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Branco sobre branco: didlogo entre Octavio Paz e Murilo Mendes Prof. Me. Raimundo Carvalho UrES: Estudo comparative de Blanco, de Octavio Paz, e “Texto branco”, de Murilo Men- des, apresentado no Simpésio Sobre hispanidad, promovido em 1993 pelo DLL/UFES. Quando fui convidado a participar deste evento que, parece, tem por objetivo fazer circular em nosso meio os valores da arte ¢ da cultura de nossos vizinhos, os patses de Iingua espanhola, pen- sei imediatamente em Octavio Paz, figura paradigmatica do con- texto hispano-americano que, ao lado de Borges e Cortézar, forjou a modernidade de sua literatura e a projetou no mundo. Em segui- da, procurei em Octavio Paz aquele momento de sua escritura que desse uma melhor idéia de seu miiltiplo fazer — obra extensa que vai da poesia & prosa ensafstica, um universo que engloba desde reflexdes sobre as culturas arcaicas do México pré-colombiano as formulagdes mistico-fildsicas da tradigo oriental, balizada, logicamente, por aquilo que se convencionou chamar de cultura ocidental. Blanco, escrito em Délhi, em 1966, é 0 momento/mo- numento de culminancia e convergéncia de uma atividade s6 apa- rentemente dispersiva. ‘Antes, porém, de entrar propriamente no objeto desta comu- nicagio, creio ser instrutivo falar das dificuldades que encontrei, € ainda encontro, para penetrar-Ihe. A primeira delas é que a poesia um discurso irredutivel & prosa. A poesia nao se explica, a poe- sia € o que é,e.a melhor maneira de saber o que diz um poemaé a sua leitura. O poema diz exatamente o que esté dizendo, ¢ a forma W7 18 como diz é parte inaliendvel deste dizer. Neste sentido, a poesia é tautol6gica: s6 outro poema pode ler com propriedade um poema A outra dificuldade que se apresentou a mim é que, sendo Octavio Paz. poeta-critico, ele mesmo ja tratou de abrir caminho ao leitor, fornecendo, em forma de notas e comentérios, um roteiro seguro de interpretacdo ¢ leitura do seu poema. Além disso, a critica es- pecializada jd se debrugou sobre Blanco exaustivamente, deixan- do aquela sensago de que ja foi dito tudo, No entanto, apesar des- ta sensagio de exaustio, nada impede que mais uma voz se acres- cente ao incessante didlogo que se formou em torno a Blanco, des- de que depois consigamos re-instaurar o siléncio, atmosfera essen- cial para a sobrevivencia e fruigo do poema. Aeste coro, vou acrescentar outras duas vozes: a minha, natu- ralmente, ¢ a de outro poeta. Pretendo, neste tempo que me cabe, esbogar uma leitura comparativa de Blanco, de Octavio Paz e “Tex- to branco”, de Murilo Mendes, escrito também em 1966, como apre- sentago da exposi¢’o Bianco + Bianco, na Galeria do Obelisco, em Roma (cf, GUIMARAES, 1993, p. 79). O texto muriliano é composto de quatorze fragmentos, no seu costumeiro estilo de prosa telegrafica, concisa, direta e permeada de referéncias literdrias, filos6ficas e pictoricas. E uma reflexo so- bre a cor branca e sua significagao nos dominios da arte e da vida. Procurarei, portanto, a partir desses fragmentos tecer o “fio de Ariadne” que me permitird adentrar no poema de Paz ¢ descobri as marcas de um didlogo tacito, sub-repticio, entre estes dois poe- las, artifices maximos da modernidade. Assim, 0 texto em prosa do poeta brasileiro sera utilizado como um mapa, orientando a cons- truco do meu discurso critico sobre o poema do mexicano. Passo aleitura de “Texto branco”: + Pintores, desenhistas, gravadores, escultores operam cada vez mais por meio da cor{?) branca, isolada. Revista Context, a, © O branco: ndo somente a sintese das cores. Ainda reparo contra a retérica, o excesso, as insidias do gestual. Razdo e medida. © A idéia de isolar 0 branco repousa sobre 0 conceito de a) limite, b) rigor, c} disciplina, ‘© ‘Sur le vide papier que la blancheur defend”, diz Mallarmé. Construir por exemplo um quadro em branco &: isolar Situar uma parede pura ‘acender © 0 branco mistura, separa, elimina. Corrige 0 temperamento do ar- tista que tende a sobrepor-se a obra de arte. © Nos labirintos céncavos ¢ convexos de uma escultura ou de wm qua- dro branco distingo cristais crescendo, a infancia do diamante, a lémi- na da espada que somente corta a dgua; surpreendo 0 soliléquio da cal, 0 brago de uma estrela dormindo, um espaco conciso. # Branco é luz domada: dindmica da nossa contemplacao. © Branco sobre branco: silencio absoluto agindo. «# Segundo Klee: as infintas graduagdes do branco; a energia brancas atingir pelo branco o arquétipo. © Segundo Mondrian: a realizagao de um equilibrio. O abstrato conti- do no esquema da vida real. © Segundo o Zen, a cor branca conhece quem esta diante deta. © 0 centro de gravidade da meditagao. O dtomo puro. A paz. J4 no primeiro momento, o que chama a atengio € a filiagao ‘comum dos textos de Paz e Murilo Mendes. Ambos tém sua ma- iz propulsora em Mallarmé. Blanco tem, como uma de suas Bronce sobre bronco: diolego entre Octavio Pax e Murilo Mendes — 179 180 epigrafes, este verso do famoso soneto em yx: Avec ce seul object dont le Néant s’honore, que Augusto de Campos assim traduziu: “Com esse tinico ser que o Nada se honora”. A citagao no texto muriliano é do soneto “Brise marine”. Mas, é no poema “Un coup de dés”, que Mallarmé vai operar iconicamente com a cor branca. Diz ele, no prefécio a0 poema, que “os “brancos’ com efeito assu- mem importancia, agridem de inicio, a versificagao os exigiu como siléncio em derredor, até o ponto em que um fragmento lirico ou de poucos pés, ocupe, no centro, o tergo mais ou menos da pagi- na” (apud CAMPOS, 1980, p. 151). Comparemos essa citagio com 0 comentiio do proprio Paz: “O poema comega com um branco antes da linguagem, o silencio antes do poema, e termina com o siléncio depois do poema" ou, ainda na expresso de Paz, “o branco antes de desembocar no bran- co (de atingir 0 alvo)” (apud CAMPOS et PAZ, 1993, p. 88). Blanco ‘em espanhol é adjetivo indicando a cor branca, ¢ também substan- tivo significando 0 alvo. Nos dois poemas o branco atua como motor operatério da escritura € como icone do siléncio, expresso concreta da nogdo metafisica do Nada. H4 em Blanco uma escala cromética que vai do amarelo ao vermelho, ao verde, ao azul, até chegar ao branco “sintese das cores”, no dizer de Murilo Mendes, ou “o siléncio final, a unidade”, no comentédrio de Paz. As observagées contidas em “Texto branco”, de Murilo Men- des, referem-se ao contexto das artes plisticas, artes essencialmente espaciais, mas isso nao impede que as transportemos para 0 con- texto da poesia, arte temporal, uma vez que na modernidade, bus- ca-se abolir estas fronteiras, ¢ o poema de Paz é, no seu préprio dizer, “uma tentativa no sentido de transformar o tempo em espa- 0”. Blanco, monumento vertical, absorve a simultaneidade do espago branco, no qual germinam as palavras, ndo mais apenas sons que se sucedem no tempo, mas icones a cintilar na superficie dina- mica da pagina. Revita Contexta. n.5 O tema central de Blanco o devir da linguagem. Nele, 0 po- eta, munido de uma rigorosa linguagem substantiva (seqtiéncias de frases quase sempre nominais), encena o aparecimento e desapa- recimento do Ser e sua imersdo no Nada, no siléncio.Cito, agora, parte do fragmento final do poema na elogiada tradugdio de Haroldo de Campos: Se o mundo é real A palavra € irreal Se é real a palavra © mundo Ea brecha o esplendor 0 remainho Nao ‘As desaparicaes € as aparigdes Sim A drvore dos nomes Real irreal Sao patavras Arsom sao nada A fata Irreal Dé realidade ao siléncio . Calar E-um tecido de linguagem Silencio Selo Centetha Na fronte Nos ldbios Antes de evaporar-se A realidade e suas ressurreigées siléncio repousa na fala ‘Ao erigir a linguagem como tema central em Blanco, o poeta langa sobre o mundo, realidade feita de luz e sombra, um olhar interrogativo que capta a fugidia aparéncia/transparéncia das coi sas, dos objetos, dos elementos primordiais (arquétipos), fogo, 4gua, terrae ar. Ao lancar seu olhar, o poeta também procura, auto-refle- xivamente, capté-lo através da alusdo as operagdes mentais que o enformam: a sensacao, a percepgdo, a imaginagao e o entendimento. Branco sobre branco: didlago entre Octcvio Pare Muito Mendes 181 Assim, vigilante e visiondrio, o poeta de Blanco enquadra, no drama da linguagem, a Histéria e os incidentes minimos concomitantes ao ato da escrita, Nao abole do seu discurso 0 aca- s0.¢ a paixo, Como expressa.a epigrafe tintrica do poema, paixio {que limitae libera o mundo. Trata-se de paixao pelo rigor das idéi- as, pela ambigitidade das palavras ¢ pela sedugao dos ritmos ¢ das imagens, Referéncias bibliograficas CAMPOS, Augusto de et alii. Mallarmé. Sao Paulo: Perspectiva, 1980. CAMPOS, Haroldo de ¢ PAZ, Octavio. Transblanco. Sio Paulo: Siciliano, 1994. MENDES. Murilo. Poesia completa ¢ prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 GUIMARAES, Sitio C. Territérios/Conjuncdes. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

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