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Grande sertao: a escrita de uma leitura Lisa Carvalho Vasconcelos” Resumo © presente trabalho, resultado parcial da pesquisa que desenvolvo em meu Mestrado, vem abordar alguns questionamentos sobre a lei- tura que acredito serem intrinsecos a Grande sertio: veredas. Atra- vvés de uma analogia entre o narratario, ou seja o visitante para quem Riobaldo conta sua hist6ria, ¢ o leitor empirico da obra, abordo 0 romance rosiano como uma narrativa que reflete metalingilisticamente sobre a problemética da leitura. A partir dessa idéia, passo a analisar que tipo de leitura nos propde 0 protagonista do romance. Palavras-chave: Literatura Brasileira; Grande sertao: veredas; Nar- ratirio; Leitura; Roland Barthes. J E sabido que, nas altimas décadas do século vinte, o foco da critica literaria se voltou para o papel da recepgio na relagio textual. O leitor, conseqiente- mente, passou a ganhar espaco nas teorizacdes que procuravam explicar 0 objeto literério. Ora, Guima se preocupava com as quest6es relativas a recepeao desde 0 es Rosa, como um autor a frente de seu tempo, ja cio de sua produ- Gio ficcional, De maneiras diferentes, suas obras ilustram uma crescente preocu- pacio com esse assunto: nio s6 seus enredos, freqiientemente, tratam da narrati- va sua acolhida pelo pablico,' como seus livros trazem marcas textuais cada vez ‘mais claras, enfatizando o papel do leitor na construgao de um sentido para a obra. Universidade Federal de Minas Gerais, mestrands Allguns textos sio exemplares nesse sentido: lembremo-nos, por exemplo, de Laudelim ¢ sua cangio tem *O recado do morro”, da contadora de hist6rias Joana Xaviel, em "Uma estéria de Amor” e da Aiutora mirim Brejeirinha em “Partida do audaz. navegante”. Todos eles portadores de narrativas im= portantes que serto, por sua vez, recebidas pelas demais personagens, ora com entusiasmo (como faz DO estrangeiro Alquiste), ora com eeticisma (como os irmaos de Brejeirinha) ou mesmo de mancira questionadora (como faz Manuelzao). 385 ‘SCRIPTN eo Horan, v9, n 17, p. 585-399, 2° sem 2005 Lisa Carvalho Vasconcellos Quem entra em contato com uma das primeiras edig6es de Corpo de baile, por exemplo, se surpreende ao encontrar, nesse livro, dois diferentes sumarios, indicando, nao s6 as paginas em que cada novela se encontra, mas também as classificando por género literrio. Enquanto o primeiro desses sumirios, logo no inicio do livro, denomina poemas todos os textos contidos na obra, o segundo, conscienciosamente colocado na dltima pagina do volume, classifica os quatro primeiros como romances ¢ os trés tiltimos como contos. Tal estratagema parece implicar uma sugestao por parte do autor: que, depois de lido, o texto pode ser pensado sob a perspectiva desses trés géneros. E muito possivel, inclusive, que algum leitor mais afoito se decida, com base nessa adverténcia, a reler a obra, verificando por si mesmo 0 motivo para tal classificagao. Em TTutaméia, temos uma estrutura que, de maneira um pouco mais elabora- da, segue esse mesmo padrio: nesse volume, o segundo indice nao s6 traz novas informagées sobre os textos que lista, como também é explicitamente denomi~ nado “de releitura”. Duas epigrafes de Schopenhauer, tecendo consideragées so- bre os beneficios de uma -gunda leitura para a compreensio do texto herméti- co, reforgam a sugestio implicita em tal titulo, Em nenhuma obra, porém, a tematizagio da recepgio é tio sofisticada quanto em Grande sertio: veredas. Nesse livro, Guimaraes Rosa faz com que a narrati- va seja explicitamente direcionada a uma segunda pessoa, um viajante de fora, que assume o papel de primeiro receptor do relato. Acreditamos ser possivel tomar esse senhor desconhecido com uma metéfora do leitor uma vez que, da mesma maneira que este, ele nao apenas recebe os fatos narrados mas também os apelos daquele que narra, sendo pois convocado a por algo de seu no texto que recebe. Antes de entrar nos méritos dessa estranha personagem, seria interessan- te fazer uma pequena introducio & estrutura textual que dé margem a sua e téncia. Diz-nos Eduardo Coutinho (1993): Ao langarmos uma breve mirada sobre a maneira como se constitui 2 narrativa de Grande sertio: veredas, imediatamente reconhecemos uma situacio dialégica em que certo narrador ~ Riobaldo, um sertanejo inculto ~ faz. 0 relato a um interlocutor de sua vida anterior como jagungo, ¢ o Gitimo — um cidadao urbano culto ~ escuta atentamente toda a hist6ria e toma notas que Ihe servirio mais tarde como base para um possivel livro. Todavia, apesar da presenga de um interlocutor especifico que confere status de oralidade a0 relato, o cariter dialogal da situacio acima descrita & questionado pelo leitor a0 perceber que, em nenhum momento ao largo de todo ro- ‘mance, a narragio de Riobaldo se interrompe para dar lugar fala do interlocutor. Ao contririo, ela consiste em um Snico fluxo, um continuum, e presenga do ouvinte s6 se faz notar gracas a certas observacées do narrador:a reiteracio insistente da forma “o senhor” com que sempre se dirige aquele, uma série de alus6es diretas que o des- crevem como homem de muita cultura ¢ sensibilidade (..)e 0 uso freqiiente de recur- sos narrativos que sugerem algum feedback da sua parte (...) tais como perguntas 386 SCRA, Blo Vorzore, =D, 17, p 385-399, 2>sem 2005 Grande sertdo: a escrita de uma leitura iade imediatamente seguidas de respostas (..), ¢ exclamagdes que indicam a existén uma pergunta anterior (..) (grifos do autor). (p. 62) Resumindo, “(..) poderiamos falar, entao, em didlogo pela metade, ou dislo- g0 visto por uma face. De qualquer modo, trata-se de um monélogo inserto em dialégica (...)” (SCHWARZ, 1991, p. 37). Para efeitos metodolégicos seguindo a terminologia de Genette, passaremos a nos referir aos participantes esse dilogo como narrador e narratario. Explica ele: Como o narrador, o narratério é um dos elementos da situag3o narrativa, ¢ ele se co- loca necessariamente no mesmo nivel diegético; isto quer dizer que ele no se con- funde a priori com o leitor (mesmo virtual) ,da mesma maneira que o narrador nao se confunde necessariamente com 0 autor.* Ov seja, o narratério seria, em uma definigao um pouco redundante, aquele para quem se narra, No que concerne 4 fortuna critica de Grande sertao: veredas, a maioria dos autores consultados emprega o termo interlocutor para aludir a personagem do viajante. Este Gltimo, entretanto, ao se referir simplesmente aquele que toma parte em uma conversagio, acaba por enfatizar o carster de oralidade presente no relato de Riobaldo.’ Nao é isso que pretendemos fazer aqui. Buscamos, no pre- sente trabalho, abordar a narrativa como um todo, sem privilegiar um de s 18 as- pectos em detrimento de outros. Afinal, embora o romance rosiano se construa a partir da simulagao de uma situacao oral, ele nunca deixar de ser uma obra es- ctita. Algum critico mais atento poder objetar contra a ambigao desse projeto, apontando para o fato de que nosso objetivo ¢ lidar com leitura, categoria que implica necessariamente textos escritos. Nos tilkimos anos, contudo, o vocibulo “ler” tem sido aplicado nao s6 a estes tiltimos, mas também a uma série de outros meios que lidam com a palavra. Em 1976, Barthes ja dizia (..) no campo da leitura nio ha pertinéncia de objetos: 0 verbo ler, aparentemente muito mais transitivo do que o verbo falar, pode ser saturado, catalisado, com mil objetos diretos: leio textos, figuras, cidades, rostos, cenas, gestos etc. (BARTHES, 1988, p. 44) Minha tradugao de “Comme le narrateur, le narrataire est un des éléments dela situation narrative, et ilse place nécessairement au méme niveau diégétique;c'est--dire qu'l ne se confond pas plas py Fiavecle lecteur (meme virtuel) que le narrateur ne se confond nécessairement avec Fauteur” (G NETTE, 1972, p. 26: » Segunda o Nove Dicionsrio Aurélio a palavralocutor, em sua origem locutove, significa liceralmen~ te "aquele que fala" (FERREIRA, 1986, p. 1.044), 387 SCRIPTA Belo Horizonte, v3, a. 17, p 385-399, 2° sem. 2005 Lisa Carvalho Vasconcellos Dentro dessa perspectiva, poderfamos muito bem entender 0 héspede de Rio- baldo como um “leitor” de uma natrativa oral. De qualquer maneira, o que est em questo aqui nao é uma identificagio literal entre o narratério de Grande ser- ti narrativas. /eredas ¢ 0 leitor, mas uma simples aproximagao entre essas duas categorias Antes de continuarmos é importante lembrar que o romance de Rosa nao é nica obra ase estruturar como um relato em forma dialégica. Outros textos do autor sao claramente concebidos a partir da mesma proposta. O conto “O espe- Iho” de Primeiras est6rias, juntamente com as mini-narrativas “Antiperipléia” € “Uai, eu?” de Tutaméia, seguem a risca a descrieao feita por Coutinho. Da mes- ma maneira, “Meu tio iauareté”, langado pela primeira vez em margo de 1961, na revista Senhor, ¢ inserido postumamente no volume Estas est6rias, é um exem- plo claro de sinctetismo entre mondlogo e diélogo. Com alguma imaginacio, poderiamos entender “A estéria do homem do pinguelo”, também publicada ini- cialmente na revista Senhor (marco de 1962), ¢ “A hora ea vez. de Augusto Ma- traga” como obras cuja organizagao lembra a estrutura em questio. Na primeira, além da narrativa ser feita a uma segunda pessoa que figura no texto, as opinides ¢ observagdes pessoais dessa mesma sio explicitamente expressas em trechos que se diferenciam do corpo da obra, através da formatacio em itilico, Na se- gunda, por sua vez, teriamos, de acordo com Ettore Finazzi-Agro, um prototipo da estrutura que viria a ser desenvolvida mais tarde em Grande sertio: veredas. A proposicio do critico nos leva a supor que, nesse iiltimo conto, a presenga de ‘um terceiro que ouve a hist6ria seria marcada através de recursos bem mais sutis. De fato, ao lermos com cuidado o texto em questao, percebemos que a frase “Nao senhor”, aparentemente dirigida a algum tipo de interlocutor, aparece uma vex na narrativa. A part nossas indagagdes se coloca como uma constante através do longo trajeto liters dos exemplos acima, podemos perceber que a estrutura objeto de io percorrido por Guimaries Rosa. Para nés, entretanto, Grande sertio: vere- das se destaca dessa massa de outros trabalhos devido nao apenas ao seu volume ow A grande atengio que vem recebendo da critica especializada, mas ao carter inovador que a narrativa em situagao dialégica apresenta nesse momento. Afinal, se considerarmos que em “A hora e a vez. de Augusto Matraga”, texto de 1946, a personagem do narratério ainda é mal desenvolvida, o romance seria a primeira obra do autor a se organizar na forma de um “dilogo pela metade”. Varios estudiosos jé teorizaram a respeito desse setting narrativo e de seu sig- nificado para o romance e, direta ou indiretamente, suas reflexes nfo deixam de implicar também em um questionamento sobre a figura do narratatio, Nao sio muitos, entretanto, aqueles que tém tal tema como alvo de um verdadeiro proje- 388 SCRIPTA Blo Hoa, «9, w-17, p 385-399, 2° sem 2005 Grande sertao: a escrita de uma leitura to tedrico. Concentrando-nos, entio, nesses poucos autores, esbogaremos um pequeno recorte das principais hipéteses desenvolvidas até agora a respeito da personagem em questio. O trabalho dos criticos listados a seguir engloba, evi dentemente, uma gama enorme de questées referentes a0 romance como um to- do. Nao pretendemos, nesse momento, nos deter nessas mesmas, mas somente entender como 0 assunto que tomamos por objeto vem sendo tratado pela comu- nidade cientifica até agora. As abordagens criticas da obra de Rosa se dividem classicamente em trés ma- es diferentes: a estilistica, a mistica e a social. Como 0 proprio nome ji diz, a triz primeira dessas linhas é voltada para o cariter formal dos textos e, dentre os te6- ricos que nos concernem aqui, tem como adeptos Eduardo Coutinho, Ligia Chia ppini e Joao Adolfo Hansen. Da segunda, que inclui tanto as criticas esotéricas quanto as metafisicas, fazem parte, dentre outros, Francis Utéza e Kathrin Ro- senfield. Na iiltima, responsivel pelas abordagens histérico-sociol6gicas, estio compreendidos, por exemplo, os autores Willi Bolle e Ettore Finazzi-Agro. Uma das poucas excecdes a esse esquema € Walnice Nogueira Galvio, autora que, par- tindo de uma anilise formal, atinge conclusées de nivel histérico-sociolégico. Comecemos nosso recorte por ela. Segundo essa autora, Riobaldo, em sua dupla natureza de jagungo e letrado, procura narrar sua vida para compreendé-la, Neste sentido, busca a ajuda de um outro letrado (este sim, portador de uma educagio formal, instrufdo e digno de seu relato) para que juntos transformem uma experiéncia de vida caética em tex- to legivel e compreensivel. E claro que nesse processo muito se perde e Riobaldo, freqientemente, enfatiza esse ponto em reflexdes metalingiiisticas, Ainda assim, confia em seu interlocutor para que esse © ajude a julgar o seu passado e absolvé- lo de suas culpas Ja Eduardo Coutinho faz uma anilise estrutural do setting em que se dé o rela- to. Classifica, a partir de suas conclusées, Grande sertio: veredas como um hi- brido em termos de género literdrio: “um monélogo diélogo”. Essa disposigio buscaria, por sua vez, associar uma estrutura extremamente transitiva a0 carter subjetivo de uma narragio em primeira pessoa. Riobaldo, portanto, narra a um outro, mas procura conhecer a si mesmo. A técnica hibrida elaborada por Rosa propicia justamente essa dialética entre particular e universal. Na linha da professora Walnice, Ligia Chiappini entende as marcas dial6gi do romance como estratégia hibrida que traduz a propria ambigitidade do relato de Riobaldo. Diferentemente daquela, entretanto, nao aborda o protagonista en- quanto um jagunco letrado, atribuindo segundo epiteto exclusivamente ao in- terlocutor. A comunicaga bre o sertao para a cidade. A autora faz uma extensa classificagio da fala do nar- s 10, criada nesse encontro, tem como objetivo falar so- SRA BioTomoae ca pa Pama (8D Lisa Carvalho Vasconcellos rador nos momentos em que se reporta ao “senhor”, listando, em quatro grupos distintos, uma série de passagens nas quais o héspede de Riobaldo é expli ta mente mencionado. © primeiro deles engloba as expressdes de carter fatico, 0 segundo se resume a trechos que contém conselhos, ligSes ou ordens, o terceiro engloba as perguntas e diividas lancadas por Riobaldo a seu visitante anon 0 tltimo as observagées metalingiiisticas. Finalmente, em O 0: a ficgdo da literatura em Grande sertao: veredas, Joo Adolfo Hansen faz, entre outras coisas, uma anilise estilistica das miltiplas vo- no, € zes através das quais 0 romance é constituido. Um dos primeiros tépicos do li- veo é justamente da “voz muda” do interlocutor que, apesar de nao ser registrada pelo texto, tem um importante papel na articulagio do relato como um todo. Se~ gundo o autor, quando dialogamos incorporamos em nossa fala as representa~ Ges sociais de nosso ouvinte, moldando nosso discurso de modo a atender as objegées do mesmo e Riobaldo, em sua conversa com um doutor da cidade, nao é uma excegio a essa regra. Muito pelo contririo, de acordo com Hansen, 0 pro- tagonista de Grande sertio constri sua narrativa justamente através da incor- poracio dos coneeitos, metiforas e discursos dos quais seu hospede é original- mente portador. Temos como resultado que 0 imaginstio urbano, aparentemen- te negado e silenciado no romance, emergiré de dentro da propria fala do serta- nejo como um dos grandes articuladores da elaboragio textual Francis Utéza, em um trabalho bem diferente dos citados acima, aborda as fi- guras de Riobaldo e seu interlocutor aproximando-as 3 relagio mestre/diseipulo, O “senhor” fica em siléncio justamente por nao ter nada a falar e muito a apren- der. Segundo 0 critico francés, as descrigdes pouco precisas dessa personage criam um espago fluido no qual o leitor pode se espelhar, de modo que os ensina- mentos dirigidos a thtima chegam indiretamente ao pablico. Em seu livro Os descaminhos do demo, Kathrin Rosenfield faz uma aproxi- magio inesperada e ao mesmo tempo instigante entre o narratirio eo Deus bibli- co da cultura judaico-crista. Oculto ¢ incompreensivel, este se coloca fora do al- cance humano ¢ o didlogo com 0 mesmo s6 pode ser sem respostas. fo que ve~ mos, por exemplo, em textos do final do Antigo Testamento, como “J6” ou “Eclesiastes”. O campo do agir humano, por sua vez, se constréi, segundo a au- tora, justamente em face dessa impossibilidade de comunicagio com 0 Criador. Nessa perspectiva, 0 narratirio teria um papel anilogo ao de Deus: deixando sem respostas as colocagées do homem Riobaldo, cria um espago livre para a agio que, no caso, é elaborar a narrativa que lemos. Grande defensor das anilises sociais, Willi Bolle propée a idéia de ler Grande sertio como um romance urbano e faz do narratario um dos grandes respon: veis por essa possibilidade. Segundo ele, ao direcionar a narrativa para um ho- 390 SCRIPTA, Belo Honaontes 9, TT pa 399, 2am 2005 Grande sertio: a escrita de wma leitura mem da cidade, o livro implica automaticamente a presenga dessa cidade na sua composigio. Partindo dessas premissas, Ettore Finazzi-Agr® analisa 0 espaco do sertio como um nio-lugar. Este seria assim um emblema do proprio Brasil, um pais mestigo em sua composigio étnica, que preserva elementos arcaicos apesar de ja adentrado na modernidade. O impossivel didlogo com o “senhor” da cidade setia, nesse contexto, uma reflexio sobre o papel da cultura letrada em um pais onde a literatura nao consegue refletir a homogeneidade de uma nagao, mas so~ men-te reescrever a falta Percebe-se, na leitura dos paraigrafos acima, a existéncia de uma grande diver- sidade cone: tual no que concerne & abordagem da figura do narratirio. Mas ‘mesmo em meio a essa enorme variedade, a sugestio de uma relagio entre essa personagem e leitor se faz constante entre os criticos. De maneiras diferentes, Jr. sugerem que o receptor, a0 entrar em contato com o texto, desenvolve um sentimento de identificacio Eduardo Coutinho, Francis Utéza e Davi Arrigu em relagio ao héspede misterioso de Riobaldo. Jé Simone Sousa de Assungio e Vincenzo Arsillo se dagam, muito en passant, se 0 interlocutor nao seria 0 pro- prio leitor. Joao Adolfo Hansen, constantemente, se refere ao héspede de Rio- baldo através do epiteto “ouvinte/leitor”. Finalmente, Ligia Chiappini (1998) chega a afirmar que ele, o narratario, é “(...) ao mesmo tempo figuragio do ou- vinte-leitor e do proprio escritor que primeiro ouviu, anotou e reescreveu a his- t6ria de Riobaldo para nés” (p. 200). De fato, nio faltam autores que sugiram analogias entre narratério e leitor. Ao que tudo indica, entretanto, embora muito mencionada pelos criticos, essa apro- ximagio nunca foi completamente executada, Os trabalhos citados anteriormente se limitam a constatar as possibilidades do texto que apontam nesse sentido, sem desenvolvé-las de maneira profunda. Uma das poucas excecdes, nesse sentido, € 0 jd mencionado texto “A metanarrativa como necessidade diferenciada” de Ligia Chiappini. Instigados principalmente por esse trabalho, exclusivamente dedica- do a personagem do “senhor”, é que propomos nos deter sobre a andlise da fun- io do narratétio dentro da obra, tentando entender suas implicag6es em uma reflexdo mais ampla sobre a leivura. Sio virios os elementos textuais que fornecem elementos para a analogia que pretendemos executar aqui. Em termos pragmaticos, temos no romance de Rosa a representagio ficcional do proprio ato enunciativo que, enfocando de maneira desigual, mas nao menos efetiva, as duas polaridades (eu/ tu) envolvidas na agio lingiiistica, se aproxima do contexto comunicacional no qual o livro, enquanto veiculo escrito, também se insere. Assim, Grande sertio: veredas prope um es- pelhamento reflexivo, onde a relagio vivenciada no texto pelos parceiros virtuais retoma, metonimicamente, a relagio que o leitor estabelece com 0 texto. SOT Rao PER hem 8 Lisa Carvalho Vasconcelos Em relagio & estrutura textual, 0 narratdrio também exerce um importante papel no sentido de dar coesio 3 narrativa ¢ manter a atencio do leitor naquilo que lhe é contado, Essa fungio pode ser identifieada através de frases como “Olhe ‘0 senhor” (p. 21),! “Ja disse ao senhor?” (p. 169) ou na expressao tantas vezes re~ E importante lembrar ainda que grande parte das frases di- rigidas ao viajante traz reflex6es de cunho metalingiifstico que poderiam ser en- petida “Mire e veja”. tendidas, por sua vez, enquanto protocolos condutores da leitura textual. Eo que sugerem as seguintes passagen: O senhor pode completar, imaginando. (p. 42) Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrangado. Mas 0 senhor vai avante. (p. 78) (..) © senhor me ouve, pensa, repensa, ¢ rediz, entio me ajuda. (p. 79) Nio me dé, dés. Mais hoje, mais amanha, quer ver que o senhor poe uma resposta. Assim, o senhor jd me compraz. Agora pelo jeito de ficar calado alto, eu vejo 0 se~ nhor me divulga. (p. 87) O senhor veja, 0 senhor escreva. (p. 220) (O senhor escreva no caderno: sete paginas. (p. 378) Finalmente, no que diz. respeito & caracterizagio da personagem do narraté- rio, concordamos coma tese, jé proposta por outros, de que, ao criar um ouvinte urbano, culto, e sempre silencioso, o autor abre espaco para que o préprio leitor se identifique com aquele. Como embasamento para a primeira parte desse ri- ciocinio, temos o fato do viajante possuir um jipe, tomar notas do que Riobaldo fala, ¢ rir das erengas sertanejas. Seria possivel entender, com base em todos esses elementos, que a persona- gem do “senhor”, juntamente com a estrutura dialégica na qual esta se insere, compéem um grande movimento ret6rico que visa captar a atengio do leitor, aos moldes das proposigdes de Barthes (1996): (.) esse leitor 6 mister que eu o procure (que eu 0 “drague”),* sem saber onde ele es- 14. Um espaco de feuigio fica entao criado. Nao é a “pessoa” do outro que me é ne- cessaria, 60 espago: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisio do desfrute: que os dados nao estejam langados, que haja um jogo. (p. 9) Tal estraté; nao deixa de ser particularmente propicia para Grande sertio: veredas, um livro extremamente argumentativo, que traz.em seu bojo 0 questio- “Todas as citagbes de Grande sertio: veredas, indicadas, a partir de agora, somente pelo ntimero da pésgna, se referem 3 edicio de 1968 da José Olympio. * Segundo o dicionitio francés Le Petit Larousse, 0 verbo draguer utlizado no original por Barthes, pode ser definido, em um sentido familiar como: "Abordar alguém, tentando seduzi-lo em vista de lama aventura [amorosa]” (minha tradusio) 392 SERPIA Belo Honan 9, 17, p 385-99, D> sem 2005 Grande sertio: 2 escrita de uma leitura ee Ce namento a respeito da possibilidade de um pacto com o diabo e, em suas revira~ voltas, nos exige um constante reposicionamento em relagio a esse assunto. Rio baldo, na procura de um sentido para sua prOpria existéncia, se coloca o tempo todo no papel de quem esti sendo julgado, ora se defendendo, ora se acusando dos feitos passados. O narratétio e 0 leitor, por sua ver, como dois jurados silen- ciosos, seriam chamados a participar desse debate, se nao emitindo, pelo menos possuindo uma opinido prépria a respeito daquilo que Ihes é contado. Aristételes, em sua famosa Arte ret6rica, classifica os géneros dessa discipli- na baseando-se nas categorias de ouvintes dos discursos. A idéia implicita ai é de que, na fala argumentativa, 0 ouvinte, ou melhor, o convencimento desse ouvin- te, 6a principal motivagio para o discurso. Com alguma imaginagio, poderiamos também entender a figura do narratirio como um primeiro “motor”, na expres- sao de Vincenzo Arsillo, para o relato de Riobaldo. Afinal, éa chegada desse vi sitante que desencadeia a narrativa, € o seu juizo que tem de ser convencido da inocéncia de Riobaldo ¢ é a autoridade de suas opinides de homem instruido que é solicitada como corroboracio para a inexisténcia do diabo: “(...) pergunto: 0 senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda de que com 0 deménio se po~ as gosto de de tratar pacto? Nao, nio é nio? Sei que nao ha. Falava das favas. N toda boa confirmacao” (p. 22) Assim, “(..) no didlogo a uma voz, em que se desenvolve 0 texto, “o senhor” no se configurard s6 como uma figura da interlocugao, mas se tornard uma com= plexa figura retérica na construgio da dialética (..) do texto” (ARSILLO, 2001, p-319). De fato, ao atrair a atencio do leitor em diferentes niveis (pragmitico, estrutural e tematico), 0 narratario coloca asi mesmo ea sua sedugao como pon- to de ligagdo entre esses mesmos niveis. Assim, exerce uma fungio e ruturante na narrativa como um todo. Mas Grande sertio: veredas nao seria uma grande obra se nio fosse capaz de refletir metalinguisticamente sobre sua propria estrutura. E € exatamente isso 0 que faz ao retratar o narratério como um co-produtor da narrativa também no que diz.respeito ao enredo. Kathrin Rosenfield é quem nos fornece as linhas mes- tras pata esse novo tema de reflexio. Em Os descaminhos do demo, ela desen- volvea tese de que o siléncio do narratario, ao estabelecer uma distancia entre os dois interlocutores, impede que a conversa de ambos se “achate em um acordo” centre as duas partes, sendo assim condicao imprescindivel para 0 dislogo: Enquanto presenga silenciosa, 0 senhor nao representa uma ou outra objecio parti- cular, mas preenche a fungio do diabolus da antigiidade (diabolus significa literal- mente “aquele que desune®, dat “adversirio”), isto é, a presenea virtual do argumen- to do adversirio, a possibilidade de uma articulagio diferente do mesmo assunto que é condigao da conversa (..) (ROSENFIELD, 1993, p. 185; grifos da autora) 393 SCRIPTA Belo Honzonte, 9, 17 p. 385399, 2 ve, 2005 Lisa Carvalho Vasconcelos Através do levantamento que viemos fazendo das marcas narrativas que indi- cam a presenca de uma segunda pessoa a quem Riobaldo dirige o seu relato,‘ ve- mos que a possibilidade de entender o interlocutor como portador do argumen- to adversirio nao se da somente pelo seu siléncio. Percebe-se, através dos recur sos de feedback, que ele freqiientemente faz. perguntas € contestagées, que, a0 serem respondidas, mudam o rumo da narrativa. Mais importante ainda € o fato de que essas interferéncias nao sio s6 apreciadas, mas exigidas pelo protagonista, € 0 resultado das mesmas pode ser constatado no proprio desenvolvimento do romance. A medida que fala é que Riobaldo aprende a narrar. Um exemplo disso seria o fato de que, de inicio, seu discurso € confuso e cheio de cortes, ¢ s6 depois de algum tempo, ¢ 0 encontro com Diadorim serve como marco disso, é que 0 narrador passa a seguir uma linha de pensamento mais clara e coerente. Vejamos como isso se dé no texto. ‘Ao que tudo indica, logo que chega, o viajante indaga a respeito do Chefe Uruté Branco encaminhando a narrativa para a vida pessoal do seu anfitriio, tema que ser4 adotado por toda a narrativa: “E 0 ‘Uruti-Branco’? Ah, nao me fale. Ah, esse... tristonho levado que foi era um pobre menino do destino...” (p. 33).? Mais tarde, contesta a pureza do relacionamento entre Riobaldo e Diado- rim, questionamento que certamente é compartilhado por todos aqueles que léem o livro pela primeira vez. Tal interferéncia dé ao narrador uma oportunidade de defender seus pontos de vista, o que é muito efetivo em termos de convencimen- to € criagio de veracidade. Diadorim ~ diré o senhor: entio, eu nio notei viciice no modo dele me falar, me olhar, me querer-bem? Nao, que nio fio e digo. Ha-de-o, outras coisas... senhor duvida? Ara, mitilhas, o senhor € pessoa feliz, vou me rir... Era que ele gostava de mim com aalma; me entende? O Reinaldo. Diadorim, digo. Eh, ele sabia ser homem terrivel. Suspa! © senhor viu on¢a: boca de lado, raivavel, pelos filhos? Viu rusgo de touro no alto campo, brabejando; cobra jararacusst emendando seus botes estala~ dos; bando doido de queixadas passantes, dando febre no mato? E o senhor nao viu © Reinaldo guerrear! (p. 174) Riobaldo, como vemos nas duas passagens seguintes, pede a ajuda de seu hés- pede na composigao do relato: Se eu estou falando as flautas, 0 senhor me corte. (p. 76) ‘Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, ¢ rediz, entio me ajuda. (...) O que muito Ihe agradeco é a sua fineza de atengio. (p. 116) "Vide, ara, inal da ciao de Eduard Contin, inser pga 386387 do presente * A partir de agora, as citagbes de Grande sertio: veredas passam a se referir 4 1% edigao da Nova Fronteia ¢serso indicadas somente pelo numero da pigins. 394 TSCRIPTA, Belo Horizonte, «9, 17. p SBS-B99. Bm, D005 Grande sertio: a escrita de uma letura E de fato, pod seu apelo, contribuindo com explicagdes ou conceitos que ajudam a definir os wentos do protagonista: “Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. ita” (p. 162). Por vezes, serve como depositirio de ideias do proprio narrador: se supor, através das frases a seguir, que o visitante atende a0 Diga o senhor: como um feitico? 0. Feito coisa- “De seguir assim, sem dura decisio, feito cachorro magro que espera viajantes em ponto de rancho, o senhor quem sabe vai achar que eu seja homem sem cariter. Eu mesmo pensei” (p. 157). Ou entao faz. perguntas que incentivam a reflexio: Entio eu era diferente de todos ali? Era. (p. 188) Digo ao senhor; nem em Diadorim mesmo eu nao firmava 0 pensar. Naque entio, eu nao gostava dele? Em pardo. Gostava e no gostava. (p. 196) dias, Riobaldo, por sua vez, da a entender que reconhece o valor dessas contribui- goes Gio assim ~ € que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido” (p. 214). “Agora, neste dia nosso, com 0 senhor mesmo ~ me escutando com devo- Levando em conta todos esses trechos, nao é de se estranhar que autores, co- mo Walnice Galvao por exemplo, identifiquem o narratario com o proprio autor do texto. De fato, ele toma notas em uma cadernetinha que, muito provavelmen- te, servirio de base para uma nova escrita e pode-se supor que esta venha mais jem levar adiante a tese da au- tarde a ser justamente o livro que temos em mios. tora, queremos constatar somente a importincia do viajante em seu papel de lei- tor ativo, na construgéo do romance. Chega, finalmente, o momento de discutirmos quais so os conceitos de le turaa partir dos quais o presente trabalho se constréi, Segundo Oscar Tacca, as abordagens sobre © assunto se dividem em trés tipos diferentes. A primeira delas se ocupa da leitura do ponto de vista fenomenolégico, ou seja, esté preocupada coma definigao do ato de ler. “A segunda concentra o seu interesse no leitor co- mo elemento estruturante da obra. O destinatario nio é algo exterior a ela (..)y mas uma entidade determinante do seu ser (...)” (TACCA, 1983, p. 140). Nessa perspectiva, o leitor poderia ser entendido como um personagem da obra, cor respondendo a uma funcio implicita a0 texto. A terceira linha se volta para a co- municagio discursiva ¢ estuda o destinatirio enquanto fungio da linguagem. Jako- bson ¢ Benveniste sio os dois grandes icones desse tipo de trabalho. Nao é dificil prever que a segunda dessas linhas é aquela que atrai o nosso in- teresse. Tendo Roland Barthes, autor que adotaremos aqui como nosso mais im- portante interlocutor teérico, entre seus prineipais partidérios, ela apresenta ini- meras semelhangas com a abordagem que viemos buscando desenvolver aqui. Afinal, nessa perspectiva o leitor é 20 mesmo tempo personagem, funcio textual € estruturador da narrativa. Todas essas propriedades, como tentamos demons- 395 SCRIPTA Beko Honzonie, 9, m7, po 385-399, Lisa Carvalho Vasconcellos urar anteriormente, podem ser atribuidas ao narratario. Tendo esclarecido a razio {que nos levou a escolher essa linha de abordagem, resta elucidar a opgio por Ro- land Barthes, dentre tantos estudiosos que se debrucam sobre o tema da leitura. Pelo que pudemos perceber até agora em nossa leitura de Barthes, esse autor tem uma peculiaridade teérica muito propicia ao tipo de anilise que buscamos aqui: ele nao possui um modelo teorico pronto sobre o ato de ler, mas se limita a fazer proposigGes instigantes sobre o assunto. Em “Por uma teoria da leitura” texto de 1972, chega a anunciar a necessidade de uma teoria para a leitura, mas adianta que ela nao poderia se basear em um modelo fechado. Alguns anos de- pois, em “Da leitura”, reafirma essa preocupagio, se referindo especificamente as dificuldades de uma ciéncia da leitura: “Isso é para indicar que nao se pode razoa- velmente esperar uma C rncia da leitura, a menos que se conceba ser um dia pos- sivel ~ contradigao nos termos ~ uma Ciencia do Inesgotamento, do Desloca- mento infinito (...)” (BARTHE cipio poderia parecer falha ou incompleta, apresenta uma grande vantagem em , 1988, p. 51-52). Essa metodologia, que a prin- relagio as teorias mais estruturadas. Pois, utilizando-a, fugimos 4 tentacao de aplicar um modelo te6rico pronto ao romance, e acabar abordando Grande ser- tao: veredas como simples ilustragio de uma doutrina externa. Nao querendo cair nesse equivoco, € que propomos, ¢ Barthes se presta muito bem a isso, esta- belecer um didlogo entre obra e te6rico, sem pretensao de encontrar um perfeito ajuste entre ambos. Vejamos, entio, © que nosso autor tem a dizer sobre o tema da leitura, ‘A “Morte do autor”, texto de 1968, é um dos primeiros lugares onde o leitor aparece como figura importante na obra barthesiana. Nesse pequeno artigo, Bar- thes critica bombasticamente a énfase que a critica literdria da época dé ao escri- tor em suas anilises textuais. Segundo ele, € um equivoco estudar uma obra a partir da pessoa do autor, uma vez que a escritura é uma convergéncia de textos, idéias e imagens que estio diluidas na cultura. Ou seja, € um lugar enunciativo que nio pode ser atribufdo a um tinico individuo. A unidade de um texto, conti- nua ele, esté no seu destino e nao na sua origem: “(..) um texto € feito de escri- turas miiltiplas, oriundas de vérias eulturas e que entram umas com as outras em dislogo, em parédia, em contestagio; mas hé um lugar onde essa multiplicidade se reiine, e esse lugar (...) €0 leitor” (BARTHES, 1988, p. 50). Em “Escrever a leitura”, artigo em que fala a respeito da composicao de $/Z, livro feito a partir da leitura de uma novela de Balzac, 0 autor postula a leitura simplesmente como o lugar onde a obra se dispersa. Ao contririo da compos 8 io, que canaliza, a leitura, seguindo uma l6gica associativa, dissemina, ou seja, associa ao texto “(...) outras idéias, outras palavras, outras significagdes (...)” (BARTHES, 1988, p. 41). Todas as leituras, continua Barthes, sao feitas a partir 396 SCRIPTA Blo Hodzonte «9.17, p 385399, 25cm 2005 Grande sertio: a escrita de uma leitura de regras narrativas que apontam, por sua vez, para a tinica verdade possivel da verdade lidica. Nessa perspectiva, 0 livro $/Z nao seria nada mais do que a sistematizacio dos momentos em que o autor, fiel a um jogo textual, leu leiturs Sarrasine, de Balzac, associativamente, ou, para usar suas préprias palavras, lew “levantando a cabega”, Alguns anos mais tarde, 0 autor passa a propor teses mais instigantes. Segun- do ele, a leitura, campo pouco sistematizavel por natureza, nao pode ser teoriza- daa partir de seu ponto de partida; afinal nio podemos necessariamente relaci né-la a um objeto especifico: lemos textos, imagens etc. Nao pode também ser abordada com base em possiveis niveis de profundidade textual: incalculivel, 0 miimero de ta is niveis (0 poderia ser quantificado ow analisado. Nao hi, final- mente, uma junga estrutural paraa leitura: tanto podemos decidir que tudo é le- givel quanto 0 contririo. Assim diz Barthes em seu texto “Da leitura” escrito em 1976. Eo leitor em seu desejo, continua ele, a inica unidade possivel na leitura; 0 texto, por sua ve7, seria a postulagio de uma espécie de leitor total que, através da acumulagio de diversas codificagées, sobrecodificasse, produzisse, amonto- asse linguagens, Entretanto, uma leitura que preenchesse todos esses req tos seria, nas palavras do autor, “uma leitura louca” irrealizavel, e deveria, a nosso ver, ser entendida somente como um hipotético horizonte de expectativas. E nesse texto que Barthes postula a idéia, tao cara a nés, de que é possivel abordar “(...) a leitura como condutora do Desejo de escrever” (BARTHES, 1988, p. 50). Diz ele: Nio é que necessariamente desejemos escrever como 0 autor cuja leitura nos agrads; ‘© que descjamos apenas 0 descjo que o escritor reve de escrever: desejamos o dese- jo que o autor teve do leitor enquanto escrevia (..) Nessa perspectiva, leitura é ver- dadeiramente uma producio: nao mais de imagens interiores, de projegdes, de fanta- sias, mas, literalmente, de trabalho: 0 produto (consumido) ¢ devolvido em produ- ‘cio, em promessa, em desejo de produgio, ¢ a cadeia dos desejos comeca a desenro- lar-se, cada leitura valendo pela escritura que cla gera, ata o infinito. (BARTHES, 1984, p. 50) E exatamente esse 0 caso em Grande serto. O narratério, como viemos ten tando demonstrat, tem uma participacio ativa enquanto produtor da narrativa, Independentemente do fato de ser ou nio 0 autor da obra, como prope Walni- ce, ele organiza e estimula a fala de Riobaldo, sendo um grande responsavel pela forma final do relato. Como foi dito anteriormente, ele seduz.o leitor, mas so- mente porque foi antes seduzido pelo protagonista. Movido pelo desejo, escre- ve; movidos pelo seu desejo, também escrevemos. 397 SCRIPTA Belo Wonaont, «9,» 17, p. 385399, 2 sem 2005 Lisa Carvalho Vasconcelos Abstract This essay isa partial result of the research developed in my pos-gra~ duation studies. Here I discuss the reading act in the novel Grande sertio: veredas. Comparing the narratee, ie. the visitor to whom Rio- baldo tells his story, with the actual reader of the book, I approach Rosa’s work as a narrative that theorizes over reception issues. Key words: Brazilian Literature; Grande sertéo: veredas; Narratees Reading; Roland Barthes. Referéncias ARISTOTELES. Arte retérica ¢ arte postica. Tradugio Anténio Pinto de Carvalho. Estudo introdutorio de Godoffredo Telles Jinior. Rio de Janeiro: Ediouro, 19-- ARRIGUCCT JR., Davi. O mundo misturado: romance e experiéncia em Guimaraes Rosa. 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