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MÉTAMORPHOSES
La Merionnette au XX Siécle
Henryk Jurkowski
Tradução de: Eliane Lisboa
Gisele Lamb
Kátia de Arruda
Éditions Institut International de la Marionnette
Charleville‐Mézières, 2000
SUMÁRIO
Ao Leitor ...................................................................................................................v
Introdução .............................................................................................................. vi
I ‐ PREMISSAS .............................................................................................................. 10
UM MODERNISMO SOB MEDIDA........................................................................10
O ator ideal .............................................................................................................. 12
Da teoria à prática................................................................................................... 15
A PROFISSIONALIZAÇÃO ..................................................................................... 17
Baty: uma lenda francesa....................................................................................... 18
Obraztsov: um mestre inconteste.........................................................................20
Nascimento de um ofício....................................................................................... 22
Uma nova profissão ............................................................................................... 23
Ator ou bonequeiro? .............................................................................................. 24
Artista ou artesão?.................................................................................................. 25
Que caminho para o teatro? .................................................................................. 26
A formação profissional ........................................................................................ 26
II ‐ REFORMAS ............................................................................................................. 28
AS PEQUENAS FORMAS......................................................................................... 28
O impulso dos solistas ........................................................................................... 29
Signos e símbolos plásticos ................................................................................... 32
A abstração pura..................................................................................................... 34
A poética da forma ................................................................................................. 35
A linguagem teatral................................................................................................ 38
O Teatro Lalka: Jan Vilkowski .............................................................................. 38
O Teatro Tandarica: Margareta Niculescu.......................................................... 41
III ‐ CONVENÇÕES...................................................................................................... 48
HOMOGENEIDADE ................................................................................................. 48
Continuidade ou ruptura? .................................................................................... 48
Nas fontes da plástica ............................................................................................ 49
Rumo à caricatura................................................................................................... 50
A ilusão dramática.................................................................................................. 50
O repertório musical .............................................................................................. 51
Nas fontes do clássico ............................................................................................ 53
HETEROGENEIDADE .............................................................................................. 56
A entrada do ator.................................................................................................... 56
Brincadeiras de crianças ........................................................................................ 58
Os primeiros adeptos ............................................................................................. 59
O repertório dramático em jogo: Michael Meschke .......................................... 60
No cruzamento dos meios de expressão............................................................. 61
Uma teoria da metamorfose.................................................................................. 63
A matéria entra em cena........................................................................................65
O distanciamento.................................................................................................... 65
IV ‐ FORMAS E ESTILOS ........................................................................................... 68
ANIMAÇÃO E SINERGIA ....................................................................................... 68
Do bom uso da tradição......................................................................................... 68
Um mestre da metáfora: Josef Krofta .................................................................. 69
As técnicas vindas do Oriente ..............................................................................73
Da literatura à metáfora plástica .......................................................................... 75
A intimidade da narração...................................................................................... 77
Entre sonho e realidade ......................................................................................... 78
Sinergia..................................................................................................................... 81
Signo ou símbolo?................................................................................................... 83
ARTES PLÁSTICAS E BONECOS ........................................................................... 84
As cenografias no teatro ........................................................................................ 85
O teatro cenografado.............................................................................................. 86
Teatro de autor........................................................................................................ 88
OS PINTORES NO TEATRO .................................................................................... 92
Miró, Mata, Saura ................................................................................................... 93
Magritte e os surrealistas....................................................................................... 95
Teatro visual ............................................................................................................ 96
Interferências........................................................................................................... 98
Teatro de artistas..................................................................................................... 99
Teatro plástico ....................................................................................................... 103
METAMORFOSES
Do objeto à matéria............................................................................................... 105
Philippe Genty ...................................................................................................... 108
Florilégio de teatro de objetos............................................................................. 109
Teatro de projeção ................................................................................................ 111
Teatro da matéria.................................................................................................. 114
V ‐ SOCIEDADE.......................................................................................................... 119
Teatro de contestação...........................................................................................119
Teatro pobre .......................................................................................................... 123
Teatro ritual ........................................................................................................... 127
Fazer frente à história...........................................................................................128
DENTRO DO CONTEXTO DA TRADIÇÃO POPULAR................................... 130
NA PERSPECTIVA DO MITO................................................................................ 136
Fausto ..................................................................................................................... 137
Don Juan ................................................................................................................ 139
Mitos e folclores .................................................................................................... 139
A ópera barroca..................................................................................................... 140
Mitos de origem .................................................................................................... 141
O eterno retorno.................................................................................................... 142
Teatro dos estados da alma................................................................................. 145
CONCLUSÃO .............................................................................................................. 153
Ao Leitor
Do modernismo ao pós‐modernismo, a arte contemporânea provocou profundos
abalos ao longo deste século. Foi assim que o vivi: como um verdadeiro tremor de terra,
e nada será mais como antes. Hoje me pergunto se a arte do boneco não terá sofrido a
mesma sorte? Como observador atento, partidário e testemunha de seu destino, tento
comentar, analisar e explicar aqui os acontecimentos artísticos que influenciaram essas
transformações, privilegiando os artistas, instigadores de uma nova abordagem que dá
novas perspectivas ao boneco. Na passagem de um acontecimento a outro, busquei um
afastamento, porque cada pedra trazida ao estudo minucioso dessa arte influenciava
minha visão final. O afastamento não reaproxima? É uma questão de foco ou de época?
Seja como for, o nascer do terceiro milênio dá a este ensaio um novo horizonte.
As metamorfoses do boneco no século XX resultam de uma série de ações e
diligências iniciadas por artistas de grande qualidade: todos têm em comum o fato de
serem portadores de idéias inovadoras e únicas conforme seu talento, de enriquecerem
a arte do boneco e paradoxalmente, também, de colocarem em risco seus valores
essenciais. O boneco primeiro afirma sua própria existência, descobre e analisa seus
meios de expressão, depois conclui seu ciclo abandonando‐se ou se auto‐destruindo em
proveito de figuras animadas, de objetos ou de atores. Mesmo no caso de uma extrema
fidelidade ao personagem cênico, observei que ela progressivamente se privou de sua
função de sujeito teatral fictício para pôr em valor sua função real: a de um objeto.
Considero o boneco uma forma artificial, articulada, fabricada segundo os
princípios das artes plásticas, dotado de capacidades técnicas para ser utilizada num
espetáculo, diante de um público, enquanto sujeito fictício. Esta definição poderia
surpreender algum observador de teatro que associasse a noção de sujeito fictício à de
ser humano, mas não é verdade que a energia de um sujeito cênico é transmitida pelo
homem ao boneco, isto é, por quem o concebe e manipula? Essa energia não é a herança
de um longo processo cultural onde a função de sujeito foi dada à marionete em sua
vida pré‐teatral, como ídolo, fetiche ou forma articulada de uma divindade nas
sociedades primitivas? Essa tradição justifica o fato de que o objeto possa ascender à
vida autônoma de sujeito fictício. Sujeito cênico fictício e objeto real são as duas
alternativas desenvolvidas pelos artistas que vou evocar. Esta oposição abre
simbolicamente o caminho à compreensão das metamorfoses do boneco no século XX.
Enfim, este livro não é mais uma história do teatro de bonecos. Ele quer
simplesmente conduzi‐los a um fenômeno cultural singular, digno de estudos mais
profundos. Trata‐se de um gênero, saído da arte popular, que cativa os artistas,
submete‐os às leis da arte, da criação, da inovação e da originalidade e quase chega a
uma auto‐destruição total! Meus contemporâneos fazem uma análise similar da arte
teatral à exceção do ator que, enquanto ser humano protegido pela lei, se mostrou
intocável. O ator assumiu novas funções, sendo às vezes mesmo marionetizado, sem
jamais ter sua integridade violada. O boneco não se beneficiou desta proteção. Criatura
artificial, criação do homem, ele se submeteu a sua vontade. O homem pode reconstruí‐
lo, animá‐lo, mas também pode destruí‐lo, encerrá‐lo numa loja de antiguidades, ou
relegá‐lo para sempre a um museu.
v
Introdução
O caminho que conduz o boneco às tábuas do teatro foi, para dizer o mínimo,
particularmente longo. À serviço dos charlatões e dos contadores de histórias, o boneco
suscitou formas diversas indo do circo ao espetáculo de variedades e da ópera aos balés.
Substituto do ator, ele poderia tê‐lo sido do jogral, do atleta, do dançarino e mesmo do
cantor. Sua prática multidisciplinar foi socialmente reconhecida como uma arte popular
que, pouco a pouco, se voltou para as crianças e recebeu a etiqueta de teatro para
crianças. Criadores de divertimentos populares, os bonequeiros jamais usufruirão de
grande prestígio. O mesmo se dá com os atores de teatro, mas estes figuravam no alto
da lista das artes do espetáculo. Os bonequeiros nela ocupavam uma posição muito
mais modesta já que eram precedidos pelo pessoal do circo.
Falo de bonequeiros, mas os manipuladores de bonecos se qualificavam
diversamente: artistas, atores, mecânicos, maquinistas reais, responsáveis teatrais,
proprietários de empresa. Eles não tinham a consciência de exercer o mesmo ofício, com
algumas exceções. Na Inglaterra, no século XVIII existiam teatros de bonecos
permanentes cujos manipuladores e fabricantes de bonecos, às vezes renomados,
formavam uma verdadeira corporação. Havia pois de um lado o boneco e seu potencial
estético e dramático, e do outro uma multidão de organizadores de espetáculo, com
freqüência amadores de origens diversas, que só recorriam ao boneco após terem
esgotado todas as outras formas de expressão para atrair o público. Uma situação
paradoxal onde o boneco e seu potencial artístico foram mal explorados.
Como meio de expressão artística, o boneco não está ligado a nenhum estilo ou
corrente artística precisa. Neutro, ele estava à disposição dos artistas qualquer que fosse
sua orientação. O boneco evidentemente possui características particulares, e enquanto
obra plástica pode se transformar segundo os desejos de seu criador. O boneco sempre
foi mais popular que elitista, mais próximo do folclore do que da arte com A maiúsculo.
Desse ponto de vista, pode ser considerado como “conservador”. O teatro de bonecos,
aliás, conhece ainda hoje, certas formas de teatro que o teatro esqueceu. O que não o
impediu de suscitar, na época do modernismo, o interesse dos “artistas”. Seu
renascimento no século XX fez com que o teatro de bonecos se tornasse mais artístico
que popular ou plebeu.
Maurice Maeterlinck, Alfred Jarry e Edward Gordon Craig, em busca de um ator
anti‐naturalista, foram tomados de paixão por essa arte. Logo após foi a vez dos
futuristas (Enrico Prampolini), expressionistas (Oskar Kokschka), dadaístas (Sophie
Taueber‐Arp) e nunistas (PierreAlbert‐Biron), cujo protesto contra a cultura burguesa
levou‐os a abrir bem os braços a gêneros até então desprezados, como os espetáculos de
variedades, o circo ou o teatro de bonecos. Mas o interesse pelo boneco, o manequim e a
super‐marionete tem causas mais profundas que os estímulos artísticos: Todos os
movimentos literários do início do século XX e do entre‐guerras têm que levar em conta a
vi
desumanização do mundo moderno: impulso da técnica e da mecânica, reino do dinheiro,
horrores da guerra, abalos das revoluções1 sublinha J. Blancart.
Os bonequeiros certamente não tinham consciência do papel que podiam jogar e
dos meios de que podiam dispor. Os poucos artistas atraídos por esse desejo de
modernidade precisavam voltar a um boneco figurativo e antropomorfo se desejassem
encontrar um grande público e obter alguma renda com suas atividades. Seu programa
teatral e artístico foi bem pouco revolucionário. Eles se contentavam em seguir os
princípios estéticos tradicionais e sentiam‐se obrigados a justificar sua escolha por
manifestos que na maior parte sublinhavam o aspecto artificial do boneco. Partindo
deste princípio, eles buscaram um movimento próprio e atribuíram ao boneco o papel
de um ator. Mesmo se o espetáculo de variedades e todas as outras formas de
espetáculos de bonecos perduraram artisticamente, os artistas consagraram sua energia
à criação de uma arte dramática. Por menores que fossem suas intenções, elas
permitiram assegurar uma continuidade na história e o boneco antropomorfo
reencontrou seu prestígio. A influência da vanguarda foi bastante limitada e o
modernismo não obteve nova vitória.
Sem querer desorientar o leitor, este livro necessita de algumas explicações
terminológicas. Devo condenar o uso da palavra boneco em seu sentido mais amplo
possível e o emprego quase abusivo de um vocabulário metafórico, que se sobrepõe
aqui a uma abordagem puramente descritiva? A cortesia me obriga a definir certas
convenções, a fim de que sua leitura prossiga o mais eficazmente possível. O termo
ʺboneco dramáticoʺ parece estranho, mas caracteriza perfeitamente o repertório
dramático desse teatro em oposição aos espetáculos de bonecos do circo, das variedades
ou do cabaré. Esta distinção é necessária em razão da diferença formal e do estetismo
desses espetáculos. O boneco dramático domina a arte do boneco durante várias
décadas e estimula inúmeras reflexões sobre sua especificidade e suas capacidades de
expressão. Certos teóricos quiseram mesmo estabelecer regras de funcionamento bem
definidas. Os bonequeiros se interrogaram sobre sua especificidade e sobre a maneira
de adaptá‐la a sua prática teatral. Era necessário imaginar uma linguagem específica e
uma convenção própria ao teatro de bonecos homogêneo. Esta convenção teatral tem
por princípio que o boneco é um substituto do personagem dramático, cujos gestos e
voz provêm de um bonequeiro inteiramente dissimulado aos olhos do público. Este
princípio vai se tornar progressivamente uma verdadeira amarra para a maioria dos
bonequeiros. Só alguns artistas tiveram a coragem de se liberar dela. Pois esta
especificidade viu sua existência ameaçada pela evolução da arte dramática. Após uma
primeira onda de reformas sob a influência de Adophe Appia, de Craig, de Antonin
Artaud e de Bertold Brecht, uma nova onda apareceu nos anos 50 com Beck, Malina,
Grotowski e muitos outros, que abriram a via à subjetividade na representação teatral.
Uma via assumida pela arte e que se conclui, em nossos dias, com o pós‐modernismo.
1 J.Blancart. A intrusão de manequins e de personagens desumanizados no teatro europeu do século XX. In
Sylvie Jouanny (ed.) Teatro europeu , cenas francesas, cultura nacional, diálogo de culturas. Edições
L1Harmattan, Paris, 1995, p. 195.
vii
METAMORFOSES
Uma nova etapa se esboça nos anos 50 e 60 com a aparição do teatro de bonecos
heterogêneo onde o boneco deixa de ser o elemento dominante. Ele não é mais do que
um componente entre outros, com o ator bonequeiro à vista, o ator mascarado, os
objetos e os acessórios de todos os gêneros. Esta evolução conduz a uma nova reflexão e
muitos procuraram explicar esta ruptura. Em 1983, Natalia Smirnova, historiadora,
tentou definir sua natureza. Entretanto, quando atribui o cetro de reformador a Serguei
Obraztsov e a seu Teatro Central de Bonecos de Moscou, ela se deixa ultrapassar pela
realidade teatral. Obraztsov jogou realmente um papel importante, mas, sem dúvida
podemos considerá‐lo mais próximo de Stanislavski que de outros reformadores que o
sucederam como Meyerhold, Artaud e Barba.
Os bonequeiros tinham outras aspirações, em particular a de utilizar o boneco
como um meio de expressão dramática possuindo qualidades plásticas. Tinham a
sensação de ter ficado a reboque das experimentações de vanguarda. Nos anos 50, na
Polônia, o encenador Jan Wilkowski, estimava este atraso em torno de um quarto de
século. Harry Kramer, criador de espetáculos de móbiles, herdeiro espiritual de
Schlemmer e de Calder, permanecia ainda convencido disso nos anos 80 2 . Kramer
exagerava um pouco. Ele analisava o teatro de bonecos comparando‐o à evolução das
artes plásticas. Suas razões eram fragmentárias e antípodas ao teatro de marionetes
dramático. Como é freqüente, a verdade está entre os dois. O teatro de bonecos está na
fronteira das artes plásticas e da arte dramática. Sua forma depende das mudanças que
sobrevivem tanto num quanto na outra. Alain Recoing, bonequeiro, ligava o teatro de
bonecos contemporâneo ao teatro e às artes plásticas modernas. Ele declarava em 1980:
Salvo raras exceções, pode‐se considerar que o teatro de bonecos, ao menos na Europa, está
totalmente em ruínas no fim do século XIX. O teatro de bonecos contemporâneo não se ergueu
dessas ruínas, nem se reconstruiu sobre elas:ele se desenvolveu noutro lugar e de outro modo a
partir do fim da Primeira Guerra Mundial.3
Recoing analisa bem a situação, pois é verdade que a arte moderna foi a principal
impulsionadora do teatro de bonecos contemporâneo. Mas afirmar que esta evolução se
produziu bruscamente exige um certo cuidado. Essa idéia poderia ser defendida se
dissesse respeito aos séculos precedentes, mas ele se refere a uma época em que a
continuidade da história do boneco me parece devidamente estabelecida e inconteste.
Ele não parece antever a interessante metamorfose do teatro popular, nem a
consideração artística por ele alcançada. Porque o teatro de bonecos tradicional e
popular exerceu uma influência direta sobre o teatro contemporâneo. Ele se perpetuou
em países como a Inglaterra, a Bélgica ou a Itália, e para um bom número de artistas
ainda é uma referência.
Harry Kramer. Vortrag. In “Forum Puppentheater 1988”, Wurzburg im Hobbit Puppentheater am
2
Neunerplatz am 18 Juni 1988.
3 Alain Recoing. Os bonequeiros do outro lado do espelho. Teatro público “o teatro de bonecos”, revista
bimestral publicada pelo Teatro de Genevilliers, no. 34‐35, ago‐set‐1980, p. 38.
viii
De minha parte estou convencido da continuidade da arte do boneco, pelo
menos desde que se decidiu descrever e comentar sua evolução. Que um novo teatro de
bonecos surgisse logo após a Primeira Guerra Mundial não é, a meus olhos, a prova de
uma mudança de qualidade significativa. Ele é testemunha, ao contrário, da
perenização das formas artísticas precedentemente adquiridas (mesmo que por sua
negação). As tendências poéticas e anti‐realistas só se manifestaram com força após a
Segunda Guerra Mundial. Essa época traz, inegavelmente, a marca da metamorfose e
da história do teatro de bonecos no século XX. Ele se torna uma arte por inteiro. Desde
então, os bonequeiros deram prova de uma energia sem limite, deixaram seu encrave e
desenvolveram idéias originais, fazendo empréstimos à arte dramática e às artes
plásticas. Poder‐se‐ia comparar essa transformação a um casamento entre um gênero
artístico tornado nobre, o boneco, com a arte dramática, cujo dote comporta a maior
parte dos princípios da arte moderna? Não foi assim que a arte do boneco tomou o
caminho da originalidade e se fez absolutamente presente?
Na busca de um boneco não figurativo, o bonequeiro encontrou no seu caminho
coisas, objetos utilitários de nosso cotidiano que podiam se metamorfosear em boneco e
interpretar um papel dramático. Submetido a uma análise artística, a uma crítica de sua
natureza artificial, o boneco revelava todas as suas fraquezas enquanto ser figurativo
numa época em que dominavam a arte abstrata e a subjetividade, tanto sobre o plano
psicológico como sobre o plano semântico. Ao tomar emprestado o véu da arte, ele
tornou‐se vulnerável, frágil e submisso à vontade de seu mestre. Também é verdade
que ao longo dos três últimos séculos o homem, a priori, aceitou o teatro de bonecos
como um gênero teatral e um divertimento popular bem enraizado na vida cultural. A
estética fenomenológica dos anos 30 propôs uma poética normativa que reforçava a
posição do teatro de bonecos no seio do teatro e na qual os criadores se comprometiam
a servir ao boneco enquanto personagem dramático. O mito funcionou durante algumas
dezenas de anos. Analisar o boneco enquanto meio de expressão artística confirma a
hipótese de que o homem só lhe concede provisoriamente seus privilégios de
personagem dramático. O individualismo e o subjetivismo levaram os criadores a expor
suas obras, durante o processo de criação, em seu próprio nome. É uma das razões que
explica a passagem do boneco para o objeto. O trabalho do bonequeiro é então, de
algum modo, um vestígio de arte anônima. Ei‐lo a partir de então face ao público, para
dar prova de seu talento.
Cada um dos grandes artistas bonequeiros tem contribuído para a metamorfose
do teatro de bonecos de nosso século. A imagem do boneco se encontrava transformada
e esses artistas, verdadeiras referências na história e na estética dessa arte, se engajaram
em novas perspectivas, tanto por sua compreensão quanto por sua ascensão ao tablado
do teatro. Nós vivemos enfim uma época onde as idéias criativas e o pensamento
estético fervilham sem cessar, onde o termo genérico de teatro de bonecos não é
equivalente ao de teatro dramático nem ao do teatro em geral. Seu campo é
verdadeiramente mais vasto. Meu prazer é ficar à espera, vendo emergir as novas
experiências artísticas, e incapaz de imaginar a surpresa que me proporcionará cada
amanhã.
ix
I - PREMISSAS
UM MODERNISMO SOB MEDIDA
A estética do teatro de bonecos vai conhecer, na primeira parte do século XX,
duas etapas sucessivas e preliminares a sua profunda transformação. Primeiramente, o
boneco se adapta às exigências da arte teatral, descobre as idéias modernistas e
apropria‐se delas. Essa seqüência não deixa de ser surpreendente, pois em seu tempo,
os teatros ambulantes, ao menos na França e na Alemanha do século XIX, imitavam
francamente o teatro de atores. Reiterar a experiência poderia parecer inútil, mas de fato,
o boneco vai adquirir uma dimensão artística e ganhar assim todo o seu sentido.
Devemos as primeiras experiências modernas ao Petit Théâtre, ao Théâtre d’Art e
ao Théâtre de l’Oeuvre em Paris. Henri Signoret, Paul Fort e Aurélien Lugné‐Poe (pode‐
se falar de bonequeiros?) perpetuam, na virada do século XIX, a imitação do teatro de
atores (a despeito da estilização dos bonecos e de seu gestual), sem imaginar então as
reformas que a vanguarda provocaria no início do século seguinte. Na realidade, todas
essas tendências teatrais terminarão por se cruzar para dar vida, no alvorecer do século
XX, a uma forma moderna do teatro de bonecos, inspirada em certas experiências
artísticas do século precedente. Nesse sentido, o modernismo herda dos românticos
alemães e franceses, esse interesse singular pelo boneco através do qual se cristaliza a
imagem do ator ideal. No final do século XIX, o boneco entra em moda pelo teatro de
Maurice Maeterlinck, os delírios burlescos de Alfred Jarry e as experiências teatrais de
Paul Fort e Lugné‐Poe. A “super‐marionete” de Craig, as diversas experiências dos
futuristas, dadaístas ou surrealistas elevam sua imagem ao patamar de gênero artístico.
Esta homenagem não se deve somente à imaginação poética de Maeterlinck, nem à
idéia excêntrica de Craig ou à provocação das vanguardas, mas a razões mais
profundas. A nova percepção da realidade, a redefinição da arte, assim como o
subjetivismo filosófico, ‐ que confere ao sujeito um papel maior nos processos
cognitivos e sublinha sua importância capital no ato de criação – são essenciais para
quem quer compreender as metamorfoses do boneco.
O modernismo é uma reação à arte realista e às idéias naturalistas que rejeitam a
idealização do real e exigem uma “verdadeira” verdade. Os modernistas buscam
transmitir uma verdade íntima, a dos estados da alma humana. A análise dos traços
fundamentais da arte lhes fez descobrir que qualquer obra de arte, no fim das contas,
não passa de um artefato. Estas obras pertencem à realidade enquanto criações
artificiais do homem e não transgridem seu critério de autenticidade. Movido por estas
premissas, Craig reivindica um teatro autônomo ‐ uma obra de arte autônoma – nascida
da vontade de um artista teatral utilizando um material que ele submete aos seus
desejos. Ele imagina mesmo uma “falsa” marionete que substituiria o ator vivo,
aconselha buscar inspiração no “país da morte” e não encontra modelo melhor do que o
boneco para realizar suas idéias. O teatro, enquanto criação artificial, não pode e não
deve pretender ao papel de espelho fiel da realidade. Uma nova tarefa lhe cabe.
10
PREMISSAS
Instrumento de uma expressão subjetiva, ele sublinha seu caráter artificial e sua
teatralidade. Assim nasce o “teatro teatral” onde o encenador se apropria do poder,
reina não apenas sobre os atores, mas também sobre os cenógrafos e sobre os autores.
Ele não ilustra mais um texto apenas, mas impõe suas idéias.
A renovação do teatro de bonecos é assegurada por uma geração de artistas,
pintores ou escultores que não são bonequeiros profissionais. Eles introduzem
imitações de bonecos nas peças de teatro (Picasso), nos balés (Léger) ou no cinema
(Alexandra Exter). Os futuristas Fortunato Depero e Enrico Prampolini trabalharam
para Vittorio Podrecca, em Roma. Eles fabricaram bonecos inspirando‐se na geometria e
em modelos mecânicos. Sophie Taeuber‐Arp e Otto Morach, no Teatro de Bonecos de
Zurique, esculpiriam bonecos dadaístas e cubistas, em formas ingênuas, fazendo uso
sem constrangimento de cores puras, vivas e trazendo a marca das ferramentas
utilizadas. Alguns deles fundaram seu próprio teatro de bonecos, outros se engajaram
nos teatros reivindicando uma identidade artística. Seja como for, a participação de
grandes artistas foi pequena, seus espetáculos tiveram uma vida efêmera, e o grande
público ficou indiferente a estes valores artísticos.
Outros ainda adaptaram a tradição a seus projetos artísticos. Assim, em Viena, o
pintor e ilustrador Richard Teschner, se inspira em bonecos do wayang golek de Java,
para encenar lendas indonesianas e criar seus próprios personagens. Na Rússia, Ivan e
Nina Efimov perpetuam o antigo teatro de Petrouchka e experimentam magníficas
esculturas em movimento em adaptações de fábulas de Krylov e peças de Shakespeare.
Josef Skupa, na Checoslováquia, retoma com felicidade a tradição do personagem
cômico e cria dois novos personagens – Spejbl e Hurvinek ‐ que reatam com a tradição
dos jogos de palavras e outros trocadilhos para ironizar os comportamentos pequeno‐
burgueses. Uma abordagem intuitiva e um interesse pela plástica vão direcionar esses
poucos artistas ao universo do teatro de bonecos, sem que eles tenham conhecimento de
seu funcionamento dramático.
Em Munique, Paul Brann, é talvez a única exceção. Homem de letras,
colaborador de Max Reinhardt, ele é seduzido pela harmonia artificial que reina no
teatro de bonecos a fim de criar um verdadeiro teatro artístico. Ele se volta assim para o
boneco na esperança de encontrar ali a unidade dos meios de expressão que ele anseia
encontrar no teatro. Brann monta velhas peças de bonecos – mistérios na época de Natal
e o Doutor Fausto ‐, depois amplia seu repertório com peças do repertório
contemporâneo (Schnitzler, Maeterlinck), espetáculos musicais, sem desprezar as obras
pós‐românticas do conde Franz Pocci. Ele utiliza bonecos estilizados que evocam o ser
humano com uma força de expressão espantosa, acentuando às vezes o traço para
mostrar o artifício do boneco enquanto intérprete. Mais moderado que os vanguardistas,
suas idéias e seu teatro encontraram um eco muito favorável junto ao grande público e
bonequeiros da nova geração. Seu sucesso foi total. Brann exerceu uma grande
influência e foi seguido por inúmeros bonequeiros poloneses, checos, rumenos,
iugoslavos e americanos.
11
METAMORFOSES
O ator ideal
Ao tentar definir a natureza artificial do boneco, Brann, após Maeterlick e Craig,
aborda inevitavelmente a questão do ator ideal. Ele contribuiu para esta reflexão
levantada por tantos grandes renovadores do teatro, artistas e poetas (Maeterlinck,
Ghelderode, Garcia Lorca), para quem o boneco é um fenômeno misterioso, um tanto
marginal, mas oh! quão fascinante. O boneco aparece aí honrado e adulado. De fato são
inúmeros os bonequeiros a considerar que o boneco só encontrará sua salvação
respeitando as convenções do teatro clássico, tanto no que concerne ao espaço cênico, ao
jogo, quanto no tema do espetáculo. Após anos de vãs tentativas e discussões, Craig
renega sua “super‐marionete” e tributa ao ator seus agradecimentos. Sua teoria resta
inegavelmente como um ponto de referência, tanto para seus partidários quanto para
seus detratores. Entre estes últimos, Julia Slonimska, sob a influência de Evreinov,
empreende com um grupo de amigos a reconstituição de um teatro de feira popular do
século XVII. Numa revista de São Petersburgo, ela afirma a necessidade do teatro de
bonecos enquanto gênero independente: O elemento essencial do teatro – o movimento –
cristalizou‐se em estado puro no teatro de bonecos. O boneco propõe uma forma de teatro sem
elementos de corporeidade. Do mesmo modo que os signos algébricos substituem grandezas
numéricas determinadas, o corpo fictício do boneco substitui o corpo real do homem. O lugar do
boneco no teatro lembra o papel dos números infinitamente pequenos na matemática ‐ é como se o
boneco integrasse os fenômenos complicados do teatro mostrando nele as formas originais, as
formas primitivas.4
Slonimska opõe‐se radicalmente a Craig. Segundo ela, o ator é tão necessário
quanto o boneco, um e outro trazendo ao teatro valores diferentes: Os métodos de criação
do ator e do boneco são quase antípodas um do outro, o que exclui toda possibilidade de inveja e
de rivalidade. O ator, em cena, realiza sua concepção por meio de seu corpo e lhe dá assim sua cor
pessoal. O boneco vai do particular ao geral, mostrando no cruzamento dos fenômenos um
motivo eterno, essencial. A criação do boneco é uma síntese artística, a criação do ator é a análise
de um personagem poético. Foi essa diferença fundamental que permitiu comparar o ator real ao
ator fictício. No imenso mundo do teatro, o ator e o boneco são tão indispensáveis quanto o são
estes dois métodos de pesquisa, a análise e a síntese 5,no mundo da ciência.
Nina Simonovitch Efimova, por seu lado, opta pelo boneco de luva, mais de
acordo com a tradição do teatro de bonecos popular russo. Sua força artística é ser uma
escultura e o teatro de bonecos uma “escultura em movimento”. Por isso, ela
desenvolve as capacidades expressivas do boneco, seu gesto e seu movimento. Para
afirmar a superioridade do teatro de bonecos, ela não pode evitar compará‐lo ao teatro
de atores porque eles mantêm as mesmas relações que o rico e o pobre da parábola do
rico e de Lázaro. Agonizante, um rico se dirige a um pobre miserável: “Mergulhe a ponta
de teu dedo na água para me refrescar a língua”. As pesquisas dos modernistas confirmam a
verdade dessa parábola: “O teatro de atores também chega a um dado limite e clama pelo
4 Julia Slonimska. Marioneika (O boneco) Apollon, São Petersburgo, 1916, no.3
5 Julia Slonimska. Marioneika (O boneco) Apollon, São Petersburgo, 1916, no.3
12
PREMISSAS
boneco:“Refresque‐me, purifique‐meʺ! Você fala sério quando fala de igualdade entre o teatro de
bonecos e o teatro de pessoas? E não se trata só de igualdade (compreendida como fraternidade)?
Mas ainda não se sabe em que lábios vai aparecer um sorriso de indulgência6.
Efimova superestima as qualidades do boneco, como muitos outros, mas sua
tomada de posição me parece justificada. O teatro, com freqüência recorre ao boneco em
busca de novas fontes de energia criadora. Efimova se concentra nas capacidades
expressivas do boneco e será nesse espírito que desenvolverá suas criações.
Estas reflexões nos conduzem ao reconhecimento da particularidade do boneco.
A esse respeito, a escola formal de Praga, na pessoa de Otakar Zich e de Petr Bogatyrev,
estuda a linguagem específica do teatro de bonecos. Zich analisa o efeito produzido
pelo boneco sobre o público e conclui que ele se situa em dois níveis: Nós consideramos os
bonecos como bonecos, o que quer dizer que ressaltamos sua natureza inerte. Para nós ela é real,
nós a tomamos a sério. O que implica em que, por isso mesmo, não podemos levar a sério as
palavras e os gestos dos bonecos; “suas marcas de vida”, a nossos olhos, são cômicas, grotescas. O
fato de que os bonecos sejam pequenos, rígidos, ao menos em parte (o rosto, o corpo) e que isto
torna seus gestos estranhos, “de madeira”, também reforça a impressão cômica. Não é um cômico
vulgar, mas talvez um humor sutil que se destila desses pequenos personagens, que se
comportam em aparência como seres humanos vivos. Nós os consideramos como bonecos,
enquanto eles querem que nós os tratemos como humanos, e é isso justamente que nos traz
satisfação. Sabemos que é este mesmo o efeito produzido pelos bonecos. (...) A impressão de
inércia dada pelos bonecos passa então ao segundo plano ao gerar uma sensação de algo
inexplicável, de um enigma que nos enche de espanto. Os bonecos nos fazem então o efeito de um
mistério.7
Zich constrói sua análise a partir dos espetáculos de bonecos populares que pôde
ver e emite hipóteses sobre o futuro do teatro de bonecos, que concebe sob a forma de
uma estilização plástica: Nós dissemos que no primeiro caso consideramos os bonecos como
uma matéria inerte, que suas “marcas de vida” não nos causam grande impressão, quer sejam
cômicas ou grotescas. A estilização que corresponde a essa concepção do boneco é o cômico
plástico, ou seja, uma caricatura plástica. Para o artista, a plástica se situa em todo lugar. Um
outro tipo de estilização pode produzir um novo tipo de teatro de bonecos, se ele se apóia sobre as
artes plásticas sólidas. A análise acima mostrou que nós levamos muito a sério as marcas de vida
dos bonecos, que são marcas de um gênero particular (...) Se fosse impossível, se essa tomada de
consciência se impusesse demais a nós, isso poderia dar nascimento, como vimos, a um
sentimento de animosidade ou de horror. Mas se esquecemos a inércia dos bonecos, e seu pequeno
tamanho contribui para que a esqueçamos, não resta mais do que o sentimento de um enigma: os
bonecos tornam‐se misteriosos e nos aparecem mesmo como seres sobrenaturais. A estilização
6 Nina J. Simonovitch‐Efimova. Zapiski Petruchetchnika (As notas de um tocador de Petrouchka)
Gosudarstvennoë Izdatelstvo, Moscou‐Leningrado, 1925, p. 10
Otakar Zich, Loutkové Divadlo (O teatro de bonecos), Drobné umeni‐Vytvamé snahy. Praga, 1923, no. 4.
7
Ver também Frantisek Sokol, Svet loutkového divadla (O universo do boneco), Albatros, Praga, 1987, p.26.
13
METAMORFOSES
plástica dos bonecos deve levar em conta sua tendência à desmaterialização, e ela pode chegar a
isso com meios anti‐realistas. O boneco se tornará então o símbolo de um personagem, não de um
personagem particular, mas de um personagem geral, o que pode corresponder a uma tendência
anti‐realista de estilização. Se no primeiro caso o boneco era uma caricatura plástica, no segundo
ele é o símbolo plástico de um personagem geral8.
Outros teóricos além de Zich se interessam pela equivalência entre boneco e ator.
Para muitos, o teatro de bonecos não passa de um substituto do teatro de atores, e só
poderá ganhar sua independência como gênero dramático ao se comparar com este
último. Na Rússia, Petr Bogatyrev, folclorista e semiólogo, colabora com os teóricos
checos e critica severamente Zich: Otakar Zich comete um erro fundamental ao recusar ver
no teatro de bonecos um sistema de signos independente sem o qual não se poderia compreender,
de fato, nenhuma obra artística. Todas as observações de Zich sobre o teatro de bonecos podem se
aplicar sem problema a todas as artes... O erro fundamental de Otakar Zich, segundo nosso ponto
de vista, é de não admitir este sistema de signos enquanto tal, sui generis, e de compará‐lo ao
jogo dos atores vivos. Ora, se tomarmos o sistema de signos dos atores vivos na cena não por
signos de teatro, mas por signos da verdadeira vida, teríamos a mesma impressão de Zich quando
ele observava bonecos.9
O interesse da escola de Praga pelo boneco é confirmado pelos estudos feitos na
Alemanha durante o entre‐guerras. Eles se apóiam na estética subjetiva de Max
Schassler e em estudos fenomenológicos. O boneco é percebido como um substituto do
personagem. Ele interpreta um papel e pode pretender tornar‐se um sujeito cênico. Esta
corrente aceita a especificidade do boneco, suas qualidades e seus limites para definir
suas capacidades expressivas. A obra de Lothar Buschmeyer, Die Kunst des Puppenspiels
(1931), é um estudo extremamente detalhado disso. Ele situa o teatro de bonecos na arte
teatral e toma o boneco como objeto de estudo porque ele “é a base material de qualquer
análise estética e (que) ao se concentrar a atenção sobre ele, pode‐se definir os limites do gênero
inteiro”. Os limites são definidos pela vontade do artista ou por sua imaginação,
qualquer que seja a natureza do boneco. Se não busca produzir voluntariamente outros
efeitos, o teatro de bonecos é sempre cômico. Isso diz respeito a seu caráter esquemático, a seu
simbolismo e a seu primitivismo.10
Todos os bonequeiros estariam de acordo com esta análise um tanto quanto
redutora? Fora do cômico, nenhuma salvação? Buschmeyer descreve, com efeito, os
diferentes tipos de bonecos em função de critérios estéticos tais como o trágico, o
sublime, a sátira burlesca e o humor, depois segundo diversos gêneros literários tais
como o conto, a lenda, a fábula, o mito e o mistério. Em resultado de sua análise conclui
que, enquanto intérpretes, os bonecos são bastante universais, à exceção do boneco de
luva que convém melhor, segundo ele, ao burlesco e ao humor. É fácil imaginar que os
bonequeiros fizeram pouco caso do estudo subjetivo de Buschmeyer e que ele não
8 Frantisek Sokol, Svet loutkového divadla (O universo do boneco), Albatros, Praga, 1987, p.26‐27.
9 Peter Boagatyrev. Lidovle divadlo ceske a slovenske (O teatro popular checo e eslovaco). Borovy, Praga, 1940.
10 Lothar Buschmeyer. Die Kunst des Puppenspiels (A arte do boneco). Erfurt, 1931, p. 164‐165.
14
PREMISSAS
apresenta interesse muito maior hoje para estudar o método pregado pelo autor.
Buschmeyer toma como base de seu raciocínio a idéia de que o boneco e seu gestual são
imutáveis, e distingue quatro tipos de bonecos: o boneco de luva, o boneco de fio, o
boneco de vara e as figuras planas das sombras. O tema do espetáculo teatral deve ser
adaptado às capacidades expressivas de cada tipo. Assim, nos anos 30, os próprios
teóricos, sem falar dos bonequeiros, partem da idéia de que o boneco é o elemento
essencial e que o repertório não é mais do que a resultante de suas capacidades de
expressão. Os teóricos são incapazes de imaginar a situação inversa, ou seja, que o tema
escolhido pelo artista possa determinar a escolha dos modos de expressão.
Fritz Eichler reduz ainda mais seu campo de pesquisa. Como a mão constitui a
alma ou o centro do boneco de luva, falando propriamente, Eichler considera esse tipo
de boneco como o prolongamento da expressão do ator. Para ele, a manipulação de um
boneco de luva é uma variante da pantomima e perpetua o jogo do antigo mímico. Um
sentimento compartilhado pelos bonequeiros que garantem uma tradição do
personagem cômico. Max Jacob, da trupe do Hohnsteiner, declara que o próprio
bonequeiro precisa se sentir Kasperle para obter bons resultados. O que autoriza
visivelmente Eichler a dizer que o boneco de luva não é um boneco, e que o verdadeiro
boneco, é aquele que joga afastado de seu animador e possui suas próprias leis
mecânicas, é a marionete. Eichler lamenta, com efeito, que um meio de expressão
dramática que apresenta tamanho interesse tenha sido, durante tantos anos, submetido
às convenções do teatro de atores e que, além disso, os marionetistas alemães
acreditavam dever imitar. Ele propõe redefinir o estilo da marionete: A qualidade artística
da marionete reside no acento posto sobre seu próprio caráter específico. Para atingir essa
qualidade, é preciso obter o máximo de expressão própria à marionete. Como o ator do teatro
“vivo”, é ela o ponto central e o problema principal. As tarefas do ator se deslocam do sujeito ao
objeto, do elemento pessoal ao elemento impessoal e supra‐pessoal. Toda a subjetividade do jogo
do ator, todas suas grandes possibilidades e sua ação direta desaparecem. O caráter do jogo não é
mais subjetivo, ele é objetivo e passivo, ele não é direto e vital, mas indireto e objetivado. O
boneco durante o jogo não vive a vida do homem, mas sua própria vida mecânica. Todas as
emoções às quais o jogo deve dar uma forma artística são expostas de uma maneira desumanizada
e estilizada por um personagem totalmente factício. 11
Partindo das idéias de Kleist para proceder a uma análise teórica da marionete,
Eichler se aproxima sensivelmente de Schlemmer e de seus estudos sobre as relações
entre espaço e ator na Bauhaus. Eichler estabelece uma ponte entre a especificidade do
teatro de bonecos e os postulados da vanguarda.
Da teoria à prática
A história nos ensina que os comportamentos e a criação dos artistas são muito
raramente influenciados pelos manifestos artísticos, as interpretações e os postulados
dos teóricos. Além disso, parece pouco provável que bonequeiros, mesmo alemães
Fritz Eichler. Das Wesen des Handpuppen und Marionettenspiels (A natureza do boneco de luva e a marionete).
11
Emsdetten, 1937, p. 27
15
METAMORFOSES
como Fuhonny e Max Jacob, eles próprios engajados numa reflexão estética tenham lido
assiduamente os estudos de Buschmeyer e de Eichler. No entanto, é certo que os
apresentadores de bonecos do mundo inteiro sentiram confusamente a presença de
novas tendências e se consideraram, de fato, como os criadores de um novo teatro. Sua
visão foi modelada pelo teatro clássico mesmo se a necessidade de aperfeiçoá‐lo e de
fazer dele uma arte se impôs por si mesma. Para isso, era fundamental que tivessem
consciência da especificidade do boneco e do teatro de bonecos enquanto gênero
dramático. A abertura da arte moderna a uma estética subjetiva se metamorfoseia, no
seio do teatro de bonecos, numa poética normativa quase aristotélica. Os teóricos do
teatro de bonecos e os bonequeiros sentiram a mesma necessidade de codificar o teatro
de bonecos enquanto gênero, definir os valores estéticos e servir a sua arte. Um
paradoxo a mais! Uma decisão espantosa nessa primeira parte do século vinte, de fato
contestadora face às regras e códigos. Por outro lado, é facilmente compreensível que os
novos bonequeiros, artistas ou neófitos, evoquem tanto a qualidade estética e teatral de
sua arte dado o atraso a cobrir. Aristóteles não leva em conta o teatro de bonecos em
suas reflexões sobre a natureza da arte dramática, e outros após ele também não. À
exceção de algumas metáforas ou resenhas às vezes zombeteiras, o boneco não teve o
dom de provocar os literatos a elaborar uma teoria estética. Os ensaios de Samuel Foote,
Heinrich von Kleist, Goerge Sand e Charles Magnin se atêm a alguns aspectos do tema
mas não podem rivalizar com a imensa literatura consagrada ao teatro e aos atores.
Por outro lado, a maior parte das reflexões esboçadas pelos teóricos tem um
caráter puramente especulativo, e nesse campo os bonequeiros manifestam com
freqüência interesse por tais profissões de fé, bem anteriores à aparição de novas
correntes. Única exceção, Vladimir Sokolov, ator e encenador do Teatro Alexandre
Tairov de Moscou. Sob a influência das idéias de Craig e aluno de Tairov, ele se opõe ao
realismo na arte e no teatro de bonecos. Fascinado pelas particularidades formais do
boneco, busca extrair dele um estilo de jogo. Segundo ele, existem duas possibilidade de
se chegar a isso: um teatro burlesco, excêntrico, e um teatro de dinâmica musical: Em
meu teatro, numa cena, uma figura perde literalmente a cabeça ao ver sua bem amada a bordo de
um dirigível. Uma outra figura poderia ter duas cabeças, uma para o domingo, outra para os dias
de semana. Podemos ter figuras sem tronco, compostas unicamente de braços e pernas, e outra
com vários braços fixados ao tronco (foi assim que representei um empregado ou garçom de um
restaurante que serve seus clientes com muita rapidez, sempre pronto a responder ao chamado).
Numa cena de Uma Lágrima de Diabo, de Théophile Gautier, frente aos olhos de um jovem
ainda inexperiente nas coisas do amor sucede‐se um verdadeiro jogo amoroso do qual participam
os objetos que o cercam. Um sofá aperta com ternura uma cadeira em seus braços, uma escova
seduz um pente, e duas lâmpadas acesas se consomem de amor antes de se incendiarem numa
relação amorosa.
A esse teatro de excentricidade burlesca Sokolov prefere seu “teatro de dinâmica
musical”: Eu o chamo de caminho do verdadeiro movimento. Desaparece toda aproximação, por
mais ínfima que seja, com qualquer forma humana: o boneco se libera da própria idéia de
figuração objetiva. Talvez isso faça desaparecer ao mesmo tempo a palavra “boneco”, nascida por
acaso num pequeno burgo da França. Nesse tipo de espetáculo, a imagem se exprime com formas
16
PREMISSAS
conhecidas ou abstratas, planos, linhas ou grupos de pontos, e também com variações de
iluminação e de cor. Nasce assim um conjunto de movimentos que se penetram e se fundem
incansavelmente, que tendem em permanência a se separar, que se modificam indefinidamente.
Quanto mais um ritmo musical é necessário para o movimento do boneco em geral, mais ele se
torna uma lei fundamental, um princípio essencial nesse teatro. É a última conseqüência desse
teatro que chamo de teatro de dinâmica musical. Ele pede a elaboração e a definição de um
contraponto dinâmico preciso com todas as regras a ele relacionadas. Assim, em meu teatro
apresento a sinfonia de Tchaikovski Francesca da Rimini. Do mesmo modo, não se teria
nenhum problema em representar simbolicamente a sinfonia dinâmica de uma cidade moderna,
de fazer existir todas as suas particularidades, seu movimento e todas as suas forças elementares.
12
A idéia do teatro de dinâmica musical é totalmente original. Pode‐se estabelecer
um longínquo paralelo com a pintura abstrata. De todo modo, seus contemporâneos
vêem em suas idéias uma prova da originalidade da “jovem arte dramática russa”
oposta ao teatro de ilusão, sem imaginar que elas possam estar diretamente ligadas ao
teatro de bonecos. Extraídas de sua prática teatral e experimentadas nas inúmeras
turnês do teatro Tairov e de seu próprio teatro de marionetes, as idéias de Sokolov vão
ser mais conhecidas no estrangeiro que na Rússia. Os alemães, aliás, propõem‐lhe
publicá‐las em 1923.
Em conclusão, não seria lógico que os artistas e os bonequeiros definissem com
prioridade a função artística de seu teatro? Nosso século é, sem dúvida, o mais rico e o
mais promissor que se lhes oferece para formular e experimentar novos preceitos, como
o de definir a essência artística (eidética segundo a fenomenologia) do boneco e
introduzir em sua linguagem a noção de sua especificidade. Esse encaminhamento foi
assumido, primeiramente, no sentido de uma norma obrigatória, depois como critério
de qualidade artística. Mas na mesma rapidez com que essa definição foi elaborada, ela
não correria o risco de restringir e de limitar os bonequeiros? Assim como a lei que a
exprime? Felizmente, as leis não são feitas para serem infringidas? Cada artista cria seu
próprio sistema e sua hierarquia de valores estéticos. Os bonequeiros, na sua maioria,
aceitaram a noção de “especificidade do boneco”, pedra filosofal da perfeição de sua
arte. O modernismo estaria então à medida do teatro de bonecos? Do boneco? Ou ele
próprio não é limitado? Os bonequeiros, de fato, não anteciparam a transformação de
sua arte. Sua primeira preocupação foi assegurar um status artístico pela criação de
uma teoria própria, por uma real integração na cultura teatral e pela vontade de
adquirir uma formação profissional.
A PROFISSIONALIZAÇÃO
Para se evadir da arte popular e de um certo diletantismo, o teatro de bonecos
experimenta a necessidade de se confrontar a profissionais, de se enriquecer de suas
experiências, de aperfeiçoar seu ofício e de inscrever‐se na história. Assim Signoret,
Vladimir Sokolov, Gedanken zu meinem Theater musikalischer Dynamik (Pensamentos sobre meu teatro de
12
dinâmica musical) Das Puppentheater, 1923, Heft 3,p. 36‐38.
17
METAMORFOSES
Efimova e Brann se profissionalizam com sua prática teatral e no contato com o público.
O teatro de atores lhes traz um conhecimento e um saber teatral. O boneco deve
mergulhar na água sagrada da cultura teatral para receber o batismo e uma consagração
artística? Este ritual foi cumprido, na França, por um diretor de teatro: Gaston Baty e na
União Soviética, por Sergueï Obraztsov, jovem ator do teatro de Arte de Moscou. Eles
jogaram um papel essencial nas metamorfoses do teatro de bonecos e exerceram uma
grande influência sobre o teatro de bonecos contemporâneo; Baty na França, Obraztsov
em escala mundial.
Baty: uma lenda francesa
Baty é uma “lenda” do teatro de bonecos francês. Já no final de sua vida,
decepcionado com o Teatro, ele se volta para o teatro de bonecos levando‐lhe sua
experiência teatral. Como Craig, ele se obstina durante vários anos em realizar um
teatro artístico de bonecos sem sucesso aparente. Ele não deixa de ser um personagem
simbólico enquanto diretor de teatro no auge de sua glória, da qual os bonequeiros
vão se apropriar na continuação. Literato de formação, Baty manifesta muito
cedo seu interesse pelo boneco. Foi sem dúvida em Lyon, onde fez seus estudos nos
anos vinte, que descobriu sua tradição, as representações de Natal e o Teatro de
Guignol. Suas pesquisas dão origem a várias obras, das quais uma é consagrada ao
teatro de bonecos ambulante na França no século XIX e ao seu repertório. Primeiro
busca perpetuar esta arte popular caída em desuso, acolhe bonequeiros tradicionais no
Teatro Montparnasse e colabora com a União Nacional e Corporativa dos
Apresentadores de Marionetes, no seio da qual estabelece laços de amizade com vários
deles, entre os quais, Marcel Temporal, arquiteto e inspirador dessa união. Foi só em
1942, ao abandonar a direção do Teatro Montparnasse, que Baty introduziu o boneco
em cena. Desenvolve experiência em laboratório a fim de estudar todas as suas
capacidades expressivas. Durante meses, com um grupo de seis pessoas, dirige os
ensaios de uma peça de Maurice Sand, Nous Dinons chez le Colonel (Nós Jantamos na Casa
do Coronel) e consagra um ano inteiro ao Médico à Força para finalmente só fazer uma
única apresentação. André‐Charles Gervais, membro de seu primeiro grupo e autor de
uma obra sobre o teatro de bonecos francês nos anos 20 e 30, evoca assim os métodos de
Baty: Nós pesquisamos três anos. Nossa equipe de seis entusiastas, animados pelo maior
entusiasta de todos, pacientemente arrancou do desconhecido os primeiros elementos de uma
técnica cuja primeira parte desta obra dava uma idéia. Durante dias inteiros, sob o olhar
benevolente, mas impiedoso de Gaston Baty, tentamos fazer exprimir, através de um gesto, um
novo sentimento de nossos bonecos 13.
Baty, sem justificar sua escolha, utiliza bonecos de luva, tornados popularizados
pelo Teatro Lyonês de Guignol. Seriam eles mais teatrais que a marionete? Pode‐se ver
em sua escolha o triunfo da escola teórica francesa representada por George Sand sobre
a estética alemã que utiliza habilmente as idéias de Kleist para elogiar os méritos da
13. André‐Charles Gervais. Bonecos e bonequeiros da França. Bordas, Paris, 1947, p. 114
18
PREMISSAS
marionete, boneco ideal? Gervais confirma a idéia de Baty: No mundo dos bonecos todas as
inverossimilhanças são permitidas porque nada é real, todo o prazer estético é feito de concessões.
Os bonecos permitem atingir este realismo superior, mais verdadeiro que o verdadeiro, que é para
nós o fim de toda arte autêntica14 .
Baty une‐se à extensa corte dos que idealizam o boneco e superestimam suas
capacidades. Ele busca antes de tudo produzir uma ilusão cênica e sua admiração pelo
boneco não foi a única razão de sua saída do teatro de Montparnasse. Os crescentes
conflitos no seio do teatro e a atmosfera da França ocupada o convidam a buscar refúgio
num mundo mais tranquilo. Não por acaso, o último espetáculo que apresenta ao
público evoca a Belle Époque do romantismo francês. Trata‐se de La Queue de la Poele (O
Cabo da Frigideira), espetáculo fantástico, em três atos e cinco quadros, à maneira do Boulevard
do Crime segundo Marianville, Sirodin, Clairville, os irmãos Cogniard e outros clássicos do
gênero, representado no pavilhão de Marsan de 2 de maio a 8 de julho de 1944. A peça evoca
personagens conhecidos dos parisienses dos anos 20 do século XIX, Robert Macaire e
Bertrand, aos quais Baty acrescenta o elegante parisiense Billembois que sai em viagem
através da velha França romântica. Jean‐Loup Temporal nos esclarece sobre a escolha
do tema feita por seu mestre, mas não explica o fato de que Baty se volte para o boneco.
Jamais pretendi que o boneco substitua o ator. Nas oitavas médias do teclado teatral, este lhe é
sensivelmente superior. Mas quando se trata de atingir e exprimir os mitos, os seres irreais, o
boneco é um modo de expressão insubstituível nas fronteiras, por assim dizer, e no
prolongamento da humanidade15.
Eis aqui um primeiro esboço de resposta: “exprimir o mito”. Trata‐se, claro, do
mito de Robert Macaire, que tinha sido representado por Frédérick Lemaître, espécie de
gentleman‐ladrão cujas peripécias são pretexto para uma mordaz sátira social e
suscitam o entusiasmo da crítica e do público parisiense. No seu íntimo, Baty sonha
com um mundo melhor e encontra no boneco uma forma de liberdade no sentido
amplo do termo. Em março de 1946, ele confia a Henri‐René Lenormand: Faz cinquenta
anos que morri. É por isso que não quero nem posso me interessar pelo tempo presente. O mundo
no qual fui feito para viver, é o da liberdade. E só o boneco conhece a liberdade que o teatro perdeu.
Ele obstinadamente volta as costas para o real. Ele só toma vida dos nossos sonhos. Não se pode
submetê‐lo, nem fazê‐lo servir. Ele é nossa única salvação. Desta época envenenada, eu não quero
nem saber 16...
Após a guerra, com o mesmo grupo mas sob uma nova consigna: Os Bonecos à
Francesa, Baty monta quatro outras peças entre as quais o Fausto popular, adaptado e
criado em 1948, e faz um grande sucesso entre os bonequeiros. Os críticos, cronistas fiéis
de suas encenações, ficam perplexos. Pol Gaillard fala desta “nova quimera de Gaston
14 André‐Charles Gervais. Bonecos e bonequeiros da França. Bordas, Paris, 1947, p. 12
C. Cezan.”No Palácio do Louvre, graças a Gaston Baty, o boneco conclui uma viagem de três séculos”, Paris‐
15
Midi, 1º de abril de 1944
16 Arthur Simon, Gaston Baty teórico do teatro. Edições Klincksieck, Paris, 1972
19
METAMORFOSES
Baty” como de uma tentativa infeliz de encontrar seu caminho. Os bonequeiros deram‐
lhe reconhecimento a despeito do caráter literário de seu teatro. Eles acolheram seus
outros espetáculos com entusiasmo. Baty, a partir de então, vai estar do seu lado. Os
meios e as convenções do teatro de bonecos se encontram enriquecidos pelo exemplo de
uma encenação perfeita e aspiram a tornar‐se um verdadeiro teatro segundo as regras
da arte. Infelizmente, os bonequeiros foram praticamente os únicos a se darem conta.
Os espetáculos e os métodos de trabalho de Baty entram logo para a história
graças a seus discípulos Alain Recoing e Jean‐Loup Temporal, que tornam públicas suas
experiências e proclamam, não sem orgulho, a excelência de seu mestre. Eles irão dirigir,
na continuidade, suas próprias trupes. Temporal toma suas distâncias em relação às
idéias de Baty, mas seus espetáculos “literários” dão prova de suas raízes comuns.
Recoing segue também os ensinamentos de seu mestre e resta fiel à técnica do boneco
de luva, sem dúvida ainda mais impulsionado pela realidade teatral dos anos 60. Baty
permanece na memória de todos os bonequeiros franceses como o homem que fez o
teatro de bonecos se beneficiar de seu profundo saber e de suas competências no campo
da arte dramática.
Obraztsov: um mestre inconteste
Obraztsov vai se engajar nesse mesmo caminho. Suas primeiras experiências de
ator dramático inspiraram amplamente suas inovações no teatro de bonecos ao assumir,
em 1930, a direção do teatro Central de Bonecos de Moscou. Inicia‐se primeiro como
amador e obtém um franco sucesso com seus bonecos que lhe permitem exprimir todos
os seus talentos: canta antigas romanças russas e ciganas, contrapondo‐as à imagem
provocadora de seus heróis; o efeito cômico é garantido. Além disso, seus estudos do
canto, artes plásticas e sua prática teatral o prepararam perfeitamente para abraçar a
profissão de bonequeiro. Obraztsov mostra o homem sob um aspecto bem divertido,
revelando um dom extraordinário para a observação da natureza e das fraquezas
humanas. O homem, o personagem dramático, está no coração de seus interesses.
Buscando exprimi‐lo com um espírito essencialmente satírico, ele estuda todos os meios
de expressão. Suas pesquisas sobre o boneco de luva o levam a abandonar, nos anos 20,
a roupa do boneco para pôr a mão sem nada. Ele cria um gênero onde a mão pode
encarnar personagens, confronta seus bonecos a um objeto, um acessório miniatura ou a
um objeto autêntico. Afastando‐se assim do verossímil, a diversidade das funções da
matéria cênica o fascina. Cantando frente ao pano A Berceuse de Moussorgsky para um
bonequinho chamado Tiapa, Obraztsov mostra ao público seu antebraço que é ao
mesmo tempo o corpo de Tiapa e o seu. A dupla função da matéria constitui, para
Obraztsov, uma descoberta da essência do teatro de bonecos. Ainda hoje, o
funcionamento cênico de Tiapa resta como referência do fenômeno de dupla visão ou
de opalinização no teatro de bonecos.
Quando Obraztsov dirige o Teatro Central de Bonecos de Moscou, ele elabora
um novo repertório socialista e respeita o realismo socialista, como o testemunham seus
primeiros espetáculos muito politizados do início dos anos 30 (a discriminação dos
negros nos Estados Unidos, as greves operárias na Itália, etc.). Oriundo da intelligentzia,
20
PREMISSAS
Obraztsov julga que a revolução é sem dúvida bem fundamentada, como a maioria dos
artistas da época. Entretanto, ele jamais se pronuncia sobre nenhuma questão de ordem
política. Desde que ele teve a possibilidade de voltar ao conto, mesmo tratado à moda
socialista – À Ordem do Lúcio (1936) ‐, e à representação dos valores morais – O Alezan
segundo Tchekov ‐, ele se libera de um sistema de pensamento político que não é o seu.
Os bonecos de luva de seu início introduzem um elemento grotesco, mas este não é
suficientemente forte para atenuar o realismo da animação e o da história. O mimetismo
se desenvolve nos seus espetáculos quando ele introduz bonecos de vara (variante
européia do wayang), melhor adaptados para imitar o homem. A Lâmpada Maravilhosa
de Aladim (1940) parece muito poética a inúmeros críticos, e suas criações sucessivas
testemunham a que ponto este boneco parece corresponder à estética do realismo
socialista.
Recusando‐se a considerar o boneco como uma escultura em movimento,
insistindo sobre sua função teatral enquanto personagem, ele desenvolve
essencialmente a idéia da especificidade do boneco. Em O Ator e o Boneco, primeira obra
que consagra ao assunto, surgida em 1936, ele escreve: A realidade do boneco se exprime
por sua oposição direta à imitação do homem. Sobre isto, estou em desacordo com meus
companheiros de armas, bonequeiros e pedagogos, que por diversas razões consideram que o
boneco deve absolutamente assemelhar‐se ao homem e que este é o único boneco que agrada às
crianças. Esta semelhança, que faz do boneco uma minúscula figura de museu é apavorante, e de
todo modo é falsa. A realidade do boneco reside no fato de que por sua natureza ele permanece um
boneco e está livre da crítica de ser um objeto de museu e do desejo místico que se tem de fazer
dele um ser humano. O mistério do boneco está na é sua metamorfose sob os olhos dos
espectadores em ator de possibilidades infinitas enquanto continua evidentemente se tratando de
um boneco.17
As obrigações ideológicas do Teatro Central de Bonecos não lhe permitem
desenvolver sua teoria dos anos 30, ao menos no que diz respeito aos espetáculos
contemporâneos. Quanto mais seu programa de solista faz a unanimidade, tanto mais
seus espetáculos no Teatro Central são objeto de uma outra atenção e põem em causa a
estética adotada. Isto não impede Obraztsov de aparecer, no pós‐guerra, como um
mestre inconteste do boneco. Diretor artístico de uma trupe importante, ele se engaja
num trabalho de tipo laboratorial, como o faz Baty, e tenta harmonizar os meios de
expressão e o tema da peça a fim de obter um espetáculo o mais bem acabado possível.
Em seus primeiros tempos, o Teatro Central de Bonecos é itinerante. Estimulado
pela carência de salas de teatro, Obraztsov inventa um dispositivo cênico original para
cada uma de suas criações. Um princípio que poderia fazer sonhar a todos os diretores,
e que ele conserva até 1937 quando o Teatro Central se instala na praça Maiakovski,
com um teatro miniatura permanente e uma cena fixa que servem de base a todas as
suas encenações, muito diferentes das do período itinerante. A seguir esse modesto
teatro não lhe basta. Em 1970 o Estado lhe oferece um teatro moderno no qual ele
Serguei Obraztsov, Akter s Kukloi (O ator e o boneco). Gosudarstvennoe Izdatelstvo Iskusstvo,
17
Moscou‐Leningrado, 1938, p. 78.
21
METAMORFOSES
próprio define as necessidades técnicas. Encontro aí as razões de seu sucesso e de seu
fracasso. O teatro compreendia dois auditórios. Na sala para adultos ele constrói
espaços específicos para a representação e coloca sob o chão e no teto espaços
reservados para os alto‐falantes permitindo efeitos sonoros e uma estereofonia perfeita.
Entretanto, Obraztsov utiliza muito pouco os equipamentos desse teatro: eles punham
um freio à sua imaginação.
Nascimento de um ofício
Obraztsov atrai o público pela perfeição de seu jogo e pela qualidade de sua arte.
Seja em Moscou ou em turnê, os espetáculos do Teatro Central de Bonecos são sempre
teatrais. Ele põe em prática os fundamentos teóricos elaborados pelo próprio Obraztsov,
que gosta de comentar e teorizar sua prática para transformá‐la em regras profissionais.
Minha Profissão, publicado em 1980, descreve sua tomada de consciência de um ofício
que ele tinha a sensação de estar criando. Suas idéias coincidem, aliás, com o interesse
que toda a Europa manifesta então pela especificidade do teatro de bonecos. No 5º
Congresso da UNIMA, que acontece em Bucareste em 1958, ele destacou a importância
do teatro de bonecos e do lugar ocupado por ele entre os gêneros dramáticos: O homem
sempre sentiu a necessidade de generalizar os fenômenos de sua vida de uma maneira
particularmente expressiva. Assim, o teatro de bonecos deve existir ao lado da sátira e da epopéia
romântica, ao lado de Swift e de Homero, de Rabelais e de Gogol. Ele é necessário aos homens
enquanto arte do espetáculo única em seu gênero, insubstituível. Nenhum ator, com efeito,
poderia jamais representar o homem em geral, pela simples razão de que ele próprio é um homem.
Só o boneco pode fazê‐lo, pela simples razão de que ele não é um. Um boneco animado possui uma
enorme força de ação, pelo próprio fato de que ele se anima. Mas essa ação perde sua força se o
boneco, em lugar de representar, deve substituir o homem porque o acumulam de tarefas que o
ator realiza em cena.18
Foi nesse critério que se baseou Obraztsov ao longo de sua carreira. Pode‐se
acrescentar que seus bonecos têm um caráter de boneco e esse lado boneco agradava ao
público. Entretanto, seu repertório permanece bastante limitado: admirável mestre da
ilusão no campo do conto, excelente autor de sátiras, em particular, de espetáculo de
variedades – Um Concerto Excepcional (1946) fez o mundo inteiro rir – ele insiste sobre o
milagre da vida do boneco, sobre a necessidade de provocar o espanto no espectador ao
ver esses bonecos de aparência inerte possuir vida própria e evocar os problemas da
existência. Esses bonecos se movem com perfeição (um único boneco pode ser
manipulado por vários animadores dissimulados), dialogam, mantêm um contato
visual, olham‐se uns aos outros, depois ao público de quem esperam uma reação. Os
bonecos de Obraztsov vivem, é incontestável, e o milagre da animação faz a felicidade
das crianças como dos adultos. Mas eles permanecem no mundo da fábula animal, do
conto de fadas, da fábula satírica, de uma visão caricatural da realidade cotidiana. As
18 Sergueï Obraztsov. Znaczenie teatru lalek i jego miejsce wsród innych rodzajów sztuki teatralnej. (A
importâancia do teatro de bonecos e seu lugar entre os outros gêneros da arte dramática). Teatr Lalek, Varsóvia,
1958, p. 12
22
PREMISSAS
relações entre personagens, os conflitos e as alianças são tratadas de tal maneira que
evocam, segundo a crítica da época, os princípios de Stanislavski. Obraztsov reagia a
isso com vigor: Se a fórmula de Stanislavski “eu numa situação complicada” é uma boa
consigna para um ator, ela deve ser colocada na terceira pessoa pelo ator do teatro de bonecos:
“ele numa situação complicada” (...) O que é que muda na psicologia do ator se em lugar da
palavra “eu” se emprega a palavra ele? Muitas coisas. O ator torna‐se o diretor do papel. Ele vê
seu herói. Ele o vê realmente. E ele não decide simplesmente a ação física do boneco, ele observa
também os resultados de seu jogo.19
A idéia de que o ator é ao mesmo tempo intérprete e diretor do papel ilumina
muitos aspectos e mistérios da profissão de bonequeiro. Entretanto, por mais justa que
seja esta definição do papel do ator marionetista, os bonequeiros dos anos 60
consideram os espetáculos de Obraztsov como uma realização de seu puro desejo de
imitar o mundo dos homens. De minha parte, acrescento tranqüilamente que essa
necessária dispersão da atenção do bonequeiro sobre varias ações simultâneas marca
toda a diferença entre o jogo do bonequeiro e o do ator. Obraztsov pensa que o
bonequeiro é o próprio diretor de seu boneco, isto é, que ele cria seu papel enquanto
observa o resultado de seu jogo. Trata‐se aí de um outro aspecto dessa relação. Eu
constatei que a possibilidade de identificação de um bonequeiro com seu personagem
restava muito limitada.
Uma nova profissão
Baty e Obraztsov trazem ao teatro de bonecos sua experiência e sua prática do
Teatro. Com regularidade são encenadas obras literárias, dramáticas de preferência, nas
quais o boneco torna‐se um sujeito cênico que prolonga a existência do personagem
dramático. De outro lado, o profissionalismo prospera no teatro de bonecos e os
bonequeiros, para alcançar o sucesso tão esperado, se limitam à aquisição de
capacidade para interpretar o texto, organizar o espaço cênico em colaboração com a
cenografia, a ensaiar e experimentar para permitir ao ator interpretar seu papel e
aperfeiçoar sua atuação. Quaisquer que sejam as críticas que se possa formular com
respeito aos erros artísticos de Baty e aos meandros estéticos do realismo socialista ao
qual Obraztsov às vezes cede, não resta nenhuma dúvida que esses dois artistas
trouxeram benefícios ao boneco com seu profissionalismo, inauguraram uma nova
profissão e contribuíram enormemente para a metamorfose do teatro de bonecos.
As mudanças das políticas culturais de vários países após a Segunda Guerra
Mundial trouxeram de volta ao debate o problema das tradições e das particularidades
nacionais. Na Checoslováquia, as relações entre teoria e prática influíram na renovação
do teatro de bonecos. Erik Kolar volta ao tema que opôs, nos anos 30, Nina Efimova e
Obraztsov. Kolar segue o ponto de vista de Obraztsov e rejeita a noção do teatro de
bonecos enquanto arte plástica. Ele defende a tese de que o boneco responde às leis da
arte dramática: As convenções da arte dramática dizem respeito do mesmo modo ao teatro de
19 Serguei Obraztsov. Moïa profesia (Minha profissão) . Iskusstvo, Moscou, 1980, p.388.
23
METAMORFOSES
bonecos, em particular a regra do jogo cênico (físico e verbal), a importância do conflito, a
necessidade de produzir um efeito emocional e de fazer passar uma mensagem intelectual, o
desenvolvimento da ação, o caráter bem marcado dos personagens, expresso, sobretudo, pelas
ações mas em geral explicado por uma linguagem específica. Do que foi dito, deduzo que o teatro
de bonecos enquadra‐se no campo do teatro. E ainda que não considere o teatro de bonecos um
ramo das artes plásticas, não posso negar que nele as artes plásticas jogam uma papel muito mais
importante do que no teatro de atores. No teatro de bonecos, com efeito, o personagem dramático
é em parte representado por uma voz humana e por um artefato plástico em movimento. Dado
que no teatro de bonecos – como no teatro de atores ‐, as artes plásticas são um elemento auxiliar
submisso às intenções do diretor, elas jogam o papel de uma arte utilitária. 20
Ator ou bonequeiro?
Este desejo de elevar a marionete na hierarquia das artes é retomado pela maioria
dos artistas. De fato, a análise das estruturas do teatro de bonecos e a abordagem teórica
do jogo encontram um novo campo de exploração. A concepção do teatro de bonecos
enquanto teatro torna‐se uma novidade quase revolucionária. Assiste‐se a uma
especialização profissional que dá nascimento a uma nova terminologia. Começa a
falar‐se de diretores de bonecos e de atores bonequeiros que substituem os antigos
bonequeiros‐manipuladores. A noção de ator‐bonequeiro ganha espaço nos teatros
nacionais e principalmente na Europa do Leste, onde provoca reações. Obraztsov
emprega o termo “bonequeiros”, mas sua obra se intitula O Ator e o Boneco. Logo após a
guerra, os bonequeiros poloneses nomeiam seus teatros “teatros do boneco e do ator”, para
surpresa de seus homólogos estrangeiros. Na Checoslováquia, o editorial do
Ceskolovensky Loutkar de fevereiro de 1965 lança um debate teórico: “Ator com boneco ou
manipulador?”. A maioria dos artistas‐bonequeiros são favoráveis à assimilação do
bonequeiro ao ator. Mas como este ator deve jogar? Essa questão vai ficar para sempre
sem resposta?
Nos anos 60, os adeptos desta assimilação se perguntam se o realismo
stanislavskiano convém mesmo ao jogo do ator no teatro de bonecos. Não podemos
utilizar o conjunto do sistema de Stanislavski no teatro de bonecos, mas isso não significa, por
outro lado, que não possamos utilizar alguns de seus elementos, sobretudo os que têm relação
com os estados de criação interior, ou seja, a técnica do jogo interno, sem esquecer a técnica do
jogo externo. O que um bonequeiro deve, sobretudo, reter de Stanislavski, é seu postulado de fé
ingênua. O bonequeiro deve permanecer uma criança, deve acreditar no maravilhoso e não perder
seu talento para o jogo, seja para representar um dragão, um duende ou a lua. Só esta fé ingênua
“na situação dada”, com a qual começa todo teatro, permite realizar‐se o milagre da encarnação.
21
Erik Kolar. Je loutkove divadlo formou vytyrvaného ci divadelniho umeni? (O teatro de bonecos é uma arte
20
plástica ou uma arte teatral?) Ver: Frantisek Sokol, op. cit., p. 188.
Erik Kolar.System Stanislavskeho a loutkove divadlo (O sistema de Stanislavski e o teatro de bonecos).
21
Ceskoslovensky Loutkar, 1965, no. 6,p. 123.
24
PREMISSAS
O milagre da encarnação repousa sobre a inocência de um jogador que deve se
defrontar com tarefas mais difíceis do que as de um ator. Os estudos de Kolar trazem
preciosas observações sobre a especificidade do jogo do ator, em particular sobre a
concentração, ou melhor, sobre a dispersão de sua atenção (atraída pelo boneco de seu
parceiro, por seu próprio boneco, pela pessoa de seu parceiro, pelo público), que,
enquanto ponto de partida do jogo, necessita uma nova técnica.
A oposição entre bonequeiro e ator não reveste unicamente um caráter
terminológico, mas filosófico. O bonequeiro serve o boneco e a presença em cena do
ator modifica sua relação. Se a noção de ator põe o acento sobre a pessoa que está
“ativa“ em cena, o ator que manipula o boneco em cena, força responsável de seu
movimento, não se coloca em dúvida a especificidade do boneco. A manipulação à vista
só faz aumentar seu alcance e assim, à especificidade das atitudes virtuais do boneco,
acrescenta‐se a do conjunto do sistema teatral.
Artista ou artesão?
Se no Oriente, os teatros nacionais podem introduzir uma especialização teatral,
no Ocidente o bonequeiro permanece um artista artesão, que cria sozinho seu teatro: da
confecção dos bonecos à realização em solista do espetáculo (ás vezes com um ou dois
assistentes). Nesse espírito, Jan Bussell escreve em 1950: “O bonequeiro deve ser
considerado ao mesmo tempo como um artista e como um artesão. O artesanato é tão importante
para ele quanto para um pintor. Mas esta é apenas a primeira das exigências que se têm em
relação a ele. Há bonequeiros que não se elevarão jamais acima do nível do artesão e outros que
têm talentos artísticos e nenhum para o artesanato. Esses dois grupos só podem alcançar o
sucesso se tomam consciência de seus limites e se engajam um pouco para compensar suas
carências.22
Bussell se interessa igualmente por outros aspectos do teatro de bonecos, em
particular a marionete: afastada do marionetista, é muito difícil para este transmitir‐lhe
suas emoções, se é que isto é possível. Os apresentadores de bonecos de luva ou de
bonecos de vara, sobre neste plano, foram sempre privilegiados. Então, se as tarefas de
um ator bonequeiro se limitam à criação de um personagem cênico ao utilizar o boneco,
o trabalho de um bonequeiro artesão não tem nada em comum com o “jogo do ator”, e
Bussell completa: Os bonequeiros devem respeitar os seguintes princípios: o bonequeiro, em seu
teatro, deve reinar sobre o boneco, a técnica e o público. Ele escolhe formas que lhe dão prazer. Ele
exprime sua opinião sobre a humanidade, seja pela sublimação, seja pela caricatura. E o boneco
deve ser um trampolim para a imaginação. O bonequeiro deve entreter a mistificação e seu
trabalho lhe proporcionar alegria.23.
22 Jan Bussell, The Puppet and his Master (O boneco e seu Mestre). British Puppet Theatre, julho de 1950, p. 20.
23 Jan Buessel, Ibidem, p. 13
25
METAMORFOSES
Que caminho para o teatro?
Essa reflexão nos leva a uma outra, ligada ao uso da voz. Assunto amplo e
complexo, no que respeita à tradição. As primeiras figuras articuladas são mudas como
os primeiro bonecos. Se um “primeiro“ bonequeiro decide produzir uma voz de boneco,
trata‐se sempre de uma voz artificial ou deformada pelo emprego de um instrumento
chamado “pivetta”, “apito”, ”pratique” ou ʺswazzle”. Quando as autoridades civis e
teatrais aceitam que o boneco fale com voz clara, o texto da peça é dito pelo chefe da
trupe enquanto seus assistentes manipulam. Pode‐se ver aí uma razão para qualificar o
bonequeiro de manipulador mais do que de ator? Inúmeros bonequeiros pensam, aliás,
que no espírito da tradição, a voz e a fala são os atributos naturais do boneco e muitos o
pensam ainda. A deformação da voz do boneco praticada há vários séculos exprime o
desejo de encontrar uma forma que corresponda a sua natureza artificial. Na Inglaterra,
a tradição sofre essas mesmas restrições, e Miles Lee trouxe‐as a público nas colunas de
Puppet Master, em 1956: Embora a palavra seja um elemento vital para o personagem do
boneco, não é o mais importante, pois muitos bonecos têm “emocionado“ seu público sem
palavras. Para mim, só existem dois meios satisfatórios de utilizar a palavra no teatro de bonecos.
O primeiro, e sem dúvida o mais difícil, é que o próprio manipulador fale e atue em nome de seu
boneco. O segundo é um ator recitante que colabore com o manipulador da maneira a mais
próxima possível24.
Uma prática igualmente difundida nos países do Leste. Nos anos 50, Margareta
Niculescu introduz um novo meio técnico. No final do último ensaio, as vozes dos
personagens são gravadas numa fita pelos atores do teatro de Bucareste a fim de
enriquecer a cor e o timbre sonoro e romper com os limites das posições tomadas pelos
bonequeiros no exercício de seu jogo. Bussell se interroga sobre essa prática. O
animador deve falar em nome do boneco quando há um texto no espetáculo? Sem
imaginar que o teatro de bonecos possa utilizar textos dramáticos, ele sublinha a
importância e o prestígio do bonequeiro que sabe interpretá‐lo. Entre as tarefas do ator
figura a arte de falar. O animador deve pois falar no lugar de seu boneco. Todo ator que se
respeita ficaria terrivelmente incomodado se lhe dissessem para elaborar seu papel unicamente no
plano visual enquanto um outro dissesse suas réplicas atrás da cortina, ou elas fossem gravadas
25.
A formação profissional
24 Miles Lee. Speech and the Puppet (A fala e o boneco) The Puppet Master, setembro de 1965, p. 18
25 Jan Bussell. O teatro de bonecos e seus laços com as outras disciplinas artísticas com uma menção especial para o
cinema e a televisão, in: Conferência da UNIMA O teatro de bonecos e seus laços com as outras disciplinas
artísticas. Varsóvia, 19‐24,junho de 1962, p.3.
26
PREMISSAS
o boneco. Ele tem a oportunidade de aceder a uma linguagem teatral e poética. A
especificidade do boneco não desaparece, no entanto. A tradição e os impulsos dados
pelo teatro estão na origem de sua metamorfose. Além disso, ela se inscreve numa
lógica em que a experiência coletiva vem substituir um percurso individual, de um
ponto de vista diacrônico e sincrônico, para se desenvolver no mundo do teatro.
O teatro de bonecos se profissionaliza, reforça sua prática e desenvolve uma
cultura teatral. Ele é devedor dos atores e diretores de arte dramática evocados neste
capítulo, mais sensíveis que outros à especificidade do boneco. O funcionamento do
trabalho dos bonequeiros tinha mudado pouco. Na primeira metade do século, um bom
número dentre eles não tinha freqüentado a família do teatro nem tido a ocasião de se
impregnar de seu potencial. Em certos casos, o bonequeiro prefere o papel de
“performer”, em particular nos espetáculos de cabaré ou de variedades, ao de ator. As
contribuições da arte dramática ao teatro de bonecos foram um verdadeiro choque para
esses bonequeiros. Eles reivindicaram seu direito à improvisação, tanto no plano
plástico como na concepção de seus espetáculos. Essa profissionalização os prepara
para uma futura e inevitável confrontação com as outras artes do espetáculo.
27
II - REFORMAS
AS PEQUENAS FORMAS
A Segunda Guerra Mundial marca uma ruptura na evolução do teatro de
bonecos. As relações profissionais entre bonequeiros dos diferentes países foram quase
totalmente cortadas. No fim da guerra, o teatro provém das trincheiras, dos campos e
barracas de soldados. Os bonequeiros conservaram a lembrança dos grandes mestres,
de suas consagrações e do renascimento do boneco. Eles também têm na memória os
princípios elaborados nos anos 30 e a necessidade de uma prática profissional definida
pela teoria da especificidade. Mas de outro lado, os artistas plásticos que garantiram
uma abertura aos novos meios, trabalhando à margem da profissão e sem levar em
conta a poética normativa admitida por todos, não necessariamente eram vistos como
referência.
Na França, Geza Blattner, diretor do Teatro do Arc‐en‐Ciel em Paris desde 1929,
é um bom exemplo disso. Ele é o primeiro artista a transgredir voluntariamente a
homogeneidade do teatro de bonecos. Apaixonado por esta arte, ele não adapta seu
repertório, mas, ao contrário, inventa novas formas necessárias às suas criações. Ele
começa por utilizar bonecos de luva e marionetes, que modifica ao máximo, depois
imagina bonecos com chaves permitindo gestos nobres e hieráticos assim como
algumas variantes do wayang indonésio. Ele elabora bonecos dobráveis que podem
representar de frente e de perfil. Seus bonecos de luva têm cabeça de arame para que
projetem sua sombra no fundo do cenário; o valor estético do material é posto a nu, e
ele utiliza manequins imóveis e “bonecos máscaras” que têm a aparência de fantasmas.
De uma inventividade prodigiosa, ele fabrica um personagem narrador, um boneco cuja
cabeça é uma antena de rádio, as orelhas, receptores telefônicos, com um diamante no
lugar do coração e rodas de bicicleta no lugar das pernas, como para evocar certas
idéias expressionistas de George Grosz. A imaginação de Blattner e seu gosto pela
experimentação fazem dele um artista à parte no mundo dos bonequeiros. Sua
atividade faz um anúncio prematuro da grande metamorfose do teatro de bonecos
dessa segunda metade do século? A ironia da sorte quis que sua influência fosse
relativamente pouco importante, sua obra não atravessasse as fronteiras da França e a
Segunda Guerra Mundial suspendeu temporariamente o interesse dado à inovação.
Ao fim da guerra segue‐se a cortina de ferro que só faz reforçar o isolamento de
todo mundo. Os países do Oeste temem a doutrinação comunista, aqueles do Leste, a
insensibilidade e a decadência da arte “capitalista”. A desconfiança reina até a morte de
Stalin. Desde então, as mudanças políticas na União Soviética permitiram sair desse
impasse. A continuidade da guerra fria não impedia os artistas dos blocos políticos
inimigos de se encontrarem (e, entre eles, os bonequeiros). O futuro está nas mãos de
homens e mulheres dispostos, prontos a deixar de lado a desconfiança dos políticos, e
às vezes mesmo a dos artistas que se identificavam com as ideologias políticas. Harro
Siegel, na Alemanha do Oeste (1957), Roger Pinon, na Bélgica (1958) e Margareta
28
REFORMAS
Niculescu, na Romênia (1958) tomaram a iniciativa de organizar encontros para
contribuir com o desenvolvimento de uma colaboração internacional e criar uma
atmosfera propícia à pesquisa de novas orientações. Em Liége, Pinon e a Comissão do
Folclore decidiram fazer o inventário dos teatros tradicionais sobreviventes da tormenta
da guerra. Em Brunswick, Siegel, escultor e marionetista realiza seu desejo de reunir as
mais recentes inovações artísticas. Em Bucareste, Niculescu inaugura um grande
festival que apresenta um extraordinário panorama das diferentes correntes artísticas
da marionete mundial. Estes encontros, e em primeiro lugar, o Festival Mundial do
Teatro de Bonecos de Bucareste (1958) termina com as hierarquias entre artistas
bonequeiros. Skupa, Podrecca e Obraztsov vêm afirmar‐se como uma nova geração de
artistas que traz ao teatro uma energia renovada e uma nova visão da arte, tanto dos
espetáculos de cabaré e de pequenas formas quanto dos espetáculos dramáticos. Todos
estes encontros alimentam reflexões e mudanças sobre a teoria da arte do boneco, suas
relações com as outras artes assim como sobre os aspectos estéticos da linguagem
teatral.
O impulso dos solistas
A Semana do Teatro de Bonecos de Brunswick em 1957 é dominada por
pequenas formas e inúmeros solistas da marionete. Essas marionetes e seu potencial
estético, formal e gestual vão literalmente centralizar a atenção dos profissionais e
estimular inúmeros estudos. Marcel Marceau, no prefácio do livro de Tankred Dorst,
mostra‐se muito impressionado por Baptista, marionete do jovem marionetista Michael
Meschke. Ele evoca as semelhanças entre mímico e marionete, que, se exprimem, tanto
um como outro, por meio do gesto. Marceau tem uma boa compreensão da técnica e da
expressão dessas marionetes. Ele depreende nisso uma dimensão metafísica. O boneco
de luva é dramático, a marionete é lírica. Seus movimentos, lentos e econômicos são
carregados de significação. Criando assim sua própria poesia, o bonequeiro joga com os
objetos como se fossem vivos, como instrumentos poéticos. Uma das grandes
possibilidades desse jogo é exatamente a de poder romper os entraves da realidade26.
Movimentos e gestos carregados de sentido são um postulado natural, lógico e
importante numa prática profissional. Os amadores se contentam com um simples
tremor ou uma sacudidela para sugerir vida. O desafio era encontrar o caminho para
chegar a um movimento que tivesse sentido.
Ladislav Fialka, mimo, julga o teatro de bonecos através de suas experiências no
cinema de bonecos e sua colaboração com o grande mestre do cinema de animação
tcheco: Jiri Trnka. Fialka está convencido que o bonequeiro deve respeitar a natureza do
boneco, sua qualidade de objeto e movê‐lo segundo suas capacidades materiais e
técnicas. Ainda que imperfeito para descrever o comportamento exterior do homem, o
boneco conserva uma chance de transmitir a verdade sobre suas experiências interiores.
A seus olhos, a pantomima de bonecos é muito diferente dos espetáculos de mímica.
Tankred Dorst. Geheimnis der Marionette. Mit einen Vorwort von Marcel Marceau (O segredo do boneco.
26
Prefácio de Marcel Marceau.) Hermann Rinn Verlag,Munique, 1957, p. 8‐9.
29
METAMORFOSES
Antes de mais nada, e em particular, porque a pantomima moderna fundamenta‐se numa tensão
ao mesmo tempo física e psíquica, que o boneco não tem e não pode ter. O boneco serve‐se da
forma do movimento, orienta‐se por sua conclusão e não por seu desenvolvimento. Mais do que a
tensão do movimento, o homem vivo exprime o próprio movimento. Impossibilitado de fazer
movimentos fluidos, o boneco só consegue ser convincente no início e no fim do seu movimento,
que evolui de uma fase a outra, de uma pose a outra, de um gesto a outro. Para o boneco, o que
acontece durante essa passagem não tem nenhuma importância 27.
A análise da representação feita por Fialka chega, de fato, a um grau extremo que
foi bem pouco praticado pelos bonequeiros de seu tempo. Muitos, com efeito, só
trabalharam de modo intuitivo.
Na Alemanha, Roser, jovem solista, aborda a pantomima, próxima do método
proposto por Fialka. Ele apresenta em 1951 seu primeiro boneco, o clown Gustavo – seu
alter ego. Escultor, fabricando bonecos para artistas conhecidos, ele se lança na criação
após a guerra e apresenta: “Gustaf und sein Ensemble” em Brunswick. Um ano mais tarde,
em Bucareste, ele é aclamado por um grande público de bonequeiros e críticos, saudado
como um verdadeiro mestre.
Os solos são uma forma bastante difundida que se ligam, com toda evidência,
aos espetáculos de variedades tão populares no século XIX. Eles foram retomados pelos
grandes mestres da primeira metade do século XX como Podrecca e Skupa. Os bonecos
de variedades também fazem parte dos espetáculos de trupes itinerantes de atores que,
após ter apresentado a peça principal, divertem o público com desfiles de bonecos,
vedetes do circo e da cena. Os solistas de nossa época conservam este princípio para
expôr sua habilidade em imitar atletas, dançarinos e cantores, ou para representar
curtos sainetes. Às vezes, retomam as marionetes da era vitoriana, como o esqueleto
saindo de seu caixão e a ele voltando após se ter deslocado. Neste registro, Eric Bramail
tornou‐se célebre graças a seu Arlequim que, por sua vez, também dirige um Arlequim
menor; o sumo da técnica.
Roser se distingue de seus contemporâneos não apenas pela qualidade de sua
interpretação e a renovação dos temas, mas também por sua concepção do boneco, num
contexto social e artístico novo, ou seja, um boneco “figurativo”, retrato estilizado de
um personagem humano ou de qualquer outro personagem (alegorias, personagens
fantásticos, animais). Roser continua, ao menos em seu primeiro período, no universo
da mímese estilizada, que inspira sua própria expressão artística. Seu espetáculo
compreende diferentes seqüências, entre as quais estudos maravilhosos do movimento
com a “Cegonha”, uma reflexão sentimental sobre a natureza do ser humano em “O
Clown das Flores”; uma sátira das reações humanas estereotipadas com “O Conselheiro
Secreto” que pronuncia um discurso estúpido, os encantos da vida de cabaré de “A
Beleza da Noite” e, na seqüência, um comentário sobre as recentes experiências humanas
da Segunda Guerra Mundial. No fim do espetáculo Gustaf desvenda seu caráter
Jindrich Halik, Navstevou u Ladislava Fisalky (Visitando Ladislava Fialka), Ceskoslovensky Loutkar,
27
Praga,1964,no.5, p. 54.
30
REFORMAS
narcísico e generoso, e “Oma” comenta os últimos acontecimentos. Gustaf entra em cena
de fraque, espera os aplausos, mia para agradar o público, incomoda a assistente: como
grande vedete, ele desfila a cavalo ou representa os virtuosos ao piano. Esta brilhante
demonstração de jogador de variedades forma toda sua personalidade. Mas o momento
importante do espetáculo acontece quando Roser desvenda a natureza artificial de seu
clown. Gustaf era efetivamente uma vedete, mas o mais engraçado eram suas relações com Roser.
Certo, via‐se Roser puxar o fio para que Gustaf levantasse a mão e tocasse seu joelho, mas isso
não impedia de parecer autônomo o gesto de Gustaf. Ele levantava os olhos para Roser tentando
atrair sua atenção e indicando‐lhe com a outra mão uma pequena cadeira que era preciso
aproximar do piano. Ina, a assistente de Roser, a aproxima. Gustaf senta‐se e vai se pôr a tocar
quando um de seus fios se prende na guarda da cadeira, impedindo‐o de levantar o braço. Tal
incidente às vezes gera catástrofes e todos os marionetistas o temem. Dessa vez, o perigo é
conjurado por Ina que solta o fio. Gustaf se volta e lhe agradece por um movimento de cabeça. Os
espectadores reagiram com risos e aplausos. Gustaf era ao mesmo tempo uma marionete ‐ cujo fio
se tinha enganchado – e uma criatura viva ‐, ele agradecia a Ina por tê‐lo soltado28.
Obraztsov apodera‐se imediatamente dessa dicotomia existencial de Gustaf. Sua
análise parece evidente hoje, mas nos anos 50, ela constituía um ponto forte do
funcionamento estético. Alguns anos mais tarde ela me serviu para desenvolver a teoria
da opalinização29 e nesta mesma perspectiva, Steve Tillis30 propõe sua teoria da dupla
visão.
Respeitando em aparência as convenções do teatro de marionetes clássico, Roser
lhe dá um novo fôlego. O teatro clássico tem por princípio que a marionete seja um
sujeito e que só ela detém o privilégio de suscitar a emoção do público. Roser contesta
este princípio sem renunciar a ele inteiramente. Ele lembra que o homem, o animador,
permanece o sujeito e que a marionete só joga esse papel se seu criador exprimir essa
vontade. Os espetáculos de Roser desmistificam a marionete enquanto sujeito e nos
fazem imediatamente duvidar da verdade desta desmistificação. Este resultado é obtido
por dois métodos: a opalinização, ou seja, mostrando as duas facetas da marionete,
objeto e personagem (portanto sujeito) que passam alternativamente de uma vida à
outra. De outro lado, a remistificação da vida da marionete, isto é, sugerir que a
marionete tem uma vida mágica, que ela toma também consciência de sua vida de
marionete (Gustaf pede a Roser para desenganchar seu fio). O próprio Roser está
convencido da existência de um diálogo entre a marionete e seu animador. Cabe
exclusivamente ao marionetista encontrar a linguagem de seu boneco. Ele deve escutá‐lo, senti‐lo,
pressentir seus movimentos e ficar à escuta de seus gestos. Melhor dizendo, a iniciativa se
encontra sempre nas mãos da marionete. Enquanto ator, eu não tenho direito a nenhum desejo. A
28 Serguei Obraztsov. Festiwal w Bukareszcie (O festival de Bucareste). Teatr Lalek, 1960, no. 10, p.38.
Henryk Jurkovski. Aspects of puppet theatre (Aspectos do teatro de bonecos).Puppet Theatre Trust,
29
Londres, 1988, p. 41
Steve Tillis, Toward an aesthetics of the puppet Puppertry as a theatrical art. (Para uma estética do boneco.
30
Boneco como uma arte teatral) Greenwood Press, New York, 1992, p. 64.
31
METAMORFOSES
marionete deve jogar comigo, cabe a ela me transmitir seus desígnios. São necessários anos,
talvez uma dezena de anos, para descobrir esse segredo31
A remistificação proposta por Roser seduz muitos outros marionetistas, tal Milos
Kirschner, diretor do Teatro de Spejbl e Hurvinek desde 1957, que retoma a idéia sob a
forma de um diálogo entre marionetes e animadores. Numa criação de Philippe Genty,
“Pierrot” tendo observado a presença de seus fios, arranca‐os todos um a um em sinal
de revolta, até que a morte chegue. Vamos encontrar o mesmo tema em Henk
Boerwinckel, que desenvolve amplamente a cena de Genty. Entretanto, a presença
desse tema, diversa e abundantemente tratado, não prova que os marionetistas tenham
tido gosto pelo imitação. Ela significa simplesmente que inúmeros artistas se voltaram
para a problemática existencial do boneco. Em princípio, nesse jogo, o boneco é
essencialmente figurativo e antropomorfo. Mesmo se Roser utiliza marionetes
estilizadas ou às vezes atomizadas (A cabeça separada do belo ventre de uma
dançarina), elas são claramente ícones de seres humanos. Ele se esforça em seguida para
transformá‐los de acordo com certas regras da vanguarda para obter criaturas artificiais
totalmente dependentes de seu mestre. Um encaminhamento que é o signo de uma
nova consciência artística dos bonequeiros.
Signos e símbolos plásticos
Roser não é o único a se inspirar nas idéias da vanguarda. Na Suíça, Fred
Schneckenburger associa o conceito de seu pequeno teatro a números de cabaré com
intenções satíricas e marcadas por uma grande tolerância pela natureza humana.
Schneckenburger não tem formação artística. Seu interesse pela arte do boneco se deve
muito ao acaso. Em 1922, ele colabora com a organização de uma turné do Teatro
Kamerniy de Moscou e faz amizade com Tairov e Sokolov. Vinte anos mais tarde,
Schneckenburger inspira‐se no teatro excêntrico deste último para construir os
personagens de seu Puppen‐Cabaré. Segundo seus amigos, Schneckenburger possui um
olhar absoluto e sabia identificar as qualidades plásticas ao primeiro olhar.
Freqüentador assíduo, nos anos 30, do cabaré Cornischon, em Zurique, para o qual
escreve seus primeiros textos, ele dá continuidade a essa atividade após a guerra com
esquetes para o cabaré Camelote e retomará alguns deles no seu. Sem esperar o fim da
guerra, Schneckenburger lança‐se em suas primeiras criações, confeccionando seus
bonecos na tradição da luva antes de passar às varas. Em 1947 faz suas primeiras
improvisações em público, depois apresenta com bastante regularidade sessões do Fred
Schnckenburger’s Puppen Cabaret, até sua morte, em 1966. Seus bonecos remetem bastante
às tendências plásticas da vanguarda do entre guerras. Também são comparados com
Albrecht Roser. .(Gustaf und sein Ensenble.(Gustaf e seu Conjunto) Publicação do Jubileu). Bleicher Verlag,
31
Gerlingen, 1992, p. 55.
32
REFORMAS
frequência à obra de Picasso, de Paul Klee e de Jean Miró. Eles não são imitações
figurativas do homem, mas puras criações, com elementos abstratos e metafóricos. Fred
Schneckenburger, escreve Hana Ribi, ultrapassou a imitação naturalista do homem ainda
corrente no teatro de bonecos, para criar um mundo de figuras estranhas: ciclopes e monstros
com cabeças arrebentadas, personagens se dividindo ou sem cabeça. Eram símbolos (diz
Sinnbilder) cuja idéia e conteúdo eram fixados e codificados em sua construção. O público
rapidamente compreendia seu sentido, reforçado pelo gesto, o movimento e o texto, e o
acompanhava divertido. Assim, Schneckenburger cria sobre a cena do boneco uma nova poesia da
metáfora visual.32
Seus temas alternam‐se entre questões existenciais e a ironia pacífica. Seu
interesse se coloca sobretudo sobre o tipo humano do qual ele esboça retratos de grande
fineza utilizando canções, esquetes e monólogos. Procurando escapar aos clichês
habituais, ele propõe ao público observar com ele os novos fenômenos da vida. Os
títulos de seus números são reveladores: “Um Anjo da Guarda Bem Educado”, “Com
Hesitação”, “Uma Má Influência”, “Leiamos os Críticos”, “ O Rosto Ferido”, etc. O
personagem de “Kasper” figura também no repertório com seu próprio número:
“Leiamos a Crítica”, uma sátira da imprensa realizada com meios muito simples. À
medida em que lê as imensas páginas de um jornal, o público o vê diminuir cada vez
mais como sob o efeito das informações e dos comentários lidos. Quando ele atinge seu
menor tamanho, ele se revolta, destrói os jornais com suas mãos (as de Schnekenburger)
e retoma seu tamanho inicial. Esse contraste surrealista entre um boneco abstrato e um
verdadeiro jornal é uma metáfora dinâmica, fundada entretanto sobre uma idéia muito
simples. Com esse processo dramático, Schneckenburger entra no caminho metafórico
de um teatro plástico.
O cabaré de Schneckenburger não tem a menor preocupação com o respeito às
convenções do teatro de bonecos. O público o acolhe com entusiasmo e ele suscita uma
certa inquietação entre os críticos. Alguns rejeitam pura e simplesmente sua poética.
Inspirada nos anos 20, ela podia dar a impressão, em 1957 de ser a obra de um epígono.
Jan Malik, porta‐voz do realismo socialista na Tchecoslováquia, teve uma reação muito
negativa a seu respeito. Ele percebe ali um beco sem saída e um nihilismo estético,
resultado da “fuga da realidade que caracteriza a vanguarda”. Ele recusa o nome de
bonecos para preferir aquele de símbolos esculpidos em qualquer tipo de material. As
esquetes também não lhe agradaram, marcadas pelo ceticismo, ironia, desilusão e um
vago cinismo lírico. O quadro intitulado “O Indeciso”, retrato de Schneckenburger,
intelectual indeciso, sugere‐lhe uma aproximação política com Trotski 33 . Malik não
escapa dos clichês do realismo ideológico. Da mesma geração que Schneckenburger, ele
é incapaz de efetuar uma aproximação entre a arte deste e as inquietações da sociedade
do pós‐guerra. Comprometido em excesso com o conceito de uma especificidade teatral,
Albrecht Roser. Gustaf und sein Ensenble. Jubileumsausgabe (Gustaf e seu conjunto. Publicação do Jubileu)
32
Bleicher Verlag, Gerlingen,1992, p.55.
Jan Malik. I Festivalovy Tyden EvropskehoLoutkrstvi y Braunscheigu 1957 (A primeira semana do festival de
33
bonecos europeu) Ceskolovensky Loutkar, 1957, p. 135
33
METAMORFOSES
ele não pode aderir a essa louca abstração. Primeiro bonequeiro a se inspirar com
sucesso na arte abstrata, ele se deixa seduzir por esta visão plástica e sacrifica por ela os
valores do teatro de bonecos fundados em motivos psicológicos. Seus bonecos, e desse
ponto de vista Malik tem razão, não tem nada a fazer com a verossimilhança psicológica,
eles vivem sua vida de criação plástica. Signos e símbolos, eles abrem caminho para o
boneco moderno.
A abstração pura
As experiências da Bauhaus também vão inspirar, mesmo que tardiamente, os
primeiros ensaios de teatro mecânico. Harry Kramer apresenta um espetáculo
intitulado 13 Cenas Pesquisa com Bonecos (13 Szenen Versuch mit marionetten). O programa
distribuído aos espectadores anuncia “treze cenas ligadas à lógica do sonho, numa sucessão
de relações de tensão horizontais idênticas: cortes dos refluxos, transversais do paralelo da ação.
Rodas, piões, barras: mecanismos, sem sono, sem contato”. A maioria das cenas, de fato, são
estudos de figuras móveis cuja construção é ostensivamente aparente, uma diferente da
outra. A arte de Kramer rompe com a tradição do teatro de bonecos e se inspira na
escultura e nos móbiles. Atraído pelo movimento e pelas possibilidades formais desses
bonecos – compostos de um torso provido de pés, de uma mão que se estende muito a
sua frente, e de uma grande cabeça desproporcional suspensa acima de uma construção
– esses bonecos dão a impressão de que o personagem se desagrega em três pedaços e
anunciam, talvez inconscientemente, a atomização do personagem.
A influência de Kramer foi modesta, porque o teatro de bonecos da segunda
metade do século XX responde cada vez com mais freqüência às exigências da arte
dramática e se libera do rigor das artes plásticas. Algumas de suas idéias, entretanto,
vão ser encontradas nas obras de outras companhias, como por exemplo em certos
espetáculos do teatro Die Klappe, de Göttingen, cuja longevidade foi superior à das
experiências de Kramer. Seu fundador, Alfred Köhler, enriquecido com a experiência da
Bauhaus e a teoria de Kleist, cria seu primeiro espetáculo em 1957. Descobrindo esse
espetáculo em Varsóvia em 1962, Krystyna Mazur nota: Die Klappe demonstra pelo truque
do boneco uma coisa que jamais um homem de carne e osso mostraria. Breve estudos nos fazem
assistir ao nascimento do movimento e do gesto, mas o boneco não é um personagem, é uma
abstração, um esquema do esqueleto e do aparelho muscular do homem. Ele anima um esquema.
Mas esses jovens alemães são extremamente coerentes. A imagem plástica não está apenas em
conformidade com sua função, ela é também sustentada pelo som. Nas Poções, nós escutamos o
esquema fônico das entonações e das modulações da voz, que é também uma abstração sui
generis e, sem dúvida, uma síntese muito elaborada34
Esse espetáculo está em ruptura com o teatro de bonecos desse período:
nenhuma história, nenhum boneco figurativo nem semelhanças com seres humanos.
Apenas um conjunto de signos ideográficos a associar‐se como pequenas peças de
tecido para representar uma multidão face a um demagogo ou diante de uma caserna.
34 Krystyna Mazur Nihil novi sub sole. Teatr Lalek, 1962, no. 21, p. 16‐17.
34
REFORMAS
O esquema do grupo humano torna‐se aqui uma imagem plástica sintética. Die
Klappe35 foi uma trupe tão original quanto importante. Ela levou o teatro de bonecos
clássico à abstração sublimada que, em sua última concepção, era uma arte de puro
movimento. Este curioso resultado, como aliás, o conceito de Sokolov, não gerou
imitação nem qualquer outra pesquisa paralela. Seria um beco sem saída? O teatro
requereria absolutamente a presença do homem ou pelo menos formas humanizadas?
Ou ainda não estamos suficientemente maduros para aceder ao prazer da comunicação
abstrata? A guisa de resposta, constato simplesmente que a maioria dos bonequeiros
ficaram fascinados pelo boneco dramático. Restando no universo do boneco figurativo,
o bonequeiro dificilmente escapa a sua magia. Os românticos foram sem dúvida os mais
sensíveis a esse traço de humanidade na criação.
A poética da forma
Na França, Yves Joly é quem mais transgride a poética do teatro de bonecos
clássico. Ele é desses bonequeiros que se apresentam nos cabarés parisienses. Seu
público não é particularmente exigente, mas logo se cansa. Os artistas estão, pois,
permanentemente em busca de novidades. Joly de início utiliza bonecos clássicos, de
forma humana, conforme o habitual. Em 1949, ele muda de registro. Ombrelles et
Parapluies., Les Mains Seules, Bristol revolucionam tanto a visão do boneco quanto a do
teatro de bonecos. Ele introduz em cena mãos, objetos, figuras planas de papelão para
representar curtas historietas, em geral banais. A qualidade de seu espetáculo não
repousa na intriga, mas na maneira metafórica de contar a história. Seu programa
encoraja inúmeros bonequeiros e artistas de cabaré.
Em seus espetáculos, ele declina as leis do teatro moderno. Diante do público,
cria personagens em cena, seres artificiais que dota de traços humanos (Os Apaches),
introduzindo‐os na ação para terminar por destruí‐los e devolvê‐los a seu estado inicial,
o de matéria. Este jogo com materiais foi sua primeira e nova preocupação. Num
número: Tragédia de Papel, figuras planas são recortadas em papel bristol. Todas
representam um personagem tradicional: o amante, o personagem positivo ou o
personagem de caráter sombrio. Reencontramos as histórias clássicas do cabaré, mas
traduzidas por uma matéria. No momento mais dramático, o personagem positivo é
cortado em pedaços com tesouras de verdade e queimado. A comparação do destino da
cartolina com o do homem faz nascer uma sensação trágica. Trata‐se de uma metáfora,
de um oxímoro, de um efeito de opalinização devido à presença alternativa de um
personagem fictício sobre dois planos existenciais (aqui, o universo do homem, a
historieta, e o universo da matéria, as operações sobre a cartolina). O artista rejeita a
mímese e introduz seu universo (as figuras de papel confrontadas às destruidoras
ferramentas de verdade) mas também sua poética com um efeito de opalização
(alternância entre o caráter e a materialidade da figura).
Sobre o desenvolvimento da companhia Die Klappe, ver: Harro Siegel, Aus Göttingen: Die wieder
35
aufgetauchte Klappe (Die Klappe surgindo de novo). In: Puppensspiel information, Verband Deutsch
Puppentheater, 1980, no. 43, p. 45‐46.
35
METAMORFOSES
A mão enquanto material, a mão do homem enquanto pars pro toto, a parte pelo
todo são figuras retóricas conhecidas há muito tempo, e já utilizadas por Obraztsov.
Joly as ultrapassa numa clássica história de amor. Ao substituir os personagens cênicos
por mãos vestidas de várias luvas (vestido, saiote, etc), provoca uma inversão dos
papéis que as torna muito expressivas. Ele reforça assim o efeito cômico, em razão da
“espessura única” da luva. Imagine uma jovem – uma mão – efetuar um strip‐tease
tirando sucessivamente as “luvas” que compõem seu traje! Joly utiliza igualmente a
técnica do “teatro noir” para atingir, num quadro de animais marinhos feitos de mãos,
um grau máximo de ilusão. A redescoberta da matéria (as mãos) provoca a emoção
estética pelo efeito de estranheza. O efeito de opalinização é, pois, um elemento
importante no espetáculo.
Após a mão, ele dá um passo em direção ao teatro de objetos. Os guarda‐chuvas,
pretos, cinzas, vermelhos, quadrados, multicores, de tecido ou de papel, imitando
personagens ou constituindo a estrutura de construções mais complexas (uma carroça
de casamento) entram em cena. Aí também, a intriga é banal. Um jovem casal se
reencontra. Vivendo felizes, entram num cabaré e assistem a um can‐can francês de
guarda‐chuvas. Estão permanentemente sendo seguidos por dois inspetores cinzas,
comandados, ao que parece, pela família da jovem. Mais do que proteger a virtude da
jovem, os dois homens cuidam para que a aventura termine, como devido, no cartório
civil. A ação se conclui com a imagem do cortejo de casamento e sua carroça de guarda‐
chuvas.
O uso de objetos como alegorias do homem tem inúmeros modelos na literatura,
no conto em particular. No teatro de bonecos, Joly foi o primeiro a romper o tabu da
fidelidade icônica utilizando objetos. A intervenção do artista confere ao objeto – um
guarda‐chuva, por exemplo, uma nova mobilidade encarregada de significar um
acontecimento humano. O valor icônico do objeto desaparece diante da ação poética.
Encontramo‐nos, em definitivo, no campo da metáfora e do oxímoro. O espectador não
está consciente da manipulação da retórica teatral e esses guarda‐chuvas o divertem.
Esse estudo aprofundado da linguagem dramática caracterizando a arte poética de Joly,
vai terminar por surpreender a ele próprio. Geralmente a criação tem um caráter
espontâneo e o artista nem sempre está consciente da significação de suas novas
inspirações. Ao ser interrogado sobre sua experiência, nos anos 60, ele se furta, falando
de sua espontaneidade: Eu devo me inclinar diante dos fatos evidentes: não tenho nada a dizer,
não tenho nenhuma opinião, e em minha experiência não há nada de laborioso, tenho pavor de
qualquer idéia de dificuldade, a única coisa que faço com prazer é amar. Se minhas mãos
conseguem alguma coisa, não é porque decidi fazer tal ou qual coisa, seguindo tal ou qual
princípio, tal ou qual saber, para chegar a algum resultado, faço o que me oferece diretamente
prazer, porque em mim uma força leva‐me a tal gesto ou a tal descoberta, como talvez a força da
primavera leva as plantas a saíram da terra para a luz, para a alegria de existir. Crio coisas para
celebrar a alegria se estou possuído por ela. Se fosse dançarino, eu dançaria esta alegria; se fosse
pintor, transformaria esta alegria em dança de cores, e como não sou nem um nem outro, e ao
36
REFORMAS
mesmo tempo tenho uma pequena parte de cada um deles, descubro assim uma nova forma e, com
ela, seu movimento.36
Esta visão do artista tomado pela inspiração e concretizando sua felicidade sem
qualquer dificuldade é muito agradável. Mas por outro lado, ela reflete o imenso papel
do acaso no desenvolvimento da arte e talvez – coisa surpreendente – da metamorfose
do teatro de bonecos do pós‐guerra. Essa confissão de Joly não é perturbadora em nossa
reflexão sobre as transformações do boneco?
Joly não foi o único, na França, a tomar este caminho. Em 1943, George Lafaye
funda sua companhia, O Teatro do Capricórnio, utilizando bonecos clássicos e monta
vários espetáculos de Vieilles Chansons Françaises (Velhas Canções Francesas). Lafaye,
influenciado pelas teorias de Craig e a tradição do boneco francês, não se definia como
bonequeiro, mas como um artista que, por analogia a Blattner, escolhe passo a passo
seus meios de expressão. Nos anos 50 ele cria uma série de números de cabaré nos quais
utiliza formas geométricas abstratas e objetos, expõe o material, constrói‐o de modo que
não reste nenhuma dúvida sobre sua natureza de criaturas fictícias. Elementos abstratos
tomam forma humana ou uma grande cartola representa uma cena de amor com um
boá de plumas (John & Marscha, 1952). Figuras geométricas feitas com jornais aparecem
de repente aos espectadores. Em cena, um gentleman (um boneco), lê seu jornal cujas
páginas se transformam numa grande galinha de papel. Trata‐se de uma das primeiras
experiências no campo da abstração animada. No número Strip‐Tease uma mulher é
representada apenas por um espartilho, luvas, um colar de pérolas e três pares de
pernas femininas que se cruzam uma sobre a outra verticalmente. Esse tipo de ação é
possível graças à técnica do “teatro negro” que Lafaye utiliza anos antes da Lanterna
Mágica de Praga. É inegável que Lafaye foi um precursor da metamorfose que se opera
no teatro de bonecos. Mas ele não se ateve muito tempo às formas abstratas e ao teatro
de objetos. Aparentemente consciente de romper os limites desse teatro destacando‐se
entre os bonequeiros dos anos 60, Lafaye tem concepções artísticas muito à frente da
maioria de seus contemporâneos. Lafaye, assim como Joly, inventou seus próprios
meios de expressão, em ruptura com os bonequeiros ainda ligados às técnicas clássicas.
Entre os solistas, do teatro ou do cabaré, os marionetistas são os mais próximos
de uma teoria da especificidade do boneco. Seus solos estão mais próximos de uma
demonstração técnica que de uma apresentação tradicional. Desse ponto de vista, o
boneco evoca a arte do circo. O solista é, em seu gênero, um prestidigitador que busca o
efeito pela técnica. Se introduz uma história em seu espetáculo, é uma historieta ou uma
esquete muito simples. Essa demonstração técnica pode ser comparada ao uso de
técnicas narrativas ou auto‐temáticas (esse termo se inspira no espetáculo que põe em
cena seu próprio processo de criação) da arte dramática? Até os anos 50, os
marionetistas e os bonequeiros de cabaré de todo tipo tomam iniciativas então
impensáveis no teatro de bonecos clássico. Tudo leva a crer que certas inovações foram
ditadas por um boneco não teatral e não dramático. Deve‐se concluir que a fórmula do
Yves Joly. Voilà... In: Puppentheater der Welt Zeitgenössisches Puppenspiel in Wort und Spiel,
36
Henschelverlag, Berlim, 1965, p. 47.
37
METAMORFOSES
cabaré foi mais fecunda no plano da criação que a encenação de textos dramáticos? A
evolução do teatro de bonecos, na França, o confirma. Essa generalização seria
apressada, porque nos países sem tradição de cabaré novas idéias também vão surgir.
A linguagem teatral
Jan Wilkowski, encenador e ator, dirige na Polônia o Teatro Lalka desde 1950.
Seus primeiros espetáculos são de estilo realista, temperado pela presença de elementos
burlescos e simbólicos. Os Contratempos de Guignol (Guignol w Tarapatach), de Leon
Moszczynski e de Jan Wilkowski, com cenografia de Adam Kilian (1956) foi
apresentado em Bucareste. Trata‐se da adaptação de uma antiga peça de Guignol, Le
Déménagement (A Mudança), de Laurent Mourguet. A trama da peça é a história de um
bonequeiro – Jean – que busca um lugar para fazer uma apresentação enquanto é
perseguido por um agente de polícia mascarado. Le Déménagement é interpretado por
bonecos de luva que são interrompidos pelos comentários do bonequeiro, no espírito do
teatro brechtiano onde um personagem corta a ação com uma canção e convida o
38
REFORMAS
público a refletir sobre os acontecimentos apresentados. Quando canta, Jean fica no
papel do bonequeiro e ilustra suas canções com bonecos e objetos. Depois vão aparecer
sucessivamente a Fome e a Guerra que aterrorizam uma armada de guignols, um
desfile de sapatos (nesta versão da peça, Guignol é o sapateiro) com as cabeças dos
heróis do Déménagement, um enorme pé que fecha a marcha e dá um grande pontapé no
sapato de Canezou, O proprietário. Além destas sinédoques, o espetáculo congrega
soluções metafóricas e plásticas novas: a prisão de Guignol é uma gaiola, pequenas
nuvens brancas de fumaça saem da corbelha com uma inscrição cômica “Boum!” para
significar um canhoneio. Alguns bonecos evoluem segundo sua forma plástica (uma
esfera para Canezou, grande e fina, o Comissário tem um imenso nariz que o
desequilibra e o faz cair como uma árvore). No final Jean canta e parafraseia um slogan
operário: “Para lutar contra o mal, pessoas honestas, uni‐vos!”. Esta citação parece ser
mais universal que a original.
Esta peça é um testemunho da primeira pesquisa de um teatro de diretor
associando o postulado de Craig sobre o teatro teatral e a fórmula brechtiana do teatro
épico engajado. O teatro é pura criação e deve ser apresentado assim ao público –
reivindicava Craig. Wilkowski envereda por este caminho ao escolher como cena de
exposição um conflito entre dois atores – o agente de polícia e o bonequeiro. Wilkowski
comenta assim o destino humano nos entreatos e o princípio do teatro no teatro. A
representação de uma peça tradicional do repertório torna‐se um motivo teatral em si
mesmo. Ela augura a passagem do mundo homogêneo dos atores ao mundo
heterogêneo do teatro de meios de expressão variados. Algum tempo depois, os
bonequeiros farão o mesmo, mas a partir do mundo homogêneo do boneco para
introduzir atores em seus espetáculos.
Humanista e engajado, Wilkowski afirma também suas convicções nos
espetáculos para crianças. O que afinal queremos dizer à criança? A beleza da terra, a
crueldade do mundo, a bondade do homem e seu egoísmo, o horror da guerra, a competição
permanente entre o bem e o mal, em histórias inventadas e também em torno dela e nela. E outra
coisa ainda. A beleza da arte, seus encantos e seus mistérios37.
Suas observações sobre a natureza e a existência do homem não o fizeram
esquecer dos problemas técnicos da criação. Como bom número de artistas, Wilkowski
está em busca de uma linguagem teatral moderna para o teatro de bonecos. O teatro de
bonecos não pode, nem deve imitar o teatro de atores, ele não tem o direito. O sentido de nossa
arte não repousa sobre uma imitação do homem pelo boneco, mesmo se este boneco tem a forma de
um homem. O boneco é uma forma plástica e sua vida é a vida desta forma. A vida das cores, das
formas, não pode ser fundada sobre os mesmos princípios dramatúrgicos que o drama do “teatro
vivo”. Então, sobre quais princípios? Se apenas soubéssemos! O teatro de bonecos se encontra
num período semelhante ao que conheceu a teoria da pintura há cinquenta anos. Um período
Jan Wilkowski. Tylko dla doroslych – o teatrze dla dzieci (Reservado aos adultos – do teatro para crianças). In:
37
Program jubileuszowy: Panstwowy Teatr Lalka 1944‐1955, Varsóvia, 1959, p. 3.
39
METAMORFOSES
onde ela definia suas funções, suas tarefas essenciais, sua substância. Liberar‐nos da imitação
passiva do “teatro vivo” é para nós uma necessidade vital.38
Estas interrogações o impulsionam a seguir a via do “teatro teatral” e do “teatro
da metáfora”, ou seja, representar de maneira a que o espectador tome consciência de
que a ação cênica é o resultado de uma criação artística e que ela deve ser
compreendida como um diálogo com o artista, não como um paliativo da realidade.
Para Wilkowski, mostrar as fontes de sua arte virou lei. No Piano Encantado
(Zaczarowany Fortepian, 1957), o instrumento que um verdadeiro pianista toca produz
sons que vão animar os bonequeiros e dar‐lhes vida. Essa animação sonora fascina Erik
Kolar: (...) regadores substituíam a chuva, o sol era um balão cor de rosa, etc. O que é
interessante, é que as crianças compreendem perfeitamente a linguagem poética da
cena. O espetáculo era uma maravilhosa lição de poesia39.
De um lado, Wilkowski sublinha o caráter artificial e teatral do espetáculo, de
outro ele desenvolve metáforas cênicas. Inspirado no folclore, Zwyrtala o Músico ou
Como um Montanhês Sobe ao Céu (O Zwyrtale Muzykancie Czyli Jak Góral Dostal sie do Nieba,
1958, adaptação de textos populares: Kazimierz Przerwa Tetmajer), esse espetáculo
começa com uma orquestra de montanheses colocados diante de um imenso quadro
representando Zwyrtala pronto a dar o último suspiro ao som da música. Zwyrtala sobe
nos ares e canta árias populares. Cada canção é ilustrada por seus heróis que aparecem
nos quadros à imagem dessas pinturas em vidro feitas pelos montanheses. Zwyrtala
canta e os personagens saem de seus quadros para ilustrar suas palavras. A pedido dos
anjos, ele canta a história de Janosik que queria tornar todos os homens iguais. A
miséria abateu‐se sobre o povo oprimido pelos ricos. Os pobres se reúnem e vão pedir
ajuda a Janosik. Ele chama seus companheiros, bandidos como ele, e partem para o
castelo de um conde húngaro. Janosik ama Weronika que o ama. O Conde Húngaro,
sabendo que não conseguirá vencer Janosik num combate direto, recorre a um ardil.
Janosik é preso e executado. Os anjos ficam tristes. Enfim São Pedro intervêm. As
canções não podem continuar porque contrárias à ordem celeste. Zwyrtala deixa o céu
para ir se instalar numa estrela. Mas Zwyrtala quer voltar para a terra, ao seu vale dos
Tatras, e diz em seu dialeto: “Não quero outro céu. Meu céu está lá onde está meu coraçãoʺ.
A história de Janosik é uma citação com a qual o autor se identifica. A pintura em
vidro e os elementos folclóricos, fontes de inspiração popular, participam da elaboração
de uma linguagem poética: o vidro quebrado é sinônimo de uma morte simbólica, um
quadro no cortejo fúnebre tem um caráter metafórico. Zwyrtala o Músico é a obra mais
importante de Wilkowski. Ela faz descobrir o folclore montanhês sob uma forma muito
teatral dando ao boneco sua presença plástica. Ela é a prova de que se esboça uma nova
corrente, como o observa o crítico italiano Vito Pandolfi: Somos incapazes de definir com
38 Ibidem.
39 Panstwowy Teatr Lalka 1944‐1955. Programa jubileuszowy (O Teatro Nacional Lakla.. Programa do
jubileu), Varsóvia, 1959, p. 12.
40
REFORMAS
precisão por que concurso de circunstâncias se deve este fato evidente (talvez uma reação
psicológica irrepreensível): as loucuras de Jdanov e a intransigência de Stalin definitivamente
desapareceram e obras artísticas marcadas de sutileza e de romantismo começam a nos chegar dos
países do Leste (...) Zwyrtala o Músico através do folclore liga‐se com Chagal e Klee, com a
poesia de Pasternak e a encenação de Vakhtangov. Num certo sentido, é um retorno aos
procedimentos artísticos de vanguarda que floresceram na União Soviética nos anos que se
seguiram à revolução. Este movimento progressista, bruscamente interrompido, recomeça a dar
frutos e o espetáculo do Teatro Lalka (que não deve ser subestimado por tratar‐se de bonecos) é
um exemplo claro disto.40
Essa crítica mostra a importância da estética de Wilkowski e de seu cenógrafo
Adam Kilian que transgrediram as injunções do regime e obedeceram a seu instinto
para criar a partir do universo dos valores populares. Eles não foram os únicos a se
inspirar no folclore. Margareta Niculescu, Kato Szoni e Michael Meschke fizeram o
mesmo. Eles se inspiraram tanto nas representações visuais quanto nas estruturas
narrativas e formais elaboradas ao longo dos séculos.
Cada espetáculo é para Wilkowski a ocasião de renovar seus meios de expressão.
Le Petit Tigre Pietrek (Tygrys Pietrek, 1962) é um conto alegórico para crianças cujo tema é
a coragem. Os bonecos aparecem sobre a empanada num plano de três dimensões –
enquanto que o quadro geral da ação resta plano e forma uma vasta perspectiva.
Tomando de empréstimo certos elementos da técnica cinematográfica, o diretor pode
criar efeitos, como um zoom sobre o biombo graças à intervenção de grandes
personagens mascarados que se dirigem ao público. Para Nós e Nossos Anões, (My i nasze
krasnoludki, 1967), Wilkowski utiliza a convenção do ensaio teatral. Ele faz o papel do
diretor e seus bonequeiros o papel dos atores do Teatro Lalka ensaiando a peça Marysia
a Pequena Òrfã e os Anões (Sierotka Marysia i Krasnoludki). Foi a oportunidade de mostrar
diferentes convenções entre boneco e teatro, com a interrupção do ensaio pelo
aparecimento de verdadeiros anões na cena. Os atores se apossam dessas criaturas
imaginárias e tentam convencê‐las a colaborar com eles. Ao mostrar anões de verdade,
Wilkowski volta à mitificação da vida do boneco. Teatralização e ilusão constituem o
programa de seu teatro; o desejo de jogar continuamente com realidade e ficção,
verdade e ilusão. Renunciar a um ou a outro, seria negar a verdade do teatro.
O Teatro Tandarica: Margareta Niculescu
O Teatro Tandarica, na Romênia, dirigido desde 1949 por Margareta Niculescu,
diretora, afirma outros valores. Humor com Fios (Umor pe Sfori, 1954) renova inicialmente
o espetáculo de variedade. Composto de vários números, esse espetáculo formiga de
invenções onde a matéria é utilizada num sentido puramente metafórico. Para os três
bonecos de marinheiro que dançam o Rock and Roll, em plena voga nesta época, são
utilizadas molas no lugar de pernas para parodiar o movimento desses dançarinos
frenéticos. No quadro do “Barômetro”, duas figuras saem de sua casinha para dar
40 Vito Pandolfi. |Lalki polskie (Os bonecos poloneses). Teatr Lalek, 1961, no.17‐18, p. 44.
41
METAMORFOSES
informações meteorológicas. Uma pane do mecanismo fornece‐lhes a ocasião para se
reencontrarem. O concerto do instrumento os separa de novo e provoca melancolia e
poesia. Essa nova inclusão de materiais como metáforas no espetáculo de variedades,
inaugura uma renovação do gênero.
Em 1958, Niculescu põe em cena A Mão de Cinco Dedos (Mina cu Cinci Degete,
cenários: Stefan Hablinski, bonecos: Ioana Constantinescu). Inédito no teatro de bonecos,
o pastiche da história policial faz aqui sua entrada em cena. Ou quem sabe, seria o
desejo de evocar a natureza mágica e a aura misteriosa do boneco sob a forma de uma
autoderrisão teatral?
Já na entrada do teatro, os espectadores se encontram em presença de indícios
anunciando os acontecimentos: na calçada, marcas de sangue e de passos, que vão
reencontrar no hall, depois na sala deserta e mergulhada na obscuridade. Por todo lado
a inscrição “Mister X”. A cortina improvisada se ergue e aparece aos olhos do público,
um camarote de ópera no qual está sentado um casal. A mulher porta um colar de
diamantes. Ouve‐se um tiro. A luz se apaga. Quando volta, os espectadores percebem
uma enorme faca em que estão enfiadas três silhuetas. A mulher leva a mão a seu
pescoço, seu colar desapareceu. Mudança de cenário. A cena representa uma rua. Sob a
luz de um poste dois personagens se encontram. Sombra imensa de uma mão armada
de uma faca. Um tiro. Um cadáver cai na rua. A lua aparece por trás de uma nuvem e
chora. Ouve‐se uma marcha fúnebre longínqua. Uma alma sobe ao céu, duas asas a
empurram no caminho. E a história segue assim. A linguagem é muito lacônica. Após
os crimes, procuremos o criminoso! Aparece o herói principal, o Detetive – no estilo de
Sherlock Holmes com seu fiel companheiro, um cachorro que imita sempre seu mestre.
Nosso herói tem nobres motivações e desta vez, ele quer ajudar a Filha do caixa atacado.
Ele encontra rapidamente uma pista e começa uma corrida‐perseguição de carro. Ele
chega à beira de um barranco com a Filha do caixa, o carro hesita: ele faz uma ponte
com seu corpo para permitir que a Filha do caixa alcance a outra margem. Num bar,
uma briga explode entre a gang de Mister X e as forças da ordem. Mesas, cadeiras,
garrafas, tudo voa no ar. As cabeças se deslocam, esta briga grotesca é um balé bem
organizado. Desde o começo, os espectadores vivem no mundo do impossível. Policiais
entram no banco, de motocicleta. A Filha do caixa chora. A natureza se mostra solidária:
chuva, relâmpagos, sons de trovões. Uma música inquietante. Mister X atira na lua, que
se parte em mil pedaços.
A Mão foi um sucesso tanto pelo tema paródico, pelo modo de desmistificar a
matéria artificial com que o boneco é construído quanto pelo emprego de uma
linguagem radicalmente nova. Niculescu faz apelo às estruturas do cinema e rompe
com a exposição textual da ação do drama clássico. Alguns episódios dinâmicos
preliminares introduzem o tema da investigação e da perseguição, na qual ela conserva
o laconismo e a concisão das imagens da narrativa. Do mundo da literatura, os
espectadores se transportam a um mundo de signos visuais que nascem com uma
facilidade muito grande e permitem introduzir novas idéias. O laconismo das imagens
se deve ao fato de que só se mostra a causa (o tiro) e a conseqüência (o Caixa amarrado),
sem nenhuma ação intermediária. Ele contribui para materializar a vontade de ocupar o
42
REFORMAS
espaço de outro modo, povoar a sala assim como o exterior do teatro de indícios do
drama e romper com o jogo frontal do primeiro plano. Na cena, três planos, horizontais
e verticais, deixam alternativamente aparecer elementos de cenários que se compõem e
desfazem à vista do espectador. Niculescu tende aqui voluntariamente para um teatro
metafórico.
Convencida de que a metáfora pode nascer com muita facilidade da confrontação
de disciplinas artísticas diferentes, ela expõe suas reflexões sobre a questão no
congresso da UNIMA que acontece em Varsóvia em 1962: Na busca da metáfora, os
criadores transpõem os limites que separam os diferentes gêneros artísticos como o cinema, o
teatro de atores, a opereta ou o music‐hall e o teatro de bonecos. Podemos citar exemplos
interessantes de espetáculos onde os meios próprios a uma dada arte foram utilizados em proveito
de uma outra sem que a autonomia tenha sido violada. Em Os Contratempos de Guignol
montado pelo Teatro Lalka, por exemplo, a guerra é mostrada com a ajuda de meios gráficos. O
que não diminui em nada a tensão dramática. Muito pelo contrário. A necessidade de fazer
nascer a ilusão de um filme policial deu aos autores de A Mão de Cinco Dedos a idéia de
recorrer a meios cinematográficos com os quais a marionete se sentiu totalmente a vontade. A
famosa garrafa de leite descoberta pelo Detetive é “recortada” no cenário por meio de um “olho”,
como um grande plano num filme. Outra cena “cinematográfica”, aquela onde Mister X lança
sua cúmplice de um trem. O vagão não se mexe. Só um leve tremor, postes de luz que desfilam
diante das janelas e um cachecol que flutua ao vento dão a impressão de que o trem avança. Em
muitos de nossos espetáculos nós utilizamos efeitos especiais para dar a impressão de que um
personagem percorre uma distância, numa variante dos travellings nas filmagens em estúdio.41
Foi no festival organizado em Varsóvia por ocasião desse congresso que o Teatro
Tandarica apresentou O Livro de Apolodor (Cartea cu Apolodor, direção: Niculescu)
que traz novidades técnicas e estéticas sendo a principal delas a apresentação de um
duplo ponto de vista. O do herói, o pinguim Apolodor que deixa Bucareste para partir
em busca de seus primos pinguins, e o dos amigos de Apolodor, pequenos animais que
cantam com ele num coral de Bucareste. Apolodor vive suas aventuras no meio de
grandes marionetes. Os coristas cantam em cima do biombo, fazendo aparecer imagens
da viagem de Apolodor representadas por pequenos bonecos de luva. Lá também,
muitas idéias são tomadas do cinema, como o globo terrestre visto de cima ou as
pegadas do pinguim que avançam sozinhas. Há também reduções plásticas que evocam
o mundo dos brinquedos, como Apolodor que se desloca sobre um bastão munido de
uma cabeça de cavalo.
Em 1965, Niculescu monta uma outra peça importante, As Três Mulheres de Dom
Cristobal (Cele Trei Neveste ale lui don Cristobla, adaptação de Valentin Silvestru das farsas
populares de Garcia Lorca). Um teatrólogo russo fez a seguinte descrição da encenação:
O lençol que funciona como cortina se ergue. Aparecem pessoas. Originais, troncos planos feitos
de um retângulo trançado como uma cesta, e cabeças que deslizam para baixo com traços que dão
Margareta Niculescu. Metafora jako srodek wryazu lalki (A Metáfora enquanto meio de expressão do boneco).
41
In: Conferência da UNIMA: O teatro de bonecos e seus laços com as outras disciplinas artísticas.
Varsóvia, 19‐24 de junho de 1962, 9.40.
43
METAMORFOSES
a impressão de terem sido feitos às pressas. Cristobal, homem afortunado e velho rico, decidiu se
casar. (...) A jovem Belissa voa por cima de sua casa ao ser informada de que Dom Cristobal em
pessoa tem a intenção de desposá‐la. O negócio se conclui. As casas balançam primeiro
docemente depois vogam lentamente ao encontro uma da outra, ela se juntam para formar uma
sólida construção.(...) Belissa foge para sua casa. Ouvem‐se assobios, risos. Eles são cinco.
“Cinco homens entraram em sua casa esta noite” conta a servente de Cristobal. Mas é mesmo
Cristobal, este que agora surge com uma roupa de um verde berrante, e enorme chifres de veado
azuis na cabeça. Sim, é ele. E Belissa partiu. As casas se põem a oscilar levemente, a gemer,
depois se separam. O casamento não durou. Resta ao Dom senescente sair em busca de nova
esposa. Mais uma vez, bem nova. À direita, a casa de Cristobal. À esquerda, a de Rosita. A jovem
agrada a Cristobal. Os sinos tocam. Nova ocasião para se divertir, são as núpcias. Depois nada
mais de sino. Nada mais de empanada também. Uma imensa cama ocupa todo o cumprimento da
cena, do leito surgem os tacões de nosso herói, percebem‐se as pernas de trapo esbranquiçadas de
Cristobal e as de Rosita cobertas de meias vermelhas com os dedos saindo prá fora. Eles dormem.
Depois Rosita se ergue sem ruído, um homem entrou na casa. E eles dançam. Um outro homem
aparece. Depois um terceiro. Rosita é levada pelo vento numa dança diabólica. Só seus pequenos
pés cobertos de meias vermelhas não se mexeram da cama. Mais uma vez Cristobal aparece com
chifres de veado azuis. A história do terceiro “sol”, do terceiro casamento de Cristobal, não tem
mais esta alegria infantil, esta despreocupação burlesca. (...) Elvira ama Kokolitché e é
correspondida. Mas Cristobal seduziu Elvira. Música de igreja. Dos olhos de Kokolitché caem
grossas lágrimas como ervilhas. Uma atmosfera de tragédia. Quando de repente surgem quatro
indivíduos encapuzados. Eles estendem os braços para Cristobal, o estendem sobre um lençol.
Eles o atiram no ar, o aparam... atiram de novo. Quando descobrem seus rostos, reconhece‐se os
olhos risonhos dos atores. Eles sorriem com um ar travesso lançando Cristobal no ar. Depois
repõem o capuz e levam Cristobal no lençol como numa mortalha. 42
Crítica e público ficaram inteiramente entusiasmados com o espetáculo cujos
elementos na sua totalidade constituem, nos anos 60, um espetáculo de bonecos
moderno. Assim também, o fato de mostrar a natureza teatral do espetáculo (os atores
no papel de deus ex machina), o emprego generoso de todo tipo de metáforas, sejam
sinédoques, metonímias ou “realizações de metáforas” caras a Niculescu. Mas esta essa
nova linguagem não é, por si só, uma garantia de sucesso. È preciso também um ritmo
arrojado, uma dinâmica, criar atmosferas, humor e a sensação de uma necessidade (de
uma idéia) superior que reuna todo o grupo em torno de um mesmo projeto. Em 1967,
Niculescu comenta assim seu trabalho: Temos procurado os meios que nos permitam
substituir textos de versos admiráveis por metáforas cênicas breves e expressivas. Além disso,
não estamos indiferentes aos problemas sociais e morais. Nosso desejo é falar dos valores
humanos eternos que são sempre válidos. Eles determinam o que o homem tem de bom e de
estúpido. O que ele tem de autêntico e de artificial, determinam o que é importante na vida. 43
Natalia Smirnova. 10 otcherkov o teatre Tandarica (10 esboços sobre o Teatro Tandarica), Iskusstvo, Moscou,
42
1979, p. 195‐198.
Natalia Smirnova. 10 Otcherkov o teatre Tandarica (10 esboços sobre o Teatro Tandarica), Iskusstvo, Moscou,
43
1979, p. 195‐198.
44
REFORMAS
Esse testemunho permite pensar que as descobertas estilísticas do teatro de
bonecos vem com muita freqüência acompanhadas do sentimento de responsabilidade
que o artista experimenta frente ao destino da humanidade e a ordem do mundo.
Encontramos esta mesma abordagem em Wilkowski, e a mesma reflexão sobre o
homem e a ordem social em Schneckenburger e Roser. O Teatro Tandarica aprofunda o
estudo das capacidades expressivas do teatro de bonecos numa série de peças como A
Festa Popular do Anãozinho Clip (Iarmarocul Piticului Clip, direção: Lenkisch, cenografia:
Buescu e Conovici, 1966), onde participam de uma espécie de jogo infantil, bonecos e
atores, que parecem fazer parte do cenário mas são ao mesmo tempo personagens
alegóricos (árvores, sol, vento). Os autores do Mágico de Oz (Vrajitorul Din Oz), direção
de Lenkisch, cenografia de Hablinski e de Buescu, 1967) estabelecem novas relações
entre os personagens. A heroína, a pequena Dorotéia, é uma marionete. Seus
companheiros, o Espantalho, o Homem de Ferro e o Leão são atores mascarados.
Dorotéia inicialmente é manipulada por uma única animadora, depois por seus
companheiros. Uma maneira clara de mostrar que o animador visível não é um
elemento neutro na imagem e que ele pode engendrar significações importantes para a
peça. Dorotéia aparentemente os conduz ao Mágico, mas na realidade são eles que a
conduzem. No mesmo ano, 1967, foi criada A Bela Ileana (Ileana Sinziana), numa direção
de Niculescu (cenografia de Buescu e Conovici). Os bonecos são fabricados à imagem
de brinquedos de terra. O coração que comenta a ação anuncia o lugar crescente da
narração no teatro de bonecos.
As realizações do Teatro Tandarica fazem pensar que o teatro de bonecos entra
em sua idade de ouro. O crítico Iordan Chimet faz a apologia de seus sucessos:
Inscrevendo‐se na nova linha das duas últimas décadas, nosso teatro moderno de bonecos
significa uma aspiração à certeza, uma necessidade de sentimento, às vezes presente sob a forma
mais pura na cena de nossa arte. Um horizonte insuspeito se abre diante dele. Wagner falava, em
sua época, de obra de arte completa, total. Craig se perguntava se o boneco não se tornaria no
futuro, numa época ainda imprevisível, o meio de expressão mais fiel das mais belas aspirações e
pensamentos artísticos. Esse futuro, na hora atual, não está longe de se tornar presente! Nosso
teatro de bonecos responderá logo a esta questão. Pode‐se dizer com certeza que estamos no bom
caminho e avançamos com confiança44.
Observando a evolução do teatro de bonecos na virada dos anos 50 e 60, nós
partilhamos o otimismo de Chimet. Os espetáculos do Lalka e do Tandarica provam o
imenso potencial artístico do boneco e anunciam significativas mudanças nas regras
clássicas. A mais importante delas foi o abandono do teatro ilusionista e o caminho
escolhido de uma criação autônoma, onde o artista não esconde a artificialidade da obra
criada, e, longe disso, revela os segredos da criação. As tentativas de transformar a
linguagem teatral, pelo abandono das descrições diretas (da ilustração do mundo
representado), também foram capitais. Os artistas concebem a linguagem teatral como
uma linguagem especificamente composta, exprimindo assim seu desejo de abandonar
L. Gitza,I . Chimet, V. Silvestru, Teatrul de Papusi in Romania (O Teatro de Bonecos na Romênia), Bucareste,
44
1969, p. 243.
45
METAMORFOSES
a linguagem descritiva, tanto no plano plástico como no plano verbal, em favor de uma
linguagem poética fundada sobre figuras de retórica que, ainda que emprestadas à
literatura, funcionam perfeitamente no plano visual.
As mudanças trazidas por Niculescu e Wilkowski a partir do final dos anos 50
são a expressão da energia criadora dos artistas bonequeiros da nova geração, para
quem o boneco se inscreve na arte e na sua metamorfose. Assim não é de causar
espanto que eles tenham rompido o tabu do teatro de bonecos homogêneo e
desencadeado uma avalanche de experimentações criadoras e divertidas das quais
ninguém, na virada dos anos 50 e 60, podia prever o resultado. Trinta anos de distância
permitem apreciar as experiências, que as descobertas e as idéias dos anos 50 e 60
fizeram nascer. Assim, no início dos anos 80, Niculescu volta‐se para uma nova forma
que prefigura o teatro da matéria. Uma peça do grande poeta romeno Mihail Eminescu,
intitulada Príncipe Nascido de uma Lágrima (1982), montada no Teatro Tandarica,
forneceu‐lhe a ocasião. Ela se associa com uma jovem cenógrafa, Doina Spitzeru. Nas
lembranças que me evocou recentemente, ela sublinha o papel da obra mítica de
Eminescu enquanto fonte de inspiração: Eu gostava muito deste texto poético e decidi tentar
fazer um trabalho teatral a partir das imagens, a partir de uma inspiração que podia vir de outra
coisa que não o boneco figurativo e articulado, que pudesse vir da matéria tal como ela é e
pudesse tomar forma no movimento. Com Doina Spitzeru, procuramos materiais que pudessem
inspirar esse lado primitivo, esse lado bruto, como a juta, por exemplo, para exprimir esse mundo
que existia antes do mundo, o mundo primário. Os personagens eram mais ou menos marcados,
mas havia no início a idéia de tentar criar um espetáculo de imagens poéticas que se
personalizassem pelo movimento. Que podiam restar como uma massa inerte, informe, bela,
como uma escultura, como uma natureza morta. Tornaram‐se personagens metafóricos. Por
exemplo, havia um monte de juta, com braços, à qual acrescentei uma máscara feita de pequenos
elementos que podiam se destacar e cobrir uma grande superfície. Sob essa massa de tecido se
encontravam três atores que lhe davam formas diversas colocando nela toda sua energia. Era
uma imagem poética do que queria ser este personagem, a mãe, a matriz da terra. Senti que o
boneco articulado, animado, com gestos, jamais poderia me ajudar a exprimir esta imagem
telúrica, esta imagem da mãe possessiva, esta imagem da mística da
vida precedente45.
Existem, claro, inúmeros espetáculos onde a criação se manifesta sob outros
aspectos, como o do espaço cênico aberto nas peças de Hans Sachs, ou as funções
simbólicas dos personagens, da luz e do espaço, em Peer Gynt de Ibsen, no Ricksteater
de Oslo (1978). Somos obrigados a constatar que as obras dos artistas que abriram
caminho à grande metamorfose do teatro de bonecos nos anos 50, continham em germe,
todas as grandes idéias dos anos 90. Isso vale também para a obra de Wilkowski.
Afastado do teatro no final dos anos 60 em resultado de um desacordo com a burocracia
comunista, ele encontra refúgio na televisão simultaneamente como autor e diretor. Nos
anos 70, retoma sua atividade no teatro. Revela‐se então seu perfeito domínio de novos
Entrevista de Henryk Jurkowski com Margareta Niculescu, Charleville‐Mézières, 17 de novembro de
45
1993.
46
REFORMAS
47
III - CONVENÇÕES
HOMOGENEIDADE
Quando chega ao fim a Segunda Guerra Mundial, o teatro de bonecos
homogêneo não é unicamente um teatro de formas ultrapassadas e de investigação
esgotada. Ao contrário, ele é mais respeitado, desenvolve suas qualidades formais,
experimenta novos materiais, torna‐se um campo de investigação para as artes plásticas
– do boneco mimese do homem ao boneco estilizado – e herda metamorfoses do teatro
de bonecos tradicional. Se Brann, Puhonny e Teschner se aproximaram das artes
plásticas, eles vão desenvolver, a partir do final dos anos 40 suas tendências artísticas e
utilizar novas formas de bonecos, de matérias e de materiais. São inúmeros os teatros e
os artistas precedentemente evocados que têm esta vontade: Joly, die Klappe, Kramer
assim como Wilkowski e Niculescu. Nos anos 50, todos eles praticam um teatro de
bonecos homogêneo e estilizado, sem falar dos teatros soviéticos que não vão renunciar,
por vários anos ainda, à homogeneidade de seus meios.
Continuidade ou ruptura?
Esse teatro de bonecos homogêneo não é nada mais do que um teatro de bonecos
não contaminado por outros meios de expressão. Ele possui todas as condições para
desenvolver seu próprio estilo, sem medo de perder seu público. O público aceita a
presença do boneco clássico, contrariamente a certos artistas. Aliás, engana‐se quem
imagina que o surgimento do teatro de bonecos com meios de expressão variados
resultou do esgotamento do teatro de bonecos homogêneo.. De fato, no que respeita a
alguns teatros clássicos isso faz sentido, mas a criação contemporânea dá testemunho
do contrário e a história me dá razão por não privilegiar um em proveito do outro. Por
essa razão, os anos 60 transbordam de teatros de bonecos clássicos. Eles coexistem com
o teatro de bonecos heterogêneo e os dois polarizam o interesse de diferentes artistas. O
desenvolvimento das artes, a estilização plástica e gestual, oferecem as condições de
uma profunda transformação para o teatro de bonecos clássico. Não é, pois,
surpreendente que este teatro tenha tido uma quantidade tão grande de adeptos. Por
outro lado, o fato de que estes bonequeiros tenham se sentido ameaçados pela pressão
dos modernos, era muito mais surpreendente!
Henryr Ryl, diretor polonês, defende o teatro de bonecos como um gênero
artístico à parte. Sua convicção nasce das idéias de Craig e das reações dos espectadores,
crianças e adultos. Enquanto diretor, ele é favorável às experiências teatrais e mesmo à
diversidade dos meios de expressão utilizados nos espetáculos. Enquanto avô e porta‐
voz do boneco, ele exige permanecer a seu serviço. Seus espetáculos, de um estilo
realista, alcançam um verdadeiro triunfo, como O Médico à Força (1954), baseado em
Molière, cujos elementos burlescos e eróticos – chocantes se fossem assumidos por
atores – tornam‐se cômicos ao serem interpretados por bonecos. Ryl, no entanto,
permanece aberto a certas inovações formais que devem imperativamente servir ao
48
CONVENÇÕES
boneco: a utilização de diferentes meios de expressão (a associação de máscaras,
bonecos e atores), a contribuição do teatro de objetos, do grande espetáculo em relação
ao número pequeno e do processo de criação se efetuando sob o olhar do público. No
Moinho de Café (Mlynek do Kawy, cenografia: S. Fijalkowski, 1959), Ryl segue este
princípio, defende a fidelidade ao boneco e declara em 1963: Assim, pois, os aliados do
boneco no seu início: o homem, a máscara, o objeto, o acessório, tornaram‐se pouco a pouco seus
adversários. Eles se puseram a reinar sobre a cena do teatro de bonecos marginalizando a este.
Quiseram mesmo roubar‐lhe seu nome, chegaram disfarçar‐se dele, semeando a confusão no meio
do público. Não é de espantar que este já se sinta perdido e sem vontade de ir ao teatro, pois os
julgamentos e as opiniões das críticas mais sérias, especialistas na matéria, reunidas neste corpo
coletivo pomposamente batizado de júri, estavam gravemente deturpados. Aqui e lá surgiram
vozes pedindo que se arrumasse este estado de coisas. Elas afirmavam que tinha sido jogado fora o
bebê com a água do banho. Mas estes protestos não foram acompanhados de reflexões mais
profundas. Elas ecoaram no deserto.46
Esse adepto do boneco clássico não pode deter as mudanças. Os críticos são
apenas os catalizadores de um processo inevitável e se o boneco foi marginalizado, os
bonequeiros são os primeiros responsáveis por isso.
Nas fontes da plástica
Entre os novos teatros de bonecos que se distinguiram por sua originalidade
citamos o Teatro Central de Bonecos de Sofia. Ele conquista o público do mundo inteiro
com espetáculos como A Escola dos Coelhinhos, Pedro e o Lobo, O Relojoeiro e Krali
Marko, e oferece um leque indo de formas universais, quase abstratas, a formas
pessoais refletindo a experiência de uma cultura nacional. No Segundo Festival
Mundial de Bucareste, em 1960, o teatro apresenta: A Escola dos Coelhinhos, conto de
animais do repertório de Obrazstov numa tradição realista e Pedro e o Lobo, música de
Prokofiev, uma criação moderna. A Escola dos coelhinhos é uma alegoria vitoriosa (os
coelhinhos representam crianças) e uma dinâmica de teatro de bonecos naturalistas. Em
Pedro e o Lobo (direção de Atanas Ilkov e de Niculina Georguieva, 1960), triunfam
formas plásticas que enriquecem a música programática do compositor. Formas
geométricas compõem cenários e bonecos, como se a música encontrasse seu
correspondente em linhas retas e curvas, em círculos, esferas e elipses. Alguns bonecos
têm um corpo espiralado escondido debaixo da roupa, mas que se faz visível ao longo
da ação. Os personagens humanos, de cabeça esférica, são desprovidos de traços
precisos, ao contrário da música de Prokofiev e suas formas abstratas evocam bem
pouco os heróis da história. O entusiasmo por poéticas tão diferentes se deve ao fato de
que os bonequeiros apreciam tanto as normas da arte clássica aqui expressa na
perfeição da manipulação de A Escola dos Coelhinhos quanto às inovações de Pedro e o
Lobo, diretamente inspiradas nos princípios do teatro de vanguarda.
46 Henryk Ryl. Lalkarskie tak i nie O sim e o não dos bonecos. Teatr Lalek, 1963, no. 26, p. 2
49
METAMORFOSES
O Relojoeiro, de I. Teofilov (direção: L. Dotcheva, cenografia: I. Conev, 1965), traz
novas soluções plásticas; todos os personagens têm a forma de tubos de papelão. A
opção formal determina um modelo de personagens e dá uma mesma tonalidade ao
conjunto do espetáculo. As idéias pacifistas de O Relojoeiro, construídas em torno do
destino de um homem simples, renascem graças à utilização de meios inesperados que
deliciam o público, emocionado e tomado pela originalidade do espetáculo. Esta
capacidade mistificadora do boneco é de fato um dos segredos deste teatro e dá uma
nova dimensão a todos os elementos cênicos. O poema heróico Krali Marko de Teofilov
(direção: Teofilov, cenários: I. Conev, 1967) conserva a originalidade da forma de
antigas tradições icônicas, a serviço da dinâmica interna da imagem. As fontes plásticas
estão em perfeita harmonia com o tema e dão ao espetáculo um caráter monumental.
Rumo à caricatura
Na União Soviética, à exceção de alguns adeptos das novas correntes (como
Ablynin), o boneco clássico predomina. Alguns artistas em voga, como Mikhail Korolev
ou então Viktor Sovdarouchkine tentam liberar‐se da poética reinante de Obraztsov. O
primeiro tende para um teatro realista e poético em que a caricatura plástica é reforçada
por fantasias e idéias surrealistas, o segundo, seu sucessor enquanto diretor artístico do
Grande Teatro de Bonecos de Leningrado, vê no teatro de bonecos uma imagem
estilizada da realidade. Em O Elefantinho, baseado em Kipling (cenografia: V. e V.
Kharlamov, 1964), Evguenil S. Kalmanovski, crítico, sublinha o modo de criação de
Sovdarouchkine: Se o Elefantinho é ainda uma criança, um ser humano na aurora de sua vida,
ainda irresponsável, ainda inocente, seus antagonistas têm particularidades psicológicas. Sua
semelhança evidente com o homem sublinha seus traços físicos, transforma‐os em qualquer coisa
arrasadora, estranha ao homem e antinatural. Durante toda uma cena, o Hipopótamo, a
Avestruz, a Girafa, o Pavão permanecem encerrados num mutismo renitente. No entanto,
resfolegam, bufam, gorgolejam, estalam a língua, suspiram47.
A ilusão dramática
Allami Babszinhaz, Teatro de Estado de Budapeste, dirigido por Dezso Szilagyi
nos anos 60 e 70, dá testemunho de uma outra problemática estética do boneco clássico.
Apoiando‐se na psicologia, Szilagyi constata que o público infantil reage de modo
diferente dos adultos ao boneco. As crianças aceitam o jogo com toda confiança,
consideram‐no verdadeiro porque não distinguem a ficção da realidade, enquanto que
os adultos já possuem uma certa distância em relação à ação dramática, ainda que se
deixem seduzir pela ilusão. Os bonecos também devem mostrar certas relações humanas,
atuais e concretas, devem, pois, oferecer a possibilidade de viver uma “verdade cênica” para
conseguir um contato com os adultos. De fato, as coisas não se passam da mesma maneira no
teatro de bonecos e no teatro dramático. No teatro de bonecos a ilusão é mais completa que no
drama. A unidimensão natural do boneco – tudo é aí representado com o mesmo material – não
suscita no público este sentimento mesclado que faz nascer a dualidade do personagem
47 Evguenii S. Kalmanovski, Teatr Kukol, den’ sevodnashnii (Teatro de bonecos hoje), Leningrado, 1977, p. 18:
50
CONVENÇÕES
representado na cena dramática (simulacro de ser humano) e do intérprete, o ator presente em
carne e osso. O espectador do teatro de bonecos só percebe o personagem cênico, e não seu
intérprete. Essa homogeneidade do teatro de bonecos é em si uma das fontes da emoção estética no
espectador adulto48.
Assim, Szilagyi desenvolve o programa artístico de seu teatro a partir desses
valores. Tudo é ilusão; o artista se assume criador, a matéria inerte se metamorfoseia e é
percebida como verossímil. O mundo do boneco é um mundo homogêneo, e mesmo
tendo recorrido a outros meios de expressão, como atores, com ou sem máscaras,
Szilagyi permanece um adepto das idéias de Paul Brann e de Schlemmer. Esta tomada
de posição poderia levantar objeções se o valor artístico do teatro de bonecos fosse
julgado por seus meios de expressão. Ora, não se trata disso, eles não tem valor
enquanto tal, mas dependem de seu uso, de sua função estética, de sua aptidão a
transmitir sentido e, portanto, sua importância é relativa. A história do teatro sugere
que as mudanças dos meios de expressão ou dos estilos de representação estão sempre
ligados ao surgimento de novos temas e necessitam fazer uso de novos meios, sem
seguir sistematicamente a moda. A prática de criadores contemporâneos o confirma e a
história nos esclarece sobre outras verdades também universais. Qualquer tema, parece,
pede meios de expressão apropriados e que não são necessariamente modernos. O
Allami Babszinhaz considera o boneco um meio essencial de uma ilusão consciente,
baseado em reflexões teóricas. Este teatro sabe ser moderno, aberto a todas as correntes
nascentes, e utiliza bonecos estilizados em seus espetáculos tanto para crianças (contos
tradicionais ou tirados do folclore) quanto para adultos (repertório de peças de
Shakespeare, Brecht e Mrozek.). Com uma coerência admirável, ele adapta o boneco a
obras de grandes compositores como Bartok, Kodaly e Stravinski.
O repertório musical
Essa associação entre música e bonecos permite ao Allami Babsinhaz realizar seu
principal objetivo: conservar a ilusão teatral sem deixar de manter o boneco no registro
do simbólico. A música contribui para a convenção do jogo, onde os gestos e
movimentos dos bonecos exprimem as obras numa pantomima dançante, como em
Petrouchka, de Igor Stravinski, e O Mandarim Maravilhoso, de Bela Bartok. Petrouchka foi
criado (direção: Kato Szonyi, cenografia: Ivan Koos, 1965) no período de maior fausto
do teatro. A música e os cenários se inspiram no folclore russo: barracas de festa
popular, desfile de monstruosidades humanas, números de prestidigitação,
brincadeiras populares, desfile dançante de bonecos de vara. No meio da multidão, um
teatro de marionetes, com seus três personagens: o Prefeito, a Dançarina e Petrouchka.
Este ultimo, apaixonado, se revolta contra seu destino de marionete – o que torna
natural a metáfora da dependência do herói e de seu destino face ao animador – e foge
do teatro, mudando de constituição técnica: de marionete passa a boneco de vara. O que
não lhe evita um fim trágico. Peter Molnar Gal evoca o sentido metafórico dessa mini‐
48 Dezso Szilagyi. Das heutige Puppentheater und sein Publikum (O teatro de bonecos atual e seu público).
In: Puppentheater der Welt. Zeigenössisches Puppenspiel in Wort und Bild. Henscheverlag, Berlim, 1965, p.40.
51
METAMORFOSES
Peter Molnar Gal. Theatre with Puppets (O teatro com os bonecos). In: Contemporary Hungarian
49
Puppet Theatre, editado por Dezso Szilagyi,Corvina Press, Budapeste, 1978, p. 25.
Peter Molnar Gal. Theatre with Puppets (O teatro com os bonecos) In: Contemporary Hungarian Puppet
50
Theatre, editado por Dezso Szilagyi, Corvina Press, Budapeste, 1978, p.53
Holger Sandig. Die Ausdrucksmöglichkeiten der Marionette une ihredramaturgischen Konsequenzen
51
(A capacidade expressiva da marionete e suas consequência dramátúrgicas).
52
CONVENÇÕES
dirigido sucessivamente por Anton e Hermann Aicher, é a única exceção no caso. Os
Aicher imitam a Ópera. Seu teatro é uma cópia em miniatura da Ópera com seus
cenários e seus atores. Os bonecos usam as mesmas
roupas que os cantores, reproduzem os mesmos gestos e introduzem assim o
distanciamento evocado mais acima. Ele tem em geral uma dimensão cômica. O Allami
Babszinhaz opõe‐se a essa prática criando um universo plástico específico em harmonia
com o tema musical, signo de sua modernidade. O caminho que leva à abstração e a
uma total musicalidade é apenas esboçado pelo Allami Babszinhaz. Ele se aparenta ao
esboçado e sonhado por Sokolov e seu teatro de “dinâmica musical”.
O Teatro de Bonecos de Poznam também participa dessa experiência, sobretudo
com O Mais Bravo (Najdzielniejszy de Ewa Szelburg‐Zarembina, música: Krzysztof
Penderecki e Mark Stachowski, direção W. Wieczorkiewicz, cenografia: J. Berdyszak,
1965). A ação da peça se desenvolve num mundo estilizado, compreendendo pardais e
campos de papoulas. Os pardais tentam se colocar ao nível da abstração das frases e dos
tons musicais, se deslocando fora de qualquer associação de idéias, e traduzem a
música numa linguagem visual, como por analogia às notas e às pautas musicais.
O uso do repertório musical e a associação feita através desses poucos exemplos
entre boneco e música não têm a mesma significação que o emprego de meios
expressivos variados. A música é apenas um dos elementos da teatralidade, pode ser
importante na expressividade do personagem, mas não pretende absolutamente
determinar a independência da iconicidade do boneco. Ela cria uma atmosfera, orienta
as tensões, assinala emoções e está mais ligada ao teatro sintético. Foram, pois, raros os
teatros que, como o Allami Babszinhaz, souberam permanecer fiéis ao boneco e ao
teatro de bonecos homogêneo sem perder ao mesmo tempo sua reputação de teatro
artístico moderno.
Nas fontes do clássico
Em meados dos anos 60, o Teatro Miniatura de Gdansk desenvolve as
capacidades expressivas do boneco em espetáculos de caráter monumental. Seu diretor
artístico, Michal Zarzecki buscava a expressão de verdadeiras emoções humanas ou de
seres antropomorfizados para restituir em cena o universo de um mundo fantástico ou
lendário. Num estilo verista, os bonecos não tem movimentos apropriados e se limitam
a uma gesticulação sugestiva. O Moinho de Vento Voador (Latajacy Wiatrak de A. e J.
Afanassiev, direção: Michal Zarzecki) foi o acontecimento do Festival de Bucareste em
1965. Este conto simbólico tratado num enquadramento plástico muito rico (de Gizela
Bachtin Karlowska), tem por tema a luta dos homens contra um bruxo moleiro que lhes
impõe viver no país da tristeza. Os bonecos das duas crianças percorrendo, nesse
moinho voador, o país da tristeza, o dos perfumes e depois o dos jogos de cartas, são
admiravelmente manipulados. A Vaca Cunegundes, personagem protetor do espetáculo,
prodiga amor e cuidados para proteger as crianças da ira e da ameaça de seus
agressores. Esses bonecos jamais deixaram o mundo do sonho e da poesia. Ilia Muromiec
(de V. Kurdiumov, 1967), extraído das bilinas russas, toma a amplitude de uma epopéia
cavaleiresca, repleta de elementos provenientes da imaginação popular. A animação
53
METAMORFOSES
dos bonequeiros é de uma perfeição espantosa, às vezes mesmo assustadora. O
universo dramático e os personagens parecem autênticos, ainda que cercados de uma
iconostase estilizada. O primeiro gesto de Muromiec, um herói ruteno sentado há 33
anos sobre o forno, tal uma escultura inanimada, perturba tanto os personagens quanto
os espectadores. O teatro Miniatura afirma‐se mestre na arte da ilusão, levada ao
extremo.
Todos os grandes espetáculos criados num estilo clássico aconteceram na Europa
nos anos 60. Menos numerosos nos anos que se seguiram, eles deixaram talvez também
de suscitar o interesse da crítica e dos bonequeiros! Mas continuam existindo teatros
praticando a homogeneidade dos meios de expressão. Na Inglaterra, por exemplo, o
Little Angel Theatre de Jon Wright ainda faz muito sucesso junto ao público do mundo
inteiro, porque respeita os princípios da cena à italiana e as convenções da ilusão teatral.
O teatro de bonecos dito homogêneo permanecerá por muito tempo a única referência
para os artistas de outras disciplinas. Não é de espantar, portanto, que na Geórgia, Rezo
Gabriadzé, roteirista, artista plástico e diretor, que funda em 1981 o Teatro de
Marionetes de Tbilissi, põe em cena verdadeiras marionetes. Estilizadas, elas
representam o papel de herói, obedecendo às regras do cinema ou da arte dramática. No
universo de Gabriadzé, o homem é um homem e a coisa conserva sua função primeira, só
penetrando em certos momentos no mundo de uma vida autônoma. Por exemplo, em Alfredo e
Violeta, onde um retalho de tecido flutuante simboliza a alma desfalecida de Violeta ou uma
folha de outono a morte da heroína, ou ainda em O Brilhante do Marechal de Fantieux, onde
pombos de papel trazem o berço de Picasso recém nascido ou brota sob nossos olhos uma torre
Eiffel de corda52.
Gabriadzé opta por um mundo artificial, estilizado, criado por um artista e a
marionete clássica lhe convém perfeitamente. Teria ele sucumbido a seus encantos ou
ela serve a seus interesses plásticos e a seu inesgotável senso de humor?
A metamorfose do boneco não está em contradição com a existência de um teatro
de bonecos dramático. Mesmo se o boneco, hoje, não ocupa mais exatamente a mesma
posição, ele conserva toda sua força e manifesta claramente sua presença. Um jovem
diretor, Piotr Tomaszuk é prova disso. Em seu período clássico, no teatro de bonecos de
Bialystok, ele adapta uma obra admirável, A Caça à Raposa, de Slawomir Mrozek
(cenografia: Mikolaj Malesza, 1989). O espetáculo surge num momento político particular,
quando o regime comunista manifestava sinais de fraqueza. Tomaszuk reage à situação
associando em seu espetáculo, três peças em um ato de Mrozek: A Serenata, A Raposa
Filósofa e a Caça à Raposa, que segundo ele, formam um conjunto heterogêneo coerente.
O primeiro ato apresenta a Raposa num galinheiro. No poleiro, galinhas e um
galo dormindo – bonecos em forma de sacos cujas cabeças estão apenas esboçadas. A
raposa está a tal ponto maltratada pela vida, que seu pelo ruivo está todo sujo, seduz de
uma em uma as mulheres do Galo, sem encontrar resistência. Mas na verdade o que ela
quer é o Galo, que vai terminar por capturar. No ato seguinte, a Raposa vai visitar um
52 Audrone Girdzijauskaite. Maestro Rezo i jego teatr (Mestre Roze e seu teatro). Teatr Lalek, no. 3, 1998, p. 20.
54
CONVENÇÕES
dignatário da Igreja, um Bispo em hábitos de cerimônia, cujo tamanho monumental
ultrapassa em várias vezes o da Raposa. Ela exprime suas dúvidas, mas não encontra
junto a ele nenhum reconforto. Segue‐se o ato III, a caça à raposa. A ação se passa num
país que conheceu uma revolução. Todos os cidadãos agora são beneficiários do direito
de caça, até então reservado a alguns privilegiados. Todos caçam, pois, numa floresta
devastada, destruída, entre aristocratas decapitados que levam sua cabeça debaixo do
braço. É obrigatório usar de seu privilégio, mas em razão da falta de caça, ninguém
pode fazê‐lo. A Raposa, disfarçada de caçador, aconselha a caçar os animais domésticos,
porque ela tem justamente o Galo ao alcance da mão. Os caçadores bebem e cantam
para ganhar coragem, quando de repente ecoam os uivos dos lobos. É o salve‐se quem
puder geral. A Raposa se refugia no alto de uma árvore, onde é atingida por uma bala
perdida atirada pelo Paralítico que desaparece no momento oportuno. Os lobos
continuam a uivar sem parar. Eles não devem mais estar muito longe, porque seus
lamentos parecem cada vez mais próximos. O crepúsculo se foi, a noite caiu.
A Caça à Raposa entrou para a história do teatro polonês. Ele se inscreve no debate
sobre a identidade nacional à qual o teatro, durante o comunismo, consagrava uma
grande parte fazendo uso de alusões e metáforas. Quanto à forma, esse espetáculo é
uma peça moderna, que tenta uma vez mais nos convencer de que o teatro de bonecos
homogêneo é de fato uma terra fecunda para a metáfora e o simbólico. Na continuação
de sua carreira, Tomaszuk abandonou esse tipo de teatro e se lançou na poética da
animação à vista, depois na do teatro de bonecos dos mais variados meios de expressão.
Registremos apenas o fato de que ele inicia por meios clássicos, o que confirma o poder
de atração desses. Do mesmo modo, se duas gerações de artistas são necessárias para
passar do teatro clássico ao teatro moderno, essa evolução se faz agora na carreira
pessoal do artista, ao fim de seus três ou quatro primeiros espetáculos. Nosso mundo
vive uma tal aceleração que é natural que este ciclo se reduza rapidamente. Entretanto,
é importante mantê‐lo como um todo e que o primeiro elo reste como o teatro de
bonecos clássico: homogêneo.
Uma tal conclusão seria prematura se ela só se reportasse a um único caso. Por
sorte, existem vários assim. Com muita freqüência os jovens bonequeiros iniciam sua
carreira fazendo uso da poética clássica do teatro de bonecos Esse tipo de abordagem
permite‐nos supor que num breve prazo, as exigências do repertório e dos criadores
decidirão quanto à forma dos espetáculos, senão eles permanecerão num mundo onde a
experiência humana é bastante limitada. Os espetáculos para crianças são, desse ponto
de vista, particularmente importantes. Elas geralmente percebem os espetáculos como
uma imagem quase autêntica da realidade. Identificando‐se quase totalmente com os
personagens, elas são a tal ponto tomadas pela ação que qualquer amplificação por
diferentes meios de expressão é inútil. O espetáculo do Teatro Damiet van Dalsum,
Hollebollebeer (direção: Cok Poelman, cenografia do autor, 1989) ilustra magnificamente
esse princípio. Na cena deserta, aparecem bonecos extraordinários, de formas
fantásticas: crianças e entre elas, Jossi, diferente dos outros. Ninguém quer brincar com
ele. Até mesmo seu urso de pelúcia que se perdeu. Só lhe resta refugiar‐se num mundo
imaginário, aquele dos ursos. Na rosa dos ventos existem cabanas onde vivem ursos de
55
METAMORFOSES
várias espécies. Também entre eles Jossi não pode mais ficar. Uma grande borboleta o
leva então para um país onde jamais alguém fica sozinho. O mundo dos bonecos é uma
criação à parte, e no entanto, as emoções aí pululam, a maior delas sendo a inquietação
quanto à sorte do pequeno Jossi. O Teatro Damiet van Dalsum é um teatro figurativo,
imaginativo e poético. Ele abre uma nova perspectiva para o teatro de bonecos
homogêneo. Seus meios de expressão atraem o público e estimulam seu imaginário. Ele
tem, pois, seu lugar garantido e confirma essa verdade interior, sentida e praticada
ainda hoje por outros artistas.
HETEROGENEIDADE
A partir dos anos 50, a nova geração de bonequeiros não aprecia nenhum pouco
restringir seu campo de criação. Inicia‐se a ruptura do teatro de bonecos com sua
poética tradicional. O primeiro obstáculo a ultrapassar é o das convenções do teatro de
bonecos homogêneo.
A entrada do ator
Nada de mais fácil, já que o homem continua sendo seu fiel companheiro: cada
punchman tem seu bottler e o criador de Petrouchka seu músico diante da empanada. Já
não apareceram atores na cena do teatro dei Piccoli de Vittorio Podrecca ou do Teatro
Central de Moscou? Os atores apareciam cada vez com mais freqüência ao lado dos
bonecos. Ninguém se colocava então qualquer questão sobre sua presença cada vez
mais comum no palco, enquanto eles integraram logicamente a realidade do boneco.
Hans Richard Purschke se insurge contra a presença simultânea do boneco e do ator.
Conservador, ele declarava em 1953, anteriormente a essa nova orientação: Ao surgir em
seu mundo, (o homem) tira de imediato (ao boneco) sua realidade de boneco; ele perde sua força
de persuasão, o encantamento se rompe e não se vê nele nada além de sua verdadeira natureza de
papel machê, de madeira ou de pano. Porque o aparecimento do homem dá ao espectador a
possibilidade de comparar e ele repara então na imperfeição da aparência e dos movimentos do
boneco. (...) O mundo dos bonecos e o dos homens são separados, eles excluem um ao outro. É
flagrante no que diz respeito ao boneco e ao jogo de sombras irreal. Tem‐se vontade de dizer, para
parafrasear Kipling, que um homem é um homem e um boneco um boneco e que eles jamais se
encontrarão53.
Sua teoria e a tradição alemã induzem Purschke ao erro. Ele não vai tardar a
retratar‐se publicamente, reconhecer que a colaboração do boneco e do ator dá
excelentes resultados. Em 1958, ele acolhe Tankred Dorst, nas colunas de sua pequena
revista Perlicko‐Perlacko. Dorst vai muito mais longe do que o teriam imaginado os
partidários do teatro de bonecos homogêneo porque ele admite a presença do ator em
todos os tipos de papéis de animação à vista: O boneco conserva a distância tanto com
respeito ao espectador quanto com respeito à coisa representada. Seus gestos não são “naturais”.
Mesmo quando ele imita, ele cria uma distância, ele “mostra” também em conseqüência o que ele
representa. É isso que torna cômica a figura que imita um pianista virtuoso. É importante
53 Hans Richard Purschke. Puppe und Mensch (O Boneco e o Homem) Perlicko‐Perlacko, I, 1953, p. 118 e 119.
56
CONVENÇÕES
compreendê‐lo para o estilo do espetáculo. Tanto nos esforçávamos ansiosamente no final do
século XIX em manipular as figuras da maneira mais dissimulada, mais misteriosa e mais opaca
possível, quanto hoje admitimos revelar o indivíduo que manipula o boneco... E não é de modo
nenhum uma idéia aberrante reutilizar, no lugar dos fios introduzidos pela primeira vez no final
do século XIX, sólidos tubos metálicos aparentes, para dirigir as figuras. O espectador deve ficar
consciente de que essas figuras são bonecos que atuam, que é um jogo, uma parábola de nossa
realidade, um jogo observado até mesmo por aqueles que representam54.
A partir de então o ator passa a ocupar um lugar na cena do teatro de bonecos.
Com funções diferentes e segundo os personagens, ele pode ser de um lado o elemento
lógico e natural do teatro de bonecos, (Gulliver no país de Liliput ou o bonequeiro Jean
nas ruas de Paris) e de outro, um elemento visível da convenção teatral enquanto
animador de bonecos, ponto de partida da animação à vista, e manter relações
metafóricas com eles, ou se transformar em matéria para “fabricar” um personagem. Os
puristas desconfiam; eles têm a impressão de uma traição da parte de falsos
bonequeiros que transformam seus meios de expressão sob pretexto de
experimentações teatrais. Outros pensam que trata‐se lá de um problema estético. No
colóquio da UNIMA, em 1962, Krystyna Mazur consagra um grande espaço aos
elementos plásticos (artificiais) presentes na arte dramática e evoca o recurso da arte
dramática contemporânea aos meios plásticos do boneco. Qualificando a convenção do
teatro de bonecos de “convenção absoluta”, ela pensa também, que é indispensável
abri‐la a outros meios: Ainda que eu me incline diante da “especificidade” do teatro de bonecos,
que eu me dê conta de que esta especificidade está hoje gravemente ameaçada no teatro polonês
pelo abuso que se faz do ator vivo, da máscara e do objeto, ainda que eu saiba que é esta pequena
figura que bate ao ritmo de seu coração e não uma outra forma que o bom bonequeiro dota de
sentimento, eu penso, entretanto, que é preciso considerar esta forma de ação teatral como uma
forma de ação entre outras e que o lugar do teatro de bonecos na arte de hoje e na de amanhã
depende disso. Eis porque me permito tomar um pouco de vosso tempo para essas divagações
sobre os amores do boneco e da arte teatral, sobre seus amores com o teatro de máscaras e mesmo
com certas correntes da pintura, da escultura , da arte contemporânea. O fato de que o teatro de
bonecos, na Polônia, não seja uma criação artificialmente isolada (no sentido artístico), algumas
de suas experiências tendo mesmo influenciado outras encenações de teatro (poderia se falar
longamente de sua influência sobre o cinema de bonecos e sobre os desenhos animados), é prova
de sua evolução. Falar do teatro de bonecos, como de uma disciplina em si, ignorar suas relações
com as outras disciplinas que, no entanto, existem, é lançar a arte do boneco num impasse
artístico levando‐o cedo ou tarde a sua degradação artística55.
Mazur ilustra bem o clima reinante no seio dos bonequeiros na Polônia, na
Tchecoslovaquia e em alguns outros países. Estar aberto a outros campos das artes deve
54 Tankred Dorst. Das Marionettentheater der Gegenwart (O teatro de bonecos do presente). Perlicko‐Perlacko,
II, 1958, p. 134‐135.
Krystyna Mazur. Os amores da marionete (ou os laços do teatro de bonecos com o teatro dramático – e não
55
apenas) In: Conferência da UNIMA: O Teatro de bonecos e suas relações com as outras disciplinas
artísticas. Varsóvia, 19‐24, junho 1962, p. 29.
57
METAMORFOSES
ser uma atitude natural para cada artista. Certos teóricos do teatro quiseram fazer desse
princípio uma lei, um critério de modernidade do boneco. Os “verdadeiros”
bonequeiros se sentiam pegos numa armadilha e adotaram uma atitude intransigente.
Que compromisso assumir? Numa reflexão estética, talvez, mas sem que ninguém se
engaje sobre a posição do boneco na hierarquia da arte. Harro Siegel dá o primeiro sinal
e aparece como exceção. Ele publica o ensaio de Mazur em 1965 e o completa com suas
observações: Não se deveria exigir de modo dogmático que o teatro de bonecos mostre apenas
bonecos e jamais seu animador humano. Mas é justamente porque recentemente nós temos visto
muitas vezes bonecos e atores vivos apresentando‐se juntos, e isso nos mais diversos estilos, (os
erros e os exageros próprios à moda não estando ausentes disso, claro), que é preciso assumir essa
transformação do real como critério. Se o boneco e o ator servem todos os dois a um todo superior,
se eles restam, por assim dizer, no mesmo nível de projeção, então entraremos numa nova e fértil
região teatral tanto quanto reconquistaremos um “teatro em si”, fora do tempo56.
Siegel cita exemplos de espetáculos conhecidos onde o teatro de bonecos utiliza o
ator ou suas mãos. Favorável ao uso de máscaras e à prática da pantomima, ele evoca os
diferentes gêneros dramáticos japoneses como o Nô, o Bunraku e o Kabuki que se
enriquecem mutuamente. O isolamento do teatro de bonecos se rompe na medida em
que ele entretém relações com as outras disciplinas artísticas caucionadoras de sua
evolução. Siegel teria preferido uma certa relatividade, lamentando os erros e os
exageros da moda quanto à presença do ator, mas ele foi essencialmente favorável à
abertura do teatro de bonecos a outros meios de expressão.
Brincadeiras de crianças
Se os bonequeiros dos anos 50 têm sua fonte no folclore, os dos anos 60 escolhem
as brincadeiras infantis como modelo de estilização, estrutura de jogo e fonte teatral. O
desenvolvimento do psicodrama, o jogo enquanto fonte da cultura (Homo Ludens de
Huizinga) e as pesquisas sobre o folclore das crianças (a enumeração ou a recitação
rítmicas) influenciam vários artistas entre os quais o diretor Jan Dorman. Em 1958 ele
apresenta no Teatro para Crianças de Zaglebie, na Polônia, O Alfaiatezinho Valente
(Krawiec Nietczka), um conto atualizado e interpretado por atores que têm diante de si
bonecos e acessórios enquanto signos icônicos de personagens. Eles interpretam seus
personagens sem realismo e declamam o texto ao ritmo das brincadeiras infantis.
Arnold Burov, do Teatro de Riga, inspira‐se no universo infantil para sua
encenação dos Músicos de Breme, em 1963. O espetáculo acontece numa grande loja onde
os atores (os vendedores da sessão de brinquedos) divertem a jovem clientela. Entre
cubos delimitando o lugar da ação, personagens representam com máscaras e
brinquedos. Eles os trazem sob o braço, falam em seu lugar (um cachorro, um gato, um
galo) e executam certos gestos em seu nome. Tudo, neste espetáculo, visa à metáfora.
Pistolas de bandido servem de rolha para fechar o barril de cerveja, um pau substitui a
Harro Siegel. Schauspieler und Puppenspieler (O ator e o bonequeiro ). In: Puppentheater der Welt,
56
Henschelverlag, Berlim, 1965, p. 24.
58
CONVENÇÕES
agulha de uma máquina de costura improvisada57. A convenção do jogo infantil serve
de trampolim para uma linguagem poética, ingênua e, contudo metafórica no sentido
próprio da palavra. Na mesma época, no registro do teatro teatralizado, teatros tchecos
fazem tentativas similares e retomam esta convenção onde os atores constróem o
espetáculo à vista. Após o Teatro Radost de Brno e o de Liberec, o princípio foi retomado
na Tchecoslováquia por Miroslav Vildman, diretor, no Teatro Drak de Hradec Kralove
numa divertida tragicomédia Conto Saído de uma Mala (Pohadkaz kufru, 1965). Esse título
tornou‐se mesmo simbólico, oriundo simultaneamente do folclore, do jogo infantil e de
um elemento cênico, uma mala. Dois palhaços esvaziam uma mala e nela descobrem
um conto que eles fazem representar por uma trupe de atores com bonecos de barra –
uma estilização elegante de bonecos populares tchecos. Os atores emprestam suas
qualidades motoras e vocais a esses bonecos experimentando fisicamente, com eles,
uma boa parte dos acontecimentos ora divertidos e agradáveis, ora desagradáveis.
Inúmeros outros teatros seguem essa convenção, mas rapidamente deixam de
sentir necessidade de representar as cenas de exposição (uma brincadeira de criança ou
um número de clown). Os valores semânticos da representação foram implicitamente
modificados e ninguém levantou questões sobre a contribuição artística da animação à
vista. E de que ela pudesse mudar a expressão artística do boneco. Para muitos
bonequeiros, constatar que existe uma diferença entre dois tipos de animação (à vista
ou oculta) basta‐lhes para adotar esse princípio como nova norma da modernidade e
praticá‐la. Não existe aí nada de novo no plano da psicologia humana. Felizmente, os
anos 60 possuem mais inventores do que epígonos. Eles se encaminham todos para um
teatro de meios de expressão variados, conseqüência lógica da modernização do teatro
de bonecos. Seria possível fazer remontar essa corrente à vanguarda teatral do início do
século, à Pierre Albert‐Birot, Ivan Goll e Enrico Prampolini ou ao teatro de Erwin
Piscator?
Os primeiros adeptos
Entre os primeiros adeptos dessas novas convenções, muitos são jovens criadores
que se opõem á tradição realista. Nós conhecemos poucos deles porque vivem em
países onde as condições sociais não são favoráveis às experiências teatrais e a sua
difusão. Na Rússia, o diretor Borys Ablynin demonstra coragem ao se lançar nessa
aventura, a dois passos do teatro de Obraztsov que, na época, permanecia hostil a
qualquer mudança. Aliás, Ablynin apreciava o trabalho de Mikhail Korolev (Grande
Teatro de Bonecos de Leningrado) mas, provavelmente, não esperava ver eclodirem
idéias mais audaciosas em Moscou. As idéias de Ablynin se manifestam na cena com a
Cotovia de Jean Anouilh (1964) e nas declarações de seu mais próximo colaborador, o
cenógrafo A. Sinieckii: Eu sonho com um teatro poético. Quero que nossas reflexões sobre a
vida não sejam terrivelmente prosaicas, nem empiricamente mesquinhas, que viva nelas uma
grande idéia poética generalizadora. Uma idéia metáfora, uma idéia fulgurante. Não creio no
teatro que seja um reflexo da vida ou uma cópia da vida. Não creio na verossimilhança realista,
57 Henryk Jurkowski. Leningrado – Moskwa (Leningrado – Moscou) Teatr Lalek, 1964, no. 30, p. 18.
59
METAMORFOSES
tenho medo de que a idéia se perca em detalhes derrisórios e cansativos. Também não creio que de
um milhar de detalhes realistas, por mais que sejam verossímeis e verdadeiros achados, possa
nascer, jorrar e iluminar uma verdadeira idéia poética58.
A poética da Cotovia repousa sobre os atores, máscaras e bonecos de diferentes
tamanhos, recobertos de papel jornal, manipulados à vista ou ocultos. O resultado é um
espetáculo rico e simbólico, comportando inúmeras cenas cujas perspectivas mudam;
ora em plano aproximado como o diálogo entre Joana d’Arc e o Capitão montados a
cavalos lançados a galope, ora na fuga de uma paisagem representada por um desfile
de tropas armadas sob a forma de pequenos bonecos colocados na ponta dos dedos.
Uma forte tensão dramática subentende o conjunto, como a cena do julgamento final da
donzela, onde um grupo de personagens disformes e mascarados cercam a heroína e
contrastam com sua palidez de atriz.
O cronista da Vietchernaïa Moskva faz uma crítica elogiosa dessa jovem trupe, que
consegue exprimir perfeitamente a tensão dramática da peça, transformada num “hino à
liberdade de pensamento e à coragem e não recua diante de nada, nem mesmo diante da morte59.
Essa opinião se refere mais à peça de Anouilh que ao espetáculo de Ablynin.
Entretanto, a interpretação desse espetáculo não foi tão fácil. Bonecos e máscaras,
confeccionados em papel machê, fazem alusão à atualidade dos jornais. Ao aceitar essa
aproximação, compreende‐se que se trata da atualidade cotidiana e, querendo reforçar o
efeito, Ablynin faz seus atores lerem LʹHumanité. A palavra “a humanidade” combina
com o sentido do espetáculo mas se identifica imediatamente ao cotidiano do partido
comunista francês O título do jornal salta aos olhos dos espectadores e complica o
sentido hermenêutico do espetáculo. Questionado a esse respeito, Ablynin declara que
era pura casualidade. Era preciso um jornal francês e L’Humanité era o único que se
conseguia encontrar em Moscou. Eu não podia acusá‐lo de ter dificuldades materiais
para produzir seu espetáculo, mas foi, na época, uma boa lição de semiologia teatral
para todos os bonequeiros. Cada elemento do espetáculo possui um sentido definido e
só os espectadores (e os artistas) carecendo de conhecimento não percebem o “perigo”
escondido no acaso.
O repertório dramático em jogo: Michael Meschke
Na suécia, Michael Meschke evita esse perigo e busca sua inspiração no
repertório do teatro dramático (Hoffman, Brecht, Kleist e Giraudoux). No que respeita
às doutrinas artísticas, podendo escolher livremente seus textos e seus meios, ele põe
em cena, em 1964, Ubu Rei (cenografia: Franiszka Themerson). Uma dupla confrontação,
de um lado, entre um texto engajado e bonecos (planos e muito desenhados), de outra
parte, entre bonecos e atores‐mímicos (entre eles o enorme personagem do grotesco
Ubu, papel criado por Allan Edwal e retomado pelo próprio Meschke). O domínio do
Natalia Smirnova. Iskusstvo igraiouchtchikh kokol (A arte da representação com bonecos) Iskusstvo, Moscou,
58
1978, p. 177.
59 Natalia Smirnova. V teatre kokol (Ao teatro de bonecos). Iskusstvo, Moscou, 1978, p. 11.
60
CONVENÇÕES
tirano sobre seus súditos repete o terrorismo do homem – um mímico – sobre esse
mundo de formas gráficas, desdobrando assim o efeito de distância do grotesco
existente. Themerson, inspirado nas ilustrações de Jarry, cria um rico universo de
criaturas planas, esboçadas a grandes traços de lápis preto sobre um fundo branco. A
maioria delas não são animadas, mas se deslocam alinhadas (para o desfile das tropas),
submissas ao jogo do ator como na cena de tortura. Ubu veste uma roupa branca, como
todos os personagens. Sobre seu ventre está traçado um círculo concêntrico preto: um
alvo vivo. Seu rosto, pintado de branco, é acentuado por uma enorme boca voluptuosa.
Ele se agita desajeitadamente entre esses personagens que só dependem dele. Sua
concupiscência grotesca e desajeitada se revela eficaz e lhe permite chegar a seus fins, o
que a torna verdadeiramente aterrorizante. O uso da pantomima, em perfeita harmonia
com o texto e o mundo gráfico, cria um espetáculo admirável, num estilo não‐mimético,
entretanto, esteticamente e intelectualmente engajado.
Como se dizia, de brincadeira, no Festival de Bucareste, em1965, Meschke
representava o “teatro branco” em oposição ao “teatro negro” theco. Meschke situa‐se
fora da moda da época e experimenta suas próprias convenções. Ele sugeriu
discretamente aos bonequeiros que a presença do ator só enriquece o espetáculo por
contraste com um mundo plástico de traços formais e expressivos. Werner Kliess, do
Theater Heute, descobre no espetáculo de Meschke, uma abordagem nova do boneco:
Não é a riqueza de idéias, nem a habilidade com a qual ele tira partido das diferentes convenções
que determinam o caráter revolucionário do teatro de Meschke, mas sua atitude soberana para
com o boneco. Enquanto os bonequeiros estão, de modo geral, fascinados pelo boneco e se
contentam em mostrar sua beleza ou a de uma história que lhe corresponde, Meschke considera‐o
um material – um meio de expressão60.
Sem desejo de subtrair nada ao julgamento de Kliess, é necessário precisar que a
evolução do teatro de bonecos nos anos 60 se desenvolve graças à energia criativa de
toda uma geração. Se a via escolhida por Meschke é original, muitos outros criadores,
em toda a Europa, também tiveram idéias importantes.
No cruzamento dos meios de expressão
Andrzej Dziedziul, diretor e ator polonês cria sob o título de A Situação do Destino
de Fausto (1968), um monólogo inspirado em certos temas de Marlowe e de Goethe.
Num palco pequeno, um enorme globo terrestre indica um escritório de trabalho.
Dziediul encarna Fausto. Mefisto é um boneco ventríloquo do qual um ator extrai os
sete pecados capitais. O globo é então dotado de uma cabeça plantada encima de um
frágil pescoço, metáfora da perturbação que nele se produz. A mulher é a partir daqui
seu único interesse exceto quando Fausto sobe a montanha onde assiste com Mefisto à
noite de Walpurgis. Uma dezena de figuras suspensas na beira de um guarda‐chuva
gira como um pião e representa a dança endiabrada das bruxas. Na cena final, Fausto
conhece novos embates amorosos. Ele acaricia o manequim de Margarida (o globo e a
60 Marionetteatern (programa aniversário)Theater Heute, Estocolmo, 1968, p. 30
61
METAMORFOSES
cabeça), tenta livrá‐la de seu espartilho e se atrapalha com os elementos do manequim.
Nasce assim uma nova imagem na qual Fausto enredado nos fios, se afasta de
Margarida cujo ventre se abre para deixar aparecer
o diabo. Mefisto conduz esta estranha equipagem puxada por Fausto. A metáfora
final está de acordo com a tradição do Fausto da Renascença, cujos aspectos misóginos
não se podem negar.
Os meios de expressão modernos e a linguagem teatral metafórica permitem
todas as visões subjetivas da obra. O valor emocional e filosófico de um espetáculo
dramático não dependem unicamente da linguagem teatral e material. Ele consiste em
exprimir as experiências humanas, sem separá‐las dos meios de expressão do homem
ou do boneco. A expressão da linguagem faz parte integrante do conteúdo da
mensagem, ou constitui a própria mensagem. Isso estabelece a preponderância do
teatro de bonecos de meios de expressão variados sobre o teatro de ator: sua mensagem
pode ser muito mais rica e com muito mais nuances. A Situação do Destino de Fausto,
representada por um único ator que manipula todos os acessórios, faz o subjetivismo da
mensagem chegar ao extremo. Ele pode transmitir experiência e amargura pessoais.
Um outro jovem diretor, Karel Makojn, segue na mesma direção. No final dos
anos 60, ele funda um teatro em Praga, o Vedene Divadlo. No final de sua formação, ele
se rebela contra o teatro de Estado, opõe‐se ao mimetismo do teatro de bonecos
homogêneo e reivindica um teatro de bonecos provido de contrastes e de justaposição
de diferentes elementos. Em 1968, ele reúne em torno de si um grupo de estudantes da
AMU, bonequeiros e atores, que sobreviveram à invasão da Tchecoslováquia pelas
tropas do pacto de Varsóvia. Em razão dessas difíceis condições políticas, seu teatro só
durará duas estações. Makojn recebeu o apoio dos críticos mais importantes, entre eles,
o de S. Machonin que expõe claramente os motivos do surgimento desse teatro: O que
caracterizava até o momento a evolução do teatro de bonecos tcheco, era a construção de diversas
teorias que se exprimiam geralmente sob forma de proibições. Foi contra essas normas negativas
que se levantou o Vedene Divadlo, e portanto, contra o fato de se confinar o boneco ao espetáculo
para crianças, contra idéias datadas do início do século, contra essa visão do teatro de bonecos
que faz dele uma instituição ética e não estética, e contra sua falta de interesse pelas correntes
artísticas modernas61.
O Vedene Divadlo monta peças que não figuram no repertório clássico do teatro
de bonecos, como O Mal‐Entendido de Albert Camus, O Jardim Misterioso de F. E. Burnet,
Hop, Signore! de Michel de Ghelderode. Na peça de Camus: duas estalajadeiras – a mãe
e a filha – matam seus clientes atraídas pelo lucro. Um belo dia elas matam sem saber
seu filho e irmão que volta da guerra. O diretor preocupa‐se com a interação entre
diferentes elementos: ator e boneco, entre o mundo natural do homem (presente no jogo
do ator vivo) e o de seus mecanismos, do automatismo e da determinação que se
Wlodizimierz Felenczak. Teatry bez sceny:Vedene Divadlo (Teatros sem cena: o Vedene Divadlo)Teatr
61
Lalek, 1970, no. 4, p. 39.
62
CONVENÇÕES
exprimem num boneco estático. Wlodzimierz Felenczak, diretor e amigo de Makojn
escreve: O espetáculo se desenvolve em três planos que se entrecruzam:
‐ o plano poético dos comentários filosóficos do autor, que vamos descobrir sobretudo no
nível oral do espetáculo.
‐ o plano da realidade nua, de um naturalismo de feira. Jean arrota bebendo cerveja.
Mulheres afiam uma faca, cortam a cabeça de um pombo e o depenam, elas observam “o homem”,
lavam suas mãos ensanguentadas.
‐ o plano mítico dos bonecos. Marionetes imensas de “oito quilos”, com cabeças grosseiras,
articulações aparentes e gestos elementares, sempre os mesmas, dirigidas por marionetistas à
vista. Não há como a marionete para alcançar uma tal qualidade expressiva num gesto, um olhar,
uma expressão tão perfeita da tristeza no movimento quase humano de um braço que se abaixa,
numa agitação desesperada, no contraste entre as marionetes e os objetos com os quais os homens
acabam de representar 62.
Os outros espetáculos de Makojn têm qualidades similares. Ele desenvolve a
função simbólica e mitológica da atuação do boneco, uma proposta que ultrapassa
inteiramente a consciência estética e cultural dos bonequeiros, particularmente na
Tchecoslováquia.
Uma teoria da metamorfose
Estabelecer uma primeira síntese teórica do que se passava no mundo do boneco
tornou‐se uma necessidade urgente. Às mudanças pregadas pelas teorias singulares de
Craig, Brecht depois e Artaud, faltavam, mesmo intuitivamente, a elaboração de uma
reflexão específica para a arte do boneco. Percebendo no fenômeno do cruzamento do
teatro de atores e do teatro de bonecos, um “terceiro gênero”, tendendo para um teatro
“teatral”, eu avançava as seguintes idéias: A desmistificação da máquina teatral, os
procedimentos revelados ao espectador, os inúmeros meios de expressão, de todas as origens, tudo
isso tende há alguns anos para um “terceiro gênero” e mostra que o teatro de bonecos clássico
aparentemente teve sua época (...) O plano de atuação: o do ator vivo e o do boneco, tais são seus
principais atributos. A noção de super‐marionete, no teatro de bonecos, há muito tempo está
ultrapassada, está, de algum modo desvalorizada63.
Depois disso eu me interrogava, para saber em que medida esse terceiro gênero
podia se inscrever na continuidade do teatro de bonecos. A desmistificação poderia
estar na continuidade, pois ao quebrar a sacrossanta via mágica do boneco, ela estaria
buscando quebrar a da materialidade e corporeidade do ator vivo? Numa palavra, a
reforma do teatro de bonecos punha em primeiro plano o jogo do homem, portanto o
do ator. Em 1966, eu pensava que a despeito do impulso impetuoso do teatro de
bonecos aos diversos meios de expressão, o teatro de bonecos tradicional, domínio
Wlodizimierz Felenczak. Teatry bez sceny:Vedene Divadlo (Teatros sem cena: o Vedene Divadlo)Teatr
62
Lalek, 1970, no. 4, p. 40
Henryk Jurkovski. Perspektywy rozwoju teatru lalek (As perspectivas de evolução do teatro de bonecos). Teatr
63
Lalek, 1966, no. 37‐38, p. 3.
63
METAMORFOSES
insubstituível do milagre da animação da matéria, ainda tinha chances de sobreviver e
de conservar sua glória. Não deduzam disso que eu não apreciava os valores desse
terceiro gênero enquanto gênero dramático dando origem a figuras da linguagem
poética. Em 1971, eu concluía, com muito otimismo, uma conferência que dava em
Bochum: Quando observo a evolução do teatro de bonecos clássico e a do teatro de bonecos
moderno, sempre me espanto de que ainda se possa descobrir tantas formas novas, nesses dois
gêneros. Admiro a inesgotável riqueza desses dois gêneros artísticos. São belos e variados como só
a vida pode ser. Tenho às vezes o sentimento de que graças à esses gêneros artísticos nós
entramos no campo do infinito64.
Esse otimismo foi um sinal, para a maioria dos teóricos, de que esse teatro de
bonecos de meios de expressão variados tornava‐se norma. Mas o futuro do boneco, em
sua forma primeira (figurativa e animada) permanecia sempre atual. Lenora Chpet, no
simpósio de Lodz em 1967, exprime a inquietação geral quanto ao futuro do teatro de
bonecos diante da forte aceleração das inovações que corriam o risco de pôr em causa
seus fundamentos. Nós transformamos, diz ela, o intérprete em objeto, em acessório, em
elemento de cenário, enquanto conseguimos fazer do cenário um intérprete. Para terminar,
fragmentamos também o ator, tiramos‐lhe seus principais meios de expressão, seu corpo, seu
gesto, sua aparência, seus olhos e sua mímica, nós o privamos mesmo de sua voz confiando essa
tarefa a aparelhos sonoros e ao gravador. Levamos o efeito de distanciamento do ator até limites
que o próprio Brecht jamais teria imaginado. Poderíamos admitir que é exatamente a isso que nós
chamamos teatro contemporâneo. Tudo já foi feito e se poderia acreditar que não há mais nada a
analisar nem a destrinchar. O que nos resta, pois, a fazer? Seria preciso remontar todas as peças
como um jogo que uma criança desmontou. (...) Nós já conhecemos todo o nosso alfabeto e chegou
para nós o momento de falar algo mais, de dizer coisas mais importantes. (...) Deveríamos trazer
idéias. O teatro de bonecos, o teatro de acessórios, o teatro de figuras ou o teatro de imagens
visuais e materiais – aliás, chamem‐no como quiserem – deveria ser um meio para exprimi‐las65.
Lembrar que os meios de expressão devem ser um meio para exprimir idéias
vinha bem a propósito. Os bonequeiros, fascinados durante dezenas de anos pela
especificidade do teatro de bonecos mesmo quando eles o tinham ultrapassado, indo às
vezes até a fazê‐lo voar em pedaços, mantinham sua atenção concentrada nos meios de
expressão, Seria injusto, face ao conjunto da profissão dizer que todos os artistas
compartilhavam desse interesse. No Ocidente, os bonequeiros tentaram encontrar seu
lugar nesse novo contexto sem abandonar seus hábitos de jogo individual, ou em
família. Eles não podiam utilizar tantos meios nem atores quanto os teatros dos países
orientais, mas eles podiam sempre mudar a estética de seu espetáculo e resignar‐se a
imitar os seres vivos em favor de um jogo poético; as criações de Joly ou de Lafaye são
um exemplo disso.
Henryk Jurkovski. Die Verbindug von Menschen. Puppen und Masken auf der Bühne als philosophische
64
Metaphor (Os elos entre os homens, os bonecos e as máscaras sobre a cena enquanto metáfora filosófica). IN: A arte
do Boneco da nossa época. Estudos da teoria do boneco. UNIMA. Varsóvia, 1972, p. 31.
65 Lenora Chpet. Wypowiedz... (Declaração...) Teatr Lalek, 1967, no. 41‐42, p.. 57
64
CONVENÇÕES
A matéria entra em cena
Outros, na França, como Claude e Colette Monestier, foram os primeiros a
rejeitar a estética do teatro clássico criando em torno de 1970 o Teatro no Fio.
Abandonando a empanada, eles substituem primeiro a beira da empanada e a
empanada por um fio estendido horizontalmente a dois metros acima do chão. Nesse
espaço, animando à vista bonecos e figuras criadas com todo tipo de materiais, eles
tornavam‐se os protagonistas de um teatro material. A intriga de cada peça enquanto
tal e o processo do nascimento da realidade teatral tornaram‐se, desde então, o tema
dos espetáculos dos Monestier e de muitos bonequeiros da época. Após ter aplicado
esse princípio, eles ficaram fascinados pelas qualidades do papel, material de uma
elegância sem par, que se dobrava a sua imaginação tomando as formas traçadas pelas
tesouras e participando da narrativa poética das aventuras dos heróis. Assistiu‐se ao
triunfo do papel que permanecerá seu material favorito. Garganteatro, para adultos, e O
Pequeno Gargântua, para crianças a partir dos temas de Rabelais, narram as aventuras de
Gargântua com enormes rolos de papelão ondulado. O papelão lhes permite criar
personagens, cidades, o mundo inteiro. Eles ali descobrem, em harmonia com o tema da
peça, uma expressão erótica particular. Um rolo de papelão ondulado para embalagem
delimita o espaço de cena, escrevia Annie Gilles, sendo ainda utilizado como um ou vários
bonecos. Basta então desenrolar o papelão e depois enrolar as duas extremidades para formar
duas colunas, basta que uma das colunas receba na parte superior uma dupla almofada rosa para
“virar” Gargamelle e que a outra seja completada com um balãozinho de pele de intestino animal
judiciosamente colocado para que ela represente Grangousier. É assim que os bonequeiros podem
começar a revelar o caráter espetacular dos temas sexuais da obra, que uma elocução não
conseguiria sublinhar com tanta eficácia, e que seria inaceitável com outros atores que não fossem
o boneco reduzido a alguns signos engraçados e pertinentes66.
Não é a primeira vez que os temas eróticos aparecem aqui, com distância, ironia
e poesia, mas essa capacidade está ligada aos limites do realismo do ator. O boneco, o
objeto e a matéria trazem um elemento de distanciamento imediato quando
ultrapassam seus limites e, em particular, quando os bonequeiros representam à vista.
Os Monestier serão considerados, na França, como os que quebraram o tabu da
empanada e mostraram que a matéria de que é confeccionado o boneco, possui, por si
só, uma tremenda força expressiva.
O distanciamento
Inúmeros espetáculos à vista lhes sucederão, até o momento em que reinará uma
nova geração de artistas que só conhecerá esse princípio de jogo. Esse tipo de
espetáculo revela o manipulador, claro, mas não unicamente. Porque se o animador
pode ser assimilado a um autor, àquele que dá a vida e a palavra, ele pode ser
assimilado a um contador, a um narrador. O jogo à vista anuncia a chegada do teatro
Annie Gilles. Pequeno organum para o boneco. Centro Departamental da Documentação Pedagógica das
66
Ardennes, Charleville‐Mézières, 1976.
65
METAMORFOSES
narrativo. Esse teatro remonta a um passado muito longínquo e não é preciso ligá‐lo
apenas ao teatro épico de Brecht. Na Ásia como na Europa, existem inúmeros
contadores ambulantes que ilustram suas histórias com bonecos, desenhos (como os
Mooritaten na Alemanha), ou figuras esculpidas (os retábulos na França e na Espanha,
os raree show na Inglaterra). Eles associam palavras e imagens, que se completam umas
as outras, e geralmente não recorrem ao distanciamento que constitui a base épica do
teatro de Brecht. É mesmo útil precisar o sentido que se dá, às vezes abusivamente, a
sua noção de efeito de distanciamento (Verfremdungseffekt). De acordo com Joachim
Fiebach, um teórico do teatro: esse efeito de distanciamento aparecendo nas obras de Craig,
Tairov e de Meyerhold, se exprime pelo contraste entre o ator e seu papel, pelo lugar da máscara,
na acentuação de certos gestos, na introdução de material de atualidade, na separação do texto e
do gesto, nas citações de poemas e de personagens, no fato de que o ator se dirige diretamente ao
público67.
É preciso, pois, tomar esse termo num sentido mais geral, como uma ruptura da
ilusão cênica, como uma advertência ao fato de que os acontecimentos não são reais e
que a ação não é uma ficção. Essa acepção está bastante afastada da de Brecht. A
ruptura com a ilusão cênica, ele a faz para provocar um olhar diferente sobre a
realidade. Esse teatro deve sugerir uma interpretação ideológica e a ilusão é a condição
sine qua non de todo distanciamento que não existe sem ilusão. Um teatro que rejeita
qualquer ilusão pode reivindicar o título de teatro de anti‐ilusão, mas ele perde então a
possibilidade de recorrer ao distanciamento. Posto em ação, o distanciamento só pode
ser “recolocado à distância” por um retorno da ilusão. Porque para que haja
distanciamento, é preciso um contraste, uma oposição. Por isso sustento que o teatro de
bonecos narrativo que associa unicamente narração e imagens sem buscar o contraste,
não tem nenhuma relação com as concepções de Brecht.
Dorst destacava a vida artificial do boneco e a identificava com o conceito de
Verfremdungseffekt, mas ele se engana ao procurar esse “efeito de distanciamento” no
boneco. O distanciamento brechtiano é um efeito temporário e a manipulação à vista
uma situação permanente privada desse momento de surpresa tão apreciado por Brecht.
O “efeito de distanciamento” no teatro de bonecos tem um outro aspecto, ligado ao
paradoxo evocado pelo bonequeiro Peter Waschinsky: Voltemos ao “distanciamento” no
teatro de bonecos. Ele lhe é imanente, em princípio sempre presente. Os bonecos não passam de
materiais, retomemos o exemplo da peça de Tchekov (Waschinsky evoca aqui a encenação de
A Bruxa) Os personagens da peça são muito realistas. Os movimentos e a fala devem, pois, ser
muito “naturais”, no sentido humano do termo. Que significa “natural” em se tratando de
bonecos? Simplesmente que eles se comportam como matéria inerte, isto é, que permanecem
totalmente inanimados, ou que no máximo eles executem simples movimentos pendulares. Ao
obrigar do exterior essa matéria a se comportar de uma maneira similar à dos humanos, ela se
Joachim Fiebach. Von Craig bis Brecht. Studien zu künstlertheorien in der ersten Hälfte des 20,. Jahrhunderts.
67
(De Craig a Brecht. Contribuição às teorias na primeira metade do século XX). Henschelverlag, Berlim, 1975, p.
299.
66
CONVENÇÕES
torna estranha a ela mesma, é a isto que chamamos distanciamento. O boneco mais naturalista é,
visto sob esse ângulo, o que se distancia mais 68.
Trata‐se aí apenas de um aspecto do jogo entre ilusão e realidade. Tem‐se a
impressão de que a maioria dos artistas apreciam mais a realidade da criação que a
ilusão da realidade. Essa querela sobre a maneira de representar a realidade no teatro
tem um caráter ideológico. Ao lutar contra uma realidade cênica de ficção, os
modernistas protestam contra essa visão burguesa que designa à arte a tarefa de
perpetuar a visão do mundo estabelecido. Admitir que a arte seja concebida como
sendo uma obra autônoma, artificial, abala essa visão e dá ao artista poderes
extraordinários para criar sua própria imagem da realidade, imagem autêntica, como
qualquer expressão subjetiva. A discussão diz respeito, de fato, à concepção de mundo
e à autenticidade da arte. É difícil dizer em que medida os bonequeiros dos anos 60
vêem sua participação na metamorfose formal do teatro de bonecos como um
engajamento ideológico. Tem‐se na verdade a impressão, quando se observa o meio
artístico da época, de que a inovação é percebida como a expressão de uma
originalidade criadora, ou no melhor dos casos, como uma tentativa de adaptar os
meios de expressão aos novos temas que fornece a realidade. Isso se compreende dado
que as discussões filosóficas sobre as concepções da realidade do início do século
tomam novas formas e se manifestam, em geral, em outros campos da arte. Ao
recuperar seu atraso, o teatro de bonecos se beneficia assim nos anos 50 e 60, do triunfo
de certas idéias modernistas, mais formais que ideológicas.
Peter Waschinsky. Teatro de bonecos entre ilusionismo e distanciamento. Théâtre Public. “O Teatro de
68
Bonecos”. Revista trimestral publicada pelo teatro de Genevilliers. No. 34‐35, agosto 1980, p.58.
67
IV - FORMAS E ESTILOS
ANIMAÇÃO E SINERGIA
A animação à vista, a diversidade dos meios de expressão, a nova poética do
teatro de bonecos estabelecida em prejuízo das convenções tradicionais, atrai cada vez
mais artistas, de modo que os espetáculos de manipulação à vista vão dominar. Estas
novas formas estão tão presentes que modificam a concepção do teatro de bonecos e sua
definição. A análise semiológica do teatro permite redefinir os elementos constitutivos
de um personagem cênico, apresentação icônica do personagem, responsável de sua
energia motriz e de sua expressão vocal.
Em lugar de se concentrar no boneco enquanto personagem virtual, trata‐se
agora de privilegiar as relações que existem entre os signos dos personagens e as forças
que os animam. Eu afirmava em 1978: as relações vibrantes entre o boneco e as fontes
físicas de sua energia motora conduzem a mudanças importantes na percepção do
boneco. Num dado momento, o equilíbrio da dependência entre o boneco e suas forças
motrizes mostrou‐se mais durável que os elementos deste equilíbrio. O equilíbrio se
mantém mesmo se os elementos mudam. O boneco, principal elemento distintivo do
teatro de bonecos, também sofreu mudanças. Mais uma prova de que a natureza do
teatro de bonecos se situa no nível das relações. 69
Do bom uso da tradição
A passagem de uma poética a outra se fez espontaneamente para os bonequeiros
da nova geração. Os artistas presos aos valores tradicionais solicitam um apoio
intelectual e afetivo para evoluir. Assim, Recoing ilustra a perfeição este período de
transição. Ele indica que as fontes de um teatro moderno, saído das idéias da vanguarda
do entre guerras, não concernem nem o teatro de bonecos para crianças nem o teatro
popular. Ele considerava que certos elementos da tradição, como o espaço cênico
limitado do boneco tradicional e a perfeição técnica da animação de seu precioso
boneco, podiam ser o ponto de partida de um novo teatro. Essa convicção o anima até
1970, data da criação de sua nova companhia, o Teatro de Mãos Nuas e de seu primeiro
espetáculo: La Ballade de Mister Punch (O Passeio do Sr. Punch), de Paul Éloi (Éloi Recoing,
1976) dirigido por Antoine Vitez.
Terá sido sob a influência de Recoing que Vitez assumiu a opinião de que o
boneco representa a violência, que ele não tem limites, que ele mata ou morre? Aos
olhos de Vitez, Punch, que é o mal absoluto mas um mal feliz, é um excelente exemplo.
Como o mundo que o cerca é mau, ele toma continuamente sua revanche, vinga‐se em
seu próprio nome e no de todos nós. Vitez experimenta as qualidades de objeto do
69 Henryk Jurkowski. Jezyk wspólczesnego teatru lalek (A linguagem do teatro de bonecos
contemporâneo). Teksty, no. 6, 1978, p. 63.
68
FORMAS E ESTILOS
boneco moderno. Este conflito entre o universo do boneco tradicional e a identificação
do boneco com um objeto saído da sociedade de consumo é revelador. Vitez
experimenta alguma dificuldade em escolher, pressentindo que o boneco tradicional,
ligado ao mito, ainda tem muito futuro pela frente. Ele se interroga sobre as chances de
um teatro mítico que respeite os princípios da arte tradicional: a empanada e seus
bonequeiros invisíveis.70 Seu fascínio pela tradição o reaproxima de novo de Recoing
para O Passeio do Sr. Punch, de Paul Éloi, onde o autor imagina confrontar Punch a uma
nova época. Trata‐se da história de um bonequeiro (Recoing, talvez?), que percebe o
mundo através da personalidade de seu herói. Ele deixa a empanada e se instala num
apartamento onde ocupa simbolicamente o espaço e se desloca, de um móvel a outro,
com seu boneco. Punch não perde nada de sua brutalidade; ele é cruel, absurdo e
anarquista, mas a absurdez de nossa época faz dele um super‐homem vingativo. Esse
espetáculo é uma visão contemporânea da comédia “puncheana”!
Qualquer criador que experimente uma inclinação pela reflexão estética deve
estudar a natureza do teatro sob a forma de um espetáculo teatral. Em 1984, Recoing se
lança no debate sobre a natureza ontológica do teatro de bonecos com Manipulsations
(Manipulsações) de Paul Éloi. Um espetáculo que revela ao público a técnica do teatro de
bonecos e seu aspecto mítico expressos nos laços recíprocos entre animadores e
animados. As lembranças de um bonequeiro profissional são o ponto de partida da
peça. Os bonecos sentem, quase fisicamente, a presença de seu mestre (ainda que este
não passe de uma sombra). Palavra mágicas como “polichinelo” ou “rei zarolho” dão
vida a personagens e imagens. Mais do que num mundo imaginário, é num mundo
estereotipado que estamos, onde a gama dos meios utilizados é relativizada e
desmitificada por aforismos e trocadilhos irônicos. Utilizados, os bonecos de trabalho,
sem traços distintivos, quase idênticos, representam metaforicamente uma humanidade
uniformizada. A revelação dos segredos e da técnica do teatro de bonecos é aqui uma
nova metáfora das dependências que existem entre os humanos. (Pode‐se então
designar este teatro como auto‐temático?). Recoing sugere mesmo, que se seu
espetáculo conta uma história de aparência filosófica, ele põe o acento na problemática
do teatro, o que não o impede de continuar fiel a sua concepção: o teatro é uma empresa
comum onde as tarefas são distribuídas entre diferentes profissões. Esta atitude, legada
por Baty, é rara entre os bonequeiros do Ocidente, enquanto se mantém uma regra no
Oriente.
Um mestre da metáfora: Josef Krofta
Os jovens artistas dos anos 70 não sofreram este momento de transição entre
clássico e moderno pois a mudança já tinha se efetivado. Os artistas do teatro Drak, de
Hradec Kralové, na Tchecoslováquia, dela usufruíram. Fundado e dirigido em 1958 por
Jan Dvorak, o teatro Drak escapa do realismo socialista e desenvolve um repertório
A alma e “a parte pelo todo”, entrevista com Antoine Vitez. Théatre Public. “O teatro de bonecos”. Revista
70
bimestral, publicada pelo teatro de Gennevilliers, no. 34‐35, agosto‐setembro, 1980, p. 72.
69
METAMORFOSES
romântico com a marionete tcheca. Em 1971, Josef Krofta inicia‐se como diretor no
Teatro Drak. Ele começa por estudar as capacidades expressivas do boneco, depois
experimenta o teatro de objetos antes de se ligar à simbólica dos meios de expressão
contemporâneos. Todas as suas obras surpreendem, ultrapassam‐se umas às outras e
rivalizam em maturidade por suas inovações formais, pela capacidade de invenção de
Krofta e seu engajamento humano. Ele se torna assim um mestre inconteste da metáfora.
A obra mais marcante de seu primeiro período foi Enspigl (1974) com uma
notável cenografia de Frantisek Vitek. Ela eleva a poética do teatro de bonecos clássico a
um nível muito alto e integra a ele a animação à vista – utilizada sempre com fim
artístico preciso, mesmo se esse tipo de manipulação reenvia à criação in statu nascendi.
Ele põe o acento sobre o jogo – ingênuo e extravagante – dos atores ambulantes. O
espectador assiste à história de Till, o Esperto, e admira a habilidade dos atores
manipulando os bonecos e ocupando‐se ao mesmo tempo dos cenários, dos
instrumentos de música primitivos e da iluminação. O teatro tem a forma de um
pequeno retábulo (à imagem dos retábulos religiosos) com painéis esculpidos sobre
temas laicos. Os porta‐painéis do “retábulo” oferecem inúmeras possibilidades
espaciais, à frente e no interior da cena. Mudanças simples permitem fazer surgir os
muros de uma cidade, uma praça, uma hospedaria ou o interior de uma igreja com
raios de luz filtrando‐se através dos vitrais. Os bonecos, belos e esculpidos em madeira,
são manipulados por varas e fios. Dois atores, acima desse teatro de madeira,
interpretam o texto e manipulam todos os personagens. O cômico dos acontecimentos
rivaliza com o da “cozinha” teatral. Os atores, Matej Kopechy e Vera Ricarova,
representam ao mesmo tempo seu papel de atores, o de atores do teatro ambulante e
entram psicologicamente na pele de cada personagem. Todos os meios postos em obra
contribuem para fazer passar a mensagem da peça, resumida pela apoteose do herói
popular, Till, o Esperto; o triunfo do amor sobre as intrigas burguesas.
Após um tal sucesso, o teatro prossegue suas pesquisas sobre o espaço cênico.
Em Cinderela (Popelka, 1975), a ação se desenvolve num enorme bufê compreendendo
vários “locais” que formam o cenário. A Bela Adormecida (Sipkova Ruzenka, 1976),
baseada em música de Tchaikóvski, passa‐se nas coxias de um grande teatro. Durante
um verdadeiro espetáculo, os dançarinos deixam a cena e os bonecos fazem incursões
para representar sua própria versão dos acontecimentos com uma energia viva e muito
humor. Com essa fórmula do teatro no teatro, o Drak atinge a perfeição absoluta.
Jan Dvorak, diretor artístico do teatro, inquieta‐se por ver o sistema político
limitar o teatro a temas clássicos ou populares. Os grandes temas humanistas estão
interditos. O que não foi realizável na Tchekoslováquia em Hradec Kralove, fez‐se na
Polônia onde a margem de liberdade era maior. Krofta chegou ao teatro de bonecos de
Poznan, em 1976, para montar Dom Quixote. Ele próprio faz a adaptação e conserva
todos os motivos populares do romance, inclusive a cena do “Retábulo de Mestre Pedro”.
Os atores estão com roupas de época e às vezes se servem de bonecos como signos de
personagens ou como duplos. O espectador interpreta este universo de signos
desintegrados segundo sua vontade. A cena mais representativa é a da flagelação de
Dom Quixote: o Valete dá bastonadas num banco vazio enquanto um ator, Dom
70
FORMAS E ESTILOS
Quixote, se torce de dor. Um outro quebra os membros do boneco de Dom Quixote e o
último lança gritos de dor. A imagem cênica é assim completamente atomizada, o que
não deixa de lembrar as tentativas feitas pelos artistas plásticos e reforça a idéia
condutora do espetáculo, a de julgar a loucura do cavaleiro da Triste Figura, revelada
na cena da destruição da empanada de Mestre Pedro. Mas atenção! Dom Quixote
enquanto espectador é acorrentado, de medo que ele não viole uma vez mais a lei. Preso
a uma cama de ferro, a guisa de prisão, na duração de O Rapto da Bela Melisande, o Dom
Quixote de Cervantes voa ao socorro dos amantes ameaçados pelos Mouros. Nosso
herói quer fazer o mesmo, ele arranca seus grilhões para sair em socorro dos amantes
em perigo, prova de sua loucura crescente, mas também de sua natureza humana, em
sua versão romântica.
Cada espetáculo de Krofta traz soluções formais e cênicas únicas. Enfim, Unicum
(1978) é uma obra maior, próxima dos happenings revolucionários russos, e inscrita no
universo do circo. O público assiste a cenas reais da vida do circo “um pequeno teatro
do mundo” com seus ensaios, seus espetáculos e seus conflitos com a direção. As
pessoas do circo utilizam bonecos e manequins que lhes servem para os desfiles cênicos.
Apesar de sua perfeição cômica, eles têm uma importância secundária. Nadejda, uma
acrobata joga um papel enigmático. Ela tem a aparência de um boneco, mal se mexe, e
jamais é animada. Entretanto, todas as pessoas do circo têm os olhos fixos nela, fazem
referência a ela, todas as suas esperanças se prendem a ela. Ela é seu único sustentáculo
moral e vai representar a promessa da vitória quando eles se revoltarem. Em suma,
Nadejda não é um boneco, mas um ídolo. Ela encerra um duplo significado. Oscila
antes de tudo do mundo revolucionário (aqui ligado à Revolução de Outubro, pois a
peça foi apresentada por ocasião de seu aniversário) para o mundo metafísico; a
Esperança (Nadejda) não existe como um fenômeno racional, mas como algo misterioso.
Krofta redefine as leis fundamentais da animação. O boneco só pode jogar seu
papel se o público aceita a idéia de que ele seja vivo. Para analisar suas funções, ele
retorna à Pré‐História onde o animismo domina. Krofta, por intuição, retorna ao mundo
dos ídolos, dos fetiches e dos talismãs. O boneco nasceu nesse mundo. Historicamente,
perdendo seu valor sagrado, ele desenvolve suas funções de feira popular, depois entra
no teatro, se paramenta do estatuto de sujeito teatral, e aparentemente o abandona hoje,
para voltar a ser objeto. O animismo do objeto, um boneco objetivado por dezenas de
experiências teatrais, é assim posto em cena. Krofta atribui‐lhe um papel de ídolo e o faz
viver um novo ciclo cultural. Essa análise ontológica pode nos fazer acreditar que esse
espetáculo permite a Krofta afirmar que a natureza do teatro de bonecos está a priori
definida. Bastaria, eventualmente, perenizá‐lo através de novas convenções ou
abandoná‐lo em proveito de outros meios, como o objeto, por exemplo. O Drak
permanece fiel ao boneco figurativo e seu teatro é essencialmente constituído de
bonecos e de atores escolhidos de acordo com o repertório, para tirar proveito de um
ponto de vista poético, metafórico, marcado por fortes associações culturais. Nisso, ele é
definitivamente moderno.
Em seu percurso, O Canto da Vida (Pisen Zivota, 1985) ocupa um lugar particular.
Krofta não esconde que essa adaptação da obra de Evguenii Schwartz, intitulada O
71
METAMORFOSES
Dragão (Ssmok) é um compromisso entre sua concepção pessoal e as exigências da
censura. Esta contestava a idéia de Schwartz segundo a qual uma sociedade que se
liberou de um poder totalitário se encontra incapaz de usufruir de sua liberdade e
aspira inconscientemente a estruturas totalitárias. Krofta, obrigado a transpor essa idéia
para uma evocação da ocupação fascista e dos males engendrados pela guerra, defende
seu espetáculo por uma força dramática e uma teatralidade exemplares. Assim como as
metáforas de seus espetáculos precedentes são um elemento acessório da interpretação
do tema, em O Dragão elas se tornam uma componente essencial da expressão
dramática e um verdadeiro método de trabalho, como ele explica a Hanna Kodicek:
Podia‐se acreditar, por exemplo, que O Dragão de Evguenii Schwartz, que é um conto alegórico
sobre a usurpação do poder numa pequena cidade, é uma boa ocasião para fazer representar o
papel dos habitantes da cidade por atores e utilizar um boneco para o Dragão. Na verdade, era a
solução recomendada por Schwartz. Entretanto, decidi fazer o contrário. Dei a um ator o papel
do dragão que manipulava no sentido literal os habitantes da cidade (marionetes) puxando seus
fios. A meus olhos, era o melhor meio de representar sua ausência total de liberdade.71
A manipulação, nesse espetáculo, é ainda mais complicada porque o defensor do
povo – Lancelot – também é um ator. O destino dos homens – marionetes – se define
acima de suas cabeças. Outras metáforas vêm completar essa metáfora diretriz. O
diálogo entre o Dragão e Lancelot evoca uma partida de bilhar. O uso de projetores
manobrados levados pelos assistentes do Dragão, atores vestidos de preto, lembra o
universo dos campos de concentração. Um projetor em cima de um pilar, explica Krofta,
não passa de uma fonte de iluminação teatral, mas nas mãos de um ator, um herói, por exemplo,
ele ganha de imediato um sentido metafórico.
Se permanecemos numa perspectiva ontológica e antropológica do boneco,
poderemos ficar decepcionados! Esta parece ter desaparecido das reflexões de Krofta. O
boneco é, em O Canto da Vida, um instrumento, ou melhor, um componente da
linguagem teatral para evocar figuras retóricas, no sentido poético. As conotações
culturais permanecem ricas e dramaticamente significativas. Elas nos reportam a
acontecimentos históricos mais do que antropológicos. Seria esta a característica de um
segundo ciclo do boneco? Na seqüência, Krofta se interroga essencialmente sobre a
problemática da linguagem e sua utilização. Em A Noiva Vendida (Prodana Nevesta),
de Bedrich Smetana, adaptada por Jiri Vysohlid (1986), ele desenvolve, no mais alto
grau, os princípios do teatro épico ao mostrar a eficácia do boneco ao longo da ação
dramática. Os atores formam um coro de contadores reunidos em torno de uma coluna,
ou melhor, de um carrossel de cavalos de madeira original (sem teto) cujos braços
servem para transportar os bonecos para a frente da cena, a uma distância bastante
grande dos atores que, entretanto, lhes emprestam voz e mímicas. Assim autônomos, os
bonecos tornam‐se puros signos icônicos de personagens. Os atores lhes restituem uma
parte da ilusão quando eles voltam a suas mãos. É um eco do animismo à distância
evocado em Enfim, Unicum.
A alma e “a parte pelo todo”, entrevista com Antoine Vitez. Théâtre Public.”O tearto de bonecos”. Revista
71
bimestral publicada pelo teatro de Gennevilliers, no. 34‐35, agosto‐setembro 1980, p. 108.
72
FORMAS E ESTILOS
Qualquer que seja a importância do papel representado pelos bonecos enquanto
signos icônicos e plásticos, é evidente que os atores ocupam uma posição chave no
espetáculo. Eles são os verdadeiros heróis da ação, intérpretes talentosos que cantam,
animam os bonecos, fazem acrobacias, fingidas ou reais, e são capazes de representar
não importa que personagem. É preciso constatar uma vez mais que o ator (o
bonequeiro) permanece o criador do personagem, ou de um grupo de personagens. No
entanto produziu‐se uma variação importante nesse espetáculo. No passado, o ator (o
bonequeiro) cedia ao boneco uma boa parte de sua aura. Num espetáculo como A Noiva
Vendida, o boneco está sempre presente, mas sua aura é esmagada pela perfeição da
companhia. A magnanimidade humana parece condicionar a existência e a expansão do
teatro de bonecos. Fazer com que isso seja compreendido pelos bonequeiros e pelo
público, também tem um valor teórico. Krofta provavelmente se deu conta disso porque
nos grandes espetáculos que seguiram, O Moinho de Kalevala (1987), Pinóquio (1992), ou
na nova versão do Dom Quixote (1994), ele devolveu aos bonecos suas funções
metafóricas. Esses espetáculos tratam de teses não conformistas (Pinóquio não quer
entrar no mundo dos adultos, o herói de Dom Quixote, um bonequeiro ambulante,
identifica sua loucura com sua liberdade), mas não trazem novos elementos para a
compreensão do boneco.
Krofta faz igualmente algumas incursões na cultura de outros países como na
Eslováquia (Banska Bystrzica) e na Polônia (Poznan) onde realizou um grande
espetáculo sobre as aventuras de um herói popular, o nobre bandoleiro, Janosik (1974).
Na Dinamarca (Teatro Dramático de Odinsee) ele põe em cena A Princesa Dagmar (1988)
onde os acontecimentos históricos e a justaposição dos meios de expressão dominam.
Mesmo que as obras do teatro Drak não exprimam todas as pesquisas possíveis e as
maneiras de empregar esses meios de expressão figurativos, na impossibilidade de um
recuo temporal não se poderia então fazer uma classificação do uso do boneco
metafórico dos anos 90? Ou trata‐se de um período de calma conceitual, após o de
buscas tão múltiplas quanto profundas?
As técnicas vindas do Oriente
Para quem quer compreender o impulso da manipulação à vista e o uso de uma
imagem do personagem atomizado, uma passeio pelo teatro japonês, sobretudo o
ningyo joruri cuja forma conhecida é o bunraku, se impõe. Este teatro muito célebre no
Japão, com três séculos de tradição, desenvolve uma forma de teatro épico com um
narrador presente na cena e bonecos manipulados por três bonequeiros visíveis.
Descoberto tardiamente na Europa em meados do século XX, esse teatro inspira um
modelo de personagem composto de um boneco enquanto signo icônico, de três
manipuladores como fontes de energia motriz e de um narrador, como fonte de
expressão vocal e textual. Vinte anos foram necessários aos bonequeiros para obter um
modelo inspirado no bunraku. Eles adotaram essencialmente seu aspecto técnico ou às
vezes sua estrutura como quadro do espetáculo e a manipulação à vista alcança o
sucesso que se conhece.
73
METAMORFOSES
72 Annie Gilles, O Jogo do boneco. Publicações da universidade de Nancy II, Nancy 1981, po. 99‐104.
Michael Meschke. Una estetica para el teatro de títeres (Uma estética para o teatro de bonecos). Bilbao, 1988, p.
73
84.
74
FORMAS E ESTILOS
possibilidades de provocar o espanto e criar todo o tipo de relações no jogo do bonequeiro e do
boneco. Por exemplo, quando o ator levanta o boneco tão alto que o corpo deste se destaca das
pernas do animador, e o espectador se dá conta de que são pernas humanas, e que o boneco pode
representar também sem elas.74
Por meio desses poucos espetáculos, compreende‐se melhor que a manipulação à
vista se tenha desenvolvido a partir de empréstimos às culturas tradicionais, a do Japão
em particular, como a de outros países, a China ou a Indonésia. É significativo que os
bonequeiros, no Ocidente como no Oriente, tenham se apropriado apenas das
capacidades expressivas desses modelos para enriquecer sua técnica e sua estética, sem
integrar seus valores culturais.
Da literatura à metáfora plástica
Entre os novos meios experimentados na manipulação à vista, o teatro de
bonecos dirigido por Valery Volkhovski, primeiro em Tcheliabinsk, depois em Voronej,
reflete uma outra tendência: a da metáfora plástica que se torna uma regra na União
Soviética, nos anos 80. Este teatro se torna célebre com as Almas Mortas, de Nicolas
Gogol (direção: V. Volkhovski, cenografia: E. Lutsenko, 1985). É um espetáculo épico
onde a função do narrador é entregue a um ator que interpreta Gogol. Ele comenta o
que vê numa voz suave e pouco expressiva. Há nisso uma intenção oculta: sua voz
reflete o seu terror ao descobrir a verdade sobre um mundo cujo absurdo o ultrapassa.
Uma projeção gigantesca deste mundo se encontra no centro da cena. Essa
simultaneidade se desenvolve na vertical. Por cima da plataforma, uma porta com dois
batentes bastante grandes, é dominada por uma imagem reduzida de um cemitério e de
uma igreja ortodoxa. Abaixo da plataforma, cenas da vida no campo mostram as
condições primitivas nas quais o homem vive semelhante a animais. Os bonecos têm
cerca de sessenta centímetros de altura, rostos característicos, às vezes caricaturais,
movimentos expressivos, quase humanos. Eles são admiravelmente servidos pela
interpretação do texto e parecem sentir profundamente a situação dramática. Os russos
associam essa estética a uma influência do sistema de Stanislavski. Essa análise me
parece simplista demais. Essa maneira específica de interpretar o texto, essas atitudes
humanas cheias de tensão, essa variedade de relações, exprimem a tradição literária e a
visão da realidade que ela encerra. De Gogol a Ostrovski e a Zochtchenko, passando
por Sukhovo‐Kobylin, os heróis do espetáculo de Volkhovski, ainda que se trate de
bonecos, são seres determinados pelas circunstâncias e suas condições de vida. Há em
sua imagem menos de técnica de jogo, menos de “escola” e mais de verdade sobre o
homem, dessa verdade que a literatura russa perpetuou.
O realismo dos personagens é ponderado pela animação à vista assegurada por
atores disfarçados de arlequins mascarados ou de servidores de grandes proprietários
rurais. Simples “gente de teatro” com as quais Vachtangov tinha outrora sonhado e de
quem Okhlopkov retoma a idéia anos mais tarde. A ação do espetáculo se desenvolve
Livija Kroflin, Zagrebacka Zemlja Lutkanija (O país zagrebiano do boneco). Medunarodni centra za usluge u
74
kulturi, Zagreb, 1992, p. 89.
75
METAMORFOSES
em todo o espaço cênico mas, sobretudo, sobre a plataforma. A porta fechada indica
que o personagem de Tchitchikov está de viagem. Ela tem a forma de uma sinédoque
coletiva; num quadro, cabeças de cavalo. Num outro, uma roda que gira. Num terceiro,
o personagem de um cocheiro. Ao nível inferior se encontram homens rebaixados, mas
também hipócritas, que restam na miséria enquanto eles são importantes em razão das
“almas” que possuem. Lá, o mundo dos homens convive com o mundo dos animais em
situações de um humor provocante. Há também um outro plano de jogo cênico, o
espaço exterior ao cenário, um espaço neutro, mas ao mesmo tempo simbólico, que
recria o mundo dos pensamentos e dos sonhos do herói principal. Entre as pessoas de
teatro, entre os bonecos que representam os heróis da peça, vagueia um rapaz de malha
preta, usando um chapéu da mesma cor. De início tem‐se a impressão de que ele
garante o elo entre o passado e o presente. Quando ele conclui uma negociação com
Tchitchikov e parte esquecendo seu chapéu, após ter‐lhe prometido evitar a deportação
para a Sibéria, o público descobre em sua cabeça duas saliências características. Pista
atemporal que vamos reencontrar na literatura contemporânea, em Boulgakov. A peça
termina, o público aplaude os atores, a cortina interior grosseira se ergue e sobre a
plataforma, como em O Inspetor Geral de Meyerhold, levanta‐se uma multidão
compacta de arlequins e Gogol no centro. Eles são sonhadores, preocupados e sem
dúvida temerosos da mesquinharia e da tolice do mundo que eles próprios
desencadearam.
A poética do teatro de bonecos de meios de expressão variados associa‐se aí à
prática teatral dos grandes representantes da vanguarda russa, em particular à de
Vachtangov e de Meyerhold – na origem, aliás, da prática do boneco contemporâneo. A
referência à tradição modernista, mesmo em 1985, é um ato cultural muito importante,
sobretudo no teatro de bonecos. Os russos podiam encontrar neste espetáculo as fontes
inesgotáveis de seu pensamento cívico e de sua tradição reformista. Para nós, trata‐se
de um encontro novo com a literatura russa e seu potencial dramático, que pode invadir
e transformar, a seu bel‐prazer, todas as técnicas teatrais como todos os gêneros. Eles
vão servir‐lhe, como esses múltiplos meios de expressão lhe serviram dessa vez.
Volkhovski tem um temperamento reflexivo. Várias de suas obras refletem seu
pensamento sobre o homem. O Menino do Lago (1988) de Pavel Velinov, criado em
Voronej é uma peça psicológica (que surpresa no teatro de bonecos!). O espetáculo é um
elogio fúnebre contado por um adulto, amigo casual de um adolescente que acaba de se
suicidar. Esse narrador é o único personagem de carne e osso. Os outros, ou seja o
menino, seus parentes e sua professora, são bonecos animados por homens em roupa
de luto. O caráter cerimonioso de sua atitude sugere que estes personagens participam
interiormente da reconstituição da história. Os bonecos, que medem cerca de um metro,
são manipulados por trás. Seu rosto fixo reflete os sentimentos dos heróis. Evocações do
passado permitem traçar um retrato psicológico do jovem herói que sonhava com uma
vida melhor e se deixou seduzir pelo azul do mar, no qual buscava apaziguar sua
solidão. É também uma análise sobre a insensibilidade dos que o cercam, de sua classe,
dos professores, de sua família. Vários meios de expressão correspondem aos diferentes
planos da ação e a direção assim ataca os preconceitos sobre os limites do boneco
76
FORMAS E ESTILOS
quanto aos temas e aos papéis trágicos. Graças à ação simultânea desses meios, o teatro
de bonecos contemporâneo dá novas provas de sua universalidade. Com O Menino do
Lago, o teatro aborda de um ponto de vista psicológico os problemas do homem.
A intimidade da narração
Essa descoberta não foi um feito apenas dos russos. Os artistas do teatro de
bonecos, na Europa, aspiravam a liberar seus próprios temas da atmosfera e dos
assuntos impostos pelos meios de expressão clássicos, e os temas existenciais ganharam
então importância. Enno Podehl dá testemunho dessa nova tendência. É em 1985, em
Charleville‐Mézières, que ele apresenta Hermann. Trata‐se da evocação pessoal de um
drama vivido, o da guerra. A história, muito íntima, é narrada por um ator que anima
ao mesmo tempo bonecos e objetos sobre uma mesa oblonga e baixa. Podehl, ator,
cavoca em sua memória para encontrar os fatos e o fio dos acontecimentos, e projeta
suas emoções, intensas, sobre os bonecos e os objetos. Podehl animador experimenta
um verdadeiro prazer em manipular o boneco concreto de Hermann. Podehl roteirista
conta a história passando constantemente da realidade à metáfora e vice‐versa. Enno
anima um boneco de madeira de Hermann com grande cuidado e sensibilidade. Um rosto
marcado pela idade, faces encovadas, um nariz saliente e algumas mechas brancas na cabeça. Um
tronco sem braços e com pernas (articuladas nos quadris, joelhos e tornozelos). Atrás do pescoço,
uma vara para manipular a cabeça. Hermann faz sua ginástica matinal e revela suas
surpreendentes capacidades de movimento. Hermann, vestido, provido de uma mão de Enno que
sai do punho de sua camisa, prepara seu café da manhã. Enno narrador conta como ele conheceu
Hermann. Hermann acende um fogareiro de verdade, faz uma verdadeira omelete numa
frigideira de verdade, come uma parte e dá o “resto” a Enno. De repente a História irrompe nesta
vida pobre e sem histórias. Hermann acolhe uma mulher e sua filha Rosa. Uma luva preta
arranca brutalmente esta mulher deste casulo aprazível. Só resta o lenço florido no qual ela
envolveu sua filha. A guerra acabou, Hermann tenta em vão refazer sua vida. O incêndio de seu
apartamento toma traços simbólicos. A cinza recobre o passado e Hermann, reconciliado com a
História, retorna a suas ocupações cotidianas. 75
Podehl contribui para enriquecer os temas do teatro de bonecos de meios de
expressão variados. O jogo à vista é aqui uma convenção não intervindo nas relações
entre boneco e animador. O testemunho a seguir é interessante porque nos permite
ampliar nossa reflexão sobre os procedimentos artísticos e épicos do teatro de bonecos.
Hermann confirma assim esta chance que se oferece ao teatro de bonecos enquanto
teatro de narração, onde contam não apenas o desenrolar inesperado da ação e sua
tensão, mas também o caráter íntimo próprio ao boneco. Entretanto, a dramaturgia do
teatro de bonecos não repousa unicamente nas palavras e na ação, mas com freqüência e muito
simplesmente em pequenos gestos, no silêncio, no jogo de luz, no abandono ou na reanimação de
tal ou tal “figurinha” chamada boneco, e enfim na perturbação, na movimentação do espaço
cênico.76
75 Tereza Ogrodzinska. Charleville 85, Teatro Lalek, no. 4, 1985, p. 9.
76 Enno Podehl. Para uma dramaturgia do teatro de figuras. Marionnettes, no. 13, 1987, p. 7
77
METAMORFOSES
No início dos anos 80, o teatro de sombras, outro teatro, vai viver uma profunda
transformação. O impulso do desenho animado tinha provocado, no pós‐guerra, uma
perda de interesse por esta forma de “espetáculo impessoal” que parecia não ter
nenhuma chance de sobreviver, à exceção de algumas variantes tradicionais como o
wayang e as sombras indianas com o herói do Râmâyana, as sombras chinesas com o Rei
dos Macacos, as sombras turcas e gregas com Karagöz e Karagiosis.
Na Austrália, perseverando no estilo de Henri Séraphin, o entusiasmo de
Richard Bradshaw traz seus frutos. Na França, o mérito cabe a Jean‐Pierre Lescot que,
após anos de tentativas (é preciso ter muita paciência para domar a noite) utiliza em seu
espetáculo Taema ou A Noiva do Timbaleiro (1981) sombras impressionistas cujas
proporções mudam em função das variações da luz e do grau de transparência de seus
materiais. Elas se revelaram muito teatrais, vibrantes e vivas, de uma presença imediata.
É na Itália que a verdadeira metamorfose se opera. O teatro Gioco Vita, fundado
em 1970, em Piacenza, explora novas técnicas: o deslocamento das fontes de luz ou a
simbólica das cores e das proporções, como em Gilgamesh (1982). O mundo onde reina
78
FORMAS E ESTILOS
Gilgamesh emerge da atmosfera cinza. Trata‐se de um palácio‐fortaleza monumental.
Os súditos são silhuetas negras e cinzas, corcundas, de rostos marcados pelo sofrimento.
Nós contemplamos com o olho da câmera, a imagem de um povo oprimido. Gilgamesh
aparece numa carruagem. Engalanado, com uma abundância de púrpura, a cor dos
soberanos, ele lança seus cavalos sobre seus súditos. Ele é grande, eles são pequenos.
Depois as proporções se invertem. O sistema de valores é abalado, há uma opalinização
da simbólica.
Outro tema novo: o nascimento de Enkidu, um grande e maravilhoso selvagem
que reina sobre os animas no meio dos quais vive. As proporções de uns e de outros
mudam. Enkidu chega na cidade, luta contra Gilgamesh para finalmente se tornar
amigo deste adversário digno dele. Quando Enkidu morre num combate com o Touro,
Gilgamesh fica desesperado. Sua figurinha multicor vai e vem em passos miúdos sobre
o enorme corpo de Enkidu. É a simbólica das elegias: o defunto é grande, enche o
mundo inteiro; o que chora mal consegue apreender a dimensão de sua perda. O
espetáculo não omite nenhum tema da lenda de Gilgamesh. A tela é muito viva. Ela
vibra, surpreende e provoca o inesperado.
Gilgamesh não iguala as experiências de Taema A construção das figuras é sem
dúvida menos audaciosa, mas esse espetáculo marca, entretanto, uma etapa importante
nas pesquisas sobre o teatro de sombras e suas capacidades expressivas. O jogo entre as
proporções das figuras e suas dimensões simbólicas interiores encorajam o Gioco Vita a
prosseguir suas pesquisas. O Castelo da Perseverança (The Castle of Perseverance, 1984), de
um célebre apólogo inglês, desenvolve consideravelmente a técnica do teatro de
sombras. A tela não é esticada, ela explode em vários quadros de diferentes dimensões,
o que dá uma nova dinâmica à ação. Em torno das clarabóias, sobre o fundo preto de
uma grande cena de teatro, um homem nasce entre os anjos. É o único momento calmo
da peça. O homem empreende um périplo que o conduz à Corte do Mundo e ao Reino
do Corpo. Ele viaja com companheiros de estrada pouco recomendáveis; primeiro a
Avidez, depois o Orgulho e enfim Bélial com toda uma armada de diabos. Algum
tempo depois, ele encontra o Arrependimento graças ao qual ele se aproximará um
pouco da Virtude. As silhuetas dos personagens são pretas. Nas seqüências iniciais os
anjos resplandecem em cores pastéis. O tamanho das sombras varia em função das
relações entre os personagens e sua força moral que também muda e é opalinizada. O
espaço cênico tem um caráter cósmico. A tela não tem nem alto nem baixo. Os
personagens se encontram no lugar e na posição que lhes são fixadas. Se necessário, o
enquadramento da tela se modifica. O momento mais dramático é aquele onde o espaço
se desloca, quando o homem quer entrar no seio da Graça. As forças do mal põem o
mundo em pedaços. Na cena aberta do teatro, negro como um forno, aparecem aqui e
ali alguns pedaços de tela, cada um envolvido por uma força diferente. O homem, no
entanto, consegue alcançar o castelo da Perseverança onde passa pelo ataque das
potências do mal. Sua derrota, entretanto, está escrita em seu destino. A Morte o espera.
Sua presença, sob a forma de um imenso esqueleto de sombras tomado por um
movimento turbilhonante, vela todo o espaço. A Moral, no entanto, prevê a
79
METAMORFOSES
possibilidade do Perdão. Chegam enfim anjos que erguem a figura atormentada do
Homem e o levam ao céus.
O espetáculo se compõe de duas partes diferentes. a primeira utiliza a unidade
do mundo. A da tela. A segunda acontece num mundo desagregado, em fragmentos de
tela. Esta estrutura corresponde à mensagem filosófica da peça. A eloqüência da
metáfora foi sem nenhuma dúvida a primeira preocupação de Gioco Vita, o alcance
dramático só apareceu na seqüência. Como os bonecos que, vinte anos antes, tinham
abandonado a empanada para se colocar frente ao público e mostrar‐lhe o universo de
ficção no processo fragmentário da criação, os criadores do teatro de sombras
romperam sua tela para substituí‐la por projeção em lugares imprevistos, sobre telas
improvisadas. Se todos os artistas do teatro de sombras não adotaram imediatamente
esse princípio, Giovo Vita nunca mais voltou à tela clássica. Em espetáculos tais como
La Boite à Joujoux (A Caixa de Brinquedos) (1986) ou Orlando Furioso (1991), ele põe sua
técnica a serviço do teatro de bonecos de meios de expressão variados.
Outros artistas, na França, como Luc Amoros e Michele Augustin escolheram um
caminho diferente. Eles utilizaram gravuras antigas das quais fizeram figuras de
sombra. Eles tiraram a tela de seu quadro tradicional e a inseriram num espetáculo de
estilo rock com piano e percussão (Püberg e a Megamore, 1982). Bonequeiros intervinham
na história, interrompendo a ação, introduzindo um relato no relato ou propondo
diferentes versões de um mesmo acontecimento. A arte gráfica resta para eles uma fonte
de inspiração e de criação. Ao se prender a culturas distantes, eles dão novos
significados aos meios de expressão que utilizam em seus espetáculos. A experiência
levada por Luc Amoros com a Trupe Ki‐Yi, de Abidjan, é um belo exemplo disso:
Sunjata ou a Epopéia Mandingue (1989). Os africanos fornecem a história, ou melhor
apresentam a história de Sunjata, herói da África Ocidental, assim como os atores, de
forte presença vocal, gestual e musical. O texto foi escrito por Were Liking, diretora da
troupe Ki‐Yi. Os artistas franceses compõem o quadro geral do espetáculo e os meios de
expressão sob forma de placas de sombras com grupos de figuras e figuras
individualizadas. A idéia das placas é emprestada do teatro de corte tailandês, o nang
yai, mas o tema e a expressão são tirados da cultura africana. Essa prática é pouco
corrente, pois a África Negra mal conhecia o teatro de sombras e a dança, representação
figurativa dos personagens sobre uma placa decorativa presa acima da cabeça, era‐lhe
também desconhecida. Estes elementos aparecem no entanto perfeitamente integrados.
O caráter épico do espetáculo permite unificar os meios. Todas as imagens servem para
revelar o segredo do heroísmo, e seu ritmo mutante, a passagem de quadros de
conjunto a detalhes expressivos, sublinhando a africanidade do espetáculo.
O diretor, Luc Amoros, não buscava fazer uma síntese artística das duas culturas.
Na verdade, ele tinha confiado em seu instinto criador: De fato, eu não conhecia bem o
teatro africano, eu o conhecia um pouco pelo trabalho do Ki‐Yi que vi em Charleville, pelo que
pude ler e ver ao longo de nosso encontro. Quanto ao teatro de sombras, não pode haver aí
verdadeira referência porque isto não existe verdadeiramente na África sob forma dramática. Se
pensarmos na estética do espetáculo, a cenografia e o grafismo, há certamente um parentesco
porque eu trabalhava sobre a África. Eu não queria ir à África, voluntariamente, antes de criar o
80
FORMAS E ESTILOS
espetáculo, para conservar uma visão fantasmática. Eram meus fantasmas sobre a África que
deviam sair no grafismo e na estética geral. Assim o que existe como referências africanas no
espetáculo, cabe ao público dizer, se meus fantasmas correspondem aos do público, às idéias
recebidas ou não sobre a África.77
E era certamente a única maneira de garantir a expressividade e a coesão do
espetáculo. O teatro de sombras contribui, com atraso e de modo impressionante, para
enriquecer o teatro de bonecos moderno. Ele estaria assim assumindo o valor de um
sincretismo cultural?
Sinergia
Na Alemanha Oriental, no final dos anos 70, os bonequeiros fazem esforços
importantes para definir as possibilidades de um teatro moderno, realista e justificar a
utilização de metáforas e imagens poéticas. O teatro de bonecos é uma espécie de arte da
representação (Darstellende Kunst). Ele consiste em representar as relações entre os homens e
sua atitude com respeito à realidade social por meio da animação consciente (do processo de
animação). Não é apenas uma forma, é também um princípio de espelho estético. O que
representa (o homem) não passa de um signo material determinando a estrutura das pessoas que
representam (Menschen). Um instrumento toma seu lugar, é uma figura artificial, elaborado
artisticamente (um boneco). O que representa (o Darsteller) se afasta assim da imagem do
homem unicamente para formar com esta imagem uma unidade funcional durante o processo da
representação.78
O teatro de bonecos enquanto espelho exprime bem as ambições de uma arte
realista. A unidade funcional do boneco e do homem garantem a realização dessas
ambições. Konstanza Kavrakova‐Lorenz procede a uma análise muito aprofundada dos
diferentes elementos do teatro de bonecos. Ela se apóia na semiologia, na teoria da
comunicação e propõe uma definição do teatro de bonecos enquanto teatro de sinergia e
de Verfremdung. O termo sinergia designa geralmente a ação coordenada de dois
elementos. Na filosofia de Melanchthon, ele designa a ação coordenada da vontade
humana e do Espírito‐Santo, o que nos leva à metáfora do boneco. Segundo Kavrakova‐
Lorenz, a sinergia implica naturalmente no nascimento do distanciamento, mas ela não
tem o mesmo caráter que no teatro de atores: A apresentação de bonecos, enquanto sinergia
de uma escultura e do jogo de atores, que situa o boneco entre as artes da representação, funciona
por intermédio da relação de tensão entre as particularidades e as funções essenciais de seus
elementos. Para resolver estas contradições permanentes procura‐se dinamizar exteriormente os
objetos (Dinglichen), o que leva a um distanciamento perrmanente dos dois elementos de base. A
dinamização que se faz por intermédio do movimento, do gestual e das poses (atitudes) esboça o
processo de “animação” dos objetos (Dinglichen). Este processo que não permite eliminar o
77 Entrevista com Luc Amoros e Richard Harmelle. Marionettes UNIMA‐França, no. 26, p. 25.
Hartmut Lorenz, Mit Poesie, Witz und Phantasie (Com poesia, humor e fantasia). Theater der Zeit, no. 11,
78
1980, p. 57.
81
METAMORFOSES
distanciamento, pede que seja objetivado o homem que representa ( ) A diferença entre o
distanciamento enquanto método e técnica de representação no teatro de atores e o
distanciamento permanente no jogo dos bonecos tem uma importância fundamental: se se pode
imaginar um jogo de atores sem distanciamento, inversamente não se pode imaginar jogo de
bonecos sem este distanciamento interno que é o elo de tensão de sua dualidade em vias de
desintegração79.
Segundo ela, o distanciamento é por conseqüência um elemento constitutivo do
teatro de bonecos. Já evoquei minha posição contrária a respeito, ao observar que a
noção de distanciamento permanente contém uma contradição. Um teatro que recorre em
permanência ao distanciamento merece um nome, é simplesmente um teatro de anti‐
ilusão. Brecht estimula as aspirações realistas e ideológicas dos bonequeiros da
Alemanha Oriental, e esta foi uma dificuldade a ser superada.
Os julgamentos e os postulados de Kavrakova‐Lorenz tiveram uma grande
influência sobre a prática do teatro da Alemanha Oriental. A interação do ator e do
boneco, sua sinergia, não permite apenas criar um personagem, ela também é utilizada
para fazer nascer a metáfora. Dada a facilidade com que nasce esta metáfora sinérgica,
as declaração de Knut Hirche, ator principal do teatro de bonecos de Neugranderbur,
são significativas. Ele evoca, sobretudo, a criação deste teatro, a relação com o teatro, as
relações com o público e a evidência da metáfora: Nós preparamos vários espetáculos onde a
interdependência do ator e do boneco era utilizada de uma maneira evocativa simples. (...) Não
demoramos para perceber que ao nos concentrarmos nesse único problema, fazíamos do boneco
um tema em si e que o desviávamos do tema ou assunto da peça. As interpretações de primeiro
grau, pouco interessantes, dominavam, como por exemplo, o homem entravado por seu destino
ou pelo poder, ou então, ao contrário, o homem dirigindo os bonecos. Chegamos à conclusão de
que este problema é importante para o processo de criação, mas deve permanecer invisível para o
espectador, que não deve tomar consciência dele.80
Em suas pesquisas, Hirche concede assim um lugar importante ao personagem.
Era fascinante ver como os bonecos chegavam a ter uma representação estritamente teatral; eles
tornavam‐se personagens, personagens dramáticas. A seu jogo se acrescentavam efeitos de uma
intensidade extraordinária pelo simples fato de que se tratava de marionetes. Pode‐se sem
problema aspirar ao naturalismo sob esta forma: a “matéria inerte” resistirá sempre, criando
assim uma abstração espontânea e, portanto, submissa a uma poetização. A tensão, este fio tenso
entre a ilusão e a desilusão, deve poder ser reconstituído,e não pode se romper81.
Se Hirche e seu teatro de repertório estão mais próximos de Waschinsky que de
Kavrakova‐Lorenz, subsiste um hiato entre teoria e prática.
79 Konstanza Kavrakova‐Lorenz, Thesen zur Dissertazionschrift (Tese de doutorado manuscrita), 1987, p. 16.
Knut Hirche. O stylu pracy w Teartz Lalek w Neubrandenburgu (O estilo de trabalho do teatro de marionetes de
80
Neubrandenburg) ,Teatr Lalek, no. 1, 1989, p. 19.
81 Ibidem
82
FORMAS E ESTILOS
Os marionetistas de Neubrandenburg criam, em 1980, duas peças em um ato, A
Bruxa e O Urso, baseados em Tchekov. Num estilo realista, com marionetes jogando
atrás de um tecido de musselina suspenso no quadro da cena para reforçar a ilusão,
estes espetáculos põem à prova o princípio da Verfremdung, dissipando por momentos o
efeito de ilusão e deixando aparecer a mão do animador. Os espetáculos criados na
Alemanha Oriental, apesar da excelente técnica dos atores, um audacioso repertório
para adultos (Rostand, Brecht, Müller) bonecos de vara (emprestados certamente do
teatro tcheco do início dos anos 70) substituídos a seguir por bonecos manipulados por
trás, e enfim princípios estéticos e ideológicos aplicados com uma perfeita coerência,
não trazem elementos novos para o conhecimento de nosso teatro, salvo Senhora Julia,
de Strindberg, montada pelo teatro de Neubrandenburg em 1987, que foi um
acontecimento. Este espetáculo é interpretado por atores e bonecos onde cada um só
constitui uma metade do personagem. Segundo certos críticos, os atores personificam
os instintos, o subconsciente e o psiquismo dos heróis do drama, os bonecos
representam os papéis sociais. O boneco de Jean, um robusto capataz de fazenda que
parece pouco à vontade em sua libré de lacaio, é animado por um ator encarnando um
mestre de dança cheio de sutileza. Senhorita Julia, encarnada por uma boneca, choca
por sua delicadeza, seu charme e a nobreza de sua atitude, mas sua vida interior, de
uma desesperante indigência, é expressa pela maquiagem vulgar e os movimentos
bruscos da atriz. Esta dupla vida dos personagens ilustra claramente a dicotomia do ser
humano, ao menos no caso da peça de Strindberg.
As relações entre os personagens se efetuam em diferentes níveis e com graus de
significação diferentes: ator – atriz, boneco – boneca, ator – boneco ou ainda ator e seu
lado boneco, por exemplo, no caso de um conflito entre a forma e a alma do
personagem. O boneco é, às vezes, considerado como a melhor salvaguarda do eu. A
cena culminante é a realização de um ato sexual. Ele se faz na cena transformada em
cama, onde as figuras emergem, ligadas entre si de modo fantástico. O jogo dos atores
exprime passo a passo a cumplicidade, a intimidade, enfim a agressividade com relação
ao parceiro e o medo de se ter desonrado.82.
Signo ou símbolo?
Se a interpretação subjetiva do espetáculo pode suscitar algumas reservas de
nossa parte, é inegável que os artistas de Neubrandenburg ultrapassaram a teoria do
boneco sinérgico. Em suas relações com os bonecos, a distância torna‐se um elemento
que decide uma nova situação e, portanto, a função do boneco. Acontece de o ator
animar o boneco à vista, mas geralmente ele se serve dele como uma coisa informe, que
pode inclusive rejeitar. Nesse sentido, o boneco não é a imagem de um personagem, ele
só representa uma parte de que se torna símbolo. Krofta tinha utilizado o animismo à
distância em Enfin, Unicum, mas Marlis e Knut Hirche o ultrapassam. Nas suas mãos, o
boneco, mais do que o signo de um personagem é seu signo plástico. Eles chegam a
renunciar à idéia de que o boneco participa da criação do personagem, com suas
82 Joana Rogacka.Od braci Grimm da Strindberg (Dos irmãos Grimm a Strindberg). Teatr lalek, no. 3, 1987, p.19.
83
METAMORFOSES
reações e sua dinâmica artificiais. Eles o utilizam como uma alegoria, uma
personificação plástica de certos traços desses personagens. Quanto mais Krofta se
aproximava do rito, tanto mais os esposos Hirche entravam no campo do teatro
simbólico.
Segundo Samuel Foote, ator, escritor e bonequeiro, vivendo em Londres no
século XVIII, o boneco surge no momento em que o ator se distingue do papel que
interpreta. Hoje, nós atropelamos o seu percurso. Entende‐se que o boneco
antropomorfo, portanto clássico, desprovido de animação e privado de animismo,
continua a estimular do mesmo modo o artista. Ele é obrigado a utilizá‐lo de diversas
maneiras, como por exemplo, atomizando psiquicamente o personagem. O que, aliás,
fez Krofta, enquanto os Hirche insistiram no plano psíquico portanto alegórico do
boneco. O processo de atomização do personagem cênico foi oposto às pesquisas feitas
sobre a constituição de um personagem integrando diversas funções.
Voltemos, ainda que brevemente, ao esplendor da ilusão que em outros tempos
tinha o personagem. Entre os teatros da Alemanha Oriental, o teatro de bonecos de
Erfurt atrai há muito tempo a atenção da crítica. O Teatro Waidspeicher utiliza meios de
expressão variados, mas não hesita, quando as circunstâncias se prestam a isso, em
voltar à convenção do teatro de bonecos homogêneo. Todos os seus espetáculos têm
qualidades dramáticas significativas como Quem tem Medo do Homem Negro? (Wer
Füchten sich Vorm Schwarzen Mann?), de Lars Frank (1990, adaptação do autor, direção:
Anne Frank). Lars Frank conta uma história de sua infância. Partindo em cruzeiro com
seus pais que o deixam sozinho à noite no camarote, ele experimenta um medo terrível
do mundo da noite. Os personagens da peça são grotescos, às vezes deformados (do
ponto de vista da criança). No ponto culminante, um fantasma aparece e o narrador
(Frank) desaparece. Tudo começa a ganhar vida “realmente”; os espectadores, inclusive
adultos, deixam‐se tomar por esta mistificação e vivem as aventuras com o fantasma.
Assim a ilusão, geralmente rejeitada e com freqüência desprezada, volta sob uma nova
forma enquanto elemento de uma outra convenção teatral. Brecht jogava com a ilusão, é
verdade. Frank talvez não faça mais do que explorar a idéia de seu mestre. Mas se for
este o caso, é preciso dizer que ela é explorada inversamente: a ilusão não se rompe, ela
surge para reforçar o sentido da prática teatral.
Um espetáculo teatral repousa no jogo. Não o dos atores, mas o jogo de todos os
elementos do teatro. E, sobretudo, o da ilusão e da realidade. Ele pode se dar em
diferentes níveis: tempo real e tempo ideal, personagem e ator enquanto elementos da
realidade, ação cênica enquanto história e acontecimento que vivemos com os heróis.
Inscritos na realidade para respeitar as convenções do teatro contemporâneo (a
narração, o artifício do teatro, o teatro teatral), sempre temos a possibilidade de nos
evadirmos no mundo da ilusão. Se esta é a nossa chance, ela é também a do teatro!
ARTES PLÁSTICAS E BONECOS
O boneco é um ícone, signo de um personagem vivo, em geral de um
personagem dramático. Concebido e realizado pelo homem, coisa ou objeto, ele é uma
obra plástica cuja expressão artística depende de nosso olhar. O espaço cênico tem
84
FORMAS E ESTILOS
também um caráter plástico assim como o bonequeiro que se produz na rua com um
boneco, sem empanada. Todos, à exceção do homem, são artificiais. Esta é a razão
porque certos artistas qualificam o teatro de bonecos de “teatro de artes plásticas
animado”.
A vanguarda dos anos 20 estimula uma pesquisa sobre a plástica e sobre a
estilização das personagens indo da caricatura ao simbólico. Mas o ingresso das artes
plásticas no teatro de bonecos não se faz por decreto. O teatro tem suas regras, suas
convenções; as do texto, da tensão dramática, da luz, da música, o mais importante
sendo a capacidade de organizá‐los harmoniosamente. Mas a harmonia pode ser
entediante e contrária aos verdadeiros valores artísticos, submetidos à subjetividade do
artista. Constata‐se que em reação imediata à declaração de Richard Wagner sobre a
concepção do Teatro Sintético, os artistas se opõem a isso e desenvolvem cada um sua
própria linguagem. Ao privilegiar o texto, o espetáculo torna‐se literário, ao voltar aos
palcos vazios, o jogo dos atores se impõe, e quando se escolhe a plástica, o espetáculo
ganha as características desta. Não existe um teatro sintético, mas múltiplas variantes. O
boneco vai viver a mesma aventura. Cada artista propõe sozinho o tipo de teatro que
deseja defender. E o boneco, artefato fabricado por um artista plástico, segue a evolução
da arte e ocupa rapidamente a frente da cena.
Lembremos que o boneco figurativo reina durante muito tempo como senhor no
teatro de bonecos, com personagens realistas ou estilizados saídos do folclore (Adam
Kilian, Ivan Koos, Frantisek Vitec) ou da iconografia nacional (Ivan Conev). Atraídos
pela sedução plástica da matéria, e o jogo anti‐naturalista, certos cenógrafos vão se
inspirar no surrealismo (Kazimiertz Mikulski), outros em objetos encontrados
(Zenobiusz Strzelecki), outros ainda vão buscar inspiração na iconografia histórica (Ali
Bunsch). Esses cenógrafos, artistas plásticos, tornaram‐se então parceiros dos diretores
enquanto criadores de personagens, idealizadores de espaços cênicos e colaboradores
fiéis na interpretação da obra dramática.
As cenografias no teatro
Mais do que com a limitação espacial, foi sobretudo com a própria forma do
teatro e da empanada que estes artistas romperam. Obraztsov, em seu tempo, adapta o
espaço cênico às necessidades da ação de cada um de seus espetáculos. O Teatro
Tandarica em A Mão de Cinco Dedos, desloca uma parte da ação para o espaço da platéia.
Podia‐se também dispensar completamente a empanada, criar num espaço aberto em
razão das condições materiais (companhias de bonequeiros sem espaços fixos e
renunciando também mais facilmente à empanada) ou em respeito ao tema da peça,
como a Companhia Jane Phillips, de Cardiff, em 1967 com Pilgrim’s Progress, cuja ação
se situa no interior de uma roda, conforme à tradição de um mistério.
Os cenógrafos do teatro de bonecos de Poznan, Leokadia Serafinowicz e Jan
Berdyszak generalizaram a representação no meio dos espectadores ao utilizar um
teatro circular, em O Rouxinol (Slowik) de Josef Ratajczak (1965), Os Banhos Públicos
(Bania) de Maiakowski (1967), ou em O Mais Valente (Najdzielniejszy, 1965), de Ewa
Szelburg‐Zarembina. A boca de cena é encoberta de modo a concentrar o olhar do
85
METAMORFOSES
espectador com a ajuda de um dispositivo idêntico ao da objetiva de uma máquina
fotográfica. Em Que Horas São? (Która Godzina? 1964) de Zbigniew Wojciechowski, há
vários níveis de atuação diferentes que permitem enquadrar livremente o corpo dos
bonecos e dos atores, jogando assim com torsos, cabeças ou pernas representando as
personagens.
Com a mesma inventividade, o espetáculo do Teatro de Bonecos de Constanza
Copilul din Stele baseado em Oscar Wilde (A Criança de uma Estrela, 1970, direção: Geo
Berechet, cenografia: Eugenia e Serban Jianu, Lucia Trontonghi) utiliza em cena um
biombo “vivo”. Bonequeiros dissimulados sob um tecido deslocam seu corpo e
transformam o biombo de tecido no desenrolar da ação. Em Petrouchka de Stravinski no
teatro Tandarica (direção: Irina Niculescu, cenografia: Mioara Buescu e Anca Zbarcea,
1982), o efeito dramático do final destaca a morte patética de Petrouchka, ferido pelo
Mouro, as costas atravessadas por uma adaga. Esta ruptura de escala reforça o contraste
entre o espaço de representação da empanada, a grande cena onde o público se torna
sua última esperança.
Todos esses cenógrafos interpretam uma obra teatral adaptada de um texto
literário. Criando seus espetáculos a muitas mãos e às vezes eles próprios os
representando, jamais procuraram impor seu material como uma espécie de universum.
A evolução se fez progressivamente, tanto no emprego de novos materiais, como no
teatro dos Monestier, quanto na cenografia tradicional que conheceu uma nova
dinâmica. A este respeito, o estúdio experimental de Allami Babszinhaz, de Budapeste,
adapta em 1972 uma pequena peça de Jean‐Claude Van Italie, Motel. Uma Máscara para
Três Bonecos (Motel. A Masque for Three Dolls, direção: K. Szonyi, cenografia: I. Koos). O
espaço cênico é uma pequena empanada‐personagem: a proprietária de um motel. Na
cena, isto é no interior da Proprietária, dois bonecos de luva buscam um momento de
tranqüilidade para saciar seu desejo. A vida barulhenta do motel põe os dois heróis fora
de si de tal modo que eles destróem tudo que os cerca, isto é, o motel, a cena e a
empanada a um só tempo. Os cenários são explorados de modo dinâmico e metafórico
já que suas transformações exprimem o sentido da peça.
O teatro cenografado
Somente nos anos 70 vamos assistir ao surgimento de companhias que irão se
consagrar inteiramente à pesquisa de soluções plásticas e espaciais. Assim, na Itália, em
Lucca, o teatro Il Carretto fundado e dirigido por uma arquiteta, Grazia Cipriani, e um
ilustrador, Graziano De Gregori, rejeita o espaço plástico homogêneo. Na cena,
diferentes quadros (grupos de personagens) possuem um valor plástico autônomo e se
distinguem uns dos outros por suas dimensões: variação de escala, modificação do
olhar. Brunella Eruli83 observou com justeza que Cipriani e De Gregori optaram pela
empanada tradicional fazendo dela novos usos: seus personagens ora deixam o espaço
da empanada, ora voltam a ele, intensificando assim a dimensão emocional, como em
83 Brunella Eruli. Desenhos do mito. A Ilíada de Il Carretto. PUCK, 1989, no. 2, p. 35.
86
FORMAS E ESTILOS
Branca de Neve (Biancaneve, 1983), onde os anões e a Madrasta – uma atriz – representam
num espaço aberto enquanto a pequena boneca de Branca de Neve, que se encontra
embaixo de sua redoma, fica fechada na empanada. A variação dos tamanhos dá
origem a uma metáfora dramática. Em Romeu e Julieta, dirigido por Graziano de Gregori,
o palco (como na Commedia dell’Arte) tem várias funções. Ele pode se transformar
num palco plano e representar uma cidade, suas janelas, e tornar‐se o campo do conflito
opondo os Montechios aos Capuletos. Em A Dama das Camélias, Margarida agoniza
numa carroça cuja forma evoca uma empanada, e a atriz é assombrada pela visão de
personagens do passado, simbolizados por bonecos.
Na Ilíada (1991), a empanada toma toda a boca de cena onde representam atores
monumentais, em meio a signos plásticos que evocam as experiências humanas do
passado. No palco vazio, citação teatral, a exibição da maquinaria necessária à realização das
ações lembra implicitamente a empanada dos bonecos e sublinha a paciência artesanal exigida por
qualquer criação artística. A luz redesenha os espaços, o claro‐escuro fazendo destacar o pathos e
a distância mítica dos acontecimentos. A Ilíada não é um espetáculo sobre a Grécia antiga, mas
sobre os horrores da guerra e da violência, sobre a fúria cega que quebra a harmonia da natureza.
As inúmeras e sábias citações iconográficas tiradas das esculturas, dos baixo‐relevos ou das
decorações dos vasos gregos, a referência ao espaço como ao de uma empanada de bonecos, os
gestos marionetizados dos atores refletem uma visão do mundo clássico aliando uma grande
coerência plástica a uma releitura sutil.84
Nesses quatro espetáculos, a plástica domina e fascina. Se os três primeiros
conservam elementos da ação dramática e a levam até o final, a Ilíada já não passa de
uma montagem de cenas em torno de um tema, uma impressão plástica que se apóia
em documentos históricos. Trata‐se de uma colagem de imagens que aspiram a uma
póética do teatro plástico.
Ainda na Itália, o Teatro delle Briciole, de Parma, também encontra excelentes
soluções, no campo do repertório para crianças. Ele utiliza um espaço aberto no qual
introduz quadros de imagens para A Chamada da Floresta (Il Richiamo della Foresta, 1987),
de Jack London. Pode‐se falar aqui de espaço no espaço cênico, à imagem do teatro no
teatro. Em 1987, em Hvidovre, na Dinamarca, o Teatro delle Briciole apresenta O
Flautista. Ao entrar na sala do teatro, os espectadores se encontram nas muralhas de
uma cidade. Trata‐se, claro, de uma maquete, mas a porta da cidade é quase verdadeira.
O Guardião, um ator, anuncia o espetáculo e introduz os espectadores por uma ponte
levadiça. No interior, um espaço é previsto para sentar sessenta pessoas. Em volta delas,
fragmentos de uma paisagem urbana: o plano geral da cidade, a casa do burgomestre,
uma pequena ponte, as muralhas. É lá que a ação acontece. O Guardião, sem mudar de
roupa, assume as funções do flautista, toma contato com o Burgomestre, mas como a
recompensa prometida não lhe é entregue, ele deixa a cidade levando consigo as
crianças, isto é, os espectadores. Esta tirada era inesperada, sobretudo para o público. A
84 Brunella Eruli. Desenhos do mito. A Ilíada de Il Carretto. PUCK, 1989, no. 2, p. 36
87
METAMORFOSES
concepção plástica do espaço cênico servia à expressão dramática da peça e os
espectadores, tais como os ratos, tornavam‐se os protagonistas do espetáculo.
Na Polônia, no Teatro de Bonecos de Wroclaw, a peça Gyubal Velleÿtar (Gyubal
Wahazar 85 ), de Stanislaw Ignacy Witkiewicz (direção: Wislaw Hejno, cenografia:
Jadwiga Mydlarska‐Kowal, 1987), apóia‐se inteiramente nos cenários. A supremacia da
forma plástica e seu papel privilegiado se impõem com toda evidência desde os
primeiros minutos. A galeria dos personagens do drama emerge da penumbra. Fixados
num gesto esboçado como num plano fixo cinematográfico, eles ficam mudos diante
dos espectadores, em poses sugestivas, os olhos fixos intensamente num ponto do
espaço, sentados nas cadeiras em forma de casa, inspirados pelos princípios da cena
simultânea da Idade Média. Mydlarks‐Kowal voluntariamente não leva em conta
nenhuma das didascálias e se deixa guiar por sua imaginação e sua intuição teatrais. Ao
grotesco se mescla o trágico, ao engraçado a crueldade. O diretor desejara construir a
ação do espetáculo, fazer passar sua visão de uma autocracia nutrida de metafísica, a
partir das concepções do autor. Mas as impressões plásticas que se depreendem são
mais fortes. Mydlarska‐Kowal afirmava, talvez hipocritamente, se remeter sempre ao
diretor. Ela considerava o teatro como a expressão da emoção, mas não deixava de ser a
herdeira do modernismo e gostava de repetir, baseada em Léger e Witkaci, que o ator
não passa de um elemento da composição. O ator, no teatro dramático, é um material
plástico. No teatro de bonecos, em troca, ele põe em obra o espaço e as formas que eu crio em mim,
enquanto cenógrafo. Eu penso que o ator, no teatro de bonecos, deve ter uma imensa imaginação
plástica. O ator mexe com a forma, ele deve viver esta forma, ele deve senti‐la. É uma tarefa
muito importante. E é o que distingue o ator do teatro de bonecos do ator do teatro dramático86.
Teatro de autor
Stanislaw Ignacy Witkiewcz. Gyubal Velleytar. La Cité, Lausanne, 1971. Tradução de Alain van
85
Crugten (N.d.T.)
Chce miec mój wlasny teatr (Eu quero ter meu teatro). Entrevista com Jadwiga Mydlarska‐Kowal. Teatro
86
Lalek, 1988, no. 1‐2, p. 31.
88
FORMAS E ESTILOS
dizer nada a esse respeito. Quando concebo minhas imagens, penso de imediato na maneira de
fazê‐las se movimentarem. Ainda é preciso encontrá‐la. O caminho é cheio de pequenas
complicações e sua solução pede noites de reflexão, mesmo se tudo parece simples quando a gente
fala disso. Eu só pinto e desenho pensando nos bonecos. Num certo momento de minha vida,
pintei muitas paisagens e personagens. Mas em seguida não conseguia mais avançar. Para
desenhar, eu tinha necessidade de ser inspirado por qualquer coisa a minha frente: uma paisagem,
um homem, uma mulher nua... Eu não era capaz de criar meu universo interior unicamente pelo
desenho. Enquanto que com os bonecos, eu fabrico meu universo interior87.
Boerwinckel percebe os homens em tons cinza escuro, com uma textura de pele
rugosa e de roupas grosseiros, em forma de saco. Seus traços são deformados, às vezes
muito exagerados, Às vezes apenas marcados por um traço forte. Eles olham numa
direção bem definida, mas seu olhar é marcado por um algo mais, um sofrimento e às
vezes hostilidade. Os bonecos de Boerwinckel são tão expressivos que poderiam
constituir por si só o tema de uma exposição ou de um happening. Mas ele lhes dá vida,
considera‐os como motivos a partir dos quais inventa histórias e cenários maliciosos,
surrealistas.
Um realismo fantástico. No palco quase vazio, um cíclope de torso impressionante.
Um único olho, um nariz deformado, uma longa barba. O cíclope se apossa de uma
caixinha que coloca a sua frente. Ele tira seu olho do rosto e o põe na caixinha. Ele
fabrica assim um aparelho fotográfico. Ele o vira para o público. Um clarão, uma foto.
Ele tira o olho da caixinha e o recoloca em sua órbita. Depois tira uma foto da caixinha.
Ele a examina com seu único olho e a mostra ao público – é a fotografia do público. E
ele aponta para ele com um dedo ameaçador.
O Anão I. Uma marionete de rosto envelhecido e usando uma roupa marrom de
listras violeta percebe acima dela os fios e a mão que os dirige. Ele gostaria de conhecer
seu animador. Tenta escalar os fios até a cruz. A mão lhe ordena que fique embaixo,
mas a marionete teima. A mão intervém de novo, mas a marionete se obstina em sua
ascensão. A mão então intervém e a marionete se imobiliza, sempre suspensa a seus fios.
O Anão II. Um homem velho, um boneco de luvas, vestido de uma touca de noite,
trabalha, escreve sem cessar. Uma mão lhe traz papéis. O velho dorme. Durante seu
sono os papéis se invertem. A mão se encontra numa caixa fechada. O velho chama a
mão e lhe bate. Depois de um momento, ele é tomado de piedade e a acaricia. Da caixa
sai uma mão de cadáver que ataca o velho. Ele se acorda. O homem se põe de novo ao
trabalho. A mão lhe traz papéis e acaricia‐lhe a cabeça.
O Anão III. O mesmo personagem, uma marionete. Ela percebe os fios que a
dirigem. Ela resiste a eles, puxa‐os revelando a presença das mãos do animador. Ela lhe
arranca a cruz das mão e cai por terra, inerte. As mãos designam e animam o miserável
destino da marionete tão pouco inteligente, mas eis que logo elas também ficam
suspensas, sem vida. Então a marionete se levanta. Ela se serve da cruz como de uma
muleta e deixa a cena mancando.
87 Henk Boerwinckel. Um sonho em três dimensões. PUCK, 1989, no. 2, p. 30
89
METAMORFOSES
A maioria dos quadros representados tem a mesma característica surrealista. As
três sainetes do Anão introduzem, além disso, elementos deste teatro que denominei
auto‐temático. Elas evocam o estado de dependência no qual se encontra a marionete
em relação a seu animador, trata‐se de uma espécie de desmistificação da natureza do
boneco e de seu simulacro de vida. Entretanto, ao final da terceira sainete a marionete
desmistificada é de novo mistificada: ela deixa a cena por seus próprios meios. Isso
confirma a sensibilidade de Boerwinckel à magia da vida do boneco. Assim, o teatro
plástico de Boerwinckel encontra facilmente seu lugar entre as tendências do teatro
moderno.
Boerwinckel fez outras experiências teatrais que, como O Filho da Mãe Terra ou As
Estações, conservam uma visão plástica do mundo surrealista e mesmo mágico, mas
renuncia ao humor negro, aos efeitos de surpresa repousando sobre o jogo dos bonecos.
Seus espetáculos são muito mais plásticos, no sentido em que evocam mais esculturas a
serem contempladas que atores tendo um papel preciso. Seu último espetáculo, Trio
para Pierrot (1989), também tem origens autobiográficas. Boerwinckel conserva de sua
infância a lembrança onde está sentado no assoalho de uma bela peça, na qual havia um
buraco. Nesse buraco ele descobre um mundo caótico em ruínas. O espetáculo conta a
história de uma criança que brinca de boneca. Na janela aparecem cabeças horripilantes
que a observam. Elas observam sua inocência. De repente abre‐se uma espécie de caixa
que revela um buraco negro. A menininha olha no buraco e seu rosto desaparece. Ela
entra no buraco, entra na vida. Ela perde sua inocência, para ela a vida começa. O teatro
de Boerwinckel merece incontestavelmente o nome de teatro de autor. É um fenômeno
bastante corrente entre os solistas, que encontramos em companhias ou grupos
marcados pela forte personalidade de um artista. O teatro porta então seu nome. Com
frequência as pessoas se referem ao teatro de Brook, de Grotowski ou de Mnouchkine, e
poder‐se‐ia, do mesmo modo, falar do teatro de Obraztsov, de Nicolescu, de Meschke,
ou de Krofta. Trata‐se de fato de um teatro de diretor.
A experiência é mais breve em Zygmunt Smandzik que só cria dois espetáculos
de autor: O Pássaro (Ptak, 1976) e A Gavetinha (Szufladka, 1978). Utilizando formas
plásticas originais que reduzem o homem a um ideograma atuando entre objetos
simbólicos, ele expõe, num como noutro, suas reflexões pessoais sobre a natureza e a
condição humana. Seu primeiro espetáculo causou grande impressão na França como o
relata Annie Gilles: “O Pássaro, espetáculo visual e musical sem texto do teatro polonês de
Opole, exibia, durante quarenta minutos, uma coerência temática certa: a humanidade (ou um
grupo humano) comprometida numa evolução necessária pela própria duração do espetáculo,
seus sofrimentos, a produção de seus ídolos, seus sonhos, em particular o de Ícaro ou de Leonardo
da Vinci. Das conversas após o espetáculo, destacava‐se um reconhecimento comum desses temas,
mas também a divergência das percepções individuais enriquecidas pela afetividade e a cultura de
cada um, quando esses mesmos fatores associados a hábitos de leitura linear e intelectualizada
não conduziam a uma recusa categórica do espetáculo88.”
88 Annie Gilles. Pequeno organon para o boneco. CDDP des Ardennes, Charleville‐Mézières, 1977, p.20‐21
90
FORMAS E ESTILOS
91
METAMORFOSES
89 Entrevista de Henryk Jurkovski com Gavin Glover, em 30 de junho de 1993, a Charleville‐Mézières.
92
FORMAS E ESTILOS
Outros se perguntam se o teatro não poderia fazer o mesmo com as obras de Bosch, de
Breughel ou de um pintor polonês, Makowski. Somente alguns poucos tentaram
realizar esse sonho, convidando grandes pintores para colaborar com eles.
Miró, Mata, Saura
Joan Baixas, o fundador do teatro La Claca em Barcelona (1968‐1988), fez da
animação da pintura um programa teatral: A pintura representa para mim um dos motores
principais da arte dos bonecos. É no seio da imobilidade plena de energia do espaço pictural que
encontro o ponto de partida do movimento das figuras. Este movimento, por definição, não pode
ser nem naturalista nem representativo – nem simbólico também, porque deve ser antes de tudo
original, próprio a si, autêntico. O movimento é a vida, a base de nossa arte, a essência mesma do
personagem. E ele é também a vida do espetáculo, sua própria respiração. Devo precisar que
quando falo de figuras, não faço nenhuma distinção entre bonecos e máscaras, entre objetos ou
formas abstratas. A arte das figuras consiste numa emoção criada pelo jogo cênico de objetos
encarregados de significações e assumidos por um ator. Que este se sirva de seu rosto, de sua mão
ou de não importa que outro meio mecânico não tem para mim nenhuma importância. O
espetáculo das figuras estabelece um diálogo muito enriquecedor com a pintura. O pintor fornece
não apenas as formas que os personagens vão adotar, mas oferece essencialmente o ritmo e o
movimento, a atmosfera e a pulsação vital, a casa e a paisagem, a existência física e mental dos
personagens e, por consequência, da peça. 90.
Baixas convida Miró e lhe propõe conceber de outro modo seu trabalho. O pintor
propõe e La Claca realiza o seu. “O trabalho teatral, isso é com vocês!” declarou
abruptamente Miró. O artista, de oitenta nos de idade, aceita o convite com entusiasmo.
Seduzido pela idéia de montar Ubu Rei de Jarry como um comentário do regime fascista
em plena decomposição quando da morte do general Franco. Durante o trabalho, Baixas
e ele decidem de comum acordo mudar de tema, sem renunciar entretanto à idéia
inicial. Foi assim que nasceu A Morte do Tirano (Mori el Mesma, 1978). Sem intriga precisa,
o espetáculo provoca a mesma impressão que a pintura ou a música. Miró inventa
personagens de formas fantásticas, que ele próprio confecciona e pinta. O assunto o
obriga, no entanto, a abandonar as cores claras e as formas otimistas. O que não escapa
à crítica de Cristian Armengaud: É de fato todo um mundo sangrento e erótico, grotesco e
arruinado, levando às vezes a incongruência aos limites da escatologia, que vai se recriar sob
nossos olhos. Por trás do surrealismo, o espírito de Dada (Miró ilustrou Tzara) e o sentido de
inúmeros símbolos escapa ao observador não advertido. Num canto da cena, silencioso, sem
máscara nem maquiagem, uma jovem mulher numa jaula de madeira, única personagem
totalmente humana, desfia alguns raros gestos cotidianos... Trata‐se de uma imagem da condição
Joan Baixas, Le boulot théatral, c’est votre affaire! (O trabalho teatral, isso é com vocês!) PUCK, 1989, No. 2, p.
90
14
93
METAMORFOSES
feminina? Ou duma bela adormecida no bosque cujos sonhos se materializam? “O sono da rainha
engendra os monstros”; de fato não estamos longe de Goya em quem por muitas vezes,
esquecendo Miró, nos surpreendemos a pensar91.
A participação de Miró na elaboração do espetáculo não deixa de ser um
acontecimento. Ele está presente em todas as etapas de sua gestação, controla a
construção dos personagens (das máscaras, dos figurinos) pinta‐os ele mesmo em três
dimensões e deixa o cuidado da encenação e da animação a Baixas, que se esforça por
interpretar e transpôs para a cena o ritmo plástico interno da obra de Miró.
La Claca colabora igualmente com Antonio Saura e Roberto Sebastian Mata.
Baixa realiza com Saura Peixes Abismais (Peixos Abismals, 1982). Saura sempre
manifestou interesse pelas máscaras das sociedades primitivas que constituem o ponto
de partida do espetáculo. Ele as simplifica bastante, reduzindo‐as quase à geometria.
Ele as branqueia e marca de leve os olhos. Trata‐se de fato de pré‐máscaras, de larvas ou
de arquétipos de máscara, que convidam ao ritmo e à expressão de ritos. Com Mata,
Baixas cria O Labirinto porque percebe nas telas de Mata uma imagem do labirinto do
mundo. Inspirando‐se um no outro, eles atingem uma forma ideal. O espetáculo se
desenrola sob uma barraca. Na primeira parte, o público se encontra num labirinto feito
de uma rede de cordas e de aprestos, observando aqui e ali acontecimentos transpostos
de uma exposição de Mata sobre o tema de Dom Quixote intitulado Dom Qui. Um
labirinto de acontecimentos e seu Minotauro constituem a segunda parte, em referência
à mitologia grega. Não resta nenhuma dúvida que Miró e Mata exerceram uma
influência considerável sobre os espetáculos de La Claca. Podemos em troca perguntar‐
nos em que medida uma obra plástica pode ser transposta a uma obra teatral, se
levarmos em conta as teorias de Baixas. Será o teatro que interpreta a obra plástica ou a
obra plástica que impõe suas regras? E quanto ao cenógrafo ou pintor, qual deles criou
uma obra que possa resistir ao efêmero? O primeiro está submisso ao diretor, a sua
visão do universo teatral, do único e do efêmero da representação, enquanto que o
segundo pode criar obras que atravessam os séculos? É sem dúvida por essa razão que
muitos teatros convidam pintores para aceitar o papel de cenógrafo plástico: eles não
têm em mente uma animação da pintura, mas um olhar ou uma técnica plástica nova.
Por essas mesmas razões, alguns artistas tentam adaptar à cena o mundo de
Enrico Baj. Os primeiros a fazê‐lo foram criadores de ópera, mas eles não conseguiram
sair das trilhas batidas da cenografia nem utilizar plenamente a riqueza da pintura e as
colagens de Baj. A colaboração de Baj com Monaco de Pistola foi mais frutuosa. Pistola
propõe ao pintor a montagem de Pinóquio em seu Teatro Porcospino. Baj começa por
recusar depois se contenta em enviar‐lhe uma pilha de catálogos e de desenhos cobertos
de vampiros, de fadas e de monstros. Pistola, com a colaboração de Andrea Rauch,
extrai uma imagem coerente de um mundo fantástico e realiza um Pinóquio (1980)
totalmente pictural.
Christian Armengaud. Mori el Merma. Miró – Claca, uma estréia em Barcelona. Marionnettes. UNIMA‐
91
França, 1978, no. 61, p. 15.
94
FORMAS E ESTILOS
O sucesso de Pinóquio teve efeitos positivos sobre Baj, que se deixa então seduzir
pelas proposições de Massimo Schuster e confecciona, com peças mecânicas, os bonecos
de Ubu Rei (1984). Schuster, por seu lado, com a força de expressão que o caracteriza, dá
as réplicas dos personagens de Jarry deslocando, transportando ou batendo
violentamente peças mecânicas de todas as cores. Este sucesso garante a colaboração
entre os dois artistas. A Ilíada surge em 1988. Baj cria bonecos de madeira semelhantes a
simples brinquedos com traços aparentes segundo os diferentes personagens. Baj está
completamente encantado com a expressão dramática de Schuster e da visão clara que
ele tem dos temas escolhidos. É sem dúvida por essa razão que vai intitular suas notas
do relato dessa colaboração: “Eu, o Boneco”. Foi um episódio de sua vida artística que
ele aprecia particularmente. Gosto de fazer bonecos, escreve ele; é como fazer mundos e
representá‐los nos quadros. É como colocar neles personagens, esperando então que os quadros e
as figuras aí façam das suas, se mexam, se animem, falem, discutam, zombando e ridicularizando.
Eu gosto do boneco, porque pode ser feito de qualquer coisa, como uma colagem. Ou melhor, é
uma colagem de coisas, de histórias, de objetos e de homens. Porque quando Schuster empunha
esses pobres aqueanos, ele faz com que falem, sofram, divirtam‐se e gritem, esses pobres pedaços
de madeira, feitos para amar92.
Magritte e os surrealistas
Uma obra plástica pode também inspirar uma criação teatral sem a participação
do autor. Assim, o primeiro a adaptar a pintura de Magritte à cena foi Ray Nusselein,
de quem o Paraplyteatret, de Copenhaguen, apresenta no festival de Hvidovre, em 1987,
um espetáculo intitulado Le Ciel en Poche (O Céu no Bolso). A organização do espaço
cênico é aí muito importante. Constituída de um espaço livre em círculo reservado aos
espectadores, ele é limitado por divisórias de tecido, como uma tenda. Os atores
convidam docemente o público a penetrar nesse espaço. Enquanto isso, um harpista dá
um recital. O espetáculo propriamente dito começa no momento em que é descoberta a
cena (uma parte do tecido é erguido), que representa uma colagem surrealista, em três
dimensões, de quadros de Magritte. Pouco a pouco a realidade do teatro (o Homem, a
Harpista) penetram no mundo da colagem e certos elementos se deslocam na sala,
cercam o público, sugerem‐lhe associações de idéias. Os elementos mais importantes
são o céu e um pombo. O céu, saído de uma luva da Harpista, se desloca por todas as
paredes da construção. O pombo segue o céu, mas ele é estático, ele não voa, desliza,
não passa de um elemento da composição. O céu e o pombo são símbolos que se
mostram invasivos. Estão em todo lugar, oferecem novas perspectivas. Os personagens
em cena (o Homem, a Harpista) têm relações com esses elementos impessoais da
colagem a fim de suscitar novas imagens poéticas das quais nem sempre é possível
verbalizar o sentido. Essa tentativa de transpor as qualidades poéticas da pintura de
Magritte num espaço teatral de três dimensões é bem sucedida. O surrealismo das
imagens não choca; ao contrário, ele dá destaque a seu sentido poético.
92 Enrico Baj, Eu, o boneco. PUCK, 1989, no. 2, p. 62.
95
METAMORFOSES
Os criadores de Céu (1990), do teatro Taptoe de Gand, tentam extrair acentos
surrealistas, uma poética do sonho adormecido. Não é por acaso que o céu é o lugar, real ou
sonhado, da ação. O céu, as nuvens que atravessam livremente o quadro da janela, as rochas e os
pequenos objetos suspensos nos espaços celestes – desafiando todas as leis da gravidade, são o
principal leitmotiv da criação do artista. Os realizadores preenchem esse cenário de acessórios
absurdos: por uma janela do quarto celeste, percebemos um outro céu, maior, onde voam maçãs e
peixinhos, a porta está bloqueada por um armário sem fundo que fornece aos dois heróis objetos
que o doutor Freud em pessoa não teria desprezado analisar. O movimento cênico começa pelo
tremor de uma cortina sanfonada, pintada de azul céu com pequenas nuvens brancas como todo o
quarto. Tem‐se a impressão de que é o céu que lança profundos suspiros. Por trás do parapeito da
janela, descoberto por uma nuvem edredom se destaca um pente gigantesco, do tamanho de um
homem, que serve de escada a um senhor magro e longuilíneo usando um chapéu coco, com
bigodes também em forma de pente. Um senhor gordo e baixo chega num balão. O senhor magro
se diverte e limpa a casa, o pente tem várias funções: ora é um aeroplano, ora uma vassoura de
esfregar o parquê. Com a chegada de seus companheiros começa um jogo de espelho dos
personagens que se imitam uns aos outros. Logo o céu faz parte do jogo, fornecendo
indefinidamente novas visões e novos objetos a esses senhores de chapéu coco, como um guarda‐
chuva azul turquesa no qual chove93...
Nesse espetáculo, as idéias surrealistas fusionam sem atingir as de Magritte. Mas
a questão não é esta. O importante é que esse teatro toma emprestada sua linguagem à
arte pictural e tenta adaptá‐la a jogos no espaço. Uma maneira bem diferente
comparada à de utilizar as artes plásticas para fins cenográficos. Temos lá a interação
das estruturas dos meios de expressão das artes plásticas e da arte dramática. O boneco
permanece um ícone. Ele vive mais sua vida de material que a de significado, ao qual
deve servir.
Teatro visual
Quer sejam ação de cenógrafos ou inspirados pela arte pictural, os teatros e
espetáculos evocados acima permanecem no campo do teatro de bonecos. Consciente
de que o termo genérico boneco tinha então conotações desusadas, tenta‐se substituí‐lo
pelo termo figura. Procurava‐se também pelo lado do teatro de animação ou do teatro
da matéria. Mas foram bem raros os bonequeiros que desejaram sublinhar os elos de
seu teatro com as artes plásticas. O teatro alternativo Bama, de Jerusalém, que se define
como “teatro visual”, está entre essas exceções.
Saído diretamente do teatro de bonecos, fundado em 1980 por um grupo de
jovens artistas dirigido por Hadass Ophrat, ele traz primeiro o nome de The Train
Theatre. Ophrat não demora a se dar conta de que é necessário encontrar um novo
nome para o trabalho de seus bonequeiros. Ele propõe o nome de “teatro visual” que
93 Hanna Baltyin. Okno w niebie (Uma janela no céu). Teatr Lalek, no. 3, 1992, p. 6
96
FORMAS E ESTILOS
concebe como uma mistura das artes plásticas e da performance94. A atividade do grupo
reunido em torno do Train Theatre hoje se desenvolveu muito.
Ophrat dirige no momento o Conservatório do Teatro Visual e organiza bienais
internacionais de teatro em Jerusalém. Mario Kotliar, novo diretor do Teatro Bama,
como o relata Fa Chu Ebert, considera que: A arte dramática entrou numa etapa de
“composição aberta” onde a comunicação verbal perdeu sua supremacia e onde as concepções
realistas e psicológicas do teatro não bastam mais. O teatro se encontra assim submisso à
subjetividade dos espectadores que reagem sobretudo às imagens. O papel do ator perdeu sua
importância, e sua situação se reduziu a de um elemento da composição. Isto abre caminho a um
teatro visual que reúne vários meios de expressão e não é freado pelas categorias tradicionais
porque se volta para as artes plásticas, a poesia, a música e a dança. No drama convencional, o
espectador se encontra num mundo identificável e, mesmo se esse drama exprime uma
subjetividade, ele obedece a leis universais. No teatro visual, é a lógica “pessoal” que dá a lei,
repousando sobre as livres associações de idéias do artista. E o visual sempre suplanta o verbal.
As concepções do artista são às vezes de tal modo herméticas e subjetivas que podem ser
incompreensíveis. É um risco a correr95.
Esse teatro visual reúne artistas vindos de todos os horizontes, que se exprimem
cada um em sua língua. Entre estes criadores Marit Benisrael que trabalha sozinha,
apresenta trabalhos muito interessantes. Suas “miniaturas” respondem a todas as
condições de um teatro visual poético. Ah, se Apenas (Ach, if Only, 1990) é a obra mais
representativa de sua criação: Essa obra, inspirada em As Três Irmãs de Agnon, representa
os fantasmas de mulheres envelhecendo que ganham sua vida confeccionando vestidos de
casamento. O espetáculo é uma espécie de strip‐tease, onde uma atriz, à medida em que se despe,
revela as diferentes camadas de sua intimidade. Em certo momento, ela exibe um seio murcho que
ela abre por um fecho éclair e de onde tira os símbolos de suas frustrações adormecidas: uma
roupinha de criança, um pijama de boneca, etc. Esse espetáculo – de grande sensualidade tanto
pelo tema quanto pela material utilizado: a pele, os cabelos, o pain kacher ‐ contém o calor e o
sentido da vida. O conjunto, que compreende elementos do teatro de bonecos, da música, da
dança e dos diversos acessórios, apresenta associações de idéias muito pessoais que não são
desprovidas de humor nem de tragicidade. É difícil descrever esse espetáculo, tamanho é o
domínio da imaginação subjetiva. Se vai‐se assistir a uma obra de S. Y. Agnon, corre‐se o risco
de ficar decepcionado, porque,. de fato, o que se vê é Marit Benisrael. Mas esse seu universo
pessoal, de dor, de riso e de magia, ou seja, de teatro, vale a pena ser descoberto96.
Benisrael pratica a metáfora com muita liberdade. O seio feminino enquanto
veículo de frustrações recobre um campo muito amplo de associações de idéias. As
94 Hadass Ophrat. Puppet Theatre; Medium and Message (Teatro de bonecos; meio e mensagem). Ariel,
Jerusalém, 1987, no. 69, p. 44.
Fa Chu Ebert. Bama, Jerusalem’s Visual Theatre (Bama, o teatro visual de Jerusalém). Assaph, 1990, no. 6, p.
95
180.
96 Hadass Ophrat. Puppet Theatre; Medium and Message (Teatro de bonecos; meio e mensagem). Ariel,
Jerusalém, 1987, no. 69, p. 164.
97
METAMORFOSES
diferentes soluções trazidas são todas do mesmo gênero. As três irmãs são
representadas por uma mão (uma sinédoque), que se reflete em três espelhos (uma
metáfora). Esses meios que são também uma marca da engenhosidade e da
ingenuidade femininas, seriam um elemento de humor sem a mensagem trágica do
espetáculo. Classificar esse tipo de espetáculo no teatro visual implica, claro, numa
questão subjetiva. Esse espetáculo põe em evidência uma problemática feminina, que
na obra de Benisrael encontra uma expressão universal e oposta a nossa cultura,
dominada até o momento por uma mentalidade masculina.
Na Finlândia, surgem as mesmas preocupações. Algumas artistas exprimem com
a ajuda do boneco uma parte de sua vida íntima. Não há lá nenhum acaso, porque elas
podem desde então se apossar de meios de expressão poéticos como o testemunha a
obra de Kristina Hurmerinta, atriz e diretora do teatro Peukalopotti de Vaasa, fundado
em 1976. Ela começa com espetáculos para crianças onde o objeto substitui o boneco (A
Casa de Vidro da Infância, 1985), depois faz A Cena de Pandora associando‐se com Anna
Proszkowska, diretora e Eeva Siltavouri, pintora e poetisa. Todas as três criaram um
tríptico: A Divina Comédia seguindo uma ótica feminista na escolha dos acessórios (A
Ceia, 1986), na escolha dos disfarces (A Arena, 1987) e na escolha de uma situação de
espera como sujeito dramático (Ítaca, 1990). Essas três mulheres quiseram elevar suas
preocupações a um nível universal e humano, como observa Marjatta Ripsaluoma que
faz o prefácio do programa do tríptico: A cena de Pandora tentou tornar visível o que é
inconsciente em nós: o ideal, o sonho, o mistério, a inclinação para o maravilhoso. Para chegar a
isso, o teatro aplicou em seus espetáculos todo tipo de experiências no campo da cor, da forma, da
luz e da música, utilizadas como metáfora do mito arquétipo tão fortemente encravado em nossa
herança cultural ocidental. A cena de Pandora propôs sua interpretação do mito – cabe ao público
criar a sua a partir do que vê e entende.
O mito toma aqui uma nova cor e esses espetáculos se aproximam mais de uma
comunhão, uma partilha do próprio sofrimento do artista. Essas mulheres buscam
estabelecer um elo material com os espectadores para sugerir que suas experiências de
artistas podem também ser a do público e em particular a de Hurmerinta que descobre
no fim do espetáculo seu rosto de mulher.
Como classificar esses espetáculos? A história dos gêneros do espetáculo possui
termos como “cena muda”, “apresentação de mímica” ou “teatro poético” ainda
“exposição” ou “cena com acessórios”. Nada parece suficiente. Ficaremos com a
proposição de Ophrat, porque ela exprime o desejo de se liberar da literatura dramática
para dar livre espaço a todos os elementos da composição cênica. O teatro plástico é o
apogeu disso.
Interferências
As iniciativas de Baixas, Nusselein ou Neyrinck sublinham a contribuição de
artistas plásticos e a vontade dos bonequeiros de se reaproximar de outras disciplinas
artísticas. O tempo da especificidade do boneco estaria terminado? De fato, a autonomia
do boneco não é questionada, mas os meios visuais ou plásticos ganham em
importância sobre o aspecto “literário” do teatro. Ao reduzir o papel da literatura, o
98
FORMAS E ESTILOS
teatro de bonecos se reaproxima do teatro plástico, nas fronteiras do teatro de atores e
das artes plásticas. Ainda é muito cedo para falar de uma identificação total. Os dois
gêneros nasceram de princípios diferentes e numa época diferente. Quando falamos do
teatro de bonecos, privilegiamos o teatro e por consequência a noção de papel e de
personagem. Há apenas quinze anos atrás, o boneco podia ser considerado como um
sujeito cênico (ou pelos menos seu substituto). O teatro plástico partiu do princípio de
que todos os seus elementos são objetos submetidos à composição e o sentimento da
reificação do boneco parece cada vez mais impregnante no teatro de bonecos
contemporâneo. Ele permanece um signo de um personagem, e não é um elemento de
composição entre outros. Do mesmo modo, a despeito de seus inúmeros pontos comuns,
o teatro de bonecos que se orienta para as artes plásticas e o teatro estritamente plástico,
não têm a mesma origem. A evolução das artes plásticas e o aparecimento de novas
técnicas como a colagem, o meio ambiente, a reunião, os happenings, vão presidir ao
nascimento desse teatro. Nos anos 70, os fenômenos para‐teatrais como os happenings
foram pouco a pouco substituídos por um teatro plástico autônomo. Uma vez rompidas
as barreiras entre diferentes disciplinas artísticas, a assimilação e a interpretação desses
diferentes universos foram com frequência concebidos de maneira estrutural. A música
não bastava mais para exprimir as emoções dos heróis, os artistas de teatro como os
coreógrafos se inspiravam na estrutura das obras musicais para compor as sequências
de quadros cênicos. O teatro empregava os meios do teatro de bonecos, a pantomima,
meios plásticos artificiais e os músicos se interessavam pela ontologia do som. Tratava‐
se de uma enésima revolução da arte dramática.
Teatro de artistas
Artistas de disciplinas “não teatrais” fazem então sua entrada no teatro. Eles não
se inserem no mundo do boneco propriamente dito, mas utilizam na verdade
simulacros do homem (como o manequim ou outras apresentações icônicas). Estes
artistas plásticos buscam com freqüência respostas a questões fundamentais da arte
teatral, exprimindo seu ponto de vista sobre a vida e tratam às vezes de problemas
escatológicos. Esse foi o caso de Tadeusz Kantor.
Excelente pintor, ele pôs em aplicação sua concepção do teatro com o teatro
Cricot 2, que fundou em 1955 em Cracóvia com um grupo de amigos. Sua abordagem
do teatro evoluía constantemente. Cada comentário que Kantor fazia sobre seus
espetáculos tornava‐se um manifesto artístico. Ele fala, portanto, primeiro de teatro
autônomo, individual, de teatro “informal”, antes de praticar um teatro do impossível,
e enfim o “Teatro da Morte”. Essa última concepção foi a mais duradoura desde A
Classe Morta (Martwa Klasa) até o último espetáculo que preparou antes de sua morte
em 1992, Hoje é Meu Aniversário (Jutro Beda Moje Urodziny).
Quando Kantor se interroga sobre a interpenetração das diferentes disciplinas
artísticas (a música, as artes plásticas, a literatura), e fala de “realidade de nível inferior”,
ele não se refere ao teatro de bonecos. Ele o situa com freqüência entre o objeto e o
manequim que introduz na cena. A teoria de Marcel Duchamp, inventor do ready‐made
e do termo surrealista objeto encontrado, lhe basta. Ele transpõe esses termos ao espaço
99
METAMORFOSES
de seu teatro. Os objetos fazem parte da realidade, eles não vêm de um mundo de ficção,
não são criados para a ficção. Eles constituem a matéria do espetáculo que se torna uma
espécie de composição de objetos encontrados, de que o texto da peça e o ator fazem parte
integrante. Pode acontecer mesmo que este último seja objetivado pela anulação dos
sentimentos. Kantor representa aqui uma atitude própria a muitos artistas plásticos que
se interessaram pelo teatro. Basta lembrar a ambição que nutria Léger por reduzir o
papel do ator: Separar a sala da cena, fazer de modo que o indivíduo desapareça, mas utilizar
elementos humanos. Introduzir na cena a invenção. Aparecerá então um elemento humano, que
terá tanta significação quanto um objeto e os cenários97.
Segundo Kantor, o “ator vivo” se opõe ao manequim (e portanto à super‐
marionete). Ele escreve no Teatro da Morte: Eu não penso que um manequim (ou uma figura
de cera) possa substituir, como o queriam Kleist e Craig, ao ator vivo. Seria fácil e além do mais
ingênuo. Eu me esforço por determinar os motivos e a destinação dessa entidade insólita surgida
inopinadamente em meus pensamentos e em minhas idéias. Sua aparição se combina com esta
convicção cada vez mais forte em mim de que a vida só pode ser expressa na arte pela falta de vida
e o recurso à morte, por meio das aparências, da vacuidade, da ausência de qualquer mensagem.
Em meu teatro um manequim deve tornar‐se um modelo que encarna e transmite um profundo
sentimento da morte e da condição dos mortos – um modelo para o ator vivo98. Este “ator vivo”
é um elemento da realidade, é um ator que representa um personagem morto. Neste
sentido, é um manequim vivo, um engodo. Ele não deve ser um material responsável,
como o queria Craig: basta‐lhe ser, situar‐se entre a morte e a vida.
São inúmeros os espetáculos nos quais Kantor recorre a objetos e manequins. Só
há um onde estes últimos possuem os traços do boneco, ainda que Kantor pudesse
acreditar no contrário. Trata‐se de A Máquina do Amor e da Morte, apresentada na
Documenta de Kassel, em 1987. A Máquina do Amor e da Morte retoma A Morte de
Tintagiles, de Maeterlinck, espetáculo de bonecos montado por Kantor em sua
juventude e que continha, em germe, todas as suas máquinas e seus manequins. As três
Nornes a serviço da terrível Rainha são representadas sob forma de três autômatos
insensíveis, portadores de destruição. Na primeira parte de A Máquina de Amor e da
Morte, estamos no teatro de bonecos de Tadeusz Kantor, em 193799. Isso explicaria o
caráter “marionetizado” do espetáculo, ainda que tenhamos todas as razões para
duvidar que a essa data, Kantor tenha podido optar por uma manipulação à vista,
antecipando assim de uma vintena de anos a prática do teatro de bonecos profissional.
Por outro lado, esses animadores se comportam como os personagens de seus outros
espetáculos (Wielopole, Wielopole); um mundo de fracassados e de cômicos de chapéu
coco e roupas pretas. Os personagens de A Morte de Tintagiles são bonecos esqueléticos
97 Andrzej Matynia. Tradycja i filozofia dzialan plastycznich Leszka Madzika (Tradição e filosofia dos “jogos
plásticos” de Leszek Madzik) em: Teatr Bezslownej Prawdy (Teatro da verdade sem fala). Scena Plastyczne
Katolickiego Uniwersytetu Lubelskiego. Sob a redação de Wojciech Chudy, p. 53
Tadeusz Kantor. O Teatro da morte. Em: International Theatre Informations, Paris, hiver‐printemps 1976,
98
p. 10.
99 Franca Silvestri. Volta ao Teatro mecânico de bonecos.
100
FORMAS E ESTILOS
manipulados à vista (as irmãs do herói e o tutor deste, Agloval). Os servos da Rainha
são autômatos impassíveis. A Rainha, um ator sinistro vestido de preto. A diversidade
dos meios de expressão utilizados reaproxima esse espetáculo do teatro de bonecos
contemporâneo. Os bonecos‐esqueletos são manipulados à vista, os atores –animadores
lhes dão poses correspondendo ao texto dito em play‐back. O drama da ameaça, tal
como escrito por Maeterlinck, se realiza através do comportamento dos atores. Eles são
de início inconscientes do perigo que paira acima do menino e conservam seu bom
humor e sua alegria maníaca quando eles conseguem colocar convenientemente seus
bonecos. Mas pouco a pouco, eles pressentem o perigo, e seu terror se comunica então
aos espectadores. A convergência entre o animismo à distância praticado pelos
bonequeiros e a aproximação de Kantor parece evidente. A Morte de Tintagiles é o único
exemplo disso, e é praticamente certo que Kantor tinha um objetivo totalmente diverso
dos bonequeiros. A coincidência resta espantosa e merecia ser sublinhada.
Essa analogia leva a uma outra sobre a vida de certos objetos e manequins
animados pela memória e a lembrança. Nós vemos nossas lembranças vivas e as
acreditamos vivas. A diferença é tão fina entre acreditar e fazer crer. Os povos
primitivos tinham essa crença e é por esta mesma razão que o boneco fez parte do
mundo dos mortos (ao menos em certos mitos). Nesse contexto, Kantor ficou sem
dúvida mais perto do boneco do que o imaginava. Ele não pertence, no entanto, ao
mundo do teatro de bonecos e restringi‐lo exclusivamente ao mundo do teatro plástico
seria talvez abusivo, mesmo se a crítica o define como artista plástico do teatro ou o
criador de um teatro plástico.
Leszek Madzik, que dirige a Cena Plástica da Universidade Católica de Lublin
desde 1970, é um outro testemunho desta via aberta para o teatro plástico. Ele inicia sua
carreira como cenógrafo. Os cenários, concebidos como um espaço plástico, servem de
ponto de partida para imagens sugestivas, formando‐se segundo uma ordem temática e
atingindo um alto grau de abstração. Ele renuncia quase totalmente aos atores
tradicionais. Se há presença do homem, em geral é para jogar o papel de uma “imagem
de homem” mais do que o de uma personagem. Esses quadros são seu principal meio
de expressão. Eles se compõem, com uma grande precisão, de humanos, de manequins,
de personagens – meio‐figurinhas, meio‐bonecos – e de todo tipo de materiais que os
membros do grupo, dissimulados nas coxias, manipulam com muita habilidade.
Os primeiros espetáculos de Madzik, como Ecce Homo e Ícaro, têm referências
culturais e mitológicas evidentes. Eles permitiram considerar a Cena Plástica como um
teatro de bonecos de meios de expressão variados onde a distribuição dos papéis e a
criação de metáforas servem para desenvolver harmoniosamente a simbólica geral do
espetáculo. O espetáculo é uma sucessão de imagens sem comentários: O vôo de Ícaro
para o sol (longa corrida de um ator sem máscara) sua queda e seu encontro com a terra. Em
seguida, aparece a doença de Ícaro (um ator com máscara). Ícaro é condenado à cadeira de rodas,
se debate com sua poltrona, com enormes bonecos que dão voltas em torno dele, tenta se
comunicar com seu entorno, rompe o isolamento provocado pelo sofrimento e a enfermidade; ser
liberado para o amor, ter a visão da Morte, do Julgamento, da Justiça, do Bem, do Mal, e enfim
arrojar‐se sobre um público de manequins todos semelhantes e sentados em praticáveis – como se
101
METAMORFOSES
eles fossem seu reflexo num espelho. Para encerrar o espetáculo, a morte de Ícaro. Ele cai de sua
cadeira de rodas numa estreita passagem entre a sala e seu reflexo100.
Nos espetáculos seguintes, ele aborda temas universais, que fazem abstração do
contexto cultural e histórico. O artista obriga o espectador a renunciar à busca das
referências culturais, e o empurra para uma reaproximação com a natureza e a biologia
humana. Acuado pela crítica, sem ter elaborado uma teoria de sua prática, ele define
seu processo de criação como um pensamento por imagens. Entretanto, sua atividade é
bastante próxima da do teatro de bonecos. Sua poética e seus meios de expressão têm
fontes teóricas comuns às do boneco: Não é o desejo de eliminar o homem, escreve ele em
1983, que faz com que o papel do ator, depois o do objeto concreto, sejam reduzidos em meus
espetáculos. Eu tenho talvez a mesma obsessão de Gordon Craig, que consagrou uma boa parte de
seus esforços criadores e teóricos a aliviar o herói (o ator) de uma corporeidade que esmaga o
drama por sua excessiva riqueza de concretude e tira ao sujeito seu caráter geral, entretanto tão
indispensável ao teatro.101
O teatro de Madzik como o de Kantor tiveram uma influência considerável sobre
o teatro contemporâneo, onde os meios plásticos estão o serviço de um conteúdo
filosófico e escatológico. Poder‐se‐ia mesmo falar de uma escola polonesa do teatro
plástico se se toma em consideração as concepções de Szajna, Grzegorzewski e
Wisniewski.
Entre as novas orientações, é preciso ainda evocar uma nova geração de artistas
plásticos que afirma ambições teatrais. Ela é representada por Andrzej Woron que
dirige desde 1990 o Kreaturentheater de Berlim. Duas encenações atraíram nossa
atenção: O Fim do Asilo Noturno (Das Ende des Armenhauses), baseado em Isaak Babel, e
As Lojas de Canela (Sklepy Cynamonowe), baseado em Bruno Schulz. Woron expõe na cena
um panorama do gênero humano representado por atores‐bonecos, manequins,
bonecos e uma espécie de criaturas híbridas que Kantor com certeza qualificaria de
“bio‐máquinas”.
Woron parte da percepção fragmentada da realidade que, segundo ele,
condiciona a fragmentação dos espetáculos artísticos que as capacidades limitadas de
nossa memória confirmam. O inconsciente, é pois, nossa única chance de fazer
funcionar nossa imaginação. Eis aqui uma nova oportunidade para o teatro e o teatro
visual. Woron está apaixonado pelas oposições, levadas às vezes ao extremo. Ele rejeita
a imagem do homem belo e bem cuidado. A verdade é muito diferente: todos os seres
humanos são criaturas e se ele utiliza bonecos, não é no mesmo espírito dos
bonequeiros: Nossa atividade, diz ele, não tem nada a ver com o teatro de bonecos. O teatro de
bonecos talvez seja formidável, mas para mim é utilizar uma matéria inerte a partir de um
princípio visual. Conosco é diferente. Eu utilizo o ator enquanto organismo vivo, e portanto
enquanto ser humano. A reaproximação do homem‐ator, de seu talento e de sua sensibilidade com
100 Anna Maria Klimanlanka. Parma 95. Scena, 1976, no. 3.
Leszek Madzik. Mysle abrazami (Eu penso por imagens). Em: Teatro da verdade sem palavras (Teatr
101
bezslownej prawdy) op. cit. p. 101.
102
FORMAS E ESTILOS
a matéria inerte me proporciona um terceiro tipo de ator. E é este ator que nós buscamos em
nosso teatro102. O teatro plástico de Woron se inscreve, de fato, na esfera do teatro de
bonecos de meios de expressão variados, sem que nosso artista tenha, visivelmente,
conhecimento de todas as suas extensões. O teatro de bonecos de meios de expressão
variados, sendo o resultado da convergência de diferentes correntes artísticas, de que o
boneco e as artes plásticas são os pontos de partida, é bastante provável que eles
possam se reencontrar um dia, sem nenhum preconceito, mesmo se eles persistem hoje.
Teatro plástico
É devido a sua ligação com a plástica e aos restos de uma intriga, uma história às
vezes linear, que o teatro plástico traz este nome. Basta que o artista beba numa outra
tradição para que esses meios sirvam a outros fins. Na Suíça, os Mummenschanz
(mummen = jogo de dados ou de cartas, e Schanz, simplesmente a sorte) compostos de
Bernie Schurch e Andres Bossard, desviam esses meios plásticos para outros horizontes,
menos estruturados e menos filosóficos. A prática do grupo se situa entre pantomima,
teatro de objetos e teatro plástico. Bossard e Schurch se interessaram pela pantomima e
fizeram cursos na Escola Jacques Lecoq (Paris), onde conheceram Florianna Frassetto
vinda dos Estados Unidos.
Seu primeiro espetáculo, no final dos anos 60, tem por título À Frente e Perdido
(Verlor und Vorher), e foi depois rebatizado de Jogo de Louco e de Máscara. Os bonecos são
para eles um meio de enriquecer os meios da pantomima. É a partir dos elementos
plásticos da roupa dos personagens que eles evoluem para uma nova estética da
mímica. No início, essas roupas eram cubos de polietireno de onde saíam as cabeças e
as mãos dos atores. As esquetes solicitam astuciosamente a colaboração do público ao
lhe propor, por exemplo, enrolar para o lado direito todos os rolos de papel higiênicos
embrulhado ao contrário. Os Mummenschanz aperfeiçoaram seu programa ao utilizar
máscaras abstratas ou personagens com cabeças “objetivadas”, depois máscaras do
corpo inteiro, utilizando grandes formas plásticas. Os espectadores ficaram surpresos
pelos materiais – almofadas, cadernetas, papel higiênico ‐, que compunham
personagens e representavam com um humor não desprovido de uma certa poesia.
“Blod”, um de seus números é descrito assim: ... uma bola muito mole repousa no chão,
começa a se animar, choca‐se com a ponta do praticável que está na cena. Ela tateia o intruso,
depois resolve escalá‐lo, parte ao ataque, se agarra, sofre, sobe, sim, ela chega, não, ela perde o
equilíbrio, se recupera, sim, não, aah, num último suspense, ela se estabiliza no alto. Ela triunfa.
E o espectador solta o braço da poltrona. Em alguns minutos, essa massa informe semelhante a
nada exprimiu a surpresa, a curiosidade, o espanto, a coragem, o desencorajamento, o intenso
esforço, o medo, a vitória.
Para alguns espectadores esta será a história de um troço‐que‐quer‐subir‐numa‐coisa.
Mas é também a descoberta do mundo. É o homenzinho que se ergue sobre seus dois pés pela
primeira vez, assim como um tratado de darwinismo – um protozoário no caminho inelutável da
Kristiane Balsevicius. Schnsucht nacht einer anderenRealität ( A nostalgia por uma outra realidade).
102
Puppentheater Information, no. 66, p. 22.
103
METAMORFOSES
evolução, a função vai criar o órgão. É ainda, porque não, um condensado de dramaturgia. Todas
as histórias do mundo, ou quase, da Odisséia a Dallas, via Commedia dell’arte, seguem este
esquema: o herói encontra um obstáculo imprevisto, luta, ganha, final feliz. Com variantes
evidentemente, o pobre plancton não pode fazer tudo103.
Ainda estamos no mundo do boneco? Sim, se nos referimos à prática de algumas
outras companhias! Os personagens dos Mummenschanz são proteiformes e fabricados
com todo tipo de material. Os tubos de plástico que serviram para a criação do
Prematuro (Slinky) conheceram um sucesso importante. Um cano e um balão formam
uma espécie de grande inseto. Quando a bola desaparece a boca do cano se transforma em
corneta ou numa cabeça que examina atentamente o público. Há o polvo, um robô de espuma, e
um “colchão revoltado” (com mãozinhas alcochoadas), que briga com o seu dormidor, a cabeça
em forma de travesseiro. As idéias dos Mummenschanz contêm sempre uma mensagem, mesmo
se esta resta oculta; uma sátira social, por exemplo, uma crítica das relações afetivas que entretêm
os americanos com os objetos que utilizam e jogam fora sem se ter ligado a eles, ou ainda, uma
sátira política em germe...” como o diz Frasseto, que evoca essa possibilidade nos
personagens de cabeças objetivadas104. Os Mummenschanz preferem deixar o público
decifrar o conteúdo de suas esquetes. É importante para eles revelar o caminho e a
linguagem dos objetos e obrigá‐los a falar a sua maneira, se possível com humor.
Comparado ao boneco, o universo dos meios plásticos parece ter também a
mesma vastidão. Podemos associá‐los às técnicas da dança ou da projeção de imagens,
seguir certos conceitos do Bauhaus com a intenção de desenvolvê‐los ou praticar a
colagem com ajuda do laser. Em meio a essa diversidade de tendências, a Companhia
Jean‐Paul Cealis ocupa um lugar específico. Cealis se lança num teatro de união das
artes plásticas, da música e da dança e põe em cena, nos anos 80, Jardim à Francesa e
Senha; uma composição de jogos plásticos que consistem em realizar objetos (na
verdade construções de madeira) engenhosos, muito funcionais, que não têm nenhuma
relação com a vida cotidiana. Seu objetivo é estar presente em cena, eles são, pois, como
um gesto do artista que propõe aos espectadores participar do processo da criação
cênica. A riqueza das possibilidades técnicas pontuadas por um senso absoluto de
humor e a música composta e tocada pelo grupo (sons de objetos, play‐back, voz) dão
seu ritmo ao jogo dos atores. As possibilidades técnicas que oferecem os objetos e sua
aptidão á composição plástica são o tema. É, pois, uma experiência teatral que faz uso
da natureza das estruturas plásticas: Se existe uma escrita ‐ diz Mustapha Aouar –, ela se
situa na relação do homem com seu instrumento. A plástica do gesto é condicionada pelo objeto
manipulado. Não se trata para ele de interpretar ou de transmitir ao objeto emoções. Ele faz
questão de ficar numa atitude neutra, evitando destacar sua destreza, para não cair no número de
circo. Mas no correr das apresentações, ele não pode evitar que um certo arredondamento no
gesto se instale, unicamente pelo prazer de ser visto, e pela facilidade que se adquire para
103 Michel Bührer. Mummenschanz. Edições Pierre‐Marcel Favre, Lausanne, 1984, p. 26.
104 Ibidem, p. 123
104
FORMAS E ESTILOS
manipular os ditos objetos. Entretanto, ele consegue deter‐se numa imbricação de dois elementos
formados pelo instrumento e o homem. Assim, somente as curvas traçadas no espaço marcarão as
memórias. 105 A arte plástica atravessa um longo caminho que a leva da figuração à
abstração; uma abstração pictural, gestual e cênica em Jean‐Paul Cealis.
Como a arte do boneco vai digerir essa última proposição? Os artistas que
exprimem suas emoções através dos meios de expressão impessoais não podem evitar
entrar em contato com o boneco. A estética e o valor antropológico desse sem dúvida
não têm mais muito interesse para alguns deles que ao invés dele vão preferir figuras
de cera, manequins, autômatos ou imagens. Os bonequeiros contemporâneos podem
considerar o teatro plástico106 como um gênero similar, que efetua experiência com um
ator desumanizado e se opõe ao teatro literário. A partir de então o homem está em
questão, torna‐se a temática essencial enquanto que as pesquisas formais tendem
inexoravelmente para a abstração. O homem é um parceiro poderoso demais – podendo
devorar o boneco e lhe impor suas vontades. Entrementes, todos os países do mundo
abriram suas portas ao teatro visual. Os bonequeiros que fizeram a volta ao mundo com
seus programas de cabaré ou de variedades sabem muito bem disso. Entretanto, não
gostaria de me levantar contra o visual, quer seja no teatro em geral ou no teatro
plástico em particular. Se temos a impressão de que o visual nos priva parcialmente dos
valores intelectuais, aceito de boa vontade que o teatro tenha sempre feito parte das
artes “olhadas”. E se os diferentes elementos que formam o teatro se organizam de uma
nova maneira, (menos falas, mais imagens ou vice‐versa‐ ao gosto do artista) no
processo das metamorfoses da arte, deduzo simplesmente que artistas com uma outra
sensibilidade, possuindo uma outra visão da realidade se apropriam do teatro. Não será
este o sinal de uma interpretação otimista?
Do objeto à matéria
Reflexo do homem, o boneco é um corpo material que traz em si uma marca, a da
idéia de um objeto. De modo que ainda que todos os bonecos desaparecessem do
mundo inteiro, nossa consciência continuaria guardando em si esta marca da idéia do
objeto, ao menos por um certo tempo. A idéia do boneco pertence à humanidade e cada
um de nós poderia fabricar um ou mesmo utilizá‐lo num espetáculo. O boneco está aqui
e acolá, conosco. Já vimos que vários artistas, no entanto, o vêm abandonando
progressivamente. Enquanto ator artificial, o boneco nos mostrou o caminho em direção
a seus substitutos: o mundo artificial dos objetos, com a esperança de que o homem
possa fazê‐los falar. Para mim é difícil dizer quais motivos conduziram ao
estilhaçamento do teatro de objetos. Do ponto de vista do teatro de bonecos, o
esgotamento do boneco, enquanto sujeito cênico, foi uma das causas mais importantes.
Na verdade, o teatro de objetos se desenvolveu espontaneamente. Num primeiro
105 Mustapha Aouar. Um artista plástico, Jean‐Paul Cealis. Marionettes UNIMA‐França, no. 17‐18, p. 74.
Erik Kolár. Das Puppentheater, eine Form der bildenden Kunst oder der Theaterkunst? (O teatro de bonecos é
106
uma arte plástica ou uma arte teatral?) .In: Puppentheater der \Welt. Zeitgenossisches Puppenspiel in Wort
und Bild. Henschelverlag, Berlim, 1965, p. 34‐35.
105
METAMORFOSES
Maurice Rheims,La Vie étrange des Objets. Plon, Paris, 1959. Jean Baudrillard,Lçe Système des objets.Paris,
107
1968.
106
FORMAS E ESTILOS
107
METAMORFOSES
Philippe Genty
A evolução da arte de Philippe Genty, em seu primeiro período, é bastante
esclarecedora com respeito a essa passagem do teatro de marionetes ao teatro de objetos.
Genty começa sua carreira nos anos 60, com uma viagem de estudos pelo mundo que
lhe faz descobrir a arte do boneco em todas as latitudes. Influenciado pela tradição do
cabaré de bonecos, ele aprecia os esquetes curtos que compõem os programas de Music‐
Hall (Olympia ou Casino de Paris). Entre seus maiores sucessos da época figura o
melancólico Pierrot a que já me referi. Les Autruches (As Avestruzes) é um outro número
célebre utilizando a técnica do “teatro negro”. Um grupo de avestruzes dança
acompanhada por uma música de Tchaikovski. Uma delas perde suas calças, suscitando
a curiosidade de suas vizinhas que continuam a dançar. Aquela, para grande surpresa
de suas vizinhas, põe um ovo quadrado, o que é uma atração suplementar. A
simplicidade do tema é compensada pela acentuação das reações das avestruzes, nas
quais o público reencontra suas próprias reações: incômodo, curiosidade, sentimento de
superioridade, vergonha... Reatando com a tradição dos espetáculos alegóricos com
animais, Genty faz nascer como por encanto um universo teatral próprio, onde os
pequenos problemas são resolvidos com humor.
Após seu sucesso com bonecos clássicos, Genty lança‐se nas experiências que o
conduzem ao teatro da matéria. Em Rond comme un Cube (Redondo como um Cubo), ele
faz uso de um tecido, em que os atores se dissimulam atrás ou dentro compondo a seu
gosto. Este tecido se metamorfoseia em personagem de uma ou duas cabeças (cabeças
de boneco), tomando dimensões e formas as mais variadas, ocupando às vezes mesmo
toda a cena. Além disso, a iluminação por baixo do tecido oferece novos recursos. Ele
representa um grande lago onde brincam flora e fauna, dentro ou fora da água.
Múltiplas metamorfoses fazem aparecer todo tipo de personagens, até que se destacam
duas personagens bicéfalas (cada uma delas é dirigida por dois animadores escondidos
atrás), que saltam sobre a cena dançando e mudando de forma. A vida da matéria
torna‐se então o tema dos espetáculos de Genty. Seu teatro assume assim uma nova
orientação artística que se sobressai na utilização de matérias, de atores e de dançarinos
a serviço de uma mensagem visual coerente.
Por trás desse humor de cabaré abriga‐se, ao que parece, um credo artístico,
talvez uma filosofia que se manifesta claramente nos espetáculos seguintes: Désir Parade,
Dérives e Ne m’Oublie Pas, que Genty evoca com frequência durante suas entrevistas: O
que me apaixona cada vez mais é a questão do homem em conflito consigo mesmo, a confrontação
entre a coisa animada e o que a anima, quando o personagem torna‐se ora um espelho, ora
diretamente o objeto do conflito e que ele exprime o interior e o exterior do ator. É fascinante.
Perturbador também. Porque isso chama ao animismo que cada um traz em si – manipulador ou
espectador. A muralha do consciente é abalada, mergulhamos nas angústias e nos fantasmas. Na
mesma tensão, o mesmo combate entre o homem e o boneco. Na mesma relação de
enfeitiçamento.108
108 Didier Méreuze. Philippe Genty. Théâtre de la Ville, temporada 91‐92, p. 4
108
FORMAS E ESTILOS
Genty está convencido de que para o artista o mundo material é uma fonte de
inspiração tão rica quanto a natureza: seu encontro com o oceano e o choque provocado
por sua descoberta do deserto modelaram sua imaginação e sopraram‐lhe que um
objeto, um material, um tecido, bem utilizados, podiam igualmente tornar‐se uma fonte
de atração e guiar suas pesquisas artísticas: Nosso trabalho a partir do material (o termo
material devendo ser tomado em seu sentido amplo: formas realistas, abstratas ou matérias
brutas) é uma fonte constante de descobertas e de renovação, mas também de frustrações porque a
matéria tem seu próprio discurso, às vezes em contradição com o caminho da encenação.
Qualquer volume traz em si uma dinâmica que lhe é própria e que difere segundo a natureza do
material. É preciso então ficar totalmente disponível para a escuta, mas quanta frustração para o
autor. Entretanto, embora sabendo disso, a cada criação caio de novo na armadilha, encontro‐me
fascinado pela forma que se desprende da matéria, impõe seu caráter, se desenvolve, se expande,
evolui, depois se sufoca, se esgota, para atingir seu declínio. Durante esse tempo ela produziu
outras formas que, por sua vez, propõem outras direções de pesquisa109.
A matéria é, pois, um “texto do possível e do limite”, que abriga novas
possibilidades. Certos artistas mostram‐se prontos a se tornarem escravos do objeto
para evitarem sê‐lo da palavra. Eles, aliás, estão conscientes disso. Genty pensa ganhar
assim sua liberdade, já que o objeto e a matéria são mais aptos do que a palavra para
transmitir símbolos suscetíveis de todas as interpretações possíveis110.
Florilégio de teatro de objetos
Nesse espírito, inúmeras companhias de teatro de objetos se distinguem desde os
anos 80 nos festivais internacionais. Elas são principalmente italianas (Teatro delle
Briciole, Alessandro Libertini, Assondelli e Stecchettoni, Hugo e Ines), e francesas
(Manarf, le Vélo Théâtre e le Théâtre de Cuisine). Christian Carrignon e Cathy Devillle,
fundadores do Théâtre de Cuisine, não escondem que seu teatro não tem nada a ver
com o teatro de bonecos e que eles absolutamente não conhecem o universo dos
bonequeiros 111 . Ele define o teatro de objetos como sendo o resultado da relação
existente entre os olhos, as mãos, as coisas e a energia pessoal que nisso se coloca.
Designa, pois, um papel particular ao ator e precisa que é formidável controlar as
emoções com uma chave de fenda112. Journal de Voyage (Diário de Viagem) conta as
experiências da vida corrente ilustradas por objetos com os quais Carrignon se diverte
como com brinquedos. As metáforas visuais se sucedem. O herói (um homem) encontra
um amigo, uma pequena figura que traz apertado junto ao corpo um globo terrestre. Ele
põe seu amigo no bolso, o globo em sua mochila e, equipado de amizade e de sonhos,
toma o caminho. Outro exemplo: uma cena de escalada do mobiliário de um
apartamento. Quando a figurinha cai da parede rochosa formada pelo encosto de uma
109 Philippe Genty.La Compagnie Philippe Genty. Actualité de la scénographie, 1987, no. 31, p. 98.
110 Jean‐Loup Temporal interroga Philippe Genty. UNIMA‐França, 1983, no. 81, p.7.
111 Théâtre d’objets: L’objet même du théâtre. Marionnettes, 1985, no. 7, p.45.
112 Ibidem,p. 44.
109
METAMORFOSES
cadeira, ela mergulha num abismo correspondente a sua altura. Reencontramos aí a
mudança de perspectiva das Viagens de Gulliver. Há a imaginação do autor e a
ingenuidade da criança.
Manarf construiu seu renome com o espetáculo Intime, Intime (Íntimo, Íntimo)
que nada mais é do que uma nova interpretação de Chapeuzinho Vermelho. O
fundador da companhia, Jacques Templereau, joga o papel do clown Giglo que conta
esta história clássica numa cozinha, verdadeiro cafarnaum. Chapeuzinho Vermelho é
representada por uma maçã verde, o Lobo por uma verdadeira cabeça de bacalhau de
dentes poderosos, a Avó por uma cozida. Templereau utiliza objetos‐personagens e
outros acessórios em situações incomuns que suscitam todo tipo de associação de
idéias113.
O fato de poder criar novas conotações e suscitar metáforas torna esse teatro de
objetos muito atraente. Charlot Lemoine e Tania Castings, que criaram o Vélo Théâtre,
formularam assim as razões que os levaram a escolher o teatro de objetos: Os objetos,
mostrados e manipulados, tomam uma significação particular e tornam‐se uma espécie de
linguagem. Tanto para o espectador como para o ator, aqui se esconde o caminho que leva à
imaginação das pessoas, compreendida em qualquer língua e em qualquer cultura114.
Aos objetos comuns, que, de fato, utilizam raramente, eles preferem brinquedos
ou miniaturas da realidade. Assim em Appel d’Air (Pedido de Ar), o Menino (um ator)
vive em sonho suas experiências e suas quimeras cotidianas. Ele está cercado de
imagens de arranha‐céus de cimento de onde só é possível escapar de avião. O Menino
alimenta os aviões como se alimentasse pombos, amarga metáfora das necessidades
atávicas do ser humano. Um poeta pode exprimir seu talento em qualquer tipo de
teatro e sobretudo no teatro de objetos.
A colaboração entre duas companhias de teatro, o Théâtre Écarlate e Nada
Théâtre, leva à criação de um espetáculo onde o lugar cênico, mais do que os próprios
objetos, diz respeito ao teatro de objetos. Em Grandir (Crescer), três atores estão frente a
uma grande mesa com várias gavetas. Eles contam sua vida servindo‐se de pele de
camurça. Estes três personagens são seu alter ego e fazem desfilar seus vida sem sair do
lugar. A mesa asssume uma função simbólica enquanto mundo cheio de furos (gavetas)
para dissimular surpresas e acontecimentos inesperados. As gavetas fornecem aos
atores cenários, símbolos dos lugares da ação, sob forma de pedras, areia, folhas, água,
uma série de elementos de paisagens que jogam um papel ativo. O efeito é dos mais
teatrais, essa dupla visão desses símbolos, às vezes pegando o espectador de surpresa
em função de seus aspectos físicos e autênticos. A originalidade do espetáculo se
manifestava pela técnica de substituição dos cenários, efetuada segundo as mesmas
regras que a dos personagens pelos objetos.
113 Isabelle Hervouet, Le Théâtre d’objets,Mémoire. E.S.N.ªM. Charleville‐Mézières, 1989.
Penny Francis. Velo theatre.. Drama made of things. (Vélo Théâtre. O teatro feito de objetos). Animations,
114
1989, no. 4, p. 79.
110
FORMAS E ESTILOS
Assim, os objetos (em tamanho natural, miniatura ou sinédoque) ora são ícones
representando o mundo dos objetos, isto é nossa realidade imediata, ora os veículos de
significações novas dadas pelo artista. O objeto pode também jogar os dois papéis,
como os guarda‐chuvas de Joly e a maçã verde no papel de Chapeuzinho Vermelho do
Théâtre Manarf. Gyulio Molnar segue o mesmo caminho com um programa miniatura
intitulado Les Petits Suicides (Os Pequenos Suicidas). Sentado a uma mesa, ele apresenta
pequenas histórias, fábulas, com objetos dos quais conserva seus traços característicos.
Em La Tragédie de l’Aspirine (A Tragédia da Aspirina), ele encena um grupo de balas
(caramelos) que brincam em cima da mesa como crianças. A aspirina gostaria muito de
se juntar a elas, mas as balas a rejeitam. Ela então se disfarça de bala, mas é
desmascarada. Desesperada, vencida por sua solidão, ela salta num copo de água e se
dissolve fazendo dezenas de bolhinhas. Se essa historinha evoca o universo infantil e os
problemas que encontram as crianças, o suicídio da aspirina obedece as propriedade
naturais do medicamento. Assim, o jogo com o objeto se realiza em espaços cênicos
muito diferentes; desde pequenos esquetes como La Tragédie de l’Aspirine a espetáculos
mais elaborados como Grandir.
Teatro de projeção
À luz dos exemplos citados, fica evidente que o teatro de objetos, que utiliza
objetos do cotidiano, objetos fabricados, os ready‐made ou objetos amorfos que jogam o
papel de personagens virtuais, mesmo de personagens dramáticos, impõe novas tarefas
ao animador ou a seu parceiro, em geral visíveis para o espectador. Roger‐Daniel
Bensky tem uma outra visão deste teatro. Ele desenvolve a idéia de “projeção” que
justifica a atitude do ator em relação ao boneco e ao objeto num processo de criação
teatral. Segundo ele, essa atitude é a mesma tanto em relação ao boneco como quanto ao
objeto: O jogo com o objeto, que na realidade é um solilóquio quando se produz fora de um
espaço cênico, só visa a vencer simbolicamente o que surge como a indiferença ou a passividade
do outro, por uma projeção sobre o objeto de conflitos subjetivos. Na ausência de um público, o
personagem dramático desaparece, para ceder lugar ao mito pessoal. A plasticidade do objeto
torna‐se o meio de “teatralizar” o pensamento. Este “joga” seus conflitos materializando‐os sobre
o objeto. Visto desse ângulo, compreende‐se que o teatro de bonecos tenha podido desencadear,
por uma relação de parentesco, uma reflexão sobre o objeto que ultrapassa o teatro propriamente
dito. Tendo abolido a visão dramática que lhe propunha o espetáculo teatral, a imaginação é a
partir daí livre para se projetar sem entrave algum sobre a matéria e torná‐la eloqüente115.
Se o princípio da projeção artística é respeitado, seu desenvolvimento é,
entretanto, muito mais complexo. Cada boneco (teatral) possui em si mesmo um
programa de jogo, constituído por sua expressão plástica, sua construção e suas
capacidades de animação. Para realizar esse programa, o bonequeiro deve obedecer ao
boneco, como se vê nas relações que existem entre a boneca “mágica” e seu animador.
O bonequeiro está a serviço do boneco, o que quer dizer que ele lhe permite realizar seu
programa definido, desde o momento em que lhe é dada a vida. Os críticos italianos
115 Roger‐Daniel Bensky. Pesquisas sobre as estruturas da simbólica da marionete ª G. Nizet, Paris, 1971, p. 110..
111
METAMORFOSES
Pietro Bellasi e Pina Lalli, abordam o teatro de bonecos por um outro viés. Ele
representa para eles um conjunto de signos dinâmicos, testemunha da cultura
contemporânea, e servem ao processo de comunicação: Em todo caso, o teatro de objetos
deve ser considerado como uma tentativa de estudar (num plano panorâmico e interno) um
labirinto de signos e de formas de caráter social. Parece que esse terreno arqueológico oferece a
possibilidade de compreender a dinâmica social do mito, do rito, das diferenças, das metáforas. O
quadro complexo do mundo contemporâneo poderia ser representado em toda sua polifonia: antes
de tudo numa “polifonia cultural”, na qual se escondem as modulações de um discurso ao mesmo
tempo subjetivo e coletivo, psicológico e social, antropológico e histórico.116
Essa visão não teve continuidade, e deu‐se o mesmo caso com o Teatro das
Coisas (Thing Theatre), proposto por Dennis Silk, poeta israelense e teórico do teatro de
bonecos. Seu objetivo foi o de pôr em evidência a fraqueza do ator dramático que
perdeu a força das coisas, força disseminada nas dezenas de emoções pessoais inseridas
em seus papéis. De onde a idéia de criar um teatro das coisas que concentre com força e
talento a expressão dramática. Craig propunha ao ator aprender a gestualidade
estilizada do boneco, Silk aconselha ao mesmo ator ir se formar nas grandes lojas. Não é
pura provocação, porque ele revela pouco a pouco suas preferências amadurecidas por
sua experiência do teatro de bonecos e do teatro plástico. Elas vão em direção ao objeto,
a máscara (a concentração do olhar), o boneco e as partes objetivadas do corpo humano.
Uma verdadeira escola de atores deveria ter aulas onde o ator vivo e a escova de sapatos fizessem
seus estudos juntos. O ator vivo imitaria a força de expressão de alguma maneira mascarada da
escova de sapatos, e a escova a dinâmica e a diversidade do ator pessoal. E um verdadeiro teatro
deveria oscilar entre a vitalidade de uma vida pessoal e a letargia da vida das coisas. A saúde, no
teatro tanto quanto na vida, é um equilíbrio entre esses dois extremos.117
As proposições de Silk são bastante precisas: ele imagina mesmo inventar uma
linguagem dos objetos, mas só um artista que pusesse sua teoria do teatro de coisas em
prática poderia confirmar o seu bom fundamento. Em sua obra dramática, Silk ateve‐se
apenas ao mundo dos homens e dos bonecos. A teoria do teatro de coisas não passa
então de pura fantasia de poeta?
De minha parte, constato que o objeto não é portador de nenhum programa de
jogo teatral, mas dotado de um programa utilitário. O bonequeiro rejeita este programa
e inventa, para o objeto, um programa de atuação em função de sua imaginação. Não é
o bonequeiro que está a serviço do objeto, mas o contrário. Esta é, entre outras, a razão
porque a maior parte dos bonequeiros contemporâneos têm objetivado seus bonecos,
rejeitando o que restava de sua força mágica. Eles fizeram deles instrumentos dóceis
respondendo aos élans criadores do artista. O boneco viu suas funções culturais
evoluírem; o objeto viu suas funções utilitárias rejeitadas para substituí‐las por funções
teatrais.
Pietro Bellasi e Pina Llali. Gli esploratori dell’imaginario (Os exploradores do imaginário). In: Recitare com gli
116
oggetti. Microteatro e vitta quotidiana. Cappelli, Bologne, 1987, p. 9.
117 Dennis Silk.When We Dead Awaken. Animations, 1989, no. 4, p. 83.
112
FORMAS E ESTILOS
Essa distinção entre boneco e objeto não encontra unanimidade. Influenciado por
Francis Ponge (La Rage de l’Expression (A Raiva da Expressão), Gérard Lepinois pensa que
o mundo dos objetos forma um todo e conserva sua característica principal, sejam quais
forem a forma e as funções que tomem esses objetos: Nós estamos nos antípodas da
expressão, em todo caso, direta dela, do antropomorfismo mais ou menos pessoal. Ora, face a seus
bonecos ou objetos ou figuras, a alternativa do bonequeiro é a mesma. Ou ele terá a facilidade, a
complacência da humanidade indolente, de os antropomorfizar, seja na sua aparência, em sua
manipulação ou por seu tipo de jogo ou ausência de jogo, se ele é à vista, ou ele aproveitará a lição
de Ponge e inverterá o problema: ele enriquecerá o espetáculo, e a si mesmo, passando realmente
por seus objetos, não para fazer o elogio do inumano – objeto, animal ou deus ‐, mas para ter uma
chance de ampliar as fronteiras do que Ponge chama o “espírito humano118”.
Nesse caso, quem organiza a expressão dos objetos em cena? É o animador, o
narrador ou um performer (um ator) que também joga o papel de testemunha dos
acontecimentos? Enquanto tal, ele deve atestar de sua autenticidade por suas próprias
reações, provar que todos os acontecimentos que se produzem no mundo dos objetos
arbitrariamente reunidos suscitam nele verdadeiras emoções profundas. O jogo dos
objetos distingue esse teatro dos outros teatros, mas põe de novo também em causa o
bem fundado de seu nome. Os Teatros de Cozinha tentam nos persuadir de que a
projeção da ação se faz pela intermediação do ator que continua sendo ele mesmo: No
teatro de objeto, o ator jamais entra na pele de personagens. Eles são eles mesmos em cena,
desenvolvem certas particularidades de sua personalidade, mas jamais a serviço, por exemplo, de
um texto. Jacques Templereau fazendo Chapeuzinho Vermelho permanece Jacques Templereau119.
Será o jogo do ator “no meio” de objetos e não “com” objetos que constitui a
natureza do teatro de objetos? Só a fé intensa e manifesta do ator nos acontecimentos
que se desenvolvem, pode nos convencer de que sobre a cena se passam coisas
importantes? O jogo do ator repousa essencialmente sobre a sugestão e a concentração.
É por essa razão que aprecio particularmente esta história citada por Isabelle Hervouet
a respeito do teatro de objetos: Um Marajá, precisando escolher seu ministro, anunciou que
ficaria com o homem que fosse capaz de dar a volta na cidade caminhando encima de suas
muralhas e levando na mão um copo cheio de leite sem derramar uma única gota. Inúmeros
candidatos tentaram, mas assustados ou distraídos pelos gritos lançados a sua volta, derramaram
o leite. “Estes, disse o Marajá, não serão meus ministros.” Chegou um homem a quem nenhum
grito, nenhuma ameaça, nenhuma distração pode fazer levantar os olhos que ele mantinha fixos
na beira do copo.
“Fogo!” ordenou o comandante das tropas.
Ele não se mexeu.
“Este é um verdadeiro ministro!” disse o maharadjah. ʺVocê não ouviu os gritos?”
peguntou‐lhe depois.
Gérad Lepinois, Intervenção no Encontro Internacional dos críticos de teatro. Instituto Internacional da
118
Marionete, Charleville‐Mézières, setembro de 1988.
119 Teatro de objeto: o objeto mesmo do teatro. Marionnettes, 1985, mno. 7, p. 44
113
METAMORFOSES
“Não”.
“Você ouviu os tiros?”
“Não, eu olhava o leite”.120
Concentrar‐se sobre o objeto e fazer crer aos espectadores na vida dos objetos é
uma nova tarefa para um ator de teatro. A força de sua atitude e de seus
comprometimentos condiciona a ilusão de lhes dar vida. Tal o bonequeiro que dá vida
ao boneco por meio da manipulação, o ator jogando com objetos os faz viver mas,
atenção, por meios intermediários, pela projeção de sua crença na vida do objeto e pela
atenção do espectador. É uma atitude comparável ao animismo, entretanto ligeiramente
diferente. O animismo é um ato de crença inscrito no texto do espetáculo. A ação de um
ator com objetos se destina intimamente aos espectadores, num élan comum, creio
comigo. Por esta razão este ator me parece ser mais próximo do xamã ou do charlatão
do que do homem de teatro.
Teatro da matéria
O teatro de objetos fez uma irrupção retumbante nos anos 80, parecendo às vezes
ameaçar a existência das outras formas de teatro de bonecos. Hoje, a onda de interesse
pelo teatro de objetos caiu um pouco, mas ele não deixa de ser um gênero importante e
mesmo rival dos outros gêneros de “teatro impessoal”. Seu primo próximo, o “teatro da
matéria” de nome talvez menos conhecido, possui já um certo renome e uma teoria,
posta em prática pelos bonequeiros alemães. Nós a devemos a Werner Knoedgen,
bonequeiro e educador, que publicou em 1990, Le Théâtre Impossible. Phénoménologie du
Théâtre de Figure121. Uma obra na qual ele tenta definir o lugar do teatro de bonecos entre
os gêneros vizinhos e definir as características desta forma derivada que é o “teatro de
figuras” e, sobretudo, o “teatro material”.
O que é o teatro de figuras? O “teatro de figuras” é caracterizado por sua
similitude com o “teatro material” (Materielles Theater), que compreende várias
variantes. A primeira variante é um teatro fundado sobre uma matéria informe (que
toma forma durante o espetáculo); o verdadeiro “teatro da matéria” (Materialtheater)
faz parte disso. Segunda variante: os teatros que se apóiam sobre um material de forma
definida, como o teatro de objetos, o teatro de máscaras, o teatro de bonecos moderno
ou o teatro a partir de elementos do corpo humano (das mãos, por exemplo). A tarefa
do teatro de figuras (portanto do Darsteller) é de criar um papel. Knoedgen, com toda
lógica, evita o termo de “personagem” que ele substitui por este termo formal de
“papel”. Seja lá como for, criar um papel, no teatro de figuras, não é a mesma coisa que
no teatro dramático: Devido ao fato de que ele sugere a vida nas coisas privadas de vida, devido
ao fato de que ele representa o ativo em ajuda a uma coisa passiva, o ator do teatro de figuras se
120 Isabelle Hervouet. O teatro de objetos. Mémoire. E.S.N.ªM. Cahrleville‐Mézières, 1989.
Werner Knoedgen. Das Unmögliche Theater. ZurPhänomenologie des Figurentheaters (O Teatro impossível.
121
A respeito da fenomenologia do teatro de figuras). Verlag Urchhaus Johannes M. Mayer, Stuttgart, 1990.
114
FORMAS E ESTILOS
distingue do ator dramático. Ele transfere, com efeito, seu papel a um objeto material e toma
assim suas distâncias com relação a esse papel, como se ele pudesse negar a si mesmo embora
sabendo que esse objeto‐papel jamais poderá substituí‐lo, a ele, isto é, ao único sujeito‐
manipulador presente: ele resta um meio de expressão objetivado, um simples instrumento de seu
espetáculo 122.
Essa análise poderia se aplicar a todas as variantes do teatro material, mas a
distinção entre o objeto (o material) e o sujeito (o ator animador) não é tão simples como
parece. Acontece com freqüência que objeto e sujeito estejam igualmente presentes num
papel e que não se possa distingui‐los claramente (por exemplo, quando o ator
empresta ao equivalente material do papel suas próprias mímicas). Knoedgen se
interroga sobre os inúmeros aspectos do trabalho com o material, seja ele trabalhado ou
bruto. É interessante ver que a despeito da originalidade de sua teoria do jogo em “seu”
teatro material, encontramos aí observações feitas em trabalhos anteriores sobre os
bonecos. Assim, ele chama “dualidade do teatro” (Doppelung des Theaters), a
“opalinização” do boneco ou a “visão dupla” do teatro de bonecos, isto é, o jogo
permanente de elementos de ficção e de elementos extraídos da realidade. No teatro
material, o ator não saberia se identificar com seu papel, como no teatro de atores. A
imagem representada nesse teatro é composta de dois elementos, o que incita Knoedgen
a tirar a seguinte conclusão: Dado que a imagem no teatro de figuras é dividida, o sujeito
cênico pode escolher livremente aparecer num papel ou fora do papel. Entretanto, é verdade que a
imagem é contraditória, e que esta formidável liberdade pode ser percebida como sendo ao mesmo
tempo funcional e criadora, este teatro de figuras à retroação permite aos espectadores
participarem de um ato de criação formidável: o comportamento do ator se transforma em
matéria, a matéria começa a agir. Os objetos tornam‐se atores. Aquele que atua e seu papel, o
sujeito e o objeto, constituem a síntese suprema, dialética, de um espetáculo comum123.
Os detalhes fornecidos devem seu sabor ao trabalho de Knoedgen. É um dos
raros livros que tenta esboçar de uma maneira nova e numa linguagem nova, um
quadro do teatro saído do boneco tradicional. Os fenômenos artísticos que aborda são
tão ricos que sua descrição é mais complexa do que lhe pede a autópsia. O rigor
intelectual da teoria de Knoedgen é colocado em prática por um círculo de artistas
restrito (e essencialmente pela escola do teatro de figuras de Stuttgart). Ao se agarrar ao
conceito de papel, limita‐se a universalidade da teoria de Knoedgen sem, entretanto,
diminuir o alcance enquanto sistema para descrever as orientações do teatro
“impessoal”.
O rigor da poética desse prático e teórico que é Knoedgen pode nos servir de
baliza. Entretanto a criação artística, como vimos, escapa facilmente a todas as regras e
Werner Knoedgen. Das Unmögliche Theater. ZurPhänomenologie des Figurentheaters (O Teatro impossível.
122
A respeito da fenomenologia do teatro de figuras). Verlag Urchhaus Johannes M. Mayer, Stuttgart, 1990, p. 19.
123
Werner Knoedgen. Das Unmögliche Theater. ZurPhänomenologie des Figurentheaters (O Teatro impossível. A
respeito da fenomenologia do teatro de figuras). Verlag Urchhaus Johannes M. Mayer, Stuttgart, 1990, p.109
115
METAMORFOSES
aparece com freqüência como expontânea, inesperada e quase fácil. Bem no início de
sua carreira, o grande bonequeiro Feike Boschma, foi tentado por diferentes materiais
que ele transformava em “bonecos” conservando ainda seu caráter material. Por ocasião
de seu aniversário de 75 anos ele revelou seus segredos: Às vezes, enquanto eu caminhava
pela rua, meu olhar se fixava numa peça de tecido ou num xale, numa vitrine ou num carro de
um vendedor, que me excitava enormemente. Sem saber ainda o que eu faria disso, eu sentia a
necessidade de adquiri‐lo. Quando voltava para casa, começava um processo estranho: eu
improvisava diante do espelho sem nenhuma idéia particular. Eu estabelecia, entretanto, em que
lugar eu deveria tomar o pano para descobrir uma forma interessante levando em conta a cor e o
movimento. As coisas começavam então a ganhar forma. Eu colocava o tecido embaixo e prendia
a ele alguns fios de linha para lhe dar uma forma correspondente à imagem improvisada. Aqui e
ali eu acrescentava alguns arames para ter a possibilidade de mover o tecido. Assim nasciam
certas relações entre formas pré‐estabelecidas ou nascidas do movimento.124
Depois ele buscava um tema. Uma escolha ditada pelo material posto em cena
pelo bonequeiro e guiada por suas intuições e suas capacidades. Tudo terminava pela
representação de um papel onde a parte do acaso era muito importante. Este acaso não
corresponde exatamente ao intelectualismo da teoria de Knoedgen.
É importante se perguntar se essa teoria descreve a realidade do teatro de figuras,
do teatro da matéria, ou se ela é o seu programa. Seria uma resposta às interrogações
inquietas que nos colocamos então sobre o sentido da prática do teatro de bonecos e do
teatro impessoal em geral? Knoedgen estabelece uma classificação de todas as correntes
inovadoras e tenta situá‐las segundo as convenções clássicas do teatro. A intenção é
nobre se se admite que o artista e o espectador de hoje se sentem solidários dessa
terminologia. Mas, quer a teoria de Knoedgen seja ou não um programa, é preciso levar
em conta a prática teatral. E, nessa prática, existe um lugar para o teatro da matéria?
Sim, e os antigos alunos da escola de Stuttgart, como Sigrun Kilger ou Hartmut Liebsch,
empregam cada vez com mais freqüência o termo de teatro da matéria e aplicam‐lhe as
regras com sucesso, como em La Ballade des Pendus (A Balada dos Enforcados), segundo
Villon. Sózinhos, os espetáculos da escola de Stuttgart dão a melhor garantia de seu
futuro.
O exemplo citado abaixo é importante porque foi escolhido pelos criadores da
escola Albrecht Roser e Werner Knoedgen: No meio da peça, vê‐se no chão duas escadas de
cabeça para baixo. Elas estão cobertas pelo tecido. Aparece então uma forma que se pode tomar
por um barco. Sobre este barco se encontram agora personagens que se escondem sob um tecido.
O tecido é então como um manto de neve que recobre uma paisagem com personagens. E este
grande manto muda de significação a cada vez que um personagem se manifesta embaixo e lhe dá
uma nova forma. Cada modificação fecha um campo de imagens e abre um novo. A sucessão das
imagens faz nascer nos espectadores associações de idéias muito fortes. Por essa razão, a palavra é
124
Feike Boschma. Uber Marionetten (Sobre a marionete). Traduzido do holandês ao alemão por Cilli Wang
Osterreichische Puppespiel‐Journalette “Opus” 1996, No. 48, p. 9.
116
FORMAS E ESTILOS
totalmente deixada de lado. É portanto uma peça sem palavras. Só existem tons, murmúrios. No
início, uma orquestra toca uma música mecânica que evoca a produção de uma usina. Depois se
utilizam ruídos de tecido originais – pode‐se dizer assim – enquanto fonte de linguagem. As
coisas começam a falar, elas ganham uma linguagem acústica própria.125
Nós encontramos aqui a prática do teatro contemporâneo (não apenas a do teatro
da matéria), que ao modificar o papel dos acessórios e dos objetos, transforma sua
significação primeira. Mas o que no teatro dramático não passa de um elemento de uma
gama de jogo mais extensa, constitui aqui a matéria de todas as ações. A concentração
da expressão e da forma dota o teatro de um novo traço característico. O tempo nos dirá
se os postulados de Knoedgen têm mais futuro que as experiências do teatro plástico e
do teatro da matéria que nós já conhecemos. Ele ainda tem uma relação com o teatro de
bonecos, suas tradições e sua história? Garante a sua continuidade? O teatro de bonecos
não é, ao contrário, uma das aspirações seculares do homem de encontrar uma maneira
de substituir o teatro de rosto humano?
Sob diversas formas, em particular na performance, chegou a se utilizar o corpo
humano enquanto material como os Acionistas de Viena tais como Gunther Brus,
Rudolf Schwarzkloger e Hermann Nitsch 126 . Assim, além da invasão em cena dos
objetos da vida cotidiana, assiste‐se a uma reificação do corpo humano. Entre os
bonequeiros contemporâneos, Hugo e Inês, uma companhia de pantomima, faz um
enorme sucesso com as mãos, pés, cabeças e joelhos que cenicamente têm vida própria.
Os personagens principais de Un Jour, Les Mains (Um Dia, As Mãos) espetáculo
apresentado pela Companhia Pascal Sanvic dispõem da mesma autonomia. Do mesmo
modo, na Polônia, o diretor Krzysztof Rauy, apresenta em seu Teatro Trzy Czwarte (Os
Três‐Quartos) de Zusno o espetáculo Jan, Jean, Giovanni, John, Ivan... (1995), no qual
utiliza mãos como material para criar personagens dramáticos. A novidade repousava
no fato de que elas não eram personagens, mas serviam de matéria bruta. Os
personagens são assim criados a partir de várias mãos; os rostos evocam os retratos
alegóricos de Archimboldo, chegando a sugerir palavras e cantos. Os espectadores
ficaram mais impressionados por essa nova matéria, essa evocação teatral da vida
humana do nascimento à velhice, do que pelos personagens que as mãos buscavam
imitar.
O boneco cristaliza o desejo do homem de encontrar um substituto artificial para
o ator, talvez um substituto para o homem. A humanidade se contentou durante
séculos em criar golems, andróides, autômatos, robôs e todo tipo de bonecos. Mas hoje,
e é isto que faz a originalidade de nossa época, descobrimos que elementos da realidade,
125 Eine neue Aesthetik des Figurentheaters. Gespräch anläslich des Figurentheater‐Festivals in Ljubljana,
Jugoslavien, mit Albrecht Roser und Werner Knoedgen (A nova estética do teatro de figuras. Conversa entre
Albrecht Roser e Werner Knoedgen por ocasião de um Festival do teatro de figuras em Ljubljana, Yugoslávia) .
Bühnenkunst, 1988, no. 2, p. 81‐82.
Peter Simhandl, Bildtheater. Bildende Kunstler des 20 . Jahrhunderts als Theaterreformer (O teatro de
126
Imagens. Os artistas plásticos do século XX reformadores do teatro). Gadegast, Berlim, 1993.
117
METAMORFOSES
objetos e mesmo corpos humanos reificados podem nos servir de intermediários,
significantes ou não, para descrever, apreender e refletir o mundo.
118
V - SOCIEDADE
Mudar o estilo do teatro de bonecos corresponde mais ao desejo de modernizá‐lo
do que à vontade de reagir à certas situações sociais. Já empobrecido durante seu
período itinerante ao curso dos séculos XVIII e XIX, não há outra preocupação, um
século depois, que a de conquistar um status artístico. Além do mais, os adultos
tomaram o lugar das crianças nas salas, e os bonecos são obrigados a responder à
demanda de três públicos: as crianças e seus pais, os responsáveis pela educação,
representantes frequentemente das instituições, e o público adulto, supostamente
conhecedor do valor artístico do boneco.
Quando têm um suporte oficial, os bonecos cooperam com o sistema educativo e
são pressionados a aceitar a ideologia, o que pouco apreciam. Um marionetista que
atua para crianças, consciente da importância de sua missão, compõe ele mesmo seu
programa artístico e educativo. Quase todos os marionetistas declaram seu
compromisso com este senso. Leokadia Serafinowicz e Wojciech Wieczorkiewicz,
diretores do Teatro de Marionetes Marcinek de Poznan, assumiram, nos anos 60‐70, a
idéia de um teatro cognitivo e provocante. Tido o pesar do espectador, nós assumimos o
dever de sensibilizá‐lo aos problemas da vida contemporânea. Sem negar‐lhe o direito de rir e de
se divertir, tampouco de se emocionar, nós queremos confrontá‐lo com diferentes problemas e
obrigá‐lo a assumir uma posição. Nós queremos dizer‐lhe a verdade sobre a complexidade do
mundo e a necessidade de fazer escolhas. Esta é nossa necessidade de realismo. Não escondemos
nossas próprias idéias, mas utilizamos habitualmente insinuações. Para nós, a verdade que se
descobre sozinho tem mais valor que a verdade dada127.
Esta atitude tem pelo menos duas funções: ela define a posição ideológica do
teatro e delimita um campo de pesquisa artística. Na Polônia, é necessário esperar os
anos 60 para que as autoridades aceitem o programa sem nenhuma intervenção. O
mesmo aconteceu nos outros países socialistas. Os teatros voltaram‐se em seguida para
‘valores humanos’, diferentes da ideologia totalitária, imposta ao teatro da Alemanha
Oriental e na Rússia. O teatro de alusão política, realmente de oposição – a palavras
cobertas‐ e de contestação apareceu lá, mas sua linguagem continuaria metafórica e
deixaria de lado o estilo do teatro oficial.
Teatro de contestação
A contestação se exprime pela escolha do repertório. No teatro infantil, as
adaptações do folclore desenvolvem o sentimento nacional e têm uma função política e
cultural. O folclore não suscita nenhuma reserva já que a doutrina leninista concilia um
lugar priviliegiado à cultura popular. Ao contrário, trabalhar com os autores proibidos
(como Mrozek e Beckett no Teatro de Marionetes de Budapeste), expõe os teatros à
censura. A pressão desta varia conforme o país, a data de instauração do regime
127 Programa do Festival internacional de teatro de marionetes, Varsóvia, 16‐26 de junho de 1962.
119
METAMORFOSES
comunista e a tradição local: se os teatros de marionetes poloneses e húngaros podiam
montar as peças de Brecht nos anos 60, os teatros russos só o fizeram dez anos mais
tarde. Os teatros do Leste alemão só se interessaram por ele no final dos anos 70,
quando a moda do dramaturgo já havia passado a algum tempo.
Nos países socialistas, como a Polônia, o poder controlava a evolução da arte
através de estruturas administrativas e uma parte da crítica não negligenciava o teatro
de marionetes. Os Aborrecimentos de Guignol, de Jan Wilkowski, criado na época de
Khrouchtchev, foi uma denúncia de todas as formas de exploração, inclusive as do
poder socialista, e isso é um segredo de Polichinelo. Alguns anos depois esta peça
tornou‐se ideologicamente perigosa, conforme um crítico de Torun, em 1965: «Guignol
parece dirigido contra o poder burguês, mas nós temos hoje a impressão de que ele se eleva
contra todas as formas de poder ». O Teatro Drak escolheu temas emprestados do teatro
russo para falar dos problemas da Tchecoslováquia contemporânea. Daí nasceu a
metáfora da sede de liberdade, Enfin, Unicum (1978) e a análise da sociedade cativa
através da adaptação de Dragon de Evguenii Schwartz, O Canto da Vida (1985). A
maneira como estes espetáculos foram administrados no leste e no oeste é reveladora.
No leste, o sucesso de um espetáculo é medido pela liberdade de expressão, fortemente
discutida pela censura ou pelo comitê do partido comunista. O Canto da Vida é, portanto,
considerado como o resultado de um compromisso. Ainda que no oeste a crítica evoque
a resistência dos artistas em interpretar os espetáculos – foi o caso deste espetáculo –
como uma manifestação de oposição.
No oeste poucos teatros de bonecos abordaram os problemas da sociedade e as
questões políticas. Pelo que se sabe, a participação do teatro de marionetes no Maio de
68 nunca foi confirmada128. Os programas satíricos de televisão, como The Bebette Show
ou Spiting Image, servem tanto à crítica como à popularidade dos homens políticos e dos
artistas que são seus objetos. Os bonequeiros, preocupados com sua sobrevivência,
raramente procuravam seu público nos grupos contestatórios. Um estudo sobre a
responsabilidade da crítica e de sua influência sobre a vida cultural e sobre o teatro de
bonecos, tudo, como os meandros de intenções e significações ocultas que o público e
algumas vezes os cúmplices do poder descobriam nos espetáculos, merece, alhures,
uma análise mais profunda.
Os bonequeiros podiam, em um contexto de liberdade, mostrar‐se sensíveis à
situação política. Em Estocolmo, Michael Meschke marcou seu comprometimento desde
a criação de Ubu Rei, em 1964. Este espetáculo, dentro de uma social‐democracia como a
da Suécia, pode ser outra coisa que não um comentário filosófico sobre a tirania? Dentro
de um país totalitário, a peça poderia ter um impacto político, mas alguns recusaram
seguir Meschke, outros o convidaram depois. A história da criação política apresenta
mais um paradoxo. As peças revolucionárias não traduziam necessariamente a
expressão de um compromisso como o conta Meschke com preplexidade: Nós montamos
da mesma maneira A Morte de Danton, em 1971. Em nosso espírito, era nossa maneira de
Julia Bloch‐Frey, As marionetes e a contestação social em: Cultures, volume II, n.3, 1975, Théâtre et
128
artisanats contemporaines, Presses de l’Unesco et de la Bâconnière, UNESCO, 1975, p.58.
120
SOCIEDADE
contribuir para o debate sobre a revolução, que naqueles anos atingiu seu ápice. Nós dizíamos
que a revolução era tanta que ela assegurava o restabelecimento da sociedade. Na peça de
Buchner sobre a revolução francesa, os objetivos da revolução e a justificação da violência são
postas em dúvida: Danton, racionalista que ama a vida, foi vencido pelo reino de terror de
Robespièrre, que abriu o caminho para o fascismo de Napoleão. Na atmosfera carregada dos anos
70, quando apareceu o terrorismo, representar este drama no teatro com a sombra e o pó sobre a
figura parecia deslocado. Nossa realidade cotidiana devia ser retratada. Havia, portanto, melhor
lugar que o Parlamento sueco, cena da ação da verdadeira vida política? Nós o pudemos realizar
porque o prédio estava provisoriamente fechado para trabalhos129.
O lugar é muito bem pensado. Os espectadores ficavam muito impressionados,
ao deixar o Parlamento, em ver a guilhotina chegando a ser utilizada.
Os protestos dos intelectuais liberais são ʺbelosʺ demais para serem verdadeiros?
É possível fazer um teatro de contestação? É este o verdadeiro teatro? E qual é a força
da contestação se ela é um jogo? Peter Schuman dá uma resposta. Aquele que deseja
protestar contra a injustiça levanta e cria. A revolta deve ser espontânea. Ela não é boa como
profissão. Um espetáculo contestatório mesmo que bem montado não provoca mais que risos. É
uma catástrofe130.
Evidentemente, Meschke não pratica a contestação profissional e alimenta nobres
intenções com seu engajamento. No entanto, a observação de Schuman leva a pensar
sobre a parábola bíblica do rico e da cabeça da agulha. O profissional do teatro perdeu a
virgindade, que é a condição sine qua non do contestador. Neste período, o apolitismo
da maioria dos marionetistas inquieta certos artistas e espectadores do teatro de
bonecos como Michel Poletti, que declarou em 1971: Guignol pertence ao século XIX. Ele
abriu uma via que nem aqueles que crêem ser seus herdeiros, nem os novos marionetistas
seguiram. A marionete deveria fazer mais que Guignol, ela não faz nem tanto quanto. Ela perdeu,
tecnicamente falando, sua violência. Socialmente, a coragem da subversão. Ela tornou‐se um
produto de consumo, mesmo que seus criadores creiam agir dentro da gratuidade do rosa e do
lenga‐lenga. Ou para tornar‐se mais que uma batata finamente decorada, a marionete deveria
começar por seguir o exemplo de Guignol. Ela poderia em seguida preocupar‐se com a estética, o
humor, ou a metafísica. Não há teatro “mignon” que seja uma arte131.
Poletti pesquisa um teatro total com as marionetes e figuras de todos tipos,
manipuladas ou acionadas por mecanismos; os dispositivos, as técnicas de iluminação
modernas com seus tubos stroboscópicos, o cinema, uma música pop ensurdecedora,
geralmente composta por Corry Knobel. Seus bonecos são geralmente feios,
freqüentemente plásticos, de cores desagradáveis. Suas qualidades reais não aparecem
senão no curso da ação. Barthélémy (1970) dá uma perfeita imagem de seu estilo: um
herói assiste a diversos episódios sangrentos da História, tanto como ator quanto como
Michael Meschke, Em busca de uma estética da marionete (À la recherche d’une esthétique de la marionnette).
129
Indira Gandhi National Centre for the arts & Sterling Publishers Private ltd, Nova Déli, 1992, p.116.
130 Stefan Brecht. Peter Schuman’s Bread and Puppet Theatre. The Drama Review, n.14/3, 1970, p.64.
131 Michel Poletti. <Guignol est mort. Vive Guignol!>. Puppenspiel und Puppenspieler, n.2, 1971, p.32‐33.
121
METAMORFOSES
observador. Aparecem sobre a cena, atores e bonecos, gravuras do passado (em
diapositivo), documentos apresentados com uma ironia mordaz e um humor que choca
a sensibilidade e a imaginação do espectador. ʺA noite de São Bartolomeu de 1572 conta a
vida à 12.000 pessoasʺ, declaram os autores do espetáculo, antes de convidar os
espectadores a procurar analogias com o mundo contemporâneo132.
A crítica e teórica do teatro para crianças, Melchior Schedler atribui‐se ao teatro
de marionetes moderno e sobretudo à sua interpretação educativa pelas mesmas razões.
Ele denuncia violentamente a recuperação dos heróis populares como Hanswurst ou
Kasperle. Estes personagens têm representado sempre o cidadão comum, opondo‐se às
classes dominantes. Com o conde Pocci, a sociedade burguesa tinha tentado recuperar
Kasperle de seus fins ideológicos. Na Alemanha, as ambições de Max Jacob,
marionetista do entre‐guerras, pregavam, no lugar da revolta, a aceitação e a auto‐
satisfação. Depois de Schedler, esta atitude correponde à espera dos movimentos de
jovens fascistas, e determina, na Alemanha, o primitivismo educativo do teatro de
marionetes e seu apolitismo. Que Kasper seja fascista é evidente, escreve ele. É o ʺferreiro
das almasʺ que ʺmostra às pessoas a importância da comunidadeʺ, uma super‐figura no sentido
pedagógico, sobre quem podemos dizer ʺeu gostaria de ser como eleʺ. Por outro lado, nós já
atingimos este ideal, que é uma projeção interior de sua imagem. Ou, para retomar a idéia de
Albert Drach: ʺela representa o que desejamos serʺ. Poderíamos colocar estas palavras como
explicação de toda a história de Kasperle depois Pocci. Uma vez privado das particularidades de
sua classe social e arrancado de seu meio, ele perdeu sua humanidade vibrante e imobilizou‐se,
homúnculo vagando livremente, portador de uma mensagem educativa ou responsável pela
expressão da opinião da maioria silenciosa133.
Recoing, na mesma época, sonha com uma marionete «arte da revanche, arte da
vingança». Ele conhece suas tradições, suas capacidades expressivas e trata da
atualidade, dos problemas da imigração operária, por exemplo, em Les Contes de ma
Charrette. Consciente dos perigos do conformismo e interrogado em 1979 por Yvon
Davis sobre o radicalismo possível dos bonecos, ele respondeu: ... a marionete é uma arte
da vingança. Ela é capaz, com os meios primitivos, de afirmar uma enorme superioridade.
Antoine Vitez diz substancialmente que seria insuportável que um ator arrancasse em cena,
diante do público, as asas de uma borboleta; ao contrário, se é uma marionete que corta a cabeça
de uma outra, seria irresistível e completamente justificado! A marionete representa uma
metáfora possível da vingança do homem contra as forças que o oprimem.|...| o teatro de
marionetes deve voltar a ser um teatro de classe, o que ele finalmente sempre fora. O que ele tem
de triste, é que nos países onde retomou sua vocação de teatro de classe, ele tornou‐se um teatro
conformista. Na França, felizmente, podemos ainda fazer um teatro irritante para os poderosos134.
Ursula Bissegger, Puppentheater in der Schweiz (O Teatro de bonecos na Suíça). Éditions Theaterkultur,
132
Zurique, 1978, p.237.
Melchior Echedler, Shlachtet die blauen Elefanten! Bemerkungen über das Kinderstück (Matamos os elefantes
133
azuis! Observações sobre as peças para crianças). Beltz Verlag, Weinheim und Basel, 1973, p.166.
La marionnette: un art de la vengeance (A marionete: uma arte da vingança). Entrevista com Alain Recoing.
134
Théâtre public, novembro‐dezembro 1979, p.27.
122
SOCIEDADE
Teatro pobre
ʺTeatro contestadorʺ e ʺteatro irritanteʺ se opõem, pois eles não têm nem o
mesmo contexto nem os mesmos objetivos. Nessa situação, a chegada de Peter Schuman
e da trupe americana do Bread and Puppets Theatre na Europa, em 1968, foi um
verdadeiro evento. Françoise Kourilsky 135 consagra uma obra à historia deste teatro
contestador tornado tão célebre. Depois de estudos artísticos na Alemanha, Schuman
parte nos anos 60 para os Estados Unidos, com sua esposa Elke, onde desenvolve pouco
a pouco sua atividade de marionetista. Em um primeiro momento instintivamente,
depois conscientemente, ele se situa fora do Teatro e lá permanece. É a partir daí que
sua resplandecência se espalha sobre seus vizinhos de rua, e sobre o mundo inteiro.
Tendo assim o prazer de fazer a festa, sem remorso nem características de uma
civilização sempre pressionada, não faz do teatro mais uma comunidade sem dinheiro,
mais preocupado em se divertir e em fazer pequenos trabalhos que em fazer arte.
Schumann ensaia todas as formas espetaculares, vinculando‐se às verdades primeiras:
os espetáculos com bonecos de pequeno tamanho, chegando a uma forma de teatro
íntimo; os espetáculos de rua com marionetes gigantes, renovando com os desfiles de
carnaval e os mistérios. Seus primeiros espetáculos têm como tema as dificuldades da
vida cotidiana. Os seguintes abordam os problemas morais de nossa época, que o
conduz à política. Então foi notada a força de seus espetáculos, que associam a
simplicidade do julgamento moral à simplicidade dos meios, nas fronteiras na arte naif.
O Bread and Puppets Theatre foi sensação na Europa, em parte porque utiliza
temas míticos que todo mundo conhece, e em outra porque estabelece uma real
comunhão com o público. Schuman volta‐se para as fontes do teatro, da cultura
humana e dos problemas sociais; ele renova a forma teatral, a relação com o público e
encaminha‐se na direção de uma forma ritual. Dessa forma, ele constrói um forno para
fazer ele mesmo seu pão e dividí‐lo com os espectadores no fim do espetáculo e
organiza os desfiles de rua para todos os participantes que desejam reunir‐se com os
ʺPuppetsʺ, com os bonecos ou com as máscaras, a pé ou sobre as pernas de pau. Ela
organiza igualmente os encontros anuais com o público, em Glover, em sua fazenda em
Vermont, para improvisações teatrais.
Em 1964, ele inaugura seu programa através de uma célebre declaração: ʺDo pão
e das Marionetesʺ: É um pedaço de pão que nós vos damos ao mesmo tempo que um espetáculo
de marionete porque pão e nosso teatro vêm juntos. Há muito tempo a arte e o estômago foram
separados. O teatro era um divertimento. O divertimento pela epiderme, o pão pelo estômago. Os
antigos ritos do pão, o cozimento, o consumo, a oferenda do pão foram esquecidos. O pão se
decompôs, ele virou mingau. Nós queríamos que vocês retirassem seus calçados quando viessem
ver as marionetes, ou então nós desejávamos abençoar‐vos com um arco. O pão os lembra o
sacramento do alimento. Nós queremos que vocês compreendam que o teatro não é uma forma
estabelecida, que não é um lugar de comércio como vocês pensam, o lugar onde se paga e se recebe
qualquer coisa. O teatro é outra coisa. Ele tem mais de pão, ele é mais um desejo. O teatro é uma
135 Françoise Kourilsky, Le Bread and Puppet Theatre (O Teatro Bread and Puppet). La cite, Lausanne, 1971.
123
METAMORFOSES
forma de religião. Ele é a alegria. Ele pronuncia os sermões e constrói um ritual próprio dentro do
qual os atores tentam elevar sua vida à pureza e ao êxtase que contêm as ações das quais
participam136.
O primeiro espetáculo em que falou disto é Le Feu (Fogo), em reação à crueldade
do napalm utilizado durante a guerra do Vietnã. A ação se desenrola em uma semana,
um toque de campainha do narrador (Schuman) e um cartaz de papelão com os dias
marcando o tempo que passa. Atores mascarados apresentam as cenas da vida
cotidiana dentro de uma aldeia vietnamita, onde a vida beira a morte, da qual eram
prisioneiros. O fogo surge no último dia. Eis aqui a cena final: Schuman dá toque na
campainha e sai. Entra uma vietnamita toda de branco. Ela se senta no meio da cena, a cabeça
voltada para o público. Ela se imobiliza. Três homens com capacetes – de americanos‐ entram em
cena armados com grandes bastões, cordas e grades. Eles montam ruidosamente uma clausura ao
redor da mulher. Eles saem. Um momento de silêncio. Depois a vietnamita se inclina na direção
do chão e se coloca a desenrolar um rolo de fita adesiva vermelha: sem se apressar, metodicamente,
ela corta dois pedaços dessa fita e os cola sobre sua roupa branca, ao redor de suas mãos e de seus
braços. No momento em que a Vietnamita se inflama, os três homens entram. Eles trazem
máscaras de cego. Eles fazem a volta na jaula tateando. Saem. A mulher se meche cada vez com
mais dificuldade. Mas ela prossegue sua autodestruição. O barulho do rolo que se rasga ecoa no
silêncio; diríamos as chamas que crepitam e a fritura dos corpos que queimam. A mulher gruda
imediatamente o adesivo sobre as bochechas, a boca e os olhos. De repente ela cai e se contrai
sobre si mesma. Ela conduz em sua queda a jaula que a aprisiona. Aparece um cartaz com a
palavra «Fim»137.
Será em seguida L’Appel du Peuple pour la Viande, criado em Nova Iorque em 1969
e apresentado um pouco depois na Europa, que produzirá a maior impressão na crítica
e no público. O espetáculo, a história da humanidade, conduz à guerra do Vietnã. Os
atores utilizam máscaras, marionetes e imensos bonecos de vara cuja maioria já figurara
nos espetáculos precedentes. O espetáculo começa com a dança de Urano com sua Mãe,
a Terra, na ocasião de seu casamento, e termina com a morte de Urano e o nascimento
de Cronos. Depois de ter feito justiça à pré‐história, Schuman passa ao Antigo
Testamento. Antes da aparição do homem, o mundo é habitado por animais brancos
vestidos com máscaras munidas de proibições de solidão. Coro e auxiliares do drama,
eles desenvolvem um papel importante para o desenvolvimento da ação. A criação de
Adão e Eva foi feita através de metáfora: eles saem de um plástico transparente que faz
nascer todas formas de associação de idéias. Segue uma série de cenas, das quais a
genealogia de José utiliza, ela também, uma forma metafórica: os atores atiram sobre
José adormecido pedaços de tecido que simbolizam as gerações sucessivas. A segunda
parte mostra a cólera de Herodes. Uma marionete de vara tricéfala segurada por um
Françoise Kourilsky, Le Bread and Puppet Theatre (O Teatro Bread and Puppet). La cite, Lausanne, 1971,
136
p.249.
137 Kazimierz Braun, op.cit., p.123‐124.
124
SOCIEDADE
ator representa os Reis Magos. Ela corre através da cena, perseguida por um rebanho de
animais. José e o Menino Jesus fogem, eles também. Mas a violência conquistou o
mundo. Na terceira parte, assistimos ao massacre dos inocentes e ao bombardeio de
Belém. Sobre a cena resta nada a não ser os soldados, as mulheres e as crianças. Uma
mulher relata o testemunho de um vietnamita sobre o ataque de sua aldeia pelos
ʺaviões em forma de peixeʺ. Em Belém também, ouvimos o zumbido de aviões, um
enorme avião‐peixe é projetado sobre a cena por detrás. As mulheres caem no chão. Na
parte seguinte, um apólogo moderno. Os atores citam aforismos do Evangelho. Na
presença de uma grande marionete de vara que representa Cristo, eles contam as
ʺhistórias de Jesusʺ, dentre as quais a história do trigo e da boa semente (o entágono, o
homem de negócios e Cuba) e a dos falsos profetas (Nixon). Seguem os preparativos da
Ceia. Uma mulher munida com uma grande panela se aproxima da marionete de Jesus
e tira sangue de seu flanco, por um longo momento, enquanto os atores repartem o pão
com o público.
Um artista dificilmente pode ir muito além da condenação de sua própria
civilização, e um crítico constatar com mais que severidade sua queda. Schuman
persegue sua revolta permanente contra a crueldade e a injustiça, aperfeiçoando sua
técnica, sem dúvida mais teórica que prática. Espetáculos como L’Attrapeur d’Oiseaux en
Enfer, Jeanne d’Arc, Le Chemin de Croix, Le Boucher du Cheval Blanc são a expressão de seu
inconformismo e de sua incapacidade de calar‐se diante do mal e da opressão. A arte de
Schuman perturba a boa consciência dos espectadores e artistas, os força quase a se
mobilizar. Os efeitos foram, no entanto, demasiado limitados. Dezenas de artistas
americanos e europeus dividiram durante algum tempo a vida da trupe, com o desejo
de comer cada dia seu pão, de participar de sua arte. Eles constituem hoje uma boa
parte da geração de artistas do teatro e do teatro de bonecos que mais adotaram os
valores estéticos do Bread and Puppets Theatre.
Schuman tinha outras ambições que as de reformar o teatro de marionetes nos
anos 50 e 60. Criar uma nova arte do boneco não era seu objetivo principal. Seu teatro
pobre, engajado, e seus meios de expressão estão em completa harmonia com suas
conquistas de posição e contêm quase todos os princípios da transformação da
marionete, já adquiridas na Europa, a saber: o abandono da tendinha, a busca por novos
espaços teatrais, a mistura entre meios de expressão, a liberdade daquele que anima a
marionete para se mostrar, a passagem da linguagem descritiva e mimética para uma
linguagem poética, e finalmente, a renúncia ao texto dramático em proveito da narração.
A força de Schuman é ter reformado as estruturas dramáticas. Sua influência dentro de
seu domínio foi considerável, pois ele associou os motivos literários que todos nós
poderíamos reconhecer. O teatro já utilizara este tipo de colagem no passado e, entre os
marionetistas, Jan Dorman foi o único a isso recorrer, em grande escala. Schuman fez o
mesmo pela necessidade de improvisação e para atualizar os eventos míticos ou fictícios.
Em L’Incendie, ele liga a história da aldeia vietnamita ao ciclo dos Sete dias, evocando a
Paixão e a Ressurreição. The Cry of the People for Meat, evoca claramente temas do
Evangelho e da atualidade: o bombardeio de Belém é uma síntese do massacre dos
Inocentes e dos camponeses vietnamitas; a Crucifixação, um ato universal da aviação
125
METAMORFOSES
americana. Ao atualizar o mito, Schuman afirma seus princípios dramatúrgicos. Assim,
Notre Cirque de la Résurrection Domestique compara a história da Crucifixação com a da
sociedade americana.
Cada espetáculo, ou quase, contém elementos de ritual. Mas é com Domestic
Resurrection Circus, apresentado pela primeira vez no Godard College, em 1974,
reprisado todo ano em Glover, que se encarna o melhor dessa idéia. O espetáculo138 tem
ao mesmo tempo um quê de festa de feira, de circo, de festa religiosa e de teatro de
vanguarda. A entrada é livre. A multidão se acomoda num campo de doze hectares
onde se desenrolam numerosos espetáculos em pequena escala. Pequenos ou grandes,
os espetáculos têm um tema em comum: Le Combat Contre la Fin du Monde. Ao cair da
noite, os espetáculos começam com um incrível cortejo do qual participam mais de cem
atores e bonecos gigantes. O cortejo chega a uma antiga pedreira de cascalho em forma
de ferradura, um anfiteatro natural, que pode acolher dezenas de milhares de
espectadores. É la que acontece o espetáculo principal, que geralmente termina com o
pôr‐do‐sol. É uma sucessão de quadros de estrutura flexível, que representam os
grandes temas do ano.
A ação comporta geralmente quatro movimentos. O primeiro apresenta «a ordem natural
do mundo». Ao redor do anfiteatro, os bonequeiros passeiam com um enorme boneco chamado
Face de Deus, cantando um hino tradicional. O segundo é consagrado aos eventos históricos e
políticos. O terceiro apresenta a luta do bem contra o mal e termina com a grande Dança da
Morte. O movimento final começa com a aparição de uma personagem gigantesca, Mãe Terra. A
Mãe Terra carrega uma tocha com a qual ela coloca fogo nas figuras representantes de forças
negativas dispostas pela arena, no mesmo momento em que a noite cai. Acima do fogo se elevam
passáros brancos na ponta de longos bastões animados pelos atores, ao som melodioso de uma
orquestra. Este espetáculo revela a crença no rito e no divertimento popular. Poderíamos
compará‐lo aos mistérios da Idade Média, bem que Schuman pesquisa, lembra ele, a
associações de idéias muito maiores e menos evidentes: ao modificar a pompa religiosa
tradicional com uma dose de divertimento popular, Schuman criou um meio que condiz ao
tikkun, para curar ou reparar o mundo. Os bonecos gigantes ajudam a transmitir e a
personificar as forças cósmicas do bem e do mal, que geralmente são o tema principal do teatro de
Schuman. Eles também ajudam a inscrever toda a paisagem dentro da cena. Dessa forma os
arquétipos humanos, os animais, as colinas, a floresta, o sol, o céu e as estações são unidos dentro
da reconstituição épica anual da decadência da humanidade e de sua Redenção139.
O fim tem uma característica otimista, em perfeita harmonia com o mito
universal da Redenção. Não esqueçamos que Schuman é capaz de glorificar ou destruir
o valor do mito. Ele denuncia o mito do sucesso americano para revelar o seu outro
Stephen Kaplin. Signs of Life: An Analysis of contemporary puppet theatre in New York City. A thesis
138
(manuscript) (Análise do teatro de bonecos contemporâneo em Nova Iorque. Tese (manuscrita). New York
University, 1989, p.53.
139 Ibidem, p.56.
126
SOCIEDADE
lado do cenário e cria Christophe Colombe, na ocasião da celebração da descoberta da
América, para evidenciar o caráter mentiroso desse mito.
Teatro ritual
Na Espanha, nos anos 70, próximo do Bread and Puppet Theatre, Els Comediants
baseiam seu procedimento sobre o ritual e a ironia do mundo moderno. Eles respeitam
os postulados dos reformadores do teatro do início do século, a saber: romper com a
divisão fixa entre cena/sala, retomar as relações com o mito e o ritual, fazer do
divertimento um elemtno cultural, liberar o teatro da ditadura da literatura. Eles
renunciam ao texto para colocar sua inspiração dentro de imagens e de personagens
representantes da vida cotidiana catalã e se voltam na direção de uma atmosfera de
divertimento geral. A peça era politicamente suspeita porque naquela época Barcelona
permanecia uma cidade tomada pelo regime franquista. Ela era tanto mais uma ruptura
com as convenções teatrais que os jovens atores tinham recursos das marionetes, dos
atores, das máscaras, das cabeças e dos gigantes.
Na tradição espanhola, durante a fiesta, personagens diversos desfilam na rua,
dentre os quais os cabezudos, como se chama os personagens com enormes cabeças que
representam os tipos populares da cidade ou da região. Os corpos desses gigantes e
suas cabeças são movidos do interior. Nos desfiles tradicionais, eles representam os
Mouros, para comemorar a invasão da península ibérica. Els Comediants atribuem aos
gigantes um novo papel: o de encarnar o poder, todos os poderes, governamentais,
locais e religiosos. Este novo papel é portador de tensão e de ação dramática. Assim,
Non Plus Pris (1972) é um divertimento desenfreado, em que o jogo instantâneo dos
participantes constitui a trama. Este jogo desaparece desde que os representantes do
poder fazem seu carnaval e privam o povo de sua festa. As críticas não faltam para
fazer notar a imoralidade desse rito.
Entre 1977 e 1979, a companhia encontra seu verdadeiro estilo e seus temas de
inspiração. Els Comediants renunciam aos temas autóctones para interessar‐se por
temas de uma dimensão universal e antropológica. O início da festa e do desfile de rua
não muda, mas o conteúdo é muito mais forte. Qual fosse o tema, a fiesta é para eles um
divertimento puro, uma recusa à seriedade e às obrigações. Eles desejam semear a
alegria de viver, sem patronagem laica, nem santos padroeiros e evocam as lendas e os
mitos, mais frequentemente pagães, porque eles trazem uma explicação ao seu desejo
de viver. Basta evocar os saturnais, ʺas liberdades de dezembroʺ, as festas de bufões
para virar o mundo do avesso, para fazer por pouco tempo um mundo onde os papéis
são invertidos, onde o Riso toma o lugar da Seriedade e o Bufão o do Rei para
reencontrar a harmonia perdida do mundo. ʺPara nós, explica Joan Font, é mais
importante emocionar o público do que nos fixarmos em uma idéia, desejamos produzir um
choque elétrico que transmite melhor qualquer mensagemʺ.
Dimonis, apresentado no exterior, não corresponde às mesmas inspirações. Os
atores, vestindo máscaras de diabo, triunfam forças do bem representadas por anjos.
Joan‐Anton Benach interpreta este espetáculo como prova da radicalização dos Els
Comediants: Eu não preciso de manifestos éticos e estéticos para dizer o que penso, Els
127
METAMORFOSES
Comediants são uma trupe feroz e de um radicalismo absoluto em seus espetáculos. Esta
radicalização é a pura consequência de uma motivação que é muito mais profunda que a de
empurrar para a direita ou para a esquerda. É a conseqüência de uma vocação e de um instinto
dramático notável ou, se preferirmos, da esperteza e da diversão. Nós não avançamos com
argumentos racionais contra o poder, não discutimos com ele, não nos expomos a grandes
reclamações. O poder é uma estrutura superior, contestada por princípio, digna de ser
regularmente ridicularizado pelo encontro de suas forças e os símbolos marginais são a pressão
dos impulsos lúdicos e vitais dos homens de nosso tempo, prontos para ridicularizar todas as
convenções sociais que freiam esses impulsos (...). Igrejas, palácios e prefeituras são os lugares
que provocam Els Comediants e que neles suscitam um violento desejo de se combate‐los através
de uma alegoria perversa. O ataque ao castelo de Maschio Angioino em Nápoles (1982),
interpretado pelos nossos «demônios» espanhóis como o intuito de resgatar os prisioneiros
capturados pelos Franceses, era mais que um divertimento recordado de um episódio histórico;
era um protesto contra a hipocrisia e todas as formas de colonialismo. Em 1983, a multidão
massageada sobre as praças e nas ruas d’Avignon puderam assistir à conquista do Palácio dos
papas pelos diabos catalães. Durante o último grande momento do festival, Els Comediants
abandonaram suas barcas sobre as margens do Rhône e ocuparam literalmente os monumentos
centrais da cidade, seguindo sua inspiração, mas a conquista do imponente bastão do papado e o
anúncio à cidade e ao universo do triunfo das forças subterrâneas sobre o poder eclesiástico eram
a verdadeira razão de ser do espetáculo140.
Xavier Fabregas, outro crítico, qualifica dimonis d’auto sacramentales da mitologia
pagã, é o que os torna às vezes tão medievais e tão escandalosamente contemporâneos.
Prefiro, no entanto, a definição de Benach, para quem a atitude dos Les Comediants é
um ʺarqueo‐anarquismoʺ.
Que alguns refiram‐se à numerosos temas míticos e à prática do rito, como o
Bread and Puppets Theatre, ou que outros tentem contestar as verdades míticas dentro
de um rito do mundo ao inverso, como Els Comediants, estas práticas teatrais estilizam
os problemas da vida a partir de antigos comportamentos populares e utilizam uma
linguagem adaptada à nossa época. Se aceitamos que o senso do poder e da autoridade
dominam nossa realidade é secundário, o essencial de nosso encontro com esses grupos
permanece nas suas proposições em aceitar uma nova forma de comportamento social,
quer dizer, o ritual como lugar de expressão das tensões individuais e sociais. Como é
que o povo, conhecido o ritual da revolução, se satisfará com seu equivalente teatral e
artístico?
Fazer frente à história
Se desconfio do ritual renovado como forma contestatória, não se pode
negligenciar sua função cultural e social. A comunhão ʺdo pão e da marioneteʺ cria uma
comunidade universal. Ela conserva, malgrado a desvalorização do conceito de mito,
referências longínquas com uma comunidade sagrada. Les Saturnales e o ʺmundo ao
Joan‐Anton Benach, Crónica de una fascinante transgresión (Crónica de uma transgressão fascinante). Em:
140
Comediants 15 Anos. Centre de documentación teatral, El Publico, Madri, janeiro de 1988, p.16..
128
SOCIEDADE
Gustav Gysin. Exiles – le spectacle en création suisse à la Chaux‐de‐Fonds. Puppenspiel und Puppenspieler,
141
Zurique, 1991, n.2, p.25‐26.
129
METAMORFOSES
estética das marionetes). Wilfried Nold, Frankfurt‐am‐Main, 1966, p.158‐160.
Peter Schuman. The Radicality of the Puppet Theatre (O radicalismo do teatro de bonecos). The Drama
143
Review, vol.35, n.4, Winter 1991, p.82.
130
SOCIEDADE
nacional, de certos gêneros teatrais? Todos os sistemas culturais podem facilmente
legitimar seu funcionamento paralelo e não contraditório. Mesmo o romantismo
procurava uma legitimação dentro da tradição folclórica. A obra folclórica preserva
efetivamente os valores que podem revestir um caráter único quando certas condições
são reunidas: o isolamento geográfico, político, ideológico. Este isolamento favorece no
curso dos séculos o nascimento e a perenidade de teatros locais os quais qualificamos
hoje de teatros folclóricos, populares ou tradicionais. Estes teatros existem ainda nos
nossos dias e sua sobrevivência carrega um sentido particular no contexto das
mudanças incessantes dos meios de expressão. São os pupi siciliani e os teatros de
marionetes de fio da França, Bélgica, Espanha ou Portugal, ou os pequenos teatros
ambulantes dos heróis populares, como Pulcinella, Polichinelo, Punch, Petrouschka ou
Kasperle, ou ainda os teatros de sombras com Karagoz e Karagiosis; os teatros que
fazem uso do repertório do Mistério e da Natividade, de Fausto ou de Don Juan.
Os artistas e os amadores apaixonados pelo folclore mantêm esses teatros em
atividade, porque ele praticamente não existe mais como ambulante, com pessoas
simples para as quais a marionete era um meio de subsistência, de sobrevivência muitas
vezes, e com marionetistas de rua que estendiam seu chapéu em troca da representação.
Os ambiciosos homens de teatro da província que desejavam imitar os espetáculos dos
teatros parisienses ou berlinenses com seus bonecos também desapareceram. As
condições que precederam ao nascimento desta arte popular, no campo como nas
cidades, são descritas por sociólogos da cultura como Arnold Hauser144, que fez uma
distinção entre a cultura do campo, a cultura popular e a cultura de massa, aquela de
países da Europa e da América do Norte, que hoje produzem uma arte homogeinizada.
A tradição do personagem cômico permanece a mais popular. O teatro de
marionetes utilizou‐se da personagem alegre, do rebelde, do bufão e abusou de
jovialidade, estes personagens cômicos, de Vidusaka à Kasperle e Guignol passando por
Pulchinella. Spejbl e Hurvinek foram os últimos moicanos desta família. Mesmo
privada de seu público popular, a tradição se manteve. Os heróis ainda desempenham
um papel que não é o seu. Assim, Kasperle torna‐se um herói do teatro para crianças e se
engaja, momentaneamente, na política (Kasper o Vermelho). Nos anos 70, ele reaparece,
tal como uma citação, nos espetáculos de Waschinsky e de Podehl. O Petrouschka russo
se engaja na luta de classes (principalmente em benefício da Revolução de Outubro),
depois é destituído por Obraztsov, que o considerava um personagem inútil.
O repertório de Stravinski dá um novo renome artístico tanto aos teatros
húngaros quanto aos romenos nos anos 60. Ele igualmente recupera os personagens
dramáticos populares do teatro tcheco e polonês nos anos 70. Laszlo Vitez, em Budapeste,
é um fenômeno excepcional. A tradição desse herói popular perpetuou‐se graças a
Henrik Kemeny, marionetista mambembe, extremamente habilidoso, que deu‐lhe
novamente vida na época de múltiplos festivais, ainda que ele seja obrigado a deixar
seu castelete e suas marionetes no estoque do museu do teatro.
Arnold Hauser. Filozoficzna historia sztuki (História filosófica da arte). Panstwowy Intytut Wydawniczy,
144
Varsóvia, 1970, p.269. Trad. De Danuta Danek e Janina Kamionkowa.
131
METAMORFOSES
Na Inglaterra, a comédia de Punch e Judy provou uma extraordinária longevidade,
cerca de duzentos anos (sem contar os anos de celibato de Punch), graças a artistas que
são às vezes marionetistas, clowns ou mágicos. Ela é, por isso, um simples meio dentre
todos os que eles têm a sua disposição. Evoluindo no decorrer dos anos, Punch hoje
domina a cena, como o provam as incontáveis interpretações que ele conheceu no
século XIX. Nossos contemporâneos fizeram inclusive interpretações feministas e punk.
A comédia de rua suscita também o interesse dos teatros de repertório. Na
França, Alain Le Bon, artista de espírito mambembe, se utiliza de Punch considerando‐o
como essência da natureza humana, ele interpreta sua ʺcomédiaʺ e mantém a tradição.
Le Bon compôs o papel de um personagem, o clown‐ balbuciante Grossalino e batiza
sua trupe de Cirk’Ubu, unindo assim a tradição do teatro mambembe com as
tendências grotescas da vanguarda. Punch (1984) foi sua primeira criação. Nem
reconstrução nem pastiche, o espetáculo é digno do verdadeiro, do grande e belo teatro,
no qual a filosofia é atirada aos espectadores. Seu teatro é um espaço coberto de
acessórios de circo ou de uma peça rural de outrora. Uma trupe de marionetes músicos
sai astuciosamente do lugar da cena, um paravento surge dos quadros sobre os quais se
desenvolve a ação em conformidade com o espírito anarquista de Punch. O repertório
se enriquece com Punch ou o Outro Don Juan (1987) e A Tentação de Existir ou a Cômica
Ilusão (1991).
Grossalino tece comentários truculentos sobre a existência, caindo muitas vezes
num discurso moralista ou em uma filosofia barata. O amor, a violência, a existência
humana, a insignificância de nossos desejos são seus temas favoritos. Le Bon aborda o
texto da comédia respeitando os hábitos dos artistas populares que cortam o material
dramático em função de suas necessidades. Punch luta com seu vizinho, um médico e
um carrasco, e, sobretudo, com a morte, porque ele deseja aproveitar a vida em todos os
seus aspectos. A cena com a Morte se distingue de todas as outras. Ela não é cômica. É
um discurso existencial, escatológico. Em suma, a criação de Le Bon tem uma
caracterítica – à primeira vista‐ perversa, que consiste em utilizar uma forma grotesca
para exprimir reflexões bastantes sensíveis sobre o teatro, a arte e a vida em geral.
Em Bruxelas, Jose Geal, ator, autor, diretor de um teatro para crianças, é
doravante Toone VII. Ele atingiu a perfeição no papel de diretor do Théâtre Toone, um
dos teatros populares mais famosos, que se constitui em uma das atrações da capital
belga, na qual os turistas poderiam ser assimilados a um público popular. Segundo a
tradição, Geal recita ele mesmo todos os textos, altera sua voz quando se faz necessário,
à vista e nas coxias. Ele faz com que artistas experientes construam os bonecos e engaja
marionetistas experientes para anima‐los. Ele possui um senso desenvolvido do papel
artístico e folclórico do Théâtre Toone, segundo um cronista de Bruxelas, Alain Viray145.
Geal‐Toones tem consciência de que é em vão querer impedir que um estilo
desapareça. Assim ele tem a iniciativa de renovar e aumentar o repertório
Andrée Longcheval e Luc Honorez. Toone et les marionnettes de Bruxelles. Paul Legrain, Bruxelas, 1984,
145
p.87‐88.
132
SOCIEDADE
melodramático e de colaborar com artistas à margem das correntes tradicionais. Ele
monta peças literárias renomadas, como El Cid, Ruy Blas, Cyrano, Escola de Mulheres, as
quais adapta e encena no dialeto bruxelense. Em 1979, Geal se lança em uma importante
inovação. Na encenação de Geneviève de Brahant, a ópera de Erick Satie, ele introduz
atores e cantores ao lado de seus gordos bonecos. Eles foram muito aplaudidos tão logo
se apresentaram nos palcos da Ópera Cômica, em Paris. Refletindo sobre mudanças de
maior amplitude, Geal convida Margareta Nicolescu para encenar, no Teatro Toone, As
Três Esposas de Don Cristóbal, de Garcia Lorca (cenografia: Mioara Buescu, 1985).
Tal convite foi sintomático. Em entrevista que fiz com Margareta Nicolescu, ela
lembrou de sua experiência bruxelense, e compartilhou comigo as dúvidas que a
perseguiram antes de começar seu trabalho. Decidida a respeitar a tradição, desejava
igualmente ser fiel a si mesma e à sua estética pessoal: eu eliminei o castelete e deixei
apenas o platô. Não disse que mudei a tradição: foi uma ruptura com a tradição. Ela se fez
presente durante os processos de teatralização. Em seguida, a equipe de intérpretes era
normalmente submissa à voz do narrador (diga‐se José Geal) e eles trocavam entre si seus
bonecos a fim de seguir essa voz). Eu redistribuí os papéis, e para sua grande surpresa eles foram
solicitados a interprestar os personagens. Eles aceitaram um outro processo de realização teatral,
era um teatro de personagens que respondiam às situações dramáticas, aos eventos dramáticos
sugeridos pelo texto de Garcia Lorca, interpretado por uma única voz, a de José Geal. Sua voz
tinha todos os registros, como de costume. Em seguida fabricamos os bonecos. Eu não queria
compra‐los em uma grande loja, onde há milhares de marionetes que podem fazer tão bem o papel
de um cavaleiro quanto de um rei ou uma vítima. Confeccionamos os bonecos conforme a
identidade visual de cada personagem, já que a idéia do espetáculo era diferente nos planos
plástico e estético. Seu movimento se aproximava ao dos bonecos de vara, mas eles tinham a
possibilidade de tornarem‐se personagens, de não permanecer como efígies. Meu trabalho com
José Geal como narrador foi muito interessante. José ditava o texto normalmente e a equipe em
cena seguia seu ritmo, na atitude dos corpos, nas entradas e saídas. Ela seguia o ritmo que ele
impunha com sua energia e sua voz. Sugeri a ele que o teatro vive também de silêncios, de
mudanças de ritmo e também de precipitações e atrasos. Eu desejava que trabalhássemos o texto
com um espírito que se aproxima do jogo. Às vezes o jogo é gestual, o movimento que vive,
permitamos, portanto, que viva, que jogue146.
Nicolescu introduziu um elemento do jogo dramático moderno. Ela propôs um
novo tipo de teatralidade que se exprime particularmente pela utilização vertical da
cena, pelas metamorfoses do espaço e da cenografia, a partir das novas relações entre o
narrador do texto e os manipuladores dos bonecos. Tal confrontação trouxe à tona todas
as diferenças, às vezes imperceptíveis, entre teatro tradicional e teatro artístico. O
espetáculo foi bem recebido pelo público e pela crítica, mas José Geal não repetiu a
experiência nem com Nicolescu, nem com outro encenador. Podemos com isso entender
que ao ter consciência de um limite possível para a arte que ele praticava, preferiu
retornar à prática tradicional.
Entrevista de Henryk Jurkowski com Margareta Nicolescu em 17 de novembro de 1993 em Charleville‐
146
Mézières.
133
METAMORFOSES
Estes tipos de teatro foram dirigidos cada vez mais freqüentemente por gestores
ou por artistas cultuados. Jacques Ancion, diretor do teatro Al Botroule, em Liège,
comprou a marionete de seu Tchantchès, uma personagem popular incontornável para
todos marionetista valão, em um antiquário onde estavam à venda objetos importantes
de um famoso marionetista, Pierre Wislet. Em 1989, ele publica uma breve evocação de
seus vinte e cinco anos de atividade, na qual dá provas de seu senso criativo e de sua
erudição: O que é uma marionete? Darei uma definição à lá belga: como bem sabemos, a
marionete é uma matéria personalizável. O miraculoso na marionete é que nela tudo é de
madeira. Exceto a língua. E que ela pode, com a cumplicidade do espectador, animar‐se sobre o
recital. Pouco a pouco, de objeto ela se torna uma presença – dizia Claudel. Ela não é um ator que
fala, é uma palavra que age. Contigo, ela têm lugar, soberbamente. 147
No boletim regularmente publicado há quinze anos, Ancion comenta e oferece
extratos de textos literários em contato com seus espetáculos. Eles constituem uma
excelente e prazerosa fonte de documentação de repertório. Eles são também a crônica
de um percurso artístico.
Na Itália, Bruno Leone, um dos maiores criadores de Pulcinella em espetáculos de
rua, contribuiu muito para a renovação desta personagem no teatro italiano
contemporâneo. Consciente de sua missão, suas reflexões teóricas, comentários sobre
seu papel e sua estrutura dramática servem muito bem ao conhecimento desta arte
pelos mecenas culturais. Os numerosos diálogos e ações do espetáculo de marionetes
constituem o desdobramento e a oposição de um mesmo elemento: de um lado, Pulcinella, que
reúne todos em um, e do outro seu alterego, sob a forma de uma mulher, de um cachorro, de um
policial, da morte. Quando falamos dos sentidos ocultos e da origem da marionete, não podemos
esquecer que paralelamente à antiga tradição que aborda temas universais da alma humana e
popular, existe também o caráter da personagem, nascido da aproximação que cada marionetista
separadamente mantém com seu público e sua experiência de vida. Em todo caso, temos dois
espíritos e duas origens aparentemente muito distantes uma da outra, mas tão estreitamente
ligadas, que separá‐las seria absurdo; o marionetista tem um papel de mágico, que consiste em
formar um todo fundado em um distante saber e na experiência presente.148
Mimmo Cutichio, de Palermo, fez o mesmo. Proveniente de uma família
conhecida como pupari siciliani, ele renovou e perpetuou a tradição das marionetes
sicilianas, de modo que conservou o repertório e as convenções do jogo. Os irmãos
Pasqualino, de Roma, procedem diferentemente. Giuseppe Pasqualino dirige o Teatro
dei Pupi Siciliani dei Filii Pasqualino, para o qual Fortunato Pasqualino, conhecido
escritor italiano, elabora novos textos. Os irmãos Pasqualino conservam as marionetes e
as formas de jogo tradicionais, mas tentam aumentar seu repertório. Os resultados de
seus esforços nem sempre são convincentes, mesmo que tentem corresponder às
expectativas do público romano. Podemos compreender que eles desejem substituir o
147 Jacques Ancion, Éloge de la Tringle, Liège, 1989, p.5.
Bruno Leone. La Guarattella. Burattini e burattini a Napoli (La Guarattella. Les Guignols et les guignolistes à
148
Naples). Clueb, Bologne, 1987.
134
SOCIEDADE
personagem cômico siciliano por um Pulcinella mais popular e mais ativo no sentido
dramático em Pulcinello parmi les Sarrasins, e adaptar à cena siciliana o tema de Dom
Quixote em Triomphe, Passion et Mort du Chevalier de la Manche. Mas daí a introduzir a
personagem do Pinóquio à corte de Carlos Magno (Pinocchio alla Corte di Charlemagno)! É
evidente que o teatro popular, como o feito por eles, não se preocupa muito com os
anacronismos que, aos olhos do público, seriam uma figura de estilo. Utilizar
voluntariamente e com criatividade o anacronismo demanda um difícil equilíbrio entre
os temas. Por isso, não parece que as colagens de Fortunato Pasqualino tenham
enriquecido de alguma maneira os temas escolhidos.
Podemos nos perguntar se atualmente existe algum tipo de espetáculo
tradicional que permanecera tão intacto como as representações da Natividade. Na
Europa do Leste, todos espetáculos eram realizados por companhias autenticamente
populares. Todos adolescentes de uma vila ou de um burgo conservavam em casa, de
um ano ao outro, os bonecos e um pequeno teatro (um vertep, um betljka, une szopka149).
À época das festas de Natal, eles iam de casa em casa apresentar seu espetáculo
cantando os cânticos. Tal tipo de espetáculo foi proibido na União Soviética, por ser
considerado como uma propaganda religiosa. Na Polônia as proibições foram mais
breves, e a szopka volta a figurar nos programas dos teatros nos anos 60, mas poucos
marionetistas profissionais se apoderaram do tema. Russos, Ucranianos e Bielo‐russos
aguardaram os anos 90 para resgatar vertep e betlejka. A tradição dos cantores e dos
comediantes camponeses renascerá? Nada é menos certo!
A situação era diferente no Oeste, onde quase todos os teatros tradicionais (Liége,
Bruxelas, Roubaix, Cadix) montavam a cada ano a história do Nascimento do Menino
Jesus. Também em Besançon (com a participação de Barbizier, célebre personagem
local), o Teatro dês Manches, em Balai, sob a direção de Jean‐René Bouvret, adaptou o
tema. Mas os marionetistas que representavam a Natividade buscaram sua inspiração
fora do Evangelho. Eles foram procura‐la nos apócrifos, na tentativa de renovar a
tradição popular e misturar numerosos anacronismos. Assim, o Menino Jesus da
Natividade de Besançon, nasceu em uma garagem, aonde chegaram os Reis Magos e o
Ministro da Cultura. Pela mesma razão, em um vertep encenado em Kiev em 1993,
apareceu um mercador ucraniano que introduziu fraudulosamente os merchandises na
Polônia.
Certos artistas acreditam na possibilidade de conservar uma arte popular
autêntica e o reivindicam, como Alexandre Passos d’Evora, em Portugal, que fez uma
reprise dos espetáculos da trupe Bonecos de Santo Aleixo. A cenografia e os bonecos
desta trupe representam uma tradição que remonta ao século XVI (com as varas
suspensas verticalmente na abertura da cena para esconder as varas dos bonecos), mas
o tema das histórias é deste século. O último a utilizar tais marionetes foi o camponês
Antonio Talhinhas, que, nos anos 70, representava o Auto da Criação do Mundo e Auto do
Henriyk Jurkowski. A History of European Puppetry. From its origins to the end of the 19th century (L’histoire
149
de la marionnette en Europe. De son origine jusqu’`a la fin du XIXe siècle). Edwin Mellen Press, Lewiston NY,
1996, p. 291‐300.
135
METAMORFOSES
Nascimento do Menino Jesus. Em 1979, o Conselho Regional de Évora adquiriu o seu
teatro e seus bonecos, os quais confiou ao Centro Cultural da cidade. É dessa maneira
que Alexandre Passos recria os espetáculos de Talhinhas e os mostra com sucesso nos
anos 80, geralmente nas vilas, sobretudo, em época de festivais. Se Passos seguia as
precisas indicações de Talhinhas, ele não pôde garantir a seus artistas de madeira nem
seus animadores agricultores sazonais, nem seu público camponês. Os autos não seriam
mais que citações de uma época que não voltará. Uma peça de museu que de tempos
em tempos pode ser admirada pelo público.
Encontramos, assim, duas aproximações da tradição popular. A primeira procura
conservar as formas do teatro popular ou plebeu na tentativa de reconstituir as formas
desaparecidas e conquistar um público de conhecedores, público o qual, em outro
tempo, exerceu um papel considerável para manter este teatro vivo. Numerosos
marionetistas preferem esta primeira solução, visto que alguns conservam os teatros
populares em sua forma antiga e consagram seus esforços a organização de festivais e
conferências. A segunda aproximação consiste em adaptar e modernizar a tradição ou
nela inspirar‐se artisticamente.
NA PERSPECTIVA DO MITO
150 Claude Levi‐Strauss. Anhtropologie structurale. Plon, Paris, 1958, p.231.
136
SOCIEDADE
O Fausto tcheco encenado por Matej Kopecky, no Teatro Drak, conheceu sua
glória. Carl Schröder, marionetista de Dresden, consagra sua vida à Fausto, e suas
numerosas realizações se afastam pouco a pouco do apólogo popular para aproximar‐se
da concepção de Marlowe, quer dizer, de Fausto a procura de sua verdade sobre a
realidade. Schroeder representa sempre o sujeito, desesperado por nunca encontrar seu
ideal de apreender o “Espírito Renascença” autêntico da obra. 151 O Doktor Faust
realizado por Helena Sitar em Ljubljana, em 1990, inspira‐se em uma encenação dos
anos 20 do célebre marionetista esloveno, Milan Klemencic, e reconstitui perfeitamente
seu estilo.
Fausto, um dos arquétipos mais importantes da cultura européia, faz parte de um
grande repertório. Já lembrei de L’Etat du Destin de Faust (Stan Losow Fausta, 1966), de
Andrzej Dziedziul, que apresenta uma visão misógina do mundo. Quase vinte anos
depois, em 1984, o artista e marionetista Neville Tranter, criador do Stuffed Puppet
Theatre, apresenta Fausto em um outro jogo em Os Sete Pecados Capitais (Seven Deadly
Sins). Tranter, no início, parece interessar‐se pelas fraquezas da natureza humana. Ele se
vestiu como Mefistófeles, seus bonecos representam os sete pecados capitais. Cada
boneco (pecado) revela suas paixões em um monólogo: o Orgulho, a Luxúria, a Inveja e
cada um tenta negociar seus desejos, tanto com Mefisto quanto com o público. (A Inveja:
Deixem‐me vossos bens, de qualquer maneira amanhã vocês não estarão mais aqui...). Mas os
pecados aludem à presença de Fausto na sala. Eles lhe falam. Eles o chamam.
Finalmente Fausto cai nas mãos de Mefisto e lhe arranca a máscara sob a qual
Inge Borde. Das Puppenspiel vom Doktor Faust (La pièce de Docteur Faust à la marionette). Mitteilugegn,
151
Dresde, 1977, n. 1‐2, p.33.
137
METAMORFOSES
descobrimos o rosto de Tranter, que grita desesperado. Tranter não propõe um
comentário original sobre Fausto, mas confirma o caráter metafórico de todas as
representações existentes.
Em 1989, o Théâtre du Fleuve cede à tentação de Fausto. Para nosso assombro,
podemos reconhecer uma filiação ao pensamento misógino de Andrzej Dziedziul.
Depois de uma perspectiva histórica do sujeito, o espectador se depara com um busto
decomposto e cortado de Marguerite, para descobrir uma verdadeira máquina infernal.
Aqui, tal visão surrealista, barroca e a destruição de corpos humanos não servem a
outra coisa que a busca das razões do pecado.152
No mesmo ano, Fausto foi representado com a colaboração de Jadwiga
Mydlarska‐Kowal na cenografia. Ele inclui o tema em uma obra dramática que
representa a condição humana sob três ângulos diferentes. Esta encenação de Goethe
coroa sua interpretação moralizante de O Processo, de Kafka, e um comentário irônico
sobre a metafísica do exercício de poder de Gyubal Vlleÿat, de Stanilaw Witkiewicz.
Depois da exposição do destino humano, Hejno mostra as instâncias que animam o
indivíduo e que ele reconhece no Prologue au Ciel, de Goethe, em que, como sabemos,
Deus e Mefistófeles apostam sobre o destino de Fausto.
O espetáculo é encenado em muitos planos, dentre os quais um castelo e um teatro
miniatura arrumado como um interior todo com cortinas negras estendidas. O Prólogo ao céu é
encenado em um teatro de marionetes. Deus e os Arcanjos são representados com pequenos
bonecos brancos, que se parecem com miniaturas de gesso. Nesta companhia, Mefistófeles é um
joguete, negro, encapuzado, turbulento. O teatro de bonecos se expande. Mefistófeles escorrega
pelo biombo com uma forma humana. Vestido com uma roupa de couro negro que se adapta à
suas formas. Apenas sua cabeça e mãos a ultrapassam. Sobre seus ombros, uma capa preta e asas
de morcego de gaze. Mefistófeles, dissimulado de serpente, íncubo e sucubo às vezes. Ele é
interpretado por uma mulher e não deixa Fausto em nenhum passo. É entre eles que as coisas
acontecem e são eles que provocam todos os acontecimentos. Fausto é interpretado por um ator,
dissimulado com uma toga de sábio que anima a cabeça e os braços de um boneco. Hejno
interpreta seu Fausto nestes dois teatros que se enquadram na convenção e são teatro dentro do
teatro. Neste contexto, tudo é demonstração, experiência e verificação – é um jogo, não é um jogo
sério. É também o tema de Fausto. 153
Este é um ponto em que estou em desacordo, ainda que este julgamento se
inscreva na lógica da descrição do espetáculo. ʺTudo é jogoʺ, como nos assopra nosso
espírito pós‐moderno, mas isso não significa dizer que o jogo não é um jogo sério. Bem
jogar é um ato muito sério, mesmo que ele não resulte necessariamente em uma ilusão
cênica. Dez dezenas constituem um remarcável modelo das dependências existenciais
do homem e dos esforços que ele faz para satisfazê‐las. Ele será jogado por tanto tempo
quanto o homem se interrogue sobre seu destino.
Simona Souckova. Le Poème scénique. Sur le Faust du Théâtre du Fleuve. Marionnettes UNIMA‐France,
152
n.23‐24, p.50.
153153 Henryk Izydor Rogacki. Trzy teatry Fausta (Les trois théâtres de Faust). Teatr Lalek, 1990, n.1, p. 10‐11.
138
SOCIEDADE
Don Juan
O tema literário de Don Juan ultrapassa o de Fausto quanto ao número de peças
escritas. Mas o tema parece ter perdido boa parte de sua força em função de suas
inumeráveis variações. Em uma delas aparece um Don Juan velho que perdeu seu
charme juvenil. A revolução dos costumes também reduziu a importância do problema
colocado por este sedutor. No entanto, os teatros continuam montando Don Juan por
diversas razões: para renovar algum costume religioso local (na Espanha), para
recuperar o estilo do teatro popular (na República Tcheca e na Polônia), para retomar o
tema das melhores versões literárias.
Nas interpretações populares de Don Juan, o elemento aventureiro figura
primeiro no século XVIII, montado por uma companhia de marionetistas amadores. A
encenação do texto de Molière por Dominique Houdart (1984) não renovou esta
tradição, ele se interessa pela arte barroca na qual o mito de Don Juan se inscreve
naturalmente. Segundo Houdart, Don Juan não existe. Ele nada mais é do que uma
máscara, sucessivamente sedutora e atéia, audaciosa e desonesta. Além disso, ele não
tem rosto, apenas uma luz, um reflexo, uma armadilha, uma ilusão barroca. Por isso ele
não pensou em fazer uma encenação moderna do tema, mas teatralizar o mito tal como
o entendiam Molière e Mozart, e, bem entendido, Houdart ele mesmo: o comediante está
presente, ele é o homem contemporâneo que faz reviver o mito de Don Juan, que o coloca em cena.
Ele é o mestre de cerimônia; o ator lúcido do papel que interpreta, a serviço do mito que se jogam
aos outros, a sociedade, a moral, a religião, Deus. 154
Mitos e folclores
É difícil invocar a tradição quando o mito e suas funções universais são também
afirmados. Os mitos ontológicos existentes remontam ao estado de formas primárias e
imutáveis. Os arquétipos literários estão à disposição dos artistas que se deparem com
seu conteúdo, para explicá‐lo ou racionalizá‐lo. Depois de múltiplos ensaios, eles
utilizam a força do mito para extrair uma explicação secundária (Fausto misógino) ou
expiatória (Don Juan não existe). Através do percurso do repertório destes dois
arquétipos que são Fausto e Don Juan, a marionete clássica se afirma como responsável
pelas versões populares de seu mito e os marionetistas progressivamente incorporaram
diversos elementos da modernidade em seus espetáculos. No Teatro, numerosos
artistas fizeram o mesmo retorno às fontes, como Henri Cohen, Emil Burian, Leon
Schiller, Giorgio Strehler, ... No teatro de marionetes, lembramos a atividade de Julia
Slonimska, de São Petersburgo, e a dos encenadores tchecos e poloneses. Na República
Tcheca, os bonecos de varas tradicionais seriam utilizados para montar o repertório do
renascimento nacional no espírito da tradição. As peças patriotas atribuídas a Prokop
Konopasek (Oldrich et Bozena) e as de Jan Lastovka (um ciclo de peças sobre o chefe
hussita Jan Zizka) seriam particularmente apreciadas pelos teatros e público tchecos,
apresentadas com os grandes eventos glorificados pela lembrança da grande época. Os
154 Dominique Houdart. Dom juan. Compagnie Dominique Houdart. Marionnettes UNIMA‐France, n.3, p.14.
139
METAMORFOSES
marionetistas tchecos não tiveram a chance de que este tipo de emoção pudesse ser
evocada pelos espetáculos de marionetes?
Na Polônia, a ligação com a tradição da marionete se exprime pela memória
coletiva da szopka, cujas interpretações religiosas são inumeráveis. Seu lambe‐lambe
(um teatro em miniatura desmontável) freqüentemente serviu de modelo, notadamente
para as cenografias de Adam Kilian e de Ali Bunsch. Nos beneficiamos com grandes
encenadores do teatro como Leon Schiller e Kazimierz Dejmek, e do teatro de
marionetes polonês, como Stanislaw Ochmanski, cujo grande sucesso foi Tryptique
Vieille‐Pologne (Tryptik staropolski, cenografia: Zenobiusz Strzelecki, 1972). O texto
retoma temas muito populares do teatro barroco da Europa central: Judyta e Holofernes
(Judyta i Holofernes), O Filho Pródigo (Syn Marnotrawny) e A Decapitação de Dorotéia a
Mártir (Sciecie Panny Doroty). O contraste da linguagem histórica com as marionetes
estilizadas teve um efeito revelador, o mesmo que a transcrição de composições
barrocas de Stefan Sutkowski. Mas o grande valor do espetáculo é manter sua
mensagem universal e atual, que não se perde em uma reconstrução estilística. Poderia
ela servir de modelo para tratar o repertório antigo?
A ópera barroca
É neste espírito que, nos anos 80, a Ópera Barroca para marionetes suscita uma
certa efervescência? Particularmente, as óperas francesas e italianas, para as quais
alguns artistas fizeram um trabalho de pesquisa e reconstrução histórica, chegando a
reconstruir um teatro de marionetes barroco. Assim, Vasa Marionette Opera, de Malmö,
monta Girello, de Filippo Accaioli, sobre a música de Jacopo Melani. Les Menus Plaisires
du Roy, da Bélgica, L’Ombre du Cocher Poète, Pierrot Romulus ou Le Ravisseur Poli, de Le
Sage e de Orneval. Na origem destas iniciativas, respectivamente o compositor Gabriel
Bania e o músico e musicólogo Jean‐Luc Impe. O primeiro espetáculo respeita as
convenções da ópera italiana do fim do século XVII, o segundo figura entre as primeiras
experiências da ópera cômica na França, por volta de 1720. Bania e Impe, com muita
intuição, observam atentamente o acento sobre a interpretação musical (com
instrumentos antigos) e distinguem o programa de música vocal e instrumental, que se
desenvolvia na frente da cena ou no limite das coxias, da ação cênica das marionetes.
Tudo leva a crer que é, com efeito, assim que as marionetes se apresentavam em cena
como ilustração animada da música. Observamos este mesmo interesse pelo barroco em
Portugal, onde tentaram fazer renascer a obra de Antonio Jose da Silva, excelente autor
de óperas do início do século XVIII. Da Silva compôs a maior parte destas óperas para
marionetes e popularizou as tradições italiana e francesa em Portugal. As companhias
de marionetes portuguesas montam freqüentemente tais obras. A Vida de Ésopo (La Vie
de Ésope, 1991), encenada pelo Teatro de Marionetes de Porto, parece ser o espetáculo
que mais se aproxima dos espetáculos antigos, mesmo que os animadores à vista e seu
jogo interativo com o público reflitam as tendências modernas do teatro. Da Silva
explorou muitos temas populares, como Dom Quixote, Medéia e Anfitrion, que
traduziam bem o espírito do teatro barroco.
140
SOCIEDADE
A experiência diacrônica da cultura é um fato evidente. Tão evidente quanto a
utilização feita do patrimônio dos séculos precedentes. Tal regra, uma das mais
importantes da evolução da cultura, concerne todos os domínios da arte. Neste plano, a
experiência dos artistas marionetistas nada tem de extraordinária que pudesse
distinguir a particularidade do teatro de marionetes. Salvo uma coisa: certas formas de
arte tradicional ainda são persistentes enquanto que outras desaparecem sob nossos
olhos. Elas se distanciam pouco a pouco e a lembrança de seu esplendor tem ainda um
caráter mítico. Qualquer que seja a forma estilística do teatro tradicional, com um
espírito de continuidade ou de reconstituição, ela permite ao teatro de marionetes
permanecer fiel aos arquétipos e aos mitos literários, que nada perderam de sua força.
Qual é então o lugar da mitologia dentro do repertório do teatro de marionetes e de que
maneira ele reage aos mitos contemporâneos?
Mitos de origem
O teatro de marionetes, neste último quarto de século, mostrou‐se extremamente
sensível aos temas míticos. Os mitos não saíram de cartaz: Gilgamesh, A Ilíada e A
Odisséia, o Kalevala, a Canção dos Nibelungos, Râmâyana, Mahabhârata, os mitos esquimós,
africanos, indianos, os mitos do povo da Sibéria, etc.
Os criadores são animados por diversas intenções, mais freqüentemente atraídos
pela aventura que propõe o mito, do que pelo mito ele mesmo. Ele permite expressar
uma opinião sobre os problemas contemporâneos (como A Ilíada na encenação do
Teatro Il Carretto), mas é raro que o mito seja um quadro da história do homem, da
Gênese ao Apocalipse, como em Gilgamesh, do Teatro Gioco Vita. Tal epopéia é um mito
cujas origens se perdem na noite dos tempos e mantém ainda hoje um valor universal.
Podemos opô‐lo aos mitos locais que cumprem as mesmas funções e que, para alguns,
preservam um elemento importante da identidade nacional. O mito local ou universal
não é apenas uma fábula ou uma aventura, mas uma obra cosmogônica. O teatro e a
marionete apreendem a partir deste momento a verdadeira função e a verdadeira
significação: uma visão do homem, de seu destino, suas aspirações, sua moral, uma
reflexão sobre a ordem cósmica ou sobre a identidade nacional, como foi o caso de
Kalevala, na Finlândia na época romântica, e mais recentemente nos países bálticos (sob
o poder soviético), particularmente na Lituânia.
As lendas lituanas, balançadas por temas míticos, são o centro de interesse de
Vitalis Mazuras, do Teatro de Marionetes Lele, em Vilnius. Le Petit Canard de Cendres
(1971) é uma lenda e uma fantasia infantil. Le Garçonnet Enchanté (1974), ainda que
apresentada em versão para crianças, oferece uma perfeita possibilidade de penetrar
nos mistérios da cultura lituana. O primeiro espetáculo tem uma dimensão simbólica.
Sugite, uma pequena órfã abandonada, termina por desaparecer nas chamas. De suas cinzas
nasce um patinho cinza. Desde o começo da peça, Sugite leva uma vida sagrada. Ela é
representada como um ídolo, vivendo em uma cabana de madeira. O irmão de Sugite é um
cavaleiro imóvel, um centauro sem força e sem vontade. Abaixo deste mundo prisioneiro do
destino, surge o espaço de forças impuras. Elas dominam a natureza e determinam a sorte do
homem. Mas ele pode renascer simbolicamente de suas cinzas, como o pequeno pato pardo Sugite.
141
METAMORFOSES
Lê Garçonnet Enchanté é um sujeito lírico, a projeção do psiquismo de uma criança que
tenta organizar o mundo a sua volta. Este mundo aparece sucessivamente à criança sob a
forma de uma Criatura de camisa vermelha, de Mulheres adornadas de cinza, ou de Irmãos
lavradores. O menino confia em seus amigos. Seus amigos lhe constroem uma pequena casa, uma
capela sobre um apoio que se torna o modelo do mundo e um ponto de apoio; um sincretismo
popular que associa temas pagães a sua sublimação cristã.
Estes dois espetáculos são uma adaptação de temas e de lendas populares, mas
sua significação é determinada pela problemática do mito e suas relações com o mundo
contemporâneo. O aspecto original do mito desapareceu porque Mazuras desejava fazê‐
lo exercer outro papel. Ele não revelou apenas a origem da comunidade lituana, mas
também uma mensagem otimista para passar a seus contemporâneos. Na época, a
Lituânia ainda não tinha recuperado sua independência.
O eterno retorno
O mito se realiza através do ritual que constitui uma experiência religiosa
comum e coletiva. É do ritual que nasceu o teatro e o retorno atual à cerimônia ou ao
rito não representa uma reviravolta na concepção de teatro. Artaud exigiu o primeiro
retorno ao rito e foi amplamente regular, ao menos na intenção. Os artistas
contemporâneos que se apóiam no mito como fonte formal ou como forma de
apresentar um comportamento coletivo, mudam a direção de seus verdadeiros valores e
a transpõem para a vida atual, privada de sacralidade. Os teóricos do mito e os
historiadores da religião155 não estariam de acordo, eles que consideram o mito como
expressão das tendências religiosas do homem, como revelador dos lugares com as
forças do cosmos, como portador do ʺsagradoʺ em oposição ao ʺprofanoʺ de uma
civilização racionalista e laica. A utilização do mito no teatro é expressão de uma
experiência com o sagrado, é a aspiração a uma perspectiva cosmológica ou é uma
pesquisa de temas atraentes? Quanto ao rito, os teatros utilizam esta forma em nome de
uma experiência e de uma prática comuns ao sagrado ou vêem uma estrutura original
que permite um jogo interativo com o público?
O rito contemporâneo pode ter uma função cultural. O boneco o testemunha
através da experiência da trupe Den Bla Hest (O Galo Azul), dirigida por Alexandre
Jochwed, em Aarhus, que intenta representar as funções culturais da marionete através
dos usos e costumes no curso da história: Memórias de Boneco (Mémoires de Marionnette,
1990). O grupo de artistas que participou dos diferentes ritos representa a memória
cultural da marionete. Assim, o público a vê nascer como um ídolo de madeira e
acompanhar o homem em seus papéis de cândido ou de bom pastor, em suas tentativas
de relacionar‐se com a divindade, que recebe por sua vez tantas homenagens quanto
ridicularizações, tanta veneração quanto desprezo. Ao manipular seus bonecos, os
homens transformam a si mesmos em autômatos que se lançam, como Pinóquio, a
Mircea Eliade. Le Sacré, le mythe, l’histoire. Recueil d’essais. Panstwowy Instytut Wydawniczy, Varsovie,
155
1970.
142
SOCIEDADE
procura de sua própria humanidade, ou, ao contrário, buscam seu golem tal como os
alquimistas.
O espetáculo prova que o boneco está presente em toda a cultura humana, ele
explica nossos sonhos e aspirações. Seu conceito está associado ao mito e aureolado
pelo rito. É assim que encontramos o tema da crucificação no episódio do Carnaval dês
Fous. A dança dos bufões mascarados é interrompida pela intervenção de um castelete
de bonecos de varas acima do paravento, entre eles, um Jesus crucificado que carrega
um boné com sinos de bufão. Que o sagrado seja transformado em chacota neste
ambiente de carnaval choca e emociona, tanto mais quanto o gozador é tocado pela
força do símbolo que ironizava: suas mãos não dão mais conta de carregar o fardo
sagrado e a Cruz pouco a pouco afunda e desaparece.
Este espetáculo, onde o rito é mais uma forma de expressão que uma experiência
comum, não faz renascer a comunhão dos valores espirituais. Ela não se aproxima do
sagrado. Pelo contrário, ao julgarmos pelo fim da peça, ela denuncia principalmente
nossa incapacidade de entendê‐lo. A incapacidade, mas também a insuficiência e a
solidão. Tal solidão de que o homem tem consciência é que está na origem de sua força
e de sua dignidade. O tom profano é assim profundo e pleno de expressão. Isto é muito
perceptível no domínio do boneco. Björn Fühler, artista sensível aos valores espirituais
da cultura, percebeu uma interessante coincidência entre a laicização da arte e o
abandono da muito antiga noção do bonceo: Tal evolução do profano em todos os domínios
da arte conduziu, pouco a pouco, à das expressões puramente subjetivas. Que forças veiculamos
então para a mediação de nossos bonecos, formas animadas e objetos? Já constatamos uma certa
reticência no emprego da palavra ʺbonecoʺ. Fala‐se em teatro de figuras ou de objetos. Pode ser
que assim se deseje afastar‐se mais ou menos conscientemente de um aspecto religioso e
tradicional do teatro de bonecos, substituído pelo preconceito de que se trata de uma arte infantil.
Por outro lado, as formas utilizadas são freqüentemente despersonalizadas, os rostos
perdem sua intensidade de personagem em suas fisionomias. Os objetos animados ou de formas
mais abstratas sugerem a pista de uma presença e substituem a efígie humana ou animal. Eles
não são contudo eternos, pois se tornam novamente signos no sentido forte do termo. Podemos
reconhecer tal processo em outros domínios da arte: as formas de expressão são ʺliberadasʺ dos
restos de seu aspecto tradicional e pudemos assistir a uma explosão de todos tipos de
experimentações. Foram rompidos os pontos da tradição religiosa ou mágica com seu saber fazer
específico, cada um retira forças de sua relação individual com as forças que o envolvem ou que o
habitam, mais ou menos levado pela evolução rápida de nossa civilização.156
Esta opinião pode parecer errônea ao observarmos a atração suscitada pelo mito
e o rito no teatro de bonecos e no teatro. Mas não teríamos razão ao julgá‐la assim. O
mito entra no teatro como tema atraente, como elemento de colagem dramática, como
forma de espetáculo ao qual freqüentemente falta uma dimensão sagrada. Mesmo laica,
a utilização do mito, do mistério, do rito, é um meio de agir sobre o inconsciente do
Björn Fühler. La Marionnette, objet de transmssion du sacré. Marionnettes. UNIMA – France, n. 17‐18,
156
p.50.
143
METAMORFOSES
público e detém, assim, importante valor estético. Hejno toma emprestada esta via e
representa a experiência humana como um mistério equivalente às mensagens místicas.
La Tragicomédie de Calixte et de Melibée (La Célestine), de Fernando Rojas (cenografia:
Eugeniusz Stankiewicz, 1983), abre‐se sobre uma procissão religiosa, um cortejo de
artistas. A fachada religiosa do século XV dissimula os desejos da carne, a qual clama
por seus direitos e oferece assim uma chance aos intermediários, o que provoca uma
catástrofe, já que trata de verdades amorosas. Da mesma forma, em O processo, de Franz
Kafka (cenografia: Jadwiga Mydlarska‐Kowal, 1985), Hejno e Mydlarska utilizam
bonecos hiper‐realistas manipulados à vista pelos atores, evocando a técnica do ningyo
joruri. As representações têm um caráter simbólico e fazem implicitamente referência ao
Último Julgamento, de Leonardo da Vinci, e a uma capela ardente, signo de memento mori
(lembrança para a morte). A simbólica se transpõe em momentos aos bonecos,
particularmente nas cenas eróticas, em que o corpo da mulher se abre completamente,
aureolado de vermelho. Os meios utilizados na obra sublinham as emoções dos heróis e
revelam suas reações íntimas ou então seu exame de consciência. Hejno renuncia às
interrogações existenciais de Kafka. A pressão do mundo exterior e a culpa por existir
cedem ao desejo do homem de acertar suas contas consigo mesmo. O desenvolvimento
transformou‐se em um apólogo moderno que possui uma dimensão psicológica.
Fühler remarcaria esta importante evolução. Assim, ao nos distanciarmos do
mito, ao nos voltarmos para a perspectiva cosmológica, nos voltamos para nós mesmo,
para nossas experiências pessoais, subjetivas. O mito do sagrado é substituído pelos
mitos individuais. No mais, a psicologia contemporânea tem um efeito secundário de
produzir alienação. Ao nos revelar nossa vida psíquica inconsciente, ela não revela em
nós o sentimento de uma comunhão do destino humano, mas fornece instrumentos
para definirmos nossas emoções pessoais. Tal fenômeno não diz respeito somente ao
teatro de bonecos, mas ao conjunto da arte contemporânea. A psicologia exerce um
importante papel nas imagens evocadas, nos processos que são a experiência, a criação
e a verdade. Graças aos artistas fomos beneficiados por essa tomada de consciência. 157
Eles têm o sentimento de desbravar forças desconhecidas e obscuras de nossos instintos,
mas rejeitam a terminologia extrema da psicanálise, que associa a origem dos
desequilíbrios a problemas da libido.
Desde o teatro de bonecos aos meios de expressão variados, o mito de Narciso
exprime perfeitamente o fato de que o boneco, dominado por seu manipulador, aspira a
exprimir seu talento e sua vida interior. O narcisismo é uma característica da arte
contemporânea e compreendemos que ele determina facilmente o sarcasmo dos
filósofos. O aforismo de Cioran, o qual é necessário apreendermos com precaução, é
rápido sobre o sujeito: como os meios de expressão são utilizados, a arte se volta na direção do
sem sentido, de um mundo privado e intransmissível. A chama daquilo que é inatingível, seja na
pintura, na música ou na poesia, se apresenta neste momento arcaico e vulgar. O que é público
157 Ver apontamentos da entrevista de Henryk Jorkowski com Paska em 1/07/93. Manuscrito.
144
SOCIEDADE
desaparecerá e, em breve, a arte conhecerá o mesmo destino. Uma civilização que começou com
suas catedrais, terminará sob o mesmo hermetismo da esquizofrenia.158
Teatro dos estados da alma
Com distanciamento e sem exagero, constatamos que os espetáculos com temas
psicológicos fazem uma entrada distinta no teatro de bonecos, onde o boneco estava
restrito a não exprimir mais que comportamentos exteriores. Nos Estados Unidos, o
primeiro artista a exprimir suas obsessões com os bonecos foi sem dúvida Robert Anton.
Entre 1960 e 1987, no seu estúdio da East‐Village, em Nova Iorque, ele encena diante de
um público restrito, composto em sua maioria por convidados. Anton manipula a vista
os bonecos de cerca de 25cm, de luva e de varas. O espetáculo apresentado em uma de
suas turnês pela Europa o tornou célebre. Os dezoito espectadores, escreveu Guy Dumur
sobre uma das apresentações no castelo de Vincennes, em Paris, sentam‐se sobre a
bancada, todos contra uma espécie de balcão atrás do qual aparece apenas metade do corpo de
Robert Anton, vestido com um veludo negro, o rosto grave e tenso. A mão recoberta com um
lençol preto, ele tem na ponta de seu dedo indicador minúsculas cabeças de 3 cm de altura, muito
realistas e freqüentemente articuladas: as bocas abrem‐se para sorrir, os olhos podem ser
arrancados, as mãos, não maiores que uma unha, complementam as representações
antropomórficas que são um dos aspectos da arte de Robert Anton. 159
Anton é como um deus do outro lado de suas criaturas, que dele escapam e a ele
voltam em seus momentos de desespero. Seu espetáculo é como um rito, um mistério e
uma cerimônia. Anton parece em transe, sua atenção é concentrada nos bonecos como
se os personagens o conduzissem a lugares desconhecidos e inesperados. Ele às vezes é
o criador de sua peça e um tipo de espectador privilegiado. Ele preside suas ações mas
não as controla plenamente 160 e faz uma demonstração de possíveis diferentes
metamorfoses. Uma ʺdama de lixoʺ põe um ovo que se transforma na cabeça de um
homem sem rosto, o ovo abre, dele sai um ʺpássaro fêmeaʺ que abandona sua máscara
de bico e descobre seu rosto de ʺcantoraʺ altiva. Quando Anton a compara com a cabeça
do pássaro abandonado, ela foge, aterrorizada161. Anton impõe a seus personagens um
ritmo de metamorfose infernal. Ele as confronta com seu ser inibido ou abandonado,
provocando comportamentos excessivos e surpreendentes. Ele cria um universo de
criaturas fantásticas no qual não podemos nos impedir de ver os símbolos de nossos
próprios traumas.
Nos Estados Unidos, Roman Paska o sucede. Ele faz suas primeiras aparições em
festivais europeus nos anos 80, em que apresenta Linha de Vôo, uma peça sobre a
iniciação e a identificação. Ela constitui a primeira parte de uma trilogia (as duas outras
158 E.M.Cioran. Aforyzmy (Aforismos). Czytelnik. Varsovia, 1993. Trad. De Joanna Ugniewska.
159 Guy Dumur. La divine comédie de Lilliput. Le Nouvel Observateur, 11 de outubro de 1976.
David Rieff. Anton’s Agon. Life, 6/7, 1982, p.38‐39. Citado por Stephen Kaplin, Signs of life: an analyses of
160
Contemporary Puppet Theatre in New York City. 1989, p.58.
161 Stephen Kaplin. Signs of life: an analyses of Contemporary Puppet Theatre in New York City. 1989, p.58.
145
METAMORFOSES
146
SOCIEDADE
cena, e finalmente dela saem todos os personagens. A areia é o tempo. Os que dormem sonham
com seus ancestrais, ao menos as duas últimas gerações. Aparecem ao lado deles criaturas e
objetos simbólicos: serpentes, uma galinha (como em Bruno Schulz), uma mulher‐ampulheta, um
pequeno cordeiro, um menorah (candelabro de sete braços), que mudam de dimensões. É uma
história mais longa, a encenação de uma canção israelita que conta a história de uma andorinha e
de um bezerro conduzido ao abatedouro em uma charrete e que vê o carrasco encapuzado se
aproximar. O bezerro grita de desespero. A areia flui da charrete. Percebemos o crânio de um
animal na areia. É o tempo perdido – o paraíso perdido. Acima do homem que dorme aparece um
pássaro da noite, talvez o pássaro do tempo. Ele ataca o homem. Mas a mulher chega para sua
segurança. O homem lhe estende uma ampulheta. Ela a transforma em dois vidros. Eles bebem
(areia) pela eternidade. Existem outras personagens. A areia flui de boca em boca. É a comunhão
das gerações. Uma ampulheta turbilha pelos ares.
Bass representa o tema de suas experiências e de suas emoções em A Vila das
Crianças, de 1993. Este espetáculo se desenvolve em dois espaços cênicos e apresenta
duas histórias aparentemente sem ligação. Elas são ligadas pela personagem principal, um
homem moderno preso pelo desejo de voar pelos ares, e uma história extraordinária que se passa
em sua própria casa, onde Bass (o homem) apanha um pássaro que se transforma o quanto antes
em um filhote. Sua presença provoca a vinda de outros pássaros que enchem a casa e terminam
por ser objeto de uma exterminação. Na última cena, vemos ʺnossoʺ homem semi‐nu diante da
janela, gradeada, os pássaros não podendo mais entrar. Enquanto o homem tem em suas mãos
um pássaro, signo da reconciliação que podemos compreender também como um convite ao
respeito à energia espiritual.
Esta polissemia torna o espetáculo hermético, e Bass responde que a peça é
inspirada no holocausto, pelas almas inquietas de pessoas assassinadas: se lançarmos
sobre ela um enfoque político, veremos a história da exterminação. Mesmo que ela tivesse sido
inspirada pelas imagens provindas de uma cultura específica, tais imagens funcionam também,
como já mostrei, no nível de outras culturas. Para fora do nível político, existe também um nível
psicológico: qual é a mentalidade do exterminador? Qual é o papel da memória cultural (da
memória em cada cultura)? E, em seguida, um nível espiritual: podemos obter uma Redenção
espiritual? E há também o nível da obra ela mesma: o artista e sua própria metáfora (seu eu
pessoal): como o artista pode atingir o sucesso com sua obra (com seu ʺvôoʺ, se ele fecha o guichê
de sua consciência?)163.
Objetivar uma obra pessoal não serve para projetar os pensamentos e as emoções
de seu autor. Bass, ao explicar‐se, atira contra a natureza do mito mesmo, de seu mito
individual que tem uma característica tanto sagrada quanto inexplicável. A passagem
de imagens simbólicas às exegeses verbais não pode ser mais que uma infração da lei
mítica. Esta não é mais do domínio do crítico que do artista?
Robert Anton, Roman Paska e Eric Bass introduzem novos valores. Eles arriscam
falar sobre as inquietações, os medos e até mesmo das obsessões que os atormentam,
Eric Bass. Odpowiedz na artykul Henryka Jurkowskiego: Cytac… przedstawienie (Resposta ao artigo de
163
Henryk Jurkowski: <Ler...um espetáculo>). Teatr Lalek, 1994, n.2, p.21.
147
METAMORFOSES
coisa que até então estava reservada a outros domínios da arte. Não quero com isso
dizer que os marionetistas europeus ignoravam tais questões, mas eles o faziam
geralmente com mais objetividade, como se contassem uma história na terceira pessoa,
e a história fosse de heróis. Os americanos, estes, falam em primeira pessoa, rompem
com a convenção que quer que o teatro de bonecos seja um teatro de ação, em benefício
de um teatro de bonecos íntimo.
Alguns marionetistas, na Europa, se interessam por temas psicológicos. Tal
tendência foi representada na França por Jean‐Pierre Lescot e François Lazaro, embora
ambos falem em nome do homem em geral e estudem o contexto existencial no qual
vivem. Lescot se interessa pelas leis da composição: a arte repousa sobre o
enquadramento, sobre a escolha da matéria e sua inscrição no espaço. O teatro pode
assim ser um lugar de exposição. Lescot é um poeta da palavra e tira sua inspiração da
psicologia e da mitologia contemporâneas. Os dois pólos que são o amor e a morte o
interessam por suas dimensões escatológicas e encontrar sua expressão no domínio do
espírito e dos sentimentos. Depois de diversos espetáculos poéticos para crianças e de
numerosas experiências formais na área do teatro de bonecos e de sombras, ele aborda
o universo do mito e da psicologia com O Jardim Petrificado (1985), espetáculo realizado
em colaboração com Christian Chabaud (Companhia Daru), uma adaptação moderna
de A Divina Comedia, de Dante. Os dois criadores declaram em tal ocasião: Emprestamos
as pegadas perdidas do Poeta para caminhar pela obscuridade de sua imaginação inquieta, e
junta‐las às nossas, e percorrer suas florestas, seus precipícios, seus atalhos, seus montes, seus
lagos, seus espaços estelares; enfim. Dante, ser humano só, assombrado pelo caminho da vida,
ʺpó aos olhos de Deusʺ, é impetuoso no grande drama da Natureza em movimento e não
consegue mais tecer o fio de sua existência, de sua arte. Ele duvida, ele tem medo, ele desaba...
para renascer.164
Mas a peça não evoca apenas incidentes psicologizantes de Dante. É uma soma
de experiências de outros espíritos sensíveis, tais como Goya, Sully, Prudhomme,
Apollinaire, Kafka, ou Éluard. A Divina Comédia se transforma em uma colagem de
confissões de poetas de todas as épocas, como uma viagem iniciática. A poesia é um
meio de exorcizar o medo de viver, é, portanto, um meio para se reconciliar com a vida,
se é que isso seja possível!
Esta experiência com Chabaud é uma introdução a propósitos mais pessoais,
como A Sentinela dos Espelhos (1990), espetáculo no qual Lescot descobre o segredo da
vida que existe entre ʺsombra e luzʺ. A peça nos oferece uma chance, com a intervenção
de todos tipos de bonecos, de investigar nosso psiquismo, de recriar imagens que
multiplicam nossas sensações e emoções. É uma viagem retrospectiva através de um
mundo de figuras teatrais (Punch, Arlequim, as máscaras venezianas, etc.), viagem
através da cultura e do teatro que são ameaçados, como o mundo dos homens, pelo
medo: Tentei mostrar a relação de meus personagens com o medo da morte, aquele que está
contido na imagem do espelho. Figuras como Punch e Arlequim, que ironizam este medo,
Christian Chabaud, Jean‐Pierre Lescot. Teatro. O Jardim Petrificado. CAC, Les Gémeaux, dezembro 1985,
164
p.6.
148
SOCIEDADE
exorcizam a morte, são cada vez mais privados de sua força, de sua facilidade para ir além da
morte. Com tudo o que se passa na cena do teatro, eles terminam por serem eles mesmos vencidos
pela ʺgrande dorʺ: é grave para os bonecos! Quando as máscaras do exorcismo da dor chegam a
um resultado aterrorizante, eles perdem a confiança em seu significado, seu papel... Deixando de
estar a altura expressiva da vestimenta que usam. Os personagens perdem a força de sua ironia
sobre a vida, o amor, a morte. Eles são tão atormentados pela dor que terminam por tornarem‐se
terrivelmente humanos165.
A Sentinela dos Espelhos é uma viagem entre arquétipos que assumiram a forma
de signos visuais da cultura teatral; eles nos falam das emoções ressentidas pelas
gerações precedentes, provocam assim nossas emoções, exprimindo a eterna
problemática do homem descrita por Freud: a dor existencial, o conflito entre o instinto
de vida e a ameaça da morte demandando serem sublimados, atenuados como se
produz no ato de criação de uma obra de arte.
Depois de ter colaborado durante muitos anos com a Companhia Daru, François
Lazaro empreende um trabalho artístico independente com Les Portes du Regard (1985),
Lê Horla (1987) et Solitude (Samotnosc, 1988), seguindo Bruno Schulz. O primeiro
espetáculo tem por tema a ʺpassagemʺ, a ʺtravessiaʺ, e se apóia sobre uma colagem de
textos de Rimbaud, Bachelard e Laing, um psicanalista norte‐americano. A estrutura é
emprestada do rito de passagem de culturas primitivas. Eu devorei então o livro de um
etnólogo sobre os ritos de passagem, declara Lazaro. Eu me dei conta de que o espetáculo era
construído como os ritos de passagem. Aquele começa com as premissas que são uma exposição..
Vem em seguida o momento cruel em que o raspamos, tiramos sua roupa, sua humanidade: você
é reduzido ao estado de um grito, de uma violência. Então vem a iniciação: vos mostramos os
objetos rituais e os mistérios da vida. No final desta caminhada, vos explicaremos166.
Retomamos o tema da iniciação e o da finalidade da existência e dos atos
humanos. Os bonecos grosseiros, como que inacabados, sugerem este estado de devir
do homem. Le Horla, seguindo Maupassant, e Solitude, seguindo Bruno Schulz, evocam
o problema dos limites da loucura na relação do homem com o mundo. Ainda que a
trama destas duas obras seja bastante diferente, Lazaro desenvolve de uma mesma
maneira as relações do manipulador e do manipulado (animação à vista) através de
uma brilhante metáfora (particularmente em Solitude). Acrescentamos que o tema e o
jogo dos intérpretes (particularmente em Le Horla) contribuem para dar uma dimensão
psicológica à peça.
Realizada na Polônia, no Teatro Banialuka, em Bielsko Biala, Solitude (cenografia:
Gerzi Zitman) é uma colagem de temas extraídos de Sanatorium au Croque‐Mort167, de
165 Alain Potvin, Jean‐Pierre Lescot. La Temoin magnifique. Village Val‐de‐Marne, n.564, 2/5/90.
166 La vie est une longue loyage. Entretien avec François Lazaro. Marionnettes, n.10, 1986, p.11.
Bruno Schulz. Le Sanatorium au croque‐mort. Editions Denöel, Paris, 1974. tradiction de Thèrése Douchy,
167
Allan Kosko, Georges Sidre, Suzanne Arlet.
149
METAMORFOSES
Boutiques de Cannelle168e de outras novelas. Em cena, um ator, o Herói, tenta reconhecer
suas lembranças. Ele está atrás de uma grande mesa, metáfora de ʺa mesa da vidaʺ, de
ʺa mesa da infânciaʺ, coberta de objetos e esboços de bonecos que estimulam sua
imaginação e o permitem retornar ao passado, onde ele reencontra sei pai e sua mãe,
com seus hábitos e paixões. Os objetos são dirigidos por criações de um outro mundo,
artistas, enfermeiros ou internos do sanatório, ou pelas forças delirantes que tentam
dominar o Herói. Elas terminam por atingir seus objetivos. Com a ajuda de bandagens,
elas o transformam primeiro em um boneco, depois em múmia, é assim que ele
terminará seus dias. O surrealismo das lembranças assume uma realidade de pesadelo.
Este espetáculo reflete uma tomada de consciência e as aspirações artísticas dos
marionetistas dos anos 80. Na realidade, não é o encenador marionetista que conta suas
lembranças diante do público, mas o Herói da peça que o faz em nome do autor do
espetáculo. Nós penetramos na intimidade do criador que, com a ajuda da narração,
nos introduz nos estados e emoções que são seus e transformadas em jogo a partir de
sua experiência vivida. A distribuição dos papéis entre os atores, marionetistas e
acessórios é carregada de metáforas. O Herói, Jozef, conserva seu próprio rosto, os
internos do sanatório têm pseudo‐máscaras em forma de cabeças enfaixadas. A faixa de
Jozef marca a metamorfose que nele se opera e é, sobretudo, o signo de seu destino.
Muitos personagens evocados nascem dos braços dos internos – enfermeiros , é o signo
de sua própria existência. A mãe do Herói, em forma de um polvo, é um
comportamento satírico claro. O pai do Herói, um boneco, é uma personagem mais
humana, possui uma cabeça expressiva, mas ele também está submisso às leis de
comparações surrealistas e, em certo momento, se reencontra mesmo em uma sopeira,
situação nada habitual e muito deprimente.
Espetáculos com temas psicológicos são de fato pouco numerosos no teatro de
bonecos. A experiência de Naviler Tranter nos fornece os novos elementos da
compreensão de seu mundo interior. Tais espetáculos sublinham, sobretudo, os
aspectos de dependência entre heróis, visualmente representados pelo estado de
dependência no qual se encontra o boneco em relação ao manipulador. Os pecados de
Sete Pecados Capitais não são apenas a projeção da personalidade de Mefistófeles, mas
também das criaturas que ele aprisionou. Em O Manipulador, o Clown Nero (um ator)
utiliza seus bonecos com cinismo e os tortura de maneira quase masoquista. Este tipo de
dependência pode muito bem ser percebida como o mecanismo do mundo, ao invés de
servir para definir o estado psicológico do manipulado, como em Lazaro. Tranter utiliza
a tensão psicológica do aspecto de dependência recíproca para assegurar um efeito
dramático. Em Quarto 5 (Chambre 5), ele abandona este sistema simplista em benefício
de uma ação cênica com a característica de um thriller psicológico. Ele interpreta ele
mesmo o papel de um enfermeiro que vai dissecar um doente suspeito, com ou sem
razão, de ter cometido um crime. Nos perguntamos, ao final de espetáculo, se o
Idem. Boutiques de cannelle. Editions Denöel, Paris, 1974. tradiction de Thèrése Douchy, Georges Sidre,
168
Georges Lisowski.
150
SOCIEDADE
enfermeiro não é psicopata, porque os limites da loucura são impossíveis de se definir.
O quadro psicanalítico do espetáculo parece mais um meio artístico de forçar a atenção
do que uma pesquisa sobre os estados da alma.
Malgrado a atmosfera neurastênica de seus espetáculos, Tranter parece fascinado
pela teatralidade que lhe permite, por um lado, exprimir suas próprias emoções, e, por
outro, exercer uma ascendência sobre o público com a ajuda da ficção e da força de
sugestão. Esta dependência recíproca entre o animador e os bonecos (no jogo à vista) o
intriga, e dela ele abusa: quem anima quem? Quem depende de quem: este tema está no
coração de todos os espetáculos de Tranter. Ele analisa o problema friamente, sem
emoção. Depois da encenação de Macbeth (1990), ele anuncia uma mudança de
orientação: Com Macbeth, quer dizer, ensaiando montar a tragédia de Macbeth, eu atentei para
um ponto crítico da relação entre o boneco e o bonequeiro. Eu interpreto a personagem Macbeth
como ator e manipulo todos os outros personagens. É uma adaptação do original, as cenas são
concisas, elas fazem a ação e a intriga progredirem num ritmo que parece crível. O fato é que
consagro a maior parte de minha energia para manipular os bonecos e organizar o cenário.
Significa que eu devo igualmente fazer passar a verdadeira tragédia de Macbeth ao mesmo tempo
como personagem e como ator manipulador que tira o boneco de seu destino. Macbeth é, deste
ponto de vista, o espetáculo mais difícil e mais complicado de todos com que já trabalhei. Isto me
obriga a ir ao limite extremo de meus esforços e sei que quando Macbeth morrer eu deverei dar
uma nova direção ao meu trabalho com bonecos169.
Podemos enfim nos questionar se a teoria do teatro de Maeterlinck, o pai da
dramaturgia dos estados da alma, exerceu um papel no interesse que os marionetistas
contemporâneos atribuem à psicologia. Os artistas que evoquei são certamente
numerosos para conhecer seu repertório para bonecos, mas nenhum dentre eles se
inspirou nele para encenar os problemas existenciais do homem. As peças de
Maeterlinck que foram encenadas, como La Mort de Tintagiles ou Ariane et Barbe‐Bleue,
relatariam fatos mais do que elas sublinhariam a importância psicológica. La Mort de
Tintagiles, que Kantor monta com bonecos, confirma que ele estava mais preocupado
com as imagens plásticas e simbólicas do que com o aprofundamento dos problemas
psicológicos do jovem herói. Deve‐se ao fato de que a dimensão psicológica das peças
de Maeterlinck e seu aspecto inovador não aparecem claramente mais do que no
contexto do drama realista? Atualmente, depois de um século de prática, os meios de
expressão dos dramas psicológicos parecem pouco eficazes, a ação domina no momento
em que os artistas contemporâneos estão interessados pela ʺpsicologia puraʺ. Neste
domínio, o teatro de bonecos contemporâneo é mais beneficiado por Freud e pela
antropologia que por Maeterlinck?
E a energia criadora dos mitos do teatro de bonecos moderno, ela esta presente
ou desapareceu? Fossem rurais ou urbanos, os teatros de bonecos populares possuiriam
esta energia: perpetuariam a existência do bufão mítico sob a forma de personagens
cômicos e construiriam o mito da superioridade do bom senso prático sobre a iniciativa
Neville Tranter. Manipulator (Manipulateur). Malic, Revista de Marionetes, n.2, Barcelona, 1991‐1992,
169
p.54.
151
METAMORFOSES
de pessoas poderosas e instruídas. Eles perpetuam ainda hoje o mito do triunfo do bem
sobre o mal em dezenas de espetáculos para crianças. Só Peter Schumann dá uma
perspectiva cosmológica a esta simples verdade. De uma maneira bem geral, o retorno
dos bonequeiros ao mito ou ao rito exprime uma ligação aos valores universais,
particularmente ao retorno ao paraíso perdido. Ele corresponde às aspirações gerais da
cultura contemporânea e não é um privilégio do teatro de bonecos!
O teatro de bonecos e a marionete solista, desde seu nascimento, servem para
criar um modelo de mundo (e de mitos). Eles indicam através de metáfora que os seres
vivos dependem de forças superiores, principalmente dos deuses e do destino. Como
metáfora das dependências fundamentais existentes entre o homem e as forças divinas,
o modelo alimenta numerosas histórias, mesmo que não exista uma só e mesma fábula,
uma só e mesma história característica do mito. Ele se movimenta lá da primeira
generalização filosófica sobre a situação existencial do homem. As obras de Paska, de
Lescot e de Tranter exprimem bem como este modelo pode mudar de funções, como ele
oscila entre o sagrado e o profano, como, de metáfora, ele transforma uma imagem
abstrata do sistema teatral. E nada censura as interpretações metafóricas, simbólicas e
nem mesmo psicológicas.
152
CONCLUSÃO
O nosso século é o da metamorfose do teatro de marionetes. Neste balet
incessante entre convenções, os jovens artistas trazem idéias inovadoras e colocam em
jogo novos conceitos. O objeto e a matéria se impõem e abrem novos caminhos à arte da
marionete. Não se deveria falar antes da arte de um ator ʺimpessoalʺ ou ʺnão‐pessoalʺ
que da arte da marionete? E desta perspectiva, como a metamorfose do teatro de
marionetes acompanha a desta arte? Como este teatro se inscreve no pensamento
teórico de nossa época dita ʺpós‐modernaʺ?
Desde o meio do século, a marionete assimila as grandes correntes artísticas e as
grandes tendências da arte dramática. Simultaneamente, uma nítida diferenciação se
produz no seio do teatro de marionetes. A multiplicação das correntes contemporâneas
não tem como causa a variedade daquelas dos séculos passados. Esta coexistência é
característica de uma sincronia e de uma diacronia cultural. Ela constitui, aliás, uma
vantagem, pois os teatros contemporâneos escolhem estilos tão diferentes e caminhos
artísticos tão variados que sem teatros tradicionais ou clássicos, poderemos nos
perguntar se eles habitam os limites do gênero da marionete. O teatro de marionetes
adota sem reservas idéias modernas das quais as mais importantes são a artificialidade
da arte e o papel preponderante do sujeito criador. O teatro de marionetes se distancia
do drama aristotélico, preferindo outros gêneros literários, em particular a forma do
teatro épico. Ele faz o mesmo com a ficção da arte dramática, que ele substitui por uma
apresentação dos processos de criação, conduzindo ao jogo da realidade e da ilusão. Ele
considera a marionete de outro modo, como um ator material, e a situa entre as coisas e
os objetos. Ele inscreve o animador de marionetes na escritura do espetáculo e
experimenta o personagem dramático, resultando na atomização de sua imagem e na
sua decomposição.
Diversas reflexões filosóficas sobre a evolução da arte no século vinte sugerem
que nossa época traz novas relações entre sujeito criador e objeto criado, do qual a
expressão altera um elemento característico da obra de arte. A crise do sujeito carrega
em sua trajetória a do humanismo. Esta reflexão entra na sua fase final com esta
declaração provocante sobre esgotamento de nossa cultura: Os filósofos otimistas vêm as
coisas deste modo igualmente, mais eles pensam que nossa época pede a destruição de todas as
ilusões que nos alimentavam até aqui para descobrir o que faz o fundamento da existência
humana. A possível destruição da natureza evidentemente obrigará o homem a se declarar em
favor da humanidade.
A crise do humanismo é o resultado das desilusões do modernismo? É bem
provável pois, nesta época, o sujeito reina, e não a subjetividade. O autor se desprende
de sua obra, tornada impessoal, apesar do fluxo de sua consciência e de seu monólogo
interior. O estruturalismo dividiu o autor‐sujeito em códigos sistemáticos, e o pós‐
estruturalismo fez progredir o processo descentralizando a estrutura. Finalmente, o
pós‐modernismo arrasta a subjetividade que vai invadir todas as criações.
153
METAMORFOSES
O funcionamento da noção de sujeito é mais complexa que em outros domínios
da arte, pois mais que o sujeito real, o criador, existe sempre um sujeito fictício. A
subjetividade da marionete e a existência do teatro de marionetes, não são mais que
simulacros. Poderemos mesmo dizer, se não estamos nos limites da arte, que atribuir à
marionete um papel de sujeito é pura mistificação. Os dramatis personae que aparecem
nos textos dramáticos não tem vida própria, não são mais que uma construção verbal, o
que não nos impede de lhes atribuir um papel de sujeito. Partindo do mesmo princípio,
nós atribuímos um papel de sujeito à marionete: uma construção plástica extrema que
se tem do homem, como no caso das dramatis personae.
A pesquisa sobre a especificidade do teatro de marionetes foi inspirada pela
fenomenologia, mais seus primeiros passos foram distorcidos por um grave erro.
Buschmeyer e outros pesquisadores se concentraram nas particularidades da marionete
e negligenciaram a estrutura dicotômica do teatro de marionetes que contém dois
sujeitos: o marionetista e sua marionete. Segundo Braque, ele teria esquecido as coisas e
estudado suas relações.
Os modernistas tinham proposto substituir o ator pela marionete, mais sem
reconhecer por outro lado sua subjetividade, mesmo se esta foi conferida pelo homem.
Só a observação da marionete mantinha sua atenção. Ela parecia, com efeito, garantir
que a marionete não seria uma rival do sujeito real, quer dizer do criador da obra de
arte. Wassily Kandinsky, desde 1911, assinalara esta evidência: uma obra de arte nasce do
ʺsujeito do autorʺ, ʺdo artistaʺ. Craig se declarava artista de teatro e exigia sobre o palco
materiais responsáveis. Poderíamos nos mostrar mais explicitamente em favor da
expressão arbitrária de um sujeito criador único? Mesmo nos anos 20, Craig fez alguns
compromissos sobre o status do comediante, ele não reforça mais o papel dominante do
diretor por numerosos anos. O sujeito modernista não vê a presença de outros sujeitos
que não ele mesmo: A realidade da obra implica em si seu reflexo, sua consciência de si. O
ʺartificialʺ da razão, não deve admitir estrutura ʺegológicaʺ, reclusa e toda fechada em si, ela
não deve admitir violência, mesmo se o sujeito autônomo imagina o ambiente. Ele pode ser o olho
da câmera, artificial na sua seletividade mas, no entanto, aberto ao mundo que ele permite
apresentar em um dia ainda mais claro.
Estas particularidades eram sentidas como medida que as promoviam ao
modernismo. Podemos em particular ver um signo, no ensaio de José Ortega e Gasset,
A Desumanização da Arte, que data de 1925. A arte clássica enfatiza os elementos
humanos de toda sorte de ficção. A arte moderna tem um caráter elitista, ela é reservada
aos iniciados, sublinha a consciência que ela tem de si mesma, ela se opõe à arte. Ortega
e Gasset, ensina o paradoxo, referido a esse sujeito, não sem um certo exagero: Às vezes,
como foi o caso de Schopennhauer e Wagner, a arte se dava por objetivo, nada mais, nada menos,
que salvar a humanidade. Agora, a arte nouveau, que pode parecer tão curiosa, procura sua
inspiração na zombaria e na pilheria. Toda a arte nouveau foi afinada sobre o mesmo tom. O
humor pode ser mais ou menos refinado, percorrer toda uma gama de nuances ultrapassando a
farsa banal num piscar de olhos irônico, mais ele é sempre presente na arte nouveau. Não que o
sujeito da obra seja cômico, isto seria, com efeito, uma volta a um estilo ʺhumanoʺ, mais na arte,
154
CONCLUSÃO
aquele que seria o sujeito, zomba de si mesmo. A busca da ficção pela ficção não pode se fazer com
um piscar de olhos malicioso.
As observações e conclusões de Ortega e Gasset mostram que o modernismo
contém o germe da época que o sucedeu, a saber, o pós‐modernismo. Cinqüenta anos
depois, Umberto Eco afirma no prefácio de seu romance O Nome da Rosa que o pós‐
modernismo é um traço universal de cada época do qual ele constitui a metalínguagem
irônica. Ele aparecia no momento ou na época abandonar sua inocência descobrindo‐se
a si mesmo. Ele perde naquele momento sua inocência e não pode ir mais longe que
recorrendo à citação e ao disfarce. Ortega e Gasset tinham, parece, outra coisa em mente,
de acordo com ele, era a primeira vez que a arte perdera sua inocência, se opondo assim
a Eco. Mais ele avaliava como Eco que a arte podia evoluir além de uma farsa auto
irônica e burlesca. Nós poderíamos premiá‐lo com o título de primeiro pós‐moderno.
As inovações dos modernistas concernentes a estrutura dramática e a
aproximação analítica de elementos tradicionais do drama, também levam em
consideração a ontologia dos personagens, como bem demonstrou Pirandello no seu
Seis Personagens a Procura de um Autor. Os marionetistas já tinham praticado jogos
similares ao dotar suas marionetes de uma pretensa consciência de seu papel, mais essa
prática não foi objeto de uma reflexão mais aprofundada e o manifesto de Pirandello
seria importante para os marionetistas.
Em conexão, as operações analíticas relacionam o personagem dramático e toda a
construção do teatro de marionetes, como objetivo secundário diante da guerra, da crise
do drama e da invasão de outros gêneros literários, em particular o gênero épico. Nós
temos observado que no teatro de marionetes, o eu épico característico de todos os tipos
de narrativas, encontra seu equivalente no eu que joga, a energia visível personificada
que anima a marionete e fala por ela. O eu épico utiliza mais frequentemente o
pronome ʺeleʺ para designar os heróis da história; o marionetista apresenta ao público a
marionete tendo em mente a história, de outra forma dita dos heróis.
Eles também podiam descrever estas operações como as ações de ʺum homem
estrutural que monta e desmonta o objeto para estudar as regras de seu funcionamentoʺ. Mas
não demorariam a perceber que eles não poderiam prever imediatamente os resultados.
A esperança de remontar o objeto era totalmente ilusória. Em alguns outros lugares, um
bom número de surpresas esperava os criadores de teatro de marionetes. A primeira era
que inumeráveis possibilidades se abririam diante deles a partir do domínio das
relações artísticas entre ator e marionete. Eles descobrem então que: o teatro de marionetes
possui um leque muito rico de significados que precede de sua textualidadeʺ. De acordo com as
últimas reflexões em curso, o espetáculo é um texto que recorre a vários sistemas de
signos (ele se distingue assim da literatura) A noção de subjetividade passa assim ao
segundo plano. Os elementos que o espetáculo propõe a interpretação do espectador
possuem, de fato, o mesmo status do signo teatral. Revelando sua técnica ao público, o
marionetista se inscreve na escritura do espetáculo e não pode ser analisado senão
enquanto elemento deste texto. De fato, os estruturalistas evocavam abertamente a
morte do autor, mais faziam aparecer o ator sobre o palco, ao lado da marionete,
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METAMORFOSES
voltavam a mostrar o autor do personagem dramático. A analogia é então flagrante. O
marionetista nega assim sua própria subjetividade. Ele se coloca no mesmo plano que
todos os outros elementos do espetáculo. E este define as novas funções da obra
artística para compreensão da reprodução da realidade. A mimesis pós‐moderna não imita
uma verdade pré‐existente, ela imita uma outra imitação e assim numa seqüência até o infinito.
A mimesis pós‐moderna zomba da idéia de que poderia haver um original, uma origem primitiva,
uma espécie de sinal que teria precedido a imitação.
Os grandes artistas como Léger e Witkewicz, tinham desejo de transformar o ator,
de fazer manchas coloridas nas composições deles. Kantor conseguiu‐o em seus
espetáculos. Os artistas do teatro de marionetes se encontravam nesta situação, se
conformando a tradição, a interdependência do sujeito e do objeto, tão fortemente
enraizada na mais velha metáfora existencial onde o papel de sujeito criador era
atribuído a Deus.
A nova teoria textual do espetáculo teatral não foi mais que uma proposta
limitada. Ela não afetava nenhum especialista que fez evoluir sua visão do teatro. Eles
aceitavam consequentemente que o público não tivesse somente um contato com um
mundo formal mais também com o texto, submisso as suas emoções e a sua
interpretação. Os pós‐estruturalistas, entre eles Jacques Derrida, propunham uma outra
idéia; o texto liberado da opressão do significante não é mais que um terreno de jogo.
Pode‐se construí‐lo e desconstruí‐lo, desmontá‐lo e remontá‐lo fora de todo contexto
social e histórico. E esta renovação, afeta ainda uma vez as funções da obra artística de
compreensão da reprodução da realidade. A supressão da hierarquia entre os
significantes, que tem teoricamente relegado ao segundo plano a questão do sujeito, é
particularmente interessante, mais esta teoria foi só do pós‐estruturalismo. O teatro não
pode se liberar da presença do sujeito porque seu desaparecimento significaria o fim da
arte dramática.
Na prática, não houve mais que uma mistura de papéis e de definições. Depois
dos anos 60, graças às novas concepções artísticas e a nova assimilação de forças, o ator
reencontrara sua hegemonia e se tornara um verdadeiro autor criando com a matéria de
seu corpo e de seu psiquismo. Às vezes, a ponto de interpretar‐se a si mesmo. Sinko
qualifica este tipo de teatro de ʺteatro da auto‐performanceʺ ou ʺteatro sem semiose
teatralʺ, onde o ator deixa entender aos espectadores:ʺEu não atuo, eu sou eu mesmoʺ ou
ʺnão é o teatro que vocês assistem, mais a vidaʺ. Eles podem legitimamente se interrogar
sobre este tipo de espetáculo de teatro de marionetes. Ele se enche de estilização que se
origina do teatro e se reduze a uma demonstração do jogo das marionetes: ʺSou eu quem
joga, eu, o marionetista, de quem vocês podem ler o nome no cartazʺ. Toda a argumentação
remete, todavia, a palavra estilização, porque ela sublinha a criação e não a vida.
Assim sendo, o ator que vemos manipular suas marionetes é mais um performer
que um ator. O teatro de marionetes que exibe a destreza de um marionetista é, em
primeiro lugar, uma performance. Da mesma maneira que um ator do teatro de auto
performance basta‐se a si mesmo, o marionetista se basta a si mesmo quanto ele utiliza
sua energia vital para fazer nascer uma ficção no jogo de suas marionetes e seus objetos.
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CONCLUSÃO
Sem respeitar todas as condições da auto‐performance, o marionetista se encontra no
limite de dois mundos, seu mundo pessoal e o mundo das coisas, que graças a sua
energia consegue criar uma realidade fictícia. O marionetista, o ator e o performer,
desafiam o mundo das coisas e dos objetos que, jogando os papéis que lhes foram
inicialmente atribuídos, tornam‐se significantes. Dar ao objeto a possibilidade de fazer
carreira no teatro é uma maneira de sublinhar sua oposição com relação à marionete
que, enquanto sujeito, faz concorrência ao sujeito criador. Seu papel de fato é
equivalente ao de um objeto utilitário. O homem retirou‐lhe a procuração que lhe deu
anteriormente. Restituindo à marionete seu status de objeto, ele lembra a conexão que
ela mantinha com a escultura e lhe abre o campo da problemática das artes plásticas.
Estas últimas evoluem de forma diferente do teatro de marionetes e procuram
dinamizar seus artefatos. Novas oportunidades se oferecem então para a marionete.
Pontuado aqui como sujeito, mais ao contrário, a vontade de procurar no teatro um
objeto em movimento que pudesse possuir as mesmas significações que o universo dos
objetos que a ele remetem. A marionete pode também tornar‐se um objeto de sentido
simbólico, mais seu papel de objeto negou sua antiga vocação. Ela se transformou
imperceptivelmente em simulacro, ou em manequim.
Será o fim do teatro de marionete enquanto gênero teatral propriamente dito?
Esta questão continua sem resposta. O teatro de marionetes clássico continua a existir e
parece que suas forças regenerativas não estariam totalmente esgotadas. Ao contrário, o
teatro de marionetes como meio de expressão variada, o teatro de objetos, e este teatro
que fala de si mesmo (auto‐temático, eu diria) se impõe como formas de um teatro pós‐
moderno. Estes teatros engendrados pelo espírito da marionete clássica, se desgastam
seriamente hoje em dia. Numerosos são os críticos que pensam que nenhum retorno é
possível. Claude Lévi‐Strauss escrevia já nos anos 50 a propósito do esgotamento das
forças da cultura humana: Depois que ele começou a respirar e a se alimentar até a invenção
dos engenhos atômicos e termonucleares, passando pela descoberta do fogo ‐ exceto quando ele
reproduz a si mesmo ‐ o homem não tem feito outra coisa que alegremente dissociar as milhares
de estruturas reduzindo‐as a um estado no qual elas não são mais suscetíveis de integração (...)
Se bem que a civilização, ligada a seu todo, pode ser descrita como um mecanismo
prodigiosamente complexo, ou nós seríamos tentados a ver a oportunidade que tem nosso
universo de sobreviver, se sua função não era de fabricar o que os físicos chamam de entropia,isto
é, a inércia (...) Em vez da antropologia, ele poderia escrever ʺentropologiaʺ o nome de uma
disciplina dedicada a estudar nas suas manifestações os mais altos processos de desintegração.
A noção de entropia é muito popular entre os escritores pós‐modernos: o fim do
mundo é próximo. E é por isso que nossas forças e nossa civilização estão em vias de
exaustão. Nós conhecemos todas as formas, todas as possibilidades, todos os temas e
todos os sujeitos. Tudo já aconteceu. Não há nada a fazer senão refazer o que já existe,
cuidadosamente codificado na nossa consciência. Assim é que poderemos conhecer,
conscientemente, praticando então com rigor uma arte auto‐temática onde as antigas
convenções ainda são abundantemente praticadas.
Felizmente, a realidade, a época atual e o futuro da arte e da cultura contradizem
sua proposição. É verdade que o teatro contemporâneo se nutre dos modelos do
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METAMORFOSES
passado (ritos, mitos, arte primitiva), mais é verdade também que isto constitui um
traço novo de nossa sociedade. O princípio da colagem, e consequentemente o da
citação, é correntemente utilizado. Ele engendra novas significações, por exemplo, a
metáfora e a metonímia. O fim da civilização então, ainda não é para amanhã. De fato,
bom número de gêneros artísticos e literários esquecidos, reaparecem hoje como
citações de uma arte datada de uma outra época, mais é verdade também que outras as
substituem. Não esquecemos que a exaustão do teatro de marionetes enquanto gênero,
não é uma novidade. No século XX os adultos, que estavam esgotados, lhe reservou ao
uso das crianças, eis um primeiro signo. Em seguida, a existência do teatro foi
ameaçada pelos novos divertimentos populares, como o cinema e a televisão. E tudo
leva a crer que ele foi completamente esquecido sem seus valores culturais e
psicológicos que atraem sem cessar novos adeptos. Desta vez, são os artistas que vem
em seu resgate fazendo tudo para lhe devolver sua posição social e seu lugar na arte, e
com sucesso. No entanto, o inevitável acontece; as marionetes abriram seus teatros a
novas idéias de vanguarda. Eles tem então conseguido manter a presença do teatro de
marionetes na marcha da arte do espetáculo artístico, mais este teatro não tem mais a
ver com aquele que lhes havia seduzido no começo do século. Eis todo o paradoxo!
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