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História da Filosofia

Volume oito
Nicola Abbagnano

Digitalização e arranjos:
Ângelo Miguel Abrantes
(quarta-feira, 1 de Janeiro de 2003)

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME VIII

TRADUÇÃO DE:

ANTóNIO RAMOS ROSA ANTóNIo BORGES COELHO

CAPA DE: J. C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO

TIPOGRAFIA NUNES

R. José Falcão, 57-Porto

EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 197o

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILoSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,


LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa

X111

O ILUMINISMO ITALIANO

§ 500. O ILUMINISMO EM NÁPOLES

O que caracteriza o Iluminismo italiano, que está estreitamente ligado ao


francês, é a prevalência dos problemas morais, políticos e jurídicos.

O seu principal contributo reside na obra de César Beccaria, Dos delitos e das
penas, obra que incorpora no domínio do direito penal os princípios
fundamentais da filosofia moral e política do iluminismo francês. No que se
refere à gnoseologia, o

iluminismo italiano visou sobretudo moderar as teses extremistas do iluminismo


francês, optando por um prudente celectismo, mediante o qual aquelas teses
perdem grande parte da sua virulência e da sua força renovadora. Os dois
centros do iluminismo italiano foram Nápoles e Milão. Em Nápoles, o
espírito do iluminismo encontra a sua primeira realização

na História civil do Reino de Nápoles (1723) de .Pedro Giannone (1676-1748),


obra que pretendia mostrar como o poder eclesiástico tinha, através de
sucessivas usurpações, limitado e enfraquecido o poder político, e quanto
convinha a este confinar o
poder eclesiástico no puro âmbito espiritual. Um dos fins da obra de Giannone
era "o esclarecimento das nossas leis pátrias e das nossas instituições e

costumes" (História, intr., ed. 1823, 1, p. 213).

Uma figura que pertence mais ao iluminismo francês do que ao italiano é a do


abade napolitano Fernando Galiani (1728-87) que foi durante dez anos

(1759-69) secretário da Embaixada do Reino de Nápoles em Paris e dominou os


salões da capital francesa com o seu espírito e o seu brio. Galiani foi
especialmente economista. O ensejo do seu tratado Da moeda (1751) era o de
criticar a tese do mercantilismo de que a riqueza de uma nação consistia na
posse de metais preciosos. As suas

ideias filosóficas, não expostas de forma sistemática, mas lançadas aqui e ali
como ditos de espírito, estão contidas nas Cartas (escritas em francês) e

são em tudo conformes às ideias dominantes no ambiente francês em que Galiani


viveu. Os filósofos que afirmam que tudo vai bem no melhor dos mundos,
considera-os Galiani verdadeiros ateus que, com receio de serem queimados, não
chegam a concluir o seu silogismo. E eis aqui, segundo ele, o silogismo: "Se
um Deus tivesse criado o mundo, este seria sem dúvida o melhor de todos os
mundos; mas não é, nem de longe; portanto, Deus não existe". A estes ateus
camuflados cumpre

responder, segundo Galiani, da maneira seguinte: "Não sabeis que Deus criou
este mundo do nada? Pois bem, nós temos portanto Deus por pai e o

nada por mãe". Decerto que o nosso pai é unia

grandíssima coisa, mas a nossa mãe não vale nada. Temos algo do pai, mas
recebemos também alguma coisa da nossa mãe. O que há de bom no mundo

vem do pai e o que há de mau da senhora nada, nossa mãe, que não valia grande
coisa (Carta ao

Abade Mayeul, 14 de Dezembro de 1771). Contra os

ateus e os materialistas, aduz o argumento dos dados chumbados. "Se dez ou


doze lances de dados vos fizerem perder seis francos, credes firmemente que
isso é devido a uma manobra hábil, a uma combinação artificiosa, a uma
artimanha bem urdida; mas vende neste universo um número tão prodigioso de
combinações mil e mil vezes mais difíceis e complicadas, mais elaboradas e
úteis, não supondes, de facto, que os dados da natureza estejam igualmente
chumbados e que haja lá em cima um grande trampolineiro que se diverte a
enganar-vos". Galiani está convencido de que o mundo é uma máquina que se move
e caminha necessariamente e que, por consequência, nele não há lugar para a
liberdade dos homens. Todavia, o homem julga-se livre e a persuasão da
liberdade constitui a própria essência do homem. Como resolver a contradição?
"Se houvesse um único ser livre no universo, não poderia haver Deus, não
poderia haver laços entre os seres. O universo desintegrar-se-ia. E se o homem
não estivesse íntima e essencialmente convencido de ser

sempre livre, a moral humana não seria o que é.

A convicção da liberdade é suficiente para estabelecer uma consciência, um


remorso, uma justiça, recompensas e castigos. Ela basta paira tudo, e eis
assim o mundo explicado em duas palavras". Está demonstrado que nós não somos
livres, mas agiremos sempre como se o fôssemos do mesmo modo que veremos
sempre quebrado um pau submerso na água, conquanto o raciocínio nos diga que o
não está (Carta, a Madame d'Epinay, 23 de Novembro de 177 1).

Do sensualismo francês extraiu o fundamento das suas doutrinas Antonio


Genovesi (1712-69), que foi o primeiro na Europa a professar na universidade a
nova ciência da economia. Leccionou, de facto, a partir de 1754 a disciplina
de lições de comércio na

Universidade de Nápoles. Genovesi considera como princípio motor, quer dos


indivíduos, quer dos corpos políticos, o desejo de evitar a dor que deriva da
necessidade insatisfeita e chama a tal desejo interesse, considerando-o como o
que incita o homem, não só à sua actividade económica, mas também à criação
das artes, das ciências e a todas as virtudes (Liç. de Comércio, ed. 1778, 1,
57). Genovesi é também autor de obras filosóficas: Meditações filosóficas
sobre a religião e sobre a moral (1758); Lógica (1766), que é um resumo
italiano de um manual latino de lógica que Genovesi publicara em 1745 e que
conheceu um grande êxito na Europa; Ciências metafísicas (1766); Diceosina, ou
seja, doutrina do justo e honesto (1776). Nas Meditações retoma à sua maneira
o procedimento cartesiano, considerando, porém, que o primeiro princípio não é
o pensa10

mento mas o prazer de existir. "Eu existo, de facto. Este pensamento e o


prazer que implica, enche-me por completo; e, visto que é belo e grande, de
hoje em

diante esforçar-me-ei tanto quanto puder por me deter

nele e fazer, se possível, por que se converta, tanto por reflexão como por
natureza, na substância de todos os meus pensamentos e dos outros prazeres
meus" (Meditações, 1). Deste modo, o prazer vem a ser para Genovesi o acto
originário do ou, o fundamento e a substância de toda a sua vida. E a própria
razão toma-se numa "faculdade calculadora" de tudo o que existe ou é possível.
Esta orientação, que parece proceder de Helvétius, não impede Genovesi de
defender a tese do espiritualismo tradicional: a espiritualidade e a
imortalidade da alma, o finalismo do mundo físico e a existência de Deus.

Caetano Filangieri (1752-88) inspirou-se em Montesquieu ao escrever Ciência da


legislação (1781-88), em que se vale da obra do filósofo francês para extrair
dela o que se deve fazer para o futuro, ou seja, para tirar dela os princípios
e as regras de uma reforma da legislação de todos os países. Da reforma da
legislação, espera Filangieri o progresso do género humano para a felicidade e
a educação do cidadão. <Faremos ver, diz ele no

Plano da obra (ed. Vilari, 1864, p. 55), como uma

sábia legislação servindo-se do grande móbil do coração humano e dando uma


direcção análoga ao

estado presente das coisas, àquela paixão principal da qual todas as outras
dependem, àquela paixão que é ao mesmo tempo o germe fecundo de tantos bens e
de tantos males, de tantas paixões benéficas

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de tantas paixões perniciosas, de tantos perigos e

de tantos remédios, servindo-se, dizia eu, do amor próprio, poderá introduzir


a virtude entre as riquezas dos modernos, pelos mesmos meios com que as

antigas legislações a introduziram entre as legiões dos antigos". Inspirado


por esta confiança optimista na

função formativa e criadora da lei, Filangieri delineia

o seu plano de legislação, em que se deve salientar a

defesa da educação pública, defesa que parte do princípio de que só ela pode
garantir a uniformidade das instituições, das máximas e dos sentimentos e que
por isso só a menor parte possível dos cidadãos s-- deixa à educação privada.
Mas em relação às ponderadas análises de Montesquieu, o optimismo de
Filangieri com respeito à acção legislativa parece utópico.

Mário Pagano (1748-99), nos Ensaios políticos dos princípios, progressos e


decadência da sociedade (1783-85), retoma a doutrina de Vico sobre as três
idades e sobre os fluxos e refluxos históricos, dentro do espírito do
iluminismo. Mas Pagasio é completamente alheio à problematicidade da história
que domina a obra de Vico. O fluxo e refluxo das nações é para ele uma ordem
fatal, que se deve mais a causas físicas do que a causas morais. Pagano
considera o mundo da história como um mundo natural, cujas leis não são
diferentes das do mundo físico. "A natureza é uma contínua e ininterrupta
passagem da vida à morte e da morte à vida. A geração o a destruição, com
ritmo veloz, num

perpétuo circuito, sucedem-se sem interrupção. E os

componentes que constituem a grande massa do

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universo unem-se e dissolvem-se numa perene sucessão; o tudo perece, tudo se


renova, por meio das diversas catástrofes que corrompem a ordem antiga das
coisas e produzem novas formas, que se assemelham inteiramente às velhas, e
assim repetem os mesmos tempos" (Ensaios, 1, 3). A decadência e a morte das
nações é pois inevitável depois de alcançarem o estádio do máximo
florescimento. O maior triunfo da razão é o princípio do fim Qb., i, 4). O
homem não tem o poder de afastar as catástrofes que ameaçam a sociedade pela
força das coisas. E o motivo é que ele é um ser sensível e que, por isso, está
ligado à natureza e à mercê de todos os seus movimentos acidentais. "A função
natural da razão é a de dirigir, e não extinguir o sentimento (isto é, a
sensibilidade), purificá-lo, e não

oprimi-lo. O homem vive tanto como sente. E, dado que as sensações se produzem
em nós pela impressão dos objectos exteriores, é o homem, quando sente assim,
um ser passivo e escravo das coisas externas de que está rodeado; a sua
existência é precária e depende da existência dos objectos exteriores. A
cadeia dos acontecimentos acidentais envolve-o e arrasta-o como o torvelinho
das ondas faz rodopiar os corpos que nelas flutuam" (1b., VI, 1). Somente
pelas suas convicções naturalistas e sensualísticas Pagano adere à tese de
Vico sobre o carácter primitivo da poesia. No seu Discurso sobre a origem e
natureza da poesia, interpreta o nascimento da poesia a partir das paixões
como o
efeito da "impressão produzida na máquina pelo objecto" (Discurso, 2); na
máquina, isto é corpo hw

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'mano. E atribui a causas puramente físicas o ressurgir da poesia na idade da


razão. "E agora que as

nações são cultas e educadas, e a razão acabou com o império da fantasia, se


por uma força de temperamento em ninguém despertar e ressurgir aquele
fantástico furor que experimentaram naturalmente as primeiras nações, teremos
versificadores o não poetas, cópias e não originais" (lb., 12).

§ 501. O ILUMINISMO EM MILÃO

O outro centro do iluminismo italiano foi Milão, onde uma plêiade de


escritores, se reuniu em torno de um periódico, 11 café, que teve vida breve e
intensa (1764-65). O jornal, concebido segundo o

modelo do Spectador inglês, foi dirigido pelos irmãos Verri, Pedro e


Alexandre, e nele colaborou, entre outros, César Beccaria. Alexandre Verri,
(1741-1816) foi literato e historiador. Pedro Verri (1728-97) foi filósofo e
economista. No seu Discurso sobre a índole do prazer e da dor (1781), Podro
Verri sustenta o princípio de que todas as sensações, agradáveis ou dolorosas,
dependem, não só da acção imediata dos objectos sobre os órgãos corpóreos, mas

também da esperança e do temor. A demonstração desta tese começa por uma


análise do prazer e da dor moral reportados a um impulso da alma para o
futuro. O prazer do matemático que descobriu um

teorema deriva, por exemplo, da esperança dos prazeres que colherá no futuro,
da estima e dos benefícios que a sua descoberta lhe trará. A dor causada por
uma desgraça é semelhante ao temor das

14

dores e das dificuldades futuras. Ora, como a esperança é para o, homem a


probabilidade de viver melhor rio futuro do que no presente, supõe sempre a
carência de um bem e é portanto o resultado de um efeito, de uma dor, de um
mal (Disc. 3). O prazer moral não é mais do que a rápida cessação da dor e

é tanto mais intenso quanto maior for a dor da privação ou da necessidade


(lb., 4). Verri estende a

sua doutrina também aos prazeres, mostrando que frequentemente o prazer físico
não é mais do que a cessação o de uma privação natural ou artificial do homem
(Ib., 7). À objecção de que a tese se pode inverter, dado que parece também
verosímil que toda a dor consista na rápida cessação do prazer, Verri responde
que uma semelhante geração recíproca não pode dar-se, porque "o homem nunca
poderia começar a sentir prazer nem dor; de contrário, a primeira das duas
sensações deste género seria a primeira hipótese, o que é absurdo" (1b.,
6), Verri chega a confirmar a conclusão que Maupertuis (§ 493) extraíra do seu
cálculo, e que é a de que a soma total das dores é superior à dos prazeres. De
facto, a quantidade do prazer nunca pode ser superior à da dor porque o prazer
não é mais do que a cessação da dor. "Mas todas as dores que não terminam
rapidamente são uma quantidade de mal que na sensibilidade humana não
encontra compensação, e em todos os homens ocorrem sensações dolorosas que
cedem lentamente" (1b., 6). Também os

prazeres que as belas artes proporcionam têm a mesma origem: o fundamento


delas reside naquelas dores que Verri designa por dores inominadas. A

15

arte nada diz aos homens que teMam. de contentamento, mas, em contrapartida,
fala aos que se deixam dominar pela dor ou pela tristeza. o magistério da arte
consiste sobretudo em "espalhar as belezas consoladoras da arte de modo que
exista um intervalo suficiente entre, uma e outra para se poder voltar à
sensação do alguma dor inominada, ou em fazer nascer de quando em quando,
propositadamente, sensações dolorosas e em acrescentar-lhes depois uma ideia
risonha, que docemente surpreenda e rapidamente faça cessar a dor" (1b., 8). A
conclusão é que "a dor é o princípio motor de todo o género humano". E deste
pressuposto parte a outra tese que Verri defende na sua obra Sobre a
felicidade. Para o homem é impossível a felicidade pura e constante, e, ao
invés, é possível a miséria e a infelicidade.
O excesso dos desejos relativamente às nossas capacidades, é a medida da
infelicidade. A ausência dos desejos é mais um indício de simples vegetar, do
que de viver, ao passo que a violência dos desejos pode ser experimentada por
todos e é talvez um estado duradouro. A sabedoria consiste em proporcionar em
todos os campos os desejos com as possibilidades, e por isso só pode ser feliz
o homem esclarecido e virtuoso.

§ 502. ILUMINISMO ITALIANO: BECCARIA

A obra de César Beccaria. (15 de Março de


1738-28 de Novembro 1794) Dos delitos e das penas (1764) é o único escrito do
iluminismo italiano que teve uma repercussão europeia. Traduzido para fran16

cês pelo Abade Morellet e publicado em Paris em


1766, traduzido em seguida nas demais línguas europeias, pode dizer-se que
representa o ponto de vista do iluminismo no campo do direito penal. Os
princípios de que a obra parte são os de Montesquieu. e

de Rousseau. O escopo da vida social é "a máxima felicidade repartida pelo


maior número"; fórmula ulteriormente adoptada por Bentham. O estado nasce de
um contracto e a única autoridade legitima é a dos magistrados que representam
a sociedade unida pelo contracto (Dos delitos, § 3). As leis são as condições
do pacto originário e as penas são o motivo sensível para reforçar e garantir
a acção das leis. Destes princípios deriva a consequência fundamental, que
inspira todo o ensaio. "As penas que ultrapassam a necessidade de manter a
conservação da saúde pública, são injustas por sua natureza; e tanto mais
justas são as penas quanto mais sagrado e inviolável é a segurança, e maior a
liberdade que o soberano reserva para os súbditos" Qb., § 2).

Deste ponto de vista nascem os problemas debatidos por Beccaria. Será a morte
verdadeiramente uma pena útil e necessária para a segurança o a boa ordem da
sociedade? A tortura e os tormentos são justos e atingem o Em que as leis se
propõem? As mesmas penas serão igualmente úteis em todos os tempos? Ora, o fim
da pena não é outro senão o de impedir que o réu cause novos danos aos seus
concidadãos e evitar que outros pratiquem danos iguais. É necessário, pois,
escolher aquelas penas e

o modo de as infligir que, mantendo a proporção com o delito cometido, exerçam


uma impressão mais

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c6caz e duradoura sobre a alma dos homens e sejam menos dolorosas para o corpo
do réu (lb., § 15). Mas o réu não é tal antes da sentença do juiz, nem

a sociedade lhe pode tirar a protecção pública antes que se tenha decidido que
ele violou os pactos com os quais; ela lhe foi concedida. A tortura é
portanto, ilegítima: e é também inútil pois é vão supor que "a dor se torne
cadinho da verdade, como se o critério dela residisse nos músculos e nas
fibras de um miserável". A tortura é o meio seguro de absolver os criminosos
robustos e de condenar os fracos inocentes, é uma questão de temperamento e de
cálculo que varia em cada homem consoante a sua robustez e sensibilidade. E
coloca o inocente em piores condições do que o réu, que, se resiste à tortura,
é declarado inocente, ao passo que ao inocente reconhecido como tal ninguém
lhe pode tirar o mal produzido pela tortura (lb., § 12). Quanto à pena de
morte, Beccaria pergunta-se que direito é esse que os homens se arrogam, de
matar os seus

semelhantes? Tal direito não pode provir do contrato social, porque é absurdo
que os homens tenham neste contrato conferido aos outros o poder de lhes tirar
a própria vida. A pena de morte não é um

direito, mas "uma guerra da nação com um cidadão". Justificar-se-ia apenas no


caso de ser o verdadeiro e único freio para impedir os homens de praticarem
delitos, mas é precisamente isto que Beccaria nega. Não é a intensidade da
pena que produz o efeito mais forte sobre a alma humana, mas a extensão dela,
porque a nossa sensibilidade é mais fácil e estavelmente movida por mínimas e
18

continuadas impressões do que por um forte mas passageiro impulso. As paixões


violentas surpreendem os homens, mas não por muito tempo; por isso, num

governo livro e tranquilo, as impressões devem ser

mais frequentes do que fortes. "A pena de morte toma-se um espectáculo para a
maioria das pessoas

e um objecto de compaixão e de desdém para alguns; ambos estes sentimentos


dominam mais a alma dos espectadores do que o poderá fazer o salutar terror
que a lei pretendo inspirar. Mas nas penas moderadas o contínuas, o sentimento
dominante é este último, porque é o único. O limite que o legislador deveria
fixar ao rigor das penas parece consistir no

sentimento de compaixão, quando este começa a

prevalecer sobre qualquer outro na alma dos espectadores de um suplício, mais


feito para eles do que para o réu (lb., § 16). Aquele que vê perante si o
grande número de anos que há-de passar na

escravidão, faz uma comparação útil de tudo isso com a incerteza do êxito dos
seus delitos e com a brevidade do tempo que gozaria os frutos do seu crime.
Não é necessário que a pena seja terrível; é necessário, isso sim, que ela
seja certa e infalível. "A certeza de um castigo, se bem que moderado,
produzirá sempre uma impressão mais forte do que um outro mais terrível,
aliado à esperança da impunidade" (1b., § 20). Seja como for, a verdadeira
medida dos delitos é o mal que causam à sociedade. Não se deve tomar em
consideração o intuito, que é diferente de indivíduo para indivíduo e não se
presta a entrar nas normas gerais de um código; e tão-pouco a consideração do
pecado. O pecado diz

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respeito à relação entre o homem e Deus, ao passo que a única base da justiça
humana é a utilidade comum (1b., § 24). A exigência geral da legislação penal
é indicada por Beccaria no fim da obra. "Para que toda a pena não seja uma
violência de um ou de muitos contra um cidadão particular, deve ser
essencialmente pública, imediata, a mínima possível nas circunstâncias dadas,
proporcionada aos delitos e ditada pelas leis" (Ib., § 42).

Em face do escrito agora examinado, as outras obras de Beccaria têm escasso


relevo. Nas Investigações em torno da natureza do estilo (1770) utiliza
pressupostos sensualistas. Distingue as ideias principais ou necessárias que
asseguram a verdade de um juizo, das ideias acessórias destinadas apenas a
aumentar a força e a impressão do mesmo juizo.

O estilo consiste na escolha e no uso das ideias acessórias. Tal escolha deve
considerar sobretudo o interesse ligado às ideias, isto é, à sua relação com o
prazer e com a dor. Beccaria vale-se aqui dos elementos da psicologia de
Condillac.

§ 503. ILUMINISMO ITALIANO: ROMAGNOSI. GiOIA

A influência de Condillac é também evidente nos escritores do iluminismo


italiano que abordaram o problema gnoseológico. Giovanni Domenico Romagnosi
(1761-1835) foi sobretudo um jurista, que seguiu as pisadas de Filangieri e de
Beccaria. As questões com que deparou na sua ciência conduziram-no aos
problemas gnoseológicos, que procurou resolver no

20

sentido de um empirismo revisto e corrigido (Que é a mente sã?, 1827; Pontos


de vista fundamentais sobre a arte da lógica, 1832). Romagnosi não considera
possível extrair da sensação todas as faculdades e conhecimentos humanos, como
o fez Condillac. Na sensação não vê mais do que uma
simples modificação passiva, em relação à qual a
percepção Representa já um progresso, porquanto consiste na apropriação activa
de um modo determinado e discernível de sentir (Vedute, 1. 6). Nas percepções,
na memória e bem assim na dúvida, no juízo e em todos os actos da inteligência
actua, segundo Romagnosi, um poder concreto, simples, uniforme, imutável,
universal, que ele chama de sentido racional o que constitui a unidade de
desenvolvimento do espírito humano desde o sentido e o instinto até à razão
inteiramente desenvolvida ou "razão dominante". As funções do sentido racional
não são criadas espontaneamente pela alma, mas são sempre estimuladas por uma
intuição externa e a ela associadas. Constituem a reacção que o nosso eu

pensante opõe à acção das coisas exteriores (Que é a mente sã?, § 10). O
sentido lógico é pois um

produto natural e as suas leis são leis naturais, semelhantes às que


determinam a acção de um espelho reflector (1b., § 10). A lei fundamental da
inteligência é a que estabelece a relação entre a acção do objecto e a reacção
analítica do sentido lógico, relação da qual nasce a percepção do ser e da
acção das coisas (b., § 12).

É fácil notar o carácter naturalista e determinista desta concepção


gnoseológica. Aliás, naturalismo e

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determinismo dominam, também as concepções morais e políticas de Romagnosi. A


sociedade vive e

desenvolve-se segundo leis naturais e através de fases constantes,


precisamente como o indivíduo. A moralidade é o conjunto das condições
necessárias para que o homem viva em sociedade e persiga de harmonia com a
sociedade os seus fins naturais que são a conservação, a felicidade e o
aperfeiçoamento. Conquanto Romagnosi tenha conhecido (e criticado mal) a
doutrina de Kant, a sua doutrina ainda está ligada à orientação sensualista do
iluminismo francês.

Uma variante análoga do sensualismo de Condillac patenteia-se nas obras


filosóficas (Elementos de filosofia, 1818; Ideologia, 1882) de Melchiorre
Gioia (1767-1828), mais benemérito pelos seus estudos sobre estatística o pela
defesa que fez da utilidade desta ciência para fins sociais. Gioia combate a
tese de que os fenómenos da consciência dependam apenas da acção dos sentidos.
Se assim fosse, a inteligência deveria ser proporcionada à intensidade das
sensações, ao passo que a experiência nos mostra que esta não aumenta, mas
sim, diminui, a energia das faculdades intelectuais. Uma força independente
dos sentidos é necessária, não só para decompor, isto é, para considerar
separadamente as qualidades dos corpos e descobrir as suas relações, mas
também para decompor, isto é, para dar lugar a produtos que não existem na
natureza. Da mesma forma que não se pode confundir a madeira com o machado que
a
corta, também não se pode confundir a força
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intelectual com o material que os sentidos oferecem ao hornem (Ideologia, ed.


1822, 11, p. 175 sgs.).

Deve recordar-se, uma vez que os seus manuais introduziram nas escolas
italianas a fil, osofia de Locke e de Condillac, o Padre Francisco Soave,
(1743-1816), professor da Universidade de Parma, quepermaneceu sempre, fiel à
filosofia de Condillac, que elo conheceu durante a estadia do filósofo francês
na corte de Parma.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 500. Giannone, opere, Milão (Clássicos italianos), 1823.-Nicohni, Gli


scritti e Ia fortuna li P. G., Bari, ID., Le teorie politiche di P. G.,
Nápoles, 1915.

Gãliani, Della moneta, ed. Nicolini, Bari, 1915; Correspondance, ed. Perey e
Maugras, 2 vol., Paris 1881;
11 pen~ro dellIab. G., ant. -a cargo de Nicolini, Bari,
1909.

Genovesi, Sul vero fine delle lettere e delle scienze,


1753; De jure et officiis, 1764 (além das ob. ctt. no texto).
Fil-angieri, Seienza della legislazione, ed. P. VillIari,
2 vol., Florença, 1864. - S. COTTA, G. F. e il problema della legge, Turim,
1954.

Pagano, Saggi politici, reimp., Calpolago, 1837; ed. Colletti, Wonha, 1936.

§ 501. Pietro Verri, Op. filos, e di econ. politica,


4 vol., Milão, 1818; Opere varie, ao cuidado de N. VaJeri, vol. I, Florença,
1947. - OTTOLINI, P. V. e suoi tempi, Palermo, 1921; N. VALERI, P. V., Milão,
1937.

§ 502. Beccaria, Opere, 2 vol,. Milão (Clássicos ital,ianos), 1821; Seritii e


lettere inedite, Milão, 1910; Opere seelte, ed. Mondolfo, Wonha, 1924.

DE RuGGIERO, Il pensiero político meridionale nei sec. XVIII e XIX, Bari,


1922.

23

§ 503. Romagnosi, Opere, ed. Marzucchi, 19 vGI., Florença, 1832-39; ed. De


Giorgi, 8 vol. Milão, 1841-52. -A. NORSA, II pens. filos, di G. D. R., Milão,
1930; CABOARA, La ftl. del diritto di G. D. R. Città di Castello,
1930; SOLARI, in "Riv. di Filos". 1932.

Gioia, Del merito e delle ricompenze, 1818; Esercizio logico sugli errori di
ideologia e di zoologia, 1823; Filosofia della statistica, 1822.

Soave, Elementi di filos.; Istruzioni di logica, metalisica ed etica, Milão,


1831.

G. CAPONE BRAGA; La fil. franc. e it. del 700, cit..

24

XIV

O ILUMINISMO ALEMÃO

§ 504. ILUMINISMO ALEMÃO: WOLFF

o iluminismo alemão deve a sua originalidade, relativamente ao inglês e ao


francês, mais do que a novos problemas ou temas especulativos, à forma lógica
com que apresenta e trata tais temas e problemas. O ideal de uma razão que tem
o direito de atacar, com as suas dúvidas e os seus problemas, o mundo inteiro
da realidade, é transformado pelo iluminismo alemão num método de análise
racional, a um tempo cauteloso e decidido, que avança demonstrando a
legitimidade de cada passo e a possibilidade intrínseca dos conceitos de que
se serve, o seu fundamento (Grund). É este o método da fundamentação que devia
ser característico da filosofia alemã posterior e que alcançou o seu grande
triunfo na obra de Kant. O fundador deste método
25

foi Wolff que, sob este aspecto, é o máximo representante do Iluminismo


alemão. As obras de Wolff, tão escrupulosas e pedantes na sua construção
sistemática, contrastam de maneira estranha com o carácter inspirado, genial e
divertido dos escritos dos maiores iluministas ingleses e franceses. Mas a
exigência iluminista concretiza-se e incorpora-se precisamente na forma dessas
obras, pois se trata do objectivo de uma razão que pretende justificar-se por
si e reencontrar em si própria, isto é, no próprio procedimento analítico, o
fundamento da sua validez.

Christian Wolff nasceu em Breslau a 24 de Janeiro de 1679. Nomeado professor


em Halle em 1706, foi destituído em 1723,pelo rei Frederico Guilherme 1 a
pedido dos seus colegas pietistas, Francke e Lange.
O pietismo era uma corrente protestante, fundada em

fins de 1600 por Ph. J. Spencer (1635-1705), que insistia no carácter prático
e místico do cristianismo e combatia as tendências intelectualistas e
teológicas.
O que escandalizou especialmente os colegas de Wolff foi o seu Discurso sobre
a filosofia prática dos Chineses, na qual, à maneira dos iluministas
franceses, punha Confucio entre os profetas, ao lado de Cristo. Subido ao
trono Frederico H, Wolff foi restabelecido na sua cátedra de Halle (1740),
onde ensinou até à sua morte (1754).

A obra de Wolff exerceu sobre toda a cultura alemã uma influência


extraordinária. Num primeiro período, escreveu em alemão; posteriormente, em

latim, pois queria falar como "preceptor de todo o

género humano". Na realidade, a sua eficácia mais durável foi a que demonstrou
no domínio da
26

linguagem filosófica. Grande parte da terminologia filosófica, dos séculos


XVIII e XIX e da que ainda hoje está em uso sofreu a influência das definições
e das distinções wolfianas.

As obras alemãs de Wolff são as seguintes: Pensamentos racionais sobre as


forças do entendimento humano (1712); Pensamentos racionais sobre Deus, o
mundo e a alma dos homens (1719); Pensamentos racionais sobre a acção humana
(1720); Pensamentos racionais sobre a vida social dos homens (1721);
Pensamentos racionais sobre as operações da natureZa1723); Pensamentos
racionais sobre a finalidade das coisas naturais (1724); Pensamentos racionais
sobre as partes dos animais, dos animais e das plantas (1725). As suas obras
latinas são: Philosophia rationalis sive Logica (1728); Philosophia prima sive
Ontologia (1729); Cosmologia generalis (1731); Psychologia empirica (1723);
Psychologia racionalis (1734); Theologia naturalis (1736-37); Philosophia
practica universalis (1738-39); Jus naturae (1740-48); lus gentium (1749);
Philosophia moralis (1750-53).

O objectivo final da filosofia é, segundo Wolff, iluminar o espírito humano de


modo a tornar possível ao homem o uso da actividade intelectual na qual
consiste a sua felicidade. A filosofia tem, portanto, uma finalidade prática,
que é a felicidade humana; mas só se pode atingir esta finalidade através de
um

conhecimento claro e distinto. Tal objectivo não poderá ser atingido se não
existir a "liberdade filosófica" que consiste na possibilidade de manifestar
publicamente o que se pensa sobre as questões filosóficas (Lógica, § 151). Sem
liberdade filosófica,

27
não é possível o progresso do saber, já que então "cada um é obrigado a
defender como verdadeiras as opiniões comummente transmitidas, mesmo se lhes
parecem falsas" (1b., § 169). Wolff aceita e perfilha, a exigência iluminista
da liberdade e interpreta-a como libertação da tradição. A filosofia é "a
ciência das coisas possíveis enquanto tais" assim como das "razões pelas quais
as coisas possíveis se realizam", entendendo-se por "possível" o que não
implica contradição. As regras do método filosófico devem pois ser idênticas,
segundo Wolff, às do método matemático. "No método filosófico, diz Wolff, não
há necessidade de fazer uso de termos que não se tenham tornado claros através
de uma definição exacta, nem se pode admitir como verdadeiro algo que não
tenha sido suficientemente demonstrado; nas proposições, cumpro determinar com
igual cuidado o sujeito e o predicado e tudo deve ser ordenado de modo a que
sejam premissas aquelas coisas em virtude das quais as seguintes são
compreendidas e justificadas" (lb., § 139). Wolff divide a filosofia em
conformidade com as actividades fundamentais do espírito humano e, uma vez que
tais actividades são substancialmente duas, o conhecer e o querer, assim os
dois ramos fundamentais da filosofia são a filosofia teorética ou metafísica e
a filosofia prática. Ambas pressupõem a lógica como sua propedêutica. A
metafísica divide-se, por sua vez, nos seguintes ramos: ontologia, que
concerne a todos os objectos em geral, enquanto existem; psicologia, que tem
por objecto a alma, cosmologia, que tem por objecto o

28

mundo e teologia racional, que tem por objecto a

existência e os atributos de Deus.

Na lógica, Wolff considera como princípio supremo o princípio de contradição,


que não é apenas uma lei do pensamento mas também de todo o

objecto possível. Em conformidade com o princípio de contradição, os conceitos


podem ser utilizados só nos limites do que contêm e os juízos só são
verdadeiros na medida em que fazem a análise dos seus sujeitos. Wolff não
exclui no entanto a experiência, que nas ciências naturais se deve aliar ao
raciocínio e que mesmo nas ciências racionais deve ser utilizada para formar
as definições empíricas das coisas. Contudo, sobre tais definições podem-se
fundamentar apenas demonstrações prováveis, não necessárias; e tais
demonstrações assumem na obra de Wolff uma grande importância. A par das
proposições necessárias, cujo contrário é impossível, Wolff coloca as
proposições contingentes (as verdades de facto de Leibniz) cuja negação não
implica contradição.

A ontologia, ou filosofia prima, é a ciência do ser em geral, isto é, do ente


enquanto é. O seu

objecto é o de demonstrar as determinações que pertencem a todos os entes,


seja absolutamente, seja sob determinadas condições (Ontologia, § 8). Baseia-
se em dois princípios fundamentais que são o

princípio de contradição e o princípio de razão suficiente: por razão


suficiente entende-se "aquilo que nos faz compreender a razão por que algo
acontece" (1b., § 56). Com algumas modificações que a

actualizam, encontra lugar no tratado de Wolff toda

29
a metafisica arístotélico-escolástica, que ele de facto declara querer
resgatar do desprezo que se lhe votou depois de Descartes. Isto quer dizer que
os conceitos; centrais da ontologia são para ele os de substância e de causa.
Todavia, pode notar-se a tentativa de apoiá-los numa certa base empírica.
Assim Wolff afirma que as determinações de uma coisa que não resultam de outra
e não derivam uma da outra constituem a essência da coisa mesma (1b., §§ 143,
144). A substância é o sujeito, duradouro e modificável, dos atributos
essenciais e dos modos variáveis de tais atributos (lb., § 770). Toda a
substância é dotada de uma força que produz as mudanças dela: mudanças que são
as suas acções e têm o seu fundamento na essência da substância (1b., § 776).

Na cosmologia, Wolff considera o mundo como um relógio ou máquina em que nada


sucede por acaso e que por isso depende de uma ordem necessária. Dado que esta
ordem necessária foi produzida por Deus e é, portanto, perfeita, é impossível
que Deus mesmo intervenha para a suspender ou mudar, assim o milagre é posto
de parte.

Wolff divide a psicologia em empírica e racional. A primeira considera a alma


tal como ela se manifesta no corpo e emprega o método experimental das
ciências naturais. A segunda considera a alma humana em geral, elimina,
segundo o procedimento cartesiano do cogito, a dúvida sobre a existência da
alma mesma e estuda as duas faculdades fundamentais, o conhecer e o agir.
Wolff exclui a redução da substância corporal à substância espiritual, operada
por Leibniz mediante o conceito de mónada. A alma

30

não está desde o princípio unida ao corpo, mas foi. lhe agregada de fora, ou
seja, por Deus. Sobre as relações entre alma e corpo, Wolff admite a doutrina
da harmonia preestabelecida, mas torna-a independente da vontade de Deus
admitindo que cada alma vê o mundo apenas dentro dos limites dos seus órgãos
corporais e segundo as mutações que se verificam na sua sensibilidade.

Na teologia, que Wolff chama natural (ou racional, contrapondo-a à fundada


sobre a revelação sobrenatural, Wolff dá o máximo valor ao argumento
cosmológico da existência de Deus, aceita o ontológico, e exclui o teológico.
Na realidade, a

ordem do mundo é para ele a ordem de uma máquina e a finalidade das coisas não
é intrínseca às coisas mesmas, mas sim extrínseca e devida à acção de Deus.
Wolff remonta aos atributos da essência divina mediante uma reflexão sobre a
alma humana. E quanto aos problemas da teodiceia, serve-se sistematicamente
das soluções de Leibniz.

Na filosofia prática mantém-se a divisão aristotélica de ética, economia e


política. A sua ética, completamente diversa da de Leibniz, é deduzida do seu
racionalismo. As normas da ética teriam valor mesmo que Deus não existisse,
porque o bem é bem por si mesmo, e não pelo querer de Deus. Tais normas
deduzem-se do Em mesmo do homem, que é a perfeição, e reduzem-se a uma única
máxima: "Faz o que contribui para a tua perfeição, a da tua condição e do teu
próximo, e não faças o contrário". Para a perfeição do homem contribui tudo o
que é conforme à sua natureza, e por isso também o

31

prazer que Wolff define como a percepção de uma real ou suposta perfeição. O
conceito da perfeição funda-se no pressuposto da possibilidade do progresso do
homem individual e da sociedade: progresso que Wolff de facto considera
necessário e que se realizará à medida que a sociedade se organizar de modo a

tornar possível que cada um dos seus membros trabalhe para o aperfeiçoamento
dos outros. . O sistema de Wolff costuma ser designado como leibniziano-
wolffiano. Na realidade, apresenta características, bastante distintas do de
Leibniz. Em primeiro lugar, nega o conceito de mónada, como substância
espiritual que constitui tanto a matéria como o espírito; deste modo,
abandona-se o conceito dominante de Leibniz, o de uma ordem universal e livre,
fundada na 'escolha do melhor. A ordem do mundo é para Wolff a de uma máquina,
sendo por isso necessária e não admitindo liberdade de escolha. Daí deriva
ainda uma terceira diferença que é a negação da finalidade interna das coisas:
estas são, decerto, úteis, porque se prestam a ser utilizadas para o
aperfeiçoamento do homem, mas não estão intrinsecamente constituídas para tal
fim. Neste ponto está bastante mais próximo de um Diderot ou de um Voltaire do
que de um Leibmiz. Mas também se afasta , de Leibniz pela renúncia em
estabelecer um acordo entre a filosofia e a religião revelada, acordo que
Leibniz procurou por todos os meios realizar, conformemente ao seu princípio
de harmonia universal. No sistema de Wolff só existem dois pontos
verdadeiramente leibnizianos: 1.o a doutrina da harmonia universal, que, no
entanto, se limita à

32

WOLFF

relação entre alma e corpo e é interpretada naturalisticamente; 2.a as


justificações da teodiceia. O espírito do iluminismo prevalece na doutrina de
Wolff sobre a inspiração leibniziana.

§ 505. PRECURSORES DO ILUMINISMO ALEMÃO

Podem considerar-se precursores do Iluminismo alguns pensadores contemporâneos


de Leibniz que preanunciam alguns dos temas desse movimento Assim o holandês
Walther de Tschirnhaus (1651 _1708), que foi matemático e físico, além de
autor de um livro de lógica intitulado Medicina mentis sive artis inveniendi
praecepta generalia (1687). Este livro pretende ser uma espécie de introdução
à investigação científica e prescreve as regras que ela deve seguir. A origem
de todos os conhecimentos é a experiência, mas a experiência entendida no
sentido característico, como consciência interior. Esta revela-nos quatro
factos fundamentais que podem servir para a descoberta de todo o saber: 1.*
Somos conscientes de nós mesmos como de uma realidade distinta, este, facto,
que nos conduz ao conceito do espírito, é o fundamento de todo o conhecimento.
2.' Temos consciência de que somos movidos por algumas coisas que nos
interessam e por outras que não nos interessam. Deste facto deduzimos os
conceitos de vontade, conhecimento, bem e mal, e, por. consciência de poder
compreender algumas coisas e,. por consequência, o fundamento da ética. 3.O
Temos,

33

consciência de poder compreender algumas coisas t

não poder compreender outras. Mediante este facto alcançamos o conceito de


entendimento, a distinção entre o verdadeiro e o falso, e, portanto, o
fundamento das ciências racionais. 4.' Sabemos que, através dos sentidos, a
imaginação e o sentimento formam uma imagem dos objectos externos. Neste facto
@c fundam o conceito dos corpos e as ciências naturais. Tschirnhaus está
convencido de que estes factos da experiência interior, se forem adoptados
como princípios gerais de dedução e desenvolvidos sistematicamente, podem
conduzir à aquisição de um

método útil à verdade em todas as ciências. Por outras palavras, partilha o


ideal de uma ciência universal, tal como o entendia Leibniz, com o qual
manteve relações pessoais.

No campo da filosofia do direito é notável a

obra de Samuel Pufendorf (1632-94), De iure naturae et gentium libri octo


(1672), que é a justificação do absolutismo esclarecido. O direito natural
nasce, segundo Pufendorf, em primeiro lugar do amor-próprio que compele o
homem à sua conservação e ao seu bem-estar; e, segundo lugar, do estado de
indigência a que a natureza reduz o homem. Uma vez que o homem é por natureza
um ser racional, o direito natural é a resposta que a razão humana dá ao
problema posto ao homem pelo amor-próprio e

pela inteligência: e o seu princípio pode ser formulado da seguinte maneira.


"Cada qual, na medida das suas possibilidades, deve promover e manter com os
seus semelhantes um estado pacífico de socialismo,

34

conforme em geral à índole e finalidade do género humano (De iure, H, 3, 10).


Consequentemente, devem considerar-se impostas pelo direito natural todas as
acções necessárias para promover tal sociabilidade e proibidas as que a
estorvam ou a dissolvam. Pela necessidade da sociabilidade é o homem conduzido
a estabelecer convenções o pactos de que nascem em primeiro, lugar a
propriedade e o

Estado e, em seguida, os sucessivos desenvolvimentos e as sucessivas


determinações destas duas instituições fundamentais.

Nas ideias de Pufendorf se inspira outro jusnaturalista, Christian Thomas


(Thomas ius) (1655-1728), autor dos Fundamenta iuris naturae et gentium ex
sensu communí deducta (1705). Nesta obra Thomasius vê os fundamentos da vida
moral e social na própria natureza humana e, precisamente, nas suas

três tendências fundamentais; a de viver o maior número de anos o do modo mais


feliz possível, a de evitar a morte o a dor, e a tendência à propriedade e ao
domínio. Sobre estas três tendências se fundam respectivamente o direito, a
política e a ética. O direito, fundado na primeira tendência, visa à
conservação de uma ordem pacífica entre os homem. A política, fundada na
segunda tendência, visa a promover esta ordem pacífica por meio de acções que
visem esse fim. A ética, fundada na terceira tendência, visa à aquisição da
paz interior dos indivíduos. Em Thomasius patenteiam-se já as tendências
iluministas. Ele afirma resolutamente que a filosofia se funda na razão e tem
como escopo Somente o

35

bem-estar terreno dos homens, enquanto a teologia, que se funda na revelação,


visa ao bem-estar celeste. Ademais, vê-se claramente no seu pensamento a
independência da esfera do direito em relação à esfera teológica.
§ 506. O ILUMINISMO WOLFFIANO

Depois de Wolf, os problemas filosóficos foram tratados na Alemanha de uma


maneira mais ou menos conforme com as soluções que este filósofo lhe dera, mas
sempre conformemente ao método que elo empregara. A filosofia wolffiana
dominou durante largo tempo nas universidades germânicas; mas não muitos dos
seus representantes conservaram um autêntico interesse histórico. Entre os
menos servis adeptos de Wolff conta-se Martin Knutzen (1713-51) que foi
professor em Conisberga e mestre de Kant. É autor de um Systema causarum
efficientium, no qual substitui a doutrina do influxo físico entre os corpos
pela da harmonia preestabelecida, clarificando e levando ao seu termo uma
tendência que era já evidente no sistema de Wolff.

Entre os adversários de Wolff, o mais notável é Christian August Crusius


(1715-75). No seu Esquema das verdades de razões necessárias (1745) Crusius
combate o optimismo e o determinismo. Nega que o mundo seja o melhor de todos
os mundos possíveis e que nele domine uma ordem necessária (como queria Wolff)
ou uma harmonia preestabelecida (como queria Leibniz). Crusius critica também,
noutro 36

escrito, o princípio de razão suficiente, ao qual contrapõe como lei


fundamental do pensamento que o que não pode ser pensado é falso e o que não
pode ser pensado como falso é verdadeiro.

Maior relevo tem a personalidade de João Henrique Lambert (1728-77), que


manteve com Kant uma importante correspondência e que, além de filósofo, foi
matemático e astrónomo. A sua primeira obra filosófica é o Novo órgão (1764),
dividido em quatro partes. A primeira, Dianoiologia, estuda as leis formais do
pensamento; a segunda, Aletiologia, estuda os elementos simples do
conhecimento; a terceira, Semiótica, aborda as relações das expressões
linguísticas com o pensamento; e a quarta, Fenomenologia, as fontes dos erros.
Enquanto a dianoiologia reproduz substancialmente a lógica formal de Wolff, a
aletiologia é a parte mais original da obra de Lambert. Esta parte é uma
espécie de análise dos conceitos, que tem por fim chegar aos conceitos mais
simples e indefiníveis. Os conceitos simples são por natureza não
contraditórios, porquanto carecem de multiplicidade interna. A sua
possibilidade consiste, portanto, na sua imediata "pensabilidade". Só são
conhecidos através da experiência, mas são independentes dela porque a sua
possibilidade não é empírica, e neste sentido são a priori. Aos conceitos
simples pertencem: solidez, existência, duração, extensão, força, consciência,
vontade, mobilidade, unidade, e bem assim as qualidades sensíveis, luzes,
cores, sons, ete. O problema que nasce do reconhecimento dos conceitos simples
é o da sua possível combinação. Assim como a geometria, combinando

37

os pontos, as linhas, as figuras, constitui todo o seu sistema, também deve


ser possível construir, mediante a combinação dos conceitos simples, todo e
qualquer sistema de conhecimento. Bastará encontrar os princípios e os
postulados que exprimem (como acontece na geometria) as relações existentes
entre os elementos simples. O conjunto destes postulados constituiria o que
Lambert chama o "reino da verdade" a que pertenceriam a aritmética, a
geometria, a cronometría, a foronomia (doutrina das leis do movimento), e
todas as ciências possíveis. A Semiótica, terceira parte do Novo órgão, é a
investigação das condições que tornam possível exprimir por palavras e sinais
o reino da verdade.
A outra obra de Lambert, Arquitectónica ou teoria dos elementos simples e
primitivos no conhecimento filosófico e matemático (1771), apresenta um

problema que foi na mesma altura tratado por Kant: o da passagem do mundo do
possível ao mundo real, do que é simplesmente pensável, enquanto isento de
contradição, ao que existe. Lambert observa que se o problema da lógica é o de
distinguir o verdadeiro do falso, o problema da metafisica. é o de distinguir
a verdade do sonho. Ora, o que é pensável, não existe necessariamente. A
metafisica deve juntar à demonstração da pensabilidade, a demonstração da
existência real, sem a qual se reduz a um sonho (Arquit., § 43). Ora, os
elementos objectivos do saber só podem ser procurados, segundo Lambert, "nos
sólidos e nas forças" pois só eles constituem "algo categoricamente [real" e
só eles, portanto, podem constituir a base de um juízo sobre a existência

38

(1b., § 297). Porém, as forças não se deixam alcançar e aprisionar pela pura
lógica, mas tão-só pela sensibilidade (1b., § 374), de maneira que só a
experiência pode conferir o carácter de (realidade aos nossos conhecimentos.
Ora, a experiência dá-nos apenas confirmações parciais dos sistemas cognitivos
que constituem o reino da verdade. Isto não implica a

garantia de uma correspondência constante entre este reino e a realidade


mesma. Tal garantia, segundo Lambert, só Deus a pode dar. "0 reino da verdade
lógica, sem a verdade metafísica que se radica nas

coisas mesmas, seria um puro sonho, e sem a existência de um suppositum


intelligens, não só seria um s,3nho, como não existiria de facto. Assim se
chega ao princípio de que há uma verdade necessária, eterna e imutável, do
qual se infere que deve haver um terno e imutável suppositum intelligens e que
o objecto desta verdade, isto é, o sólido e a força, têm uma necessária
possibilidade de existir" (1b., § 29). Deus é, assim, a garantia de toda a
verdade: só ele garante a relação entre o mundo lógico e o

mundo real, e, por consequência, a objectividade real do pensamento.

Apesar da garantia metafísica a que Lambert recorre, a sua doutrina é um claro


apelo à experiência como fundamento de todo o conhecimento válido. E
igualmente apelam para a experiência as investigações psicológicas de João
Nicolau Tetens (1736-1807). A obra principal de Tetens intitula-se
Investigação filosófica sobre a natureza humana e o seu desenvolvimento (1776-
77), e é dominada pela necessidade de conciliar o ponto de vista do empirismo

39

inglês, que reduzira a vida psíquica ao conjunto dos elementos empíricos, com
o ponto de vista de Leibniz que insistira no seu carácter activo e dinâmico.
Esta preocupação condu-lo bastante próximo da solução que Kant dará ao
problema: o reconhecimento de funções a priori que dominam e formam a matéria
sensível. Com efeito, Tetens considera as representações originárias como a
matéria das representações derivadas. A alma tem o poder de escolhê-las, de as
dividir e separar umas das outras para depois de novo misturar, punir e compor
os fragmentos e as partes assim obtidas. Esta capacidade activa revela-se
sobretudo no poder criativo da poesia, que é semelhante à força criadora da
natureza corpórea que, embora não crie novos elementos, produz sempre novos
corpos mediante a mistura das partículas elementares da matéria mesma (Philow.
Vers., 11,
1, 24). As análises empíricas daqueles que Tetens chama "novos
investigadores", como Locke e Condillac, Bonnet e Hume, não podem explicar as
funções do espírito, aquelas que dão origem, por exemplo, à poesia e à
geometria, nas quais há algo que transcende o puro dado da experiência. Os
princípios da ciência natural, como o da inércia, da igualdade entre acção e
reacção, e todos os outros, têm uma certeza que não procede da observação dos
factos empíricos dos quais foram extraídos. "Existem sem dúvida sensações que
proporcionam a descoberta de tais princípios, mas estes só se alcançam através
de um raciocínio, de uma actividade autónoma do entendimento, pela qual foi
produzida cada (relação de ideias... Estes pensamentos universais são
pensamen40

tos verdadeiros, anteriores a toda a experiência. Não os apreendemos através


da abstracção nem é possível que um exercício repetido amiúde haja ocasionado
tais conexões de ideias" (1b., 11, 1, p. 320 sgs.). Os empiristas ingleses e
franceses consideraram sobretudo os produtos mais simples do espírito; Tetens
considera, pelo contrário, os mais elevados. A geometria, a óptica, a
astronomia, estas obras do espírito humano, estas indubitáveis provas da sua
grandeza, são conhecimentos sólidos e reais. Com que regra fundamental
construiu a razão humana estes prodigiosos edifícios? Onde pode encontrar-se o
terreno o como podem sair de simples experiências, as ideias e os princípios
fundamentais que constituem os fundamentos indestrutíveis de obras tão altas?
É precisamente aqui que se deve demonstrar na sua máxima energia a força do
pensamento (Ib., 11, 1, p. 427 sgs.). O problema é aqui equacionado nos mesmos

termos em que será retomado por Kant na Crítica da razão pura. Tetens
conduziu-o até ao ponto em que era possível no plano da pura análise
empirista, no qual se movia. Kant, retomando-o, levá4o-á ao plano da análise
transcendental. Mas já na análise de Tetens começam a delinear-se "o encontro
e os Emites do entendimento humano". Poderá ser o entendimento, humano a norma
da realidade em geral? "Poderemos porventura afirmar que outras Mações
universais objectivas não são pensáveis por outros espíritos, dos quais não
temos ideia alguma como

não a temos de um sexto sentido e da quarta dimensão?" (1b., 11, 1, p. 328


sgs.). A pergunta de Tetens implica já uma resposta negativa; e desta

41

resposta negativa parte Kant para estabelecer a


sua distinção entre fenómeno e númeno.

§ 507. ILUMINISMO ALEMÃO: BAUMGARTEN

O mais notável dos seguidores de Wolff foi Alexander Gottfried Baumgarten


(1714-62), autor de uma Metaphysica (1739) que compendia. em 1.000 parágrafos
a filosofia wolffiana e foi adoptado por Kant como manual para as suas lições
universitárias. Mas a sua fama é devida sobretudo à Aesthetica (1750-58), que
o converteu no fundador da estética germânica e num dos mais eminentes
representantes da estética do século XVIII. O próprio termo de estética foi
introduzido por Baumgarten.

A metafísica é definida por Baumgarten como a "ciência das qualidades das


coisas, cognoscíveis sem

a fé". Antepõe à metafísica a teoria do conhecimento que ele foi o primeiro a


designar pelo termo de gnoseologia. Esta divide-se em duas partes
fundamentais: a estética, que tem por objecto o conhecimento sensível, e a
lógica, que trata do conhecimento intelectual. A originalidade de Baumgarten
reside no relevo que ele deu ao conhecimento sensível, o qual não é por ele
considerado Somente como grau preparatório e subordinado do conhecimento
intelectual, mas também, e sobretudo, como dotado de um valor intrínseco,
diverso e independente do do conhecimento lógico. Este valor intrínseco é o
valor poético. Os resultados fundamentais da estética de Baumgarten são
substancialmente dois: ].' O reconhecimento do

42

valor autónomo da poesia e, em geral, da actividade estética, isto é, de um


valor que não se reduz à verdade que é própria do conhecimento lógico. 2.' O
reconhecimento do valor de uma atitude ou de uma actividade humana que era
considerada inferior e, portanto, a possibilidade de uma mais completa
valoração do homem na sua totalidade. Foi devido a este segundo ponto que
Baumgarten se tomou num dos mais notáveis representantes do espírito do
Iluminismo. A estética é definida por Baumgarten como

a "ciência do conhecimento sensível" e é também considerada como "teoria das


artes liberais, gnoseologia inferior, arte de bem pensar, arte do análogo da
razão, Aest., § 1). O fim da estética é "a perfeição do conhecimento sensível
enquanto tal" e esta perfeição é a beleza (Ib., § 14). Por isso não pertencem
ao domínio da estética, quer aquelas perfeições do conhecimento sensível que
estão tão ocultas que permanecem sempre obscuras para nós, quer as que não
podemos conhecer senão por meio do entendimento. O domínio da estética tem um
limite inferior representado pelo conhecimento sensível obscuro e um limite
superior representado pelo conhecimento lógico distinto; a ele pertencem
apenas as

representações claras mas confusas. A beleza, como perfeição do conhecimento


sensível, é universal, mas de uma universalidade diversa do conhecimento
lógico, porque abstrai da ordem e dos sinais e realiza uma forma de unificação
puramente fenoménica. A beleza das coisas e dos pensamentos é distinta da
beleza da consciência e da beleza dos objectos e da matéria. As coisas feias
podem ser pensadas

43

de uma maneira bela e as coisas belas podem ser pensadas de uma maneira feia
(1b., § 18). Baumgarten crê que a facúndia, a grandeza, a verdade, a clareza,
a certeza e, numa palavra, a vida do conhecimento, podem contribuir para
formar a beleza desde que se reunam numa única percepção fenoménica e sejam,
por assim dizer, presentes e vivas no seu conjunto (1b., § 22). Neste sentido,
o conhecimento estético é um "análogo da razão; assim, não devem ser-lhe
necessariamente estranhos os caracteres que são próprios do conhecimento
racional; mas, para constituir uma obra de beleza, estes caracteres devem
estar presentes em sua vida total e serem, precisamente na sua totalidade,
intuídos como um fenómeno. Requer-se para isso uma disposição natural, com que
se nasce, e que só pelo exercício se pode desenvolver e manter, disposição que
Baumgarten chama engenho beloconatural (ingetdum venustum connatum, § 29).
Requer-se outrossim, para se obter um feliz carácter estético, o ímpeto
estético, isto é, a inspiração ou o entusiasmo (1b., § 78); e, além disso, a
disciplina da investigação e do estudo (Ib., § 97). Estas determinações
esclarecem * que Baumgarten pretende dizer quando define * beleza como o fim
do conhecimento sensível. Enquanto no domínio da investigação científica o
elemento sensível é o ensejo ou o meio para atingir o conceito, na estética o
elemento sensível é ele mesmo o fim da investigação que tende a individuá-lo e
a aperfeiçoá-lo no seu puro valor fenoménico. O principio de que a beleza é
determinada pela atitude mediante a qual a aparência

44

se converte no verdadeiro fim de si própria, iria inspirar e dirigir a Crítica


do Juízo de Kant.

Mas ao mesmo tempo este princípio permite conferir, conformemente ao espírito


do iluminismo,

uma nova dignidade a aspectos da vida humana que, na época precedente, estavam
condenados a

uma irremediável inferioridade. Alguns críticos da época, e outros mais


recentes, tinham chegado a acusar Baumgarten de ter relegado a faculdade do
belo para o domínio das faculdades inferiores, pelo que quase não valia a pena
desejá-la; e um historiador da estética alemã, Lotze, afirmou que "a estética
alemã começa com o manifesto desprezo pela sua própria matéria". Na realidade,
porém, Baumgarten respondeu antecipadamente a tais objecções. No prefácio do
seu primeiro ensaio, Meditações filosóficas sobre argumentos concernentes à
poesia (1735), defendera a dignidade e o valor das suas investigações sobre um
tema "por muitos considerado ligeiro e muito pouco próprio do engenho de um
filósofo". Mas nos "Prolegómenos" da Estética a sua defesa converte-se na
defesa de uma parte ou

de um aspecto fundamental do homem ao afirmar decididamente que "o filósofo é


um homem entre os homens e não pode crer verdadeiramente que uma parte tão
grande do conhecimento humano lhe seja estranha" (1b., § 6). Ã objecção de que
o conhecimento distinto (isto é, racional) é superior ao estético, responde
que " num espírito finito isso é verdadeiro apenas nas coisas de maior
importância (lb., § 8); e à observação de que as faculdades inferiores devem
ser antes dominadas que estimuladas e
45

fortalecidas, contrapõe ele que "se requer domínio sobre as faculdades, mas
não a tirania" (Ib., § 12). Desta maneira, a defesa da estética como ciência
autónoma coincide, na obra de Baumgarten, com a defesa da dignidade e do valor
de uma atitude humana fundamental.

§ 508. ILUMINISMO ALEMÃO: O ILUMINISMO RELIGIOSO

O carácter peculiar do Iluminismo alemão, conforme se apresenta em Wolff e nos


filósofos wolffianos (incluído Baumgarten), para. os quais a razão se
identifica com o método analítico da fundamentação, é explicado algumas vezes
como resultante do carácter alemão. Esta é uma explicação digna da metafísica
escolástica, porquanto recorre a uma qualidade oculta. Ademais, é uma
explicação falsa no terreno dos factos, porque o iluminismo alemão encontrou
também expressão numa literatura ágil e popular, semelhante à francesa. E esta
literatura não tem menos valor do que a outra, dado que entre os seus
cultores figura Lessing.

Esta segunda corrente do iluminismo alemão discutiu principalmente o problema


religioso e, tal corno as expressões análogas do iluminismo inglês e francês,
está dominada pelo deísmo, que encontrou alguns dos seus defensores entre os
próprios pietistas. O primeiro defensor declarado do deísmo foi Hermann Samuel
Reimarus (1694-1678), autor de um Tratado das principais verdades da religião
natural (1754), cuja tese fundamental é a de que

46

o único milagre de Deus é a criação. São impossíveis ulteriores milagres


porque seriam correcções ou

mutações de uma obra que, por ter saído das mãos de Deus, deve considerar-se
perfeita. Deus não

pode querer senão a imutável conservação do mundo na sua totalidade. Se os


milagres são impossíveis, também é impossível uma revelação sobrenatural que
seria ela mesma um milagre. E conquanto a religião não deva ser negada, deve
fundar-se unicamente no conhecimento natural. A religião natural deve cortar
as pontes com a religião revelada porque a verdade não deve contemporizar com
o erro e a verdade está só do lado da religião natural. Na sua Defesa ou
apologia de um

racional adorador de Deus e noutros escritos e fragmentos publicados


postumamente, Reimarus extraji e defende todas as consequências do deísmo com
um vigor que nada fica a dever aos seus colegas ingleses e franceses e ainda
com maior rigor lógico do que eles. Afirma explicitamente a falsidade de toda
a revelação, incluída a do Velho e do Novo Testamento. "Só a religião natural
é verdadeira, ora, a religião bíblica está em contradição com a

religião natural; portanto, é falsa". Com este simples silogismo Reimarus


rejeita em bloco to-do o ensino da tradição. "Só o livro da natureza, criação
de Deus, é o espelho no qual todos os homens, cultos ou incultos, bárbaros ou
gregos, judeus ou

cristãos, de todos os lugares e de todos os tempos, podem reconhecer-se a si


mesmos".

Os temas filosóficos e religiosos do iluminismo foram expostos e defendidos de


uma maneira simples
47

e popular por Moisés Mendelssohn (1729-86), que foi amigo pessoal de Lessing e
manteve correspondê ncia com Kant. Os seus escritos principais são: Cartas
sobre as sensações (1755); Considerações sobre, a origem e relações das belas
artes e das ciências (1757); Tratado sobre a evidência das ciências
metafísicas (1764); Fédon 'ou sobre a imortalidade da alma (1767); Jerusalém
ou sobre o poder religioso e o judaísmo (1783); Aurora ou sobre a existência
de Deus (1785). O pensamento de Mendelssohn reúne' eclèticamente a gnoseologia
empirista de Locke, o ideal ético de perfeição de Wolff e o panteísmo de
Espinosa. Assim como Reimarus condena em bloco toda a revelação, também
Mendelssohn condena em bloco todas as igrejas e todo o poder eclesiástico. A
religiosidade existe, tal como a moral, nos sentimentos e pensamentos íntimos
do homem, mas os pensamentos e sentimentos íntimos não se deixam coagir por
forma alguma de poder jurídico. Toda a organização jurídica supõe uma
imposição; e a religião escapa por natureza a qualquer imposição. A tese
principal da obra Jerusalém ou sobre o poder religioso e o judaísmo, é a de
que sobre os fundamentos da moral e da religião não se pode erguer nenhuma
forma de direito eclesiástico e que um tal direito existe apenas em detrimento
da, religião. Daí que o estado deva defender a mais absoluta, liberdade de
consciência, quer dizer, é preciso que a igreja e a religião percam todo o
poder político e sejam completamente separadas do estado. Mendelssohn é também
contrário ao ideal da unificação religiosa propagado por Leibniz, já que a

48

LESSING

unificação religiosa supõe um símbolo ou uma fórmula a que se reconheça


validez jurídica e que por isso se impõe com a força do poder político. Ela
conduziria à limitação ou à negação da liberdade de consciência. Mendelssohn
vê realizado o seu ideal de religião natural na religião de Israel; nesta não
há nenhum direito eclesiástico, nenhum credo obrigatório nem nenhuma revelação
divina das crenças fundamentais, as quais pelo contrário assentam no
conhecimento natural. O único objectivo da revelação judaica foi o de dar uma
legislação prática e normas de vida.

No Fédon, Mendelssohn procura actualizar o diálogo platónico, desfiando a


trama das demonstrações em favor da imortalidade que se encontram nessa obra e
acrescentando-lhe uma sua; a alma tende por si ao aperfeiçoamento indefinido;
Deus teve portanto de criá-la imortal, pois, de contrário, tal tendência, por
ele próprio criada, não chegaria a realizar-se. Mas se Mendelssohn admite o
progresso do homem para a perfeição, recusa-se a admitir o progresso de todo o
género humano, em que o seu amigo Lessing insistia. "0 progresso, diz ele em
Jerusalém, é só para os homens individuais. Que também o todo, a humanidade
inteira deva no curso dos tempos progredir e aperfeiçoar-se, não me parece que
tenha sido esse o escopo daprovidência divina". Em Aurora, defende o panteísmo
espinosano, considerando-o conciliável com a religião e a moral. Nas Cartas
sobre as sensações e nas Considerações sobre as belas artes, aceita a dou49

de Bau~en e considera a beleza como


~manifestação confusa" ou "representação sensível Perfeita".

§ 509. ILUMINISMO ALEMÃO: LESSING

A mais genial figura do Iluminismo alemão é Gottfreid Efraim. Lessing (22 de


Janeiro de 1729
- 15 de Fevereiro de 1781). Lessing representou poeticamente nos seus dramas o
ideal de vida do iluminismo; estudou a natureza da poesia e da arte,
especialmente a poesia e a arte clássica (Laocoonte,
1766; Dramaturgia de Hamburgo, 1767-69); debateu amplamente o problema
religioso numa série de escritos breves e fragmentários, mas extremamente
eficazes, o último e mais importante dos quais é A educação do género humano
(1780). O seu pensamento, que a princípio girava em tomo das ideias wolfianas
e do deísmo, orientou-se, numa segunda fase, através da leitura de
Shaftesbury, para Espinosa. Jacobi, nas suas Cartas sobre a doutrina de
Espinosa a Moisés Mendelssohn (1785), referiu, depois da morte de Lessing, as
palavras que, segundo consta, pronunciou pouco antes de morrer

e que são provavelmente autênticas: "Os conceitos ortodoxos da divindade já


não são para mim; não consigo gostar deles. En kai Pan! Nada mais sei."
O Uno4odo, a imanência de Deus no mundo como o espírito da sua harmonia, da
sua unidade-tal foi a última convicção de Lessing. Mas foi uma
convicção que para ele não se restringe, como Espinosa, só ao mundo natural:
estende-se ao mundo

50
da história, como o demonstra o seu escrito sobre a educação do género humano.

Este escrito marca uma fase extraordinariamente significativa da elaboração


que o conceito de história sofreu no iluminismo. A ela chegou Lessing após
longas investigações, cujas primeiras fontes se podem reencontrar em Wolff. O
conceito de Wolff de que toda a actividade humana é dirigida para a perfeição,
permite ver em todos os aspectos do homem um aperfeiçoamento incessante que
lhes dá um novo significado. E assim Lessing, num

escrito de 1778 (Eine Duplik), atribui o valor do homem, mais do que à verdade
alcançada, ao esforço paira alcançá-la, esforço que põe em movimento todas as
suas forças e revela toda a perfeição de que é capaz. E nesta ocasião faz a
célebre afirmação: "Se Deus tivesse na sua mão direita toda a verdade e na
esquerda apenas a tendência para a

verdade com a condição de errar eternamente perdido e me dissesse: - Escolhe


-, eu precipitar-me-ia com humildade para a sua mão esquerda e

diria: Senhor, escolhi; a pura verdade é só para ti". Em que consiste


propriamente o valor desta tendência eterna, que é o quinhão de cada homem e

a lei da história, foi o problema que ocupou longamente Lessing e que foi
debatido em todos os seus

escritos teológicos. Leibniz distingue as verdades de razão, universais e


necessárias, das verdades de facto, particulares e contingentes. Lessing parte
precisamente desta distinção para se perguntar a qual das duas espécies de
verdade pertencem as verdades religiosas. Estas assentam sempre em factos
particulares como o milagre e a revelação; como podem tais factos particulares
constituir o fundamento de verdades eternas e universais, como são as que a

religião ensina? "Todos nós cremos, diz Lessing (Ueber den Beweis des Geistes
und Kraft, Werke, ed. Matthias, H, p. 139), que tenha existido um Alexandre
que em breve tempo conquistou toda a

Ásia. Mas quem arriscaria nesta crença algo de grande e capital importância,
cuja perda não pudesse ser reparada? Quem abjuraria para sempre, para seguir
tal crença, todo o conhecimento que a contradissesse? Eu não, decerto." Os
milagres do cristianismo ocorridos há muitos séculos, são paira nós simples
notícias que nada têm de miraculoso; mas ainda que admitíssemos como
verdadeiras tais notícias, será que delas deriva a verdade eterna do
cristianismo? Que relação tem a nossa incapacidade de rebater qualquer
objecção fundada no testemunho bíblico com a obrigação de crer nalguma coisa a
que a razão repugna. Mesmo se se admite que Cristo tenha ressuscitado, dever-
se-á por isso admitir que o Cristo ressuscitado seja filho de Deus? Lessing
considera impossível "passar de uma verdade histórica para uma classe
totalmente diferente de verdades e pretender que eu modifique por este preço
todos os meus conceitos metafísicos e morais." Constitui de algum modo uma
resposta a estas dúvidas e interrogações o escrito intitulado Educação do
género humano.
O conceito fundamental desta obra é que a revelação é educação. Com efeito, na
educação, cada homem aprende dos outros o que a sua razão

52

ainda não é capaz de entender. O que ele aprende não é todavia contrário à
razão, só que não pode ser captado e entendido plenamente pela sua razão ainda
débil e pueril. Ora, a história da humanidade tem um desenvolvimento idêntico
ao do indivíduo. A humanidade foi educada através da revelação, a qual lhe
comunica aquelas verdades que ela ainda não é capaz de entender, enquanto não
se torne capaz de as alcançar e possuir de maneira autónoma,

Deste ponto de vista, a própria revelação historiciza-se, já que não incide


num ponto único da história mas acompanha todo o curso dela, anunciando e
antecipando os desenvolvimentos autónomos da razão. Assim como a natureza é
uma contínua criação, assim também a religião é uma contínua revelação. Toda a
religião positiva é um grau desta revelação, que compreende em si mesma todas
as religiões e as unifica no curso da sua história progressiva. A coincidência
total da revelação com a

razão, da religião positiva com a religião natural, é o último termo a que a


humanidade é destinada pela divina providência. Dado que a religião cristã é a
mais elevada religião positiva, os seus dogmas - a encarnação, a trindade, a
redenção- transformar-se-ão finalmente em verdades de razão; e a

"razão do cristianismo" dilucidar-se-á por último volvendo-se "o cristianismo


da razão". ,Esta doutrina de Lessing que esclarece em sentido religioso e
especulativo a ideia da história como

53
imagem progressiva, que o iluminismo elaborou, iria ter a mais ampla
ressonância no período romântico. No domínio da estética, Lessing permanece
substancialmente fiel à concepção aristotélica, cujas regras considera tão
infalíveis como os elementos de Euclides (Hamburgische Dramartugie). No
Laocoonte propõe-se pôr a claro a diferença entre pintura e

poesia. A primeira emprega formas e cores no

espaço e pode exprimir apenas objectos que coexistem ou cujas partes


coexistam. A poesia usa

sons articulados no tempo e dessa maneira exprime objectos sucessivos ou cujas


partes são sucessivas. Ora, os objectos que coexistem ou cujas partes são
sucessivas chamam-se acções: os corpos e as suas

qualidades visíveis são, portanto, os objectos da pintura, enquanto as acções


são os objectos próprios da poesia. Mas as regras fundamentais da poesia e da
pintura são idênticas porque ambas são artes imitativas. "A pintura nas suas
composições coexistentes pode utilizar apenas um único momento da acção e deve
por isso escolher o mais significativo, pelo qual se torna mais compreensível
o que o antecede e o que se lhe segue. De igual modo a poesia nas suas
imitações sucessivas pode utilizar apenas uma única propriedade dos corpos e
deve por isso escolher a que suscite a imagem mais sensível do corpo segundo o
ponto de vista por que o considera. Daqui se tira a regra da unidade dos
adjectivos pictóricos e da economia na representação dos objectos corpóreos"
(Laoc., ap., 4). A divisão entre poesia

54

e pintura não é todavia absoluta. A pintura pode representar também movimentos


indicando-os mediante corpos; e a poesia pode representar também corpos
indicando-os mediante movimentos. A regra aristotélica da unidade domina a
estética de Lessing.
NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 504. Os escritos alemães de Wolff tiveram várias edições, além da primeira,


cuja data vem indicada no texto. As obras latinas (títulos e datas indicados
no texto) constituem um "corpus" de 23 vol., in-4.1, Francofort, Leipzig,
17.36. Nova edição fotocopiada, Hildesheim, 1962, sgs.-M. CAmpo, C. W. e il

razionalismo pre-critico, Milão, 1939, com bibl.; F. BARONE, Logica formale e


logica trascendentale, I, Turim,
1957, pp. 83-119.

K. FiSCHER, Geschichte der neuern PhiZosiphie, III, Leibniz, 4.1 ed.,


Heidelberg, 1902, p. 627 %gs.

Sobre o Iluminismo alemão: E. ZELLER, Geschichte de-r deutschen Philos. seit


Leibniz, 2.1 ed. Münehen,
1875; Cassirer, Das ErkenntnissprobTem, cit., II, Berlim, 1922.

§ 505. Sobre Tschirnhaus: G. RADETTI, Cartesianismo e spinozismo nel pensiero


di E. W, v. T., Roma,
1939.

Sobre Pufendorf: P. MEYER, S. P., Grinuna, 1895; E. WOLFF, Grosse Rechtsdenker


der deutschen Geistesgeschichte, Tübingen, 1939.

Sobre Thomasius A. NICOLADONI, C. T., Berlini,


1888.

§ 506. Knutzen, Dissertatio metaphysica de aeternitate mundi imposstbili,


Kõnigsberg, 1733; Commen5,5

tatio Philosophka de commercio mentis e corporis, Kõnigsberg, 1735;


COmmentaU0 phi;osQVhica de hun~ae mentis índividua natura sive
immate@ialitate, Kõnigsberg, 1741, Elementa philosophiae rationaZis seu
logicae cum generalis tUm sPecia7is mathematica methodo demonstrata.

56

XV

KANT

§ 510. KANT: A VIDA

A orientação crítica que O empirismo inglês havia iniciado, reconhecendo e


assinalando à razão os limites do mundo humano, e que o iluminismo havia feito
sua, torna-se na obra de Kant uma viragem decisiva da história da filosofia. A
construção de uma filosofia essencialmente crítica, na qual a razão humana,
levada ante o tribunal de si própria, delimita de modo autónomo os seus
confins e as suas possibilidades efectivas, tal é o objectivo próprio de Kant.
Este objectivo é por isso o de um racionalismo que se propõe, em primeiro
lugar, a elaboração do próprio conceito de razão. Kant identifica este
racionalismo com o iluminismo; e na realidade o conceito da razão que ele
alcança está na linha daquela elaboração que começara com Hobbes e

57
que o iluminismo aceitara de Locke: isto é, na linha

que vê na razão um órgão autónomo e eficaz para guia da conduta humana no


mundo mas não uma actividade infinita e omnipotente que não tenha limites nem
condições.

Manuel Kant nasceu, de família originária da Escócia, em Kõnigsberg, a 12 de


Abril de 1724. Foi educado no espírito religioso do pietismo, no

Collegium Fridericianum, do qual era director Francisco Alberto Schultz, a


mais notável personalidade do pietismo naquele período. Ao sair do colégio
(1740), Kant estudou filosofia, matemática e teologia na Universidade de
Kõnigsberg, onde teve como mestre Martin KnutZen. que o encaminhou para os
estudos de matemática, de filosofia e da física newtoniana. Depois dos estudos
universitários, foi perceptor nalgumas casas patrícias. Em 1755, com a
dissertação Principiorum primorum cogníltionis tnetaphysicae nova dilucidatio
obteve a docência livre na Universidade de Kõnigsberg e durante
quinze anos desenvolveu na Uníversidade os seus cursos livres sobre várias
disciplinas. Em 1766 tornou-se bibliotecário de Schlõssbibliothek de
Kõnigsberg; e só em 1770 foi nomeado professor ordinário de lógica e
metafísica naquela Universidade.

Kant exerceu este cargo até à sua morte, cumprindo com grande escrúpulo todos
os seus deveres 'académicos, mesmo quando devido à debilidade senil se lhe
tornaram extremamente penosos. Herder, que foi seu aluno nos anos 1762-1774,
deixou-nos dele esta imagem (Briefe zur Mefõrderung 'der Htímatútãt, 49):
"Tive a felicidade de conhecer um
58

filósofo que foi meu mestre. Nos anos juvenis, tinha a alegre vivacidade de um
jovem e esta creio eu que nunca o abandonou nem mesmo na mais avançada
velhice. A sua fronte aberta, feita para o pensamento, ora a sede de uma
imperturbável serenidade e alegria; o discurso mais rico de pensamento fluia
dos seus lábios; tinha sempre pronta a ironia, a argúcia e o humorismo e a sua
lição erudita oferecia o andamento mais divertido. Com o mesmo espírito com
que examinava Leibniz, Wolff, Baumgarten, Crusius, Hume e seguia as leis
naturais descobertas por Newton, por Kepler e pelos físicos, acolhia também os
escritos que então a-pareceram de Rousseau, o seu Emílio e a sua Heloísa, como
qualquer outra descoberta natural que viesse a conhecer: valorizava tudo e
reconduzia tudo a um conhecimento sem preconceitos da natureza e ao valor
moral dos homens. A história dos homens, dos povos e da natureza, a doutrina
da natureza, a matemática e a experiência eram as fontes que davam vida à sua
lição e à sua conversação. Nada que fosse digno de ser conhecido lhe era
indiferente; nenhuma cabala, nenhuma seita, nenhum preconceito, nenhum nome
soberbo, tinha para ele o menor apreço frente ao incremento e ao
esclarecimento da verdade. Encorajava e obrigava docemente a pensar por si; o
despotismo era estranho ao seu espírito. Este homem, que nomeio com a máxima
gratidão e

veneração, é Manuel Kant: a sua imagem está sempre diante dos meus olhos."

A vida de Kant carece de acontecimentos dramáticos e de paixões, com poucos


afectos e amizades
59

inteiramente concentrada num esforço contínuo de pensamento. Todavia Kant não


foi alheio aos acontecimentos políticos do seu tempo. Simpatizou com os
americanos na sua guerra da independência e com os franceses na sua revolução
que considerava encaminhada para a realização do ideal da liberdade política.
O seu ideal político, tal qual o delineou na obra Pela Paz Perpétua (1795),
era uma constituição republicana " fundada, em primeiro lugar, no princípio de
liberdade dos membros de uma sociedade, como homens; em segundo lugar, sobre o
princípio de independência de todos, como súbditos; em terceiro lugar, sobre a
lei da igualdade como cidadãos."

O único episódio notável da sua vida foi o conflito em que se encontrou com o
governo prussiano depois da publicação da segunda edição (1794) da Religião
nos Limites da Razão. O rei Frederico Guilherme 11, sucessor de Frederico o
Grande, restringira em 1788 a liberdade de imprensa, submetendo a censura
prévia as publicações de carácter religioso. Apesar de a obra de Kant ter sido
vista pela censura, a 14 de Outubro de 1794 o filósofo recebia uma carta do
rei assinada pelo ministro WõlIner na qual se afirmava que as ideias contidas
naquele escrito estavam em contradição com pontos fundamentais da Bíblia e do
cristianismo e se proibia a Kant ensiná-las ulteriormente sob pena de graves
sanções. Na sua resposta, Kant, embora rejeitando a acusação, prometia ater-se
à proibição "como súbdito de Sua Majestade": frase com a qual entendia limitar
a sua promessa à duração da vida do rei.

60

E de facto, com a subida ao trono de Frederico Guilherme HI (1797) e a


demissão do ministro Wõllner, a liberdade de imprensa foi restaurada e

Kant podia, no Conflito das Faculdades (1798), reivindicar a liberdade de


pensamento e de palavra contra as arbitrariedades do despotismo, mesmo a

respeito da religião. Todavia, não leccionou mais cursos sobre filosofia da


religião.

Nos últimos anos Kant caiu numa debilidade senil que o privou gradualmente de
todas as suas faculdades. Depois de 1798 não pôde mais continuar os seus
cursos universitários. Nos últimos meses perdia a memória e a palavra. E assim
este homem que vivera para o pensamento, morreu mumificado a 12 de Fevereiro
de 1804.

§ 511. KANT: OS ESCRITOS

DO PRIMEIRO PERIODO

Na actividade literária de Kant podem distinguir-se três períodos. No


primeiro, que vai até
1760, prevalece o interesse pelas ciências naturais. No segundo período, que
vai até, 1781 (ano em que, foi publicada a Crítica da Razão Pura), prevalece o
interesse filosófico e determina-se a orientação para o empirismo inglês e o
critiCismo. O terceiro período, de 1781 em diante, é' o da filosofia
transcendental.

O primeiro período começa com um escrito que Kant compôs quando era ainda
estudante e publicou em 1746, Pensamentos sobre o Verdadeiro Valor

61

das Forças Vivas. Seguidamente, publicou uma Investigação sobre a Questão da


Causa da Variação da Terra no seu Movimento em torno do Eixo (1754) e um outro
em torno da questão Se a Terra envelhece (1754). De 1755 é a obra principal
deste período História Natural Universal e Teoria dos Céus. O escrito, que
apareceu anónimo, descreve a formação de todo o sistema cósmico a partir de
uma nebulosa primitiva em conformidade com as leis da física newtoniana.
Divide-se em três partes: na primeira descreve-se a formação das estrelas
fixas e explica-se a multiplicidade dos sistemas estelares. Na segunda,
descreve-se o estado primitivo da natureza, a formação dos corpos celestes, a
causa dos seus movimentos e das suas relações sistemáticas, tanto no que se
refere à constituição dos planetas como

no que se refere a todo o universo. Na terceira parte estudam-se as analogias


dos planetas para fazer um

confronto entre os habitantes dos diferentes planetas. A hipótese desenvolve-


se de modo puramente mecânico: a matéria primitiva tem já em si mesma a lei
que deve conduzi-la à organização dos mundos e

revela portanto uma certa ordem que permite reconhecer a marca do seu criador.
-0 escrito de Kant foi pouco conhecido. Em 1761 Lambert, nas

suas Cartas Cosmológicas, formulava uma doutrina análoga; e em 1796 Laplace,


na Exposição do Sistema do Mundo, chegava a uma hipótese semelhante à kantiana
relativamente à formação do sistema solar. Estas analogias explicam-se
observando que a hipótese fora sugerida, a Kant como aos outros, pela história
Natural de Buffon.

62

Em 1755 Kant publicava outra investigação física, De Igne; e no mesmo ano a


dissertação para a
docência livre Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova
dilucidatio, na qual se reconhece e se reduz também a este último o princípio
da razão suficiente que Kant com Crusius chama princípio de razão
determinante.

Em 1756 apareceram: três escritos de Kant sobre os Terramotos, um sobre a


Teoria dos Ventos e a Monadologia Física. Neste último, em lugar das mónadas
leibnizianas, Kant fala em mônadas físicas, corpos simples que ocupam uma
quantidade mínima de espaço. O espaço de mónada é defendido pela sua esfera de
actividade que impede as mônadas que a rodeiam de aproximar-se mais (Prop. 6).
A impenetrabilidade dos corpos é defendida pela força de atracção e repulsão
(Ib., 10).

Em 1757, Kant publicava o Projecto de uni

Colégio de Geografia Física com outras observações sobre os ventos.

Em 1759, imprimia um ensaio sobre Movimento e Repouso e o escrito sobre o


0~ismo. Neste discute a questão que Voltaire havia tratado no

Poema sobre o Terramoto de Lisboa, mas resolve-a a favor do optimismo radical.


Pretende-se colocar-se no ponto de vista de quem considera o mundo na sua
absoluta totalidade e, precisamente deste ponto de vista, afirma que Deus não
teria podido escolher outro melhor. O pressuposto de uma visão total e
exaustiva de todo o universo é tal que se explica que Kant tenha repudiado
seguidamente o, escrito
63

(como testemunha o seu contemporâneo Borowski, Leben KantS, p. 58), o qual


termina com uma espécie de canto lírico de exaltação do mundo e dos homens.

§ 512. KANT: OS ESCRITOS DO SEGUNDO PERÍODO

Neste período que assinala a preponderância decisiva no pensamento de Kant dos


interesses filosóficos, começam a delinear-se temas e movimentos que
confluirão no criticismo. Num grupo de quatro escritos compostos entre 1762-
1764, Kant chega a conclusões que lhe servirão como ponto de partida e de
referência dos seus escritos críticos. No escrito A Falsa Subtileza das quatro
Figuras Silogísticas (1726), critica o valor da lógica aristotélica-
escolástica, comparando-a com um colosso "que tem a cabeça nas nuvens da
antiguidade e cujos pés são de argila". A lógica deveria ter como fim não
complicar as coisas, mas aclará-las; não descobri-las, mas expô-las
claramente.

No único Argumento Possível para uma Demonstração da Existência de Deus


(1763), Kant chama à metafísica " um abismo sem fundo", um "oceano tenebroso
sem margem e sem faróis"; e diz que há ocasiões em que se atreve a explicar
tudo e a demonstrar tudo; e outras, pelo contrário, só com temor e
desconfiança se aventura em semelhantes empresas. "0 escrito parte da
distinção clara da existência dos outros predicados ou determinações das
coisas. Os predicados ou determinações são
64

posições relativas de um quid, isto é caracteres de uma


coisa; a existência é a posição absoluta da coisa em
si própria. Por isso no existente não há mais qualidades ou caracteres que no
simples possível; aquilo que há a mais é a posição absoluta. O princípio de
contradição é a condição formal da possibilidade;

mas a possibilidade intrínseca das coisas supõe sempre uma existência qualquer
porque, se não existisse nenhuma de facto, nada seria pensável e possível (1,
§ 2). Desta, consideração tira Kant a sua demonstração da existência de Deus
que é uma reedição do velho argumento a contigentia mundi. Todas as

outras demonstrações são reduzidas por Kant a

esta, inclusive a prova ontológica de Descartes.

Numa Investigação sobre o Conceito das Grandezas Negativas (1763), na qual


Kant procura utilizar na filosofia os conceitos e os processos da matemática,
reforça-se a distinção entre o domínio do pensamento lógico e o da realidade a
propósito da diferença que há entre a contraposição lógica e a

contraposição real. As Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime


(1764) procuram distinguir do ponto de vista psicológico o sublime do

belo, na medida em que o primeiro comove e

exalta e o segundo atrai e arrebata. A influência de Shaftesbury é evidente no


escrito em que se estabelece como fundamento da moral "o sentimento da beleza
e da dignidade da natureza humana".
Na primavera de 1764 apareceu a investigação sobre a Clareza dos Princípios da
Teologia Natural e da Moral em resposta ao tema de um concurso

aberto pela Academia de Berlim: "Se as verdades

65

metafísicas podem ter a mesma evidência que as das matemáticas, e qual é a


natureza da sua certeza", A metafisica é definida no escrito como "nada mais
que uma filosofia sobre os primeiros fundamentos do nosso conhecimento". Kant
é um decidido defensor da aplicação do método matemático à filosofia; mas vê
também as diferenças que existem entre uma e outra disciplina. As matemáticas
dão definições, sintéticas, a filosofia analíticas; a matemática considera
O Universal em concreto, a filosofia em abstracto. Na matemática existem
poucos conceitos não expressos e princípios não demonstrados, na filosofia
existem muitos. O objecto das matemáticas é fácil e simples, o da filosofia é
difícil e complexo. "A metafísica é sem dúvida o mais difícil de todos os
conhecimentos humanos; por isso ela não foi ainda escrita". Contudo, a certeza
da metafísica deve ser da mesma natureza da das matemáticas; e a filosofia
pode realizar esta certeza com o mesmo procedimento, isto é com a análise da
experiência o com a redução dos fenómenos a regras e a leis. Só que, enquanto
a matemática parte das definições, a filosofia chega ao fim quando alcançou o
esclarecimento dos dados sensíveis. Por outras palavras, a filosofia deve
fazer seu, segundo Kant, o método que Newton empregou nas ciências naturais.
Deste método, o próprio Kant deu uma amostra na última parte da obra,
destinada a ilustrar os fundamentos da teologia natural e da moral. Dado que a
existência é um conceito empírico, deve existir alguma coisa sem a qual nada é
possível e nada pode ser pensado: isto é um ser necessário. Pelo que respeita
à moral, detém-se a

66

considerar sobretudo o conceito de obrigação. Este conceito não lhe parece


provado pela doutrina de Wolff que estabelece como fim da acção moral a

perfeição. O bem identifica-se com a necessidade moral, por isso o


conhecimento nada diz sobre a sua natureza que é, em contrapartida, revelada,
pelo simples "sentimento moral". Kant alude explicitamente às análises de
Hutcheson; e assim o escrito demonstra uma nova orientação do seu pensamento
que se dirige para as análises do empirismo inglês.

Esta orientação é ainda mais clara na Notícia

sobre a Orientação das suas Lições, de 1765. É necessário não já aprender à


filosofia, mas aprender a filosofar: o método do ensino filosófico, deve ser

o da investigação. As indagações de Shaftesbury, Hutcheson e Hume, ainda


que incompletas e defeituosas, mostram na realidade o verdadeiro método que
torna possível aproximar-se da natureza dos homens e descobrir, não Somente
o que são, mas o

que devem ser. -0 afastamento do dogmatismo da escola wolfiana é neste ponto


decisivo; e coincide com a adesão ao espírito de investigação e ao empirismo
dos filósofos ingleses.

O documento mais significativo deste afastamento é o escrito de 1765, Sonhos


de um Visionário Esclarecidos com os Sonhos da Metafísica. As razões que
moldaram este escrito foram as visões místicas e espiritístas do sueco Manuel
Swedenborg (1688-1772); e é uma sátira burlesca destas visões e das

doutrinas que lhos servem de, fundamento. A metafísica de Wolff e de Crusius é


comparada às visões fantásticas de Swodenborg porque também aquele

67

1 se encerra no seu próprio mundo, que exclui o

acordo com os demais homens. "Frente aos arquitectos dos diferentes mundos
ideais que se movem

no ar, dos quais cada um ocupa tranquilamente o seu, com exclusão dos outros,
situando-se um deles na ordem das coisas que Wolff construiu com poucos
materiais de experiência mas com muitos conceitos sub-reptícios, e o outro,
que Crusius produziu do nada com a força mágica de algumas palavras como
"pensável" e " impensável", nós, ante o contraditório das suas visões,
aguardaremos pacientemente até que estes senhores hajam saído do seu

sonho" (1, 3). Frente à inutilidade deste sonhar acordado, Kant considera que
a metafísica deve em primeiro lugar considerar as próprias forças e por isso
"conhecer se o objectivo está em proporção com aquilo que se pode saber e que
relação tem esta questão com os conceitos da experiência, sobre os

quais devem apoiar-se todos os nossos juízos". A metafísica é a ciência dos


limites da razão humana; para ela, como para um pequeno país, importa mais
conhecer bem e manter as suas próprias possessões que ir às cegas em busca de
conquistas (H, 2). Os problemas que a metafisica. deve tratar são os que
preocupam o homem e que portanto, se encerram

nos confins da experiência. É vão crer que a sabedoria e a vida moral dependem
de certas metafísicas. Não pode dizer-se honesto aquele que se abandona aos
vícios se não for ameaçado com um pena futura. É portanto mais conforme com a
natureza humana fundar a espera do mundo futuro no sentimento de

68

numa alma bem nascida, que fundar, pelo contrário, o seu bem obrar sobre a
esperança no outro mundo. Na sua simplicidade, a fé moral é a única que se

conforma com o homem em qualquer condição (H, 3). Nesta obra existem já os
fundamentos da orientação crítica.

No breve ensaio Sobre o Primeiro Fundamento da Distinção das Regiões do Espaço


(1768), Kant faz ver como as posições recíprocas das partes da matéria supõem
já as determinações espaciais o que, por conseguinte, o conceito do espaço é
algo originário, se bem que não seja puramente ideal, mas tenha sempre em si
uma realidade qualquer. Estas são as

considerações que levam Kant a formular a doutrina da Dissertação de 1770. Do


ano 1769, que ocorre entro este escrito e a Dissertação, o próprio Kant disse:
"0 ano de 69 trouxe-me uma grande luz".

Efectivamente, a dissertação & mundi sensibilis atque intelligíbilis forma et


principUs, que Kant apresentou para a nomeação como professor titular de
lógica e metafisica, em 1770, assinala a solução crítica, do problema do
espaço e, do tempo. Kant começa por estabelecer a distinção entre conhecimento
sensível e conhecimento intelectual. A primeira, que é devida à receptividade
(ou passividade) do sujeito, tem como objecto o fenómeno, isto é a coisa tal
como aparece na sua relação com sujeito. A segunda, que é uma faculdade do
sujeito, tem como objecto as coisas tais como são, na sua natureza
inteligível, isto é como númeno (§ 3). No conhecimento sensível deve
distinguir-se a matéria da forma. A matéria é a sensação, que é uma

69

modificação do órgão do sentido, e por isso testemunha. a presença do objecto


pelo qual é causada. A fornia é a lei, independentemente da sensibilidade, que
ordena a matéria sensível. O conhecimento sensível, anterior ao uso do
entendimento lógico, chama-se aparência; e o conhecimento reflexivo que nasce

da comparação, feita pelo entendimento, de múltiplas aparências, chama-se


experiência. Da aparência à experiência vai-se, portanto, através da reflexão
que se serve do entendimento. Os objectos da experiência são os fenómenos (§
5). A forma, isto é a

lei; que contêm o fundamento do nexo universal do mundo sensível, é


constituída pelo espaço e pelo tempo. Tempo e espaço não derivam da
sensibilidade que os pressupõe e não são tão-pouco conceitos gerais e comuns
que tenham as coisas singulares sob si. São, pois, intuições, mas intuições
que precedem todo o conhecimento sensível e são independentes dele, portanto
puras (§ 14, 3; § 15, c). Por isso não são realidades objectivas, mas
unicamente condições subjectivas e necessárias à mente humana para coordenar
por si, em virtude de uma lei, todos os dados sensíveis. Com efeito, o tempo
torna possível intuir a sucessão e a contemporaneidade e coordenar, segundo
estes dois modos--- todos os objectos sensíveis. O espaço permite intuir os

fenómenos num nexo universal, isto é, como partes de um todo cujas leis e
princípios são os da geometria. - Estes esclarecimentos sobre o conhecimento
sensível permaneçam quase imutáveis na Crítica da Razão Pura Quanto ao
conhecimento intelectual, Kant distingue nele um uso real e um

70

uso lógico. O uso real é aquele pelo qual os conceitos das coisas e das suas
relações são dados; o uso lógico é aquele pelo qual os conceitos dados são
subordinados uns aos outros e unificados entre si segundo o princípio de
contradição (§ 5). Kant insiste no facto de que o uso lógico do entendimento
não elimina o carácter sensível dos conhecimentos que é devido à sua origem.
Mesmo as leis mais gerais são sensíveis e os princípios da geometria não saem
dos limites da sensibilidade. Pelo contrário, na metafísica, não se encontram
princípios empíricos, os seus princípios são inerentes à própria natureza do
entendimento puro, porquanto não são inatos,' mas abstraídos das leis
inerentes à mente e, por isso, adquiridos (§ 8). O conhecimento intelectual
não dispõe de uma intuição apropriada pela qual a mente possa ver os seus
objectos imediatamente, isto é, singularmente. Este é unicamente um
conhecimento simbólico e obtém-se por meio do raciocínio, isto é por meio dos
conceitos gerais. "0 conceito inteligível, enquanto tal, carece de todos os
dados da intuição humana. Com efeito, a intuição da nossa mente é sempre
passiva; e por isso é possível Somente enquanto algo pode excitar os nossos

sentidos. A intuição divina, em contrapartida, que é o princípio dos objectos,


em vez de ser causada por eles, é independente dos mesmos, é o
arquétipo dos objectos e é, por isso, perfeitamente intelectual> (§ 10)_ Pelo
que respeita aos princípios a priori do conhecimento intelectual, Kant
repete substancialmente, nesta dissertação, quanto tinha dito já
na

única demonstração. Uma totalidade de substân71

cias unidas entre si pela relação de causa e efeito é uma totalidade de


substâncias contingentes porque o que é necessário não pode depender de nada.
E uma totalidade de substâncias contingentes deve a sua unidade à dependência
comum de um único ente necessário (§ 20). Todavia, também nesta parte ainda
dogmática do seu tratado, Kant introduz uma exigência critica. Na metafisica,
a diferença de todas as outras ciências, o método não pode ser fornecido pelo
uso, mas deve ser determinado independentemente e antes do próprio uso. Este
método deve assumir como sua regra fundamental esta: os princípios do
conhecimento sensível não devem transpor os seus limites e invadir o campo dos
conceitos intelectuais (§ 24).'Ura conceito sensível é a condição sem a qual
não é possível o conhecimento sensível do próprio conceito. Não pode por isso
estender-se para qualificar ou determinar uma realidade não sensível. Assim
não se pode dizer, por exemplo: "Tudo aquilo que existe, está em algum lugar",
porque o conceito de lugar é conceito sensível que condiciona o conhecimento"
sensível, não o conhecimento intelectual que é mais extenso. Pode-se dizer em
contrapartida: "Tudo o que está era algum lugar existe", porque o conceito de
existência é um conceito intelectivo que condiciona quer o conhecimento
sensível quer o intelectual. Conformemente a este princípio, Kant aplica-se na
última parte (a V) da Dissertação a esclarecer algumas falácias que nascem

precisamente da extensão dos conceitos sensíveis para lá do seu campo. Mas


imediatamente este princípio, que deveria servir-lhe para dar ao conheci72

mento intelectual liberdade de movimento frente ao conhecimento sensível, é


usado por ele como princípio limitativo do próprio conhecimento intelectual.
Diz ele: "Tudo aquilo que não pode ser conhecido por intuição não pode ser
pensado absolutamente, portanto é impossível. E dado que não podemos, com
nenhum esforço da mente nem mesmo com a

imaginação, alcançar outra intuição senão aquela que se tem segundo a forma do
espaço e do tempo, resulta que consideramos impossível toda a intuição que não
esteja ligada a' estas regras (exceptuando aquela intuição pura e intelectual
que não está submetida à lei do tempo, como é a intuição divina, a que Platão
chama ideia) e, por isso, submetemos todos os possíveis aos axiomas sensíveis
do espaço o do tempo" (§ 25). Assim a preocupação de - salvar de
qualquer modo a metafísica dogmática leva Kant a formular o próprio princípio
que na Crítica da Razão Pura devia servir-lhe para destruir toda a

metafísica dogmática.

§ 513. KANT: OS ESCRITOS DO PERIODO CRITICO

Nos dez anos que se seguiram à publicação da Dissertação, Kant andou lenta e
intensamente elaborando a sua filosofia crítica. Neste tempo publicou muito
poucas coisas e nada que dissesse respeito aos

temas da sua meditação: uma recensão de uma obra de anatomia, (1711), um


artigo sobre raças

73
humanas (1775), dois artigos pedagógicos sobre o
"Philant.hropin" de Basodow (1777); nada mais.

A Crítica da Razão Pura apareceu em 1781. Nesta obra Kant (como ele próprio
escrevia a Moisés Mendelssohn a 16 de Agosto) levou a cabo "o fruto de uma
meditação de doze anos em quatro ou cinco meses, quase em voo, pondo assim a
máxima atenção no conteúdo mas com pouco cuidado na forma em tudo quanto é
necessário para ser facilmente compreendido pelo leitor". As cartas a
Marco Herz dão algumas notícias sobre a génese e os progressos da obra.

A 7 de Junho de 1771 escrevia Kant: "Estou agora a trabalhar numa obra a qual,
sob o título de Os Limites da Sensibilidade e da Razão, não só deve tratar dos
conceitos e das leis fundamentais que concernem ao mundo sensível, mas deve
ser também um esboço do que constitui a natureza da doutrina do gosto, da
metafísica e da moral. "0 tema fundamental das três Críticas estava assim já
claro na mente de Kant, mas este tema devia depois cindir-se e articular-se no
decurso do trabalho. Numa carta de 21 de Fevereiro de 1772, Kant aponta o

título definitivo da sua obra. "Estou agora em condições de propor uma Crítica
da Razão Pura que trata da natureza do conhecimento quer teorética quer
prática, enquanto puramente intelectual. Da primeira parte que trata
primeiramente das fontes da metafísica, do seu método e dos seus limites, e
depois dos princípios puros da moralidade, publicarei aquilo que se refere ao
primeiro argumento em cerca de três meses." A doutrina do gosto está já
separada

74

na mente de Kant da metafísica e da moral que, no entanto, se mantinham ainda


unidas. Todavia, Kant só cumpre a sua promessa cerca de nove anos depois.
Cartas sucessivas a Herz justificam os seus

atrasos com a dificuldade e a novidade do argumento e a necessidade de


alcançar, antes de completar urna parte da sua obra, uma visão de conjunto de
todo o sistema de que faz parte. E assim só no dia 1.* de Maio de 1781 Kant
podia anunciar ao amigo a próxima publicação da Crítica da Razão pura que de
facto apareceu naquele ano.

A segunda edição surgiu em 1787 e contém importantes modificações e adições


com respeito à primeira, sobretudo no que se refere à parte central e mais
difícil da obra, a dedução transcendental. As diferenças entre as duas edições
e a preferência outorgada à primeira por estudiosos e historiadores (a começar
por Schopenhauer) é um dos motivos da diversidade das interpretações que têm
sido dadas ao kantismo. Por outra parte, o próprio valor das diferenças está
sujeito a discussão,

A Crítica da Razão Pura abre a série das grandes obras de Kant. Em 1783 saíam
os Prolegómenos para toda a Metafísica Futura que se apresenta como Ciência,
exposição mais breve e em forma popular da mesma doutrina da Crítica.
Seguiram-se: Fundamentação da Metafisica dos Costumes (1785); Crítica do Juízo
(1790); A Religião dentro dos Limites da Simples Razão (1793); A Metafísica
dos Costumes (1797) que contém, na primeira parte, os "Fundamentos Metafísicos
da Doutrina do Direito"; e na segunda parte os "Fundamentos Metafísicos da

75
Doutrina da Virtude"; Antropologia do Ponto de Vista Pragmático (1798). No
prefácio desta última obra, Kant distingue a antropologia pragmática da
fisiológica: esta última destina-se a determinar qual é a natureza do homem
enquanto a antropologia pragmática estuda o homem tal como ele mesmo se faz em
virtude da sua vontade livre.

Nos mesmos anos em que apareciam as suas

obras fundamentais, Kant publicava artigos, opúsculos, recensões críticas e


esclarecimentos do seu pensamento em pontos particulares.

Em 1782 publicava uma breve Notícia da edição de J. Bernoulli do Epistolário


de Lambert; e uma

Notícia para os Médicos que trata da epidemia da gripe.

Em 1783 publicava uma Recensão da obra de SchuIz, Para a Doutrina Moral. Em


1784 publicava dois ensaios: Ideias para uma

História Universal do Ponto de Vista Cosmopolita; e Resposta à Pergunta: que é


o Iluminismo?

Em 1785 apareceram: uma Recensão do escrito de Herder, Ideias sobre a


Filosofia da História para a Humanidade; e três breves ensaios: sobre Vulcões
da Lua; sobre a Ilegitimidade da Falsificação de Imprensa; Caracteres do
Conceito de uma

Raça Humana.

Em 1786 publicava Kant um ensaio Conjectura sobre o Começo da História Humana;


uma recensão da obra de Hufeland, Princípios do Direito Natural; um outro
ensaio intitulado: Que significa orientar-se no Pensar? com que intervém na
polémica sobre o panteísmo entre Jacobi e Mendelssohn;

76

algumas Observações sobre o escrito de Jakob, Exame da Aurora de Mendelssohn;


e uma obra mais importante, Princípios Metafísicos da Ciência Natural.

Em 1788 apareceu o artigo Sobre o uso dos Princípios Teológicos na Filosofia e


um breve ensaio sobre um escrito de A. H. Urich, Eleuteriologia. Pertence
provàvelmente ao mesmo ano o discurso De medicina corporis quae philosophorum
est.

Em 1790 apareceu o pequeno escrito Sobre o


Fanatismo,- um opúsculo Sobre uma Descoberta segundo a qual toda a Nova
Crítica da Razão deve ser feita através de uma Velha e não Necessária
Crítica,- um artigo de resposta e, de recensão a três escritos de Kãstner.

É de 1791 um artigo Sobre a Falta de Toda a Investigação Filosófica em


Teodiceia. Aos anos
1788-91 pertencem também sete pequenos escritos comunicados por Kant ao Prof.
Kiesewetter (1.', Resposta à pergunta: é uma experiência que pensamos?; 2.',
Sobre o milagre; 3.', Refutação do idealismo problemático; 4.', Sobre a
Providência particular; 5.', Sobre a oração; 6.O, sobre o momento da
velocidade no instante inicial da queda; 7.O, Sobre o significado formal e
material de algumas palavras).
Em 1793 Kant escreveu e deixou incompleta uma
resposta ao tema do concurso da Academia de Berlim: "Quais são os progressos
reais que a metafisica fez desde o tempo de Leibniz e Wolff?" (publicada por
F. T. Rink em 1804). E publicou um artigo sobre o dito comum Aquilo que vale
em Teoria não vale na Prátíca.

77

Em 1794 publicou dois artigos Sob a Influência da Lua sobre o Clima; O fim de
todas as Coisas.

Em 1795 apareceu o escrito Para a Paz Perpétua que exprime o pensamento


político de Kant. E no mesmo ano foram publicadas algumas observações em
apêndice ao escrito de Soemmering, Sobre o
órgão da Alma.

Em 1796 Kant publicava alguns artigos polémicos: Sobre o tom nobre da


Filosofia, recentemente exaltado, no qual a propósito de um escrito de J. G.
Schlosser critica o apelo para a intuição intelectual e para o sentimento
místico; um artigo de resposta às críticas de J. A. H. Reimarus contra as
afirmações matemáticas contidas no escrito precedente: Composição de uma
Polémica Matemática Fundada num Malentendido, e um artigo de réplica à
resposta de SchIosser, Anúncio da Próxima Conclusão de um Tratado para a Paz
Perpétua em Filosofia.

Em 1797 apareceu um artigo dirigido contra uma afirmação de Benjamim Constant:


Sobre o Presumível Direito de Mentir por Amor dos Homens.

Em 1798 Kant escrevia um artigo Sobre o Poder do Sentimento, que voltou a


publicar no mesmo ano, formando a terceira parte do Conflito das Faculdades.
Ao mesmo ano pertencem também duas cartas Sobre a Impressão de Livros,
dirigidas contra as críticas que F. Nicolai dirigira contra a sua filosofia.

Em 1799, em resposta à afirmação contida numa


recensão da Doutrina da Ciência de Fichte, Kant publicava um Esclarecimento no
qual definia a
78

doutrina de Fichte como "um sistema absolutamente insustentável".

Em 1800, no Prefácio a um escrito de R. B. Jachmann, polemizava de novo contra


a mística que pretende valer como experiência supra-sensível.

A estes escritos é necessário acrescentar aqueles que nos últimos anos da vida
de Kant foram publicados. pelos seus discípulos. Assim publicaram-se: por J.
B. Jãsche a Lógica, manual para lições (1800); por F. T. Rink, a Geografia
Física (1802), lições dadas por Kant sobro este ponto; pelo mesmo Rink, a
Pedagogia, também recolhida das lições de Kant.

Depois da morte do filósofo, foram publicadas as suas lições sobre a Doutrina


Filosófica da Religião (1817) e sobre Metafísica (1821). A obra em
que Kant se ocupava nos últimos anos da sua vida e que ficará fragmentária nos
seus manuscritos (Opus postumum) foi publicada parcialmente por Reicke em
1882, por Krause, em 1888 com o título Passo dos princípios Metafisicos da
Ciência da Natureza à Física, por Adickes em 1920; e finalmente, em forma
completa e nos três últimos volumes da grande edição das obras de Kant da
Academia de Berlim (1936, 1938, 1955). Esta ediçã o contém também o
Epistolário do filósofo.

§ 514. KANT: A FILOSOFIA CRITICA

A simples enumeração dos escritos de Kant mostra como a orientação crítica da


sua filosofia se vinha determinando através da influência, cada vez

79

mais decisiva, do empirismo inglês. Contudo, esta influência integrava-se na


orientação que constituiu a estrutura fundamental da filosofia kantiana,
orientação que é a do iluminismo wolfiano. Vimos já (§ 504) como o ideal
racionalista do iluminismo se concretiza, na obra de Wolff e dos seus
numerosos seguidores alemães, no método da razão fundamentadora, a qual
procede mostrando a cada passo o fundamento dos seus conceitos na sua
possibilidade. A coincidência de fundamento e possibilidade é a característica
deste método, o qual portanto dá como fundado (isto é justificado) um conceito
quando se possa demonstrar a possibilidade desse conceito, isto é, a falta de
contradições internas. No ideal deste método incorporava-se sem dúvida a
filosofia leibniziana que procurara elaborar o princípio de uma razão
problemática, oposta à razão geométrica ou necessária dos cartesianos e de
Espinosa; mas incorporava-se e vivia principalmente a

exigência iluminística de limitar e individualizar em cada campo as


possibilidades autênticas do homem. Kant manteve-se sempre fiel a este
princípio e a este método.

Que Kant se tenha servido constantemente para

as suas lições da Metafísica de Baumgarten é coisa que só para fazer espírito


se pode explicar como explicava Schopenhauer: pela exigência de ter separada e
distinta a sua obra de filósofo da sua actividade docente, para evitar que
esta última contaminasse a primeira. Na realidade a metafisica de Baumgarten,
que tem a honra de ser um dos mais lúcidos e concisos exemplos do método da
80

fundamentação, realizava uma exigência que Kant considerava essencial na


filosofia, isto é a de que deve buscar o fundamento dos seus objectos
(quaisquer que sejam) na sua possibilidade. Todavia, o que faltava neste
método, Kant viu-o rapidamente: a

possibilidade não pode ser compreendida no aspecto puramente lógico-formal,


como simples ausência de contradição. Já no único Argumento Possível para a
Existência de Deus (1763), ele reconhece claramente que uma possibilidade não
é tal em virtude da simples, ausência de contradição. "Toda a possibilidade
cai, diz ele (1, § 2), não só quando há uma contradição intrínseca, que é o
aspecto lógico da impossibilidade, mas também quando não há um

material, um dado que se possa pensar." E acrescentava: "Que exista uma


possibilidade e, contudo, não haja nada real, é contraditório, dado que se

não existe nada não é dado nada que seja pensável, e existe contradição se
todavia se pretende que qualquer coisa é possível." Aquilo que é possível deve
conter, para ser verdadeiramente possível, além da pura formalidade lógica
da não-contraditoriedade, uma existência, uma realidade, um dado; e a
existência, a realidade, o dado, nunca se reduzem a simples predicados
lógicos. São estas as proposições base da filosofia crítica kantiana. Kant,
no escrito citado, dirigia-as a um objectivo tradicional, o da demonstração da
existência de Deus, mas

já naquele escrito têm uma importância superior ao fim para que servem. Nos
escritos posteriores o problema do real, do dado, a que a filosofia deve
referir-se, é ulteriormente debatido e
81

esclarecido. A analogia que Kant estabelece, na Investigação dos Princípios da


Teologia Natural e da Moral (1764), entre a filosofia e a ciência natural de
Newton, leva-o a ver precisamente na experiência, à qual se dirige a ciência,
a realidade de que a filosofia deve partir. O apreço positivo que no mesmo
escrito e no de 1765, Notícia sobre a Orientação das suas lições, dedica ao
empirismo inglês, demonstra como se vai reforçando nele a orientação para
considerar a experiência como o aspecto real de toda a possibilidade
fundamentadora. As primeiras conclusões desta orientação são tratadas nos
Sonhos de um Visionário (1765). O método da razão fundamentadora não pode ser
empregado no vazio e
no abstracto, mas unicamente no terreno sólido da experiência. A metafísica
não aparece já a Kant, como a Wolff e a Baumgarten, como "a ciência de todos
os objectos possíveis enquanto possíveis", mas

antes como "a ciência dos limites da razão humana", pois que ela deve
determinar em primeiro lugar o

Emite intrínseco do possível que é a experiência. "Não tenho aqui determinado


exactamente esses Emites, dizia ele (11, § 2), mas indiquei-os quanto basta
para que o leitor reflectindo verifique que pode dispensar-se de todas as
investigações inúteis em

torno de cada questão cujos dados se deveriam encontrar num mundo distinto do
que ele sente". E reconhecia o mérito da sabedoria "no escolher, entre os
inumeráveis problemas que se apresentam, aqueles cujas soluções preocupam o
homem" (H, § 3).

82

Kant aceitava assim plenamente o ponto de vista inglês, ponto de vista que se
pode exprimir em que Locke tinha feito prevalecer no empirismo duas
proposições fundamentais: LO, A razão não pode ir mais além dos limites da
experiência.
2.*, A experiência é o mundo do homem, o mundo daqueles problemas que
"preocupam" o homem. Mas este ponto de vista articulava-o e fundia-o ao mesmo
tempo com o método do iluminismo wolfiano: a razão deve fundamentar,
precisamente nestes limites, a capacidade e os poderes do homem. Com o enxerto
e a fusão destas duas exigências nascia a filosofia crítica de Kant.

§ 515. KANT: A ANÁLISE TRANSCENDENTAL

Esta análise encontrava-se assim frente ao problema da natureza e da extensão


dos limites da razão humana. Donde pode vir a indicação desses limites? Qual é
a sua extensão efectiva? São tais estes limites que podem assegurar o valor do
conhecimento e, em geral, de qualquer atitude humana que os reconheça
explicitamente?

São estas as perguntas em torno das quais se afadiga a meditação de Kant a


partir da Dissertação de 1770. Já nesta é evidente a resposta de Kant à
terceira daquelas perguntas: o reconhecimento dos limites que a actividade
humana encontra em qualquer campo não tira valor a essa actividade, mas é
antes a única garantia possível da sua validade. Noutros termos, uma "ciência
dos limites da razão

83

humana" não é apenas a certificação ou a verificação de tais limites, mas


também e sobretudo a justificação, precisamente em virtude destes limites e
sobre o seu fundamento, dos poderes dá razão. É este o aspecto fundamental da
filosofia critica de Kant, aspecto pelo qual ela foi compreendida e praticada
pelo seu autor como análise transcendental. Acerca da primeira questão, um
ponto ficou sempre firme na obra de Kant: os limites da razão humana. só-
podem ser determinados pela própria razão. Estes limites não lhe podem ser
impostos de nenhuma maneira de fora porque a actividade da razão é autónoma e
não pode assumir do exterior a direcção e guia do seu procedimento. Por isso
Kant devia combater como fez incansavelmente, não só nas suas obras
principais, mas

também nos escritos menores - toda a tentativa para assinalar limites à razão
em nome da fé ou de uma experiência mística ou supra-sensível qualquer. Elo
foi sempre- o adversário resoluto de toda espécie de fideísmo, misticismo e
transcendentalismo: os limites da razão são para ele os limites do homem; e
querê-los atravessar em nome de uma coisa superior à razão, significa apenas
aventurar-se em sonhos arbitrários e fantásticos.

Não obstante, sobre o modo pelo qual a razão possa assinalar os seus próprios
limites e erigir-se em juiz de si própria, Kant esteve evidentemente longo
tempo indeciso. A Dissertação apresenta sobre este problema uma solução
diferente da que foi dada na Crítica da Razão Pura. Na carta a Lara84

bert (2 de Setembro de 1770), com a qual acompanhava o envio da Dissertação,


Kant previa a necessidade de uma ciência especial, puramente negativa, dita
Fenomenologia Geral que deveria determinar * valor e os limites da
sensibilidade para evitar toda * confusão entre os objectos de própria
sensibilidade e os do entendimento. E na realidade, na Dissertação, Kant
serviu-se da distinção nítida entre, mundo sensível e mundo inteligível com o
fim explícito de assinalar os limites da sensibilidade mas com o resultado
involuntário (que se toma depois voluntário e explícito na Crítica) de
estabelecer também limites à razão. O resultado principal da Dissertação é,
por um lado, a delimitação exacta da extensão do conhecimento sensível, o qual
vem a

compreender em si também a geometria que, embora derivada do uso lógico do


entendimento, diz sempre, respeito aos fenómenos, isto é, aos objectos da
sensibilidade; e pelo outro, é a contraposição nítida entre o conhecimento
intelectual próprio do homem e uma intuição intelectual, como seria a de Deus,
criadora dos próprios objectos. Kant diz efectivamente (§ 10): "Toda a nossa
intuição é limitada originariamente a uma certa forma, a única sob a qual a
mente pode ver alguma coisa imediatamente, isto é singularmente, e não apenas
conceber discursivamente por meio dos conceitos gerais. Mas este princípio
formal da nossa intuição (espaço e tempo) é a condição pela qual qualquer
coisa pode ser objecto dos nossos sentidos, mas, como condição do conhecimento
sensível, não pode servir de intermediário

85
para a intuição intelectual. Além disso, toda a matéria do nosso conhecimento
é dada unicamente pelos sentidos mas o númeno como tal não é concebível por
meio de representações obtidas dos sentidos; de maneira que o conceito
inteligível, enquanto tal, é privado de todos os dados, da intuição humana. A
intuição da nossa mente é sempre passiva; e por isso só é possível enquanto
qualquer coisa pode excitar os nossos sentidos. Pelo contrário, a intuição
divina, que é o princípio dos objectos e não deriva deles o seu principio, é
independente e arquétipo e é por isso inteiramente intelectual." Estes
pensamentos que retomam em forma quase idêntica ao longo de toda a Crítica da
Razão Pura constituem a directriz que inspirou o desenvolvimento ulterior da
obra de Kant. Todavia, na Dissertação, o fim que Kant se propõe explicitamente
é o de fazer que a certeza dos limites da sensibilidade sirvam não só para
garantir o valor da própria sensibilidade, mas também e principalmente para
garantir a liberdade do conhecimento intelectual frente à sensibilidade. Neste
escrito Kant realizou pela primeira vez a análise transcendental do mundo
sensível, mas não ainda a do mundo intelectual que permanece ligado no seu
pensamento à metafísica dogmática e aos seus processos. Se se examinam,
porém, os princípios que estabelece, na quarta parte do escrito, em tomo do
método da metafísica vê-se imediatamente que estes princípios implicam
também uma limitação essencial das possibilidades desta ciência. Com efeito,
Kant' consegue admitir

86

como regra que tudo aquilo que não pode ser conhecido pela intuição não pode
ser pensado absolutamente, e, portanto, é impossível" (§ 2'@). E este, será
depois o princípio da crítica de toda a metafísica, instaurada na Crítica da
Razão Pura.

Esta obra assinala a decisão de Kant de estender a análise transcendental a


todo o domínio das possibilidades humanas, a começar pelo conhecimento
racional. Kant convenceu-se, nos dez anos que decorrem entre a Dissertação e a
Crítica, que não só para a

sensibilidade, mas também para o conhecimento racional, para a vida moral,


para o gosto, vale o princípio da filosofia transcendental de que toda a
faculdade ou atitude do homem pode encontrar a garantia da sua validade, o seu
fundamento, unicamente no reconhecimento explícito dos seus próprios limites.
O reconhecimento e a aceitação do limite torna-se em qualquer campo a norma
que dá validade e fundamento às faculdades humanas. A impossibilidade do
conhecimento em transcender os limites da experiência torna-se agora base da
validade efectiva do conhecimento; a impossibilidade da actividade prática de
alcançar a santidade (como identidade perfeita da vontade e da lei) torna-se a
norma da moralidade que é própria do homem; a impossibilidade de subordinar a
natureza ao homem torna-se a base do juizo estético e teleológico. Kant
renunciou neste ponto a

toda a vida de evasão dos limites do homem. Como ele próprio reconhece, deve
esta renúncia a Hume que o despertou do seu sono dogmático, mas ao mesmo tempo
afastou-se também de toda a
87

possibilidade de cepticismo. O reconhecimento dos limites não é para ele, como


para Hume, a renúncia a fundamentar a validade do conhecimento e, em geral,
das manifestações do homem, mas antes a exigência de fundamentar o seu valor
nos próprios limites.

o Podemos recapitular do seguinte modo o caminho seguido por Kant até alcançar
completamente o ponto de vista transcendental da @sua filosofia. Nos estudos
juvenis da filosofia natural, Kant foi-se familiarizando com a filosofia
naturalística do iluminismo inspirada por Newton. Esta filosofia, com o seu

ideal de 'uma descrição dos fenómenos e com a

renúncia a admitir causas e forças que transcenderiam tal descrição, levantou-


lhe a exigência de uma metafísica que se constituísse como base dos próprios
critérios limitativos. Tal metafisica poderia, sem embargo, valer-se .do
método da razão fundamentadora que dominava o ambiente filosófico em que Kant
se formara. As considerações dos empiristas ingleses, para as quais se orienta
devido a essa exigência, puseram ante os seus olhos pela primeira vez essa
metafísica como ciência limitativa e negativa, portanto, como uma autocrítica
da razão. Este ponto de vista é já alcançado nos escritos publicados entre
1726 e 1765. Sucessivamente, e pela primeira vez na Dissertação (1770), o
ponto de vista crítico esclarece-se como ponto de vista transcendental,
limitadamente ao conhecimento sensível: a validade deste conhecimento é
fundamentada nos seus próprios limites. Depois de 1781, o ponto de vista
transcendental é alargado a todo o mundo do homem.

88

§ 516. KANT: A CRITICA DA RAZÃO PURA

A conclusão das análises de Hume é a de que o homem não pode alcançar, nem
mesmo nos limites da experiência, a estabilidade e a segurança de um

saber autêntico. O saber humano é, no máximo, um saber provável - mas mesmo


este saber provável vem a faltar quando ó homem transpõe os limites da
experiência e se aventura pelos caminhos da metafísica. Estas duas conclusões
do cepticismo de Hume são rebatidas por Kant. Em primeiro lugar, segundo Kant,
existe um saber autêntico e é a nova ciência matemática da natureza. Em
segundo lugar, embora a metafísica seja quimérica, o esforço do homem para a
metafísica é real; e se é real, deve ser de algum modo explicado. A própria
metafísica, mesmo na sua vã pretensão de conhecimento, levanta um problema que
é resolvido procurando na constituição do homem o móbil último da sua
tendência para transcender a experiência. A indagação crítica que nega a
possibilidade de resolver certos problemas não pode descuidar a explicação da
génese destes problemas e a sua raiz no homem. Ela institui o tribunal que
garante a razão nas suas pretensões legítimas e condena aquelas que não têm
fundamento na base do limite que é intrínseco à própria razão como lei
imutável. Tal tribunal é a Crítica da Razão Pura, isto é uma auto-crítica da
razão em geral a respeito de todos os conhecimentos a que pode aspirar
independentemente da experiência. A tal crítica cabe decidir sobre a
possibilidade ou impossibilidade da metafísica como também sobre as suas

89

fontes, sobre a sua extensão e sobre os seus limites (K. r. V., pref. A XI).
Que haja conhecimentos independentes da experiência é um facto, segundo Kant.
Todo o conhecimento universal e necessário é independente da experiência, dado
que a experiência, como Hume e Leibniz haviam reconhecido em pontos de vista
opostos, não pode dar valor universal e necessário aos conhecimentos que
derivam dela. Mas o conhecimento "independente da experiência" não significa
conhecimento "que precede a experiência". Todo o nosso conhecimento começa com
a experiência, mas

pode acontecer que não derive todo da experiência e que seja um composto das
impressões que derivam da experiência e daquilo que lhe acrescenta a nossa

faculdade de conhecer, por ela estimulada: Em tal caso, é necessário


distinguir no conhecimento uma matéria, constituída pelas impressões
sensíveis, e uma

forma, constituída pela ordem e unidade que a nossa

faculdade cognoscitiva dá a tal matéria. A matemática e a física pura (os


princípios da física newtoniana) contêm indubitavelmente verdades universais e
necessárias, portanto independentes da experiência. Efectivamente contêm
juízos sintéticos a

priori: sintéticos no sentido do que neles o predicado acrescenta algo de novo


ao sujeito (o que não acontece nos juízos analíticos); a prior!: porque têm
uma

validade necessária que a experiência não pode dar Ora o primeiro problema de
uma crítica da razão pura é ver como são possíveis os juízos sintéticos a
priori
- o que equivale ao problema de saber como é possível uma matemática e uma
física pura. A crítica da

1 90

razão pura deve alcançar e realizar a possibilidade fundamentadora da ciência,


do autêntico saber humano. É evidente que esta possibilidade não pode ser
reconhecida na matéria do conhecimento, constituída pela multiplicidade
desordenada e amorfa das impressões sensíveis. Deve ser, pois, recomendada na
forma do conhecimento, isto é nos elementos ou funções a priori que dão ordem
e unidade a essas impressões.

O primeiro objectivo da crítica da razão será o de descobrir, isolando-os,


quais os elementos formais do conhecimento que Kant chama puros e a

priori, no sentido de que estão privados de qualquer referência à experiência


e não independentes dela. @@Deste modo, a investigação da razão, embora
mantendo-se rigorosamente nos limites da experiência, estará em grau de
justificar a própria experiência na sua totalidade, portanto também os
conhecimentos universais e necessários que se encontram no seu âmbito. O
segundo objectivo da crítica da razão pura será o de determinar o uso possível
dos elementos a priori do conhecimento, isto é o método do próprio
conhecimento. Assim a crítica da razão pura dívidir-se-á em duas partes
principais (que são de facto as duas partes da obra homónima de Kant): a
doutrina dos elementos e a doutrina do método. E dado que. se chama
transcendental todo o conhecimento enquanto concerne, "não já os objectos, mas
o nosso modo de conhecê-los enquanto deve ser possível a priori", assim haverá
uma doutrina transcendental dos elementos e uma doutrina transcendental do
método. E chamar-se-ão transcendentais também

91

as ulteriores divisões destas duas divisões fundamentais.


Ora o primeiro resultado que nasce do conceito do conhecimento humano como
composição ou síntese de dois elementos, um formal ou a priori, o

outro material ou empírico, que é o objecto do próprio conhecimento, não é o


ser em si, mas o fenómeno. Para o homem conhecer não significa criar: o
entendimento humano não produz, conhecendo-a, a realidade que é seu objecto.
Neste sentido, não é um entendimento intuitivo como é talvez o entendimento
divino para. o qual o acto de conhecer é um acto criativo.- O entendimento
humano não intui, mas pensa; não cria, mas unifica; deve ser-lhe dado,
portanto, por outra fonte o objecto do pensar, o múltiplo a unificar. Esta
fonte é a sensibilidade. Mas a própria sensibilidade é substancialmente
passividade; aquilo que ela possui recebe-o, e não pode recebê-lo senão nos
modos que lhe são próprios. Tudo isto significa que o objecto do conhecimento
humano não é a coisa em si, mas aquilo que da coisa pode aparecer ao homem: o
fenómeno. Significa também que o conhecimento humano, enquanto é sempre e
apenas conhecimento de fenómenos, é sempre e apenas experiência. Mas o
fenómeno não é aparência ilusória; é um objecto e um um objecto real apenas na
relação com o sujeito cognoscente, *isto é como o homem (K. r. V., § 8, B 60,
A 43). A investigação crítica é investigação transcendental enquanto versa
sobre a possibilidade condicionante de todo o conhecimento autêntico e,
portanto, sob as formas a priori da experiência. Estas formas são,

92

por um lado, sensíveis (intuições puras, espaço e

tempo), pelo outro, intelectuais (conceitos puros, categorias). A experiência


é a totalidade concreta do conhecimento: ela é constituída não apenas pela
sensibilidade mas também pelo entendimento e é condicionada igualmente pelas
formas de uma e outra.

Desta maneira, Kant efectuou a sua revolução copernicana. @Como Copérnico, que
não podendo explicar os movimentos celestes com a suposição de que todo o
exército dos astros gira em redor do espectador, o conseguiu explicar melhor
supondo que o observador gira sobre si mesmo, do mesmo

modo, Kant, em vez de admitir que a experiência humana se modela sobre os


objectos, em cujo caso a sua validade seria impossível, supõe que os próprios
objectos enquanto fenómenos se modelam sobre as condições transcendentais da
experiência.

§ 517. KANT: AS FORMAS DA SENSIBILIDADE

Na Crítica da Razão Pura, a Estética Transcendental é dedicada à determinação


dos elementos a priori da sensibilidade, a Analítica Transcendental (primeira
parte da Lógica Transcendental que compreende também a Dialéctica
Transcendental) é dedicada à determinação dos elementos a priori do
entendimento e à sua justificação.

As formas a priori da sensibilidade ou intuições puras são o espaço e o tempo,


os quais não são, portanto, nem conceitos, nem qualidades das coisas, mas

condições da nossa intuição delas. Nós não podemos perceber nada se não no
espaço e no tempo: todas

93
as coisas que percebemos existem, portanto, no espaço e no tempo, se bem que
estes sejam puros elementos subjectivos do conhecer sensível. No espaço, é
fundamentada a validade da geometria, a qual pode determinar as propriedades
espaciais de todos os

objectos possíveis da experiência, precisamente porque não se fundamenta na


consideração de alguns desses objectos, mas no da forma universal que os

condiciona. O tempo é, depois, a forma do sentido interno, isto é a ordem da


sucessão na qual nós percebemos os nossos estados internos e, portanto, nós
próprios e, através dos estados internos, as coisas no espaço.

Por isso, espaço e tempo não são nem conceitos empíricos, isto é retirados da
experiência externa ou

interna (como sustentava Locke, por exemplo); nem

conceitos discursivos, isto é universais, das relações das coisas entre si


(como sustentava Leibniz, por 1 exemplo); mas "representações,
necessárias a priori" que estão no fundamento de todas as intuições, Como tais
são "subjectivos"; e, em tal sentido, Kant afirma a sua idealidade
transcendental isto é não dizem respeito às coisas tais como são em si

próprias. São todavia reais de uma realidade empírica no sentido de que


pertencem efectivamente às coisas tais como são percebidas por nós. As coisas
percebidas são por isso enquanto tais já constituídas no espaço e no tempo e
os seus caracteres espaciais e temporais são nelas impressos pela forma
subjectiva que a sua percepção consente.

Esta doutrina limita, segundo Kant, de modo radical a pretensão do


conhecimento sensível. "Toda

94

a nossa intuição, diz ele, não é mais que a representação de um fenómeno; as


coisas que nós intuimos não são em si próprias como nós as intuimos nem as
relações entre elas são em si próprias tais como

nos aparecem; e se tirássemos do centro o nosso sujeito ou mesmo só a


constituição subjectiva da sensibilidade em geral, toda a constituição, todas
as relações dos objectos no espaço e no tempo, bem corno o espaço e o tempo
desapareceriam porque como fenómenos não podem existir em si próprios mas
apenas em nós" (K. r. V., § 8). Quando Kant diz "em nós" não entende, todavia,
os homens: pode acontecer, afirma ele, que cada ser pensante finito se
encontre em idênticas condições do homem. Mas também neste caso a intuição
sensível, como intuição derivada, não diria nada sobre as coisas em si
próprias, dado que sobre estas só poderia dizer qualquer coisa a intuição
originária, isto é não sensível mas intelectual, de um Ser do qual as coisas
dependeriam quanto à sua própria existência (1b., B 72).

§ 518. KANT: AS CATEGORIAS E A lógica FORMAL

Todavia, o nosso conhecimento não se fixa na sensibilidade que é passividade


ou receptividade. É também pensamento, isto é actividade ou espontaneidade.
"Todas as intuições, enquanto sensíveis, repousam sobre as afecções; e também
os conceitos sobre as funções", diz Kant (K. r. V., B 93). Mas nem tal
espontaneidade é criadora, no sentido de pro. duzir os objectos; é, pelo
contrário, discursiva, no

95

sentido de acontecer por meio de conceitos. Ora a

actividade discursiva é aquela por meio da qual se

julga: assim a actividade fundamental do entendimento, enquanto faculdade dos


conceitos, é juízo, Pensar significa julgar. Portanto, se se querem isolar as
condições formais que presidem à actividade intelectual, deve-se considerar os
próprios produtos desta actividade, isto é os juízos, mas prescindindo de todo
o seu conteúdo particular e considerando-os na sua forma simples, como faz
precisamente a lógica. Reconhecidas assim as classes dos juízos, pode-se fazer
corresponder a cada uma delas uma determinada função intelectual que será a
categoria. Kant dá assim as seguintes tábuas dos juízos e das categorias:

TÁBUAS DOS JUIZOS

Quantidade

Qualidade

Relação

Modalidade

Particular Singular Universal

Afirmativo Negativo Infinito

Categórico Hipotético Dísjuntivo

Problemático Assertórico Apodictico

TÁBUA DAS CATEGORIAS

Quantidade

Qualidade

Relação

Modalidade

Multiplicidade

Realidade

Substancialidade e inerência

Possibilidade e impossibilidade

Unidade

Negação
Causalidade e dependência

Existência e não Existência

Totalidade

Limitação

Comunidade ou reciprocidade de acção

Necessidade e causalidade

96

O uso da palavra "juizo" para significar aquilo que na lógica tradicional, a


que Kant faz referência, se chamava "proposição", indica que Kant toma em

consideração não a fórmula linguística em que um juizo se exprime, mas,


segundo a orientação que a lógica de Port Royal (§ 416) havia feito
prevalecer, o acto mental que consiste no unir entre si duas representações.
Além disso, Kant afasta-se da lógica tradicional em alguns pontos da sua
classificação. Insere entre os juízos de quantidade um "juízo singular que,
para a lógica tradicional, era idêntico ao universal (de facto, para ela "o
homem é mortal" significa "todos os homens são mortais"). Distingue o juízo
infinito, por exemplo, "a alma é não-mortal" do juízo afirmativo. Insere nos
juízos de relação, que são as proposições hipotéticas da tradição estóica, o
"juizo categórico" que é o oposto do hipotético; e entre as proposições modais
o "juizo assertórico" que era tradicionalmente contraposto a este. Todavia,
com estas modificações, Kant aceitou substancialmente a tradição da lógica
formal e aceitou-a porque considerou que a lógica geral pura (isto é não
aplicada), dado que abstrai todo o conteúdo de conhecimento e toda a
consideração psicológica, tem apenas como objecto princípios a priori * é,
portanto, um cânon do entendimento e da razão * respeito de qualquer uso,
tanto empírico como transcendental (K. r. V., B 78). No curso de Lógica (que
foi publicado por um aluno), Kant afirma que a lógica tem como objecto as
regras necessárias do entendimento, isto é aquelas sem as quais a própria
função do entendimento não seria possível: não as

97

acidentais que dependem de um determinado objecto de conhecimento e são, por


isso, tantas quantos são os objectos. "A ciência destas regras universais e

necessárias, diz elo, é, portanto, simplesmente a

ciência da forma da nossa consciência intelectual ou do nosso pensamento.


Podemos fazer uma ideia da possibilidade de uma tal ciência do mesmo modo que
fazemos a ideia de uma gramática geral que não contenha senão a forma simples
da linguagem em geral e não as palavras que pertencem à matéria da linguagem>
(Logik, A 3-4).

Desta maneira Kant pressupunha a validade da lógica formal como ciência a


priori das funções do entendimento nas suas regras essenciais de
funcionamento. Mas negava que tal ciência constituísse um
órgão de conhecimento, isto é um instrumento para produzir conhecimento
autêntico. Esta pretensão é antes reconhecida por ele como o fundamento da
dialéctica, isto é do uso impróprio ou arbitrário do conhecimento a priori e,
portanto, como arte puramente sofística. Da lógica geral, distingue a lógica
transcendental. Esta última refere-se apenas a objectos, a priori, enquanto a
primeira pode referir-se indistintamente a qualquer tipo de conhecimento; e,
mais especificamente, propõe-se como seu problema específico o da validade de
tal conhecimento: o problema fundamental da Oltica. A parte da lógica
transcendental destinada a este objectivo é aquele que Kant chamou "dedução
transcendental": e nela vê Kant "o mais difícil problema da Crítica" (K. r.
V., pref. A XVI).

98

§ 519. KANT: A DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL

A dedução transcendental não foi "um problema difícil" apenas para Kant: foi-o
e é ainda para os

historiadores e os expositores do seu pensamento dado que a sua interpretação


comanda toda a interpretação da filosofia kantiana. A maior dificuldade deriva
do facto de que, a partir de Fichte, o idealismo clássico alemão adoptou o
termo "dedução" para indicar uma exigência que é bastante mais genérica e
geral do que aquela que Kant compreendia com o mesmo termo -, isto é a
exigência de que "todo o demonstrável deve ser demonstrado, todas as
proposições devem ser deduzidas, através do primeiro e supremo princípio
fundamental" (FICHTE, WissenschaftsIehre, 1794, § 7); ou que todas as

determinações do pensamento são para mostrar na

sua necessidade, são essencialmente para deduzir" (HEGEL, Ene., § 42). Este
sentido genérico ou generalizado do termo, que pode encontrar a sua aplicação
apenas no âmbito do idealismo segundo o qual tudo deriva do Eu ou da razão e,
por isso, tudo pode ser deduzido de um ou de outra, é completamente estranho à
filosofia de Kant na medida em que é estranha a este tipo de idealismo. Kant
afirma explicitamente assumir o termo no significado jurídico, segundo o qual
significa a demonstração da legitimidade da pretensão que se avança e respeita
por isso ao quid júris não ao quid facti de uma
questão. Noutros termos, provar que a pessoa X está na posse do objecto y não
é uma dedução; mas é

99

uma dedução demonstrar que x tem sobre o objecto y um direito de propriedade.


Kant ateve-se sempre a este significado restrito e específico da palavra
"dedução", embora com algumas oscilações terminológicas. Uma destas oscilações
está na contraposição da dedução empírica que consistiria em mostrar o modo
como um conceito é adquirido por meio da experiência ou da reflexão e diria
respeito, portanto, o facto de posse, à dedução transcendental: contraposição
que está no § 13 da Crítica da Razão Pura. Mas pouco mais adiante, no mesmo
parágrafo, a propósito de Locke, Kant observa que, nesse caso, para falar com
propriedade, não se pode usar o termo "dedução" porque se trata apenas de uma
questão de facto. Por outra banda, Kant recorreu ao termo "dedução" todas as

vezes que se tratava de justificar a legitimidade do uso de certos conceitos.


Assim formulou a exigência de uma "dedução" da lei moral como "justificação da
validade objectiva e universal da lei", embora admitindo que, neste caso, ela
não é possível (Crit. R. Prática, § 3, nota 2); formulou a exigência da
dedução dos princípios da faculdade do juizo como demonstração da sua
"necessidade lógica objectiva" (Crit. do Juízo, § 31 e Intr. § V); falou da
dedução da divisão de um sistema" como "prova do seu acabamento e da sua
continuidade" (Metaf, dos Costumes, 1, lntr., § II, nota). Noutros termos, a
exigência da dedução apresenta-se na obra de Kant, sempre que se trata de
justificar a validade de uma pretensão qualquer: a referência objectiva das
categorias, o valor universal e necessário da lei moral, a validade

100

objectiva do juizo do gosto, o acabamento e continuidade de uma classificação


sistemática. Em todos estes casos, não se trata de deduzir (isto é de fazer
derivar logicamente) qualquer coisa de um princípio primeiro, absoluto e
incondicionado, segundo a exigência indicada por Fichte e acolhida pelo
idealismo romântico, mas de encontrar o fundamento de uma

pretensão, isto é a condição ou o conjunto das condições que tomam possível


qualquer coisa; ou mais brevemente, a possibilidade real ou transcendental de
qualquer coisa, enquanto distinta da sua simples possibilidade formal ou
lógica. Deste ponto de vista, a dedução, no único, significado legítimo do
termo, é sempre dedução transcendental, isto é detem-Linação do fundamento e
da possibilidade validificante. E não se pode chamar dedução a descoberta, a
descrição e a classificação dos objectos a deduzir porquanto tais operações
podem às vezes, segundo Kant, chamarem-se "demonstrações". Efectivamente, Kant
não chamou dedução à formulação da tábua das categorias que ele considera
consignada à reflexão sobre a experiência científica e cuja demonstração
completa foi para elo obtida mediante considerações de lógica formal. Nem
chamou dedução a

descoberta da lei moral que, para ele, é um factum da razão; ou das formas do
juizo do gosto descobertas mediante a reflexão sobre a actividade sentimental
do homem. Pelo contrário, compreende como dedução a demonstração da validade
das formas cognoscitivas, da lei moral e do juizo estético teleológico,
demonstração alcançada mercê da de101

monstração do seu fundamento, isto é das suas condições de possibilidade.

Em segundo lugar, é claro que não há uma

única dedução transcendental: isto é, não há um único processo dedutivo que


constitua, no seu conjunto, o sistema inteiro da filosofia. Pelo contrário,
existem tantas deduções quantos são os campos a que pertencem os objectivos a
deduzir e tais deduções são autónomas umas em relação às outras. Em qualquer
campo, como no da moral, também se apresenta a exigência da dedução, mas não
pode ser satisfeita.

Em terceiro lugar e consequentemente, o princípio da dedução, isto é o


fundamento, não é único ou absoluto, mas deve ser formulado, em cada campo, de
modo específico, ou seja em conformidade com a estrutura do campo e das
pretensões que nele se

apresentam. Não existindo um único fundamento, não surge tão-pouco a questão


de qual seja o fundamento: se é Deus ou a natureza, o sujeito ou o objecto, o
eu ou a razão etc. Efectivamente, a dedução transcendental não põe à cabeça um
princípio absoluto e incondicionado deste género, mas apenas a possibilidade
validificante da pretensão que se apresenta num território qualquer do saber
humano: possibilidade que adquire caracteres reais ou transcendentais, segundo
a natureza e os caracteres do próprio território. Prescindindo destes
caracteres, isto é na sua natureza pura e simples de fundamento em geral, o
próprio fundamento não é mais que a possibilidade de ordens várias de
condicionamento e reconduz por isso à categoria do possível que Kant

102

pretendeu esclarecer nos seus escritos pré-críticos. Portanto, o processo da


dedução não põe à cabeça uma necessidade incondicionada em que se reflicta a
necessidade incondicionada do seu princípio (como no caso da dedução
idealística), mas uma necessidade condicionada no sentido de que os objectos
da dedução (categorias, leis, juízos) são esclarecidos necessariamente por si
e na medida em que são relacionáveis com a possibilidade que está no seu
fundamento. O resultado mais importante da dedução é por isso, em última
análise, o de limitar e regular o uso dos conceitos de que são possíveis usos
diversos: ou seja determinar, entre os vários usos possíveis, aquele realmente
possível no sentido de que assegura a eficácia e a validade do conceito.

§ 520. KANT: A DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL DAS CATEGORIAS

A dedução transcendental das categorias, isto é dos conceitos puros do


entendimento, não é, como se viu, a ú nica dedução transcendental, mas é a
primeira em que Kant defronta - e a mais difícil e em torno da qual trabalhou
mais longamente. A segunda edição da Crítica da Razão Pura (1787) contém uma
reelaboração radical da exposição kantiana deste ponto. Dado que esta
exposição é, pelo menos relativamente, a mais clara e completa, em

todo o caso aquela na qual o próprio Kant considera mais autenticamente


expresso o seu pensamento. não há motivo para descurá-la a favor daquela
con103

tida na primeira edição. A preferência atribuída a

esta última, sobretudo pelos idealistas ou pelos críticos idealistas de Kant,


explica-se facilmente considerando que, pela sua ambiguidade, ela se presta a
ser interpretada mais facilmente como dedução idealística.

Kant começa por observar que o problema da dedução não se apresenta em relação
às formas da sensibilidade espaço e tempo. Estas não são susceptíveis de usos
diferentes, mas de um único uso que é o válido. Efectivamente, um objecto não
pode aparecer ao homem, isto é ser percebido por ele senão através destas
formas. A sua referência necessária aos objectos de experiência está assim
garantida: um objecto que não é dado no espaço e no tempo não é um objecto
para o homem porque não é intuído. O problema da dedução subsiste, pelo
contrário, para aquilo que respeita às formas do entendimento porque os usos
possíveis destas formas sã o diferentes e a dedução deve determinar qual é o
válido. As categorias do entendimento, por exemplo a causalidade, poderiam
também não condi- cionar os objectos da experiência e, por outro lado, podem
ser usadas também em relação aos objectos que não fazem parte da experiência
(por exemplo, Deus ou as coisas em si). A dedução transcendental deve mostrar-
se, e quando estes objectos se referem à experiência, deve pôr a claro a
legitimidade e os limites da s a pretensão e as regras do seu uso legítimo.

Ora, para fazer isto, Kant começa por distinguir a conexão necessária, isto é
objectiva, dos objectos
104

de experiência, da ligação subjectiva que pode existir entre as percepções


daqueles objectos. Que duas percepções estejam de qualquer modo ligadas, por
exemplo, sejam dadas no mesmo espaço ou também contemporaneamente ou
sucessivamente no tempo, não implica de modo nenhum que os fenómenos
correspondentes devam ter entre si uma relação necessária. Esta relação
necessária é, todavia, segundo Kant, a "forma lógica de todos os juízos". Por
exemplo, o juízo "o corpo é pesado" não significa que "todas as vezes que levo
um corpo, sinta uma impressão de peso". O juízo exprime uma relação objectiva,
independente da minha percepção, entre o corpo e o peso. Portanto, Kant
considera inadequada a definição (introduzida pela Lógica de Port Royal) do
juízo como relação entre duas representações. Esta relação seria puramente
subjectiva na

medida em que a unidade própria do juízo, expressa pela cópula "é", é uma
unidade objectiva, inerente aos próprios objectos de que se trata (ou seja, no

exemplo citado, ao corpo e ao peso) (K. r. V., § 19). Toda a experiência (e


Kant tem em mente principalmente a experiência científica) é constituída por
relações objectivas desta natureza. Ora, segundo Kant, estas relações têm o
seu fundamento no eu

penso ou "unidade sintética originária da apercepção". Kant afirma: O "eu


penso" deve poder acompanhar todas as minhas representações, de outro modo
seria necessário imaginar alguma coisa que não poderia ser pensada; e, em tal
caso, a representação ou seria impossível ou, pelo menos para mim, não seria"
(lb. § 16). Isto quer dizer que, se existe uma

105

síntese objectiva, como é a do juizo, deve existir uma possibilidade de


síntese, ou seja uma função unificante; e o "eu penso", que é esta função,
deve poder acompanhar todas as representações a unificar. O deve poder
acompanhar (muss begleiten kõnnen) exprime uma possibilidade, ou antes a
possibilidade fundamental da unificação. O deve refere-se ao modo por que se
estabelece ou se reconhece tal possibilidade: ela deve existir, se existe
(como existe no juízo) a unidade objectiva das representações. Como
possibilidade de síntese, o eu penso pode juntar as representações numa
unidade que é a estrutura objectiva da experiência; e não só da experiência
externa. isto é. dos fenómenos naturais, mas também da experiência interna, ou
seja, desse fenómeno que é o

eu para si mesmo na consciência. A síntese do eu

penso é, portanto, "o princípio supremo de todo o

conhecimento humano" (1b., § 16): expressão que se deve entender, não no


sentido de que ela seja o

único princípio de que a consciência humana, na sua totalidade, se pode


deduzir, mas sim no sentido de que constitui a condi4o ou a possibilidade de
validez objectiva de todo o conhecimento.

De facto, a primeira característica do "eu penso" ou, como também Kant diz, da
"unidade da apercepção", é que ela é uma unidade objectiva: por outros termos,
não é mais do que a possibilidade da experiência como unidade. Nas notas
fragmentárias em que Kant consignou as meditações fatigantes dos seus últimos
anos e que deveriam explicar a passagem dos princípios transcendentais à
física e constituir ao mesmo tempo a última exposição da sua

106

doutrina filosófica, Kant insiste continuamente no carácter objectivo da


apercepção transcendental. A experiência, como unidade necessária dos
fenómenos, contrapõe-se continuamente, nestas notas, ao conjunto das
representações que podem ter entre si formas de unidade casuais e variáveis. A
subjectividade transcendental, o "eu penso", não é mais do que a pura
possibilidade da experiência (Opus Postumum, IX, 2. p. 280, 308, 418, 438,
469, etc.). Mas este mesmo aspecto da unidade transcendental em que Kant
insistia nos últimos anos da sua vida, encontra-se já suficientemente
elucidado na exposição da primeira e da segunda edição da Crítica da Razão
Pura. Pode-se exprimir sucintamente este aspecto da dedução transcendental
dizendo que o "eu penso", como acto originário do entendimento, é a
possibilidade de experiência como conexão necessária entre os fenómenos.

Sobre a natureza subjectiva do "eu penso", há, pelo contrário, uma diferença
substancial entre a exposição da primeira e da segunda edição da Crítica. Na
primeira edição, a apercepção pura é definida como o eu estável e permanente
que constitui o correlato de todas as vossas representações, com respeito à
simples possibilidade de ter consciência delas"; de modo que "todo o
conhecimento pertence a uma apercepção pura e omnicompreensiva, assim como

toda a intuição sensível, enquanto representação, pertence a uma intuição pura


interna, isto é, ao tempo" (K r. V., A 123-124). Na segunda edição, ao invés,
o carácter subjectivo da unidade transcendental é definido sobretudo em
relação à sua pura forma107

lidade, mediante o contraste, que se repete frequentemente (1b., §§ 16, 17,


21), com o carácter intuitivo de uma problemática inteligência divina. Ora, o
eu estável e permanente, de que falava a primeira edição, é uma realidade e,
precisamente, uma realidade psicológica; o eu formal da segunda edição não é
mais do que uma possibilidade, a possibilidade originária da unificação da
experiência. Esta possibilidade de unificação pressupõe o múltiplo da
experiência, que por isso deve ser dado, de maneira que esta pode agir e
concretizar-se apenas nas modalidades particulares que o múltiplo põe à sua
disposição. Com isto define a condição, não de, todo o entendimento possível,
mas de um entendimento finito, isto é, humano. "Este principio, diz Kant (1b.,
§ 17) não é um principio para qualquer entendimento possível em geral, mas
apenas para aquele por cuja apercepção pura na representação eu sou não se dá
nenhuma multiplicidade. Ao invés, o entendimento por cuja autoconsciência
fosse dado ao

mesmo tempo o múltiplo da intuição, um entendimento para cuja representação já


existissem ao mesmo

tempo os objectos dessa representação, não teria necessidade de um particular


acto de síntese do múltiplo na unidade da consciência, do qual pelo contrário,
tem necessidade o entendimento humano, que apenas pensa e não intui. Mas este
acto é, inevitavelmente, o primeiro princípio do entendimento humano, de modo
que ele não pode sequer fazer a mínima ideia de outro entendimento possível
que o intua por si mesmo ou possua uma intuição sensível mas de natureza
diferente daquela que cons108
titui fundamento do espaço e do tempo". Nestas considerações, frequentemente
repetidas, Kant insiste no carácter finito do entendimento humano e do acto
originário em que ele se exprime. No parágrafo 25 encontram-se esclarecimentos
conclusivos sobre este acto originário.

Kant explica no parágrafo precedente o paradoxo (de que não existe vestígios
na primeira edição) que consiste em o homem se conhecer não como é em si mesmo
mas como aparece a si mesmo. Conhece-se a si mesmo, isto é, tal como conhece
todos os outros objectos, como um simples fenómeno. O paradoxo é inevitável,
dada a natureza puramente formal do "eu penso", o qual, por si mesmo, não faz
conhecer nada como tão-pouco o poderá fazer uma pura categoria que prescinda
de toda a intuição sensível. Para se conhecer a si mesmo, portanto, o homem
tem necessidade não só do "eu. penso", que é a possibilidade deste e de
qualquer outro conhecimento, mas também da multiplicidade sensível que lhe é
fornecida através da forma pura do sentido interno, o

tempo. Conhece-se apenas como determinado pela multiplicidade do sentido


interno, numa palavra como fenómeno. Posto isto, Kant acrescenta (§ 25): "Na
síntese transcendental do múltiplo das representações em geral, e, portanto,
na unidade sintética originária da apercepção, eu tenho consciência de mim
mesmo, não como eu apareço a mim mesmo, nem como sou em mim mesmo, mas apenas
de que eu sou. Esta representação é um pensar, não um intuir. Ora, dado que
para o conhecimento de nós mesmos se requer, além da operação do pensamento

109

que reduza a multiplicidade de toda a possível intuição à unidade da


apercepção, também um determinado modo de intuição através do qual o múltiplo
seja dado, assim a minha própria existência não é uma aparição (o muito menos
uma aparência). Mas a determinação da minha existência só pode efectuar-se
segundo a forma do sentido interno, nesse modo particular em que o múltiplo,
que eu unifico, pode ser dado na intuição interna; e é por isso que eu não
adquiro um conhecimento de mim tal qual sou, mas apenas como apareço a mim
mesmo. A consciência de si mesmo está, portanto, muito longe de ser um
conhecimento de si mesmo, não obstante todas as categorias que constituem o
pensamento de um objecto em geral mediante a unificação do múltiplo numa
apercepção". A consequência disto é que, no acto da apercepção, "eu existo
como inteligência que é consciente apenas da sua capacidade de unificação". E,
numa nota, Kant reforça de modo explícito e definitivo o último significado do
"eu penso". "0 eu penso, diz Kant exprimo o acto de determinar a minha
existência (Dasein). A existência é já dada por ele, mas o modo por que eu a
devo determinar, isto é, pôr em mim o múltiplo que lhe pertence, ainda não
está dado. Para isso, é necessária uma auto-intuição que tem por fundamento
uma dada forma a priori, isto é, o tempo, que é sensível e

pertence à receptividade do determinável. Ora, se

eu não tenho também outra auto-intuição, que dê em mim o que é determinante e


da qual eu tenha consciência só enquanto espontaneidade, de modo que este
elemento determinante se dê antes do acto

lio

de determinar, tal como o tempo existe antes do determinável, eu não posso


determinar a minha existência como a de um ser espontâneo; porém, ponho-me
apenas como espontaneidade do meu pensamento, isto é, do determinar, e a minha
existência permanece sempre determinável. apenas de maneira sensível, isto é,
como existência de um fenómeno. Esta espontaneidade faz, todavia, que eu me
chame inteligência". A preocupação dominante de Kant nestes textos que
representam a formulação mais clara que ele logrou fazer sobre a natureza do
"eu penso" é a de salvaguardar o carácter finito, isto é, não criativo, da
actividade intelectual do homem. O eu penso é o acto

da autodeterminação existencial do homem como ser

pensante e finito. Esta autodeterminação é apenas a

possibilidade de determinar uma multiplicidade dada e é por isso activa e


concreta só no acto de aplicar-se a tal multiplicidade (que é a da intuição
interna) e unificá-la de algum modo. Por isso, considerada em si mesma, no seu
aspecto Somente subjectivo, esta possibilidade não é senão a consciência de
uma espontaneidade (da capacidade de determinar) que tem o nome de
inteligência.

Revela-se aqui o significado daquela possibilidade condicionante e fundamental


que a investigação crítica de Kant, aprofundando e desenvolvendo a tendência
do iluminismo europeu, pretende pôr a claro.
O "princípio supremo de todo o conhecimento humano", a possibilidade última da
experiência humana, é uma possibilidade a um tempo subjectiva e objectiva;
dado que é ao mesmo tempo a possibilidade que o homem tem de se determinar
como determinante

111

em relação a um material determinável em geral, e a

possibilidade que este material tem de se determinar em conformidade com a


capacidade determinante do homem. O homem é inteligência (espontaneidade) em

virtude da mesma possibilidade pela qual os fenómenos constituem uma


totalidade organizada (experiência). Com o reconhecimento desta possibilidade,
Kant fundava o valor do conhecimento humano precisamente sobre a natureza
finita do homem, isto é, sobre o carácter não criativo da sua actividade
cognitiva. De facto, em virtude da sua natureza finita, o homem é,
subjectivamente, uma pura possibilidade de unificação, que só se torna
concreta e activa perante uma multiplicidade sensível que lhe seja dada; mas,
por outro lado, este ser-lhe dado da multiplicidade sensível não é mais do que
a possibilidade de ele mesmo se organizar em unidade.

A doutrina de Kant exclui assim toda a possibilidade de interpretar o "eu


penso" ou apercepção transcendental como uma autoconsciência criadora, no
sentido que se tornará próprio do idealismo pós-kantiano de Fichte em diante.
Não é por acaso que a segunda edição da Crítica, que apresenta a exacta
elucidação transcendental do "eu penso", além dos apoios psicológicos ("o eu
estável e permanente") que ainda se imiscuíam na primeira edição, contém
também, entre os seus mais significativos aditamentos, uma "Refutação do
idealismo" que é um corolário directo da dedução transcendental. A refutação
de Kant é dirigida quer contra o idealismo problemático de Descartes que só
declara indubitável o eu
existo, quer contra o idealismo dogmático de Ber112

keley, que reduz as coisas no espaço a simples ideias.


O teor desta refutação, o princípio a que obedece, é pelo próprio Kant posto a
claro numa nota ao prefácio da segunda edição da Crítica (K. r. V., B 274
sgs.). "Se à consciência intelectual da minha existência na representação eu
existo, que acompanha todos os meus juízos e as operações do meu intelecto,
pudesse aliar uma determinação da minha existência através de uma intuição
intelectual, a

esta pertenceria necessariamente a consciência de uma relação com qualquer


coisa fora de mim. Mas, conquanto essa consciência intelectual preceda
verdadeiramente a intuição interna, a única na qual se

pode determinar a minha existência, é sensível e

está ligada à condição do tempo; e esta determinação, e com ela a própria


experiência interna, depende de qualquer coisa de imutável que não está em mim
e, por consequência, depende de alguma coisa fora de mim com que devo
considerar-me em relação. De sorte que a realidade do sentido externo está
necessariamente ligada à do sentido interno pela possibilidade de uma
experiência em geral: o que quer dizer que eu sou consciente de que existem
coisas fora de mim e que estão em relação com os meus sentidos, com a mesma
certeza com que sou consciente de que eu próprio existo determinado no tempo".
Por outros termos, se o "eu. penso" fosse o acto de uma autoconsciência
criadora, não teria nada fora de si e não haveria coisas que lhe fossem
exteriores. Dado que, pelo contrário, é o acto existencial de um entendimento
finito, implica sempre uma relação com qualquer coisa fora de si; e a
realidade feno113

ménica das coisas externas é tão certa como a realidade da consciência e do


próprio "eu penso". Assim se delineia a característica essencial do ser
pensante finito: a sua relação com o exterior. A possibilidade originária que
constitui este ser, leva-o para além de si, para a exterioridade fenoménica,
da qual o

torna dependente: esta dependência é a sensibilidade.

Mas a dependência é de algum modo recíproca: a possibilidade originária


transcendental é sempre simultaneamente a possibilidade da espontaneidade
subjectiva (,inteligência) e da organização objectiva dos fenómenos
(natureza). A dedução transcendental permite a Kant justificar a ordem
necessária dos fenómenos naturais, Esta ordem é condicionada pela síntese
originária do entendimento (eu penso) e pelas categorias em que esta síntese
se determina o articula. De facto, como simples representações, os fenómenos
não podem sujeitar-se a outra lei que .não seja a que lhes prescreve a
faculdade unificadora. Por isso, a natureza em geral, como ordem necessária
dos fenómenos (natura formaliter spectata) é condicionada pelo eu penso e
pelas categorias. e modela-se por elas em vez de constituir o seu modelo. O
"eu penso" o as categorias não podem todavia revelar senão o que é a natureza
em geral, como regularidade dos fenómenos em geral, como regularidade dos
fenómenos no espaço e no tempo. As leis particulares, nas quais esta
regularidade se exprime, não podem ser deduzidas das categorias, mas devem ser
extraídas da experiência. Esta não é senão a própria natureza no seu aspecto
subjectivo, devendo-se entender por natureza a totalidade organizada dos fe114

nómenos e por experiência esses fenómenos mesmos tal como aparecem ao homem.

A dedução transcendental elimina assim a dúvida de Hume sobre a validez das


proposições extraídas da experiência. Hume considerava possível que a
experiência de um momento ao outro desmentisse aquelas verdades de facto, que
ela mesma sugere. Kant julga que tal possibilidade não existe. A experiência,
condicionada como é pelas categorias do intelecto o pela apercepção
transcendental, não pode desmentir aquelas verdades que se fundam precisamente
nestes factores condicionantes. As leis da natureza são assim garantidas na
sua validez. A experiência que as revela nunca poderá desmenti-las, já que
elas se fundam nas condições que tornam possível toda a experiência.

§ 521. KANT: A Analítica DOS PRINCIPIOS

Determinadas as categorias que presidem à constituição da experiência e


justificadas tais categorias pela dedução transcendental, Kant passa a
determinar "o cânone do seu uso objectivamente válido", isto é, as regras
segundo as quais devem aplicar-se aos casos particulares. Esta é a tarefa da
Analítica dos princípios ou Doutrina transcendental do juízo. Esta última
expressão exprime o facto de que o uso das categorias é precisamente o juízo.
A analítica transcendental compreende o esquematismo, dos conceitos puros e o
sistema dos princípios do entendimento puro.

115

A doutrina. do esquematismo responde à necessidade de encontrar um termo médio


entre as categorias e as intuições empíricas. Categorias e intuições são entro
si heterogéneas; e é precisamente esta heterogeneidade que faz nascer o
problema da possibilidade da aplicação das categorias às intuições. Ora,
segundo Kant, o termo intermédio, que é homogéneo por um lado à categoria, por
outro, à intuição empírica ou fenómeno, é o esquema transcendental; e o modo
como o entendimento se comporta com os esquemas é o esquematismo do
entendimento puro. O esquema é um produto da imaginação, mas não é uma
linguagem porque contém já em si algo do conceito puro. É definido como "o
procedimento geral pelo qual a imaginação fornece a um conceito a sua imagem"
(K. r. V., B 179). Ao passo que a imagem é um produto da imaginação, o esquema
é a pura possibilidade da imagem: por isso, esta só é reduzida ao conceito
através do esquema, mas em si mesma nunca coincide perfeitamente com ele.
Kant. enumera os esquemas em relação com cada categoria. Assim o esquema das
categorias de quantidade é o número, o das categorias de qualidade é a coisa,
o das categorias de relação é a permanência ou a sucessão ou a simultaneidade;
o das categorias de modalidade é a existência no tempo e precisamente num
tempo qualquer (possibilidade), num tempo determinado (realidade) e em todos
os tempos (necessidade). Em geral, os esquemas não são senão determinações a
priori do tempo segundo regras; e estas regras referem-se ou à série do tempo
(esquema de quantidade) ou ao seu conteúdo (esquema de quali116

dade) ou à sua ordem (esquema de relação) ou, enfim, ao conjunto do tempo


(esquema da modalidade).

Reconhecido assim o esquematismo como a condição geral do uso das categorias,


Kant passa a determinar os juízos a que este uso dá lugar. Evidentemente, não
se trata aqui de juízos analíticos, cuja verdade é suficientemente garantida
pelo princípio de contradição, mas de juízos sintéticos, a que é indispensável
uma referência à experiência. O conhecimento humano, de facto, no que tem de
positivo e construtivo, não se estende para lá da experiência, porque é sempre
conhecimento de fenómenos. Porém, a experiência não é apenas o limite do
conhecimento, mas também o fundamento do seu valor. Um conhecimento que não se
refira a uma experiência possível não é conhecimento, mas sim pensamento vazio
que nada conhece, simples jogo de representações. Por outro lado, sobre o
fundamento da possibilidade da experiência, o conhecimento adquire a sua plena
validez, porquanto as condições, que tomam possível a experiência, tornam
também possível o objecto da experiência, o fenómeno. Ora a experiência não é
um simples agregado de percepções, mas sim a conexão necessária entre os
fenómenos. A possibilidade da experiência reside, pois, nas regras
fundamentais desta conexão, que Kant chama de princípios do entendimento puro.
A função de tais princípios consiste essencialmente em eliminar o carácter
subjectivo da percepção dos fenómenos, reduzindo a

percepção à conexão necessária que é própria da experiência objectivamente


válida. Estes princípios substituem os simples liames das percepções no

117

tempo pelas relações necessárias que conglobam a experiência num todo


coerente.

Kant, como de ordinário, recorre à sua tábua das categorias para dar a série
sistemática dos princípios do entendimento puro, os quais, em última análise,
não são outros senão os pressupostos fundamentais da ciência newtoniana.

Os axiomas da intuição (correspondentes às categorias da quantidade)


transformam o facto subjectivo de podermos perceber a quantidade espacial ou
temporal (por exemplo, uma linha ou duração) percebendo apenas as partes
sucessivas, no princípio objectivamente válido segundo o qual toda a
quantidade é composta de partes; e assim justificam a aplicação da matemática
ao domínio inteiro da experiência.

As antecipações da percepção (correspondentes às categorias da qualidade)


transformam a intensidade subjectiva da percepção num grau da qualidade
objectiva e garantem assim a continuidade dos fenómenos (porquanto todo o
fenómeno pode ter infinitos graus).

As analogias da experiência (correspondentes às categorias da relação)


permitem reconhecer por sob a mutabilidade das percepções um substracto
permanente que é a substância dos fenómenos; substituem a simples sucessão
temporal das percepções pela relação necessária de causalidade entre os
fenómenos, a qual explica e fundamenta aquela sucessão; e permitem justificar
objectivamente, mediante a relação da acção recíproca, a simultaneidade dos
fenómenos, a qual não pode aparecer nas percepções que são sempre sucessivas.
São precisamente estas três ana118

logias da experiência que constituem a natureza, a qual é a própria conexão


objectiva entre os fenómenos.

os postulados do pensamento empírico em geral esclarecem, finalmente, os


conceitos de possibilidade, de realidade e de necessidade das coisas, dando a
tais conceitos o seu valor objectivo.

Os princípios do entendimento puro garantem a validez objectiva da


experiência, subtraindo-a à sua objectividade da percepção. Constituem a
natureza mesma. A percepção que se lhes furta é um puro jogo da imaginação e
não tem outra realidade objectiva senão a de um sonho. Estes problemas da
analítica transcendental são o tema constante das últimas meditações de Kant
recolhidas no Opus postumum. Nestas meditações, bastante pouco concludentes,
pois Kant continuamente lhes interrompe o

fio, e continuamente o retoma do princípio, na incapacidade de o desenvolver e


de o conduzir até ao fundo, o velho filósofo propunha-se aplicar os princípios
transcendentais da ciência da natureza à física e, por conseguinte, justificar
em particular as bases da física de Newton: um tempo absoluto que flui
uniformemente sem relação com nada de exterior; um espaço absoluto também, não
relativo a qualquer coisa de exterior, mas permanente e imóvel, uma

matéria única e uniforme, animada por uma força única e simples na variedade
das suas manifestações.
O princípio de que Kant pretendia valer-se nesta espécie de dedução da física
newtoniana é o da possibilidade da experiência como sistema total dos
fenómenos. Assim, da unidade da experiência, de119

Ouzia a unidade a matéria, que é objecto da física. Assim, como há uma única
experiência de modo quando se fala de diversas experiências se alude na
realidade a grupos de percepções, assim há um

único objecto da experiência, que é a matéria; e quando se fala de diversas


matérias, alude-se na realidade às substâncias (Stoffen) diversas que
constituem os elementos da matéria (Op. post., VIII, 1, p. 235-538, etc.).
Estas meditações de Kant são importantes porque revelam a exigência que sempre
dominou a sua investigação crítico-transcendental: a de justificar a
possibilidade, e portanto o valor, do saber positivo do homem (que para ele se
identifica com a ciência newtoniana) precisamente sobre o fundamento dos
limites de tal saber, isto é, no âmbito das possibilidades que constituem o
entendimento finito do homem.

§ 522. KANT: O NúMENO

Juntamente com a dedução transcendental e estreitamente vinculada a ela, a


doutrina do númeno constitui o fundamento da filosofia kantiana. Não é por
acaso que também neste ponto Kant hesitou muito antes de chegar à expressão
definitiva do seu

pensamento, e também sobre este ponto são particularmente significativas as


diferenças entre a exposição da primeira edição e a da segunda edição da
Crítica. A distinção entre fenómeno e númeno é introduzida na Dissertação
(1770) como distinção entre mundo sensível e mundo inteligível. "0 que é
pensado de um modo sensível, dizia então Kant (Dissert., § 4) é a
representação das coisas tal como aparecem,

120

o que é pensado intelectualmente é a representação das coisas, como são". A


esta distinção que Kant atribuía à metafísica tradicional, a Crítica da Razão
Pura dá um significado inteiramente novo. Esta obra havia já reconhecido e
estabelecido solidamente que o conhecimento humano está encerrado dentro dos
limites da experiência e que a experiência não se

refere a outra realidade que não seja o fenómeno. Este princípio exclui que as
categorias tenham (segundo a terminologia de Kant um uso transcendental, pelo
qual se referem às coisas em geral e em si mesmas, e implica que o seu uso
possível é o empírico, pelo qual se referem só aos fenómenos, isto é, aos
objectos de urna experiência possível. Mas este pressuposto, que fica
definitivamente estabelecido para Kant a partir de 1781, dá origem a um duplo
problema. Em primeiro lugar, ao de explicar a

ilusão pela qual se propende a estender as categorias para lá dos limites da


experiência possível, isto é, às coisas em si mesmas; o em segundo lugar, ao
de explicar a função do númeno relativamente à própria experiência, isto é, ao
conhecimento humano.

Sobre o primeiro problema, a atitude de Kant é clara e definida desde o


princípio. Tal ilusão nasce do facto de as formas a priori do entendimento não
dependerem da sensibilidade, e isto fá-las parecer aplacáveis mesmo para além
da sensibilidade, como

se o pensamento pudesse atingir o ser em si. Na realidade, as formas do


entendimento são apenas a faculdade lógica de unificar o múltiplo da
sensibilidade e, onde tal multiplicidade falte, a função delas torna-se
impossível. Já na primeira edição

121

Kant distinguia claramente a possibilidade transcendental ou real,


constitutiva do conhecer autêntico, da possibilidade lógica de um conhecimento
puramente fictício. "0 jogo de prestígio pelo qual a possibilidade lógica do
conceito (que não se contradiz a si mesmo) se substitui à possibilidade
transcendental das coisas (pela qual ao conceito corresponde um objecto) pode
iludir e satisfazer apenas os inexperientes" (A 244). E uma nota de segunda
edição acrescenta: "Todos estes conceitos [as categorias] não podem ser
justificados nem, portanto--- demonstrados na sua real possibilidade, quando
se abstraia de toda a intuição sensível, a única que possuímos" (B 303).

Todavia, o númeno não é apenas uma ilusão Reconhecer como fenómenos os


objectos da experiência significa implicitamente contrapor-lhe. objectos não-
fenómenos. Estes objectos são, pois, possíveis. Mas sobre o significado da sua
possibilidade e, por conseguinte, sobre a função que tal possibilidade exerce
nas relações do conhecimento humano, as ideias de Kant só lentamente se foram
aclarando.

Numa primeira fase (1.a edição da Crítica e

Prolegómenos) Kant não atinge plenamente o significado da sua própria


distinção entre possibilidade lógica e possibilidade transcendental. O númeno,
embora tenha sido reconhecido como uma simples possibilidade lógica, é chamado
a exercer uma função positiva no conhecimento e tratado como uma realidade,
embora desconhecida. "Todas as nossas representações, dizia Kant na primeira
edição da Crítica (A 251), são na realidade referidas pelo entendimento a um
dado objecto, e, visto que os

122

fenómenos, não são senão representações, o entendimento refere-os a algo que


seja objecto da intuição sensível; mas este algo, enquanto tal, não é mais do
que objecto transcendental. Este significa um algo =x, de que nada sabemos e
de que (pela presente constituição do nosso entendimento) nada podemos
absolutamente saber, mas que pode servir apenas como correlato da unidade da
apercepção, com vista àquela unidade do múltiplo na intuição sensível por meio
da qual o entendimento unifica o múltiplo no conceito de um objecto". Aqui, o
númeno é um x, uma realidade desconhecida, é certo, mas em todo o caso uma
realidade, que serve de correlato àquele "eu estável e duradouro" de que
falava a

dedução transcendental da primeira edição. A esta realidade desconhecida, que


é o númeno, se atribui nos Prolegómenos (1, obs. 2 a) a função de influir
sobre a sensibilidade e de ser o substracto dos corpos materiais empiricamente
percebidos. "Eu admito, diz aqui Kant, refutando o idealismo de Berlçeley, que
fora de nós existam corpos, isto é, coisas que, conquanto nos sejam
completamente desconhecidas quanto ao que são em si mesmas, conhecemos por
meio das representações que o seu influxo sobre
* nossa sensibilidade nos fornece e às quais damos
* denominação de corpo; tal palavra significa, portanto, apenas o fenómeno
daquele objecto que nos

é desconhecido mas que nem por isso é menos

real." O númeno seria, deste ponto de vista, a substancia dos corpos materiais
enquanto fenómenos. o conceito do númeno é aqui apresentado como

resultado do processo que induz a considerar sub123

jectivas algumas qualidades dos corpos; até certo ponto, a própria intuição de
corpo se torna subjectiva, mas permanece a realidade desconhecida, o x que
está por detrás dessa intuição e que não é semelhante a ela, como não é
semelhante a sensação do vermelho à propriedade do cinábrio que a produz.

É evidente que nestas considerações o númeno não é apenas, como Kant todavia
reconhecera explicitamente na primeira edição da Crítica, uma possibilidade
lógica, mas uma realidade, isto é uma possi-bilidade transcendental, de que
Kant se serve positivamente para explicar a constituição e a origem do
conhecimento. Esta incongruência é eliminada na segunda edição da Crítica.
Aqui, assim como se eliminam os passos que fazem da apercepção transcendental
uma realidade psicológica, ou seja, um "eu estável e duradouro", são também
eliminadas as passagens que respeitam à função positiva do númeno na
constituição e na origem do conhecimento humano e é desenvolvido coerentemente
o conceito do númeno como pura possibilidade negativa e limitativa. Esclarece-
se então explicitamente que, em sentido positivo, o númeno não é mais do que o
objecto de uma intuição não-sensível, isto é, de uma intuição intelectual que
não é a

nossa e "da qual não podemos compreender sequer a possibilidade" (K. r. V., B
309). Em sentido positivo, o númeno é, portanto, pelo menos para o homem,
impossível, e qualquer uso do conceito dele está fora de discussão. A
conclusão é que "aquilo que chamamos númeno deve entender-se apenas em

sentido negativo,>, como aquilo que não é objecto

124

da nossa intuição sensível. Neste sentido negativo, assume um novo relevo a


função que já se atribuía ao númeno na primeira edição da Crítica: a de
conceito Emite. "Enfim, diz Kant (13 311), nem

sequer é possível reconhecer a possibilidade de tais númenos, e o território


para lá da esfera dos fenómenos é (para nós) vazio; isto é, possuímos um
entendimento que se estende para lá dessa esfera problematicamente, mas não
temos nenhuma intuição pela qual nos possam ser dados objectos para lá do
campo da sensibilidade nem o entendimento possa ser usado em relação a eles de
modo assertivo.
O conceito de númeno é, pois, apenas um conceito limite (Grenzbegriff) para
circunscrever as pretensões da sensibilidade e, por isso, de uso puramente
negativo. Todavia, não é um conceito forjado arbitrariamente, uma vez que se
liga à limitação da sensibilidade, sem no entanto estabelecer nada de positivo
fora do domínio dela".

Aqui o número já não é mais que um x, uma realidade desconhecida mas positiva,
capaz de exercer

uma função positiva com respeito ao conhecimento humano. É a pura


possibilidade negativa e limitativa conexa aos limites deste conhecimento
enquanto é sempre experiência. Que o conhecimento humano seja conhecimento de
fenómenos, e não de númenos, não significa que os númenos estejam atrás dele
como aquilo que o suscita, o sustém e o justifica, mas Somente que não é
conhecimento divino, que não cria realidade, mas se move no âmbito de
possibilidades determinadas, empiricamente dadas, e que fora de tais
possibilidades nada existe. Kant

125

foi-se libertando assim, lenta e exaustivamente, de todos os resíduos


ingenuamente realisticos do seu criticismo. A edição de 1787 marca
verdadeiramente a sua vitória definitiva neste ponto. Mas a vitória sobre o
realismo não significou, para Kant, idealismo. A dissolução do númeno como
realidade positiva, a qual se foi operando gradualmente no seu pensamento, não
implica de modo algum que ele tenha reduzido toda a realidade ao sujeito. O
sujeito é para ele a inteligência Enita, isto é, o homem, cujo acto de
autodeterminação existencial (o eu

penso) é ao mesmo tempo uma relação possível com

a realidade objectiva da experiência. O ensinamento, que se extrai da dedução


transcendental e da doutrina do númeno, na forma definitiva que estes
fundamentos assumiram na segunda edição da Crítica, é que o acto originário
constitutivo da subjectividade pensante do homem é ao mesmo tempo o acto
instaurador de uma relação bem fundada entre o homem e a realidade objectiva
do mundo da experiência. A subjectividade humana revela-se assim como uma
relação com o objecto: com um objecto que não é uma realidade desconhecida,
mas sim a empírica multiplicidade do mundo em que o homem vive.

É significativo que os pensamentos dispersos do Opus postumum não modifiquem o


ponto de vista que Kant defende na segunda edição da Crítica, antes aduzam
alguns esclarecimentos notáveis a esse

respeito. De facto, aí é amiúde referido (Op. post. ed. cit., 11, p. 20, 27,
33, etc.) o conceito da coisa em si como correlato da unidade originária do

126

entendimento, e, portanto, como um x que não é uni objecto particular, mas o


puro princípio do conhecimento sintético a priori. Esta ora a doutrina da
primeira edição da Crítica. Mas esta doutrina está entretecida e misturada com
a afirmação, que se repete continuamente (Ib., p. 4, 25, 31, 32, etc.), de que
a coisa em si é "um puro pensamento sem realidade" (Gedankending ohne
Wirklichkeit), um

ens rationis. E esta afirmação é defendida no sentido de que a coisa em si


representa o aspecto negativo do objecto da intuição empírica, aquilo a que
Kant chama (1b., p. 24) o negativo sintético da intuição a priori. A coisa em
si não é um objecto diverso do objecto sensível mas apenas no ponto de vista
negativo pelo qual tal objecto pode ser considerado" (Ib., p. 42). De modo que
a distinção entre fenómeno e coisa em si não é uma distinção entre objectos,
mas entre as relações existentes entre o sujeito e o objectivo fenoménico. O
objecto fenoménico é tal em virtude da relação positiva que ele tem com o
sujeito a que aparece, relação pela qual elo é uma intuição e precisamente uma
intuição empírica. Mas tem também com o sujeito uma
relação negativa (não é coisa em si) e precisamente em virtude desta relação
negativa pode ser considerado como fenómeno e por isso submetido à unidade da
apercepção e das categorias (Ib., p. 44, 412). Kant afirma que somente: esta
relação negativa toma possível a filosofia transcendental: afirmação que
exprime por outras palavras aquela que aparece continuamente na Crítica, e é
que, se os objectos do conhecimento fossem coisas em si, seria

127

impossível aplicar-lhes as funções subjectivas do conhecer e tais funções não


teriam significado. É, portanto, evidente que a doutrina em que Kant insiste
ao longo das páginas do Opus postumuni, a

da coisa em si como ens rationis e relação negativa do sujeito com o objecto


empírico, não é mais do que uma reafirmação da coisa em si como conceito-
limite que torna possível o conhecimento empírico do homem o a filosofia
transcendental que analisa as condições desse conhecimento.

§ 523. KANT: A DIALÉCTICA TRANSCENDENTAL

Com as duas secções da Analítica transcendental (Analítica dos conceitos e


Analítica dos princípios) se conclui a parte positiva da Lógica
transcendental. A segunda parte desta lógica, a Dialéctica transcendental, é
negativa: tende a mostrar a impossibilidade daqueles conceitos que a razão
humana é levada a formular, prescindindo da experiência, mediante o uso
transcendente das categorias. A dialéctica transcendental é, portanto, a
crítica da dialéctica, isto é, da lógica assumida como órgão de conhecimento.
Kant diz a este propósito: "Por muito que varie o significado que os antigos
deram ao nome de ciência ou arte dialéctica, pode-se todavia inferir do
sentido em que o empregaram que a dialéctica, para eles, não é mais do que a
lógica da aparência. foi a arte sofística de dar à própria ignorância, e até
às voluntárias ilusões, a aparência

128

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KANT

da verdade imitando o método da fundamentação que a lógica em geral prescreve,


e servindo-se da sua tópica para colorir todos os raciocínios ocos. Agora
podemos fazer uma advertência segura e

úlil: a lógica geral, considerada como órgão, é sempre lógica da aparência,


isto é, dialéctica" (K. r. V., B 87). Isto acontece porque a lógica por si só,
ou seja, sem a ajuda da experiência, não pode produzir conhecimentos: e produz
apenas noções aparentes ou fictícias que se substituem aos conhecimentos. A
dialéctica transcendental, todavia, não se ocupa da crítica de todas estas
noções, mas apenas das que nascem de uma "ilusão natural e inevitável da razão
humana" e que, por consequência, persistem mesmo depois de se ter provado o
seu carácter ilusório. Kant identifica estas noções com as de alma, de mundo e
de Deus que eram o objecto da metafísica tradicional. A dialéctica
transcendental é, substancialmente, a crítica desta metafísica.

A crítica de Kant é, no entanto, dirigida à forma que aquelas noções assumiram


na metafísica especial de Wolff, que ele considerava a mais ordenada o
rigorosa exposição de tais noções. Mas importa notar que Wolff distinguira da
metafísica especial, que compreende a psicologia, a cosmologia e a teolologia,
uma metafísica geral ou ontologia, que Kant nunca põe em causa. É que ele
considera que os

resultados fundamentais da ontologia de Wolff podem ser fundamentalmente


aceites por aquela "metafísica crítica" ou "científica" que, segundo Kant,
coincide com a crítica da razão pura (1b., B 870) e que, num escrito de 1793,
em que versou

129

um tema proposto pela Academia de Berlim (Quais Não os progressos reais que a
metafísica fez desde o tempo de Leibniz e Wolff?, A 156), denominou pelo
próprio nome de ontologia.

Como se disse, as noções fictícias da metafísica são produzidas pelo uso


natural, mas não disciplinado, da razão. Ora, assim como o acto do
entendimento é o juizo, assim a actividade da razão é o silogismo; e do mesmo
modo que Kant extraíra das diferentes classes de juízo as categorias do
entendimento, assim extraiu das diferentes classes de silogismo os conceitos
da razão. Ora, o silogismo pode ser categórico, hipotético e disjuntivo
(segundo a classificação aristotélica e estóica que a lógica escolástica
adoptou). Os conceitos da razão fundados sobre esta divisão contêm, portanto,
em primeiro lugar, a ideia do sujeito completo (substancial), que é a da alma;
em segundo lugar, a ideia da série completa das condições, que é a do mundo;
em terceiro lugar, a ideia de um conjunto perfeito de todos os conceitos
possíveis, que é a de Deus. Cada uma destas ideias representa à sua maneira a
totalidade absoluta da experiência, mas uma vez que a totalidade da
experiência nunca é uma experiência, nenhuma delas tem valor objectivo, e
precisamente por isso é ideia, e não realidade. A ideia da alma representa a
totalidade da experiência em relação ao sujeito; a ideia do mundo representa
esta totalidade em relação aos objectos fenoménicos; e a ideia de Deus
representa-a em relação a todo o objecto possível, fenoménico ou não A crítica
destas três ideias é ao mesmo tempo a crítica das três disciplinas que

130

constituíam a metafísica especial de Wolff, ou seja, da psicologia racional,


da cosmologia racional e da teologia racional.

Kant considera que o fundamento da psicologia racional e, portanto, do


conceito de alma em que ela assenta, é um simples paralogismo, isto é, um

raciocínio falso. Este raciocínio consiste em aplicar ao eu penso a categoria


da substância e, consequentemente, em transformar este acto originário do
entendimento numa substância simples, imaterial e

incorruptível e por isso também espiritual e imortal. Mas a categoria de


substância, como todas as demais categorias, só se pode aplicar a objectos
empíricos, e o eu penso não é um objecto empírico mas apenas, como se viu, a
função lógica do sujeito pensante em relação a um múltiplo empírico
determinável. A aplicação da categoria de substância não pode por isso usar-se
com respeito ao "eu penso": assim, todas as dificuldades da psicologia
racional provêm de um silogismo falso, porquanto se toma a palavra "sujeito"
em dois sentidos diferentes. E, de facto, o eu que pensa é, desde logo,
sujeito, mais

não é substância, quer dizer, ser subsistente por si. É, sem dúvida, um eu
singular, uma vez que não pode ser resolvido numa pluralidade de sujeitos, mas
nem por isso é substância simples, já que a

simplicidade não pode predicar-se senão de substâncias empíricas. Isto garante


a identidade do eu como função sintética, mas tal identidade nada diz sobre a
entidade do eu fenoménico que é o único que é objecto de conhecimento. Enfim,
o eu penso estabelece a distinção entre si e as coisas exteriores;

131

mas nada diz acerca da possibilidade de poder subsistir sem tais coisas.
Confundindo estas duas afirmações, a psicologia racional manifesta o seu

carácter ilusório e falaz.

A ideia de mundo como totalidade absoluta de todos os fenómenos, que é o


objecto da cosmologia racional, revela a sua ilegitimidade ao motivar
afirmações antitéticas que se apresentam revestidas de igual verosimilhança.
Tais afirmações são as antinomias da razão pura, verdadeiros conflitos da
razão consigo mesma, dos quais ela não pode salvar-se senão abandonando o
princípio de que nascem, a própria ideia de mundo. Desta ideia (que nada tem a
ver com natureza, que é a conexão causal dos fenómenos) nascem de facto quatro
antinomias. A primeira é a que existe entre finitude e

infinitude do mundo com respeito ao espaço e ao tempo; com efeito, pode


sustentar-se seja que o

mundo tenha tido um início no tempo e tenha um limito no espaço, seja que não
tem nem um nem

outro e seja infinito. A segunda antinomia nasce da consideração da


divisibilidade do mundo: pode sustentar-se seja que a divisibilidade se
interrompe num certo limite e que, por isso, o mundo é composto de partes
simples, seja que a divisibilidade pode ser levada até ao infinito e que,
portanto, nele nada existe de simples, isto é, de indivisível. A terceira
antinomia diz respeito à relação entre causalidade e liberdade: pode admitir-
se uma causalidade livre além da causalidade da natureza ou negar qualquer
causalidade livre. A quarta antinomia concerne à dependência do mundo para com
um ser

132

necessário: pode admitir-se que exista um ser

necessário como causa do mundo, ou pode negar-se tal ser. Entro a tese e a
antítese destas antinomias é impossível decidir, porque ambas podem ser
demonstradas. O defeito reside na própria ideia do mundo, a qual, estando para
lá de toda a experiência possível, não pode fornecer nenhum critério para se
decidir por uma ou por outra das teses opostas. As antinomias demonstram
portanto a ilegitimidade da ideia de mundo. Tal legitimidade resulta evidente
se se observa que as teses das ditas antinomias apresentam um conceito
demasiado pequeno para o entendimento e as antíteses um conceito demasiado
grande para o próprio intelecto. Assim, se o mundo teve um princípio,
regredindo empiricamente na série dos tempos, seria preciso chegar a

um ponto em que este regresso terminasse; e este é um conceito do mundo


demasiado pequeno para o entendimento. Se, ao invés, o mundo não teve um
princípio na série dos tempos já não @ pio, o regresso pode
esgotar a eternidade; e este é um conceito demasiado grande para o
entendimento. O mesmo se pode dizer da finitude e da infinitude espacial, da
divisibilidade, etc. Em qualquer caso se chega a

um conceito de mundo que, ou reduz a limites apertados a possibilidade do


homem de avançar de um

termo a outro na série dos eventos, ou estendo estes limites a tal ponto que
torna insignificante esta mesma possibilidade.

A terceira ideia da razão pura, a de Deus, é denominada por Kant o ideal da


razão pura. Com efeito, é o conjunto e todas as @@s@b_iIQWèS' isto

133

é, o ser determinado por, pelo menos, um dos possíveis predicados opostos das
coisas. Este ideal é o modelo das coisas que, como cópias imperfeitas daquele,
dele extraem a matéria da sua possibilidade. Por isso se chama o Ser
originário; e chama-se Ser supremo enquanto não tem nenhum ser sobre si e Ser
dos seres enquanto qualquer outro ser é condicionado por ele. Estas
determinações, no

entanto, são puramente conceptuais e nada dizem sobre a essência real do ser
de que se trata. Kant analisa a este propósito as provas aduzidas sobre a
existência de Deus, e redu-las a três: a prova físico-teológica, a prova
cosmológica e a prova ontológica. Começa a sua análise por esta última, a

qual pretende deduzir a existência de Deus do conceito de Deus como ser


perfeitíssimo. Esta prova, segundo Kant, é contraditória ou impossível: é
contraditória se se crê que no conceito está já implícita a sua existência,
porque nesse caso já não se trata do simples conceito; e é impossível se não a
considerarmos implícita porque nesse caso a existência deverá ser acrescentada
ao, conceito sinteticamente, isto é, por via da experiência, ao passo que Deus
está para lá de toda a experiência possível. A prova cosmológica que passa da
contingência do mundo à necessidade do ser supremo funda-se na prova
ontológica, já que o ser necessário é precisamente o ser cujo conceito implica
a sua existência, de modo que a demonstração da necessidade de Deus pressupõe
a prova ontológica. Quanto à prova físico-teológica que remonta da ordem do
mundo ao

seu ordenador, essa, segundo Kant, não conclui,

.134

porque não é dado ao homem estabelecer uma relação entre a ordem do mundo e o
grau de perfei. ção divina que deveria explicar tal ordem. Também esta prova
implica um salto, em que só a pode ajudar a prova cosmológica e a prova
ontológica, de modo que sofre o mesmo triste destino que estas duas. Esta
crítica basta, segundo Kant, para tirar todo o fundamento não só ao teísmo,
que admite um Deus vivo, cujos atributos podem ser
determinados por uma teologia natural, mas também ao simples deísmo, que
admite apenas um ser originário ou uma causa suprema, furtando-se a determiná-
lo ulteriormente.

4, Todavia, as ideias da razão pura, ainda que negadas no seu valor objectivo,
na sua realidade, apresentam-se incessantemente como problemas. Reconhecida a
ilusão a que o homem está sujeito no uso dialéctico da razão, cumpre remontar
à raiz de tal ilusão que se radica na própria natureza do homem e dar a esta
raiz um uso positivo e construtivo ao serviço do próprio conhecimento
empírico. Por outros termos, negada a solução dogmática do problema
metafísico, cumpre propor uma solução crítica, para que o problema mantenha e

preserve a sua problematicidade. De que maneira? A tal pergunta responde o uso


regulador das ideias transcendentais. Es titutivo, pois não servem para
conhecer nenhum objecto possível; mas podem e devem ter um uso regulador,
orientando a busca intelectual para aquela unidade total que representam. Toda
a ideia é, para a razão, uma regra que a induz a dar ao

135

seu campo de investigação, que é a experiência, não só a máxima extensão, mas


também a máxima unidade sistemática. Assim, a ideia psicológica leva a
procurar os nexos entre todos os fenómenos do sentido interno e a descobrir
neles uma cada vez maior unidade como se eles fossem manifestações de uma
única substância simples. A ideia cosmológica leva a passar incessantemente de
um fenómeno natural a outro, do efeito à causa e à causa dessa causa e assim
por diante até ao infinito, precisamente como se a totalidade dos fenómenos
constituísse um único mundo. A ideia teológica, enfim, acrescenta à
experiência um ideal de perfeita organização sistemática, que ela nunca
atingirá, mas

que perseguirá sempre, precisamente como se tudo dependesse de um único


criador. As ideias, deixando de valer dogmaticamente como realidade, valerão
neste caso problematicamente, como condições que levam o homem a empenhar-se
na investigação natural e o solicitam de acontecimento em acontecimento, de
causa em causa, na tentativa incessante de estender o mais possível o domínio
da sua própria existência e de dar a este domínio a máxima unidade. No entanto
tratar-se-á sempre de uma

unidade problemática, que se' apresentará como

um problema nos problemas concretos da investigação científica, mas que nunca


poderá ser substituída por uma realidade ou um objecto e afirmada como tal. A
única via para garantir à unidade total da experiência o seu carácter
problemático e para evitar que ela pretenda erigir-se numa reali136

dade ilusória, é considerála. segundo Kant, corno

o guia e a regra da investigação que se move nos limites mesmos da


experiência.

§ 524. KANT: A DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO

A Estética e a Lógica transcendental (nas suas

duas partes de Analítica e Dialéctica) constituem no seu conjunto a Doutrina


transcendental dos elementos, a qual é, segundo a imagem de Kant, o

cálculo e a determinação dos materiais que constituem o edifício do


conhecimento humano. A Doutrina transcendental do método deve, ao invés, dar
os planos deste edifício, planos que devem estar em relação com as
possibilidades e os limites do material a utilizar. Kant define a doutrina
transcendental do método como "a demonstração das condições formais de um
sistema completo dia razão pura". E nela trata da disciplina, do cânone, da
arquitectónica e da história da razão pura. Na realidade, esta última parte da
obra de Kant já havia sido quase toda exposta no curso do estudo dos
elementos, de modo que ela assume o simples relevo de uma recapitulação ou
repetição, do ponto de vista das aplicações práticas, da primeira parte da
Crítica.

Na Disciplina da razão pura, Kant preocupa-se em primeiro lugar em estabelecer


a diferença entre filosofia e matemática. A filosofia, diz, é conhecimento
racional mediante conceitos, ao passo que

137

a matemática é um conhecimento racional mediante construção de conceitos. Para


construir um conceito é necessária uma intuição não empírica, e esta é a
intuição do espaço-tempo de que o matemático se vale nas suas construções. A
filosofia, que não tem à sua disposição nenhuma intuição pura adequada aos
seus conceitos, não procede por construção mas por análise. O seu método deve
por isso diferenciar-se do da matemática. Não pode partir de definições, como
o faz a matemática, mas sim da experiência, com a condição de demonstrar por
fim a

legitimidade desta; não conhece os axiomas, de que a matemática extrai os seus


fundamentos, não tem sequer verdadeiras demonstrações, porque não atinge nunca
a certeza apodíctica. O conhecimento filosófico pode, é certo, denominar-se um
sistema, mas somente como sistema de investigação e busca daquela unidade a
que só a experiência pode fornecer a matéria. Tudo isto concerne ao uso
positivo da razão. Quanto ao seu uso negativo, isto é, polémico, para a defesa
das proposições contra as negações dogmáticas, Kant considera que a razão deve
evitar igualmente o dogmatismo e o cepticismo e assumir em todos os casos uma
atitude critica.
O dogmatismo é o primeiro passo na razão pura; o

cepticismo é o segundo. A crítica é o passo definitivo com o qual se assinalam


precisamente os limites do poder e da capacidade da razão e sobre estes
limites se estabelecem firmemente esse poder e capacidade. A disciplina da
razão compreende também as suas hipóteses e as suas demonstrações. Os
conceitos da razão são, como se viu, apenas

138

princípios reguladores, isto é, ficções heurísticas, de que o entendimento se


serve para estender e organizar a investigação empírica. Não podem converter-
se em hipóteses que expliquem os factos empíricos ou as coisas naturais,
porque isso constituiria, na realidade, unia renúncia a toda a explicação e

um pretexto da razão preguiçosa para desistir da investigação. Em geral, toda


a hipótese pode ser formulada apenas à base da experiência possível e, por
conseguinte, não pode conter "outras coisas ou princípios fora daqueles que
segundo as já conhecidas leis dos fenómenos estão em relação com os fenómenos
dados" (K. r. V., B. 801). Ademais, uma

hipótese deve bastar para determinar a priori as próprias consequências sem


hipóteses subsidiárias (1b., B 802). E nenhuma destas condições é satisfeita
por uma <hipótese transcendental" em que para a explicação das coisas naturais
se empregasse uma simples ideia da razão. Na demonstração, finalmente, a
primeira regra é examinar os princípios de que se pretende partir; a segunda,
a de servir-se de uma única demonstração, e a terceira a de servir-se de
demonstrações ostensivas ou directas, não indirectas ou apagógicas, isto é,
que remontam da verdade das consequências à verdade das premissas.

O Cânone da razão pura é entendido por Kant como o complexo dos princípios a
priori que devem regular o uso das faculdades cognitivas. Este cânone deve
orientar a razão ao seu último fim que é o conhecimento dos três objectos
fundamentais da vida moral: a liberdade do querer, a imortalidade da alma e a
existência de Deus. Kant antecipa aqui os

139

fundamentos da doutrina que desenvolverá na Crítica da razão prática. O cânone


serve também para distinguir a opinião, a fé e a ciência. Uma crença válida
para todos os que são providos de razão chama-se convicção; uma crença que tem
por fundamento a natureza particular do sujeito chama-se persuasão. A
persuasão tem apenas uma validez privada e, por conseguinte, incomunicável,
porque é uma atitude subjectiva. Assim, a opinião é uma crença insuficiente
tanto subjectivamente quanto objectivamente, quer dizer, não é nem convicção
nem persuasão. Uma crença considerada subjectivamente suficiente mas
objectivamente insuficiente, chama-se fé. Enfim, a crença suficiente tanto
subjectivamente como objectivamente, diz-se ciência. A suficiência subjectiva
é a convicção, a objectiva é a certeza. A fé refere-se à direcção imprimida ao
homem por uma certa ideia e à influência subjectiva que esta ideia exerce
sobre os actos da razão. Kant emprega este conceito de fé na Razão prática.

A Arquitectónica da razão pura é a arte do sistema, entendendo por sistema a


unidade de múltiplos conhecimentos englobados numa única ideia. Como sistema,
a filosofia é apenas um ideal, nunca uma realidade. Não se pode aprender a
filosofia, mas pode-se aprender a filosofar, isto é, a exercer a razão a
aplicar-se à consideração e à crítica dos seus próprios princípios. Mas o
conceito escolástico da filosofia como sistema pressupõe o conceito cósmico da
filosofia como ciência da relação de todo o

conhecimento com o fim essencial da razão humana e, neste sentido, o filósofo


não é um simples racio140

cinador (como são os outros homens de ciência) mas o <legislador da razão


humana". Como legislação da razão humana, a filosofia tem dois objectos, a
natureza e a liberdade: a filosofia da natureza dirige-se àquilo que existe, a
dos costumes àquilo que deve ser. Estas duas partes correspondem

ao uso especulativo e ao uso prático da razão pura e constituem, no seu


conjunto, a metafísica. A primeira parte da metafísica. da natureza é a
filosofia transcendental que estuda o entendimento e a razão nos seus
conceitos e princípios enquanto se referem a objectos em geral, mas sem
considerar quais são os objectos dados; uma segunda parte estuda a natureza,
isto é, precisamente, o conjunto dos objectos dados.

Na História da razão pura Kant esboça uma


espécie de classificação das doutrinas filosóficas, distinguindo-as no que
respeita ao objecto em sensualistas, como as de Epicuro, e intelectualistas,
como as de Platão; no que respeita às origens do conhecimento, em empíricas,
como as de Aristóteles e de Locke, e neologísticas (inatistas) como as de
Platão e Leibniz; no que respeita ao método, em naturalistas (ou dogmáticas),
cépticas, e científicas (isto é, críticas).

§ 525. KANT: ANALITICA DA RAZÃO PRÁTICA: MORALIDADE E SANTIDADE

A doutrina moral de Kant parece à primeira vista que elimina todos os limites
que a razão encon141

tra no seu uso teorético e que, portanto, abre ao homem as portas proibidas do
númeno. A razão prática confere realidade objectiva às ideias transcendentes
que a razão teórica devia considerar apenas como problemas. O homem como
sujeito da v 'da moral coloca-se no domínio do númeno; e a ,

consciência que teorèticamente o referia só a si mesmo apenas como fenómeno,


põe-no aqui em presença da sua essência numénica. O homem liberta-se, em
virtude dia lei moral, do determinismo causal a que está sujeito como ente que
vive na natureza e se considera positivamente livre, isto é, capaz de iniciar
uma nova série causal, independente da causalidade da natureza. As ideias de
alma e de Deus deixam de ser "transcendentes e reguladoras" para se tornarem
"imanentes: e ~ti"vas" do objecto da razão prática, o sumo bem. Parece, por
isso, que a vida moral abole um por um os limites que a vida teórica impõe ao
homem e dos quais extrai todos os valores possíveis.

Mas, por outro lado, este contraste entre a

Crítica da razão pura e a Crítica da razão prática esfuma-se ou assume outro


significado quando se confrontam os ternas fundamentais das duas obras.
Apercebemo-nos então da unidade fundamental da sua inspiração. Na Razão pura o
tema dominante é constituído pela polémica contra a arrogância da razão que
pretende ultrapassar os limites humanos. Na Razão prática o tema dominante é o
da polémica contra o fanatismo moral como veleidade de transgredir os limites
da conduta humana. A Razão pura opõe o conhecimento humano, fundado na
intuição

142

sensível dos fenómenos a um conhecimento problemático divino fundado na


intuição intelectual da coisa em si. A Razão prática opõe a moralidade humana,
que é o respeito da lei moral, à santidade divina, que é a conformidade
perfeita da vontade com a lei. Enfim, a Razão pura apresenta o númeno como
sendo a condição do agir do homem na investigação empírica; a Razão prática
apresenta o

númeno como condição do empreendimento moral.

O conceito kantiano da vida moral do homem funda-se na tese da natureza finita


do homem, isto é, na falta de um acordo necessário entro vontade e razão. Se a
vontade do homem estivesse já em si mesma necessariamente de acordo com a lei
da razão, tal lei não valeria para ele como um mandamento e não lhe imporia a
constrição do dever. A acção executar-se-ia infalivelmente em conformidade com
a razão. Mas a lei da razão é um imperativo e obriga o homem ao dever.
Portanto, o próprio princípio da moral implica um limite prático, constituído
pelos impulsos sensíveis, o por isso a finitude de quem deve realizá-la. "Para
um ser, diz Kant (K. p. V., V, A 37, p. 20), para quem o motivo determinante
da vontade é Somente a razão, a regra da razão é um imperativo, isto é, uma
regra que é caracterizada por um dever ser que exprime a necessidade objectiva
da acção e significa que, se a razão determinasse inteiramente a vontade, a
acção efectuar-se-ia infalivelmente segundo esta regra". A moralidade, por
outros termos, não é a racionalidade necessária de um ser infinito que se
identifica com a razão, mas sim a racionalidade possível

143

de um ser que tanto pode assumir, como não assumir, a razão como guia da sua
conduta.

Estes fundamentos são a base de toda a doutrina moral de Kant. Por eles, a
moralidade está tão afastada da pura sensibilidade como da racionalidade
absoluta. Se o homem fosse apenas sensibilidade, as suas acções seriam
determinadas pelos impulsos sensíveis. Se fosse só racionalidade, seriam
determinadas pela razão. Mas o homem é ao mesmo tempo sensibilidade e razão,
tanto pode seguir o

impulso como pode seguir a razão: nesta possibilidade de escolha consiste a


liberdade que dele faz uni ser moral. Para viver moralmente, o homem deve
transcender a sensibilidade. Isto implica não só que ele se subtrai aos
impulsos sensíveis, mas também que evita assumir como regra de acção qualquer
objecto de desejo. Como ser racional mas finito, o homem deseja a felicidade:
mas precisamente, enquanto objecto de desejo, a felicidade não pode ser o
fundamento de um imperativo moral.
O desejo não é um imperativo; tudo o que é objecto de desejo pode dar lugar a
máximas subjectivas, privadas de validez necessária, a imperativos
hipotéticos, que ordenam alguma coisa em vista de um fim, não a uma lei
objectivamente necessária, isto é que valha para todos os seres racionais
finitos. Os imperativos hipotéticos são os de qualquer técnica ou mesmo os da
prudência, que indicam os meios para se ser feliz. A lei moral é, ao invés, um
imperativo categórico que não tem em vista nenhum objecto, nenhum escopo
determinado, mas apenas a conformidade da acção à lei. DevWo a esta. exclu144

são de qualquer objecto do desejo, isto é, de qualquer escopo particular, o


imperativo categórico é puramente formal. Constitui, como lei, a própria
exigência de uma lei: obriga a vontade não a acções particulares, mas a toda a
acção que esteja conforme com a lei da razão. A lei moral não pode mandar
outra coisa senão proceder de acordo com

uma máxima que possa valer para todos. E, de facto, uma máxima que não possa
valer para todos, destrói-se a si mesma e introduz a cisão e o conflito entre
os seres racionais. A fórmula do imperativo categórico é então a seguinte:
"Age de modo a que a máxima da tua vontade possa sempre valer como principio
de uma legislação universal". Esta fórmula é a lei moral; vale para todos os
seres

racionais, quer sejam finitos ou infinitos; mas Somente para os homens é um


imperativo porque no homem não se pode supor uma vontade santa, isto é, uma
vontade que não seja capaz de uma

máxima contrária à lei moral. Para os seres finitos, a lei moral é, pois, um
imperativo e obriga categoricamente, porque a lei é incondicionada. A relação
de uma vontade fiai@a com esta lei é uma relação de dependência que se exprime
numa obrigação, isto é, em obrigar a uma acção conforme à lei. Esta acção
denomina-se dever; e a lei moral é assim a origem e o fundamento do dever no
homem.

A lei moral não procede do exterior. É um facto da razão pura no sentido do


que "somos consequentes dela a priori e que é apodicticamente certa, mesmo se
se supõe que na experiência não se pode encontrar nenhum exemplo da sua exacta
observân145

cia" (K. p. V. § 7; A 56). Sendo um facto, exclui a dedução, que, como se


disse (§ 519), não se

aplica à questão de facto. Ã Crítica da razão prática não se apresenta por


isso, como na Crítica da razão pura, o problema da dedução transcendental
sob a forma de uma demonstração da validez da lei moral; esta validez faz
parte do facto racional em que a lei moral consiste. Mas uma dedução
transcendental apresenta-se igualmente no âmbito da Crítica da razão prática
num sentido que Kant denomina de paradoxal: a saber, no sentido de que "o
próprio princípio moral serve de princípio na dedução de uma faculdade
imprescrutável, que nenhuma experiência pode provar mas que a razão
especulativa deve admitir como possível, ou seja, a faculdade da liberdade"
(lb., A 56). Assim, na medida em que a lei moral, como facto da razão, não tem
necessidade de nenhum fundamento que a justifique, demonstra que a liberdade é
não só possível mas real nos seres que reconhecem a lei como obrigatória. A
dedução transcendental, no domínio moral, assume, portanto, a forma da dedução
da liberdade à base da presença, no homem, da lei moral como facto de razão.
Tu deves, portanto podes, é a fórmula que, segundo Kant, resume a

dedução transcendental no domínio moral.

A lei moral permite estabelecer quer a liberdade negativa do homem, isto é, a


sua dependência para com a natureza, quer a sua liberdade positiva, ou seja, a
sua legislação autónoma. No entanto, tem um carácter puramente formal, visto
que, na realidade, apenas prescreve a renúncia por parte do

146

homem aos impulsos da sensibilidade e o seu determinar-se em virtude da pura


universalidade da razão.

o carácter formal da lei, a qual não obriga senão à conformidade com a lei,
tem sido frequentemente considerado uma abstracção e valeu à doutrina moral de
Kant a censura de negar a humanidade da vida moral. Na realidade, esse
carácter deriva precisamente da consideração de que a vida moral é vida
essencialmente humana e, portanto, supõe a presença da sensibilidade e o
perigo, para o homem, de se abandonar aos seus impulsos. Precisamente por isso
Kant afirmou a necessidade de subtrair a lei moral a todo o conteúdo e de a
reconhecer na sua forma. Um ser cujos desejos tivessem já a validez objectiva
da lei, que não pudesse desejar senão aquilo que a razão impõe, não teria
ideia do carácter formal da lei moral, e nem sequer da própria lei como
imperativo. Mas, dado que o homem é não só razão, mas também sensibilidade, a
sua vida moral é, em primeiro lugar, o

abandono da sensibilidade como motivo de acção e o decidir-se em conformidade


com a pura forma da lei.

Isso explica a função essencial que o carácter formal da lei exerce em toda a
doutrina moral de Kant. Kant serve-se dele em primeiro lugar para a crítica de
todas as doutrinas morais que se

fundam no princípio material, isto é, que deduzem a lei moral de qualquer


objecto do desejo. Kant estabelece a seguinte tábua dos

147

MOTIVOS MATERIAIS DETERMINANTES DA VIDA MORAL


(dada a sua complexidade, deverá ser compulsada pelo livro)
Subjectivos

OBJECTIVOS

Externos

Internos

Internos

Externos

da edudo governo

do sentido sentide perfeida vontade

cação

civil

mento

mento

ção (wolff

de Deus

(Mandepolítico

moral

e os estói(Crusius e

ville)

(Epicuro)

(Hutebecos)

os demais

son) 1

teólogos)
Os motivos subjectivos, quer exteriores quer internos, são todos empíricos e
não podem, por isso servir de fundamento a uma obrigação moral incondicional.
Tal obrigação seria de facto condicionada por circunstâncias externas (de
educação ou de governo) ou então por um sentimento e não se justificaria na
sua validez universal. Tais motivos subjectivos poderiam, quando muito,
explicar efectivamente a presença da moralidade em certos homens ou grupo de
homens, mas não justificaria o carácter absolutamente obrigatório da lei
moral. Que a educação ou o governo ou um sentimento meu qualquer me determinem
a agir de um modo determinado, isso nada me diz ainda acerca do valor deste
modo de agir, isto é, sobre a minha obrigação real para com ele. Mas o mesmo
se pode dizer também dos movimentos objectivos. A perfeição ou a vontade de
Deus só podem tomar-se como motivos de acção se as considerarmos como factores
ou elementos da nossa felicidade. Dependem, portanto, do desejo da

148

felicidade e não justificam a validez de uma lei que obriga


incondicionalmente.

Em segundo lugar, o formalismo da lei moral permite a Kant estabelecer o


princípio de que "o conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da
lei moral, mas apenas depois dela e mediante ela". O homem é um ser dotado de
necessidades enquanto faz parte do mundo sensível e a sua razão tem também o
encargo, que não pode recusar, de converter-se em instrumento de tais
necessidades e, por consequência, de contribuir para a satisfação destas e
para a sua felicidade. Mas a razão não é apenas unia maneira particular de que
a natureza se serve para orientar o homem para o mesmo fim para que encaminhou
os animais, isto é , o bem-esW, .
O homem pode e deve servir-se da razão para um

fim superior e, por conseguinte, considera o que é bem em si mesmo, e não


apenas relativamente às suas necessidades; neste caso, a razão é usada para um
juizo que, do ponto de vista sensível, é absolutamente desinteressado, e que é
o único juizo verdadeiramente moral. Neste juizo sobre o bem e sobre o mal em
si, a razão determina a vontade imediatamente, isto é, não em vista dos
objectos do desejo, e a vontade converte-se em razão pura prática. A vontade,
cuja máxima está conforme com a lei moral, é portanto boa absolutamente, a
todos os respeitos, e é condição suprema de todo o bem É evidente, de facto,
que todos os outros bens, até mesmo a habilidade ou o engenho humano, podem
ser

mal usados, e por isso não são bens em sentido absoluto; a vontade boa é, ao
invés, bem em sentido

149

absoluto e é a única coisa incondicionalmente boa. Mas para ser tal, não basta
que se conforme com

a lei, é necessário ainda que actue unicamente em vista da lei. Se a acção


escolhida pela vontade, embora se conforme com a lei moral, não se executa em
vista da lei mas por um outro fim sugerido pelo modo ou pela esperança, não é
uma acção moral porque não é uma acção determinada imediatamente pela lei
moral Isto leva a considerar os móbeis da acção moral.

Kant distingue a este propósito a legalidade da moralidade: a legalidade é a


conformidade com a
lei de uma acção que todavia se faz por um outro

motivo de natureza sensível, por exemplo, a fim de evitar um dano ou obter uma
vantagem. <A moralidade é, pelo contrário, a conformidade imediata da vontade
com a lei, sem o concurso dos impulsos sensíveis. Ora, dado que o conjunto dos
impulsos, cuja satisfação constitui a felicidade, é o amor de si (ou egoísmo),
a acção que realiza a moralidade e, por conseguinte, a liberdade, é a
eliminação do egoísmo e, em primeiro lugar, da presunção que antepõe o eu e os
seus impulsos à lei moral. Mas a acção negativa da liberdade sobre o
sentimento é também um sentimento, o único sentimento moral: o respeito. E o
respeito não é apenas o móbil da moralidade, mas toda a moralidade considerada
subjectivamente, já que só abatendo toda a pretensão do amor de si se confere
autoridade à lei e se lhe permite adquirir predomínio sobre o homem. Kant
insiste no facto de que a moralidade como respeito é uma condição própria do
homem como ser racional

150

finito. "0 respeito é uma acção sobre o sentimento, logo sobre a


sensibilidade, de um ser racional: supõe, portanto, esta sensibilidade e,
juntamente com ela, a finitude dos seres a quem a lei moral impõe respeito. A
um ser supremo ou, pelo =nos livre de toda a sensibilidade e ao qual por isso
a sensibilidade não possa ser um obstáculo para a razão prática, não se pode
atribuir respeito pela lei" (K. p. V., A, 134-35).

Do conceito de móbil deriva o de interesse moral, que não é mais do que a


representação do móbil da vontade mediante a razão. No conceito de interesse
se funda, ademais, o de máxima. E estes três conceitos, o de móbil, o de
interesse e o de máxima, só podem ser aplicados aos seres finitos. "Supõem, de
facto, uma limitação na natureza de um ser, no qual a natureza subjectiva do
seu livre-arbítrio não está em si mesma de acordo com a lei objectiva de uma
razão prática; supõem a necessidade de serem de algum modo estimulados à
actividade porque um obstáculo interno se lhes opõe. Por isso não se podem
aplicar à vontade divina" (K. p. V., A 142).

Estes esclarecimentos fundamentais permitem entender o significado da


afirmação kantiana da natureza numénica da vida moral. A vida moral é a
constituição de uma natureza supra-sensível na qual a legislação moral
sobreleva a legislação natural. A natureza sensível dos seres racionais é a
sua existência sob leis condicionadas empiricamente: por isso, esta natureza
é, para a razão, heteronomia. A natureza supra-sensível é autonomia porque
está

151

sob o domínio da pura razão. Ao passo que a

natureza sensível é uma natureza a que a vontade racional está submetida, a


natureza supra-sensível está submetida à vontade porque tem o seu fundamento
na razão prática. A natureza supra-sensível é, portanto, o produto da vontade
livre, ou seja, da vontade conforme com a lei, e sob este aspecto a fórmula
do imperativo categórico pode-se também exprimir assim: "Age como se a
máxima da tua acção se devesse tornar, por tua vontade, lei universal da
natureza &. (Grund1. Zur Met. der Sitten, A 82-83). Das duas expressões do
imperativo categórico, a primeira ("Age de modo a que a máxima da tua
vontade possa sempre valer de lei universal", e esta última, dão a forma
do próprio imperativo, A matéria deste imperativo, quer dizer, o

fim, é dada pela subjectividade dos próprios seres racionais. @,, De


facto, o imperativo categórico implica o reconhecimento dos outros
sujeitos morais para as quais a lei deve poder valer, e, portanto,
inclui, o respeito pela sua dignidade. De sorte que o imperativo
categórico pode também. assumir esta segunda forma: "Procede de modo a

tratar a humanidade, na tua pessoa como na dos outros, sempre como fim, nunca
como simples meio". Esta segunda fórmula supõe que a universalidade da lei
moral é o acordo sobre um determinado objecto, nem a uniformidade da acção dos
vários sujeitos, mas apenas o reconhecimento da dignidade humana das demais
pessoas como da própria. Tal reconhecimento faz com que todos os homens como
sujeitos morais constituam um reino dos fim, isto é,

152

uma "união !sistemática de seres racionais", da qual todo o membro é


legislador e súbdito. Neste reino, nenhum ser racional finito pode aspirar ao
lugar de soberano, porque nenhum é perfeitamente independente, sem
necessidade, e cujo poder não seja limitado. Mas todos participam nele,
mediante o a~ da liberdade que os constitui em pessoas. Todavia, dado que cada
membro do reino dos fins é não só súbdito mas também legislador, o imperativo
categórico pode exprimir-se por esta terceira fórmula: "Age de modo a que a
vontade possa considerar-se a si mesma, mediante a sua máxima, como
legisladora universal" (lb., A 84), que é a fórmula que exprime da maneira
mais completa a autonomia do homem como sujeito moral.

As três fórmulas do imperativo categórico mostram como a actividade moral do


homem tende à realização de um mundo que não é o da natureza em~ e das suas
leis necessárias. Todavia, este mundo não pode realizar-se se se opuser à
natureza sensível e às leis que a regem: a sua própria possibilidade não tem
outro horizonte nem outra via para se afirmar senão a própria natureza
-sensível. Aqui está a raiz da exigência paradoxal de que o homem como sujeito
da liberdade valha como númeno. A moralidade supõe o encontro de duas
causalidades independentes, a da li@bertação e a do niccanisino natural; e
este encontro verífica-se no homem. O homem deve ser, por um lado,
relativamente à liberdade, um ser em si, por outro, relativamente ànecessidade
, natural, um fenómeno (K. p. V., A 6 e nota). Mas afirmando-se como númeno, o
homem não

153

anula a sua natureza sensível. A sua numenalidade mobiliza a sua


fenomenalidade; o mundo supra-sensível que estabelece no acto da sua
liberdade, é a forma da própria natureza sensível. A causalidade livre, que dá
lugar à natureza supra-sensível é, decerto, espontaneidade, mas não é criação.
A numenalidade do sujeito moral não significa o abandono da sensibilidade nem
a ruptura de todos os laços com o mundo sensível. o homem, como sujeito moral,
não se identifica. com a razão, a moralidade nunca é conformidade completa da
vontade com a lei, nunca é santidade.

A oposição entre moralidade e santidade é o tema dominante da Crítica da razão


pura e o fundamento da sua última parte, a "Doutrina do método". A santidade
exclui a possibilidade de se subtrair à lei e torna inútil o imperativo e a
coacção do dever. Mas a moralidade é uma obrigação e implica uma violência
feita aos impulsos. Dever e obrigação são os únicos nomes apropriados à
relação do homem com a lei moral. "Nós somos, decerto, membros legisladores de
um reino moral tornado possível pela liberdade e representado pela razão
prática como objecto de respeito; mas somos os súbditos, não o soberano desse
reino, e assim o desconhecer a nossa condição inferior de criaturas, o recusar
presunçosamente a autoridade da lei, é já uma infidelidade ao espírito da lei,
mesmo quando se lhe observe a letra" (K. p. V. A 147). A santidade é, pois,
reservada a Deus e é reconhecida, juntamente com a

beatitude e a sabedoria, uma das propriedades que só lhe pertencem a Ele,


porque supõem a ausência

154

de limites ( Ib., A 237, no-ta). Mas nem o homem nem nenhuma criatura racional
pode atribuir-se a santidade senão por uma presunção ilusória.

Tal presunção é o fundamento do fanatismo moral. Este pretende cumprir a lei


de bom grado, em virtude de uma inclinação natural, e assim substitui a

virtude, que é a intenção moral em luta com o mundo, pela santidade de uma
suposta pureza' de intenções absoluta. O fanatismo moral incita os homens às
acções mais nobres, mais sublimes, mais magnânimas, apresentando-as como
puramente meritórias; e assim substitui o respeito por um móbil patológico,,
porque se funda no amor de si e determina uma maneira de pensar leviana,
superficial e

fantástica, pela qual o orgulho de uma bondade espontânea, que não necessita
nem de esporas nem de freio, aniquila a humildade da simples submissão ao
dever (K. p. V., A 151-52). O preceito cristão que manda amar Deus e o próximo
pretende, ao

invés, subtrair este amor à inclinação natural; e assim garante a pureza da


moralidade e a sua proporção aos limites dos seres finitos; submete o homem à
disciplina de um dever que não o deixa vangloriar-se de perfeições morais
imaginárias e lhe impôs os limites da humildade, isto é, da sinceridade
consigo mesmo (lb., A 152). consequentemente , o método da razão prática, isto
é, a via para assegurar ao imperativo moral a máxima eficácia sobre o homem,
visa fundamentalmente à destruição do fanatismo moral. Deve promover, a
"representação clara e severa do dever, mais conforme com a imperfeição humana
e

o Progresso do bem".

155

§ 526. KANT: DIALÉCTICA DA RAZÃO PRÁTICA: POSTULADOS E FÉ MORAL

A acção moral do homem tem como objectivo ou

termo final o sumo bem. O sumo bem para o homem, que é um ser finito,
consiste, não só na virtude, mas também, na união da virtude e da felicidade.
A virtude é, de facto, o bem supremo, quer dizer, a condição de tudo o que é
desejável; mas

não é o bem completo e perfeito para seres racionais finitos, que têm também
necessidade de felicidade. "Ter necessidade da felicidade e ser digno dela, e
todavia não participar dela, não é compatível com o querer perfeito de um ser
racional que tivesse ao

mesmo tempo a omnipotência: somente, procuramos figurar um tal sem. Mas


virtude e felicidade não estão por si mesmas unidas. O esforço em ser-se

virtuoso e a busca da felicidade são duas acções diferentes: uma não implica a
outra. A identidade entre virtude e felicidade foi admitida pelos epicúreos e
pelos estóicos, pois, que os primeiros consideram implícita a virtude na busca
da felicidade e os segundos consideram a felicidade implícita na consciência
da virtude. Mas, na realidade, virtude e felicidade constituem uma antinomia,
e a condição que toma possível a primeira (o respeito pela lei moral) não
@influi sobre a segunda, nem a condição que torna possível esta (o adequar-se
às leis e ao mecanismo causal do mundo sensível) torna possível a

virtude. De certo modo, a felicidade deve ser uma consequência da virtude, não
no sentido de que esta pode produzir a felicidade segundo o mecanismo das

156

leis naturais, mas no sentido de que torna o homem digno dela e por isso
justifica a esperança de a obter. Contudo, para ser propriamente digno da
felw-1lade o homem deve,poider promover até ao infinito o seu aperfeiçoamento
moral. Só a santidade, isto é, a conformidade completa da vontade à lei, torna
o

homem digno da felicidade e constitui a condição do sumo bem, isto é, da união


perfeita da virtude com a felicidade. Mas, diz Kant (K. p. V. 2 220), a

santidade é uma perfeição de que nenhum ser racional do mundo sensível é capaz
em momento algum da sua existência. Só se pode alcançar tal perfeição mediante
um progresso até ao infinito desde os graus inferiores até aos graus
superiores da perfeição moral. Mas este progresso até ao infinito ,só é
possível se se admitir a imortalidade da alma; a imortalidade é, portanto, um
postulado da razão prática, isto é, "uma. proposição teórica, mas como

tal indemonstrável, enquanto está indissoluvelmente ,unida a uma lei prática


que vale incondicionalmente a priori". Ademais, dado que a união da virtude
com a felicidade não se verifica segundo as leis do mundo sensível, só pode
ser o fruto de uma vontade santa e omnipotente, isto é de Deus. De sorte que,
assim como a realização da primeira condição do sumo bom, isto é, da virtude,
implica a imortalidade da alma, assim a realização do segundo elemento do sumo
bem, isto é, da felicidade proporcionada à moralidade, implica a existência de
Deus. Kant nota que não é um dever crer na existência de Deus, mas apenas uma
necessidade; e que nem sequer a existência de Deus é necessária para o dever,
uma

157

vez que este se funda na autoridade da razão. O postulado, como necessidade da


razão prática, é antes urna fé, e precisamente uma fé racional porque é
sugerido por aquele conceito do sumo bem a que o homem tende como ser racional
finito.

Os postulados da razão prática permitem reconhecer com segaridade o que à


razão especulativa parecia simplesmente problemático: a realidade da alma como
substância indestrutível, a do mundo como domínio da liberdade humana, e a de
Deus como garante da ordem moral. O que ora transcendente para a razão
especulativa, torna-se inwnente para a razão prática. Todavia, esta extensão
da razão pura ao plano prático não implica uma

similar extensão do conhecimento teórico. Admitir os postulados não significa


conhecer os objectos nuMÉnicos a que se referem. "Com tais conceitos, diz Kant
(K. p. V., A 240), nós não conhecemos nem a natureza da nossa alma, nem o
mundo inteligível, nem o ser supremo, no que em si mesmos são, mas conglobamos
apenas os conceitos destas coisas no conceito prático do sumo bem como objecto
da nossa vontade completamente a priori, com a razão pura, e também fizemos
isto apenas mediante a lei moral e só, relativamente a ela, em vista do
objecto a que ela se refere".

Chegámos aqui, certamente, a um ponto crucial da filosofia de Kant, um ponto


que parece encerrar

uma dificuldade insuperável. Por que é que o homem


- pode-se perguntar - uma vez certo, embora só no plano prático, da realidade
supra-sensível, não pode fazer valer tal certeza também no domínio teórico?
Se,

158

como diz Kant, esta certeza nada nos diz acerca do modo por que os seus
objectos são possíveis, acerca do modo, por exemplo, como se pode representar
positivamente a acção causal da vontade livre, diz-nos todavia, dos objectos
numénicos, que existem, e existem absolutamente. Assim, o limite da
experiência é superado e o homem adquire uma certeza positiva para lá da
experiência e parece ilegítimo encerrar o conhecimento nestes limites. O
"primado da razão prática parece contrastar de modo evidente com a limitação
do conhecimento humano dentro das possibilidades, empíricas, que é o grande
ensinamento da Crítica da razão pura4, Não é de admirar, deste ponto de vista,
que os intérpretes e seguidores de Kant que tomaram à letra a doutrina do
primado da razão prática, nunca tenham tomado à letra as limitações que Kant
lhe impôs, proibindo qualquer uso teórico da mesma e recusando-se a considerá-
la, sob qualquer ponto de vista, como uma extensão do conhecimento. Todavia,
as afirmações de Kant são tão instantes e repetidas a

este propósito que fazem supor que os motivos que as sugeriram deviam decerto
parecer-lhe decisivos; e decisivos são na realidade, com respeito aos
pressupostos fundamentais da filosofia de Kant. O postulado é, na sua
expressão, "uma proposição teórica"; mas, não é um acto teórico da razão, isto
é, um acto que, do ponto de vista teórico, tenha qualquer validade. Kant
adverte que, mesmo depois de a razão haver dado um grande passo, admitindo a
realidade dos objectos numénícos, não lhe resta, com respeito a tais objectos,
senão uma tarefa negativa, isto é,

159

o impedir, por um lado, o antropomorfismo, que é a origem da superstição, ou


seja, da extensão aparente daqueles conceitos mediante uma pretensa
experiência, e, por outro lado, o fanatismo que promete tal extensão mediante
uma intuição supra-sensível ou um sentimento do mesmo género (K. p. V., A 244-
45).+A realidade é atribuída às ideias numénicas unicamente "no que respeita
ao exercício da lei moral",4Ib., A 248). Não é possível fazer nenhum uso delas
para os fins de uma teologia naitura,1 ou
da física. O postulado nada mais é do que uma

necessidade do ser moral finito; e a palavra "necessidade" revela o carácter


prático do mesmo.*4W-ma necessidade da razão pura ,prática tem como fundamento
o dever de fazer de algo (do sumo bem) o objecto da minha vontade, para o
promover com todas as minhas forças: mas neste caso eu devo supor a
possibilidade dele e, portanto, também as

suas condições, isto é, Deus, a liberdade e a imortalidade, porque não as


posso demonstrar mediante a minha razão especulativa, conquanto nem sequer as
possa refutar., A 256). E tal necessidade não implica nenhuma certeza mas
apenas uma fé problemática que é a única adequada à condição do homem. No
parágrafo final da Dialéctica da razão prática, intitulado "Da @proposição
sabiamente conveniente das faculdades de conhecer do homem com respeito à sua
determinação prática", parágrafo muitas vezes esquecido para a elucidação
deste ponto de vista da doutrina kantiana, Kant mostra como qualquer certeza
que o homem possa ter da realidade supra-sensível destruiria a vida moral do
ho160

mem. Neste caso, de facto, "Deus e a eternidade, perante os nossos ' olhos
(já que o que podemos demonstrar perfeitamente equivale certamente ao que
podemos descobrir mediante a vista). A transgressão da lei seria certamente
impedida, tudo quanto se

manda-se seria cumprido; mas como a intenção, que origina as acções, não nos
pode ser imposta por um mandamento e o aguilhão da actividade seria aqui
sempre imediato e exterior, a razão nunca teria necessidade de esforçar-se e
de reunir as forças às inclinações mediante a viva representação da dignidade
da lei, assim a maior parte das acções conformes à lei seriam feitas por
temor, apenas umas tantas por esperança e nenhuma pelo dever; de modo que o
valor moral das acções, o único de que depende o valor da pessoa e do mundo
aos

olhos da sabedoria suprema, não existiria para nada. A conduta do homem (desde
que a sua natureza permanecesse como é), transformar-se-ia num puro mecanismo,
no qual, como no teatro de fantoches, todos gesticulariam sem que as figuras
tivessem vida. Ora, as coisas passam-se de uma maneira muito diferente: apesar
de todo o esforço da nossa

razão, temos uma visão do mundo obscura e duvidosa, e aquele que rege o mundo
deixa-nos apenas conjecturar, e não ver nem demonstrar claramente, a sua
existência e a sua majestade; a lei moral, sem nada de certo nos prometer e
sem nos ameaçar, exige de nós o respeito desinteressado; e só quando este
respeito se torna activo e dominante, só então, e só graças a ele, se, pode
lançar um olhar, e, mesmo assim, com vista dé bil, ao reino do supra-sensível.

161

Deste modo pode ter lugar uma intenção verdadeiramente moral e consagrada
imediatamente à lei, e a criatura racional pode tornar-se digna de participar
no sumo bem, que é adequado ao valor moral da sua pessoa e não apenas as das
suas acções" (1b., A
265-266). Estas palavras de Kant que lembram as

de Pascal sobre o "Deus, que se esconde" (§ 425) esclarecem com exactidão o


alcance do chamado primado da Razão prática. Convertem os postulados da razão
prática no analogon exacto das ideias da razão pura; assim como estas últimas
são simplesmente as condições da investigação científica que em virtude delas
pode progredir em extensão e em

unidade até ao infinito, assim os postulados são as condições do empenho moral


do homem e do seu indefinido aperfeiçoamento. E como condições do empenho
moral, os postulados devem ter o mesmo

carácter que as ideias da razão pura: devem valer problematicamente, quer


dizer não podem dar uma

certeza inabalável que seja directamente contrária à condição do homem e que


tornaria impossível à própria vida moral. O postulado não autoriza a dizer eu
existo mas apenas eu quero. "0 homem justo pode dizer: eu quero que haja um
Deus; que a minha existência neste mundo, mesmo para lá da conexão natural,
seja também uma existência num mundo puro do entendimento e, enfim, que a
minha duração não tenha fim; eu insisto nisto e não deixo roubarem-me esta fé,
sendo este o único caso em que o meu

interesse, já que nada posso descurar, determina inevitavelmente o meu juizo,


sem ligar a sofismas,

162

mes~ que não seja capaz de os deixar ou de lhes contrapor outros mais
especiosos" (lb., A 258).

§ 527. KANT: O MUNDO DO DIREITO E DA HISTÓRIA

Vimos que a simples conformidade de uma acção com a lei constitui a


legalidade, ao passo que na moralidade a acção é feita unicamente pelo
respeito da lei À legalidade falta, pois, para ser moralidade, a intenção
moral: ela é compatível também com a conformidade à lei por uma razão
diferente do simples respeito da lei, isto é, por uma inclinação natural de
temor ou de esperança. O direito funde-se no conceito da legalidade.

Kant expõe a doutrina do direito na primeira parte da Metafísica dos costumes


(1797), cuja segunda parte é a "Doutrina da virtude", isto é, uma análise dos
deveres do homem para consigo mesmo e

para com os outros, assim como uma "metodologia moral" que comprende uma
"didáctica moral" e

uma "Ascética moral". A segunda parte da Metafísica dos costumes é uma


minuciosa causística da vida moral, construída de harmonia com as doutrinas
éticas de Kant, e oferece pouco interesse. A doutrina do direito apresenta, ao
invés, aspectos notáveis que vamos examinar. Por legislação jurídica entende
Kant a legislação que admite como motivo da acção um impulso diferente, da
ideia de dever. Os deveres impostos pela legislação jurídica são, portanto,
deveres exteriores, porquanto ela não exige que a

163

ideia interna do dever seja por si mesma um motivo determinante da vontade do


agente. Ao passo que a legislação ética é a que não pode ser externa, a

legislação jurídica é a que pode ser também externa e por isso se serve de uma
imposição não puramente moral, mas de facto, e actua como força obrigatória. O
direito trata da relação externa de urna

pessoa para com outra, enquanto as suas acções ,podem, de facto, exercer
influências umas sobre as outras. É o conjunto das condições pelas quais a

vontade de um concorda com a vontade do outro, segundo uma lei de liberdade; e


a fórmula desta lei é a seguinte: "Age eternamente, de modo que o livre uso do
teu arbítrio possa harmonizar-se com a

liberdade de todos os outros, segundo uma lei universal".

Todavia, esta lei, não espera obter a sua realização mediante a boa vontade
dos indivíduos particulares; implica a possibilidade de uma imposição exterior
que intervém para impedir, ou pelo menos anular, o efeito de possíveis
violações. Kant divide o direito em direito inato, dado a todos pela natureza,
independentemente de qualquer acto jurídico, e em direito adquirido, que nasce
apenas de um acto jurídico. O único direito inato é a liberdade, a liberdade
de todos os outros. O direito adquirido é, pois, o direito privado, que define
a legitimidade e os limites da posse das coisas exteriores, ou direito
público, que trata da vida social dos indivíduos numa comunidade juridicamente
ordenada. Esta comunidade é o estado. Kant distingue, tal como Montesquieu,
três poderes do estado: o legislativo,

164

O executivo e o judicial, e atribui, tal como Rousseau, o poder legislativo à


vontade colectiva do povo. Este poder deve de facto ser tal que não possa
praticar injustiças contra ninguém; e esta garantia só se obtém se cada um
decidir o mesmo para todos e todos para cada um, mas só mediante a vontade
colectiva do povo. Kant, no entanto, nega a legitimidade da rebelião do povo
contra o soberano legítimo e condena as revoluções inglesa e francesa que
processaram e executaram os seus soberanos.

É notável que Kant tenha extraído dos seus conceitos morais uma justificação
da pena jurídica que se afasta muito da dos juristas do iluminismo. A punição
jurídica (diferente do castigo natural do vício que se pune a si mesmo) deve
aplicar-se aoréu, não como um meio para obter um bem, seja em proveito do
criminoso, seja em proveito da sociedade civil, mas unicamente porque cometeu
um delito. De facto, o homem nunca é um meio mas sempre um fim; não pode ser,
portanto, ser utilizado como exemplo pelos outros, mas deve ser considerado
merecedor de punição antes ainda que se possa pensar em extrair de tal punição
qualquer utilidade para ele próprio e para os seus concidadãos. Kant chega a
dizer que, mesmo que a sociedade civil se

dissolvesse com o consenso de todos os seus membros (no caso, por exemplo, de
o povo de uma ilha decidir separar-se e dispersar-se pelo mundo), o

último assassino que se encontrasse preso deveria antes ser justiçado; e isto
a fim de que o sangue derramado não recaia sobre o povo que não aplicou

165

o castigo o que poderia então ser considerado cúmplice desta violação pública
da justiça.

Na última secção da doutrina do direito, Kant considera a possibilidade de um


direito cosmopolíta, fundado na ideia racional de uma perpétua associação
pacífica de todos os povos da terra. Kant observa que não se trata de ver se
tal fim pode ser alguma vez atingido praticamente, mas antes de dar-se conta
do seu carácter moralmente obrigatório. A razão moralmente prática, diz, opõe
em nós o seu veto irrevogável: não deve haver guerra nem entre os indivíduos
nem entre os estados. Não se trata, pois, de ver se a paz perpétua é real ou
algo sem sentido; em qualquer caso, devemos agir como se

ela fosse possível (o que talvez não seja) e estabelecer as instituições que
pareçam mais aptas a alcançá-la. Pois, ainda que isto não passasse de um
desejo Piedoso, nunca nos enganaríamos impondo-nos a máxima de tender à sua
realização a todo o custo, porque se trata de um dever. A este dever obedecera
Kant, indubitavelmente, alguns anos antes (1795) ao escrever o seu projecto
Para a paz perpétua, no qual reconhecia as condições da paz na constituição
republicana dos estados particulares, na federação dos estados e, finalmente,
no direito cosmopolita, isto é, no direito de um estrangeiro a não ser tratado
por inimigo no território de outro estado. Mas, acima de tudo, via a maior
garantia da paz no
respeito por parte dos governantes das máximas dos filósofos (segundo o ideal
platón3co) e no acordo entre política e moral, efectuado mediante a máxima "a
honestidade é melhor do que toda a política".

166

O ideal racional de uma economia pacífica de todos os povos da terra é,


segundo Kant, o único fio condutor que pode e deve orientar o homem através
das vicissitudes da sua 1iistór@a. Kant não considera que a história. dos
homens se desenvolva segundo um plano preordenado e infalível como a vida das
abelhas ou dos castores. Nu-ma recensão (1785) sobre o escrito de Horder,
Ideias sobre a filosofia da história dá humanidade, Kant nega a possibilidade
de descobrir na história uma ordem harmónica e progressiva, um desenvolvimento
natural e contínuo de todas as potências do espírito. O plano da história
humana não é uma realidade, mas antes um ideal orientador em que os homens
devem inspirar as suas acções e que o filósofo pode apenas aclarar na sua
possibilidade, mostrando-a conforme ao destino natural dos homens. Tal é
precisamente o intuito de Kant nas Ideias para uma história universal do ponto
de vista cosmopolita (11784). Aqui propõe-se Kant ver se o livre jogo das
acções humanas torna possível, no decurso da história, um plano determinado,
embora não necessário, que sirva de escopo final do desenvolvimento histórico
da humanidade. Começa por observar que todas as tendências naturais dos seres
criados tendem a desenvolver-se completamente em conformidade, com o seu
corpo. Um órgão, por exemplo, que não deva ser

usado, uma ordenação que não atinja a sua finalidade, são contrárias à
ordenação teleológica da natureza. Ora, a tendência natural do homem é a de
alcançar a felicidade ou a perfeição através do uso

da razão, isto é, através da liberdade: e o homem

167

só pode alcançá-las verdadeiramente numa sociedade política universal, na qual


a liberdade de cada um não encontre outro limite senão a liberdade dos outros.
O plano natural da história humana não pode ser, portanto, senão a realização
de uma sociedade política, universal que compreenda sob uma mesma legislação
os estados diversos e garanta assim o desenvolvimento completo de todas as
capacidades humanas. A natureza, para atingir os seus fins, vale-se do
antagonismo que existe em todos os homens entre a sua tendência para a
sociabilidade e a tendência para o isolamento, antagonismo que, sem que os
homens o pretendam, os impele à actividade e

ao trabalho e, por consequência, ao empenho de todas as suas forças. "As


árvores num bosque - diz Kant a este propósito - procuram tirar umas às outras
o ar e a luz e por isso crescem belas e direitas, ao passo que em liberdade e
afastadas umas das outras estendem os seus ramos para todos os lados e crescem
enroscadas e retorcidas. Da mesma maneira, a civilização e a arte, que são os
ornamentos da humanidade, e a ordem social evoluída, são fruto da
insociabilidade que por si mesma é compelida a disciplinar-se e a desenvolver
plenamente, através da arte, o germe da natuireza". Estas considerações
exprimem de maneira característica o procedimento fundamental de Kant.
Precisamente no limite que a tendência para a sociabilidade encontra na
tendência oposta, Kant vê a garantia de todo o possível progresso da mesma
sociabilidade e, assim, de um

caminho da história humana para uma organização política universal em que se


garante a cada indivíduo

168

a máxima liberdade compatível com igual liberdade dos outros. É de notar que
se trata de um progresso possível, não necessário e infalível. Por isso, o
único uso que se pode fazer deste plano é que o seu

conceito torne possível uma investigação filosófica que tenha por fim mostrar
como a história universal deve dirigir-se para a unificação política do género
humano.

§ 528. KANT: O Juízo ESTÉTICO

Assim como a Crítica da razão pura analisa as

condições do conhecimento teórico e a Crítica da razão prática a da conduta


social, assim a Crítica do juízo analisa as condições da vida sentimental. Com
a terceira obra de Kant faz o seu ingresso na filosofia esta nova categoria
espiritual que era desconhecida na divisão tradicional das faculdades da alma,
fundada na distinção entre faculdade teórica e faculdade prática. Os
pressupostos históricos desta inserção são as análises dos empiristas
ingleses, e especialmente de Schaftesbury e de Hume, bem como dos moralistas
franceses e especialmente de Rousseau. Kant afirma: "Todos os poderes ou
faculdades da alma podem reduzir-se a três, os quais não podem ser
ulteriormente reduzidos a um princípio comum:

o poder cognitivo, o sentimento do prazer ou da dor

e o poder de desejar (K. d. U., Int., § 111). Kant caracteriza o sentimento


como o aspecto irredutivelmente subjectivo de toda a representação, e à
análise dos sentimentos e das paixões dedicou depois inúmeras páginas na sua
Antropologia pragmática.

169

Na Crítica do Juízo o seu primeiro escopo é o de determinar a natureza do


critério ou do cânone dos juizos fundados no sentimento, isto é, no gosto.

Kant chama reflexivo ao juizo próprio da faculdade do sentimento. O homem que


deve realizar a sua liberdade na natureza e sem se opor ao mecanismo dela, tem
necessidade de que a própria natureza esteja de acordo com a sua liberdade e
de algum modo a torne possível com as suas próprias leis. Mas o acordo entre a
natureza e a liberdade, que é, além disso, a exigência e o princípio
fundamental da vida moral, não resulta de um juizo objectivo porque as
exigências da vida moral não constituem os objectos naturais que estão
condicionados apenas pelas categorias do entendimento. Pode resultar, de uma
reflexão sobre os objectos naturais que são já, como tais, determinados pelos
princípios do entendimento. O juizo do sentimento não determina, como o do
entendimento, a constituição dos objectos fenoménicos mas reflecte sobre estes
objectos já constituídos para descobrir o seu acordo com as exigências da vida
moral. Kant chama determinante ao juizo do entendimento, e reflexivo ao

juizo do sentimento. Ora, tal acordo pode ser

apreendido imediatamente sem o trâmite de um conceito, e então é um juizo


estético; pode ser pensado, mediante o conceito de fim, e então o juizo é
teleológico. O juizo estético e o juizo teleológico são as

duas formas, uma subjectiva, a outra objectiva, em que se realiza o juizo


reflexivo: a primeira tem por objecto o prazer do belo e a faculdade com que
se

julga tal prazer, isto é, o gosto. A segunda tem

ZD

170

por objecto a finalidade da natureza, que exprime o acordo desta com as


exigências da liberdade, isto é, da vida moral do homem.

O juizo reflexivo não tem valor cognitivo porque contém apenas os princípios
do sentimento de prazer e de desprazer, independentemente dos conceitos e das
sensações que determinam. a faculdade de desejar; também nada tem em comum com
a razão, a qual determina o homem (mediante o imperativo categórico)
independentemente de qualquer prazer. É evidente que a faculdade do juizo pode
ser própria apenas de um ser finito como é o homem. Radica-se, de facto, na
necessidade de harmonizar o acordo da natureza com as exigências da liberdade;
e esta necessidade deriva da impossibilidade, em que a subjectividade humana
se encontra, de constituir a natureza até ao ponto de a tornar dócil e pronta
às necessidades fundamentais. Evidentemente, se o

conhecimento pudesse criar ou constituir as coisas com v3sta, a essa liberdade


que é própria do homem, as coisas estariam constitutivamente dispostas a
dirigir-se para a liberdade como seu escopo final, e

o acordo entre natureza e liberdade seria objectivo, isto é, intrínseco e


essencial às coisas mesmas: mas neste caso, o juizo reflexivo, que funda
apenas subjectivamente o acordo, seria inútil. O homem não teria necessidade
de sentir ou de figurar subjectivamente "mediante o conceito de fim" a
conformidade das coisas com as próprias necessidades, se conhecesse esta
conformidade como lei objectiva da natureza. O limite do conhecimento, devido
ao qual este não é criação mas síntese da multiplicidade, impede

171
que entre na constituição dos seus objectos tudo quanto se refere à estrutura
moral do homem. E então a conformidade entre os objectos com tal estrutura é
apenas uma necessidade do homem, necessidade que é satisfeita, é certo, pela
função reflexiva do juízo mas apenas subjectivamente e não dá lugar ao
conhecimento. A Crítica do juízo é, por consequência, desprovida daquele
aspecto polémico que domina a

Critica da razão pura e a Crítica da razão prática, ambas dirigidas contra a


arrogância teórica e o fanatismo moral. No âmbito do seu objecto nem sequer é
possível a ilusória veleidade de transpor os limites do homem; e este objecto
funda-se inteiramente em tais limites.

O juizo estético, como imediata apreensão da conformidade da natureza com a


liberdade, é o prazer do belo. Este prazer é puramente subjectivo: não dá
qualquer conhecimento, nem claro nem confuso, do objecto que o provoca. Ao
mesmo tempo, carece de interesse porque não está ligado à realidade do
objecto, mas apenas à representação dele.
O prazer sensível é interessado porque é a satisfação de um desejo ou de uma
necessidade, tornada possível pela realidade do objecto a que o desejo ou a
necessidade se refere. Mas no prazer estético a realidade do objecto é
indiferente, porque o que satisfaz é a

pura representação do objecto mesmo. Ora, o órgão para julgar os objectos do


sentimento é o gosto.
O gosto é, portanto, a faculdade de julgar um objecto ou uma representação
mediante um prazer ou um desprazer isento de interesse; e o objecto de, um
prazer semelhante diz-se belo. A natureza subjec172

tiva do sentimento do belo não exclui a sua universalidade; só que esta


universalidade não consiste na

validez objectiva própria do conhecimento intelectual, mas na


comunicabilidade, isto é, na possibilidade de ser partilhado por todos os
homens. Kant define o belo como sendo "o que, agrada universalmente sem

ZD

conceito" (K. d. U., § 9). E distingue a beleza livre (por exemplo das flores)
que não pressupõe nenhum conceito, e a beleza aderente (por exemplo, a de um
homem ou de uma igreja), que pressupõe o conceito daquilo que a coisa deve
ser, isto é, da sua perfeição. Evidentemente, a beleza aderente não é um puro
juizo de gosto, precisamente porque supõe o conceito do fim a que a coisa
julgada deve adequar-se; mas é um conceito de gosto aplicado, e complicado com
critérios intelectuais. Neste sentido, diz que "a beleza é a forma da
finalidade de um objecto na

medida em que é nele precedida sem a representação de uma finalidade" (1b., §


17). O juizo do gosto, sendo puramente subjectivo, não tem a necessidade do
juizo intelectual, sobre o qual todos estão de acordo, Se se quer admitir a
sua necessidade é necessário admitir que existe um senso comum, em virtude do
qual todos devem estar de acordo sobre o juizo de gosto. Mas este senso comum
é uma pura norma ideal, que não pode ter a pretensão de determinar de facto o
acordo universal. Kant exprime a necessidade subjectiva do juizo de gosto
dizendo que "o belo é o que é reconhecido sem conceito como objecto de um

prazer necessário" (1b., § 18).


O sentimento estético como sentimento do belo tem, como se viu, a sua raiz na
impotência do ho173

mem como sujei-to moral, perante a natureza; o homem transforma esta


impotência, aceitando-a como tal, numa faculdade positiva: a que garante
subjectivamente o acordo entre a natureza e a liberdade e a apreensão imediata
da finalidade danatureza. Este carácter do sentimento estético rei ainda mais
clara-mente no sentimento do sublime. Este sentimento é suscitado ou pela
grandeza desmesurada da natureza (sublime matemático) ou pela sua desmesurada
potência (sublime dinâmico). A grandeza desmesurada da natureza determina no
homem a consciência da sua insuficiência para apreciá-la mediante os sentidos
e, por consequência, um sentimento de pena. Mas o reconhecimento desta
insuficiência, conformando-se com as ideias da razão, que estabelecem
precisamente o limite da sensibilidade, transforma a pena no prazer do
sentimento do sublime. "A qualidade ido sentimento do sublime, diz Kant (K. d.
U., § 27) é a de ser, em relação a um objecto, um sentimento de pena, que é
representado, ao mesmo tempo como final; isto é possível, porque a nossa
própria impotência revela a consciência de um poder ilimitado do próprio
sujeito, e o sentimento pode julgar esteticamente esta última só por meio da
primeira".

Do mesmo modo, perante o desmesurado poder da natureza, o homem sente o seu


poder reduzido a uma pequenez insignificante e é tomado de temor. Mas ao
reconhecer a impossibilidade de resistir ao poder da natureza e a própria
debilidade, descobre a sua superioridade e a independência do seu

destino em relação a esse poder desmesurado, dado que, ainda que tivesse de
sucumbir, o seu valor pró174

priamente humano permaneceria intacto (K. d. U., § 28). O sentimento do


sublime dinâmico transforma em poder humano, em superioridade de valor moral
humano, a inferioridade física em que o homem se sente perante a natureza. O
sublime, em geral, é definido por Kant como "um objecto da natureza cuja
representação leva a pensar a inacessibilidade da natureza como representação
de ideias" (1b., 28, Observação).

A Crítica do juízo adopta o procedimento e as

divisões da Crítica da razão pura: contém, portanto, uma Analítica e uma


Dialéctica do juizo estético, e uma Analítica do juízo teleológico. A
analítica do juízo estético contém também uma Dedução dos juízos estéticos,
dedução que no entanto se refere apenas aos juízos do belo porque a dedução
sobre os juizos do sublime está já implícita, segundo Kant, na exposição do
princípio que os rege. Com efeito, tais juízos, referem-se, não aos objectos
mas às suas relações de proporção ou de desproporção com as

nossas faculdades cognitivas; de sorte que a referência ao objecto, que a


dedução deveria justificar, está já justificada pelo facto de que o objecto,
como pura relação das faculdades cognitivas, é interior a

estas últimas. O juizo do belo, pelo contrário, refere-se aos objectos


externos e por isso necessita de dedução. Esta dedução deve ter em conta o
significado particular que a universalidade e a necessidade têm nos juizos de
gosto, os quais são universais só no

sentido de poderem ser comunicados aos outros e necessários só como fundamento


de um sentido comum a todos os outros homens. Assim, Kant
175

estabelece que o juízo do gosto pode pretender legitimamente à universalidade


porque se funda nas condições subjectivas da possibilidade de um conhecimento
em geral e a proporção destas faculdades cognitivas, que o gosto requer,
também a requer a inteligência comum, a qual se pode supor em toda a gente.
"Precisamente por isso aquele que julga em matéria de gosto (sempre que tenha
uma justa consciência do seu juízo e não confunda a matéria com a forma, a
atracção com a beleza) pode exigir de todos os outros a finalidade subjectiva,
ou seja, o prazer que nasce do objecto, e consMerar o seu sentimento como
universalmente comunicável, sem a intervenção de conceitos" (K. d. U., § 39).
Quanto ao senso comum, que é o fundamento da necessidade dos juízos de gosto,
deve entender-se por tal "a ideia de um senso comunicável, isto é, de uma
faculdade de julgar que na sua reflexão consMera a priori o modo de
representação de todos os demais, a fim de manter o juízo nos limites da razão
humana e

evitar a ilusão de considerar como objectivas as

condições subjectivas e particulares que possam facilmente ser confundidas com


as objectivas (1b., § 40). Kant, estabelece a este propósito, três máximas que
valem para o senso comum estético como para senso comum em geral, ou seja,
para o

uso racional e fundamentado das faculdades humanas. A primeira máxima é a de


pensar por si e evitar a passividade da razão. A passividade da razão leva à
heteronimia da razão, ou seja, ao preconceito; e o

pior de todos os preconceitos é a superstição que con176

siste em supor que a natureza não está submetida às regras necessárias do


entendimento. A libertação da superstição, e, em geral, dos preconceitos, é o
iluminismo; e assim o próprio Kant vê na sua obra crítica uma expressão e uma
exigência próprias do ilumi*nismo. A segunda máxima é a de pensar pondo-se no
lugar dos outros e alargar o modo de pensar do homem elevando-o acima das suas
condições particulares de juizo. A terceira máxima é a de pensar de modo a
estar sempre de acordo consigo mesmo; esta é a máxima da coerência.

A doutrina do juízo estético só se refere verdadeira à beleza natural. Mas


Kant identifica a beleza artística com a natural, e chama arte bela a uma arte
que tem a aparência da natureza. "Perante um

produto da arte bela - diz (K. d. U., § 45), é necessária ter consciência de
que se trata de arte e não de natureza; mas a finalidade da sua forma deve
apresentar-se livre de toda e qualquer imposição de regras arbitrárias,
precisamente como se fosse um produto da natureza. A natureza é bela quando
tem a aparência da arte, e, por sua vez, a arte não pode ser considerada bela
senão quando a consideramos como natureza, embora sendo cônscios de que é
arte. O mediador entre o belo natural e o belo artístico é o género na medida
em que é a disposição inata (ingenium) por meio da qual a natureza fornece a
regra da arte. Para julgar os objectos é necessário o gosto; mas para a
produção de tais objectos é necessário o génio. Este é constituído, segundo
Kant, pela união (numa determinada rela177

Ção) entre a imaginação e o entendimento; união na qual o entendimento, como


princípio do gosto, intervém para disciplinar a liberdade sem freio da
imaginação. Da imaginação procede a riqueza e a espiritualidade da produção
artística; do entendimento ou do gosto derivam a ordem e a disciplina desta.
As artes belas exigem, pois, imaginação, entendimento, espírito e gosto (1b.,
§ 50).

A Dialéctica do juizo estético tropeça na antinomia segundo a qual, por um


lado, se afirma que o juizo de gosto se funda nos conceitos enquanto não pode
ser provado mediante demonstrações e, por outro, se diz que deve fundar-se nos
conceitos, pois, de contrário, não poderia obter a necessária aprovação dos
outros. A antinomia resolve-se facilmente observando que, se o juizo de gosto
não se funda nos conceitos na medida em que não é um juizo de conhecimento, se
funda no entanto na faculdade do juízo que é comum a todos os homens, e na
medida em que constitui o acordo das representações sensíveis com um fim
implícito desta faculdade. Kant põe a claro a este propósito a idealidade do
finalismo que se revela na beleza, tal como pôs em relevo na Crítica da razão
pura a idealidade (a fenomenalidade) dos objectos dos sentidos. Assim como
esta última torna possível que eles sejam determinados pelas formas a priori
da sensibilidade e do entendimento, assim a primeira torna possível a validez
do juizo de gosto, que pode pretender à universalidade, ainda quando não se
funde nos conceitos.

178

§ 529. KANT: O Juízo TELEOLóGICO

o acordo entre a natureza e a liberdade, além de ser percebido imediatamente


no juízo estético, pode também ser pensado mediante o conceito de fim. Em
virtude deste conceito, o escopo da natureza vem a ser o de tornar possível a
liberdade como vida do sujeito, ou soja, do homem: esta consideração forma o
juízo teleológico. Ora, o juízo teleológico é, como o estético, um juízo
reflexivo: não determina a constituição dos objectos mas prescreve apenas uma
regra para a consideração subjectiva dos mesmos. Não se pode descobrir e
estabelecer dogmaticamente a finalidade da natureza; não só não se pode
decidir se as coisas naturais exigem ou não, para a sua produção, uma
causalidade inteligente, como tão-pouco se pode pôr o

problema de tal causalidade porque a realidade objectiva do conceito de fim


não é demonstrável (K. d. U., § 74). Todavia, o homem deve admitir que,
segundo a natureza particular da sua faculdade cognitiva, não pode conceber a
possibilidade das coisas naturais, e especialmente dos seres vivos, se não
admitirmos uma causa que actue segundo fins e, por isso, um ser com
inteligência. Desta maneira, toma-se legítimo como juízo, reflexivo o que é
ilegítimo como juízo intelectual, pois que, enquanto para o juizo intelectual
a finalidade deveria ser determinante e constituir a ordem objectiva da
natureza, para o juízo reflexivo, é uma simples ideia que é destituída de
realidade e vale apenas como

179

norma de reflexão, a qual permanece todavia aberta à explicação mecânica da


natureza e não saí do mundo sensível (1b., § 71). Com o juízo intelectual o
homem afirmaria o finalismo como sendo próprio do objecto e seria obrigado a
demonstrar a realidade objectiva do conceito de fim. Mediante o juizo
teleológico não faz mais do que determinar o emprego das próprias faculdades
cognitivas, conformemente à sua natureza e às cond."- s essenciais do seu
alcance e dos seus limites (1b., § 75).
O juízo teleológico não constitui de modo algum um preconceito e um limite
para a investigação do mecanismo natural. Não pretendo substituir esta
indagação, mas tão-somente suprir à sua deficiência com uma investigação
diferente, que não proceda segundo leis mecânicas, mas segundo o conceito de
fim (K. d. U., § 68). Mas esta pesquisa não permite afirmar verdadeiramente
seja o que for em sentido objectivo e teórico. Nem mesmo a teleologia mais
perfeita poderia demonstrar que existe um ser inteligente , causa da natureza.
Se se quisesse exprimir de modo objectivo dogmático o juízo teleológico,
dever-se-ia dizer: "Há um Deus, mas a nós, homens, só nos é permitido empregar
esta fórmula limitada: não podemos pensar e compreEnder a finalidade que deve
estabelecer-se como fundamento da possibilidade intrínseca de muitas coisas
naturais sem a fígurarmos e sem figurar o mundo em geral, como o produto de
uma causa inteligente (Deus)". (1b., § 75). Esta expressão satisfaz
perfeItamente as exigências especulativas e práticas da razão do ponTo de
vista

180

humano e pouco importa que não seja possível demonstrar a sua validade para
seres superiores, ou

seja, de um ponto de vista objectivo (Ib).

Tudo isto demonstra que a consMeração finalístich é própria unicamente do


homem, isto é, de um ser

pensante finito. Uma faculdade de intuição perfeitamente espontânea


(criadora), como poderia ser a de um entendimento divino, não veria nada que
fosse causalidade mecânica, mesmo onde (como nos organismos vá vos) o
entendimento humano sente a necessidade de recorrer à causalidade inteligente
do fim. Um entendimento intuitivo determinaria necessariamente as coisas até
nas suas últimas particularidades e assim as subordinaria a si mesmo na sua
constituição intrínseca. O entendimento humano, que procede discursivamente,
não determina a constituição das coisas particulares mas só as condições
gerais de qualquer objecto: a sua conformidade com as coisas particulares é,
por isso, não necessária, mas contingente, e enquanto tal representável como
um fim (K. d. U., § 77).

Disse-se já que a consideração finalística deve coexistir com a explicação


mecânica dos fenómenos da natureza. Devemos procurar explicar mecanicamente o
que consideramos um fim da natureza (por exemplo, um ser vivo); mas não
poderemos prescindir da consideração teleológica porque "não há nenhuma
razão humana (e nem mesmo nenhuma razão superior à nossa em
grau, mas semelhante em qualidade) que possa esperar compreender por causas
mecânicas a produção, quer de um

181

solo, quer de uma erva" (K. d. U., § 77). A explicação mecânica e a


consideração teleológica, na medida em que se opõem, são entre si
complementares. A consideração teleológica não pode servir de explicação da
natureza". Mesmo que se admitisse que um supremo arquitecto teria criado
instantaneamente as formas da natureza, tais como existiram sempre, ou
predeterminado as que no curso

da natureza se realizam continuamente segundo o


mesmo modelo, o nosso conhecimento da natureza não progrediria de modo algum,
porquanto nós não conhecemos de facto o modo de agir daquele ser

nem as suas ideias, as quais devem conter os princípios da possibilidade das


coisas naturais e não poderíamos por isso explicar por elas a priori a
natureza em toda a sua amplitude" (1b., § 78). E se se

quisesse passar das coisas particulares aos seus fins e

tomar estes como princípios de explicação, obter-se-ia apenas uma explicação


tautológica e verbal e o homem desvanecer-se-ia no transcendente, onde só pode
fantasiar poeticamente mas não elaborar uma

explicação qualquer (1b.). Por outro lado, querer a

todo o custo uma explicação mecânica completa e

excluir inteiramente o princípio teleológico, significa abandonar a razão a


divagações tão quiméricas como

as que surgem nas tentativas de explicação teleológica.


O valor de tal explicação é o de um princípio heurístico para a busca de leis
particulares da natureza. Resta, pois, o dever de explicar mecanicamente,
tanto quanto as nossas faculdades o permitem, todos os produtos e
acontecimentos da natureza, mesmo os

182

que revelem a maior finalidade, sem que, no entanto, este dever exclua (dada a
deficiência daquela explicação) a consideração teleológica (1b., § 78).

Na Metodologia do juizo teleológico, Kant determina o uso que se pode fazer de


tais juizos relativamente àquela fé racional que já a Crítica da razão pura
esclarecera do ponto de vista prático. Começa por observar que a teleologia
como ciência não pertence nem à teleologia nem à ciência da natureza, mas sim
à crítica, e à crítica de uma faculdade particular do conhecer, isto é, à
crítica do juizo. Com efeito, ela não é doutrina positiva, mas antes ciência
de limites ( K. d. U., § 79). Contudo, permite reconhecer no homem o escopo
final da criação: sem o homem, isto é, sem um ser racional, a criação inteira
seria um deserto inútil (1b., § 86). Mas o

homem é o fim da criação como ser moral, de modo que a consideração


teleológica serve para demonstrar que para o homem a consecução dos fins, que
ele se propõe como sujeito moral não é impossível, dado que tais fins são os
mesmos que os da natureza em que vive. Neste sentido, a teleologia torna
possível uma prova moral da existência de Deus. A moralidade é, sem dúvida,
possível mesmo

sem a fé na existência de Deus, porque é fundada unicamente na razão, mas esta


fé garante também a

possibilidade da sua realização no mundo (1b., § 9). Não obstante, insiste, a


este respeito, sobre a impossibilidade de utilizar teorèticamente, isto é,
como um saber objectivo, o resultado da consideração teleológica.

183
§ 530. KANT: A NATUREZA DO HOMEM E O MAL RADICAL

A análise crítica de Kant reconheceu em todos os campos os limites do homem e


fundou precisamente sobre estes limites as efectivas possibilidades humanas.
Assim, o limite do conhecimento, restringido aos fenómenos, garante a validez
do saber
O

intelectual e científico; o limite da vontade, que não atinge nunca a


santidade do perfeito acordo com a

razão, constitui o carácter imperativo da lei moral * faz da moralidade o


respeito da lei mesma; enfim, * limite da espontaneidade subjectiva do homem,
que não chega a determinar a constituição intrínseca das coisas, torna
possível a vida do sentimento e garante a validade do juizo estético e
teleológico. Ora, o

próprio problema do Ilimite constitutivo da natureza humana é abordado por


Kant na sua última obra fundamental, A religião nos limites da pura razão
(1793), obra que resume e conclui a longa investigação de Kant e lança por
isso a luz mais viva sobre os interesses que constantemente a dominaram.

Em primeiro lugar, em que sentido se pode falar de uma natureza do homem? Não
se pode decerto entender por este termo o contrário da liberdade, isto é, um
impulso necessário, como seria, por exemplo, um impulso natural; quer dizer,
neste caso, a

natureza humana não poderia receber a qualificação de boa ou má em sentido


moral, porque tal qualificação só pertence propriamente a um acú0 livre o
responsável. Por natureza do homem deve, pois, entender-se apenas "o princípio
subjectivo do uso da

184

liberdade" e tal princípio deve ser, por sua vez, entendido como um acto de
liberdade. Se o não fosse, o uso da liberdade seria determinado e a própria
liberdade seria impossível (Die Religion, B 7). Neste princípio deve,
portanto, radicar-se a possibilidade do mal e a inclinação do homem para o

mal. Ora, se tal princípio é um acto de liberdade, esta inclinação não é uma
disposição física, que não poderia imputar-se ao homem, nem uma tendência
necessária qualquer. Portanto, não pode ser senão uma máxima contrária à lei
moral, máxima aceite pela liberdade mesma e, portanto, de per si
continente. ,C

A afirmação "o homem é mau" significa apenas que o homem tem consciência da
lei moral e, não obstante, adoptou a máxima de por vezes, se afastar, dela. A
afirmação o homem é mau por natureza" significa que o que se disse vale para
toda a espécie humana, o que não quer dizer que se trate de uma qualidade que
possa ser deduzida do conceito da espécie humana (ou de homem, em geral), já
que seria neste caso necessária, mas só que o homem, tal como se oonhece por
experiência, não pode ser

julgado diferentemente e, por isso, pode supor uma tendência para o mal em
todos os homens e mesmo no melhor dos homens. Dado que tal tendência para o
mal é moralmente má e, portanto, livre e responsável, enquanto consiste apenas
em
máximas de livre arbítrio, pode por isso ser chamada um mal radical e i~o na
natureza humana, ma@J de que, todavia, o próprio homem é a causa

(1b., B. 72). O mal radical não pode ser destruído

185

pelas forças humanas porque a destruição deveria ser obra das boas máximas, o
que é impossível se o princípio subjectivo supremo de todas as máximas estiver
corrompido; mas deve ser vencido, a fim de que o homem seja verdadeiramente
livre nas suas

acções. O mal radical é devido à fragilidade da natureza humana que não é


bastante forte para pôr em prática a lei moral; à impureza que impede de
separar uns dos outros os motivos das acções e

de agir só por respeito à lei; e, enfim, à corrupção pela qual o homem se


determina por máximas que subordinam o móbil moral a outros móbiles. O mal
radical não se encontra, portanto, como se crê comummente, na sensibilidade do
homem e nas inclinações naturais que nela se fundam. O homem não é responsável
pelo facto de haver uma sensibilidade e

de existirem inclinações sensíveis, ao passo que é responsável pela sua


inclinação para o mal. Com efeito, esta inclinação é um acto livre que se lhe
deve imputar como um pecado de que é culpado, conquanto tenha raízes profundas
na própria liberdade, graças à qual ela deve ser reconhecida como naturalmente
intrínseca ao homem. O mal radical nem sequer é uma perversão da razão, como
legisladora moral. Tal perversão suporia que a razão poderia, ela própria,
destruir em si a autoridade da lei e renegar a obrigação que procede desta,
mas isto é impossível. Como princípio do mal moral, a sensibilidade é
suficiente, uma vez que, eliminando-se o móbil da liberdade, reduzir-se-ia o
homem à pura a ~dade. A razão perversa, ou seja, liberta comPletarnente da
lei, é, ao invés, excessiva, porque

186

erigiria em motivo de acção a oposição à lei moral e reduziria o homem a uma


vontade diabólica. Ora, o homem, diz Kant (1b., B 332) não é nem besta nem
diabo.

Dado que está radicado na própria natureza do homem, o mal não pode ser
eliminado. Pouco importa que o homem tenha adoptado uma intenção boa e se lhe
mantenha fiel; ele começou pelo mal e este é um débito que não lhe é possível
liquidar. Mesmo supondo que, após a sua conversão, não contraia novas dívidas,
isto não o autoriza a crer que se encontre livre da dívida antiga. Tão-pouco
pode com o seu bom comportamento adquirir uma reserva, fazendo mais do que é
obrigado a fazer de cada vez, já que o seu estrito dever é fazer sempre tudo
quanto pode fazer. Além disso, trata-se de um débito que não pode ser
resgatado por outro, de uma dívida intransferível, que é a mais pessoal de
todas as obrigações; o homem contraiu-a com o pecado e mais ninguém, a não ser
ele próprio, pode carregar com o peso dela. Por isso, o resgate total da
dívida originária não pode seu senão um acto de graça, que não é devido ao
homem, mas

lhe é concedido mercê de um salvador: o Verbo, o filho de Deus, no qual se


personifica a ideia da humanidade na sua perfeição moral. À ideia do Filho de
Deus como personificação da humanidade perfeita se opõe a ideia do diabo, que
é a representação popular do mal radical. O sentido desta representação é o de
que a única salvação para os homens consiste em aceitar intimamente os
verdadeiros princípios morais; e que a esta aceitação se opõe não a

187

sensibilidade, que tão frequentemente se condena, mas uma certa perversidade,


que é, em si mesma culpada, e pode também chamar-se falsidade (o engano do
demónio com o qual entrou o mal no mundo), perversidade inerente a todo o
homem e que só pode ser vencida com a ideia do bem moral na sua perfeita
pureza. A confiança nesta vitória, diz Kant, não pode ser suprida
supersticiosamente por expiações que não provenham de uma mutação interior; ou
fanaticamente por iluminações interiores, puramente passivas, que afastam (em
vez de aproximarem) do bem fundado na actividade pessoal (Die Religíon, B
116). E também é inútil a crença nos milagres. O homem pode de bom grado
admitir que influências celestes colaborem com ele na sua obra de
aperfeiçoamento moral; mas, uma vez que não é capaz de as distinguir das
naturais nem de as atrair sobre si, nunca pode comprovar um milagre e deve por
isso limitar-se a comportar-se como se toda a

conversão e todo o melhoramento dependessem apenas dos seus esforços (1b., B.


121).

Quanto à origem última do mal radical, Kant considera que é incompreensível.


Uma vez que é imputável ao homem enquanto princípio fundamental de todas as
máximas, deveria ser, por sua vez, o resultado da adopção @de uma máxima má;
mas assim vemo-nos evidentemente lançados num processo até ao infinito, de
máxima em máxima, não se podendo encontrar um princípio de determinação do
livre arbítrio que não seja uma máxima. Com o reconhecimento desta
impenetrabílidade termina a

análise kantiana da natureza humana originária.

188

§ 531. KANT: RELIGIÃO, RAZÃO, LIBERDADE

Os conceitos fundamentais de uma religião considerada nos limites da razão


derivam todos do princípio do mal radical, enquanto constitutivo da natureza
humana. Na verdade, tais conceitos não exprimem senão as condições que tomam
possível ao homem combater com êxito o princípio do mal que nele existe.

Se o homem se encontra na perigosa condição de ser exposto continuamente às


agressões do princípio do mal e de dever salvaguardar a sua liberdade perante
os contínuos ataques daquele deve-o a uma culpa própria; deve, por isso, nos
limites do possível, empregar a força de que dispõe para sair de tal situação.
Ora, uma vez que o homem sofre ,os mais perigosos assaltos do mal na vida
social (Kant aqui faz sua a análise de Rousseau), o triunfo do bem só é
possível numa sociedade governada pelas leis da virtude e que tenha por fim
estas mesmas

leis. Evidentemente, esta não é uma sociedade jurídico-civil mas uma sociedade
ético-civil, ou melhor, uma república moral. A república moral - simples ideia
de uma sociedade que compreenda todos os

homens justos - é uma igreja que, enquanto não é objecto de experiência


possível, se chama igreja invisível. A igreja visível é a união efectiva dos
homens num todo que concorda com este ideal (Die Religion, B 142). A igreja
invisível é universal porque se funda na fé religiosa pura, que é uma pura fé
racional e por isso pode comunicar-se a todos com força persuasiva. Não tem
necessidade de revelação.

189

Mas a debilidade particular da natureza humana impede de fundar uma igreja


visível unicamente sobre a fé racional. Os homens não se persuadem facilmente
de que esforçar-se por viver moralmente é a

única coisa que Deus lhes pede para os considerar como súbditos do seu reino.
Só sabem conceber

a sua obrigação sob a forma de um culto que é necessário prestar a Deus; culto
em que não se trata do valor moral das acções, mas antes do seu cumprimento ao
serviço de Deus e para que Deus as

aceite, mesmo que se tratem de acções moralmente indiferentes. Torna-se assim


necessário admitir que Deus estabeleceu outras leis, além das puramente morais
que ressoam claramente no coração do homem; e uma vez que tais leis não podem
ser conhecidas pela pura razão, requer-se uma revelação que, enquanto feita a
alguém privadamente ou anunciada publicamente para ser difundida por tradição,
é sempre uma crença histórica e não uma pura crença racional. A fé revelada
pressupõe, no entanto, a fé racional pura e deve fundar-se nesta. "A fé
eclesiástica, diz Kant (1b., B 174), como fé histórica, começa por causa da fé
na revelação, mas, uma vez que esta é apenas o veículo da fé religiosa pura
(que é o verdadeiro fim) é necessário que aquilo que nesta última, como crença
prática, é a condição (ou seja, a máxima da acção) constitua o ponto de
partida e que a máxima da ciência ou da crença especulativa actue apenas como
confirmação e coroamento dela". Por outros termos, o critério

e o guia de toda a religião histórica é a fé racional pura, ou seja, o agir


moral nas suas condições. Só

190

esta se deve considerar a religião natural (Ib., B 23 7). Ademais, só esta é


uma fé livremente adoptada por todos (fides elicita), ao passo que a religião
revelada implica uma fé comandada (fides imperata) (Ib., B
248). Quem admite apenas a religião natural é um

racionalista. Mas o racionalista deve, em virtude do seu próprio nome,


encerrar-se nos limites das possibilidades humanas. Deve por isso evitar o
naturalismo que exclui em absoluto a realidade do supra-sensível e não
contestar dogmaticamente a possibilidade intrínseca de qualquer revelação
(racionalismo puro) (1b., B 230-31).

Consequentemente, Kant afirma que considerar a

fé regulamentada (que em todos os casos se restringe a um povo só e não pode


valer como religião universal) essencial a todos os cultos divinos e dela
fazer a condição suprema da benignidade de Deus para com o homem é urna
loucura religiosa que dá lugar a um falso culto, isto é, a uma maneira de
adorar a divindade directamente, contrária ao verdadeiro culto divino.
Exceptuando um bom comportamento, tudo o que os homens julgam dever fazer para
merecerem a benevolência de Deus é pura ilusão religiosa e falso culto (Die
Religion, B 255). A ilusão de poder, com actos de culto, contribuir para uma
justificação de si perante Deus é a superstição religiosa. A ilusão de poder
atingir tal objectivo com a aspiração a um pretenso comércio com Deus, é a
fantasmagoria religiosa. Kant não exclui nem

condena as práticas do culto, mas tais práticas nunca devem tomar o lugar do
verdadeiro culto, que é a

conduta moral. "0 verdadeiro iluminismo, diz Kant

191

(,b., B 276), está nesta distinção; o culto de Deus torna-se graças a ele um
culto divino e, portanto, um culto moral. Se, em lugar da liberdade dos filhos
de Deus, se impõe ao homem o jugo de uma lei positiva e a obrigação absoluta
de crer em coisas que só podem ser conhecidas historicamente e que, por
conseguinte, não podem convencer a todos, cria-se um jugo que para o homem
consciencioso é ainda mais pesado do que todo o fardo das práticas piedosas
com que se sobrecarrega". A conclusão da análise kantiana da religião é uma
confirmação dos resultados da Crítica da razão pura e da Crítica da razão
prática. Não se pode conceber outra forma de fé que não seja a fé racional, a
fé prática, que reconhece a possibilidade do supra-sensível unicamente
enquanto tal possibilidade reforça a acção moral do homem. Transformar esta
possibilidade numa afirmação dogmática significa tornar impossível ao homem,
não só a sua vida teorética e moral, mas a própria religião, que se converte
em superstição.

Neste empenho em manter ao mesmo tempo os limites da razão e a autonomia dos


seus poderes, consiste o que Kant chamava o seu racionalismo. Os escritos dos
seus últimos anos são, na sua maioria, dirigidos contra as tentativas de
evasão que escritores e filósofos contemporâneos vinham efectuando para fugir
aos limites da razão e para alcançar um domínio em que fosse possível conhecer
com

exactidão o que a razão não pode atingir. O domínio a que habitualmente


recorriam era o da fé ou da intuição mística; contra tal recurso escreveu
Kant. Que significa orientar-se no pensar, (1786), Sobre o

192

fanatismo, (1790), Sobre o tom nobre da filosofia, (1795), e o prefácio ao


escrito de Jachmann, (1800).
O mais importante destes escritos é Orientar-se no

pensamento, com o qual Kant, intervindo na polémica entre Mendelssohn e


Jacobi, reivindica uma vez mais para a razão o papel de guia único do homem na
filosofia e na vida. Mendelssohn e Jacobi haviam travado polémica um com o
outro, mas estavam de acordo, como veremos (§ 535), em atribuir à fé o que é
negado à razão, ou seja, a capacidade de um contacto directo, e absolutamente
certo, com a realidade e sobretudo com a realidade suprema: com

Deus. Ora, segundo Kant, mesmo que houvesse um

órgão como o que Mendelssom e Jacobi denominavam de fé, tal órgão seria
incapaz de provar a

existência de um Ser cuja grandeza não é comparável com a de nenhuma


experiência ou intuição humana; e esse órgão poderia apenas servir de estímulo
à razão para ver se pode chegar a provar a existência de um ser dessa espécie.
Em última análise, porque só a razão permanece o árbitro da noção de Deus e da
convicção da sua existência (Wass heisst: Sich im denken orientieren?, A 320-
21). Em qualquer caso, segundo Kant, subtrair-se à razão significa cair no
fanatismo e o fanatismo é a negação da liberdade. É bem certo que a liberdade,
se limitada à esfera interna da consciência, não é coercível por meios
externos. Mas também é verdade que tal liberdade interior é pouco ou nada se
se tira aos homens a de comunicarem abertamente entre si os seus pensamentos.
Uma doutrina que faz apelo a uma

revelação interior tende a tornar inútil e a negar esta

193

Uberdade e tende, antes, a provocar uma inquisição nas consciências que impeça
à razão de se afastar da pretensa verdade revelada. Kant termina o seu escrito
com um apelo patético, que é, por assim dizer, o resumo da sua filosofia:
"Amigos da humanidade e do que há de mais santo para ela, aceitai também o que
vos parecer mais digno de fé após um exame atento e sincero, quer se trate de
factos, quer se trate de princípios racionais, mas não recuseis à razão o que
a torna o bem mais alto sobre a terra: o privilégio de ser a última pedra de
toque da verdade" (lb., A 329).

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 510. Sobre a vida de Kant a obra fundamental continua a ser a do seu


contemporâneo L. E. BOROWSKI, Dar8telIung der Lebm und Charakter I. K. s,
Conisbeorga, 1804. Além desta: F. W. SCHUBERT, I. K. s. Biographie na ed. de
Rosenkranz das obras de Kant, XI, 2. Leipzig, 1842: e todas as monografias
citadas mais adiante.

§ 511-513. As primeiras edições completas dos ~tos de Kan@t foram as de G.


Haitenstein, 10 vol., Leipzig, 1838-39; e de K. Rosenkranz e F. W. Schubert,
em 12 vol., Le@pzig, 1838-42. Entre as numerosas edições sucessivas, é notãv&
a de E. Cassirer, 10 vol., Berlim, 1912,22, a que se seguiu outro volume. o
11.1 CASSIRER, Kants leben und L-ehre. Mas a mais completa edição crítica é a
publicada pela Academia das Ciêncías de Berlim, que compreende os seguintes
volumes: vol. 1, Vorkritische Schriften (1747-56), 1910; vol II, Vorkritische
Schriften (1757-77), 1912; vol Ul@ Kritik der "n--r Vernunft (2.@ ed., 1787),
1911; vol. rV, Kri194

tik der reinen Vernunft (1.1 ed., 1781), Prolegomena, GrundlL--gun zur
Metaphysik der Sitten, Metaphysi&che Anfangsgründe des Natu~senschaft, 1911,
voL V, Kritik der pTaktischen Vernunft (1788), Kritik der Urteilskraft (1790),
1913; vol. VI, Die ReUgion inuerhalb der Grenzen der Blossen Vernunft (179,3),
Die Metaphysik, der Sitten, (1797), 1915; vol. VII, Der Streit der P4kultãten
(1798), Anthropologie in pragnwtischer Hinsicht (1798), 1917; vol. VIII,
AbhandIungen nach 1781, 1923; vol. IX, Logik, Physische Geographie und
Pãdagogik, 1923; vol. X, Briefwechsel (1747-88), 1922; vol. XI, Briefwechsel,
(1789-194), 1922; vol. XIII, Briefwechsel (1795-1803), 1922; vod. XIII, Brie-
fwechseZ, Anmerkungen und Register, 1922; voL XIV, Handscriftlicher Nachlass
I, Math~tik, Physik und Chem@e, Physische Geographie, 1911, vod,. XV,
Handschriftlicher Nachlass 11, AntropoZogie, 1913; vol. XVI, Handschriftlicher
Nachlass III, Logik, 1924; vol. XVII, Handschriftlicher Nachl"s IV,
Metaphysik,
1926; vol XVIII, Handschriftlicher Nachl"s V, Metaphysik, 1928; vol. XIX,
Handschriftlicher NachIass VI,
1M4; voll. XX, Handschrftlieher Nachkss, VII, 193,5, vol. XX1,
Handschriftlicehr NwhIass VIII, Opus postumum, 1936; HandschriftUcher NachIass
IX, Opus postumum, 11, 1938; vol. XXIII, Vorbereiten und Nachtrãge, 1955.

Nas citações do texto referem~ as pá~ destas edições; as letras A e B referem-


se respectivaniente à 1.1 e à 2.1 ed. dos ~tos de Kant.

§ 514. Bibliografias: E. ADICHES; Bibliography of writings by and on K. which


have appeared in Germany up to the end of 1877, in "Philoisophical P,eview",
1893-94, ed. em vol. Boston, 1896; Supplments in <Ph2o~cal Peview", 1895-96;
UMERWEG, GrUndriss der Gesch. der Phil, 111, 12.1 ed., ao cuidado de M.
Frischeison-Kbhler e W. Moog, Berlim, 1924, p.
709-49; desde 1896 os "Kantstudien" fundados por

195

Vaihinger têm dado notícias, cilticas de toda a literatura kantiam.

MonografiaS principais: C. CANTONI, K., 3 vol. ~ 1833; F. PAULSEN, K., 8cin


Leben und 8eine Lehre, Estugarda, 1898; T. RUYSSEN, K, Paris, 1909; CANTECOR,
K., Paris, 1909; B. BAUCH, E., Leipzig, 1911; A. D. LINDSY, The Phil. of. K.,
London, 1913; 3. B. BAUCH, K., Leipzig, 1911; A. D. LiNDSAY, The Phil. of K.,
London, 1913; J. WARD, A Study of K., Cambridge, 1922; P. LAMANNA, K. Milão,
1925; E. ADICKES, H. aIs Naturforscher, 2 vol., Berlim, 1924-25; BouTROUX, La
phil. de K., Paris, 1926; L. GOLDMANN, Mensch, Gemeinschaft und Welt in der
Phil. I. K. s, Zurique, 1945; A BANFI, La filosofia critica di K., Milão,
1955.

Entre monografias inspiradas no pensamento hegeliano: K. FISCHER, I. K. und


seine Lehre, Heidelberga, 1860, que no entanto conserva o seu valor como
exposição de conjunto da obra de Kant; E. CAIRD; The Critical Phil. of X.,
Londres, 1889.

Monografias inspiradas no neocriti~o: H. COHEN, K. s Theorie der Erfahrung,


Berlim, 1871; B. 'CAS:S@RER; E. s Leben und Lehre, Berlim, 1918.

A monografia de P. CARABELLEsE, La fil. di K. Morença, parte do ponto de vista


do ontologismo rosminiano; e a de A. RENDA; Il criticismo, fondamenti etico-
religiosi, Palermo, 1927, tende a pôra claro a inspiração ético-religiosa da
filosofia teorética de Kant.
O importante comentário de HANS VAIHINGER; Kommentar zur Kritik der reinen
Vernunft, 2 vol., Estugarda, 1881-92, parte do ponto de vista de um
relativismo pragmatista (filosofia do como se).

§ 515. Sobre o período precrítico: B. ERDMANN, Die Entwicklungsperioden von


K.s theoretischer Phil., introdução à sua ed. das K.s Reflexionen zur Kritik
der reinen Vern., Leipzig, 1884; E. ADICKW, Die bewegenden Krafte in K.s
Entwick1. und die beiden Pole seines Systems, in "Kanstudien", I;A- Guzzo, K.
pre196

-critico;Turim, 1924; M. CAMPO, La genesi del critieis~ kantiano, 1953.

Sobre a Opus Postumum: E. ADICKE.9; K.s. Opus Post. dargestellt und beurteilt,
Berlim, 1920; N. KEMP SMITH, A Cammentary to K.& Critique of Pure Reason,
Londres, 1918; V. MATHIEu, La filosofia trascendental e o "Opus postumum" di
K., Turim, 1958.

§ 516. Sobre a Crítica da razão pura: H. VAIHINGER, Koinmentar zur K. d. r.


V., cit.; Th. GREEN, Lectures on the Philos. of K., in Works, Londres% 1893;
H. HOFFDING, in "Archiv fur Gesebichte der Philw.", VII, 1894; E. BOUTROUX, ia
"Revue de Cours et Conférences>, Julho, 1896; C. CANTOSI, in "P.iv~ Filos.",
1901; F. Tocoo, Studi Kant~ ' PalerMO, 1910; H. COHEN, Kommentar zur
1. K.s Kritik d. r. V., Leipzig, 1907; E. CASSIRER, Eant und dio moderne
Mathematik, in "Ka71 tudien", XIr, 1907; H. CORNELIUS, Kommentar zur K. d. r.
V., Erlangee,
1926.

Sobro as duas edições da Crítim: B. ERDMANN, Kant Kritizismus in der er8ten


und der zweiten Auflage der K. d. r. V., Leipzíg, 1878; E DICHKES, Ueber die
Abfassungzeit der K. d. r. V., in "Kanstudien", 1895.

§ 518. Sobre a lógica: C. LuGARINI; La logica trascendentale di K., Iffilão,


1950; F. BARONE, Lógica formate e logica transcendentale Deduktion de
Kategorien, HaJ@e, 1902; BIRDEN; Kants transzendentale Deduktio,n, Beillím,
1913; 1-1. S. VLEESCHAUWER, La déduction transcendentale dans Voeuvre de K.,
Paris,
1934; P. CHIODi, La deduzione nelllopera di K., Turim,
1960.

§ 522. Sobre a c~ em si: W. WINDELBAND, in "Viert&jahrwchriften fur


wissensschafUische Philosophie), 1, 1877; J. G. SCHURMAN, in " Archiv für
Geschichte der Philos.", 32, 1910.

§ 523. Sobre a dialéctica transeendentaâ: F. EVELLIN, La raison pure et les


antinomies, Paris,
1907.

197

525. Sobre a filosofia moral: A. CRESSON, La morale de Kant, Paris, 1897; V.


BRUNSCHVIGG, in "Revue de M~. et de Morale>, 1907; A. M.ESsER, Hommentar zur
E.s ethischen und relígionsphisolopischen, Hauptschriften, Leipzig, 1929; O
Estrada, La etica formal y los vaiores, La Plata, 1938.

§ 527. Sobre a doutrina do direito e da Iústória: E. SYDOM, Der Gendanke des


Ideal-Beichs in der Idealist. Philos. von Kant bis Hegel, Leipzig, 1914; W.
METUGER, GeseIsschaft, Recht und Staat in der Etnik des deuschen Idealismus,
Heidielberga, 1917; K. BORRIEs, Kant aIs Politiker, Leipzig, 1928.

§ 528. Sobre o juizo CStétiCO: H. COHEN, K.S. Regründun der Aesthetik, Berlim,
1889; V. BASCI-1, Essai critique sur 1'esthétique de Kant, Paris,, 1897;
ROSENTHAL, in "Kantstudien" 20, 1915; M. SouRiAu, Le jugen^t réfléchi@ssant
dans Ia phil". crit. de Kant, Paris, 1926.

§ 529. Sobre o juizo tCl~ógiCO: A. PPANNKUCHE in "Kant;studicai", 5, 1901; E.


-UNGERR; in "Abhandlungen zur theoretische Biólogie" , 14, 1922.

§ 530. Sobre -a doutrina da religião: E. TROELSCH, in "Kantstudien", 9,


1904; C. SENTROUL, La phil. real de K., Bruxelas, 1912; C. J. WEBB, Kant's
Philosophy of Religion, ~ord, 1926; W. REINIIARD; Ueber das Verhdltnis von
Sittlichkeit und Religion bei K., Bern, 1927.

198

SEXTA PARTE

A FILOSOFIA DO ROMANTISMO

A POLÉMICA SOBRE O KANTISMO

§ 532. POLÉMICA SOBRE O KANTISMO: REINHOLD

A doutrina de Kant é a grande protagonista da filosofia de oitocentos. Ela


veio abrir uma nova problemática que será susceptível de desenvolvimento nas
mais diversas direcções. No âmbito desta mesma problemática, surgiram
doutrinas diferenciadas e até mesmo opostas. Verificaram-se afastamentos,
desvios e regressos e isto, com a pretensão, frequente de se

conseguir um retomo ao "verdadeiro" espírito do kantismo e de se avançar nas


suas linhas fundamentais.

Na Alemanha, a filosofia de Kant aparece como conclusão definitiva de uma


crise secular do pensamento humano e como início de uma nova época

201

na qual a filosofia alemã iria assumir a função de guia de todo o pensamento


europeu. Reinhold levou o criticismo às consequências últimas do processo de
libertação da razão, iniciado com o Renascimento e continuado com a Reforma
protestante e defendia substancialmente a sua identificação com o

cristianismo, com o protestantismo e com o iluminísmo (Briefe uber die


kantische Philosophie, 1, p.
150 e segs.). Esta atitude foi aceite por grande parte da filosofia alemã do
século XVIII e deu origem a uma tradição historiográfica que só nos últimos
tempos começou a ser posta em dúvida. O romantismo fez sua essa atitude, deu-
lhe um âmbito maior, insistindo sobretudo na nova importância histórica que o
kantismo conferia à nação alemã. Hõlderlin podia afirmar: "Kant é o Moisés da
nossa Nação, porque do estado de abandono em que havia caído no Egipto, a
conduz pelo deserto árido e solitário da sua especulação até receber na
Montanha Sagrada a

lei eficaz e revivificante" (Carta ao irmão, de 1 de Janeiro de 1799).

Karl Leonhard Reinhold (nascido em Viena em 1758 e falecido em Kiel em 1823)


veio dar grande impulso à difusão do criticismo na Alemanha, ao mesmo tempo
que lançava bases para o

estabelecimento de uma interpretação que deveria influenciar fortemente a


história posterior. Foi professor em Jena e começou a fazer desta cidade o
centro dos estudos kantianos, a que mais tarde vieram beber as doutrinas de
Fichte, Schelling, Hegel, Fries, Herbart. Reinhold é mais do que o simples
autor das Cartas sobre a filosofia kantiana, aparecidas

202

entre 1786 e 1787 numa revista e mais tarde ampliadas e reelaboradas em dois
volumes (1790-92). Foi também autor de uma vasta obra intitulada Nova teoria
da faculdade representativa humana (1789).

Segundo Reinhold, a filosofia de Kant assinala a passagem do progresso para a


ciência ao progresso na ciência (Briefe, cit., 11, p. 117-18); por outras
palavras, assinala o ponto em que a filosofia se

transforma definitivamente em ciência para além da qual, portanto, todo o


progresso ulterior já não poderá já conduzir a uma outra filosofia, mas a um
simples desenvolvimento implícito no próprio kantismo. E isto acontece porque
Kant baseou a filosofia num princípio único, e sobre um princípio único apenas
se pode erguer um sistema único. Esse princípio único é a consciência. Na Nova
Teoria da faculdade representativa humana, Reinhold identifica a consciência
com a faculdade representativa, por conseguinte, com a representação: assim o
princípio único e fundamental da filosofia como ciência surge expresso do modo
seguinte: "A representação é na

consciência distinta do representante e do representado e referida a ambos".


Deste princípio Reinhold procura extrair toda a "filosofia dos elementos", que
é, no fim de contas, a análise da consciência. O representante e e
representado são o sujeito

e o objecto da consciência; sem objecto e sujeito não existe representação,


eles constituem portanto, as condições intrínsecas da própria representação. A
parte que na representação se refere ao objecto é a matéria da representação,
a que se refere ao

203

sujeito é a fornia da representação. A forma é produzida pelo sujeito, pela


sua espontaneidade; a matéria é dada através da receptividade do próprio
sujeito. Esta receptividade não é mais que a capacidade de ter impressões
sensíveis que se aparecem referidas ao sujeito se chamam sensações, mas se

aparecem referidas ao objecto se chamam intuições. A primeira e essencial


condição do conhecimento é, portanto, a intuição. Só em virtude do material
por ela fornecido, pode a representação ser referida a qualquer coisa que não
seja representação, a um

objecto independente de toda a representação. Este objecto é a coisa em si.


Sem a coisa em si, deixa de existir a primeira e fundamental condição da
imediata representação de um objecto. Por outro lado, a coisa em si é
irrepresentável, por conseguinte, incognoscível: uma vez que não existe
representação sem uma forma subjectiva, tudo o que é exterior e independente
das formas subjectivas não pode ser

representado. Como é possível então falar-se na coisa em si e introduzi-la


como elemento da investigação filosófica? Reinhold responde: a coisa em si é
representável, não como coisa ou objecto, mas como puro conceito (Theorie, 11,
§ 17).

Com esta redução da coisa em si a um simples conceito, Reinhold eliminou (sem


querer) um dos pilares do criticismo e abriu caminho a uma interpretação
idealista. A dependência desta interpretação da primeira edição da Crítica, na
qual a distinção entre representação e fenómeno tinha sido insuficientemente
estabeleci, aparece evidente. O objecto do conhecimento reduzido a um
"representado" que
204

existe na consciência aparece, a partir da Reinhold como um dos pontos menos


discutidos na interpretação do kantismo: um ponto, no entanto que permanece
estranho ao pensamento de Kant, tal como

este nos surge do conjunto da sua obra. Através do Enesidemo a interpretação


de Reinhold passou a ser geralmente aceite pelo ambiente filosófico do tempo e
a ela se referem, positiva ou polemicamente, Fichte, Maimon, Schelling, Hegel
e Schopenhauer.

§ 533. Prenúncio DO IDEALISMO

Em 1792 surgia uma obra anónima chamada Enesidemo ou sobre os fundamentos da


filosofia elementar ensinada em Jena pelo prof. Reinhold,

com um defesa do cepticismo contra a arrogância da Crítica da razão. O autor


da obra era, como mais tarde se veio a saber, GottIob Emst Schulze (1761-
1833), professor da Universidade de Helmstãdt e de Gottingen. O cepticismo de
Schulze não é dogmático mas metodológico porque assume como "lei eterna e
imutável do uso da nossa razão, não aceitar por verdade nada sem razão
suficiente e levar a cabo todos os passos da especulação em conformidade com
este critério". Schulze opõe-se às teses fundamentais do kantismo (tal como

haviam sido interpretadas por Reinhold) baseando-se numa orientação


radicalmente empirista. O que ele reprovava em Kant era precisamente o não ter
permanecido fiel ao espírito do empirismo e ter-se servido do mesmo raciocínio
ontológico dos escolás205

ticos que Kant pretende ter refutado a propósito da existência de Deus. Kant,
segundo Schulze, pro _ cedeu da forma seguinte: o conhecimento pode ser

pensado apenas como juízo a priori, daí a existência de um tal juízo; a


necessidade e a universalidade devem ser pensadas como sinais das formas do
conhecimento, daí a existência de tais sinais; a universalidade e a
necessidade não podem pensar-se com outro fundamento que o da razão pura, daí
ser

esta o fundamento do conhecimento. Este procedimento é, segundo Schulze,


idêntico ao dos escolásticos: pois se uma coisa deve ser pensada assim e não
de outro modo, ela é assim e não de outro modo. Kant caiu assim numa gritante
contradição. Com efeito, a valer o processo ontológico (o que deve ser pensado
ser) as coisas em si são cognoscíveis. Mas Kant demonstra que não são
cognoscíveis. Ora a sua teoria do conhecimento baseia-se no pressuposto do
qual se infere a cognoscibilidade da coisa em si. Por conseguinte, a
incognoscibilidade da coisa em si surge demonstrada através de um princípio
sobre que se baseia a cognoscibilidade da coisa em si. É sobre esta
contradição que gira toda a crítica kantiana e a ela vem Schulze contrapor o
cepticismo de Hume, ou seja, a impossibilidade de se explicar, seja de que
forma for, o carácter objectivo do conhecimento.

Esta crítica afastava-se, evidentemente, do essencial da doutrina de Kant, mas


abordava um conceito o da coisa em si, que iria polarizar à sua volta os
posteriores desenvolvimentos críticos do kantismo. Sobre esse desenvolvimento,
teve enorme influência
206

a obra de Salomon Maimon (1753-1800), um judeu polaco de vida aventurosa,


narrada por ele próprio numa Autobiografia. Os seus principais trabalhos são:
Investigação sobre a filosofia transcendental (1709); Dicionário filosófico
(1791); Incursões no campo da filosofia (1793); Investigação sobre unia nova
lógica ou teoria do pensamento (1794); Investigação crítica sobre o espírito
humano (1797). Maimon cedo chega à conclusão a que inevitavelmente levava a
interpretação, dada ao kantismo por Reínhold: a impossibilidade da coisa em
si. Segundo a doutrina Kant-Reinhold, tudo o que é representável de um
objecto, está contido na consciência; mas a coisa em si está e deve estar fora
da consciência e independente dela: portanto, é uma coisa não representável
nem pensável, uma não-coisa. O conceito de coisa em si é, segundo Maimon, o
fundamento da metafísica dogmática, só existe na medida em que ela existe. É
semelhante aos números imaginários da matemática; aqueles números que não são
nem positivos nem negativos, como os radicais quadrados dos números negativos.
Assim como a Vida é uma grandeza impossível, também a coisa em si é conceito
impossível, um nada (Kritische Untersuchungen, p. 158). Com esta negação da
coisa em si, está dado o passo decisivo para o idealismo. Com efeito, Maímon
afirma explicitamente que todos os princípios do conhecimento se devem buscar
no interior da consciência, até mesmo o elemento objectivo (ou matéria) do
próprio conhecimento. O que é objectivo, o que é dado na consciência, não pode
ter uma causa externa à consciência, pois fora da

207

consciência nada existe. Mas também não pode ser um puro produto da
consciência, porque desse modo não teria as características do dado, que
jamais é produzido pela própria consciência. Todo o conhecimento objectivo é
uma consciência determinada, mas na sua base existe uma "consciência
indeterminada" que procura determinar-se num conhecimento, objectivo, tal como
o X matemático ao assumir os valores particulares de a, b, c, etc. O dado é,
por conseguinte, o que não é resolúvel às puras leis do pensamento e que o
pensamento considera como algo de estranho, a si, mas algo que procura
continuamente limitar e assumir de forma a poder gradualmente anular-lhe o
carácter irracional. "0 dado, afirma Maimon (Transcendentaphil., p. 419 e
segs.) é apenas aquilo em cuja representação se conhece não só a causa mas
também a essência real; o que vale dizer que é aquilo de que temos apenas uma
consciência incompleta. Mas esta consciência incompleta pode ser pensada por
uma consciência determinada como um nada absoluto apenas através de uma

série infinita de graus; já que o puro dado (o que está presente sem qualquer
consciência de força representativa) é pura ideia do limite desta série (tal
como uma raiz irracional) de que nos podemos aproximar mas que nunca
conseguimos atingir. O conhecimento dado é um conhecimento incompleto; o
conhecimento completo jamais pode ser dado, é apenas produzido e a sua
produção acontece segundo as leis universais do conhecimento. E isso é
possível quando podemos produzir na consciência um objecto real de
conhecimento. Uma tal produção será uma

208

actividade da consciência ou um acto do pensamento a que Maimon chama "o


pensamento real".
O pensamento real é o único conhecimento completo. Tal conhecimento supõe
portanto um múltiplo (o dado) que não é senão um determinável, e que, no acto
do pensamento real, surge determinado e
reduzido à unidade de uma síntese. O pensamento real age, por conseguinte,
através do princípio da determinabilidade: o que dá origem ao objecto do
conhecimento através da síntese perfeita do múltiplo determinável. O espaço e
o tempo são as condições da determinação; e uma vez que a faculdade da
consciência em reter objectos dados é a sensibilidade, o espaço e o tempo são
as formas da sensibilidade e, por conseguinte, as condições de todo o
pensamento real. - A característica principal desta doutrina de Maimon é que,
para ela, o objecto não é o antecedente do conhecimento mas antes o
consequente, na medida em que é o termo final do acto criador do pensamento. O
próprio objecto da intuição sensível não é pressuposto do pensamento,
pressupõe-no, uma

vez que é um produto do próprio pensamento. Maimon admite, por outros termos,
a faculdade da intuição intelectual (produtora ou criadora) que Kant, de forma
tenaz, sempre excluíra como sendo superior e estranha às faculdades humanas.
Deste modo se abre a via ao idealismo; e nesta via se coloca decididamente
Beck.

Jakob Sigismund Beck (6 de Agosto de 1761


- 29 de Agosto de 1840) tinha sido aluno de Kant em Künisgsberg e foi
professor em Rostock. Os seus principais trabalhos são: Compêndio expli209

cativo dos textos críticos do Professor Kant, por sugestão do próprio (1793-
96), cujo terceiro volume,

o mais importante, tem o título O único ponto de vista possível pelo qual a
filosofia crítica pode ser

julgada (1796); Esboço de filosofia crítica (1796); Comentário à metafísica


dos costumes de Kant (1798).
O ponto de partida de Beck é a interpretação de Reinhold. O problema que Beck
levanta surge, com efeito, da interpretação do kantismo em termos de
representação: como pode ser entendida a relação entre a representação e o
objecto. Esta relação só é possível, segundo Beck, se o objecto é ele próprio
uma representação. E, como tal, deve existir um acordo entre a representação e
o objecto de forma a que uma se refira ao outro como a imagem ao original; o
próprio objecto deve ser representação originária, um produto do representar,
isto é, um

representar originário. Por conseguinte, o único ponto de vista pelo qual a


filosofia crítica deve ser julgada é aquele a que BecIç chama o ponto de vista
transcendental, o ponto de vista de quem considera a pura actividade do
representar, que produz originariamente o objecto. A pura actividade do
representar é identificada por Beck com a kantiana unidade transcendental da
percepção, ou seja, do que eu penso. Beck afirma assim, por sua conta, o ponto
de vista de Fichte, de que o seu transcendental produz, mediante a sua pura
actividade, a totalidade do saber.
O eu produz, através de um acto de síntese, essa conexão originária do
múltiplo que é o objecto ou a representação originária; e num segundo momento
reconhece nesse objecto a sua representação. Este

210 N

acto posterior é, segundo a expressão de Beck, o


reconhecimento da representação, ou seja, o reconhecimento de que há um
objecto sob o conceito que o exprime ou que existe a representação de um

objecto através de um conceito. Esta representação surge criada por dois actos
que constituem a actividade originária do intelecto: o primeiro é a síntese
originária efectuada através das categorias; o segundo é o reconhecimento
originário efectuado através do esquematismo das categorias (Einzig m<5glicher
Standpunkt, 11, § 3. Beck percorreu deste modo uma
larga tirada do caminho que, contemporâneamente, era percorrido também por
Fichte. A interpretação do kantismo iniciada por Reinhold encontra neste
último o seu desfecho lógico e conclusivo.

§ 534. POLÉMICA SOBRE O KANTISMO: A FILOSOFIA DA FÉ

A filosofia de Kant era racionalista e iluminista. Fazia da razão o único guia


possível do homem em

todos os campos da sua actividade; mas ao mesmo tempo impunha à razão limites
precisos e em tais ,limites baseava a legitimidade das suas pretensões.
O racionalismo kantiano foi outro aspecto que levantou polémicas na Alemanha
nos últimos anos do século XVIIII.

As exigências a que se referiam estas polémicas foram em geral as da fé e da


tradição religiosa. A filosofia kantiana parecia muda ou hostil perante tais
exigências, uma vez que era uma filosofia da razão: à razão se contrapõe
então, como órgão de

211

conhecimento, a fé, a intuição mística, o sentimento, ou em geral, qualquer


faculdade postulada ad hoc e que se julgue capaz de actuar para lá dos limites
da razão, na direcção dessa realidade superior que parece ser o objecto
específico da experiência mística ou em geral da razão. Esta polémica obtém as
suas armas conceptuais especialmente em Hume e em Shaftesbury; mas atribui-
lhes um alcance que estava muito além da esfera de experiência a que estes
dois filósofos se haviam limitado, já que vê neles os

instrumentos de uma revelação sobrenatural ou divina.

A filosofia da fé, dentro deste desígnio, inicia-se com a obra de um


conterrâneo de Kant, Joham George Hamann. (1730-88), um funcionário de
alfândega que manteve relações de amizade com

Kant, Herder e Jacobi e foi chamado o "mago do Norte". Hamman desencadeia as


suas invectivas contra as pretensões da razão. "0 que é a celebrada razão com
a sua universalidade, infalibilidade, exaltação, certeza e evidência? Um ens
rationis, um ídolo, ao qual a superstição impudente e irracional assinala
atributos divinos". Não é a razão mas a fé que constitui o homem na sua
totalidade. Hamman, ao dizer isto, pensava em Hume que tinha reconhecido na
crença a única base da consciência. Mas a crença de Hume é uma crença empírica
que tem por objecto as coisas e as suas relações causais. A crença de Hamman,
ao invés, é uma fé mística, uma experiência misteriosa na qual têm lugar não
apenas os factos naturais e os testemunhos dos sentidos como também os factos
históricos, os testemunhos da tra212

dição, e os factos divinos testemunhados pela revelação. A fé de Hamman é a


revelação imediata da natureza e de Deus. E Hamman não faz nenhuma divisão ou
distinção entre o que é sensível e o que é religioso, entre o que é humano e o
que é divino. Tal como Bruno, reconhece na coincidentia oppositorum o mais
alto princípio do saber. No homem coincidem todos os princípios opostos do
mundo; e, por mais que busque com a filosofia entender e abarcar a sua
unidade, jamais conseguirá compreendê-la através de conceitos ou alcançá-la
através da razão. Só a fé poderá revelar-lha, na medida em que ela é uma
relação entre o homem e o Deus; uma relação que não tem :a mediação dos
conceitos, porque se trata de uma relação individualizada e singular e em
razão da qual eu, na minha individualidade, me encontro perante o meu Deus.
Compreende-se como Hamman pretendia rejeitar em bloco as análises kantianas
que procuram introduzir distinções sobre distinções onde ele não via mais que
a

continuidade de uma vida ou de uma experiência vivida que concilia os extremos


opostos. Na Metacrítica do purismo da razão (publicada postumamente em 1788),
Hamman censurava Kant por ter separado a razão da sensibilidade. A própria
existência da linguagem desmente a doutrina de Kant: na linguagem a razão
encontra, na verdade, a sua existência sensível. Hamman entende a linguagem
não como

uma simples articulação de sons mas como revelação da própria realidade, uma
revelação da natureza e de Deus. A linguagem é o Logos, o Verbum: a razão como
auto-revelação do ser. Linguagem e

213

razão são assim identificadas e ambas se identificam com a fé. Hamman vê na I-


Estória, como na Natureza, a incessante revelação de Deus e nos ventos e nas
personalidades da História, como nos factos da Natureza, outros tantos
símbolos e manifestações de um desígnio providencial.

Podemos encontrar em Hamman motivos que também se encontram em Kierkgaard


(excepto o panteísmo romântico): a fé como totalidade da existência
individual, a sua irredutibilidade à razão, o cristianismo como loucura e
escândalo para a razão. Para ele, como viria a ser para Kierkgaard, a religião
apoia-se na nossa existência total, independentemente das forças do
conhecimento.

Sobre a mesma linha se move o pensamento de Johann Gottfried Herder (25 de


Agosto de 1744

18 de Dezembro de 1803) que foi aluno de Kant e amigo de Hamman. Herder


censurava a

ICant (Metacrítica à crítica da razão pura, 1799) o dualismo de matéria e


forma, de natureza e liberdade; e a este dualismo contrapunha a essencial
unidade do espírito e da natureza que ele descobre na obra de Espinosa (a quem
dedicou um diálogo intitulado Deus). Tal como Hamman, Herder sustenta que é
impossível explicar a actividade racional do homem prescindindo da linguagem:
nela, ele descobre a origem da própria natureza humana, na

medida em que surge de uma livre e desinteressada consideração das coisas. Mas
enquanto para Hamman a linguagem é a própria razão, ou seja, o ser que se
revela, para Herder ela é um instrumento indispensável, mas que não deixa de
ser um instrumento

214

da razão. O homem, privado como está do instinto, que é o guia seguro dos
animais, supre a sua inferioridade através de uma força positiva da alma que é
sagacidade ou reflexão (Besonnheit); e o livre uso da razão leva à invenção da
linguagem. A linguagem é, portanto, "um órgão natural do intelecto", o sinal
exterior distintivo do género humano, tal como a

razão é o sinal interior do mesmo (Werke, V, p. 47).

Mas a mais notável manifestação filosófica do fantástico espírito de Herder é


o seu conceito de cristianismo como a religião da humanidade, e da história
humana como um desenvolvimento progressivo no sentido da total realização da
própria humanidade. Na sua obra, Ideias para uma filosofia da história da
Humanidade (1784-91), Herder afirma o princípio de que na história, como na
natureza, todo o desenvolvimento está submetido a determinadas condições
naturais e a leis mutáveis. A natureza é um todo vivo, que se desenvolve
segundo um plano total de organização progressiva. Nela agem e lutam forças
diferentes e opostas, O homem, como todos os outros animais, é um seu produto:
mas o homem está no cume da organização, porque com ele nasce

a actividade racional, e, por conseguinte, a arte e a

linguagem que conduzem à humanidade e à religião. A história humana não faz


mais que seguir a própria lei ido desenvolvimento da natureza que provém do
mundo inorgânico e orgânico até ao homem para levar finalmente o homem à sua
verdadeira essência. Natureza e história actuam ambas no sentido de educarem o
homem para a humanidade. E essa

educação é fruto não da razão, mas da religião que

215

ligada à história humana desde os primórdios e

revela ao homem o que há de divino na natureza.

A este conceito de um progresso contínuo e

necessário do género humano na sua história, Herder é levado. por. analogia


entre o mundo da natureza e o mundo da história, analogia baseada na profunda
unidade destes dois mundos que são ambos criação e manifestação de Deus. Deus,
que ordenou da forma mais sábia o mundo da natureza, garantindo de maneira
infalível a sua conservação e desenvolvimento, poderia permitir que a história
do género humano se desenvolvesse sem um plano qualquer, independente da sua
sabedoria e da sua bondade? A esta pergunta deve responder a filosofia da
história, a que deve demonstrar que o género humano não é um rebanho sem
pastor e que para ele valem as

próprias leis que determinam a organização progressiva do mundo natural. "Tal


como existe um Deus na natureza, existe também um Deus na história; o homem
faz parte da natureza e deve seguir, mesmo nas suas intemperanças e paixões
mais selvagens, as leis que não são menos belas e excelentes do que aquelas
que regulam todos os céus e corpos terrestres". É fácil distinguir nestas
palavras o reflexo do panteísmo de Shaftesbury, O fim das leis da história é o
de conduzirem o homem à sua própria humanidade. "Se considerarmos a
humanidade, tal como a conhecemos através das leis que nela existem, não
poderemos imaginar nada de mais elevado que a humanidade existente nos homens;
pois mesmo quando pensamos em anjos ou deuses, pensamo-los como homens ideais
ou superiores. Com este objectivo

216

foram dados aos homens sentidos e impulsos mais refinados, a razão e a


liberdade, uma saúde delicada e durável, a linguagem, a arte e a religião. Em
todas as condições e em todas as sociedades, o homem não pode ter outra coisa
em vista que não seja a construção da humanidade, tal como em si próprio ele a
pensa". No seu esforço de investigar a ordem e as leis do mundo da história, a
especulação de Herder faz lembrar a de Vico. Mas para Vico não existe um
progresso contínuo e inevitável do género humano, comparável ao curso fatal da
natureza. Para Vico, a história é verdadeiramente feita pelos homens e
conserva todo o carácter problemático que deriva da liberdade das acções
humanas. A ordem providencial da história é para o filósofo italiano uma ordem
transcendente a que a história temporal pode mais ou menos adequar-se, sem
jamais coincidir. Herder, pelo contrário, considera a história como um plano
divino e necessário no seu inevitável progresso. A sua filosofia da história
é, por conseguinte, a extensão ao mundo histórico do,panteísmo de Sohaftesbury
e prenuncia o conceito da história próprio do idealismo romântico.

§ 535. FILOSOFIA DA FÉ: JACOBI

A filosofia da fé, tal como tinha sido desenvolvida por Hamman e Herder,
levava a uma conclusão panteísta: parecia até tornar impossível qualquer
distinção entre natureza e Deus e fazer sua a tese

217

clássica do panteísmo, distinguir em Bruno. Espinosa, a filosofia da fé de


Jacob@ pelo contrário dentro de um rigoroso teismo: retira Deus da natureza de
forma tão decidida como os outros o tinham unido a ela.

Friedrich Heirich Jacobi, nasceu em Dusseldórfia a


25 de Janeiro de 1743 e morreu a 10 de março de
1819. Os seus trabalhos compreendem dois romances filosóficos, Epistolário de
Allwill e Woldemar, as Cartas sobre a doutrina de Espinosa a Moisés
Mendelssohn (1785) e nas quais Jacobi descreve os colóquios que teve com
Lessing a 7 e 8 de Julho de
1780, em que Lessing manifestava a sua adesão ao espinosismo; David Hume e a
fé (1787) na qual Jacobi se pronuncia também sobre o kantismo; Cartas a Fichte
(1709); Tratado sobre o propósito do criticismo em conferir a razão ao
intelecto (1802); J As coisas divinas (1811), contra Schelling,
que Jacobi
censurava por usar uma linguagem cristã num sentido panteísta.

O objectivo da especulação de Jacobi é o de defender a validade da fé como


sentimento do incondicionado, ou seja, de Deus. Rejeita a especulação
"desinteressada"; pretende defender não a verdade, mas "uma determinada
verdade". "Quero tornar claro, através do entendimento, uma única coisa,
afirma - Cartas sobre Espinosa, trad. ital., p. 4), a

minha devoção natural a um Deus incógnito". Mas a razão não serve este
objectivo. Jacobi levanta a pergunta crucial: É o homem quem possui a razão ou
é a razão que possui o homem? Para ele não existe

218

dúvidas: a razão é um instrumento, não é a própria existência humana. Esta


última resulta de duas representações originárias: a do incondicionado, que é
a de Deus, e a do condicionado, que é a de nós próprios. Mas esta última
pressupõe a primeira. Temos portanto uma certeza do incondicionado bastante
maior do que a que temos do condicionado, ou seja, da nossa própria
existência. Mas esta certeza não nos é dada pela razão e não se baseia nas
provas ou nas demonstrações que a mesma nos

possa fornecer. É uma certeza da fé. Para demonstrar a existência de uma


divindade criadora, a razão já não pode ligar-se nem nunca poderá ligar-se a

uma filosofia que se arrogue de tal. Descartes pretendeu demonstrar a


existência de um criador do mundo; mas, na realidade, só conseguiu demonstrar
a unidade de todas as coisas, a totalidade do mundo. Espinosa tornou claro o
significado implícito da demonstração cartesiana na expressão por ele
utilizada "Deus sive Natura". E o que vale para a filosofia de Espinosa vale
para qualquer sistema que faça apelo à razão para compreender Deus: inclusive
o de Leibniz. O próprio Lessing., o representante máximo do iluminismo, é uma
prova desta mesma tese:

Jaoobi vale-se dos colóquios que teve com ele para afirmar que Lessing era
conscientemente adepto da doutrina de Espinosa e que a fórmula em que
acreditava era En kai Pan, o Todo-Uno, o Deus-Natureza. Este é o argumento da
polémica entre Jacobi e Mendelssohn sobre o espinosismo de Lessing, polémica
em que intervém igualmente Herder com a sua obra, Deus. A doutrina de Espinosa
representa para

219

Jacobi a essência de todas as doutrinas racionalistas, já que todas as


doutrinas deste género, quando coerentemente desenvolvidas, se identificam com
o espinosismo. E o espinosismo é ateísmo, na medida em que o ateísmo não é
mais que a identificação de Deus com o mundo, do incondicionado com o
condicionado.

Cortar as ligações com o ateísmo significa cortar as ligações com o


racionalismo e fazer apelo à fé. Só a fé torna certa a existência de nós
próprios, das outras coisas e de Deus: "Todos nós nascemos na fé, afirma
Jacobi (Cartas sobre Espinosa, trad. ital. p. 123), e na fé devemos
permanecer, tal como nascemos na sociedade e na sociedade devemos permanecer".
Mas a fé significa revelação. "Afirmamos com

absoluta convicção que as coisas existem realmente fora de nós. E eu pergunto:


em que se baseia esta nossa convicção? Em verdade, apenas numa revelação a que
verdadeiramente podemos chamar milagrosa" (Hume, uber den Glauben, em Werke,
H, p. 165 e
sgs.). Jacobí mostra-se portanto de acordo, tal como
Hamman, com Hume, ao afirmar que o conhecimento sensível não é outra coisa
senão a fé. Mas além disso, para ele, é a fé na revelação, assumindo portanto
um significado religioso. Uma existência que se revela pressupõe uma
existência que revela, uma força criadora que só pode ser causa de toda a
existência, isto é. Deus. A nossa fé sensível é necessariamente uma fé na
revelação e esta é necessariamente a fé em Deus, é portanto unia religião
(1b., p. 274, 284 e sgs.). Esta fé é natural, não arbitrária; trata-se de uma

220

lei escrita no coração dos homens e que os homens seguem mesmo quando a negam.

Ao negar a possibilidade de qualquer demonstração da existência de Deus e ao


considerar Deus como objecto de fé, Jacobi concorda evidentemente com Kant.
Mas Kant fala de uma fé racional, problemática, fechada nos limites das
possibilidades humanas, enquanto que Jacobi vê na fé uma revelação efectiva
entre o homem e o mundo supra-sensível. Se o homem não tivesse a percepção
originária do supra-sensível, não seria possível nem a religião nem

a liberdade e o homem seria um animal como todos os outros, uma coisa entre as
outras coisas. Mas se não existisse nem religião, nem liberdade, nem fé em
Deus, nem consciência de si, como poderia o

próprio homem existir com uma existência de tal modo mutilada?

Jacobi segue, na sua especulação, um processo característico: por um lado,


afirma a coerência e a força dos sistemas racionalistas, defendendo-se contra
os seus adversários (com efeito assim procedera em relação a Espinosa, a Kant
e também a Fichte), por outro lado pretende demonstrar como os mesmos se
debatem com a impossibilidade de explicar a

existência e todos pressupõem a fé. A fé incondicionada e original num


ordenamento do mundo paternal e amorável: tal é, para Jacobi, o único dado
seguro de que o homem deve partir. "Assim sinto, afirma, e não posso sentir de
outra maneira; se os sistemas de filosofia tivessem razão, o meu sentimento
seria impossível".

221

A filosofia da fé constitui uma primeira tentativa para se fugir aos limites


que Kant tinha assinalado às possibilidades humanas, tentativa que faz apelo a
uma relação directa com o supra-sensível. Contra esta tentativa reagiu o
próprio Kant na sua

obra O que significa orientar-se no pensar (1786), e, ao intervir na polémica


Mendelssohn-Jacobi-Herder, replicou enèrgicamente que a fé não pode basear-se
senão num postulado da razão prática e que a mesma não envolve uma certeza
teorética, mas apenas uma verosimilhança que basta a todas as exigências da
conduta moral.

§ 536. O "STURM UND DRANG". SCHILLER. GOETHE

A filosofia da fé pode considerar-se, na sua complexidade, como expressão


filosófica do movimento literário-políteo que se chamou STURM UND DRANG
(título de um drama de Maximiliano Minger, escrito em 1776), ou seja,
"tempestade é ímpeto". A razão que sofre a crítica desta filosofia é a razão
finita, a razão cujos limites e competência haviam sido determinados por Kant;
à qual contrapõe a fé como órgão capaz de alcançar o que àquele é inacessível.

Nos ideais do Sturm und Drang comungaram, na sua juventude, Schiller e Goethe.
Todavia, o conhecimento da filosofia kantiana tem neles uma influência
positiva, encaminhando-os para o reconhecimento da função da razão e ainda
para a com222

preensão e esclarecimento daquilo que a razão não abarca, a vida, o


sentimento, a arte e a natureza.

A actividade filosófica do poeta Friedrich Schiller (10 de Novembro de 1759 -


9 de Maio de 1805) inicia-se com a denominada Teosofia de Julius, incluída nas
Cartas filosóficas de 1786. Podemos encontrar nesta obra os temas
neoplatónicos caros aos

poetas e aos filósofos do Sturm und Drang. O universo é a manifestação ou


revelação de Deus, o

"hieroglifo de Deus", e a única diferença entre Deus e a natureza é que Deus é


a perfeição indivisa, enquanto que a natureza é uma perfeição dividida. "A
natureza é um Deus dividido ao infinito", diz Schiller (Werke, X, p. 190). Em
1787, Schiller entra em contacto com as obras de Kant. e especialmente com a
Crítica do juízo. Neste período, Schiller dedicava-se a pesquisas de natureza
estética que vieram a dar frutos nos seus escritos Sobre o fundamento do
prazer produzido pelos objectos trágicos (1791), Sobre a arte trágica (1792),
Sobre o sublime (1793). Mas os primeiros frutos amadurecidos da filosofia de
Schiller são o inteligente ensaio Sobre a graça e a dignidade (1793), no qual
a crença na unidade harmónica entre a natureza e o espírito leva Schiller
a modificar substancialmente o ponto de vista kantiano que tinha
contraposto a razão ao instinto. Afirma Schiller: "Não tenho um bom
conceito do homem que se fia tão pouco na voz do instinto que a obriga a
calar todas as vezes perante a lei moral; mas respeito e estimo aquele que se
abandona com

uma certa confiança ao instinto, sem recear que este o amesquinhe: porque
assim parece demonstrar que

223

nele os dois princípios se encontram já em harmonia,,, o que é sinal de uma


humanidade completa e perfeita" (Werke, XI, p. 202). O homem no qual se
realiza a harmonia da razão com o instinto e que, por esse motivo, age
moralmente por instinto é uma 11 alma bela, cu tural é a
graça, ou seja;

ja expressão na a beleza em movimento.

Numa nota à segunda edição da Religião nos limites da razão (13 10-11), Kant,
respondendo às observações de Schiller, afirmava que se é impossível que a
graça surja acompanhada do conceito de dever, em virtude da dignidade deste
últim03 não é impossível todavia que aquela surja acompanhada da virtude, ou
seja: da intenção de cumprir fielmente o dever. A graça, segundo Kant, pode
ser uma das felizes consequências da virtude que transmite sobretudo a
força da razão e acaba até por arrastar no seu jogo a própria.
imaginação.

- 1.O tema da unidade entre a natureza e o espírito encontra. a sua melhor


expressa wo na obra-prima filosófica, de Schiller, as Cartas sobre a
educação ,estética (1793-95). Nesta obra, Schiller começa por discernir , no
homem uma dualidade que aparece conciliada: a do homem físico que vive sob o
domínio das necessidades e se descobre em virtude da sua existência na
sociedade dos homens, e o homem moral,, que afirma a sua liberdade. Mas o
homem físico é real, enquanto que o homem moral é apenas problemático. A razão
tende a suprimir a natureza

no homem e a furtá-la aos vínculos sociais existentes para lhes, fornecer


aquilo que ele poderia e deveria possuir, mas não pode substituir
completamente a

GOETHE

224

sua realidade física e social. Schiller ilustra os vá. rios aspectos deste
contraste. A razão exige a unidade, a natureza exige a variedade; e o homem é
chamado a obedecer a ambas as leis, uma sugerida pela consciência e a outra
pelo sentimento (Cartas,
4). No homem, o eu é imutável e permanente, mas os estados singulares sofrem
mutações. O eu é fruto da liberdade, os estados singulares são produto da
acção das coisas exteriores. Por isso existem no homem duas tendências que
constituem as duas leis fundamentais da sua dupla natureza racional e
sensível. A primeira exige a absoluta realidade.- o homem deve tomar sensível
tudo o que é pura forma e manifestar exteriormente todas as suas atitudes. A
segunda exige a absoluta formalidade: o homem deve extirpar tudo o que nele
existe de exterior e

criar a harmonia entre os seus sentimentos (1b., 11). Estas duas tendências
são também chamadas por Schiller instintos: o instinto sensível deriva do seu
ser físico e liga o homem à matéria e ao tempo, o instinto da forma aparece no
homem por virtude da sua existência racional e procura torná-lo livre. Se o
homem sacrifica o instinto racional ao sensível, deixará de ser um eu,
permanecendo disperso na matéria e no tempo; se sacrifica o instinto sensível
ao formal será uma pura forma sem realidade, ou seja: uni puro nada (lb., 13).
Deve portanto conciliar os dois instintos de modo a um limitar o outro e dar
lugar ao instinto do jogo que levará a forma à matéria e a realidade à pura
forma rwiOnal (1b.,
14). Se o objecto do instinto sensível é a vida no sentido mais lato e o
objecto do instinto formal é a

225

forma, o objecto do instinto do jogo será a forma viva ou seja: a beleza (lb.,
15). Por meio da beleza, o homem sensível é guiado para a forma e para o
pensamento, o homem espiritual é reconduzido à matéria e restituído ao mundo
dos sentidos. A presença dos dois instintos é condição fundamental da
liberdade. Enquanto o homem se mantiver submetido ao instinto sensível que é o
primeiro a surgir, não existe liberdade; só quando o outro instinto se afirma,
ambos acabam por perder a sua força constritiva e a posição entre ambos dará
origem à liberdade (1b.,
19). Para Schiller a liberdade não é como para Kant o produto da pura razão; é
antes um estado de indeterminação no qual o homem não se sente constrangido
nem física nem moralmente, se bera que possa ser actuante num modo como no
outro. Ora se o estado de determinação sensível se chama físico e o de
determinação racional, moral, o estado de determinabilidade real e activa deve
chamar-se estético (lb., 20). O estado estético é um estado de pura
problematicidade, no qual o homem pode ser tudo o que quiser, embora nada
sendo de determinado. Neste sentido se afirma que a beleza não oferece
qualquer resultado, seja moral seja intelectual; no

entanto, só através dela o homem aufere a possibilidade de fazer de si aquilo


que quiser; a liberdade de ser aquilo que deve ser. Neste sentido a beleza é
uma segunda criação do homem (1b., 21). O estado estético é o ponto zero do
homem físico e do homem moral, mas é ao mesmo tempo a possibilidade, a unidade
e a harmonia de ambos. Com ele, o poder da sensação surge vencido e o homem
físico aparece

226

de tal modo notabilizado que o espiritual pode facilmente desenvolver-se nele


segundo, a lei da liberdade. A passagem do estado estético ao lógico ou moral,
a passagem à verdade ou ao dever é infinitamente mais fácil do que a passagem
do estado físico ao estado estético (lb., 23).

No estado estético o homem separa-se do mundo com o qual se encontrava


confundido durante o estado físico; e assim o mundo começa a existir para ele
como objecto; objecto que, enquanto belo, faz ao mesmo tempo parte da sua
subjectividade, sendo portanto simultaneamente um estado e um acto seus (lb.,
25).

Noutro ensaio fundamental, Sobre a poesia ingénua e sentimental(1795-96),


Schifier interpretava a

educação progressiva do género humano através da poesia como reconquista de


uma perfeição perdida.
O ensaio esboça uma história da humanidade concebida como passagem de uma
unidade harmónica e originária entre o ideal e o real para uma cisão entre
estes dois aspectos e por fim a uma reconquista da unidade. A poesia ingénua é
aquela em

que a unidade entre o real e o ideal é imediatamente apreendida e vivida; a


poesia sentimental é a busca

ou a reconquista dessa unidade. O poeta ingénuo não tem necessidade de ideal,


imita a natureza real e com esta imitação encontra a sua perfeição; o poeta
sentimental procura erguer a realidade até ao ideal (Wer.ke, XII, 126).

A filosofia de Schiller é substancialmente a tentativa de interpretar o homem,


o seu mundo e a sua história nos termos de uma teoria da poesia.

227

A mesma ideia de um acordo intrínseco ou substancial entro a natureza e o


espírito, o mundo e Deus, está contida na actividade filosófica de Wolfgang
Coethe (1794-1832) que, diversamente de Schiller, parte não de uma teoria da
poesia mas de pesquisas, observações e hipóteses naturalistas. Não foi a arte,
mas a própria natureza que serviu de tema inspirador à reflexão filosófica de
Goethe. Goethe estava convencido de que a natureza e Deus se encontram
intimamente ligados, constituindo um todo único. "Tudo o que o homem pode
ambicionar na

vida é que o Deus-natureza se lhe revele", afirma. A natureza não é senão "a
roupagem viva da divindade" . Não se pode alcançar Deus senão através da
natureza, como não se pode alcançar a alma senão através do corpo. Se Goethe é
contrário aos materialistas que fazem da natureza um puro sistema de forças
mecânicas, é também contrário a Jacobi que coloca Deus, de forma absoluta,
para além da natureza. "Quem quer o ser supremo deve querer o todo; quem se
interessa pelo espírito deve pressupor * natureza, quem fala da natureza deve
pressupor * espírito. O pensamento não se deixa separar daquilo que é pensado,
a vontade não se deixa separar de tudo o que é movido. A existência de Deus,
como a de uma força espiritual, de uma razão, que domina todo o universo, não
precisa de demonstração. A existência de Deus é o próprio Deus" afirma ele
numa carta a Jacobi (datada de 9 de Junho de 1785). Deus é uma força impessoal
e suprapessoal que actua

228

nos homens através da razão e determina o seu destino. A um tal destino, que é
ao mesmo tempo ordem providencial, não se furta nem mesmo Prometeu que, na sua
titânica revolta contra o Olimpo, encontra na consciência de si o auxilio e a
força para tal. - Nestas concepções panteístas se inspiram as investigações e
as hipóteses naturalistas de Goethe, que pretendem investigar na natureza o
fenómeno originário (Urphãnomenon) em que se manifesta e

se concretiza, num determinado tipo ou forma, a força divina que tudo rege.
Flor isso Goethe não compartilha do ponto de vista de Kant, segundo o qual a
finalidade da natureza pertence a uma consideração puramente subjectiva do
mundo, e não tem valor objectivo. Para Goethe, a finalidade é a própria
estrutura dos fenómenos naturais e as ideias que a exprimem são os símbolos
dos mesmos. Arte e natureza distinguem-se apenas em grau e não em qualidade; o
fim que a arte e o artista prosseguem, actua sobre o mundo de forma menos
consciente, mas igualmente eficaz. - Uma outra expressão da unidade entre a
natureza e espírito, que é a fé de Goethe, é o equilíbrio, que ele defende
explicitamente e que constitui uma característica da sua personalidade, entre
sensibilidade e razão. A vida moral não é para ele, como é para, Kant, o
predomínio da razão sobre os impulsos sensíveis, mas a harmonia de todas as
actividades humanas, a relação equilibrada entre as forças contrastantes que
constituem o

homem. É neste equilíbrio que Goethe reconhece a

normalidade da natureza humana

229

§ 537. HUMBOLDT

No ideal humanístico de Schiller e Herder se inspira a obra de Wilhelra


Humboldt (22 de Junho
1767 - 8 de Abril de 1835), que é o criador da moderna ciência da linguagem.
Os problemas que ocupam Humboldt dizem respeito à história, à arte e à
linguagem, sem esquecer também os problemas políticos. Aos primeiros dedicou
alguns ensaios e

breves tratados que em parte se mantiveram inéditos e em parte se encontram


incluídos nos seus escritos de crítica literária e filológica: Sobre a
religião (1789); Sobre a lei de desenvolvimento das forças humanas (1791);
Teoria da formação do homem (1793); Plano de lima antropologia comparada
(1795); Sobre o espírito da humanidade (1797); Considerações sobre a

história universal (1814); Considerações sobre as causas eficientes da


história universal (1818); Sobre a

tarefa dos historiadores (1821). As suas ideias sobre arte estão contidas nos
ensaios literários, especialmente no que se intitula Sobre o Armínio e
Doroleia de Goethe (1797-98), enquanto que as suas ideias políticas se
encontram expostas num vasto texto Ideia de uma investigação sobre os limites
da acção do estado (1792). O princípio fundamental de Humboldt é de que nos
mesmos homens e na sua história vive, age e se realiza gradualmente a forma ou
o espírito da humanidade, que vale como ideal e critério valorativo de toda a
individualidade e de toda a manifestação humana. Como Schiller e Herder,
Humboldt sustenta que o objectivo dos homens está nos próprios homens, na sua
formação progressiva,

230

no desenvolvimento e na realização da forma humana que lhes é própria. Sob


este aspecto o estudo do homem deve ser objecto de uma ciência - a
antropologia - que, embora interessada em determinar as condições naturais do
homem (temperamento, sexo, nacionalidade, ete.,), porque também descobrir,
através da mesma, o próprio ideal da humanidade, a

forma incondicionada, a que nenhum indivíduo jamais consegue adequar-se


perfeitamente, mas que não deixa de ser o objectivo para que tendem todos os

indivíduos (Schriften, 1, p. 388 e sgs.). Esta ciência deverá tratar o


material empírico de modo especulativo, organizar filosoficamente o estudo
histórico do homem e considerar a verdadeira condição do homem do ponto de
vista dos seus possíveis desenvolvimentos. Humboldt designa por espírito da
humanidade a forma humana ideal que não se encontra nunca realizada
empiricamente, ainda que seja o termo de toda a actividade humana; e reconhece
neste espírito da humanidade a força espiritual de que dependem todas as
manifestações do homem no mundo. Os grandes homens foram aqueles que, de forma
mais vincada, afirmaram o espírito da humanidade, como aconteceu com Goethe,
por exemplo; e os grandes povos os que mais se aproximaram no seu progresso da
realização integral daquele espírito, como

foi o caso dos Gregos (M., 11, p. 332).

A investigação e a realização da forma incondicionada da humanidade é também o


objectivo da arte. Esta transforma a realidade numa imagem da fantasia e por
isso se desvincula da própria realidade, dando lugar a um reino ideal; mas na
medida em que

231

tal, acontece, a arte supera os limites da realidade, purifica-a e idealiza-a;


representando-a através da fantasia faz dela uma totalidade, um mundo
harmonioso e compósito. O carácter de totalidade é, com o

da fantasia transfiguradora, elemento essencial da arte (lb., 11, p. 133 e


sgs.; p. 284). Sob este aspecto, a poesia tem unia verdade que não é redutível
à da história ou à da ciência. Essa mesma verdade consiste no seu acordo com o
objecto da imaginação, ao passo que a verdade da história consiste no acordo
com o objecto da observação (1b., H, p. 285).
1 A história - apresenta-se a Humboldt como "o esforço da ideia para
conquistar a sua existência na realidade" (Ib., IV, p. 56). A ideia manifesta-
se na

história numa individualidade pessoal, numa nação, e em geral em todos os


elementos necessários e determinantes que os historiadores se encarregam de
separar e de dar relevo dentro do conjunto dos aspectos insignificantes ou
acidentais. Para o homem que não pode conhecer o plano total que governa o
mundo, a ideia só se pode revelar através do curso dos acontecimentos, dos
quais constitui, ao mesmo tempo, a força produtiva e o objectivo final. "0 fim
da história pode ser apenas a realização da ideia representada pela
humanidade, em - todos os seus aspectos, c em todos os modos nos quais a forma
finita possa ser ligada à ideia; e o curso dos acontecimentos pode ser
interrompido quando nem uma nem outra estão em situação de reciprocamente, se
interpenetrarem" (lb., IV, p. 55).

Com a ideia de humanidade se associa a linguagem. A linguagem é a própria


actividade das forças

232

HUMBOLDT

espirituais do homem. Como não existe nenhuma força da alma que não seja
activa, nada existe no íntimo do homem que não se transforme em linguagem ou
não se reconheça nela (Schriften, VII, 1, p. 86). Em razão destas raízes
humanas comuns, todas as linguagens têm na sua organização intelectual
qualquer coisa de semelhante. A diversidade intervém no que respeita a essa
organização, quer pelo ,grau em que a força criadora da linguagem se

exerce, grau que é diferente de povo para povo e

em tempos diferentes, quer porque outras forças actuam na criação da linguagem


além do intelecto, como seja a fantasia e o sentimento. Fantasia e sentimento
que, na medida em que determinam a diversidade dos caracteres individuais,
também determinam a diversidade dos caracteres nacionais e por conseguinte a
multiplicidade das linguagens. A linguagem é o próprio sentido interno
enquanto reúne

o conhecimento e a expressão, e por conseguinte está ligada ao mais íntimo do


espírito nacional; e na diversificação deste espírito encontra a raiz última
das suas divisões (1b., V11, 1, p. 14). Além disso. ela forma um organismo que
vive apenas na totalidade e na conexão das suas partes: a primeira palavra de
uma língua prenuncia-a e pressupõe-na na sua totalidade. Em virtude desta
mesma ideia, Humbold-t conseguiu transformar o estudo da linguagem de pura
actividade de recolha de elementos numa

compreensão do fenómeno da linguagem na sua totalidade.

A exigência de garantir a livre realização do espírito e da humanidade no


homem leva Humboldt

233

a restringir os limites da acção do Estado. O seu


escrito político (que só foi publicado em 1851) res- @tringe a função positiva
do Estado à garantia da segurança interna e externa, mas exclui, como
excedendo os limites do Estado, toda a acção positiva no sentido de promover o
bem-estar e a vida moral e religiosa dos cidadãos. Tudo o que diga respeito
directamente ao desenvolvimento físico, intelectual, moral e religioso do
homem cai fora dos limites do estado, é tarefa própria dos indivíduos e das
nações.
O estado pode favorecer essa tarefa quando se limita a garantir as condições
em que esse mesmo desenvolvimento se verifique com segurança, mas toda a sua

intervenção positiva é prejudicial porque contrária às condições


indispensáveis a que se alcance o desenvolvimento completo dos indivíduos
singulares, ou seja: a liberdade. Esta doutrina é a antítese antecipada da
concepção ética do estado que irá ser

defendida por Hegel.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 532. K. L. Reinho@d, Leben und literarischcs Wirken nebst ciner Aus~I von
Briefen Kants, Fichtes, Jacobi8 und allen phil~phischen Zeitgenossen an ihn
(ao cuidado do seu filho Emst), Jena, 1925.

Sobre Reinháld: B. Kroner, Von Kant bis Hegel, Tübingen, 1821; Guéroult,
Llévolution et ta strwture de Ia Doetrine de Ia Se@ence chez Fichte, Paris,
1930,
1, pgs. 1, 153; V. Verra, Dopo Kant, Il criticisma ne,111~ pre-romantica,
Turim, 1957 (para esta obra se, remete tanibéni quanto aos autores seguintes).

234

§ 533. Sobre o Enes~o: H, Wilegershausen, Aenes~-Schulze, Berlim, 1910.

De Malmon: Versuch einer neuen Logik, Bei-ffim,


1912 (com bibl.)

Sobre Maimon: P. Kuntze, Díe Phílosophíe S. M.S, Heidolberg, 1912; M.


Guéroult, La philosophie transcendentale de S. M., Paris 1929; G. Durante, Gli
epigoni di Kant, Florença, 1943.

Sobre Beck: W. Withey, em "Archiv. für Geschichte der Phiposophie", 2, p. 592-


6,556; W. F>ottschel, J. S. B. und Kant, Bresiau, 1910.

§ 534. Ramman, Werke, 42d. Roth, Berlim, 1821-1843; ed. Gildmeister, Gota,
1857-73; ed, NaMer, Viena,
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1938.

Sobre Hamann: Burger, I. F. H.s Schõpfung und ErIõsung im Irrationalismus,


Gõttingen, 1929; Metzke, I. G. H.s Stellung in der Philosophie des 18.
Jahrunderts Halle, 1934; Nadlier, I. G. H. Der zeuge des Corpus Mysticum,
Salzburg, 1949; Schreiner, Die Menschwerdung Gottes in der Theologie I. G.
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1950; J. C. O'FIaherty, Unity and Language: a Study in Philosophy of J. G. H.,
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1877-99; Zur philosophie der Geschichte, ed. Harich, Berlim, 1952; Metakritik
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235

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Die Philosophi.- des jungen H., Zurique, 1949; W. Dobbe@k, J. GG. H.s
Humanitãtsidec aIs Ausdruck seines WeltbiJdes und seiner Pers6nlichkeit,
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§ 535. De Jacobi: Werke, 6 vols. Leipsig, 1812-25; Aus J.s NachIass, ed.
Zoppritz, 2 vols., Leipzig, 1869. Lettere sulla dottrina di Spinoza, trad.
itaj. F. Capra, Bari, 1914; Idealismo e realismo, trad. itaâ. N. Bobbio,
Turim, 1948 (contém: David Humie e Ia fede Lettere a Fichte, Cose divine e
outros escritos).

Sobre Jacobi: L. Levy-Bruffi, La philosophie de J., Paris, 1894; F. A.


Schmidt, F. H. J, Heidelberg,
1908.

§ 536. De Schiller: Werke, ed. G. Kaxpeles, Leipzig, s.a. -;9., Philos.


Schriften und Gedichte, antologia de E. Kühnemann, Leipzig, 1909; Lettere
sull'educazione estetica ed altri scritti, a cargo de G. Oaló, 1937.

Sobre Schiller: K. Fischer, S. al,& Philosoph, Heidelbarg, 1891; K. Engel, S.


aIs Denker, Berlim, 1908; E. Kühnemqjnn, S. sein Leben und seine
Werke, Munique, 1911; K. Vorlander, Kant, Schiller, Goethe, Leipzig, 1922.

Unia escolha dos textos filosóficos de Goethe foi feita por M. Heynacher, G.s
Phiplosophie- a" seinem Werken, Leipzig, 1905. Em itaã~: Teoria della natura,
recolha de textos e tradução de M. Montinari, Turim, 1958.

Sobre Goethe: H. Siebeck, G., aIs Denker, Stuttgarda, 1902; G. Sinunel, G.,
L~ig, 1913; P. Carus, G., Chicago, 1915; A. Schweitzer, G., 1952.

§ 537. De Humboldt: Gesammelte Schiften, ed. a cargo da Academia de Berlim, 16


voda., Berlim, 1904 e sgs. -Em italiano: Seritti di estetica, escolha e trad.

da G. Marcovaldi, Roma, 1934; Antologia degli scritti politici, a cargo de P.


SerrN Bolonha, 1961.

236

Sobra Humboldt: E. Spranger, W. v. H. und die Humanitdt~e, Berlim, 1909; O. 1-


la~k, W. V. H., Berliin, 1913; Bins-Wlanger, W. v. H., Le@pzig, 1937; E. Ho~d,
W. v. H., Erlenbach-Zürich, 1944; F. Schaffs~, W. v. H., Frankfort, a. M.,
1956.

237

O ROMANTISMO

§ 538. ORIGENS E CARACTERES DO ROMANTISMO

Com o termo "romantismo", que na sua origem se referia ao romance de


cavalaria, rico em aventuras e amores, pretende-se indicar o movimento
filosófico, literário e artístico que se iniciou na Alemanha nos últimos anos
do século XVIII, teve o seu período de florescimento máximo, em toda a Europa,
nos primeiros decênios do século XIX, e que constitui o cunho próprio deste
século.

O significado corrente do termo "romântico" que significa "sentimental" deriva


de um dos aspectos mais salientes do movimento romântico, ou seja, o

reconhecimento do valor atribuído por ele ao sentimento: uma categoria


espiritual que a antiguidade clássica havia ignorado ou desprezado, categoria
que

239

o iluminismo de setecentos tinha reconhecido e que viria a adquirir com o


romantismo um valor predominante. Este valor predominante é a principal
herança que o romantismo recebe do movimento do Sturm und Drang (§ 536) que
tinha contraposto o

sentimento, e com ele a fé, a intuição mística ou acção, à razão, considerada


incapaz, nos limites que lhe haviam sido prescritos por Kant, de alcançar a

substância das coisas ou as coisas superiores e divinas. Mas propriamente


neste sentido, a razão continuava a ser para os defensores do Sturin und Drang
o que era para o iluminismo: uma força humana finita capaz no entanto de
transformar gradualmente o mundo, mas não absoluta nem omnipotente e por
conseguinte sempre mais ou menos

em contradição com o próprio mundo e em luta com a realidade que tinha como
objectivo transformar.
O romantismo, pelo contrário, nasce quando este conceito de razão começa a ser
abandonado e se passa a entender por razão uma força infinita (omnipotente)
que habita o mundo e o domina, e por conseguinte constitui a própria
substância do mundo. Esta passagem surge com nitidez em Fichte que identificou
a razão com o Eu infinito ou Autoconsciência absoluta e que constitui a força
que deu origem ao

mundo. A infinitude neste sentido é uma infinitude de consciência e de


potência, mais que de extensão e de duração. Ainda que diversamente designado
pelos filósofos românticos (Fichte chamou-lhe Eu, Schelling Absoluto, Hegel
Ideia ou Razão Autoconsciente). o Princípio Infinito foi sempre enten240

dido como consciência, actividade, liberdade, capacidade criadora incessante.

Mas apesar de existir uma base comum quanto às características apontadas


atrás, o Princípio Infinito é interpretado pelos românticos de dois modos
diversos e fundamentais. A primeira interpretação, mais próxima da ideia do
Stunn und Drang, considera - o infinito como sentimento, como actividade
livre, isenta de determinações ou para além de qualquer determinação,
revelando-se no homem naquelas actividades mais estritamente ligadas com o
sentimento, como seja a religião e a arte.

A segunda interpretação define o infinito como Razão Absoluta que se move com
uma necessidade rigorosa de uma determinação para outra, de forma que todas as
determinações podem ser deduzidas umas das outras necessariamente e a priori.
É esta interpretação que prevalece nas grandes figuras do idealismo romântico,
Fichte, Schelling e Hegel,ainda que Schelling tenha insistido na presença, no
Princípio Infinito, de um aspecto inconsciente, análogo ao que caracteriza a
experiência estética do homem.

As duas interpretações do infinito foram frequentemente contraditórias e Hegel


especialmente orienta a polé mica contra o primado do sentimento. Mas até
mesmo esse contraste e essas polémicas constituem um dos traços fundamentais
do movimento romântico na sua complexidade.

Ao romantismo do sentimento pertence corno traço fundamental a ironia. O


conceito de ironia é uma consequência directa do princípio romântico de que o
finito é uma manifestação do infinito. Com

241

efeito, o infinito pode ter infinitas manifestações e

nenhuma delas, segundo os românticos do sentimento, lhe é verdadeiramente


essencial. A ironia consiste em não tomar a sério e não deixar de refutar,
como coisa limitada, as manifestações particulares do infinito, (a natureza, a
arte, o eu, o próprio Deus) na medida em que não passam de expressões
provisórias do mesmo.

Um outro traço do romantismo do sentimento é o primado reconhecido à poesia,


em geral à arte, sobre a ciência, a filosofia e, em geral, toda a actividade
racional. Com efeito, a arte, segundo os românticos, é a expressão do
sentimento; e se o infinito é sentimento, a sua melhor expressão é, portanto,
a arte. Muitos românticos fazem sua esta tese, a qual adere também Schelling
que vê no mundo a obra de arte do Absoluto e considera a experiência estética
a melhor via de acesso à compreensão do próprio Absoluto.

A outra interpretação fundamental do principio romântico, a que o considera


como infinita Razão, vê na filosofia a mais elevada revelação da mesma. Foi
este o ponto de vista defendido pelas grandes figuras do idealismo romântico a
que dedicaremos os próximos capítulos. E foi este o ponto de vista que mais
fortemente influenciou toda a filosofia de Oitocentos, mesmo quando o grande
florescimento do primeiro romantismo perde audiência e o pensamento europeu
parece tomar outros caminhos. Com efeito, manter-se-ão dominantes os
caracteres gerais e fundamentais do romantismo: o optimismo, o
providencialismo, o tradicionalismo e o titanismo.

242

O optimismo é a convicção de que a realidade é tudo aquilo que deve ser e é,


em qualquer momento, racionalidade e perfeição. Com esta sua
característica, o romantismo opunha-se polemicamente ao iluminismo, ou seja, à
pretensão de transformar a

realidade, de dar lições aos factos. Para o romantismo, a realidade é tudo


aquilo que deve ser, e a

razão não deixa de ser uma potência só em virtude de não se realizar os


factos. Foi por causa desta característica que o romantismo teve a tendência
para exaltar a dor, a infelicidade e o mal como manifestações parciais e
necessárias de uma totalidade que,

na sua complexidade, permanece pacífica e feliz.

Com o optimismo metafísico se relaciona o providencialismo histórico do


romantismo. Para os românticos, a história é o processo necessário no qual se
manifesta ou realiza a própria Razão infinita, nada havendo nela, por
conseguinte, que seja irracional ou

inútil. Segundo este ponto de vista, a história ou é um progresso necessário e


incessante no qual todos os

momentos superam os anteriores em perfeição e racionalidade; ou é, na sua


complexidade, uma totalidade perfeita cujos momentos são todos igualmente
racionais e perfeitos. Hegel (como mais tarde Croce) elaborou esta segunda
concepção; e contrapõe ao "falso

infinito", que é o infinito da duração ou da extensão ou do progresso, o


"verdadeiro infinito", aquele que se realiza integralmente em todos os
momentos finitos e que, por conseguinte, têm o mesmo valor do infinito. O
outro conceito, o do progresso necessário e inevitável, surge pelo contrário
exterior ao idealismo em toda a filosofia oitocentis-ta; e um dos seus

243

reflexos é aquele conceito de evolução que, primeiramente elaborado pela


ciência biológica, se estendeu depois a toda a realidade, surgindo esta como
um único e ininterrupto desenvolvimento progressivo.

Ao providencialismo se liga um outro aspecto do romantismo, o tradicionalismo.


O iluminismo tinha sido uma filosofia crítica e revolucionária: pretendia
libertar-se do passado porque no passado podíamos descortinar, quase
exclusivamente, o erro, o preconceito, a violência e :a fraude. O romantismo,
pelo contrário, reconhecendo a bondade de todos os momentos da história,
regressa ao passado e exalta-o.
O passado para o romantismo nada tem que deva ser abandonado ou perdido,
contém sim, potencialmente, o presente e o futuro. Por isso as instituições
que o passado criou e transmitiu (o Estado, a Igreja e tudo aquilo que com
elas se relaciona) apaixonam os românticos como se fossem dotadas de um valor
absoluto e destinadas à eternidade. Desta mesma posição deriva a reabilitação
da Idade Média que o Iluminismo (como o Humanismo) tinha considerado uma época
de decadência e de barbárie, com a consequente literatura em que a Idade Média
é representada de forma idealizada e sentimental, bastante longe da realidade
histórica. Um outro corolário do tradicionalismo romântico é o nacionalismo.
Ainda que a noção setecentista de "povo" fosse definida em termos de vontade e
de interesse comuns, a "nação" é defendida em termos de elementos tradicionais
como a raça, a língua, os costumes e a religião. Por outras palavras, o povo
consiste na coexistência dos indivíduos que querem viver em
244

conjunto; a nação refere-se à coexistência de indivíduos que devem viver em


conjunto, de tal modo que o não podem deixar de fazer sem renegarem ou traírem
a sua própria personalidade.

Finalmente, entre os traços mais salientes do romantismo está ainda o


titanismo. O culto e a exaltação do infinito têm como contrapartida o carácter
insuportável de tudo o que é finito. E este carácter insuportável está na base
da rebelião perante tudo o que é um limite ou uma regra e no des-ako
incessante a tudo o que, pela sua finitude, surge como
incompatível ou inadequado em comparação com o
infinito. Prometeu é assumido pelos românticos como o símbolo deste titanismo,
através de uma interpretação que está muito afastada do espírito do antigo
mito grego, uma vez que tende a exaltar uma rebelião que é fim de si própria.
Os Gregos viam em Prometeu o titã que paga justamente o castigo de ter rompido
com a ordem fatal do mundo, dando aos homens o uso do fogo e a possibilidade
da sobrevivência. O romantismo, pelo contrário, exalta em
Prometeu o rebelde à vontade do destino. O titanismo não pretende que uma
situação de facto seja ou possa ser superior ou preferível a outra; empenha-se
antes num protesto universal e genérico que não pode no entanto traduzir-se em
qualquer decisão concreta.

Todos os caracteres acima enumerados e que correspondem ao espírito romântico,


excepto evidentemente aqueles que mais directamente se referem aos aspectos
literários do romantismo (como seja a
ironia e o titanismo) se encontram no positivismo

HÕDERLIN

245

quando sonha, um mendigo quando pensa", diz Hõlderlin. Só a beleza lhe revela
o infinito; e a primeira filha da beleza é a arte, a segunda filha é a
religião, que é o amor da beleza. A filosofia nasce da poesia porque só
através da beleza está em relação com o

Uno infinito. "A poesia é o princípio e o fim da filosofia. Assim como Minerva
surge da cabeça de Júpiter, também a filosofia surge da poesia de um ser
infinito, divino". "Do simples intelecto não nasce nenhuma filosofia porque a
filosofia é mais do que o não limitado conhecimento do contingente. Da simples
razão não nasce nenhuma filosofia, porque a filosofia é mais do que a
exigência cega de um infinito progresso na síntese ou na análise de uma dada
matéria". Nestas palavras o princípio do infinito de Fíchte encontra já a sua
crítica e a sua correcção romântica. E em Hõlderlin se encontra também a outra
característica do espírito romântico: a exaltação da dor. "Não deve tudo
sofrer? Quanto mais elevado é o ser maior o sofrimento. Não sofre a sagrada
natureza?... A vontade que não sofre é sono, e sem morte não há vida".
Hiperion acaba por exaltar a sua própria dor: "õ alma, beleza do mundo,
indestrutível, enfeitiçante! Com a tua eterna juventude existes; mas o que é a
morte e toda a dor do homem? Muitas palavras vãs fizeram os homens estranhos.
Tudo nasce portanto da alegria e tudo termina na paz". Esta conciliação do
mundo que Hegel consegue através da dialéctica da ideia, consegue-a Hõlderlin
com o sentimento da beleza infinita.

248
SCHLEGEL

§ 540. SCHLEGEL

A criação do romantismo literário, na sua derivação fichtiana, pode-se


distinguir claramente na obra de Friedrich SchIegel (1772-1829). Depois de uma
série de ensaios sobre a poesia antiga, SchIegel publicava em 1789 uma
História da poesia dos gregos e dos romanos e dava início, no mesmo ano, em
colaboração com o irmão August WilheIra, à publicação do "Atheneum" que foi o
órgão da escola romântica e durou até 1800. Nesta revista foram publicados os
escritos filosóficamente mais significativos de Schlegel (Fragmentos, 1798;
Ideias, 1800; Diálogo sobre a poesia, 1800). Outros Fragmentos de Schlegel
haviam sido publicados no periódico "Lyceum" em
1797. Depois de 1795, nas cartas ao seu irmão Guilherme (Briefe, ed. Walzel,
p. 236, 244), SchIegel pronuncia-se do modo mais entusiástico sobre a

doutrina de Fichte. E no final do ensaio Sobre o estudo da poesia grega (1795,


mas publicado em

1797) depois de ter delineado três períodos da teoria estética, o primitivo,


dominado pelo princípio da autoridade, o dogmático da estética racional e
empírica, e o crítico, SchIegel reconhece em Fichte aquele que poderá conduzir
a bom termo a estética críflica. "Depois de Fichte descobrir (afirma ele em
Jugendschriften, ed. Minor, 1, p. 172-73) o fundamento da filosofia crítica,
passou a existir um princípio seguro para rectifficar, completar e levar a
cabo o Plano kantiano da filosofia prática; e deixa de ter justificação a
dúvida sobre a possibifidade de um

sistema objectivo das ciências estéticas, práticas e

249

teóricas". Na verdade, o conceito da poesia romântica, tal como foi definido


por SchIegel, não é mais que a transferência para o campo da poesia,
considerada como mundo em si, do princípio fiffitiano do infimito. A poesia
romântica é a poesia infinita. Ela é universal e progressiva. "0 seu fim não é
o de reunir novamente os géneros poéticos que se sopararam e de pôr em
contacto a poesia com a filosofia e com a retórica. A poesia quer e deve mesmo
misturar, combinar poesia e prosa, genialidade e

crítica, poesia de arte e poesia ingénua, tornando viva e social a poesia,


poétiica a vida e a sociedade, poetizando a argúcia, preenchendo e saturando
as formas de arte como o mais variado e puro material de cultura e animando-a
com vibrações de humour". Identificada com o infinito, a poesia absorve em si
o mundo todo e encarrega-se de tarefas que surgem fragmentadas e dispersas nos
váilios aspectos da cultura. "Só ela é infinita, como só ela é livre,
reconhecenJo como sua primeir lei a seguinte: o arbítrio do poeta não suporta
lei alguma" (Fragm., 116). A poesia transfigura o homem no infinito e no
eterno; por isso a sua função é essencialmente religiosa. À volta deste tema,
o da religiosidade da poesia, se debate o ensaio Ideias. "Toda a relação do
homem com o infinito é religião, acto do homem em

toda a plenitude da sua humanidade". Se o matemático calcula o infinitamente


grande, não quer dizer que isso seja religião. Só o infinito pensado com
aquela plenitude é a divindade" (Ideen, 81). Mas "só pode ser artista aquele
que tem unia religião, uma intuição original do infinito" (1b., 13); por isso
o

250

artista verdadeiro é também o verdadeiro mediador religioso do género humano.


"Mediador é aquele que exorta em si o divino, sacrificando-se e apagando-se
para anunciar esse mesmo divino, para o participar e representar a todos os
homens por meio dos costumes e das acções, com palavras e com obras. Se este
impulso não existe, então é porque o que foi exaltado não era divino ou não
era particularmente forte. Ser mediador entre o humano e o divino é tudo
quanto de mais superior pode haver no homem; e todo o artista é mediador entre
o divino e todos os outros homens" (Ib., 44). A ideia de infinito reúne a
poesia, a filosofia e a religião de modo tal que nenhuma destas actividades
pode subsistir sem a outra. "Poesia e filosofia são, conforme se entender,
esferas e formas diferentes ou ainda factores da religião. Com efeito, tentai
reuni-las verdadeiramente: não obtereis senão religião" (Ib.,
46). No Díálogo sobre a poesia a própria filosofia de Espinosa é considerada
como expressão de um sentimento verdadeiramente poético, o sentimento ida
divindade do homem. A separação entre o que é eterno e o que é individual e
simples, própria do espinosismo, é, segundo SchIegel, o ponto de partida da
fantasia poética; e a nostalgia do divino, a

grandeza calma da contemplação, que são os traços do sentimento espinosiano,


constituem "a centelha de toda a poesia".

No mesmo Diálogo, o romântico é definido como "o que representa uma matéria
sentimental numa

forma fantástica", definição em que se entende por sentimental sobretudo o


movimento espiritual do

251

amor, que é "uma substância infinita" e perante a mesma, tudo o que o poeta
pode abarcar "é apenas um sinal do que mais alto, infinito e hieroglífico
existe no único e eterno amor: a sagrada plenitude de vida da natureza
criadora". O sentimento implica, portanto, uma outra coisa que caracteriza a
tendência da poesia romântica: indistinção entre aparên- cia e verdade, entre
o sério e o jocoso. Numa palavra, implica e justifica a ironia. "A ironia,
afirma SchIegel (Ideen, 69), é a clara consciência da agilidade eterna, do
caos infinitamente pleno": palavras que implicam, nitidamente, o infinito como
indefinido e como movimento no indefinido. "Uma ideia é um conceito levado até
à ironia, uma síntese absoluta das sínteses absolutas, a contínua alternância
auto-geradora de dois pensamentos em conflito entre si". A ideia não permanece
confinada à esfera do ideal, mas implica o facto. No entanto, isso implica
também uma liberdade absoluta perante o facto, e esta absoluta liberdade é a
ironia. "Transferir-se arbitrariamente ora para esta, ora para aquela esfera,
como para um outro mundo, não apenas com o intelecto e com a imaginação, mas
com toda a alma; renunciar livremente ora a esta, ora àquela parte do próprio
ser, e limitar-se completamente a uma outra; aproximar-se e encontrar o
próprio uno e o todo, ora neste, ora naquele indivíduo, e olvidar
voluntariamente todos os outros: isto só pode ser conseguido por um espírito
que contenha em si como que uma pluralidade de espíritos e todo um sistema de
pessoas, e em cujo íntimo o universo, que como se diz, está em germe em todas
as mónadas, se desen252

volveu e alcançou toda a sua maturidade" (Fragm.,


1211). Aquilo que em Fichte era a liberdade do princípio infinito é em
Schlegel o arbítrio absoluto do génio poético. Face a todas as suas criações,
o génio poético mantém a sua posição irónica e recusa-se a Tomá-la a sério:
porque sabe que elas são finitas, logo irreais, e que a realidade é ele
próprio, o génio, ou a actividade infinita que se manifesta no seu arbítrio.

O romantismo foi nestes termos a aspiração dos anos de juventude de SchIegel;


depois da morte de Novalis, começou a aproximar-se do catolicismo até acabar
por fazer da sua filosofia uma defesa da revelação, da Igreja e do Estado. Nas
Lições sobre a filosofia da vida (1828) e nas Lições sobre a filosofia da
história (1829), SchIegel reconhece como princípio do saber a revelação que
Deus faz de si no mundo da natureza, no mundo da história, e nas Sagradas
Escrituras. A unidade do finito e do infinito aparecia em SchIegel, nesta
última fase da sua especulação, entendida como revelação no infinito; e este
conceito acabaria por adquirir, no posterior desenvolvimento do espírito
romântico, uma importância cada vez maior.

§ 541. ROMANTISMO: NOVALIS

Juntamente com Frederico Schlegel, Tieck e Novalis são os arautos do


romantismo literário. Ludwig Tieck (1773-1853) foi poeta e literato e
representou nas personagens dos seus romances o espírito do romantismo. No seu
William Loveel, a ironia encontra a sua mais perfeita incarnação. "Nós somos,

253

afirma, o destino que rege o mundo. Os seres existem porque nós os pensamos; a
própria virtude é apenas um reflexo do meu sentimento interior (Werke, VI, p.
178). Esta concepção do homem como um mago invocador do mundo, criador e

destruidor da realidade, encontra a sua melhor expressão na obra de Friedrich


von Hardenberg, Novalis (1772-1801). Num romance, Heinrich von Hofterdingen,
num outro romance incompleto, os discípulos de Sais, e nos Fragmentos, alguns
publi- cados no "Atheneum", este sonhador que morreu tísico aos 29 anos
celebra com palavras entusiásticas o poder infinito do homem sobre o mundo.
Como SchIegel, Novalis parte também de Fichte; mas recusa-se a reconhecer ao
não-eu. qualquer poder sobre o eu. "Aos homens, afirma Novalis (Schriften, ed.
Heiborn, 1, p. 385), nada é impossível: eu posso aquilo que quero". Na raiz do
mundo existe a força criadora da vontade divina, e o homem pode e deve
coincidir com ela. Esta coincidência é a fé. "Toda a crença é maravilhosa e
milagrosa. O próprio Deus existe no momento em que creio nele. Com a crença
podemos em qualquer momento produzir, para nós e também para os outros, o
milagre da criação" (lb., p. 571). Este milagre pode realizar-se através dos
sentidos, que são apenas modificações do órgão do pensamento, do elemento
absoluto em

que se origina a realidade. O pintor tem já, em

certo grau, o seu poder no olhar, o músico no ouvido, o poeta na imaginação, o


filósofo no pensamento. Mas estes génios particulares devem unir-se: o génio
deve ser total e passar a ser dono do próprio corpo

254

e também do mundo (1b., p. 176). Com efeito, para Novalis o mundo é "um índice
enciclopédico e sistemático do nosso espírito, uma metáfora universal, uma
imagem simbólica daquele" (Ib., p. 142). O mundo tem, por conseguinte, uma
capacidade originária de ser vivificado pelo espírito. "0 mundo é vi,v~o por
num a priori, faz comigo uma só

coisa, e eu tenho uma capacidade originária para vivificai-lo" (lb., p. 315).


Esta vivificação do mundo é a transformação do sistema da natureza no sistema
da moral, transformação que pertence ao homem. "0 sentimento moral, afirma
Novalis (1b., 11, p. 375), é em nós o sentimento do poder absoluto de criar, o
da liberdade produtiva, da personalidade infinita do microcosmos, da divindade
propriamente dita que em nós existe".

Este dilatar-se do homem no sentido do infinito, este seu transformar-se em


vontade divina criadora da natureza e omnipotente, é o fundamento do idealismo
mágico de Novalis. Mago é pois aquele que sabe dominar a natureza até ao ponto
de colocá-la ao serviço dos seus fins arbitrários. Este é o ponto que o homem
pode atingir, segundo Novalis, através da poesia. E que o pode atingir,
demonstra-o a

matemática. Novalis vê na matemática a explicação do poder infinitamente


criador do pensamento. Ela é a própria vida divina; é portanto religião: Mas
acima de tudo é arte porque é "a escola do génio". Se a matemática encontra
limites ao seu poder, é porque nela entra o saber, e a actividade criadora
cessa com o saber. A poesia é uma matemática que não tem limites e é por
conseguinte uma arte infini255

tamente criadora. Só ela, segundo a imagem dos Discípulos de Sais, consegue


levantar o véu de Iside e penetrar no mistério. A própria filosofia não é mais
que a teoria da poesia: serve para demonstrar o que ela é e como é o uno e o
todo (Ib., 11, p.
89-90). Tratar a história do mundo corno, história dos homens, descobrir por
toda a parte e apenas factos e relações humanas, é uma ideia que deve estar
presente; a própria causalidade da natureza se liga quase de per si à ideia da
personalidade humana, e a natureza torna-se mais compreensível quando
considerada como um ser humano. Por isso x poesia foi sempre o instrumento
favorito do verdadeiro amigo da natureza, e na poesia surge com maior clareza
toda a espiritualidade da natureza (lb., 1, p. 215). Esta animização da
natureza é, como se vê, o princípio da magia; e o idealismo de Novalis é na
verdade um idealismo mágico, mas só no sentido de que a magia é a própria
poesia. Nestas teses tão ingenuamente extremistas, o princípio do infinito
surge em toda a sua força, se bem que arrancado à necessidade dialéctica que o
limitava na expressão racional que tinha encontrado em Fichte.

§ 542. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER

O carácter religioso do romantismo revela-se de forma típica na obra de


Friedrich Daniel Ernst SchLeiermacher, que foi amigo de SchIegel e colaborador
do "Atheneum". Schleiermacher nasceu em Breslavia a 21 de Novembro de 1768 e
estu256

dou teologia em Hafi, e. Em BePlirn, onde era pregador, conheceu, no salão de


Henriette Herz, mulher de Marcus Herz, o discípulo de Kant, Friedrich
SchIegel, com quem se ligou de amizade e entrou para o grupo romântico. Em
1799, publicou o seu primeiro trabalho, Discursos sobre a religião, a que se
seguiram em 1800, os Monólogos. No mesmo ano de 1800 publicava as Cartas
Confidenciais sobre o

romance de SchIegel, Lucinda, em que sustentava de acordo com SchIegel, a


unidade do elemento espiritual e do elemento sensível no amor, e daí o
carácter sagrado e divino deste sentimento. Estas ideias, e talvez a relação,
ainda que puramente espiritual, com a mulher de um colega, Eleanore Grunow,
fizeram com que fosse obrigado (em 1802) a deixar Berlim. Em 1903 publicava a
Crítica da doutrina moral; no ano seguinte foi designado professor de teologia
e filosofia em Halle: neste período leva avante e termina a tradução dos
diálogos de Platão e de alguns estudos platónicos. Em 1810, com a fundação da
Universidade de Berlim, passa a ser professor de teologia nesta Universidade
até morrer, em 12 de Fevereiro de 1834. Em 1821-22, publicava a sua maior obra
teológica, A fé cristã. Depois da sua morte foram publicados os cursos

de filosofia que deu em Halle e em Berlim, cursos que comprendem uma História
da filosofia, uma

Dialéctica, uma Ética, uma Estética, uma Doutrina do Estado e uma Doutrina da
Educação.

As investigações de Dilthey sobre as cartas e manuscritos de juventude


(inéditos) de Schleiermacher vieram trazer luz sobre as primeiras orientações

257

do seu pensamento. A primeira atitude de Schleiermacher foi a de um marahsmo


crítico e circunspecto: mantinha o ponto de vista kantiano da limitação da
consciência ao mundo da experiência e da moralidade autónoma, mas recusava-se
a aceitar as integrações metafísicas e religiosas que o próprio Kant tinha
dado ao seu ponto de vista. Assim, sustentava ser impossível qualquer acesso
ao supra-sensível, mesmo pela via da moralidade e contrária à pureza da vida
moral a crença numa recompensa extra-terrena. A leitura das Cartas sobre
Espinosa de Jacobi, e em seguida, das obras de Espinosa, veio produzir uma
alteração no seu pensamento encaminhando-o na direcção desse princípio do
infinito que viria a dominar depois a Doutrina da ciência de Fichte. De início
Schleiermacher opõe-se ao racionalismo de Fichte; mas o princípio fichtiano do
infinito foi por ele utilizado como fundamento de uma doutrina da religião,
que exprime o mesmo

ideal da escola romântica. Esta doutrina influenciou fortemente o


protestantismo alemão e anglo-saxónico e constitui indubitavelmente uma das
soluções típicas do problema religioso no mundo moderno.

§ 543. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER: A DOUTRINA DA RELIGIÃO

Schleiermacher preocupa-se, antes de mais, em

estabelecer a autonomia da religião perante a filosofia. e a moral. A religião


não aspira a conhecer e a explicar o universo na sua natureza, como faz a
metafísica; não aspira a continuar o seu desenvolvimento e a aperfeiçoá-lo
mediante a liberdade e a vontade

258

do homem, como faz a moral. A sua essência não é nem o pensamento nem a acção,
mas a intuição e o sentimento. A religião aspira a intuir o universo na forma
do sentimento. A filosofia e a moral, do universo não vêem senão o homem; a
religião no homem, como em todas as outras coisas particulares e finitas, não
vê senão o infinito (Reden, 11, trad. ital., p. 36). A religião não é mais que
o sentimento do infinito. Segundo este ponto de vista, Schleiermacher vê em
Espinosa a mais elevada expressão da religiosidade. "0 sublime espírito do
mundo penetrava nele, o infinito era o seu princípio e o seu fim, o universo o
seu único e eterno amor" (1b., p. 38-39). No entanto ele distingue-se de
Espinosa ao sustentar que a expressão necessária do infinito é apenas o

sentimento. Resolver o finito no infinito, considerar todos os acontecimentos


do mundo como acções de Deus, é religião. Mas gastar-se o cérebro procurando
provas sobre a existência de Deus, anterior e exterior ao mundo, é coisa que
está para lá da religião. Esta está necessariamente conexa com a forma do
sentimento porque só o sentimento nos pode revelar o infinito. A infinitude na
religião é a infinitude no sentimento. "A religião é infinita não só porque as
acções e as paixões, ainda que através da mesma matéria finita e do espírito,
mudam infinitamente, não só porque é por demais indeterminável no interior
como a moral, mas é também infinita e na sua forma, no seu ser, na visão e na
ciência em todos os lados; é um infinito na sua matéria e na sua forma, no seu
ser, na visão e na ciência que nela existem" (lb., p. 43). Por meio desta
infi259

nitude, a religião descobre-se e reconhece-se na história, mas na história


enquanto tende a progredir para além da própria humanidade, na direcção do
infinito. A humanidade tem com o universo a mesma relação que cada um dos
homens tem com aquela: é uma forma particular, uma modificação individual do
todo. Como tal, é apenas um anel intermédio entre o indivíduo e o Uno, uma
etapa na via que conduz ao infinito. Por isso todas as religiões apontam para
algo que está fora e acima da humanidade, para algo de incompreensível e de
inexprimível. Segundo este ponto de vista, o milagre e a revelação perdem a
sua importância. Estas palavras apenas implicam uma referência entre certo
fenómeno e o infinito, são os nomes que as religiões dão àquilo que, fora da
religião, se chamam factos. Do ponto de vista da religião, tudo é milagre e
revelação; mas por isso nada o é de forma especial. Schleiermacher combate no
entanto o princípio de que "som Deus não há religião": de Deus e da sua
existência pode-se falar no âmbito de uma particular intuição religiosa; mas
todas as especiais intuições religiosas implicam a religião. "Deus não é tudo
na religião, é uma parte, e o universo, representa nela mais que Deus". Assim
a imortalidade individual não é uma aspiração religiosa; há-de ser sempre uma
aspiração ao infinito, a sair, por conseguinte, dos limites da individualidade
finita e a renunciar a uma vida miserável. "Tornar-se-á uma só coisa com o
infinito, e estar no entanto no finito, ser eterno num momento do tempo, tal é
a imortalidade da religião" (1b., p. 86).

260

Da aspiração ao infinito, que constitui a religião, nasce a tendência para a


comunicação e daí a existência da organização eclesiástica. O sentimento do
infinito toma o homem capaz de poder abarcar apenas uma pequena parte, e leva-
a o perceber através da mediação dos outros aquilo que ele não pode perceber
imediatamente. A organização desta recíproca comunicação é a igreja, a
sociedade religiosa, que nenhum indivíduo pode abarcar na totalidade que, pela
sua complexidade, é tanto quanto a religião, a religião infinita, que nenhum
indivíduo pode abarcar na sua totalidade e na qual ninguém pode ser educado ou
criado (lb., IV, p. 125). A infinidade da religião explica e justifica a
diversidade de religiões. A religião infinita não pode existir senão na

medida em que todas as infinitas intuições religiosas são reais, e reais na


sua diversidade e na sua recíproca independência. Todo o indivíduo tem a sua
religião; e esta pode integrar-se mais ou menos nas religiões já
estabelecidas. E ainda que permaneça obscura a intuição de um indivíduo, é
todavia sempre um elemento da infinita religiosidade universal (1b., V, p.
173-74). Mas já não é religião, a religião natural do iluminismo, que é
demasiado genédea e

descarnada, e cuja substância não passa da polémica contra o elemento positivo


e característico da religiosidade.

Podemos ver como a lógica intrínseca do princípio do infinito leva


Schleiermacher, no domínio da religião, a uma conclusão análoga a que o mesmo
princípio tinha levado Hegel no domínio da realidade em geral. A conclusão é a
justificação do finito,

261

Dão enquanto finito, mas enquanto é, na sua substância, infinito. Todas as


manifestações singulares igualmente se justificam porque exprimem todas o

sentimento do infinito e constituem no seu conjunto a religião infinita. Mas


enquanto que para Hegel o infinito é razão, ainda que absorvendo e anulando a
individualidade, para Schleiermacher o infinito é sentimento e daí exaltar a
individualidade. O romantismo está destinado a oscilar entre a negação da
individualidade e a sua exaltação, ignorando o equilíbrio da fundação da
própria individualidade. Os Monólogos de Schleiermacher (como os Fragmentos de
Novalis) constituem neste ponto a exaltação religiosa da individualidade. "
Cada homem, afirma ele "Mon., II, trad. ital. p. 231), está destinado a

representar a humanidade de um modo que lhe é próprio, mediante uma combinação


original dos seus elementos, de forma a que aquela se possa revelar de todas
as maneiras e tudo o que pode derivar do seu seio possa realizar-se na
plenitude de um tempo e de um espaço ilimitados". A variedade dos indivíduos é
necessária à infinita vida da humanidade, porque é a realização da mesma.
"Tornar-me cada vez mais naquilo que sou, esta é a minha vontade". Mas tornar-
me naquilo que sou significa ser infinitamente livre, e o poder tudo arrasta
consigo uma

consequência: não se ser o próprio. "A única impossibilidade de que tenho


consciência é a de transcender os limites que ponho à minha natureza com o
primeiro acto da minha liberdade". Em razão deste limite intrínseco,
determinado pela escolha originária de si próprio, o homem pode tudo. Aquilo

262

que a realidade lhe recusa, concede-lhe a fantasia. "Oh, se os homens


soubessem usar esta divina faculdade da fantasia, que pode libertar o espírito
e

colocá-lo acima de todas as limitações e de todas as coacções, e sem a qual a


vida do homem é tão mesquinha e angustiante!" (1b., p. 268). E deste modo, o
poder e a infinita liberdade do homem se transformam em evasão, tipicamente
romântica, do mundo e da realidade, no mundo da fantasia, do romance e da
fábula.

Vimos como as diversas religiões todas se justificam porque todas no seu


conjunto constituem a

religião infinita. Schleiermacher distingue três tipos diferentes de


religiões, que são determinados por três diversas intuições do mundo. A
primeira é aquela com que o mundo é um caos e na qual portanto a divindade
surge representada ou numa

forma pessoal como fetiche ou numa forma impessoal como um destino cego. A
segunda é aquela em que o mundo surge representado na multiplicidade dos seus
elementos e das suas forças heterogéneas, e a divindade é concebida ou sob a
forma de politeísmo (religião greco-romana) ou como reconhecimento da
necessidade natural (Lucrécio). A terceira forma é aquela em que o ser surge
representado como totalidade e unidade do múltiplo, e a

consciência da divindade assume a forma de monoteísmo e de panteísmo. Esta


última forma é a mais elevada, e os homens tendem a alcançá-la através da
história. O judaísmo e o cristianismo são considerados por, Schleiermacher
como manifestações superiores de religiosidade. A ideia central do judaísmo

263

é a de "uma retribuição universal imediata, de urna

reacção automática do infinito contra qualquer facto particular finito que


derive do livre arbítrio, por meio de um outro facto finito não considerado
como derivando do livre arbítrio".

A ideia central do cristianismo é pelo contrário "a intuição da oposição geral


do finito contra a unidade do todo e do modo como a divindade trata esta
oposição, do modo como reconcilia a inimizade contra si e põe ter-mo ao
afastamento cada vez maior de si mediante pontos particulares, disseminados
por toda a parte, e que são no seu conjunto algo de infinito e de finito, de
humano e de divino". O cristianismo tende a intuir o infinito na religião e na
sua história, e por conseguinte, faz da própria religião a matéria da
religião. Ele é essencialmente porque impele continuamente os homens para o
infinito e para o eterno. Jesus é portanto o mediador da reconciliação do
finito com o infinito. A unidade da natureza divina e da humana existente nele
é a própria unidade que a religião realiza entre o finito e o infinito. Sendo
superior a todas as outras religiões, o cristianismo não está todavia, segundo
Schleiermacher, destinado a observar as outras e a tornar-se a única forma de
religião. "Assim como não há nada de mais irreligioso que existir uniformidade
na humanidade em geral, também nada existe de menos cristão que procurar uma
uniformidade na religião". O desenvolvimento da vida religiosa exige
liberdade, e por conseguinte, a separação da Igreja e do Estado.

264

SCHLEIERMACHER

§ 544. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER: A DIALÉCTICA

Do sistema filosófico que Schleiermacher expõe nos seus cursos universitários


e que deixou inédito, as partes mais vivas são a Dialéctica e a Ética. MEW Ir,
1=. MP-- é a de

1822) mostra, por um lado, uma subentendida intenção polémica contra a lógica
de Hegel, por outro uma tentativa de reconduzir esta disciplina ao seu
originário significado platónico. O estudo dedicado de Platão devia ter
sugerido a Schleiermacher esta tentativa, cujos pontos principais são os da
refutação do princípio hegeliano da identidade do pensamento e do ser. A
dialéctica surge definida por Schleiermacher como a "arte de conduzir um
discurso de forma a suscitar representações que sejam baseadas apenas na
verdade" (Dialektik, od. Oderbrecht, p.
48). Neste sentido, a dialéctica é mais extensa que a filosofia porque as suas
regras têm valor para qualquer objecto, independentemente do seu conteúdo
filosófico. Mas por outro lado, a filosofia, na medida em que se ocupa
imediatamente dos princípios e da coerência do saber, é necessária à
dialéctica e condiciona-a em todos os campos. O carácter que assinala a
dialéctica moderna perante a antiga é o da sua religiosidade. Para a
dialéctica moderna a unidade e a totalidade do saber só é possível em conexão
com a consciência religiosa de um ser absoluto (1b., p. 91). Uma tal
consciência é pressuposto originário da dialéctica, que deve partir de uma
situação de diversidade e de conflito das representações entre si

265

e que deve alcançar a unidade e a coerência das representações. Mas para


prosseguir do seu ponto de partida até ao seu ponto final, da multiplicidade à
unidade, do conflito à coerência, deve pressupor um saber originário e regras
de combinação originárias, que devem ser admitidas como interiores em todos os
homens e que a própria dialéctica deve esclarecer e trazer à luz.

Com um tal fundamento a dialéctica tem como fim a construção de todo o saber
na sua coerência. Neste objectivo está implícita a eliminação de todo o
conflito e a unificação do saber fragmentário num todo coerente.
Schleiermacher divide por isso a dialéctica em duas partes: a parte
transcendental que diz respeito ao saber originário que é o guia e a norma da
construção do saber, e a parte formal que diz respeito a esta mesma
construção, ou seja, as operações de divisão e de unificação do pensamento.

O transcendental é entendido como condição do processo dialéctico, como saber


originário que o encaminha e constitui a norma. Mas o saber possui duas
características, uma subjectiva, outra objectiva: é produto comum da razão
humana por um lado, e do organismo humano, por outro. A oposição entre estes
dois pólos (entre o material orgânico das impressões e a forma da razão) é a
oposição entre o real e o ideal. O ser como objecto do pensamento, enquanto
está ou pode estar presente em nós através da função orgânica, é o real. O
pensamento é o próprio processo a - través do qual o ser se torna interior no
que pensa, é o ideal. Ideal e real constituem a

266

unidade do ser (Id., p. 177). Tempo e espaço estão entre si como ideal e real:
o ser ideal é o próprio conceito do tempo concreto, tal como o ser real é o
conceito do espaço concreto.

Como se disse, o saber originário deve ser de qualquer modo a unidade destes
dois pólos. Esta unidade é o sentimento (Gefühl) como autoconsciência
imediata. Schleiermacher considera o sentimento como identidade do pensar e do
querer. Todo o pensamento, considerado como um acto ' se relaciona com
um querer porque é sempre vontade de discurso e de comunicação com outros; e
todo o querer, se é claro e determinado, tem na sua base um claro e
determinado pensamento (Ib., p. 126), Mas a identidade do pensar e do querer é
uma

contínua passagem de um ao outro, e esta passagem é a pura autoconsciência


imediata ou sentimento (lb., p. 287). Enquanto é imediatidade, o sentimento
distingue-se do eu, que é autoconsciência reflexa. Enquanto unidade ou
coerência e superação de oposições, o sentimento refere-se ao Ser
absolutamente uno e coerente que está na base de todo o outro ser. Esta
referência é particularmente clara no sentimento religioso, no qual o
fundamento transcendente ou ser

supremo encontra a sua representação mais elevada.


O sentimento religioso é o sentimento de independência do finito em relação ao
infinito, do condicionado em relação ao incondicionado, ou seja. do ser
dilacerado e eternamente em conflito em relação ao ser uno e perfeitamente
coerente (1b., p. 298 sgs.). o sentimento religioso é o reflexo do Ser.
Schleiermacher recusa a tese hegeliana (sem

267

referir expressamente) de que a mais alta representação do fundamento


transcendente do ser seja a filosofia. Mas, por outro lado, também se recusa a
subordinar a actividade especulativa à religião. As duas actividades são
complementares, porque a autoconsciência ou sentimento imediato não existe por
si, é sempre condicionada pelas duas outras funções do pensar e do querer. A
autoconsciência não subsiste na sua pureza, daí a sua impossibilidade de
realizar a pura representação do fundamento transcendente, porque é sempre
autoconsciência finita, deve encontrar o seu complemento nas funções finitas
do pensar e

do querer. A análise da autoconsciência como tal é a doutrina da fé: mas dada


a natureza da autoconsciência, esta doutrina jamais consegue alcançar o
fundamento transcendente e acaba por cair sempre no antropomorfismo. "Em todas
as doutrinas da fé, sejam monoteístas, sejam poiliteístas, domina uma mescla
inextrincável do fundamento transcendente e de uma analogia com a consciência
humana. Este antropomorfismo tem o seu fundamento na consciência do finito com
o qual a autoconsciência se encontra misturada" (1b., p. 296-297). Quanto à
natureza do fundamento transcendente, este tem um valor duplo: um valor real
enquanto ideia do mundo, totalidade do ser, que pode assumir ou a forma de
conceito (força absoluta e plenitude absoluta dos fenómenos) ou a forma de
juizo (sujeito absoluto e absoluta multiplicidade dos predicados); e

um valor aproximativo e simbólico, enquanto exprime o próprio fundamento


transcendente, ainda que nunca de forma adequada (sentimento ou
autoconsciência).

268

Daqui resulta que o fundamento transcendente pode assumir ou a forma da ideia


de Deus ou a forma da ideia do mundo: mas qual é a relação entre estas duas
ideias? Schleiermacher recusa-se a estabelecer uma relação de dependência, que
está implícita no conceito de criação. "Não há Deus sem

mundo, como não há mundo sem Deus", diz ele (1b., p. 303). Lógicamente poder-
se-ia dizer que Deus é "unidade com exclusão de toda a oposição", mas

esta fórmula deixaria de fora o x porque o mundo não pode existir sem Deus e
Deus sem o mundo. Com efeito, se Deus tivesse preeminência sobre o mundo é
porque haveria nele algo que não concUdonaria o mundo; e se o mundo tivesse
preeminência sobre Deus é porque haveria naquele algo que não estava
condicionado por Deus. A conclusão é de que a

ideia do mundo e a de Deus devem estar sempre conexas; e só nesta conexão


valem como fundamento transcendente e por conseguinte como norma absoluta do
saber. A ideia do mundo é o terminus ad quem do saber que procura adequar-se
àquela no seu

infinito processo. A ideia de Deus é o terminus a quo do pensamento que deve


reconhecer como fundamento toda a realidade temporal e espacial um

ser eterno. "0 fundamento transcendente permanece sempre fora do pensamento e


do ser real, ainda que seja o fundamento transcendente de ambos. Por isso não
pode existir outra representação desta ideia que não seja a da imediata
autoconsciência: em ambas as formas da função do pensamento, aquela jamais
poderá ser alcançada, nem como terminus ad quem nem como terminus a quo" (Ib.,
p. 307).

269

Nesta parte transcendental da dialéctica, Schleiermacher pretendeu determinar


a primeira condição do saber humano e reconheceu-a num fundamento
transcendente que surge representado, na sua forma mais adequada, pelo
sentimento. Depois de longa explanação, acaba por confirmar assim a tese
fundamental dos Discursos e dos Monólogos; mas esta tese adquire também uma
limitação importante. Se o sentimento religioso ou autoconsciência é a unidade
do finito com o infinito, ela só é na forma do finito, e não

do infinito. A polémica com Hegel levou-o provàvelmente a esta limitação. A


dialéctica de Schleiermacher não conduz, corno a de Hegel, à dissolução do
finito, mas antes à determinação de uma representação finita, religiosa, do
infinito. Daí a definição do sentimento religioso como sentimento de
dependência.

A parte formal da Dialéctica considera o pensamento no seu devir, o pensamento


em movimento, enquanto se socorre da ideia de mundo e de Deus como d-. um
princípio construtivo do saber. Esta parte da Dialéctica subdivide-se em duas
outras partes que são: a construção de um pensamento em si e por si através de
conceitos e juízos; a combinação de um pensamento com outros pensamentos,
através da eurística e da arquitectónica. A eurística é a combinação com o
exterior de um pensamento dado com outros pensamentos dados; a
arquitecitóritica é uma combinação com o interior, é a redução de uma
multiplicidade à unidade, a construção de uma ordem. Esta segunda parte da
Dialéctica de SchIeier270

macher teve uma influência importante nas pesquisas lógicas e gnoseológicas


dos neo-kantianos.

§ 545. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER: A ÉTICA

A ética de Schleiermacher é de inspiTaÇão kantiana: move-se no âmbito do


finito e precisamente na posição entre o ser espiritual e o ser natural, o
primeiro interpretado como ser cognoscente, o segundo como ser conhecido
(Ethik, ed. Schiele, p. 8). A actividade ética é a que tende a superar esta
<>p~o e a realizar a unidade. Consiste na acção da razão, no sentido de
produzir a unidade da natureza e do espírito que sem esta acção não seria
possível; ela é ao mesmo tempo uma acção da razão sobre a natureza e traduz-se
numa naturalização, sempre iniciada e nunca totalmente conseguida, da própria
razão. Daqui resulta que a pura razão e a vida puramente espiritual ou santa
não entram no domínio da ética, que apenas diz respeito à razão natural e à
vida
que luta sobre a terra (1b., p. 15). Segundo este ponto de vista a antítese,
recolhida em Kant, entre natureza e liberdade, atenua-se até desaparecer. "No
domínio do ser, tudo é ao mesmo tempo livre e necessário: livre enquanto há
identidade e unidade de forças e manifestações; necessário, enquanto forças e
manifestações se distinguem" (1b., p. 18). Esta conexão entre

liberdade e necessidade veriflica-se no próprio campo da ética, que por isso


não se opõe como domínio da liberdade ao domínio da necessidade natural.

271

Schleiermacher admite um paralelelismo perfeito entre a física e a ética. A


ética é a representação do ser

finito sob o poder da razão, a física a representação do ser finito sob o


poder da natureza: a oposição é apenas relativa ao ser finito, mas
absolutamente, ou seja, no completo desenvolvimento das duas ciências, a

ética é física e a física é ética (1b., p. 6 1). Daqui não deriva no entanto
uma anti-razão, um antideus,

e a oposição entre o bem e o mal é sempre relativa. "0 bem e o mal, afirma
Schleiermacher (Ib., p.
63), não exprimem mais que os factores positivos e negativos no processo de
unificação entre a natureza

e a razão, e por isso não podem ser compreendidos senão através da pura e
completa representação desse processo".

Como já acontecera nos Monólogos, Schleiermacher defende na Ética o valor da


personalidade individual. A razão existe apenas na forma da personalidade; por
isso "a razão que se encontra completamente unida à personalidade é a força
elementar de que resulta o processo ético em toda a sua totalidade" (Ib., p.
67). A ética pode ser considerada segundo três pontos de vista que são também
aqueles sob os quais ela sempre se apresentou historicamente, como doutrina,
do bem, doutrina da virtude e doutrina do dever. O bem supremo é a unificação
total da natureza com a razão, e os bens particulares são os resultados desta
unificação. A virtude é a

função da natureza humana que se tornou força racional. O dever é o conceito


da acção moral. A acção da razão sobre a natureza pode ser ou organizadora e
formativa ou simbólica. No primeiro

272

caso dá lugar ao domínio das relações comerciais e

sociais, no segundo caso ao domínio do pensamento e do sentimento. Assim


surgem as quatro éticas fundamentais: direito, sociabilidade, fé e revelação;
a que correspondem os quatro organismos éticos: estado, sociedade civil,
escola e igreja, ~smos que têm na família o seu princípio comum. A tude
aparece considerada em Schleiermacher o ponto de vista da intenção e o da e os
deveres aparecem divididos em amor e deveres de direito. deveres .'Á Z~

e deveres de consciência- Mas estas &~,a o" sificações puramente escolástica


de Schleiermacher não apresentam senão um escasso interesse.
NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 5,38. sobre o romantismo: R. Haym, Die romantische Schule, Berlim, 1870, 4.a
ed. ao cuidado de
O. Walzei, 1920; J. H. Schlege@l, Die Neuc RonwntW in ihreM Entstehen und
ihrem Beziehungen zur Fichtschen Philosophie, Rastatt, 1862-64; W. DiltheY,
Die Erlebnis und die Dichtung. Lessing, Goethe, Novalis, H61derlin, Leipzig,
19(>6, trad. iW. N. Accolti Gil VItale, Milão, 1947; O. WaJzel, Deutsche
Romantik, trad- ital. Sa,ntoli, Florença, s. d.; A. ParinClUi, II romant~O in
Germania, Bari, 1911; M. Deutschboin, Das Wesen des Romantischen, Gothen,
1921; G. stefansky, Das Wesmi der deutschen Romantik, Stuttgart 1923; N.
Hartn~, Di,e Philosophie des deutschen IrealiSMUS, Berlim, 19-23; A. Korff, in
"Studi germanici", 1937, fase. 4.'.

§ 539. Hõ~lin, SãmNiche Werke, ed. 1-101lingrath, Munique, 1913; ed.


Zinkernagel, Leipsig, 1914; Hi~ne, trad. itaL Altero, Turim, 1931.

273

Dilthey, Die Erlebnis und die Dichtung, cit.; G. V. Amoretti H., Turim, 1926;
E. Fischer, H., Berlám, 1938; i. Hoffmeister, H. und die Philosophie, ~ig,
1912.

§ 540. F. Sehlegel, Sãmtliche Werke, 10 vols., Viena, 1822-25; 15 vols.,


Viena, 1864; Seine prosaischen Jug~chriften, ed. 1~r, Viena, 1822; Briefe, ed.
Walzel, Berlim, 1890; Neue philos. Schiften, ed. Kurner, Frankfurt, 1935;
Fragmenti critici e scritti di estetica, intr. e trad. Santoli, Florenç a,
1937.

F. Lede-rbogen, F. SeUs Geschichteph~op7@.ie, Leipzig, 1908; J. Rouge, F.


SchI, et Ia genèse du romantisme allemand, Bordeaux-Paris, 1905; H. Hrowitz,
Das Ich-Problem der Romantik; die historische Ste"ng P. Sch1.s innerhalb der
modernen G-eistgeschischte, Muniquo% 1916.

§ 541. Novalis, Schriften, ed. Mnor, 4 vols., Jena,


1907; 1 discepolí di Sais, trad. de Alfero, Lanciano,
1912; Fram77wnti, tra@d. Prezzolini, Laneiano, 1922; Frammmti, trad.
Prezzolini, Lanciano, 1922; Frammenti, trad. integ. de E. Paci, Milão, 1948. -
Dilthey, Die Erlebnis und die Dichtung, cit.; E. Spenlé, Novalis, essai sur
Vídéalisme romantique en Allemagne, Paris, 1904.

§ 542. SchIetermacher, Werke, Berlim, 1835-64, dividida em três partes:


Escritos teológicos, Prédicas e Escritos filosóficos, este últinio
compreendendo 9 vo!s.; Grun4riss der philosophischen Ethik, ed. Schiele,
Leipzig,
1911; Dialektik, ed. Odebrecht, Leipzig, 1942; Discorsi sulla religione e
monologhi, trad. Durante, Morença,
1947.

Dilthey, Leben Schl.s Berlim, 1870; Selú., in "AlIge- ~e deutseh@


Biographie", XXXI, 1890.

§ 543. Troeltseh, Titius, Natorp, Hensel, EcIr, Rade, Sch1. der Philosophe
des Glaubens, Rerlim, 1910.

§ 544. Weissenborn, Vorlesungen über Sch.s Dialektik und Dogmatik, Leipzig,


1847-49; Lipsins in "Zeit- .<@ehirjt für wissenschaftliche Theologie", 1869.
274

§ 545. Heinrich, Sch.s ethische Grundgedanken,


1890; Ungem Stemberg, Frei7?,eit und Wirklichkeit, Schl.s Philosophie, 1931;
Odebrer-ht, Sch1.s System der Aesthetik, 1931; Croce, Storia delllestetica per
saggi, Paris, 1942.

275

í N D 1 C E

XM_O ILUI~MO ... ... ... ... ... ... 7

§ 500. o ihmibúsmo em Náp~ ... ... 7 § 501. O iLuminismo


em mIão ... ... 14 § 502. Beccaria ... ... ... ... ...
... 16 § 503. Romagnosi, Giola ... ... ... ... 20

Nota bibliogrãfica ... ... ... ... 23

XIV - O ILUM=SMO ALEMÃO ... ... ... 25

§ 504. WoafC ... ... ... ... ... ... 25 § 505. Precursores do
iluminismo ... ... 33 § 506. o iluminismo
Wolffiano ... ... 36 § 507. B=garten ... ... ... ...
... 42 § 508. O ilunúnisino religioso ... ... ... 46 § 509.
Lessing ... ... ... ... ... ... 50

Nota bibliogrãfica ... ... ... ... 55

xv - KA= ... ... ... ... ... ... ... ... 57

§ 510. A Vida ... ... ... ... ... ... 57 § 511. os ~tos do
primeiro período- 61 § 512. os egeritos do segundo período,
64

277

3. Os escritos do período crItico@_ 73


4. . A filIDSOfia Critioa' ... ... ... ... 79
5. @'A análise tranq~elta, ... ... 83
6. IA critica da raz ão pura ... ... 89 r. As formas da
s~bilidade ... ... 93

As categorias e a lógica, fornia@ 95 A de dução transaendental


. ... ... 9 A dedução t@anscendeIItaJ das
categorias ... ... ... ... ... ... 103 A analítica dos princípiGs
... ... 115
O númeno ... ... ... ... ... 120 *-A,,' dialéctica
transcendental 128 A 6utrina. transcendentEW do mé_@ todo ... ...
... ... ... ... 137 'Analítica, da razão prática: moralidade e
santidade ... ... ... 141 Diajéctica da 'razão prática: postulado e
fé moral ... ... ... ... 156
O mundo, do direito e da história 163
O juízó estético ... ... ... ... 169
O juiz, tel@P_ol6gic0 ... ... .... ... 179 A natureza do homem e
o mal radical ... ... ... ... ... ... 184 Relligião, Razão,
Liberdade ... ... 189 Nota bibliográfica ... ... ... ... 194

278

SEXTA PARTE

A FILOSOFIA DO ROMANTISMO I_A POInmICA SOBRE O KANTISMO,


201

§ 532. Reinhold ... ... ... ... ... ... 201 § 532. Prenúncio do
idealismo ... ... 205 § 534- A filosofia da fé ... ... ...
... 211 § 535. Jacobi ... ... ... ... ... ... 217 § 536. O
"Stunn und Drang". Schialer.

Goethe ... ... ... ... ... ... 222 § 537.


Humboldt ... .... ... ... ... ... 230

Nota bibliográfica ... ... ... ... 234

II - O ROMANTISMO ... ... ... ... ... 239

§ 538. Origens e caracteres do


romantismo ... ... ... ... ... ... 239 § 539.
Hõlderlin ... ... ... ... ... ... 245 § 540.
SchIegel ... ... ... ... ... ... 247 § 541.
Novalis ... ... ... ... ... ... 251 § 542.
Schleierniacher ... ... ... ... 254 § 543. Schleiermacher: a
Doutrina da

Religião ... ... ... ... ... ... 256 § 544. Schleiermacher: a
Dialéctica ... 263 § 545. Schleiermacher: a ]@tica ... ...
269

Nota bibliográfica ... ... ... ... 271

279

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