Você está na página 1de 20

Dossiê

RESUMO
DIAGNÓSTICO
Este artigo propõe tratar o
diagnóstico diferencial entre psi- DIFERENCIAL ENTRE
cose e autismo infantis conside-
rando que ambas as psicopato- PSICOSE E AUTISMO:
logias referem-se a diferentes
impasses no transitivismo ma- IMPASSES DO
terno, função constituinte do
sujeito e do Outro do bebê. TRANSITIVISMO E DA
Autismo e psicose são aborda-
dos como distintas funções do CONSTITUIÇÃO DO
Outro.
Descritores: diagnóstico; psi- OUTRO
cose; autismo; transitivismo;
Outro.

Sandra Pavone
Yone Maria Rafaeli

A clínica das patologias graves da infância


indica um diferencial entre os autismos e as psicoses
infantisindica um diferencial entre os autismos e as
psicoses infantis. Ainda que num primeiro momen-
to possamos assim considerar de modo intuitivo, pro-
pomos neste texto buscar alguns elementos concei-
tuais e ferramentas teóricas do campo psicanalítico

Psicanalista, Mestre em Comunicação e Semiótica pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
membro do Setor de Psicologia e docente do
Aprimoramento da Derdic/Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise
do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Setor de
Psicologia e docente do Aprimoramento da
Derdic/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

32 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 32 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

para a elaboração do diagnóstico di-


ferencial entre autismo e psicose na
infância. Pensamos esse diferencial
considerando que ambas as psicopa-
tologias estão marcadas por diferen-
tes impasses nos tempos da constitui-
ção do sujeito e da função simbólica
do Outro.
Antes de abordarmos as opera-
ções psíquicas que transcorrem na
primeira infância e o diferencial para
as psicopatologias, propomos situar
algumas questões sobre os diagnósti-
cos e mais propriamente do diagnós-
tico em psicanálise.
Lerner & Kupfer (2008) apresen-
tam os resultados da Pesquisa multicên-
trica de indicadores clínicos de risco para o
desenvolvimento infantil, financiada pela
FAPESP e Ministério da Saúde, que
verificou que até 1980 o autismo não
era tão popularizado, ou seja, não com-
parecia tanto quanto aparece hoje na
produção científica e cultural. Isso fa-
zia com que as crianças chegassem tar-
diamente para o diagnóstico e trata-
mento. Eles constataram que a partir
de 1990, com a popularização da pa-
tologia, as crianças começaram a che-
gar com dois anos ou menos, o que
viabilizou o diagnóstico precoce e as
intervenções preventivas.
No campo psicanalítico esta po-
pularização e a precocidade com que
se pode diagnosticar e tratar viabilizou
e convocou aqueles que disso se ocu-
param a discernir com acuidade es-
ses tempos tão primordiais e as ope-
rações aí implicadas na constituição
do sujeito. Assim se fomentaram as

33

2 Estilos 16.pmd 33 12/9/2011, 15:23


pesquisas e a construção de hipóteses sobre as psicoses e o autismo
na infância, a partir de diferentes impasses na constituição do sujeito.
Sabemos que a diferença entre autismo e psicose nem sempre
está colocada e que, por vezes, as duas patologias são englobadas
numa categoria bem ampla. É o caso do DSM-IV (1994) que deno-
mina as perturbações graves da primeira infância como transtornos
globais de desenvolvimento. Diferimos da proposta contida no DSM-
IV. Primeiro porque não considera autismo e psicose infantis como
estruturas diferenciáveis, e segundo, porque define o diagnóstico a
partir da descrição e agrupamento de fenômenos (estereotipias, mo-
vimentos de correr, falas bizarras ou mutismos, maneirismos, déficits
intelectuais e outros). Nesse caso o diagnóstico se conclui pela clas-
sificação de uma patologia desde que apresente certo número de
fenômenos descritos para o quadro.
Nem sempre a questão do diagnóstico está diretamente ligada
à classificação do quadro a partir da fenomenologia. Por vezes, os
diagnósticos detêm uma preocupação quanto à causalidade da pa-
tologia.
Segundo Zenoni (1991) essas proposições sobre as hipóteses
causais carregam, porém, alguma problemática. Há aquelas que si-
tuam a causalidade no biológico. Essa hipótese aparece como uma
das tendências da psiquiatria atual que tem pautado a etiologia das
afecções em critérios orgânicos. Nesse sentido, não apenas o autis-
mo e a psicose, mas diversas patologias estão relacionadas à causa-
lidade biológica. No caso das patologias graves da infância essa hi-
pótese parece se sustentar pela possibilidade que ela dá de explicar
perturbações tão precoces e tão graves do ser humano. Se aparece
tão cedo só pode ser atribuível ao hereditário, ao congênito.
Há proposições que situam a hipótese causal das patologias
graves na relação com o meio ambiente (na depressão materna, au-
sência ou excesso de reações maternais, um parto difícil, um luto
não elaborado etc.). Zenoni (1991) aponta que a proposição da cau-
salidade ambiental nessas patologias pode ser interrogada nos pró-
prios estudos de observações de interação mãe-bebê que buscaram
confirmar a hipótese. Para fundamentar sua discussão o autor apre-
senta duas situações:
A primeira refere que em alguns casos, mesmo quando uma
interação mãe e filho poderia ser considerada portadora de risco
para uma evolução autística, o desenvolvimento da criança desmen-
tia isso.

34 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 34 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

A segunda refere que quando se necessariamente, o efeito seria a evo-


tomava para observação uma intera- lução psicopatológica da criança para
ção mãe-criança acreditando se ob- um autismo. Não é essa a lógica dos
servar o plano da causalidade, na ver- acontecimentos psíquicos. Um abu-
dade o que se observava é o plano so sexual, por exemplo, não necessa-
dos efeitos, já que se tratava de ob- riamente tem os mesmos efeitos trau-
servações de interação quando a máticos para cada um dos sujeitos.
criança já havia sido diagnosticada Isso não é o mesmo que dizer que
como psicótica. esse acontecimento não terá conse-
O autor interroga não apenas as quências, apenas não temos como
hipóteses sobre a causa das psicopa- indicar, a priori, quais seriam.
tologias quando apresentadas isolada-
mente, mas também as abordagens
que propõem a interação entre elas. Diagnóstico em psicanálise
Ele aponta que alguns autores por não
encontrarem a confirmação da cau-
salidade nem no plano neurológico/ Para a psicanálise os fenômenos
genético nem no meio ambiente, par- não têm o mesmo valor de verdade
tiram para a interdisciplinaridade di- que têm para as ciências empíricas, ou
zendo que a causalidade dessas pato- seja, o dado clínico não é o único cri-
logias estaria na correlação entre elas. tério de verdade para afirmar um dia-
O que o autor aponta de funda- gnóstico ou o tratamento. Quando
mental nesse texto é que para a psi- observamos, quando estamos no pla-
canálise o plano da causalidade é ou- no do visível, do que se dá a ver, não
tro, distinto das predisposições inatas observamos a dimensão em que to-
do sujeito e de suas relações com as mam parte, as condições da patolo-
características do meio-ambiente, gia humana. Ao contrário, ignoramos
nem se trata tampouco do plano da a dimensão que a psicanálise freudia-
interação entre elas. na introduziu no campo da clínica: a
Ainda a esse respeito, Kupfer e realidade psíquica.
Voltolini (2008, p. 96) lembram que Figueiredo e Machado (2000)
“para a psicanálise, a causalidade no apontam como o diagnóstico no cam-
campo do psíquico não opera segun- po do sujeito precisa estar referido a
do a lógica de causa e efeito”, isto é, uma indicação psicanalítica de que
quando um elemento ocupa a condi- “toda relação do sujeito com o mun-
ção de causa necessariamente teremos do é mediada pela realidade psíqui-
um efeito. Por exemplo, se aproxima- ca”. As autoras remontam a Interpre-
mos a pele do fogo o efeito é a quei- tação dos sonhos de Freud (1900) que
madura. Assim, nessa lógica, quando ali afirma que o inconsciente é a ver-
se apresenta uma depressão materna, dadeira realidade psíquica e que, des-

35

2 Estilos 16.pmd 35 12/9/2011, 15:23


sa realidade, só aparece uma parciali-
dade, em forma de palavras e ações
prenhes de sentido tal como um lap-
so, um sonho ou um sintoma. Ou seja,
a leitura do que se passa no campo
do sujeito, da realidade psíquica, pode
apoiar-se nos efeitos indiretos que ela
produz, nos fenômenos que permi-
tam supô-la. Entretanto, a realidade
psíquica ela mesma, é uma realidade,
uma dimensão fora do campo do
observável.
A primeira conseqüência disso é
que não são os fenômenos que defi-
nem o diagnóstico. Entretanto, o pla-
no da fenomenologia, apesar de ser o
plano do visível no qual os aconteci-
mentos se dão a ver a um observa-
dor, não deixa de ter as mais íntimas
relações com o plano estrutural.
O importante é destacar que se
trata de dois planos: o da fenomeno-
logia, que descreve minuciosamente
os signos e comportamentos da pa-
tologia e o da estrutura, que vem
apontar a relação do sujeito com o
Outro. Para a psicanálise os fenôme-
nos (sejam eles falas, comportamen-
tos, a motricidade, a percepção, a in-
terpretação que alguém tem das coisas
no mundo) estão condicionados pela
estrutura que os antecede e determi-
na, ou seja, se ordenam a partir do
campo significante.
O diagnóstico em psicanálise é
estrutural e não fenomenológico. Por
diagnóstico estrutural podemos en-
tender um diagnóstico que se dá sob
transferência, em que os fenômenos
são efeitos da realidade psíquica, da

36 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 36 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

relação ao Outro, ou seja, de um


modo de incidência na linguagem.
Como afirma Calligaris (1989, p. 9-
10), “Podemos fazer o diagnóstico
mesmo na ausência de fenômenos,
por exemplo, podemos fazer diagnós-
tico de psicose na ausência de qual-
quer crise psicótica e suas manifesta-
ções.... A clínica psicanalítica não é
uma clinica descritiva nem fenome-
nológica, mas é uma clinica estrutu-
ral, na medida em que o diagnóstico
se estabelece na transferência.”
Soler (2007) adverte a esse res-
peito que a clínica psicanalítica não
nega os fenômenos, mas que Lacan
os situa como efeitos da função sig-
nificante ou de sua inoperância. Lacan
definiu a foraclusão como ausência de
um significante, o Nome-do-Pai e de
seu efeito metafórico, hipótese pela
qual ele designa a causalidade signifi-
cante da psicose. Entretanto, como
diz Soler, a foraclusão não é um fe-
nômeno e “a foraclusão não faz par-
te do fenônemos....não identificamos
a foraclusão, mas seus efeitos”. (Soler,
2007, p. 12)
Assim aquilo que observamos a
nível fenomenológico, seja uma alte-
ração na fala, na motricidade ou na
percepção indica que as percepções
e outras funções corporais não fun-
cionam apenas pela ordem natural
como se poderia imaginar, mas são
uma função de fenômenos significan-
tes. O próprio corpo e suas funções
precisam ser transformados a partir
da estrutura do significante.

37

2 Estilos 16.pmd 37 12/9/2011, 15:23


Uma percepção não recortada e ordenada pela eficácia do significante, ou seja,
uma alucinação. Uma enunciação não governada pela relação com o Outro, então
delirante. Uma fala não orientada pelo campo da palavra, portanto ecolálica. Uma
motricidade não governada pela separação e alterização, portanto, uma gestualidade
ecomímica. (Jerusalinsky, 1996, p. 153)

Para o diagnóstico na clínica das psicopatologias graves da in-


fância levamos em conta os efeitos indiretos dessa realidade psíqui-
ca, de sua relação com o Outro: a) os fenômenos – seja um atraso
de fala, uma alucinação, estereotipias, alterações na motricidade,
maneirismos, ecolalias; b) o ato de brincar de uma criança; c) a plu-
ralidade de discursos que a apresentam – a fala dos pais, dos profis-
sionais, da criança.
Mas vale ressaltar ainda nesse ponto a referência que Alfredo
Jerusalinsky faz em diversos momentos de seu ensino e de sua obra
sobre as estruturas na infância serem não-decididas, permeáveis a
novos arranjos significantes, pela disposição que existe na infância
de deslocamentos da posição do Outro. Tais afirmativas permitem-
nos concluir que no tempo da infância nenhum diagnóstico pode
ser definitivo.

O transitivismo materno e a constituição do Outro


do bebê

Para falar sobre a constituição do sujeito e das patologias em


que essa constituição sofreu impasses, propomos inicialmente tra-
tar da constituição do Outro, função simbólica, a partir da antecipa-
ção do sujeito presente no transitivismo da mãe com o bebê. O
transitivismo materno como constituinte do sujeito e do Outro do
bebê aparece em vários pontos da obra de Bergès & Balbo (1997,
2002 e 2003) e vai nos servir mais adiante para tratar do diferencial
psicose e autismo infantil como modalidades diversas, como distin-
tas funções do Outro, assim apresentadas no livro Psicose, autismo e
falha cognitiva na criança (2003).
Se a mãe formula a hipótese de que o filho ao berrar lhe de-
manda, logicamente ela fez a suposição primordial de um sujeito
em seu rebento. O transitivismo entre uma mãe e seu filho aparece
e é constituído pela hipótese que a mãe formula ao filho sobre as
demandas que ele dirige a ela. Ela faz ao mesmo tempo a suposição

38 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 38 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

de um sujeito e de um saber no filho.


E não somente de um saber, mas tam-
bém de um Outro do filho.
Assim também podemos reco-
nhecer na antecipação feita pela mãe
daquilo que o filho experimenta. Se
ela lhe diz “Você tem frio” revela que
é afetada em seu corpo pela expe-
riência de frio vivida no corpo de seu
filho, sem tê-la sofrido.

Há uma negação própria do pensamento tran-


sitivista, que é sempre negação do real expe-
rimentado pelo outro, a fim de que o outro
experimente, especular e realmente, o que é
suposto dever experimentar, por parte daque-
le que o situa em seu transitivismo....Para que
eu refira no outro a dor quando ele se ma-
chuca, afim de que eu mesmo a manifeste
como se minha dor caísse de sua perna, não
é o exemplo de um experimentado entre o
corpo do outro e o meu? (Bergès & Balbo,
1997, p. 98).

A partir da leitura do que esses


autores apresentam, propomos pen-
sar a estrutura do transitivismo ma-
terno como uma operação que se des-
dobra em pelo menos dois tempos
lógicos:

1º tempo: ele sou eu

Esse tempo se dá por uma iden-


tificação que se passa do lado da mãe
e sustenta a suposição de um sujeito
na criança e a constituição do corpo
da criança na linguagem. Quando a
criança chora e a mãe diz “você tem
frio,” a mãe se faz afetada pelo que se
passa no corpo da criança. O corpo

39

2 Estilos 16.pmd 39 12/9/2011, 15:23


da criança não é outro senão o seu próprio corpo. Ao se identificar
com o corpo do filho, com seu discurso, inscreve o corpo do filho
em um corpo de linguagem, constituído de significantes. É um sa-
ber sobre o real do corpo que faz a passagem do corpo como puro
real para o corpo simbólico. É por esse saber sobre o frio que o
corpo lhe é atribuído. Ela força seu filho a aceitar a atribuição de
um corpo, que ela lhe faz.
Por meio do transitivismo emerge uma forma de identificação
na qual a mãe por meio de seus enunciados força a identificação a se
produzir na criança. A criança não se identifica somente ao discurso
de sua mãe, mas também ao saber que esse discurso lhe transmite
sobre a experiência de frio.
É impossível pensar a identificação independente da atribui-
ção; uma não vai sem a outra. Se uma não vai sem a outra podemos
pensar que é porque a mãe atribui um corpo a seu filho que este se
identifica ao discurso da mãe, ao que ela sustenta a respeito do frio.
Configura-se assim o momento de passagem do real do organismo
para corpo significante.

2º tempo: ele é outro

Se ela lhe diz “você tem frio” quer dizer que ela apela a um
saber no filho, a um sujeito que sabe. São significantes que a mãe
endereça a este filho na medida em que ele saberia, ou seja, em que
ele seria sujeito de um saber. Uma vez que a mãe supõe seu filho
habitado por um saber, quando lhe faz a hipótese, testemunha com
isso, não que ela seria ela mesma o sujeito suposto saber, mas que
ela está marcada pelo Nome-do-Pai, referindo seu discurso transiti-
vista a uma lei terceira.
O que Bergès e Balbo (2003) propõem é muito diferente de
pensarmos que o Outro da criança constitui-se numa diferenciação
gradativa do Outro da mãe. A tese clássica propõe um Outro co-
mum à mãe e ao filho, do qual pouco a pouco a criança vai se dife-
renciar, se individuar. Nesse caso a criança precisaria tomar em-
prestado o Outro materno, até que possa constituir o seu próprio.
Para os autores essa tese ignora a questão do sujeito tal como pro-
posta por Lacan e, assim eles propõem situar que o transitivismo
materno indica uma criança sujeito e o Outro na criança.
Quando a mãe lhe demanda apropriar-se do que ela diz, partin-
do do princípio de que o filho já sabe, há então um sujeito na crian-

40 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 40 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

ça, ela lhe demanda apropriar-se, co-


meçar seu tesouro de significantes.
Trata-se de significantes que lhe são
próprios e que vão, por seu turno,
atrair para eles, significantes que são
aqueles dos discursos dos outros em
torno de si, em particular os da mãe.
É precisamente a mãe, que constitui
o Outro do filho a partir do transiti-
vismo. Dizendo-lhe “você tem frio”
quer dizer que ela apela a um sujeito
que sabe, ela atribui um saber ao fi-
lho: VOCÊ tem, é você que tem.
(Bergès & Balbo, 2003).
São, portanto, os significantes
que a mãe endereça a este filho na
medida em que ele saberia, ou seja,
em que seria sujeito, que vai consti-
tuir “um novo sujeito”. O filho se faz
sujeito identificando-se por um sig-
nificante que ele escolhe no Outro de
sua mãe, junto a um significante que
ela designa no Outro dele. Aí está o
encontro.
Não é o Outro da mãe que trans-
borda sobre o filho e que o Outro da
criança é constituído de significantes
que a mãe tomou de seu próprio
Outro para impingi-lo ao filho, para
embutir na criança. É então, ao Ou-
tro da criança que a mãe endereça um
significante. Logo seriam dois Outros
e dois sujeitos.
Essa suposição materna quanto
a um sujeito no filho, instaura nele
uma posição de disparidade em rela-
ção à sua mãe, ela mesma como su-
jeito. Se ela lhe diz “você tem frio”
não é unicamente à temperatura que
ela faz referência. Além disso, é uma

41

2 Estilos 16.pmd 41 12/9/2011, 15:23


referência a um saber sobre o que se passa com o filho como outro.
Ela faz referência à presença desse frio que ela toma de seu Outro,
para um outro significante que a mãe distingue como sendo do fi-
lho, do Outro do filho.
A disparidade é necessária para, enfim, pensar a relação mãe e
filho, que não é somente especular, pareável. Sem essa suposição de
dois Outros e dois sujeitos, a relação seria estritamente imaginária,
vivida somente no eixo a-a’. Conceber dois sujeitos e dois Outros
torna necessário o recurso ao simbólico. Por isso esse tempo ter
sido chamado de “ele é outro”.
A clássica observação – ele tem o nariz do papai, os olhos do
vovô, a pinta de, a beleza de etc. somente é feita porque a mãe, sem
que o saiba, vê nele seu próprio corpo. Por outro lado, essa atribui-
ção faz com que a criança seja não todo o corpo de sua mãe.
Assim também podemos pensar com o sorriso: Quando a mãe
espera do bebê um sorriso, ela dota a criança da capacidade de sor-
rir, já que é ela que lhe concede essa antecipação, esse crédito, essa
hipótese. A partir do instante em que o filho responde com um
sorriso, existe uma alternância de posturas da mãe e do filho, cada
uma antecipando a outra. O traço no rosto da criança que exprime
o sorriso, não é o mesmo que aquele antecipado pela mãe. O sorri-
so é um significante do Outro da criança, que a representa para o
outro significante que é o próprio sorriso antecipado pela mãe a
partir de seu Outro.
A mãe que transitiva, instala também a operação constituinte
denominada estabelecimento da demanda. Primeiramente ela dá um lu-
gar ao filho em função da hipótese que faz de uma demanda nele.
Não é apenas uma antecipação, mas um empréstimo, uma suposi-
ção, uma teorização sobre uma demanda na criança. Depois, pelo
jogo de alternância presença-ausência, a mãe não se apresenta como
toda-presença ou como pura ausência, isto é, se ela alterna , instaura
um primeiro funcionamento simbólico em relação aos objetos da
pulsão: fome-saciedade, sono-vigília, olhar-ausência do olhar, fala-
silêncio. A alternância da mãe engaja o bebê na busca do reencon-
tro do perdido, na busca de que a mãe retorne. Esse ponto será
fundamental para que o bebê se implique na produção de uma de-
manda.
O crédito dado pela mãe eleva o filho além da posição de Coi-
sa. A partir do momento em que a própria mãe não está mais na
posição da Coisa, é que ela vai lhe falar essa demanda, ela vai lhe

42 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 42 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

enviar significantes desde a sua posi- seu Outro. Há saber e há Outro, mas
ção de sujeito. “E, é sem dúvida, des- apenas um – o da mãe.
se lugar que advém o grande Outro No autismo o que se apresenta é
do bebê, tesouro do que ela tem a di- a impossibilidade materna de fazer a
zer ao filho”. (Bergès & Balbo, 2003, hipótese de uma demanda do lado do
p. 9-10) filho.
A mãe de um garoto autista em
tratamento diz à analista:
O Outro nos impasses do Ele fala algumas coisas, doutora:
transitivismo PAPAPA, MAMAMA, palavras que
não têm sentido.

Bergès e Balbo (2003) propõem A mãe não faz a hipótese de um grande Ou-
abordar a questão do autismo e da tro no filho: este não é mais que um puro
psicose na criança a partir destes re- real e ela não força esse real a fim de que
surja um Outro....Eis então uma criança que
ferentes clínicos, ou seja, de impasses
tem um grande Outro vazio de qualquer sig-
que se dão nos dois tempos do tran- nificante e que tem como grande Outro ape-
sitivismo que é o fato da mãe: 1) não nas um signo real: o grande Outro da criança
fazer nenhuma hipótese de um saber é apenas um puro real, um buraco. (Bergès &
no filho e 2) que este saber lhe seja Balbo, 2003, p. 123).
outro. É dizer que ela faz de um modo
que não haja, para ele, nenhum Ou- Assim também podemos ouvir
tro possível. Nos casos em que falha no relato emocionado da mãe de um
um dos tempos do transitivismo, o autista, que olhava de canto de olho.
Outro do filho não tem nenhum sig- A analista lhe diz:
nificante ou está referido a significan-
tes que não lhe são próprios. Essas – Tá me provocando, hein? Quer
teses colocam a problemática tanto do brincar de pega-pega?!
autismo como da psicose.
No autismo a mãe não se afeta A mãe espantada pergunta:
pelo que afeta o bebê e assim ela não
fará a suposição nem de um sujeito, – Como você consegue se enganar as-
nem de um saber na criança. Essa sim? Eu gostaria muito de poder me
ausência terá como consequência o enganar assim!
caso em que a mãe diz “isso vomita,
isso chora, isso mija.” Esse pequeno relato revela que
Na psicose o que a mãe articula é por meio de seu imaginário, no seu
não supõe que o significante que es- discurso, por seu discurso, que uma
taria do lado dela, também estaria pre- mãe imaginariza a demanda do filho.
sente do lado do filho. Ela priva-o de Como consequência dessa impossibi-

43

2 Estilos 16.pmd 43 12/9/2011, 15:23


lidade o filho não poderá encontrar
no discurso de sua mãe o significante
que o representaria no Outro dela. No
autismo é justamente o imaginário
que faltou no discurso da mãe a pro-
pósito de seu filho. Lidamos com
mães educativas, elas descrevem o que
faz a criança. Elas estão no fazer, ja-
mais no dizer.
Quando a mãe transitiva, se o
bebê cai ela diz, “nenê se machucou”; essa
fala tem um endereço: o filho. Ao
passo que no discurso da mãe do au-
tista existem as palavras, mas ausen-
tes de um dizer. Falas sem destinatá-
rio nem remetente. Como disse a mãe
de um paciente: “Não há nada que eu
possa dizer a ele, até que ele fale comigo.”
A criança é apenas um real: não
somente não tem Outro, nada que seja
da ordem do simbólico, como também
não terá mais acesso ao imaginário.
Para falar dos impasses do tran-
sitivismo na psicose, Bergès e Balbo
(2003), recorrem ao mito de Narciso,
tal como Ovídio1o narra, distinguin-
do dois tempos desse mito:

1º tempo do mito: Em que Narciso crê rela-


cionar-se com um outro que o ama e em di-
reção ao qual se inclina, a quem beija a boca
e toma nos braços. Ele se relaciona enquan-
to supõe que essa imagem é de um outro.
Narciso não está apaixonado de modo algum
por seu reflexo, nem por si, ele está apaixo-
nado por um que ele crê ser outro. Sem que
o saiba, esse outro é apenas ele mesmo, seu
duplo especular.
2º tempo do mito: É quando Narciso se dá
conta que esse outro não é ninguém, senão
ele mesmo. Decide então morrer, formando
apenas Um, mas sem sua imagem.

44 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 44 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

O primeiro tempo do mito per- Quando uma criança psicótica se


mite pensar a operação de constitui- comporta quebrando as coisas da sala,
ção do sujeito do narcisismo da mãe abrindo as torneiras, derrubando ob-
em direção à criança como objeto de jetos pelo espaço, debruçando-se na
seu investimento libidinal. A mãe que janela, a mãe pode sobre isso fazer uma
se encontra nesse primeiro tempo, descrição, e até mesmo uma atribui-
transitiva. Essa operação conjuga dois ção: “ele é agitado, agressivo”, ou ainda
tempos: ele sou eu, ele é outro. Ela anunciar “Pára com isso!”. Como se diz
vê no filho a imagem dela mesma, no senso comum “ela lhe põe limites”.
sem que o saiba e é por isso que ela Por que isso que ela lhe diz não
pode crer que ele é outro. Ao contrá- opera? Porque não passa pela atribui-
rio, se a mãe não pode se ver no filho, ção de um significante do lado da
aparece a impossibilidade de que a criança, de um saber e de um Outro
própria criança venha a ter uma ima- da criança. A fala materna não tem
gem. A criança não é esse outro do efeito, porque é uma mera descrição
qual o narcisismo da mãe poderia ena- ou um ato destituído da hipótese de
morar-se. que nesse agir da criança tem um sa-
Por outro lado, se a criança está ber que lhe escapa.
englobada nessa imagem que é a da Murilo chega ao consultório de
mãe, ela não é nada por si mesma, ela sua analista e vai direto ao banheiro
não é o outro, ficando assim aprisio- abrir o chuveiro para se molhar. Sua
nada no reflexo, na imagem enquan- mãe, que não o vê, mas escuta, grita
to puro especular. Há uma ausência da sala de espera:
da referencia simbólica, da alterida-
de, ausência de suposição de um Ou- – “Murilo, sai daí”.
tro na criança.
A mãe não sofre assim o efeito Essa fala não o afeta e ele segue
da castração que levaria a constituir se molhando. A mãe interfere; entre-
um buraco em seu Outro e rejeita o tanto, não supõe que haja nele um
Outro do filho. A hipótese de um saber a respeito de seu próprio cor-
Outro no filho, constituiria um bura- po. Sua fala não cumpre assim a fun-
co no Outro materno, ou seja, efeito ção de um interdito.
da castração nela, conseqüência do Nesse momento, sua analista in-
Nome-do-Pai na mãe. tervém em duas direções dizendo pri-
Nesse sentido os autores afir- meiro à mãe:
mam que na psicose há Outro, mas
apenas um- o da mãe. Para o psicóti- – “Agora deixa que eu cuide. Aqui é
co “há somente UM Outro, embora comigo.”
sua mãe e ele sejam dois”. (Bergès &
Balbo, 2003, p. 67) Depois ela diz à criança:

45

2 Estilos 16.pmd 45 12/9/2011, 15:23


– “Será que você está com calor? É para lavar seu pé?” Ele se detém,
enxuga o pé e entra na sala.

Quando uma criança psicótica supõe ao analista um saber so-


bre seu corpo e demanda que o analista lhe responda algo a respei-
to, e este, por sua vez, lhe diz que ELE sabe o que tem que fazer, o
analista faz a hipótese de que há um Outro, um significante na criança
que corresponde ao significante que a criança supõe ao analista.
Quando o analista diz “você sabe o que tem que fazer” não se trata de
uma falta de significante do lado do analista, nem um recuo ou ape-
nas um silêncio. “Isso é dar conta de dois grandes Outros”. (Bergès
& Balbo, 2003, p. 124). Ao contrário, se ele responde e diz o que
fazer, ele empurra o analisante em direção a um dispositivo no qual
o analista é o Outro, tal qual a mãe única.
A hipótese central de Bergès e Balbo (2003) poderia então ser
resumida assim: para que o sujeito se constitua do lado da criança,
para que se possa ver ali surgir um novo sujeito é preciso insistir nessa
articulação: o filho se confirma como sujeito ao ser representado
por um significante que ele escolhe no Outro de sua mãe, junto a
um significante que ela designa no Outro dele. Se há dois Outros,
dois sujeitos, nasce assim um novo sujeito.
Esse arranjo permite mostrar que a noção de disparidade é
absolutamente central, pois ela incide ao mesmo tempo sobre o
sujeito e sobre o Outro. É porque o Outro existe em um e em ou-
tro, que o inconsciente da criança vai poder se constituir. Ele vai se
constituir a partir de uma divisão, a divisão do sujeito em cada um
deles. Somente a disparidade permite pensar a castração no sentido
do recalcamento. Sem recalcamento, isto é, sem castração, há fora-
clusão.
Para Jerusalinsky (1996b) no autismo não há inscrição do su-
jeito, pelo contrário, há exclusão do sujeito e no lugar onde se
deveria encontrar a inscrição encontra-se o real, ou seja, ausência
de inscrição.
Na psicose, o significante que a mãe viria a designar no Outro
do filho está foracluído. Para Jerusalinsky (1993) na psicose “se pro-
duz uma inscrição do sujeito, mas numa posição tal que esta inscri-
ção não pode ter consequências na função significante”. O psicóti-
co recebe a demanda do Outro na via de um traço que não pode ser
simbolizado, ou seja, trata-se de um puro significante, uma inscri-

46 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 46 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

ção sígnica, uma inscrição que perma-


nece no campo da foraclusão.
É por isso que na psicose infantil
a linguagem aparece, mas de forma ora
ecolálica – que é uma repetição fônica
de palavras sem encadeamento do
sentido – ora de forma a produzir
pequenas unidades de sentido, frases
feitas. Vamos fazer comidinha? Que boni-
to! São frases repetidas, com sentido,
mas que não desdobram nenhuma
significação além do que está dito ali
mesmo. Pelo fato da criança psicóti-
ca estar referida a uma inscrição é que
ela fala, mas a partir de uma inscrição
que lhe refere um traço único, sem
possibilidades de simbolização e é por
isso que ela o faz guiada por esta co-
lagem do lado Outro materno.
Jerusalinsky (1996b) propõe a
diferença entre o psicótico e o autis-
ta. Se para o psicótico cada palavra
carrega seu próprio e definitivo sen-
tido, para o autista cada palavra car-
rega seu próprio apagamento. No
autismo não há significantes em seu
Outro, se é que há um, e é por isso
que os significantes lhe dão medo e
ele recua frente a eles.

Transitivismo e o corpo na
psicose e no autismo
autismo..

Podemos ainda tratar o diferen-


cial autismo e psicose a partir de efei-
tos clínicos que se apresentam no
corpo na ausência do transitivismo.

47

2 Estilos 16.pmd 47 12/9/2011, 15:23


Para pensar os efeitos do transitivis- A ausência da constituição dessa
mo no corpo tomemos o exemplo da borda imaginária-simbólica faz com
mãe que não faz nenhuma interven- que a criança psicótica possa experi-
ção sobre a criança que se agita, que mentar a angústia de que seu corpo
sobe e desce, que grita na sala, que ao ferir-se, pode vazar. Outras, para
mexe em tudo indistintamente. Nes- marcar o corpo de alguma forma, pre-
te caso, poderíamos pensar que essa cisam buscar no real a experiência do
ausência de intervenção do lado da que faz corpo – se esfregam no tape-
mãe refere-se a uma falha da função te, precisam molhar as mãos muitas
educativa, pedagógica, uma falha do vezes, passar a tinta pelo corpo ou até
lado dela em por limites. Propomos mesmo se machucar. Ela não tem
pensar, porém, que trata-se de uma outra forma de passar pela experiên-
impossibilidade na função transitiva, cia da borda corporal que não seja no
de tomar a experiência corporal da registro do Real.
criança para si, como se fosse sua pró- Thais de seis anos afirma à sua
pria e pronunciar a esse respeito um analista:
significante. É por falha na função
transitiva que ela nada diz, é por isso “Minha avó diz que se eu não tomar muita
que ela não intervém ou seu dizer não água, todo meu cabelo vai cair”.
opera, vem esvaziado da condição de
interdição. Para um neurótico, essa fala leva
Na psicose, o corpo do filho não a um estranhamento e ele pode inter-
se constituiu como uma unidade ima- rogar sobre o funcionamento de seu
ginária separada da imagem do cor- corpo. Ele interroga na condição de
po da mãe. Está referido a um saber, constituir um saber que lhe seja pró-
mas esse é um saber que a mãe sabe prio e não tão sabido. Para Thais esse
sobre seu próprio corpo. Por outras dito não é dialetizável e ela, nessa
vezes é um saber apenas sobre o fun- hora, só pode separar-se do dito, cor-
cionamento do corpo, impedindo as- tando ela mesma um fio de seu cabe-
sim que o corpo do filho possa se lo. Essa separação acontece no real.
constituir no que Bergès & Balbo Thaís, enquanto termina uma
(2006) chamam de desconhecimento. pintura no papel, curiosamente passa
Para que o discurso opere sobre o o dedo pela tinta e depois sobre sua
corpo, ele não pode ser todo saber mão. Em seguida, olha para a analista
sobre o corpo, nem tudo do corpo pedindo uma confirmação para a con-
pode estar sabido. Por exemplo, o ex- tinuidade. Ela desloca, então, da mão
cesso de intervenção materna está para o rosto e imprime ali os traços
orientado por uma defesa à castração, de um indígena. Quando a analista a
um não querer saber do desconheci- questiona sobre essa pintura Thais,
mento sobre o corpo do filho. lhe responde:

48 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 48 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

_ “É um disfarce”.
_ “E para que um disfarce?”
_ “Essa é a única forma de surpreender a minha mãe”.

As mães de psicóticos não introduzem o imaginário como uma


suposição, mas como uma asserção sem intervalo, uma certeza, uma
convicção. Essa que assim ocupa todo lugar do Outro é totalmente
excluída como mãe transitiva.
O olhar dirigido e a demanda aparecem na criança apenas se o
outro é lugar de endereçamento, apenas se num tempo primordial a
mãe tiver suposto uma demanda na criança, se tiver sido possível
colocar em andamento as primeiras representações antecipadoras
de uma demanda na criança. No autista, chama a atenção a ausência
do olhar dirigido e falta de sinais de apelo. Em alguns casos, são
crianças perseguidas pelos signos da presença do outro, muito par-
ticularmente por dois objetos: o olhar e a voz. É como se fossem
surdas. Elas afastam tudo que é voz ou têm distúrbios da visão,
como o estrabismo – não olham. Evitação, recusa, anulação da pre-
sença do outro, pois o olhar e a voz carregam os signos da exclusão
que a criança foi objeto um dia. A perseguição de que essas crianças
parecem ser objeto é correlata com sua propensão ao ritual. É pre-
ciso que nada se mexa, elas precisam evitar o imprevisível, pois ele
é como um indicador de presença.
Em alguns casos de autismo as zonas erógenas não constituem
bordas. São bocas que vazam, esfíncteres que não se fecham e mo-
tricidade que não se organiza. Em outros, as bordas corporais e seu
funcionamento estão constituídas, entretanto, destacadas do eno-
damento simbólico-imaginário. É um puro imaginário, sem articu-
lação simbólica que se manifesta sob a forma de uma mimese das
cenas habituais, aparecendo como uma ecomímia de um gesto re-
petido sem significado singular.
No autismo, os significantes foram deteriorados, explodidos,
degradados em seu funcionamento. O cálculo de datas no calendá-
rio, uma contagem matemática desenfreada ou a repetição de um
slogan estão completamente impossibilitados de funcionar enodando
simbólico e imaginário. Para um matemático esse real dos números
produz demonstrações, logo sentido- torna-se significante e a partir
desse momento é transmissível. No autista, isso nunca faz sentido,
são registros que o autista faz do real, mas que não configuram
elementos que possam ser considerados traços de uma série signifi-

49

2 Estilos 16.pmd 49 12/9/2011, 15:23


cante. De modo que não quer dizer DIFFERENTIAL DIA GNOSIS
nada para o outro. PSYCHOSIS AND AUTISM:
IMPAIRMENTS OF TRANSITIVISM
Uma criança autista em trata- AND CONSTITUTION OF THE OTHER
mento por 10 anos, que a princípio
ABSTRACT
não encontrava nenhuma referência
This article proposes to deal with differential diagnosis
simbólica (fosse de fala, fosse de es-
between infantile psychosis and autism whereas both
crita) descobriu aos poucos o funcio- psychopathologies relate to different impairments of
namento da escrita de palavras, bem maternal, constituent function of the subject and
como podia escrever números perfei- baby’s Other. Autism and psychosis are treated as
tamente, fossem eles ditados por al- separate functions of the Other.
Index ter ms: diagnosis; psychosis; autism;
guém, como por exemplo, 5764, ou transitivism; Other.
ainda escritos por ele no computador
em progressão aritmética. Entretan-
to, foi muito tempo depois que ele
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL ENTRE
pode usar números para contar obje-
PSICOSIS Y AUTISMO: IMPASSES DEL
tos, para referir datas e mesmo usar TRANSITIVISMO E DE LA
palavras escritas no computador como CONSTITUCIÓN DEL OUTRO
mensagens dirigidas ao outro. RESUMEN
A incidência do Nome-do-pai na Este trabajo se propone abordar un diagnóstico dife-
mãe implica sua castração e isso con- rencial entre la psicosis y el autismo infantil, consi-
sequentemente daria à criança um lu- derando que ambas psicopatologías se refieren a dife-
gar de sujeito e a existência de um rentes impases en el transitivismo materno, función
constituyente del Sujeto y del Otro del bebé. El au-
grande Outro para ela, de uma alteri-
tismo y la psicosis son tratados como distintas funci-
dade que afetaria ao mesmo tempo a ones del Otro.
criança e a mãe. Sem essa função a Palabras clave: diagnóstico; psicosis; autismo;
ausência do transitivismo do lado da transitivismo; Otro.
mãe impede que a criança venha apro-
priar-se e experimentar esse afeto que
a mãe lhe emprestaria como se fosse REFERÊNCIAS
dela. Não se opera, então, uma ins- Associação Americana de Psiquiatria. (1994).
crição na passagem do padecido no Manual de diagnóstico e estatística de distúrbios
corpo a uma representação. O tran- mentais: DSM-IV (3 a ed.). São Paulo:
sitivismo da mãe opera o enlaçamen- Manole.
to do afeto no corpo e é nessa medi- Bergès, J., & Balbo. G. (1997). A criança e a
psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas.
da que podemos dizer que a língua
Bergès, J., & Balbo. G. (2002). Jogo de posição
nos causa, ela funda o sujeito e a ex- da mãe e da criança: ensaio sobre o transitivis-
periência do corpo, constituindo as- mo. Porto Alegre: CMC.
sim o enodamento simbólico – ima- Bergès, J., & Balbo. G. (2003). Psicose, autismo
ginário – real do corpo. e falha cognitiva na criança. Porto Alegre:
CMC.

50 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 32-51

2 Estilos 16.pmd 50 12/9/2011, 15:23


Dossiê
Dossiê

Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre:
Artes Médicas.
Figueiredo, A. C., & Machado, O. M. R. (2000). O diagnóstico em psicanálise: do
fenômeno à estrutura. Ágora, 3(2), 65-86. Recuperado em 05 de maio de 2011,
de www.scielo.br
Jerusalinsky, A. (1993). Psicose e autismo na infância: uma questão de linguagem.
Revista da APPOA, (9), 62-73.
Jerusalinsky, A. (1996a). Para uma clínica psicanalítica das psicoses. Estilos da Clí-
nica: Revista sobre a Infância com Problemas, 1(1), 146-62.
Jerusalinsky, A. (1996b). Autismo: a infância do real. Am(a)relinhas. À margem da
infância. Um estudo transdisciplinar da psicose e do autismo. Biblioteca Freudiana de
Curitiba, n. 3, pp. 9-14.
Jerusalinsky, A. (2005). Quem analisa crianças? Correio da APPOA, 134 , 7-14.
Kupfer, M. C. M., & Voltolini, R. (2008). Uso de indicadores em pesquisas de
orientação psicanalítica: um debate conceitual. In R. Lerner & M. C. M. Kupfer
(Orgs.), Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa (pp. 93-107). São Paulo: FAPESP/
Escuta.
Lerner, R., & Kupfer, M. C. M. (Orgs.). (2008). Psicanálise com crianças: clínica e
pesquisa. São Paulo: FAPESP/Escuta.
Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Zenoni, A. (1991). “Traitement” de l’autre. Préliminaire, Antenne 110(3), 101-13.

spavone@pucsp.com.br
yrafaeli@pucsp.com.br

Recebido em maio/2011.
Aceito em junho/2011.

51

2 Estilos 16.pmd 51 12/9/2011, 15:23

Você também pode gostar