desaparecem  sob  nossos 
olhos. Elas se distanciam pouco a pouco e a lembrança de seu esplendor tem ainda um 
caráter  mítico.  Qualquer  que  seja  a  forma  estilística  do  teatro  tradicional,  com  um 
espírito  de  continuidade  ou  de  reconstituição,  ela  permite  ao  teatro  de  marionetes 
permanecer fiel aos arquétipos e aos mitos literários, que nada perderam de sua força. 
Qual é então o lugar da mitologia dentro do repertório do teatro de marionetes e de que 
maneira ele reage aos mitos contemporâneos? 
Mitos de origem 

O teatro de marionetes, neste último quarto de século, mostrou‐se extremamente 
sensível  aos  temas  míticos.  Os  mitos  não  saíram  de  cartaz:  Gilgamesh,  A  Ilíada  e  A 
Odisséia, o Kalevala, a Canção dos Nibelungos, Râmâyana, Mahabhârata, os mitos esquimós, 
africanos, indianos, os mitos do povo da Sibéria, etc. 
Os criadores são animados por diversas intenções, mais freqüentemente atraídos 
pela  aventura  que  propõe  o  mito,  do  que  pelo  mito  ele  mesmo.  Ele  permite  expressar 
uma  opinião  sobre  os  problemas  contemporâneos  (como  A  Ilíada  na  encenação  do 
Teatro  Il  Carretto),  mas  é  raro  que  o  mito  seja  um  quadro  da  história  do  homem,  da 
Gênese ao Apocalipse, como em Gilgamesh, do Teatro Gioco Vita. Tal epopéia é um mito 
cujas origens se perdem na noite dos tempos e mantém ainda hoje um valor universal. 
Podemos opô‐lo aos mitos locais que cumprem as mesmas funções e que, para alguns, 
preservam um elemento importante da identidade nacional. O mito local ou universal 
não  é  apenas  uma  fábula  ou  uma  aventura,  mas  uma  obra  cosmogônica.  O  teatro  e  a 
marionete  apreendem  a  partir  deste  momento  a  verdadeira  função  e  a  verdadeira 
significação:  uma  visão  do  homem,  de  seu  destino,  suas  aspirações,  sua  moral,  uma 
reflexão  sobre  a  ordem  cósmica  ou  sobre  a  identidade  nacional,  como  foi  o  caso  de 
Kalevala, na Finlândia na época romântica, e mais recentemente nos países bálticos (sob 
o poder soviético), particularmente na Lituânia. 
As  lendas  lituanas,  balançadas  por  temas  míticos,  são  o  centro  de  interesse  de 
Vitalis  Mazuras,  do  Teatro  de  Marionetes  Lele,  em  Vilnius.  Le Petit  Canard  de  Cendres 
(1971)  é  uma  lenda  e  uma  fantasia  infantil.  Le  Garçonnet  Enchanté  (1974),  ainda  que 
apresentada  em  versão  para  crianças,  oferece  uma  perfeita  possibilidade  de  penetrar 
nos  mistérios  da  cultura  lituana.  O  primeiro  espetáculo  tem  uma  dimensão  simbólica. 
Sugite,  uma  pequena  órfã  abandonada,  termina  por  desaparecer  nas  chamas.  De  suas  cinzas 
nasce  um  patinho  cinza.  Desde  o  começo  da  peça,  Sugite  leva  uma  vida  sagrada.  Ela  é 
representada  como  um  ídolo,  vivendo  em  uma  cabana  de  madeira.  O  irmão  de  Sugite  é  um 
cavaleiro  imóvel,  um  centauro  sem  força  e  sem  vontade.  Abaixo  deste  mundo  prisioneiro  do 
destino,  surge  o  espaço  de  forças  impuras.  Elas  dominam  a  natureza  e  determinam  a  sorte  do 
homem. Mas ele pode renascer simbolicamente de suas cinzas, como o pequeno pato pardo Sugite. 

141 
METAMORFOSES 

Lê Garçonnet Enchanté é um sujeito lírico, a projeção do psiquismo de uma criança que 
tenta  organizar  o  mundo  a  sua  volta.  Este  mundo  aparece  sucessivamente  à  criança  sob  a 
forma  de  uma  Criatura  de  camisa  vermelha,  de  Mulheres  adornadas  de  cinza,  ou  de  Irmãos 
lavradores. O menino confia em seus amigos. Seus amigos lhe constroem uma pequena casa, uma 
capela  sobre  um  apoio  que  se  torna  o  modelo  do  mundo  e  um  ponto  de  apoio;  um  sincretismo 
popular que associa temas pagães a sua sublimação cristã. 
Estes dois espetáculos são uma adaptação de temas e de lendas populares, mas 
sua significação é determinada pela problemática do mito e suas relações com o mundo 
contemporâneo. O aspecto original do mito desapareceu porque Mazuras desejava fazê‐
lo  exercer  outro  papel.  Ele  não  revelou  apenas  a  origem  da  comunidade  lituana,  mas 
também  uma  mensagem  otimista  para  passar  a  seus  contemporâneos.  Na  época,  a 
Lituânia ainda não tinha recuperado sua independência.  
O eterno retorno 

O  mito  se  realiza  através  do  ritual  que  constitui  uma  experiência  religiosa 
comum e coletiva. É  do ritual que nasceu o teatro e o retorno atual à cerimônia ou ao 
rito  não  representa  uma  reviravolta  na  concepção  de  teatro.  Artaud  exigiu  o  primeiro 
retorno  ao  rito  e  foi  amplamente  regular,  ao  menos  na  intenção.  Os  artistas 
contemporâneos  que  se  apóiam  no  mito  como  fonte  formal  ou  como  forma  de 
apresentar um comportamento coletivo, mudam a direção de seus verdadeiros valores e 
a  transpõem  para  a  vida  atual,  privada  de  sacralidade.  Os  teóricos  do  mito  e  os 
historiadores  da  religião155 não  estariam  de  acordo,  eles  que  consideram  o  mito  como 
expressão  das  tendências  religiosas  do  homem,  como  revelador  dos  lugares  com  as 
forças  do  cosmos,  como  portador  do  ʺsagradoʺ  em  oposição  ao  ʺprofanoʺ  de  uma 
civilização  racionalista  e  laica.  A  utilização  do  mito  no  teatro  é  expressão  de  uma 
experiência  com  o  sagrado,  é  a  aspiração  a  uma  perspectiva  cosmológica  ou  é  uma 
pesquisa de temas atraentes? Quanto ao rito, os teatros utilizam esta forma em nome de 
uma experiência e de uma prática comuns ao sagrado ou vêem uma estrutura original 
que permite um jogo interativo com o público? 
O  rito  contemporâneo  pode  ter  uma  função  cultural.  O  boneco  o  testemunha 
através  da  experiência  da  trupe  Den  Bla  Hest  (O  Galo  Azul),  dirigida  por  Alexandre 
Jochwed, em Aarhus, que intenta representar as funções culturais da marionete através 
dos usos e costumes no curso da história: Memórias de Boneco (Mémoires de Marionnette, 
1990).  O  grupo  de  artistas  que  participou  dos  diferentes  ritos  representa  a  memória 
cultural  da  marionete.  Assim,  o  público  a  vê  nascer  como  um  ídolo  de  madeira  e 
acompanhar o homem em seus papéis de cândido ou de bom pastor, em suas tentativas 
de  relacionar‐se  com  a  divindade,  que  recebe  por  sua  vez  tantas  homenagens  quanto 
ridicularizações,  tanta  veneração  quanto  desprezo.  Ao  manipular  seus  bonecos,  os 
homens  transformam  a  si  mesmos  em  autômatos  que  se  lançam,  como  Pinóquio,  a 

                                                 
 Mircea Eliade. Le Sacré, le mythe, l’histoire. Recueil d’essais. Panstwowy Instytut Wydawniczy, Varsovie, 
155

1970.  

142 
SOCIEDADE 

procura  de  sua  própria  humanidade,  ou,  ao  contrário,  buscam  seu  golem  tal  como  os 
alquimistas.  
O  espetáculo  prova  que  o  boneco  está  presente  em  toda  a  cultura  humana,  ele 
explica  nossos  sonhos  e  aspirações.  Seu  conceito  está  associado  ao  mito  e  aureolado 
pelo rito. É assim que encontramos o tema da crucificação no episódio do Carnaval dês 
Fous. A dança dos bufões mascarados é interrompida pela intervenção de um castelete 
de  bonecos  de  varas  acima do paravento, entre eles, um Jesus crucificado que  carrega 
um  boné  com  sinos  de  bufão.  Que  o  sagrado  seja  transformado  em  chacota  neste 
ambiente  de  carnaval  choca  e  emociona,  tanto  mais  quanto  o  gozador  é  tocado  pela 
força  do  símbolo  que  ironizava:  suas  mãos  não  dão  mais  conta  de  carregar  o  fardo 
sagrado e a Cruz pouco a pouco afunda e desaparece.  
Este espetáculo, onde o rito é mais uma forma de expressão que uma experiência 
comum, não faz renascer a  comunhão  dos valores espirituais. Ela não  se aproxima  do 
sagrado.  Pelo  contrário,  ao  julgarmos  pelo  fim  da  peça,  ela  denuncia  principalmente 
nossa  incapacidade  de  entendê‐lo.  A  incapacidade,  mas  também  a  insuficiência  e  a 
solidão. Tal solidão de que o homem tem consciência é que está na origem de sua força 
e de sua dignidade. O tom profano é assim profundo e pleno de expressão. Isto é muito 
perceptível no domínio do boneco. Björn Fühler, artista sensível aos valores espirituais 
da  cultura,  percebeu  uma  interessante  coincidência  entre  a  laicização  da  arte  e  o 
abandono da muito antiga noção do bonceo: Tal evolução do profano em todos os domínios 
da arte conduziu, pouco a pouco, à das expressões puramente subjetivas. Que forças veiculamos 
então para a mediação de nossos bonecos, formas animadas e objetos? Já constatamos uma certa 
reticência no emprego da palavra ʺbonecoʺ. Fala‐se em teatro de figuras ou de objetos. Pode ser 
que  assim  se  deseje  afastar‐se  mais  ou  menos  conscientemente  de  um  aspecto  religioso  e 
tradicional do teatro de bonecos, substituído pelo preconceito de que se trata de uma arte infantil.  
Por  outro  lado,  as  formas  utilizadas  são  freqüentemente  despersonalizadas,  os  rostos 
perdem sua intensidade de personagem em suas fisionomias. Os objetos animados ou de formas 
mais abstratas sugerem a pista de uma presença e substituem a efígie humana ou animal. Eles 
não são contudo eternos, pois se tornam novamente signos no sentido forte do termo. Podemos 
reconhecer tal processo em outros domínios da arte: as formas de expressão são ʺliberadasʺ dos 
restos  de  seu  aspecto  tradicional  e  pudemos  assistir  a  uma  explosão  de  todos  tipos  de 
experimentações. Foram rompidos os pontos da tradição religiosa ou mágica com seu saber fazer 
específico, cada um retira forças de sua relação individual com as forças que o envolvem ou que o 
habitam, mais ou menos levado pela evolução rápida de nossa civilização.156 
Esta opinião pode parecer errônea ao observarmos a atração suscitada pelo mito 
e o  rito  no teatro  de  bonecos  e no teatro. Mas não teríamos razão ao julgá‐la  assim. O 
mito entra no teatro como tema atraente, como elemento de colagem dramática, como 
forma de espetáculo ao qual freqüentemente falta uma dimensão sagrada. Mesmo laica, 
a  utilização  do  mito,  do  mistério,  do  rito,  é  um  meio  de  agir  sobre  o  inconsciente  do 

                                                 
 Björn  Fühler.  La  Marionnette,  objet  de  transmssion  du  sacré.  Marionnettes.  UNIMA  –  France,  n.  17‐18, 
156

p.50. 

143 
METAMORFOSES 

público  e  detém,  assim,  importante  valor  estético.  Hejno  toma  emprestada  esta  via  e 
representa a experiência humana como um mistério equivalente às mensagens místicas. 
La  Tragicomédie  de  Calixte  et  de  Melibée  (La  Célestine),  de  Fernando  Rojas  (cenografia: 
Eugeniusz  Stankiewicz,  1983),  abre‐se  sobre  uma  procissão  religiosa,  um  cortejo  de 
artistas.  A fachada religiosa do século XV dissimula  os desejos da  carne,  a qual  clama 
por  seus  direitos  e  oferece  assim  uma  chance  aos  intermediários,  o  que  provoca  uma 
catástrofe, já que trata de verdades amorosas. Da mesma forma, em O processo, de Franz 
Kafka  (cenografia:  Jadwiga  Mydlarska‐Kowal,  1985),  Hejno  e  Mydlarska  utilizam 
bonecos hiper‐realistas manipulados à vista pelos atores, evocando a técnica do ningyo 
joruri. As representações têm um caráter simbólico e fazem implicitamente referência ao 
Último Julgamento, de Leonardo da Vinci, e a uma capela ardente, signo de memento mori 
(lembrança  para  a  morte).  A  simbólica  se  transpõe  em  momentos  aos  bonecos, 
particularmente nas cenas eróticas, em que o corpo da mulher se abre completamente, 
aureolado de vermelho. Os meios utilizados na obra sublinham as emoções dos heróis e 
revelam  suas  reações  íntimas  ou  então  seu  exame  de  consciência.  Hejno  renuncia  às 
interrogações existenciais de Kafka. A pressão do mundo exterior e a culpa por existir 
cedem ao desejo do homem de acertar suas contas consigo mesmo. O desenvolvimento 
transformou‐se em um apólogo moderno que possui uma dimensão psicológica.  
Fühler  remarcaria  esta  importante  evolução.  Assim,  ao  nos  distanciarmos  do 
mito, ao nos voltarmos para a perspectiva cosmológica, nos voltamos para nós mesmo, 
para  nossas  experiências  pessoais,  subjetivas.  O  mito  do  sagrado  é  substituído  pelos 
mitos  individuais.  No  mais,  a  psicologia  contemporânea  tem  um  efeito  secundário  de 
produzir alienação. Ao nos revelar nossa vida psíquica inconsciente, ela não revela em 
nós  o  sentimento  de  uma  comunhão  do  destino  humano,  mas  fornece  instrumentos 
para  definirmos  nossas  emoções  pessoais.  Tal  fenômeno  não  diz  respeito  somente  ao 
teatro  de  bonecos,  mas  ao  conjunto  da  arte  contemporânea.  A  psicologia  exerce  um 
importante papel nas imagens evocadas, nos processos que são a experiência, a criação 
e a verdade. Graças aos artistas fomos beneficiados por essa tomada de consciência. 157 
Eles têm o sentimento de desbravar forças desconhecidas e obscuras de nossos instintos, 
mas  rejeitam  a  terminologia  extrema  da  psicanálise,  que  associa  a  origem  dos 
desequilíbrios a problemas da libido. 
Desde  o  teatro  de  bonecos  aos  meios  de  expressão  variados,  o  mito  de  Narciso 
exprime perfeitamente o fato de que o boneco, dominado por seu manipulador, aspira a 
exprimir  seu  talento  e  sua  vida  interior.  O  narcisismo  é  uma  característica  da  arte 
contemporânea  e  compreendemos  que  ele  determina  facilmente  o  sarcasmo  dos 
filósofos.  O  aforismo  de  Cioran,  o  qual  é  necessário  apreendermos  com  precaução,  é 
rápido sobre o sujeito: como os meios de expressão são utilizados, a arte se volta na direção do 
sem sentido, de um mundo privado e intransmissível. A chama daquilo que é inatingível, seja na 
pintura, na música ou na poesia, se apresenta neste momento arcaico e vulgar. O que é público 

                                                 
157 Ver apontamentos da entrevista de Henryk Jorkowski com Paska em 1/07/93. Manuscrito.  

144 
SOCIEDADE 

desaparecerá e, em breve, a arte conhecerá o mesmo destino. Uma civilização que começou com 
suas catedrais, terminará sob o mesmo hermetismo da esquizofrenia.158 
Teatro dos estados da alma 

Com distanciamento e sem exagero, constatamos que os espetáculos com temas 
psicológicos  fazem  uma  entrada  distinta  no  teatro  de  bonecos,  onde  o  boneco  estava 
restrito  a  não  exprimir  mais  que  comportamentos  exteriores.  Nos  Estados  Unidos,  o 
primeiro artista a exprimir suas obsessões com os bonecos foi sem dúvida Robert Anton. 
Entre 1960 e 1987, no seu estúdio da East‐Village, em Nova Iorque, ele encena diante de 
um público restrito, composto em sua maioria por convidados. Anton manipula a vista 
os bonecos de cerca de 25cm, de luva e de varas. O espetáculo apresentado em uma de 
suas turnês pela Europa o tornou célebre. Os dezoito espectadores, escreveu Guy Dumur 
sobre  uma  das  apresentações  no  castelo  de  Vincennes,  em  Paris,  sentam‐se  sobre  a 
bancada,  todos  contra  uma  espécie  de  balcão  atrás  do  qual  aparece  apenas  metade  do  corpo  de 
Robert  Anton,  vestido  com  um  veludo  negro,  o  rosto  grave  e  tenso.  A  mão  recoberta  com  um 
lençol preto, ele tem na ponta de seu dedo indicador minúsculas cabeças de 3 cm de altura, muito 
realistas  e  freqüentemente  articuladas:  as  bocas  abrem‐se  para  sorrir,  os  olhos  podem  ser 
arrancados,  as  mãos,  não  maiores  que  uma  unha,  complementam  as  representações 
antropomórficas que são um dos aspectos da arte de Robert Anton. 159 
Anton é como um deus do outro lado de suas criaturas, que dele escapam e a ele 
voltam em seus momentos de desespero. Seu espetáculo é como um rito, um mistério e 
uma cerimônia. Anton parece em transe, sua atenção é concentrada nos bonecos como 
se os personagens o conduzissem a lugares desconhecidos e inesperados. Ele às vezes é 
o criador de sua peça e um tipo de espectador privilegiado. Ele preside suas ações mas 
não  as  controla  plenamente  160 e  faz  uma  demonstração  de  possíveis  diferentes 
metamorfoses.  Uma  ʺdama  de  lixoʺ  põe  um  ovo  que  se  transforma  na  cabeça  de  um 
homem sem rosto, o ovo abre, dele sai um ʺpássaro fêmeaʺ que abandona sua máscara 
de bico e descobre seu rosto de ʺcantoraʺ altiva. Quando Anton a compara com a cabeça 
do pássaro abandonado, ela foge, aterrorizada161. Anton impõe a seus personagens um 
ritmo  de  metamorfose  infernal.  Ele  as  confronta  com  seu  ser  inibido  ou  abandonado, 
provocando  comportamentos  excessivos  e  surpreendentes.  Ele  cria  um  universo  de 
criaturas  fantásticas  no  qual  não  podemos  nos  impedir  de  ver  os  símbolos  de  nossos 
próprios traumas.  
Nos Estados Unidos, Roman Paska o sucede. Ele faz suas primeiras aparições em 
festivais  europeus  nos  anos  80,  em  que  apresenta  Linha  de  Vôo,  uma  peça  sobre  a 
iniciação e a identificação. Ela constitui a primeira parte de uma trilogia (as duas outras 

                                                 
158 E.M.Cioran. Aforyzmy (Aforismos). Czytelnik. Varsovia, 1993. Trad. De Joanna Ugniewska.  
159 Guy Dumur. La divine comédie de Lilliput. Le Nouvel Observateur, 11 de outubro de 1976.  
 David Rieff. Anton’s Agon. Life, 6/7, 1982, p.38‐39. Citado por Stephen Kaplin, Signs of life: an analyses of 
160

Contemporary Puppet Theatre in New York City. 1989, p.58.  
161 Stephen Kaplin. Signs of life: an analyses of Contemporary Puppet Theatre in New York City. 1989, p.58. 

145 
METAMORFOSES 

foram  Ucchelli: As Drogas do Amor e  O Fim do Mundo, que  terminam  com  o  triunfo  da 


dor de viver, primeira piada com final feliz). Paska é perfeitamente consciente ao exprimir 
os  problemas  de  sua geração.  Se  esses  espetáculos  podem  evocar  ritos  simbólicos,  são 
ritos intelectuais. Ele se questiona indefinidamente sobre a arte do teatro de bonecos e 
sobre a sua arte em particular. Ele não vê sua criação como um psicodrama pessoal. Eu 
gostaria que minhas peças tivessem um valor universal, no bom sentido tradicional do termo. É 
verdade  que  me  interesso  pelos  problemas  psicológicos.  Todas  minhas  peças  tratam  da 
consciência de si porque eu busco voluntariamente introduzir o drama psicológico no teatro de 
bonecoes. Com efeito, tenho chamado vários de meus espetáculos de ʺpequenos dramas mentaisʺ, 
o  que  pode  soar  bonito  ou  elegante  demais.  Pelo  que  eu  saiba,  a  psicologia  tem  uma  enorme 
influência  sobre  a  arte  do  século  XX,  para  não  se  dizer  que  sobre  a  toda  a  arte.  O  prazer 
intelectual  tanto  quanto  os  estudos  sobre  a  vida  psíquica  têm  fascinado  nossa  civilização  em 
muitos  aspectos,  e  é  isso  que  faz  com  que  o  americano  médio  hoje  em  dia  chegue  em  casa  e  se 
plante todas as noites diante da televisão para assistir a dramas psicológicos de uma banalidade 
aflitiva. Um filme policial em que o policial tente entender os motivos do crime porque este ato é a 
expressão dos problemas psicológicos do criminoso... 
Penso que é por isso que eu faço, existem boas razões, socialmente aceitáveis. Creio, como 
os budistas, que transformar a vida não é possível se não através do pesar do desenvolvimento da 
vida psíquica. Creio que é resolvendo tais problemas pessoais que podemos resolver os problemas 
sociais162. 
Paska  desenvolve  sua  arte a  partir de modelos indonésios quanto  à  maneira  de 
atuar  e  interpretar  o  texto.  Ele  a  apresenta  como  uma  espécie  de  ʺdalangʺ  americano 
moderno.  Ele  empresta  sua  voz  aos  personagens  que  anima  sozinho  com  um  cabo 
fixado na cabeça do boneco e varas para os braços. Uma vez dado o tema do espetáculo, 
ele deve abandonar, como Richard Teschner antes dele, os bonecos ʺjavanesesʺ demais 
por marionetes cuja expressão, acessórios e símbolos pertençam à civilização européia e 
americana.  
Terceiro  concorrente  da  América,  descoberto  por  ocasião  de  sua  turnê  pela 
Europa,  o  marionetista  Eric  Bass.  Sob  o  charme  e,  pode  ser,  sob  a  pressão  de  suas 
origens  judaicas  e  de  sua  herança  familiar,  é  neste  contexto  que  elabora  a  metáfora 
sobre  a  relação  do  homem  com  seu  passado  e  sua  herança.  Bass  tem  uma  visão  de 
mundo sublimada pela nostalgia. Seu universo é o do paraíso perdido.  
Ele  inicia  sua  carreira  em  1970,  com  a  criação  de  três  espetáculos:  Retratos  do 
Outono, Areia e Convites para o Céu. Todos evocam as lembranças da infância, inspirados 
no folclore judaico e na distante felicidade do passado. Areia (1985) distingue‐se dentre 
estas três obras porque tudo reside no mundo das lembranças, ele evoca o problema do 
tempo que passa e assume uma dimensão mais universal.  
Em cena (de um teatro em miniatura) uma mulher e depois um homem (atores) sonham. 
A  cenografia  é  em  tons  amarelos  e  marrons,  que  aos  poucos  se  tornam  verdes  e  amarelos.  O 
amarelo é a cor da areia, ela está por tudo, ela flui na ampulheta, derrama e se espalha sobre a 
                                                 
162 Entrevista de Henryk Jurkowski com Roman Paska, 1 de julho de 1993 (manuscrito). 

146 
SOCIEDADE 

cena, e finalmente dela saem todos os personagens. A areia é o tempo. Os que dormem sonham 
com  seus  ancestrais,  ao  menos  as  duas  últimas  gerações.  Aparecem  ao  lado  deles  criaturas  e 
objetos simbólicos: serpentes, uma galinha (como em Bruno Schulz), uma mulher‐ampulheta, um 
pequeno  cordeiro,  um  menorah  (candelabro  de  sete  braços),  que  mudam  de  dimensões.  É  uma 
história mais longa, a encenação de uma canção israelita que conta a história de uma andorinha e 
de  um  bezerro  conduzido  ao  abatedouro  em  uma  charrete  e  que  vê  o  carrasco  encapuzado  se 
aproximar.  O  bezerro  grita  de  desespero.  A  areia  flui  da  charrete.  Percebemos  o  crânio  de  um 
animal na areia. É o tempo perdido – o paraíso perdido. Acima do homem que dorme aparece um 
pássaro da noite, talvez o pássaro do tempo. Ele ataca o homem. Mas a mulher chega para sua 
segurança. O homem lhe estende uma ampulheta. Ela a transforma em dois vidros. Eles bebem 
(areia) pela eternidade. Existem outras personagens. A areia flui de boca em boca. É a comunhão 
das gerações. Uma ampulheta turbilha pelos ares. 
Bass  representa  o  tema  de  suas  experiências  e  de  suas  emoções  em  A  Vila  das 
Crianças,  de  1993.  Este  espetáculo  se  desenvolve  em  dois  espaços  cênicos  e  apresenta 
duas  histórias  aparentemente  sem  ligação.  Elas são ligadas pela personagem principal, um 
homem moderno preso pelo desejo de voar pelos ares, e uma história extraordinária que se passa 
em sua própria casa, onde Bass (o homem) apanha um pássaro que se transforma o quanto antes 
em um filhote. Sua presença provoca a vinda de outros pássaros que enchem a casa e terminam 
por ser objeto de uma exterminação. Na última cena, vemos ʺnossoʺ homem semi‐nu diante da 
janela,  gradeada,  os  pássaros  não  podendo  mais  entrar.  Enquanto  o  homem  tem  em  suas  mãos 
um  pássaro,  signo  da  reconciliação  que  podemos  compreender  também  como  um  convite  ao 
respeito à energia espiritual.  
Esta  polissemia  torna  o  espetáculo  hermético,  e  Bass  responde  que  a  peça  é 
inspirada  no  holocausto,  pelas  almas  inquietas  de  pessoas  assassinadas:  se  lançarmos 
sobre  ela  um  enfoque  político,  veremos  a  história  da  exterminação.  Mesmo  que  ela  tivesse  sido 
inspirada pelas imagens provindas de uma cultura específica, tais imagens funcionam também, 
como já mostrei, no nível de outras culturas. Para fora do nível político, existe também um nível 
psicológico:  qual  é  a  mentalidade  do  exterminador?  Qual  é  o  papel  da  memória  cultural  (da 
memória  em  cada  cultura)?  E,  em  seguida,  um  nível  espiritual:  podemos  obter  uma  Redenção 
espiritual?  E  há  também  o  nível  da  obra  ela  mesma:  o  artista  e  sua  própria  metáfora  (seu  eu 
pessoal): como o artista pode atingir o sucesso com sua obra (com seu ʺvôoʺ, se ele fecha o guichê 
de sua consciência?)163. 
Objetivar uma obra pessoal não serve para projetar os pensamentos e as emoções 
de seu autor. Bass, ao explicar‐se, atira contra a natureza do mito mesmo, de seu mito 
individual  que  tem  uma  característica  tanto  sagrada  quanto  inexplicável.  A  passagem 
de imagens simbólicas às  exegeses verbais não pode ser mais  que uma infração  da  lei 
mítica. Esta não é mais do domínio do crítico que do artista? 
Robert Anton, Roman Paska e Eric Bass introduzem novos valores. Eles arriscam 
falar  sobre  as  inquietações,  os  medos  e  até  mesmo  das  obsessões  que  os  atormentam, 

                                                 
 Eric  Bass.  Odpowiedz  na  artykul  Henryka  Jurkowskiego:  Cytac…  przedstawienie  (Resposta  ao  artigo  de 
163

Henryk Jurkowski: <Ler...um espetáculo>). Teatr Lalek, 1994, n.2, p.21. 

147 
METAMORFOSES 

coisa  que  até  então  estava  reservada  a  outros  domínios  da  arte.  Não  quero  com  isso 
dizer  que  os  marionetistas  europeus  ignoravam  tais  questões,  mas  eles  o  faziam 
geralmente com mais objetividade, como se contassem uma história na terceira pessoa, 
e  a  história  fosse  de  heróis.  Os  americanos,  estes,  falam  em  primeira  pessoa,  rompem 
com a convenção que quer que o teatro de bonecos seja um teatro de ação, em benefício 
de um teatro de bonecos íntimo. 
Alguns  marionetistas,  na  Europa,  se  interessam  por  temas  psicológicos.  Tal 
tendência foi representada na França por Jean‐Pierre Lescot e François Lazaro, embora 
ambos  falem  em  nome  do  homem  em  geral  e  estudem  o  contexto  existencial  no  qual 
vivem.  Lescot  se  interessa  pelas  leis  da  composição:  a  arte  repousa  sobre  o 
enquadramento,  sobre  a  escolha  da  matéria  e  sua  inscrição  no  espaço.  O  teatro  pode 
assim ser um lugar de exposição. Lescot é um poeta da palavra e tira sua inspiração da 
psicologia  e  da  mitologia  contemporâneas.  Os  dois  pólos  que  são  o  amor  e  a  morte  o 
interessam por suas dimensões escatológicas e encontrar sua expressão no domínio do 
espírito e dos sentimentos. Depois de diversos espetáculos poéticos para crianças e de 
numerosas experiências formais na área do teatro de bonecos e de sombras, ele aborda 
o universo do mito e da psicologia com O Jardim Petrificado (1985), espetáculo realizado 
em  colaboração  com  Christian  Chabaud  (Companhia  Daru),  uma  adaptação  moderna 
de A Divina Comedia, de Dante. Os dois criadores declaram em tal ocasião: Emprestamos 
as  pegadas  perdidas  do  Poeta  para  caminhar  pela  obscuridade  de  sua  imaginação  inquieta,  e 
junta‐las  às  nossas,  e  percorrer  suas  florestas,  seus  precipícios,  seus  atalhos,  seus  montes,  seus 
lagos,  seus  espaços  estelares;  enfim.  Dante,  ser  humano  só,  assombrado  pelo  caminho  da  vida, 
ʺpó  aos  olhos  de  Deusʺ,  é  impetuoso  no  grande  drama  da  Natureza  em  movimento  e  não 
consegue mais tecer o fio de sua existência, de sua arte. Ele duvida, ele tem medo, ele desaba... 
para renascer.164 
Mas a peça não evoca apenas incidentes psicologizantes de Dante. É uma soma 
de  experiências  de  outros  espíritos  sensíveis,  tais  como  Goya,  Sully,  Prudhomme, 
Apollinaire,  Kafka,  ou  Éluard.  A  Divina  Comédia  se  transforma  em  uma  colagem  de 
confissões  de  poetas  de  todas  as  épocas,  como  uma  viagem  iniciática.  A  poesia  é  um 
meio de exorcizar o medo de viver, é, portanto, um meio para se reconciliar com a vida, 
se é que isso seja possível! 
Esta  experiência  com  Chabaud  é  uma  introdução  a  propósitos  mais  pessoais, 
como  A Sentinela dos Espelhos  (1990),  espetáculo  no  qual  Lescot  descobre  o  segredo  da 
vida que existe entre ʺsombra e luzʺ. A peça nos oferece uma chance, com a intervenção 
de  todos  tipos  de  bonecos,  de  investigar  nosso  psiquismo,  de  recriar  imagens  que 
multiplicam  nossas  sensações  e  emoções.  É  uma  viagem  retrospectiva  através  de  um 
mundo  de  figuras  teatrais  (Punch,  Arlequim,  as  máscaras  venezianas,  etc.),  viagem 
através  da  cultura  e  do  teatro  que  são  ameaçados,  como  o  mundo  dos  homens,  pelo 
medo:  Tentei  mostrar  a  relação  de  meus  personagens  com  o  medo  da  morte,  aquele  que  está 
contido  na  imagem  do  espelho.  Figuras  como  Punch  e  Arlequim,  que  ironizam  este  medo, 
                                                 
 Christian Chabaud, Jean‐Pierre Lescot. Teatro. O Jardim Petrificado. CAC, Les Gémeaux, dezembro 1985, 
164

p.6. 

148 
SOCIEDADE 

exorcizam  a  morte,  são  cada  vez  mais  privados  de  sua  força,  de  sua  facilidade  para  ir  além  da 
morte. Com tudo o que se passa na cena do teatro, eles terminam por serem eles mesmos vencidos 
pela ʺgrande dorʺ: é grave para os bonecos! Quando as máscaras do exorcismo da dor chegam a 
um resultado aterrorizante, eles perdem a confiança em seu significado, seu papel... Deixando de 
estar a altura expressiva da vestimenta que usam. Os personagens perdem a força de sua ironia 
sobre a vida, o amor, a morte. Eles são tão atormentados pela dor que terminam por tornarem‐se 
terrivelmente  humanos165.  
A Sentinela dos Espelhos é  uma  viagem  entre  arquétipos  que  assumiram  a  forma 
de  signos  visuais  da  cultura  teatral;  eles  nos  falam  das  emoções  ressentidas  pelas 
gerações  precedentes,  provocam  assim  nossas  emoções,  exprimindo  a  eterna 
problemática do homem descrita por Freud: a dor existencial, o conflito entre o instinto 
de  vida  e  a  ameaça  da  morte  demandando  serem  sublimados,  atenuados  como  se 
produz no ato de criação de uma obra de arte.  
Depois de ter colaborado durante muitos anos com a Companhia Daru, François  
Lazaro empreende um trabalho artístico independente com Les Portes du Regard (1985), 
Lê  Horla  (1987)  et  Solitude  (Samotnosc,  1988),  seguindo  Bruno  Schulz.  O  primeiro 
espetáculo tem por tema a ʺpassagemʺ, a ʺtravessiaʺ, e se apóia sobre uma colagem de 
textos de Rimbaud, Bachelard e Laing, um psicanalista norte‐americano. A estrutura é 
emprestada  do  rito  de  passagem  de  culturas  primitivas.  Eu  devorei  então  o  livro  de  um 
etnólogo sobre os ritos de passagem, declara  Lazaro.  Eu me dei conta de que o espetáculo era 
construído como os ritos de passagem. Aquele começa com as premissas que são uma exposição.. 
Vem em seguida o momento cruel em que o raspamos, tiramos sua roupa, sua humanidade: você 
é  reduzido  ao  estado  de  um  grito,  de  uma  violência.  Então  vem  a  iniciação:  vos  mostramos  os 
objetos rituais e os mistérios da vida. No final desta caminhada, vos explicaremos166.  
Retomamos  o  tema  da  iniciação  e  o  da  finalidade  da  existência  e  dos  atos 
humanos.  Os  bonecos  grosseiros,  como  que  inacabados,  sugerem  este  estado  de  devir 
do homem. Le Horla, seguindo Maupassant, e Solitude, seguindo Bruno Schulz, evocam 
o  problema  dos  limites  da  loucura  na  relação  do  homem  com  o  mundo.  Ainda  que  a 
trama  destas  duas  obras  seja  bastante  diferente,  Lazaro  desenvolve  de  uma  mesma 
maneira  as  relações  do  manipulador  e  do  manipulado  (animação  à  vista)  através  de 
uma  brilhante  metáfora  (particularmente  em  Solitude).  Acrescentamos  que  o  tema  e  o 
jogo dos intérpretes (particularmente em Le Horla) contribuem para dar uma dimensão 
psicológica à peça. 
Realizada na Polônia, no Teatro Banialuka, em Bielsko Biala, Solitude (cenografia: 
Gerzi  Zitman)  é  uma  colagem  de  temas  extraídos  de  Sanatorium au  Croque‐Mort167,  de 

                                                 
165 Alain Potvin, Jean‐Pierre Lescot. La Temoin magnifique. Village Val‐de‐Marne, n.564, 2/5/90. 
166 La vie est une longue loyage. Entretien avec François Lazaro. Marionnettes, n.10, 1986, p.11. 
 Bruno Schulz. Le Sanatorium au croque‐mort. Editions Denöel, Paris, 1974. tradiction de Thèrése Douchy, 
167

Allan Kosko, Georges Sidre, Suzanne Arlet. 

149 
METAMORFOSES 

Boutiques de Cannelle168e de outras novelas. Em cena, um ator, o Herói, tenta reconhecer 
suas lembranças. Ele está atrás de uma grande mesa, metáfora de ʺa mesa da vidaʺ, de 
ʺa  mesa  da  infânciaʺ,  coberta  de  objetos  e  esboços  de  bonecos  que  estimulam  sua 
imaginação  e  o  permitem  retornar  ao  passado,  onde  ele  reencontra  sei  pai  e  sua  mãe, 
com seus hábitos e paixões. Os objetos são dirigidos por criações de um outro mundo, 
artistas,  enfermeiros  ou  internos  do  sanatório,  ou  pelas  forças  delirantes  que  tentam 
dominar o Herói. Elas terminam por atingir seus objetivos. Com a ajuda de bandagens, 
elas  o  transformam  primeiro  em  um  boneco,  depois  em  múmia,  é  assim  que  ele 
terminará seus dias. O surrealismo das lembranças assume uma realidade de pesadelo. 
Este espetáculo reflete uma tomada de consciência e as aspirações artísticas dos 
marionetistas dos anos 80. Na realidade, não é o encenador marionetista que conta suas 
lembranças  diante  do  público,  mas  o  Herói  da  peça  que  o  faz  em  nome  do  autor  do 
espetáculo.  Nós  penetramos  na  intimidade  do  criador  que,  com  a  ajuda  da  narração, 
nos introduz nos estados e emoções que são seus e transformadas em jogo a partir de 
sua  experiência  vivida.  A  distribuição  dos  papéis  entre  os  atores,  marionetistas  e 
acessórios  é  carregada  de  metáforas.  O  Herói,  Jozef,  conserva  seu  próprio  rosto,  os 
internos do sanatório têm pseudo‐máscaras em forma de cabeças enfaixadas. A faixa de 
Jozef  marca  a  metamorfose  que  nele  se  opera  e  é,  sobretudo,  o  signo  de  seu  destino. 
Muitos personagens evocados nascem dos braços dos internos – enfermeiros , é o signo 
de  sua  própria  existência.  A  mãe  do  Herói,  em  forma  de  um  polvo,  é  um 
comportamento  satírico  claro.  O  pai  do  Herói,  um  boneco,  é  uma  personagem  mais 
humana,  possui  uma  cabeça  expressiva,  mas  ele  também  está  submisso  às  leis  de 
comparações surrealistas e, em certo momento, se reencontra mesmo em uma sopeira, 
situação nada habitual e muito deprimente.  
Espetáculos  com  temas  psicológicos  são  de  fato  pouco  numerosos  no  teatro  de 
bonecos.  A  experiência  de  Naviler  Tranter  nos  fornece  os  novos  elementos  da 
compreensão  de  seu  mundo  interior.  Tais  espetáculos  sublinham,  sobretudo,  os 
aspectos  de  dependência  entre  heróis,  visualmente  representados  pelo  estado  de 
dependência no qual se encontra o boneco em relação ao manipulador. Os pecados de 
Sete Pecados Capitais não  são  apenas  a  projeção  da  personalidade  de  Mefistófeles,  mas 
também das  criaturas que ele aprisionou. Em O Manipulador, o Clown  Nero (um  ator) 
utiliza seus bonecos com cinismo e os tortura de maneira quase masoquista. Este tipo de 
dependência pode muito bem ser percebida como o mecanismo do mundo, ao invés de 
servir para definir o estado psicológico do manipulado, como em Lazaro. Tranter utiliza 
a  tensão  psicológica  do  aspecto  de  dependência  recíproca  para  assegurar  um  efeito 
dramático.  Em  Quarto 5 (Chambre 5),  ele  abandona  este  sistema  simplista  em  benefício 
de  uma  ação  cênica  com  a  característica  de  um  thriller  psicológico.  Ele  interpreta  ele 
mesmo  o  papel  de  um  enfermeiro  que  vai  dissecar  um  doente  suspeito,  com  ou  sem 
razão,  de  ter  cometido  um  crime.  Nos  perguntamos,  ao  final  de  espetáculo,  se  o 
                                                 
 Idem. Boutiques de cannelle. Editions Denöel, Paris, 1974. tradiction de Thèrése Douchy, Georges Sidre, 
168

Georges Lisowski. 
 

150 
SOCIEDADE 

enfermeiro não é psicopata, porque os limites da loucura são impossíveis de se definir. 
O quadro psicanalítico do espetáculo parece mais um meio artístico de forçar a atenção 
do que uma pesquisa sobre os estados da alma.  
Malgrado a atmosfera neurastênica de seus espetáculos, Tranter parece fascinado 
pela teatralidade que lhe permite, por um lado, exprimir suas próprias emoções, e, por 
outro,  exercer  uma  ascendência  sobre  o  público  com  a  ajuda  da  ficção  e  da  força  de 
sugestão. Esta dependência recíproca entre o animador e os bonecos (no jogo à vista) o 
intriga, e dela ele abusa: quem anima quem? Quem depende de quem: este tema está no 
coração  de  todos  os  espetáculos  de  Tranter.  Ele  analisa  o  problema  friamente,  sem 
emoção.  Depois  da  encenação  de  Macbeth  (1990),  ele  anuncia  uma  mudança  de 
orientação: Com Macbeth, quer dizer, ensaiando montar a tragédia de Macbeth, eu atentei para 
um ponto crítico da relação entre o boneco e o bonequeiro. Eu interpreto a personagem Macbeth 
como  ator  e  manipulo  todos  os  outros  personagens.  É  uma  adaptação  do  original,  as  cenas  são 
concisas,  elas  fazem  a  ação  e  a  intriga  progredirem  num  ritmo  que  parece  crível.  O  fato  é  que 
consagro  a  maior  parte  de  minha  energia  para  manipular  os  bonecos  e  organizar  o  cenário. 
Significa que eu devo igualmente fazer passar a verdadeira tragédia de Macbeth ao mesmo tempo 
como  personagem e como ator manipulador que tira o boneco de seu destino. Macbeth  é, deste 
ponto de vista, o espetáculo mais difícil e mais complicado de todos com que já trabalhei. Isto me 
obriga a ir ao limite extremo de meus esforços e sei que quando Macbeth morrer eu deverei dar 
uma nova direção ao meu trabalho com bonecos169.  
Podemos  enfim  nos  questionar  se  a  teoria  do  teatro  de  Maeterlinck,  o  pai  da 
dramaturgia dos estados da alma, exerceu um papel no interesse que os marionetistas 
contemporâneos  atribuem  à  psicologia.  Os  artistas  que  evoquei  são  certamente 
numerosos  para  conhecer  seu  repertório  para  bonecos,  mas  nenhum  dentre  eles  se 
inspirou  nele  para  encenar  os  problemas  existenciais  do  homem.  As  peças  de 
Maeterlinck  que  foram  encenadas,  como  La Mort de Tintagiles ou  Ariane et Barbe‐Bleue, 
relatariam  fatos  mais  do  que  elas  sublinhariam  a  importância  psicológica.  La  Mort  de 
Tintagiles,  que  Kantor  monta  com  bonecos,  confirma  que  ele  estava  mais  preocupado 
com  as  imagens  plásticas  e  simbólicas  do  que  com  o  aprofundamento  dos  problemas 
psicológicos do jovem herói. Deve‐se ao fato de que a dimensão psicológica das peças 
de  Maeterlinck  e  seu  aspecto  inovador  não  aparecem  claramente  mais  do  que  no 
contexto  do  drama  realista?  Atualmente,  depois  de  um  século  de  prática,  os  meios  de 
expressão dos dramas psicológicos parecem pouco eficazes, a ação domina no momento 
em  que  os  artistas  contemporâneos  estão  interessados  pela  ʺpsicologia  puraʺ.  Neste 
domínio,  o  teatro  de  bonecos  contemporâneo  é  mais  beneficiado  por  Freud  e  pela 
antropologia que por Maeterlinck? 
E a energia criadora dos mitos do teatro de bonecos moderno, ela esta presente 
ou desapareceu? Fossem rurais ou urbanos, os teatros de bonecos populares possuiriam 
esta  energia:  perpetuariam  a  existência  do  bufão  mítico  sob  a  forma  de  personagens 
cômicos e construiriam o mito da superioridade do bom senso prático sobre a iniciativa 
                                                 
 Neville  Tranter.  Manipulator  (Manipulateur).  Malic,  Revista  de  Marionetes,  n.2,  Barcelona,  1991‐1992, 
169

p.54. 

151 
METAMORFOSES 

de pessoas poderosas e instruídas. Eles perpetuam ainda hoje o mito do triunfo do bem 
sobre  o  mal  em  dezenas  de  espetáculos  para  crianças.  Só  Peter  Schumann  dá  uma 
perspectiva cosmológica a esta simples verdade. De uma maneira bem geral, o retorno 
dos  bonequeiros  ao  mito  ou  ao  rito  exprime  uma  ligação  aos  valores  universais, 
particularmente ao retorno ao paraíso perdido. Ele corresponde às aspirações gerais da 
cultura contemporânea e não é um privilégio do teatro de bonecos! 
O  teatro  de  bonecos  e  a  marionete  solista,  desde  seu  nascimento,  servem  para 
criar um modelo de mundo (e de mitos). Eles indicam através de metáfora que os seres 
vivos  dependem  de  forças  superiores,  principalmente  dos  deuses  e  do  destino.  Como 
metáfora das dependências fundamentais existentes entre o homem e as forças divinas, 
o modelo alimenta numerosas histórias, mesmo que não exista uma só e mesma fábula, 
uma  só  e  mesma  história  característica  do  mito.  Ele  se  movimenta  lá  da  primeira 
generalização  filosófica  sobre  a  situação  existencial  do  homem.  As  obras  de  Paska,  de 
Lescot e de Tranter exprimem bem como este modelo pode mudar de funções, como ele 
oscila  entre  o  sagrado  e  o  profano,  como,  de  metáfora,  ele  transforma  uma  imagem 
abstrata  do  sistema  teatral.  E  nada  censura  as  interpretações  metafóricas,  simbólicas  e 
nem mesmo psicológicas.  

152 
 

CONCLUSÃO

O  nosso  século  é  o  da  metamorfose  do  teatro  de  marionetes.  Neste  balet 
incessante entre convenções, os jovens artistas trazem idéias inovadoras e colocam em 
jogo novos conceitos. O objeto e a matéria se impõem e abrem novos caminhos à arte da 
marionete. Não se deveria falar antes da arte de um ator ʺimpessoalʺ ou ʺnão‐pessoalʺ 
que  da  arte  da  marionete?  E  desta  perspectiva,  como  a  metamorfose  do  teatro  de 
marionetes  acompanha  a  desta  arte?  Como  este  teatro  se  inscreve  no  pensamento 
teórico de nossa época dita ʺpós‐modernaʺ? 
Desde o meio do século, a marionete assimila as grandes correntes artísticas e as 
grandes  tendências  da  arte  dramática.  Simultaneamente,  uma  nítida  diferenciação  se 
produz no seio do teatro de marionetes. A multiplicação das correntes contemporâneas 
não  tem  como  causa  a  variedade  daquelas  dos  séculos  passados.  Esta  coexistência  é 
característica  de  uma  sincronia  e  de  uma  diacronia  cultural.  Ela  constitui,  aliás,  uma 
vantagem,  pois  os  teatros  contemporâneos  escolhem  estilos  tão  diferentes  e  caminhos 
artísticos  tão  variados  que  sem  teatros  tradicionais  ou  clássicos,  poderemos  nos 
perguntar  se  eles  habitam  os  limites  do  gênero  da  marionete.  O  teatro  de  marionetes 
adota sem reservas idéias modernas das quais as mais importantes são a artificialidade 
da arte e o papel preponderante do sujeito criador. O teatro de marionetes se distancia 
do  drama  aristotélico,  preferindo  outros  gêneros  literários,  em  particular  a  forma  do 
teatro épico. Ele faz o mesmo com a ficção da arte dramática, que ele substitui por uma 
apresentação dos processos de criação, conduzindo ao jogo da realidade e da ilusão. Ele 
considera a marionete de outro modo, como um ator material, e a situa entre as coisas e 
os  objetos.  Ele  inscreve  o  animador  de  marionetes  na  escritura  do  espetáculo  e 
experimenta  o  personagem  dramático,  resultando  na  atomização  de  sua  imagem  e  na 
sua decomposição. 
Diversas  reflexões  filosóficas  sobre  a  evolução  da  arte  no  século  vinte  sugerem 
que  nossa  época  traz  novas  relações  entre  sujeito  criador  e  objeto  criado,  do  qual  a 
expressão altera um elemento característico da obra de arte. A crise do sujeito carrega 
em  sua  trajetória  a  do  humanismo.  Esta  reflexão  entra  na  sua  fase  final  com  esta 
declaração  provocante sobre esgotamento de nossa cultura:  Os filósofos otimistas vêm as 
coisas  deste  modo  igualmente, mais eles pensam que nossa época pede  a destruição de todas  as 
ilusões  que  nos  alimentavam  até  aqui  para  descobrir  o  que  faz  o  fundamento  da  existência 
humana.  A  possível  destruição  da  natureza  evidentemente  obrigará  o  homem  a  se  declarar  em 
favor da humanidade. 
A  crise  do  humanismo  é  o  resultado  das  desilusões  do  modernismo?  É  bem 
provável pois, nesta época, o sujeito reina, e não a subjetividade. O autor se desprende 
de sua obra, tornada impessoal, apesar do fluxo de sua consciência e de seu monólogo 
interior.  O  estruturalismo  dividiu  o  autor‐sujeito  em  códigos  sistemáticos,  e  o  pós‐
estruturalismo  fez  progredir  o  processo  descentralizando  a  estrutura.  Finalmente,  o 
pós‐modernismo arrasta a subjetividade que vai invadir todas as criações. 

153 
METAMORFOSES 

O funcionamento da noção de sujeito é mais complexa que em outros domínios 
da  arte,  pois  mais  que  o  sujeito  real,  o  criador,  existe  sempre  um  sujeito  fictício.  A 
subjetividade  da  marionete  e  a  existência  do  teatro  de  marionetes,  não  são  mais  que 
simulacros. Poderemos mesmo dizer, se não estamos nos limites da arte, que atribuir à 
marionete  um  papel  de  sujeito  é  pura  mistificação.  Os  dramatis personae  que  aparecem 
nos textos dramáticos não tem vida própria, não são mais que uma construção verbal, o 
que não nos impede de lhes atribuir um papel de sujeito. Partindo do mesmo princípio, 
nós atribuímos um papel de sujeito à marionete: uma construção plástica extrema que 
se tem do homem, como no caso das dramatis personae. 
A  pesquisa  sobre  a  especificidade  do  teatro  de  marionetes  foi  inspirada  pela 
fenomenologia,  mais  seus  primeiros  passos  foram  distorcidos  por  um  grave  erro. 
Buschmeyer e outros pesquisadores se concentraram nas particularidades da marionete 
e  negligenciaram  a  estrutura  dicotômica  do  teatro  de  marionetes  que  contém  dois 
sujeitos: o marionetista e sua marionete. Segundo Braque, ele teria esquecido as coisas e 
estudado suas relações. 
Os  modernistas  tinham  proposto  substituir  o  ator  pela  marionete,  mais  sem 
reconhecer por outro lado sua subjetividade, mesmo se esta foi conferida pelo homem. 
Só  a  observação  da  marionete  mantinha  sua  atenção.  Ela  parecia,  com  efeito,  garantir 
que  a  marionete  não  seria  uma  rival  do  sujeito  real,  quer  dizer  do  criador  da  obra  de 
arte. Wassily Kandinsky, desde 1911, assinalara esta evidência: uma obra de arte nasce do 
ʺsujeito do autorʺ, ʺdo artistaʺ. Craig se declarava artista de teatro e exigia sobre o palco 
materiais  responsáveis.  Poderíamos  nos  mostrar  mais  explicitamente  em  favor  da 
expressão arbitrária de um sujeito criador único? Mesmo nos anos 20, Craig fez alguns 
compromissos sobre o status do comediante, ele não reforça mais o papel dominante do 
diretor por numerosos anos. O sujeito modernista não vê a presença de outros sujeitos 
que  não  ele  mesmo:  A  realidade  da  obra  implica  em  si  seu  reflexo,  sua  consciência  de  si.  O 
ʺartificialʺ  da  razão,  não  deve  admitir  estrutura  ʺegológicaʺ,  reclusa  e  toda  fechada  em  si,  ela 
não deve admitir violência, mesmo se o sujeito autônomo imagina o ambiente. Ele pode ser o olho 
da  câmera,  artificial  na  sua  seletividade  mas,  no  entanto,  aberto  ao  mundo  que  ele  permite 
apresentar em um dia ainda mais claro. 
Estas  particularidades  eram  sentidas  como  medida  que  as  promoviam  ao 
modernismo. Podemos em particular ver um signo, no ensaio de José Ortega e Gasset, 
A  Desumanização  da  Arte,  que  data  de  1925.  A  arte  clássica  enfatiza  os  elementos 
humanos de toda sorte de ficção. A arte moderna tem um caráter elitista, ela é reservada 
aos iniciados, sublinha a consciência que ela tem de si mesma, ela se opõe à arte. Ortega 
e Gasset, ensina o paradoxo, referido a esse sujeito, não sem um certo exagero: Às vezes, 
como foi o caso de Schopennhauer e Wagner, a arte se dava por objetivo, nada mais, nada menos, 
que  salvar  a  humanidade.  Agora,  a  arte  nouveau,  que  pode  parecer  tão  curiosa,  procura  sua 
inspiração  na  zombaria  e  na  pilheria.  Toda  a  arte  nouveau  foi  afinada  sobre  o  mesmo  tom.  O 
humor pode ser mais ou menos refinado, percorrer toda uma gama de nuances ultrapassando a 
farsa banal num piscar de olhos irônico, mais ele é sempre presente na arte nouveau. Não que o 
sujeito da obra seja cômico, isto seria, com efeito, uma volta a um estilo ʺhumanoʺ, mais na arte, 

154 
CONCLUSÃO 

aquele que seria o sujeito, zomba de si mesmo. A busca da ficção pela ficção não pode se fazer com 
um piscar de olhos malicioso. 
As  observações  e  conclusões  de  Ortega  e  Gasset  mostram  que  o  modernismo 
contém o germe da época que o sucedeu, a saber, o pós‐modernismo. Cinqüenta anos 
depois,  Umberto  Eco  afirma  no  prefácio de  seu  romance  O Nome  da  Rosa  que  o  pós‐
modernismo é um traço universal de cada época do qual ele constitui a metalínguagem 
irônica. Ele aparecia no momento ou na época abandonar sua inocência descobrindo‐se 
a  si  mesmo.  Ele  perde  naquele  momento  sua  inocência  e  não  pode  ir  mais  longe  que 
recorrendo à citação e ao disfarce. Ortega e Gasset tinham, parece, outra coisa em mente, 
de acordo com ele, era a primeira vez que a arte perdera sua inocência, se opondo assim 
a  Eco.  Mais  ele  avaliava  como  Eco  que  a  arte  podia  evoluir  além  de  uma  farsa  auto 
irônica e burlesca. Nós poderíamos premiá‐lo com o título de primeiro pós‐moderno. 
As  inovações  dos  modernistas  concernentes  a  estrutura  dramática  e  a 
aproximação  analítica  de  elementos  tradicionais  do  drama,  também  levam  em 
consideração  a  ontologia  dos  personagens,  como  bem  demonstrou  Pirandello  no  seu 
Seis  Personagens  a  Procura  de  um  Autor.  Os  marionetistas  já  tinham  praticado  jogos 
similares ao dotar suas marionetes de uma pretensa consciência de seu papel, mais essa 
prática  não  foi  objeto  de  uma  reflexão  mais  aprofundada  e  o  manifesto  de  Pirandello 
seria importante para os marionetistas. 
Em conexão, as operações analíticas relacionam o personagem dramático e toda a 
construção do teatro de marionetes, como objetivo secundário diante da guerra, da crise 
do drama e da invasão de outros gêneros literários, em particular o gênero épico. Nós 
temos observado que no teatro de marionetes, o eu épico característico de todos os tipos 
de narrativas, encontra seu equivalente no eu que joga, a energia visível personificada 
que  anima  a  marionete  e  fala  por  ela.  O  eu  épico  utiliza  mais  frequentemente  o 
pronome ʺeleʺ para designar os heróis da história; o marionetista apresenta ao público a 
marionete tendo em mente a história, de outra forma dita dos heróis. 
Eles  também  podiam  descrever  estas  operações  como  as  ações  de  ʺum  homem 
estrutural que monta e  desmonta o objeto para estudar as  regras de seu  funcionamentoʺ.  Mas 
não demorariam a perceber que eles não poderiam prever imediatamente os resultados. 
A esperança de remontar o objeto era totalmente ilusória. Em alguns outros lugares, um 
bom número de surpresas esperava os criadores de teatro de marionetes. A primeira era 
que  inumeráveis  possibilidades  se  abririam  diante  deles  a  partir  do  domínio  das 
relações artísticas entre ator e marionete. Eles descobrem então que: o teatro de marionetes 
possui um leque muito rico de significados que precede de sua textualidadeʺ. De acordo com as 
últimas  reflexões  em  curso,  o  espetáculo  é  um  texto  que  recorre  a  vários  sistemas  de 
signos  (ele  se  distingue  assim  da  literatura)  A  noção  de  subjetividade  passa  assim  ao 
segundo  plano.  Os  elementos  que  o  espetáculo  propõe  a  interpretação  do  espectador 
possuem, de fato, o mesmo status do signo teatral. Revelando sua técnica ao público, o 
marionetista  se  inscreve  na  escritura  do  espetáculo  e  não  pode  ser  analisado  senão 
enquanto  elemento  deste  texto.  De  fato,  os  estruturalistas  evocavam  abertamente  a 
morte  do  autor,  mais  faziam  aparecer  o  ator  sobre  o  palco,  ao  lado  da  marionete, 

155 
METAMORFOSES 

voltavam a mostrar o autor do personagem dramático. A analogia é então flagrante. O 
marionetista nega assim sua própria subjetividade. Ele se coloca no mesmo plano que 
todos  os  outros  elementos  do  espetáculo.  E  este  define  as  novas  funções  da  obra 
artística para compreensão da reprodução da realidade. A mimesis pós‐moderna não imita 
uma verdade pré‐existente, ela imita uma outra imitação e assim numa seqüência até o infinito. 
A mimesis pós‐moderna zomba da idéia de que poderia haver um original, uma origem primitiva, 
uma espécie de sinal que teria precedido a imitação. 
Os grandes artistas como Léger e Witkewicz, tinham desejo de transformar o ator, 
de  fazer  manchas  coloridas  nas  composições  deles.  Kantor  conseguiu‐o  em  seus 
espetáculos.  Os  artistas  do  teatro  de  marionetes  se  encontravam  nesta  situação,  se 
conformando  a  tradição,  a  interdependência  do  sujeito  e  do  objeto,  tão  fortemente 
enraizada  na  mais  velha  metáfora  existencial  onde  o  papel  de  sujeito  criador  era 
atribuído a Deus. 
A  nova  teoria  textual  do  espetáculo  teatral  não  foi  mais  que  uma  proposta 
limitada. Ela não afetava nenhum especialista que fez evoluir sua visão do teatro. Eles 
aceitavam  consequentemente  que  o  público  não  tivesse  somente  um  contato  com  um 
mundo  formal  mais  também  com  o  texto,  submisso  as  suas  emoções  e  a  sua 
interpretação. Os pós‐estruturalistas, entre eles Jacques Derrida, propunham uma outra 
idéia; o texto liberado da opressão do significante não é mais que um terreno de jogo. 
Pode‐se  construí‐lo  e  desconstruí‐lo,  desmontá‐lo  e  remontá‐lo  fora  de  todo  contexto 
social e histórico. E esta renovação, afeta ainda uma vez as funções da obra artística de 
compreensão  da  reprodução  da  realidade.  A  supressão  da  hierarquia  entre  os 
significantes,  que  tem teoricamente relegado ao  segundo plano a  questão do sujeito,  é 
particularmente interessante, mais esta teoria foi só do pós‐estruturalismo. O teatro não 
pode se liberar da presença do sujeito porque seu desaparecimento significaria o fim da 
arte dramática. 
Na prática, não houve mais que uma mistura de papéis e de definições. Depois 
dos anos 60, graças às novas concepções artísticas e a nova assimilação de forças, o ator 
reencontrara sua hegemonia e se tornara um verdadeiro autor criando com a matéria de 
seu  corpo  e  de  seu  psiquismo.  Às  vezes,  a  ponto  de  interpretar‐se  a  si  mesmo.  Sinko 
qualifica  este  tipo  de  teatro  de  ʺteatro  da  auto‐performanceʺ  ou  ʺteatro  sem  semiose 
teatralʺ, onde o ator deixa entender aos espectadores:ʺEu não atuo, eu sou eu mesmoʺ ou 
ʺnão  é  o  teatro  que  vocês  assistem,  mais  a  vidaʺ.  Eles  podem  legitimamente  se  interrogar 
sobre este tipo de espetáculo de teatro de marionetes. Ele se enche de estilização que se 
origina do teatro e se reduze a uma demonstração do jogo das marionetes: ʺSou eu quem 
joga,  eu,  o marionetista,  de  quem vocês podem ler  o nome no cartazʺ. Toda  a  argumentação 
remete, todavia, a palavra estilização, porque ela sublinha a criação e não a vida. 
Assim sendo, o ator que vemos manipular suas marionetes é mais um performer 
que  um  ator.  O  teatro  de  marionetes  que  exibe  a  destreza  de  um  marionetista  é,  em 
primeiro  lugar,  uma  performance.  Da  mesma  maneira  que  um  ator  do  teatro  de  auto 
performance basta‐se a si mesmo, o marionetista se basta a si mesmo quanto ele utiliza 
sua energia vital para fazer nascer uma ficção no jogo de suas marionetes e seus objetos. 

156 
CONCLUSÃO 

Sem  respeitar  todas  as  condições  da  auto‐performance,  o  marionetista  se  encontra  no 
limite  de  dois  mundos,  seu  mundo  pessoal  e  o  mundo  das  coisas,  que  graças  a  sua 
energia  consegue  criar  uma  realidade  fictícia.  O  marionetista,  o  ator  e  o  performer, 
desafiam  o  mundo  das  coisas  e  dos  objetos  que,  jogando  os  papéis  que  lhes  foram 
inicialmente atribuídos, tornam‐se significantes. Dar ao objeto a possibilidade de fazer 
carreira  no  teatro  é  uma  maneira  de  sublinhar  sua  oposição  com  relação  à  marionete 
que,  enquanto  sujeito,  faz  concorrência  ao  sujeito  criador.  Seu  papel  de  fato  é 
equivalente ao de um objeto utilitário. O homem retirou‐lhe a procuração que lhe deu 
anteriormente. Restituindo à marionete seu status de objeto, ele lembra a conexão que 
ela  mantinha  com  a  escultura  e  lhe  abre  o  campo  da  problemática  das  artes  plásticas. 
Estas  últimas  evoluem  de  forma  diferente  do  teatro  de  marionetes  e  procuram 
dinamizar  seus  artefatos.  Novas  oportunidades  se  oferecem  então  para  a  marionete. 
Pontuado  aqui  como  sujeito,  mais  ao  contrário,  a  vontade  de  procurar  no  teatro  um 
objeto em movimento que pudesse possuir as mesmas significações que o universo dos 
objetos  que  a  ele  remetem.  A  marionete  pode  também  tornar‐se  um  objeto  de  sentido 
simbólico,  mais  seu  papel  de  objeto  negou  sua  antiga  vocação.  Ela  se  transformou 
imperceptivelmente em simulacro, ou em manequim. 
Será  o  fim  do  teatro  de  marionete  enquanto  gênero  teatral  propriamente  dito? 
Esta questão continua sem resposta. O teatro de marionetes clássico continua a existir e 
parece que suas forças regenerativas não estariam totalmente esgotadas. Ao contrário, o 
teatro de marionetes como meio de expressão variada, o teatro de objetos, e este teatro 
que fala de si mesmo (auto‐temático, eu diria) se impõe como formas de um teatro pós‐
moderno.  Estes  teatros  engendrados  pelo  espírito  da  marionete  clássica,  se  desgastam 
seriamente hoje em dia. Numerosos são os críticos que pensam que nenhum retorno é 
possível.  Claude  Lévi‐Strauss  escrevia  já  nos  anos  50  a  propósito  do  esgotamento  das 
forças  da  cultura  humana:  Depois que ele começou a respirar e a se alimentar até a invenção 
dos  engenhos  atômicos  e  termonucleares,  passando  pela  descoberta  do  fogo  ‐  exceto  quando  ele 
reproduz a si mesmo ‐ o homem não tem feito outra coisa que alegremente dissociar as milhares 
de estruturas reduzindo‐as a um estado no qual elas não são mais suscetíveis de integração (...) 
Se  bem  que  a  civilização,  ligada  a  seu  todo,  pode  ser  descrita  como  um  mecanismo 
prodigiosamente  complexo,  ou  nós  seríamos  tentados  a  ver  a  oportunidade  que  tem  nosso 
universo de sobreviver, se sua função não era de fabricar o que os físicos chamam de entropia,isto 
é,  a  inércia  (...)  Em  vez  da  antropologia,  ele  poderia  escrever  ʺentropologiaʺ  o  nome  de  uma 
disciplina dedicada a estudar nas suas manifestações os mais altos processos de desintegração. 
A noção de entropia é muito popular entre os escritores pós‐modernos: o fim do 
mundo  é  próximo. E  é por isso  que nossas forças e nossa  civilização estão  em vias  de 
exaustão.  Nós  conhecemos  todas  as  formas,  todas  as  possibilidades,  todos  os  temas  e 
todos os sujeitos. Tudo já aconteceu. Não há nada a fazer senão refazer o que já existe, 
cuidadosamente  codificado  na  nossa  consciência.  Assim  é  que  poderemos  conhecer, 
conscientemente,  praticando  então  com  rigor  uma  arte  auto‐temática  onde  as  antigas 
convenções ainda são abundantemente praticadas. 
Felizmente, a realidade, a época atual e o futuro da arte e da cultura contradizem 
sua  proposição.  É  verdade  que  o  teatro  contemporâneo  se  nutre  dos  modelos  do 

157 
METAMORFOSES 

passado  (ritos,  mitos,  arte  primitiva),  mais  é  verdade  também  que  isto  constitui  um 
traço  novo  de  nossa  sociedade.  O  princípio  da  colagem,  e  consequentemente  o  da 
citação,  é  correntemente  utilizado.  Ele  engendra  novas  significações,  por  exemplo,  a 
metáfora e a metonímia. O fim da civilização então, ainda não é para amanhã. De fato, 
bom  número  de  gêneros  artísticos  e  literários  esquecidos,  reaparecem  hoje  como 
citações de uma arte datada de uma outra época, mais é verdade também que outras as 
substituem. Não esquecemos que a exaustão do teatro de marionetes enquanto gênero, 
não é uma novidade. No século XX os adultos, que estavam esgotados, lhe reservou ao 
uso  das  crianças,  eis  um  primeiro  signo.  Em  seguida,  a  existência  do  teatro  foi 
ameaçada  pelos  novos  divertimentos  populares,  como  o  cinema  e  a  televisão.  E  tudo 
leva  a  crer  que  ele  foi  completamente  esquecido  sem  seus  valores  culturais  e 
psicológicos que atraem sem cessar novos adeptos. Desta vez, são os artistas que vem 
em seu resgate fazendo tudo para lhe devolver sua posição social e seu lugar na arte, e 
com  sucesso.  No  entanto,  o  inevitável  acontece;  as  marionetes  abriram  seus  teatros  a 
novas idéias de vanguarda. Eles tem então conseguido manter a presença do teatro de 
marionetes  na  marcha  da  arte  do  espetáculo  artístico,  mais  este  teatro  não  tem  mais  a 
ver com aquele que lhes havia seduzido no começo do século. Eis todo o paradoxo! 
 

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