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43 Capitulo 2: A teoria da percepcio direta de J. J. Gibson Esta tese busca uma concepgio das ilusdes que seja compativel com a posi¢ao segundo a qual percepgao nao € representacional. Ora, nao é preciso procurar 0 que esta diante de nossos olhos; ¢ pode-se pensar que uma solugao para o meu problema ja existe € est pronta para ser empregada: a solugdo gibsoniana. J. J. Gibson propds a mais influente 10 (Gibson, 1966, 1972, 1979). A nao ser que tenhamos bons motivos para duvidar de sua teoria, ou ao menos para alternativa, em psicologia, & teoria da percepga0 como representay acreditar que, no que tange as ilusdes, hé um caminho melhor do que 0 por ele proposto, o meu esforgo poderd parecer desnecessario. Nao é que Gibson tenha se ocupado primariamente, ou mesmo macigamente, do problema da ilusdo ~ aqui, como em geral, 6 preciso ter 0 cuidado de nao imputar aos outros as nossas proprias obsessdes. Pelo contritio, Gibson considerava a ilusdéo uma questao lateral. No entanto, ele acreditou ter vislumbrado das diferentes, como uma saida anti-representacional — na verdade, pelo menos ués si veremos ~ para o problema. Ele sabia que a adogio de uma concepedo da percepgo como algo que nao pode ser verdadeiro ou falso — isto 6, como algo que nao representa ~ nos obriga a alguma visdo positiva ¢ heterodoxa da ilusio. Afinal, € costumeiro ver na ilusao a prova de que percepgao € representagdo. Gibson buscou, em diferentes momentos, essa visio positiva. Eu argumentarei que as diferentes safdas que ele propés sao insatisfatérias. Para mostrar por que, seré preciso mergulhar em sua teoria da percepgao: a teoria da extragao de informagao. O proprio Gibson nao pareceu ter-se convencido da forca de nenhuma de suas taticas quanto ilusdo. Acreditava, talvez, que alguma delas haveria de funcionar, mas nao apostou todas as fichas em nenhuma. Outros psic6logos, no entanto, créem encontrar na teoria de Gibson as bases para um tratamento satisfatério do problema. Para eles, a abordagem de Gibson dispde dos recursos necessérios para resolvé-lo. Tenho em mente as gibsonianas Claire Michaels ¢ Claudia Carello (Michaels ¢ Carello, 1981). Entretanto, também a safda proposta por elas ~ que & parcialmente sobreposta & do préprio Gibson ~ 6, como veremos, problematica. Este capitulo € portanto, a defesa de que uma via altemativa 4 gibsoniana é necesséria. A estrutura é a seguinte. Eu comego por apresentar a teoria psicolégica da percepgio A qual Gibson se opée: aquela segundo a qual a percepgao € um processo inferencial realizado a partir dos dados sensoriais brutos. Gibson é famoso por ter defendido que a percepgio é “direta”. O sentido mais freqiiente do termo “direta” em sua obra é 44 justamente esse: nio inferencial. Pelo menos desde Helmholtz (1925), a psicologia pressupds que a tarefa do sistema perceptivo era tratar, estruturar, interpretar, desambiguar o dado sensorial. Esse € um pressuposto que unifica a psicologia da percepgao pré-Gibson (ver, porém, a discussao sobre o lugar do gestaltismo nessa tradi¢ao ao final deste capitulo). Assim, a0 negar que a percepgao envolva inferéncias, processamento ou interpretagdo do dado sensivel, Gibson nfo pretendeu apenas acrescentar mais uma a lista de teorias da percepcio. Sua teoria ndo quer pertencer ao conjunto das antigas concepedes; ela inaugura ou pretende inaugurar um conjunto novo. Por outras palavras, a abordagem ecolégica (ver & frente a razio pela qual Gibson chama sua abordagem de “ecolégica”) que defenden no & apenas uma teoria, € um novo paradigma. Tendo visto a psicologia da percepgio tradicional como fundamentalmente mal orientada — seus métodos, conceitos, questées e teorias pareciam-the irrecuperavelmente falidos -, Gibson prop6s um recomego. Eis © que escrevem os eriticos Fodor e Pylyshyn: “O que faz a posigao de Gibson parecer escandalosa a partir da perspectiva do Establishment & que ela € apresentada como uma negagao direta de todos os aspectos da abordagem computacional, nao simplesmente como uma reformulagio de algumas de suas partes” (1981, p.168) Dado que Gibson constréi toda a sua teoria em oposicao ao pensamento tradicional — seus livros so mesmo parte teoria, parte manifesto ~ seré til, antes de discuti-la, apresentar a l6gica dessa tradicio. Como ocorre com freqtiéncia em psicologia, 0 que Gibson quis fazer 6 mais inteligivel por contraste. Justamente porque o que ele rejeita na tradigao & sua Iégica basica, nao serd necessdrio discutir mais do que um autor que a exemplifique. Ora, um dos autores contemporaneos a Gibson que melhor me parecem representar essa tradigao & Gregory. Ele formula de maneira muito clara a idéia de que a experiéncia perceptiva é 0 produto de operagées inferenciais sobre dados sensoriais brutos, exatamente a tese que Gibson quer enterrar de uma ver por todas, Mas entender a posigdo de Gregory tem para esta tese um beneficio que vai muito além do de ajudar a tornar mais clara a de Gibson. E que Gregory ilustra ainda outra posigdo tradicional em percepgao: a de que uma ilusdo perceptiva é uma falsidade. E uma alternativa a essa forma de pensar sobre as ilusées que tenho em vista ao sugerir que a experiéncia possa ser um acesso ao mundo através de um sistema de referéncias. Assim sendo, discuto a teoria de Gregory na esperanga de que, por contraste, isso ajude a iluminar duas idéias. Apés ter apresentado a teoria de Gregory ~ e, assim, ter tentado deixar claras a motivagao da tradigao ea sua proposta -, passo a discutir alguns dos aspectos centrais da 45 abordagem de Gibson. Seré importante entender a que ponto Gibson de fato ultrapassa a tradigdo que tanto condenou; igualmente importante, porém, seré compreender em que medida Gibson, sem dar-se conta, falha em seu projeto de superé-la. Como se verd, a despeito de toda inovagao, que constitui, sem divida, um ganho precioso para a psicologia -, Gibson no desenvolveu os recursos necessérios para 0 abandono definitive da tradigao que encarava como moribunda, Para adiantar algumas das conclusdes de minha andlise, direi que, ao insistir na necessidade de se estudar percebedores méveis em situagdes cotidianas, Gibson deu um grande passo metodolégico; € que, ao apontar para a maneira como os fatores corporais contribuem para a constituigéo da experiéncia perceptiva ¢ para o fato de que o percebedor & sensivel a propriedades do fluxo de estimulago que duram no tempo, deu um salto teérico de igual importincia; mas que, no que tange a sua defesa do que ele chama de percepeao direta, Gibson nao fez o progresso que acreditou ter feito. Como buscarei mostrar, a teoria da percepgao direta, tal como formulada por Gibson, ndo é capaz de substituir a (eoria da percepeaio como processamento de informacio. Isso nao significa, 6 claro, que a teoria tradicional seja verdadeira; nem que nenhuma versio teoria da percepgao direta possa ser verdadeira, Pelo contrério, parece-me que Gibson caminhou em uma diregao bastante acertada ao abandonar © mentalismo da tradigao a respeito da percepgdo; corte, porém, que a versio especifica da teoria da percepedo direta que ele propés — a saber, a teoria da extragio da informagdo — tem uma fraqueza que me parece fatal. Essa fraqueza reside em conceito que Gibson talvez considerasse sua maior contribuigao: 0 conceito de informagio. Buscarei mostrar que esse conceito nao fica de pé. Em seguida, passarei A discussdo das solugdes que Gibson imaginou para o problema da ilusio. Como notado acima, também a respeito delas a minha conclusio seré desfavordvel. As razes para tal sdo apenas em parte as mesmas que me levam a ctiticar 0 conceito de informagao de Gibson. Finalmente, eu me voltarei para a defesa que Michaels e Carello fazem de uma posigdo gibsoniana a respeito das ilusdes e encontrarei, também af, um bom niimero de problemas. Tudo isso pretende motivar a busca por uma nova concepgao anti-representacional das ilusoes. Como argumentarei, Gibson foi um tanto injusto ao considerar o gestaltismo como parte da “tadicio” em psicologia. E justamente em uma idéia gestaltista que o germe da solugao pode estar. Isso, porém, jé é o tema dos capitulos seguintes. Voltemo-nos por ora para 46 Gregory, representante da tradigdo representacionalista que Gibson — assim como eu, nesta tese — quer recusar. 2.1 A teoria da percepcao indireta Entenderei por “tradigdo” o conjunto de autores que aceita alguma versio da seguinte tese: 0 processo perceptivo € constituido por dois estdgios, o primeiro sendo a recepgao de dados sensoriais, 0 segundo sendo a elaboraga (©, a imterpretagio, 0 processamento ou a estruturagéo desses dados de modo a produzir uma experiéncia perceptiva. E importante entender a motivagio para essa posigao em psicologia da percepgao, representada nao apenas por Gregory, mas também por outros autores centrais, como Helmholtz (1925) ¢ Marr (1982). Por que tantos acreditaram que © sujeito precisa, num nfvel inconsciente, interpretar, enriquecer ou estruturar o que atinge a retina? A principal razéo é que essa posicao fornece uma resposta para o problema da subdeterminagao da experiéncia pelo estfmulo proximal, O suposto fendmeno da subdeterminagao consistiria no fato de que diversos contedidos de experigncia so compativeis com dado padrio de estimulagao proximal. Tomemos, para um primeiro exemplo, a imagem projetada na retina por uma moeda circular e inclinada em relagdo aos olhos do percebedor. Exatamente aquela projeco retiniana teria sido produzida por certa moeda eliptica, contanto que ela se encontrasse paralela A retina. Ora, mas nds somos capazes de perceber veridicamente tanto circulos inclinados quanto elipses de pé. Isto 6, em certas situagdes, uma projegdo retiniana elfptica produz a experiéncia de um objeto circular inclinado; em outras, uma projeco de forma idéntica produz, pelo contrério, a experiéncia de um objeto eliptico de pé. Mas o sistema perceptivo nfo tem acesso a nada além da projegao retiniana, Eis o problema que supostamente se segue: como o sistema perceptive “sabe” se € um cftculo inclinado, e nfo uma elipse de pé, que projeta aquela imagem? Como se explica o salto do estimulo proximal ambiguo para uma ou para a outra experiéncia inequivoca?Esté claro que a imagem retiniana nao pode, ela mesma, determinar seja a experiéncia de um cfrculo inclinado, seja a de uma elipse de pé ‘Vejamos outro exemplo, Uma parede vermelha iluminada pelo do sol projeta sobre a retina luz de determinado comprimento de onda. Mas uma parede branca sob certo tipo de iluminagdo vermelha projeta luz do mesmissimo comprimento, Portanto, 0 estimulo proximal 47 6 ambiguo quanto A cor da parede, Mas a nossa experiéncia da parede nao é ambigua a0 menos nao normalmente: vemos uma parede que parece vermelha ou uma parede que parece branca sob luz vermelha. Como, mais uma vez, 0 sistema perceptivo “sabe” que a parede é vermelha? Como ele passa do estimulo ambiguo & experiéncia inequivoca? O mesmo, para um tltimo exemplo, vale para o tamanho: um lépis de 10 cm projeta sobre a retina uma imagem do mesmo tamanho que projetaria um lépis com o dobro do tamanho, mas a uma distancia também dobrada. O problema pode ser expresso de maneira mais geral como se segue: diversas cenas diferentes — na verdade, uma infinidade delas — projetariam sobre a retina exatamente 0 ‘mesmo padréo luminoso; assim, o estimulo proximal, naquela exata configuragao, nio carrega informa 10 suficiente para especificar inequivocamente a cena que o gerou. Parece, portanto, que uma das tarefas do sistema perceptive — que a sua tarefa — é vencer a pobreza, a ambigiiidade do estimulo; é fazer dele o que puder para desvendar a sua causa, produzindo, por fim, uma experiéncia adequada. O processo perceptivo, seja ele o que for, é pelo menos isso: algo que leva de um padrao ambiguo e empobrecido de estimulagao a uma experiéncia perceptiva inequivoca. Assim, a tarefa da psicologia da percepgio é a de descobrir como exatamente se vai do estimulo ambiguo & percepgao determinada. Kis o pressuposto cléssico. Entra aqui a teoria de Gregory, que ilustra a solugdo tradicional para esse problema. Em grandes linhas, sua idéia é essa: a partir de conhecimentos armazenados e da estimulagao proximal, o sistema perceptivo gera hipéteses sobre a causa distal da estimulagao; ¢ a hipstese considerada pelo sistema como a mais provavel torna-se 0 conteido da experiéncia. Vejamos como isso funcionaria em exemplos simplificados. Tomemos a nossa parede vermelha iluminada pelo sol. A imagem retiniana projetada por ela, lembremos, € a mesma que seria projetada por uma parede branca sob certo tipo de luz vermelha (¢ ainda por uma parede rosa sob outro tipo ainda de luz, etc.). Ora, o sistema perceptivo est bem armado para lidar com essa situagao, pois, gracas 4 evolugao e a processos de aprendizagem, ele possui um estoque de pressupostos acerca do tipo de ambiente em que o percebedor se encontra ¢ de como a luz se comporta nele, Um deles é 0 de que o tipo de iluminag4o mais comum nos ambientes freqtientados pelo percebedor é a luz natural. © sistema também “entende” um bocado a respeito de como as coisas refletem luz. Assim, ele conclui que a explicago mais provivel pata a imagem retiniana em questo é a presenga de uma parede vermelha iluminada pela luz do sol, E pronto: nés percebemos a parede como vermelha ¢ como iluminada por luz natural 48 E, ao invés disso, estivermos num quarto todo branco iluminado por uma lampada vermelha? O sistema perceptivo notara entéo que todos os objetos emitem luz num comprimento de onda cottespondente ao vermelho. Sabendo, como ele sabe, que é improvavel que todos os objetos de um ambiente reflitam luz naquele padrio a nao ser que estejam sendo iluminados por luz vermelha, o sistema decide que a explicagdo mais provavel € a de que os objetos so brancos ¢ iluminados por luz vermelha Se o leitor tiver ficado com a impressio de que a teoria de Gregory faz do sistema petceptivo uma espécie de cientista, ficou com a impressio correta, A tese é exatamente a de que a percepeao funciona como a ciéncia: ela é uma questio de producao de inferéncias para a melhor explicagao dos fendmenos dados: Sugerir que as percepgdes sio como hipéteses € pressupor que os instrumentos ¢ os procedimentos da ciéncia repetem caracterfsticas essenciais dos érgdos sensoriais ¢ de seus canais neurais, entendidos como transdutores que transmitem dados codificados; ¢ que os procedimentos de manipulagao de dados da ciéncia podem ser essencialmente os mesmos que 0s procedimentos cognitivos realizados pelos processos neurais do cérebro. (...) peroepgdes sdo essencialmente como hipéteses preditivas em ciéncia. (..) A [minha] abordagem baseia-se em encarar a percepgio e a ciéncia como construindo hipéteses através de “geradores de ficgd0” que podem dar com a verdade ao produzir estruturas simbélicas que correspondem realidade fisica (Gregory, 1980, p.112). O sistema perceptivo raciocina. Assim como um cientista postula elétrons pra explicar © comportamento observado da matéria, o sistema postula a presenga de um objeto vermelho sob iluminag%o natural para dar conta do dado sensorial. Ele recebe dados (luz atinge a retina), codifica-os (a estimulagdo produz certo padrao de ativagao dos neur6nios retinianos) e, por fim, a partir de pressupostos a respeito do tipo de ambiente em que se esta e do comportamento caracteristico daquele ambiente, gera uma hipstese a respeito da explicagao mais provavel para os dados. Podemos dizer que o processo perceptivo, nessa teoria, é dividido em quatro etapas: estimulagao, codificagdo que torna a informagao compreensivel para o sistema, ativagao dos pressupostos ¢ produgao da hipétese. As proprias leis da gestalt no seriam, nessa perspectiva, nada mais do que a expresso de alguns pressupostos do sistema perceptivo; tal como ocorre com os seus demais 49 pressupostos, também a presenga desses se deveria, em iitima anilise, ao fato de eles serem mormente corretos e de terem sido, assim, selecionados pela evolucao ou pela aprendizagem: ‘As diversas regras de “closura”, “destino comum”, ¢ assim por diante, cenfatizadas pelos psicélogos gestaltistas, como Wertheimer (1923), refletem caracteristicas tipicas da vasta maioria dos objetos (ais como os vemos. A maioria dos objetos tem forma fechada, e suas partes se movem juntas. Essas, caracteristicas comuns dos objetos tornam-se prinefpios de identificagao - ¢ podem estruturar padrdes aleatérios de modo a criar formas de objetos (Gregory, 1980, p.119-20). Essa 6, portanto, a teoria geral de Gregory sobre a percepedo. Quando 0 assunto so as ilusdes geométricas, ele propde algo bem mais especifico ~ e que se tomou uma explicagao bastante popular desse tipo de ilusao. Assim como dizer pura e simplesmente que a ilusdo tem ‘uma causa fisiolégica sem apontar um mecanismo especifico nao seria ainda explicar nada, da mesma forma afirmar que perceber é inferir a partir de pressupostos e dos dados € ainda muito vago. E preciso propor um mecanismo. Com sua teoria das ilusdes geométricas, Gregory dé maior concretude & teoria. Essa teoria chama-se teoria da escala de constancia inapropriada. Passemos a cla. Gregory parte de um fato notado por Sanford (1903), que, ao menos & primeira vista, parece mesmo ter provaveis implicagées tedricas: muitas das figuras de ilusio geométrica assemelham-se a projegdes bidimensionais de cenas tridimensionais familiares, produzindo no observador a mesma imagem retiniana que aquelas cenas teriam produzido. Tomemos a figura de Ponzo (Fig, 1.13, p.35): ela lembra a projegdo perspectiva de uma linha de trem (Fig. 2.1) Tome-se Miiller-Lyer: lembra a projegao do encontro de paredes em um quarto (Fig. 2.2). A teoria de Gregory invoca esse fato para sustentar a idéia de que as ilusdes geométricas nao so nada mais e nada menos do que interpretagdes incorretas de tamanho decorrentes de informagoes enganosas sobre profundidade 50 Fig. 2.1 Perspectiva sugerida pela ilus’o de Ponzo. Reproduzida de https://en. wikipedia org/wiki/Ponzo_illusion, Fig. 2.2 Perspectiva sugerida pela ilusio de Milller-Lyer. Autor: Ant6nio Miguel de ‘Campos. Reproduzida de https://en.wikipedia.org/wiki/Miler-Lyer_illusion. Para entender a teoria, é preciso ter claro um de seus pressupostos — uma idéia amplamente aceita entre os psicélogos da percepgao: a de que o tamanho percebido depende da distancia percebida. Essa idéia € uma resposta ao problema colocado pela constancia de tamanho, uma instincia particular do fendmeno da constincia. Nenhuma teoria ambiciosa da percepgao pode dar-se ao luxo de ignorar o problema colocado por esse fenémeno. Eis um caso particular do problema, Se, estando na praia, olho para o topo de um morro préximo e vejo um homem concluindo sua escalada, hé um sentido em que o homem me parece sl “pequeno”; ao mesmo tempo, ele nio me parece um homem pequeno. Se preferirmos, podemos descrever a situago assim: 0 homem é visto sob um angulo muito pequeno (ou: a imagem que o homem projeta sobre a minha retina é pequena); posso cobri-lo com o meu polegar; mas nem por isso ele € percebido como pequeno. Pelo contratio, ele & percebido como tendo 0 mesmo tamanho que antes, quando se encontrava ainda ao pé do morto. Voltamos, assim, ao tema da ambigitidade da imagem retiniana: como pode ser que o homem visto de perto € o mesmo homem visto de longe projetem imagens retinianas de tamanhos to discrepantes e sejam, no entanto, percebidos como iguais em tamanho? Por outras palavras, como se explica a constincia do tamanho percebido diante da inconstancia do tamanho da imagem retiniana? A resposta a essa pergunta tem envolvido, em geral, um apelo A percepeao da distancia: eu nao percebo o homem como pequeno porque sei que ele est distante, e a minha percepgao do tamanho de um objeto depende do que eu sei sobre a distancia daquele objeto (para uma discussao dessa solugao para o problema da constancia de tamanho, ver Ittelson, 1951). Assim, dada uma imagem retiniana, a distancia percebida determina o tamanho percebido. Exemplo claro disso € a chamada lei de Emmert (1881), que afirma que p6s-imagens projetadas tém tamanho aparente proporcional a sua distancia aparente. Olhemos por alguns segundos para uma fonte luminosa intensa, como o sol ou uma lampada préxima, de maneira a obter uma pés-imagem vivida. Fixemos o olhar entio sobre uma parede bastante, por exemplo a um palmo de distancia, Veremos uma pés-imagem de determinado tamanho. Projetemos em seguida essa mesma pés-imagem sobre uma parede situada a varios metros de distancia. A transformagao no tamanho aparente da pés-imagem é gritante ~ cla parece muito maior quando projetada sobre a parede afastada. Gregory (1966) infere a existéncia de um mecanismo perceptivo ~ a que chama constancy scaling ~ responsdvel pela interpretag3o do tamanho percebido de um objeto a partir da distancia percebida. A escala de tamanho de cada objeto é fixada por esse mecanismo em fungao da distancia percebida ¢ das dimensdes da imagem retiniana. Até af ndo hé nada de muito novo; nada que explique qualquer ilusio. Pois seria possivel explicar uma ilusio por esse mecanismo apenas se se pudesse mostrar que, nela, hé percepgao incorreta da distncia provocando uma distorgao na percepcao de tamanho. Por exemplo, a tese de que o tamanho percebido & proporcional A distdncia percebida prevé que, se eu tivesse, por uma razio qualquer, percebido ilusoriamente aquele escalador distante como préximo, entio eu o teria percebido como pequeno. Isto é, se eu percebesse a distancia incorretamente, eu “escalaria” 0 tamanho de maneira inapropriada, resultando em ilusdo de tamanho. Mas no apenas isso 52 seria explicar uma ilusio (de tamanho) em termos de outa (de distancia), deixando-nos com a tarefa de explicar essa tltima, como, nas ilusées geométricas, que sio as que Gregory pretende explicar, © que se percebe so figuras planas, nao havendo qualquer percepgao de profundidade. E af que entra a novidade da teoria de Gregory. De acordo com ele, 0 processo de constancy scaling nao é disparado apenas pela percepgo de distancia ou profundidade, mas também pela mera presenga de informagio sobre profundidade ~ ou, como ele diz com maior freqiiéncia, de deixas de profundidade ~, mesmo que essa informagao nao produza uma experiéneia de profundidade, Algumas ilusdes geométricas parecem mesmo conter tais deixas, j4 que se assemelham a projecées perspectivas de cenas tridimensionais. Como qualquer um que conhega os rudimentos do desenho em perspectiva sabe, linhas convergentes simulam profundidade. Exatamente esse tipo de convergéncia ocorre na figura de Ponzo. Assim, afirma Gregory, mesmo que ninguém chegue a perceber profundidade nessa figura, ela contém padrées reconhecidos pelo sistema como informagdo (deixas) de profundidade; ‘em particular, ela contém a informagdo de que a linba de cima esté mais distante do ‘observador do que a linha de baixo. Como o mecanismo de constancy scaling fixa a escala de tamanho de acordo com as deixas de profundidade e como, nesse caso, hd deixas enganosas de profundidade, a linha de cima é percebida como sendo maior do que realmente 6. Deixas de profundidade presentes em Miiller-Lyer explicariam essa ilusio da mesma forma. Basta olhar para as figuras 2.1 ¢ 2.2 para convencer-se de que a explicagao faz sentido. O mesmo valeria para outras figuras geométricas: em cada caso, as deixas de profundidade sio enganosas, porque indicam haver profundidade onde profundidade nao hé; consequlentemente, a escala é fixada de forma inapropriada, e a percepgao resultante é iluséria. Além das ilusdes ‘geométricas ~ s quais Gregory, por motivos evidentes, prefere chamar “ilusdes perspectivas” —, a teoria explicaria, por exemplo, o famoso quarto de Ames (Fig. 2.3, em que duas pessoas de igual tamanho parecem ter tamanhos muito diferentes quando postas dentro de um quarto orto, mas engenhosamente construido ¢ fotografado (ou observado de um ponto fixo) de modo a parecer regular, Também aqui serfamos enganados por deixas de profundidade inadequadas ~ ¢ de maneira muito parecida, alids, como em Miiller-Lyer. A teoria de Gregory das ilusdes geométricas, ainda que convincente — ela certamente parece boa ~, enfrenta sérias dificuldades empiricas. Nao as discutirei em detalhe aqui (para diversas criticas importantes, ver Robinson, 1972 e Over, 1968). Mencionarei apenas dois fortissimos contra-exemplos, ambos variagdes de Mulller-Lyer. Um deles é a chamada figura de halteres (Fig. 2.4). Nessa verso, nfo ha qualquer deixa perspectiva de profundidade 53 reconhecivel; no entanto, a ilusio permanece. © segundo contra-exemplo € a versio tridimensional construida por DeLucia e Hochberg (1991; Fig. 2.5b): aqui, hé, sim, deixas de profundidade, mas essas deixas no so enganosas, j4 que hé profundidade; logo, pela teoria de Gregory, nao deveriam produzir ilusio. Fig. 2.3 Quarto de Ames oS O—O Fig. 2.4 Mlusao de Milller-Lyer, versao halteres. Reproduzida de Robinson (1972). <>—~< Fig.2.5a Tlusdo de Milller-Lyer, versio composta. Reproduzida de Robinson (1972). 54 Fig. 2.5b Ilusio de Miiller-Lyer, versio composta tridimensional (ilustragio). Adaptada de DeLucia ¢ Hochberg (1991). Para esta tese, cujo interesse maior € no conceito de ilusio e no de percepcao, pouca diferenga faz se a teoria de Gregory das ilusdes geométricas € ou nao empiricamente adequada. © importante é que € um exemplo de teoria cognitiva que expressa determinada concepgio de percepgao: aquela segundo a qual perceber é interpretar um dado. Essa concepgio & motivada, lembremos, principalmente pela nogio de que o estimulo proximal subdetermina a experiéncia. E porque o estimulo é ambiguo e a experiéncia é inequivoca que se postula toda uma mediagao cognitiva entre um ¢ outro; é para preencher esse ¥: io que se imagina um processamento de dados, que se entende o sistema como um agente légico. A importéncia do pressuposto da ambigilidade do estimulo para essa concepgao no pode ser exagerada. Pois, como veremos agora, 0 projeto de Gibson é o de demolir toda uma tradigao ao questionar justamente essa idéia 2.2.A teoria da percepcio direta 2.2.1 O conceito de informacao que toma Gibson tao distante da tradigao nao é que ele busca fornecer uma resposta completamente nova para o velho problema da subdeterminagao/ambigiiidade do estimulo proximal. E que ele sequer reconhece a legitimidade do problema. O problema, como vimos, € 0 de que o estimulo proximal — o padréo luminoso que chega a retina ~ é insuficiente para determinar a experiéncia; ¢ a solugéo proposta é a de que sua pobreza obriga o sistema petceptivo a ir além dele ~ a adivinhar, hipotetizar, representar. Entender exatamente como 0 sistema produz um palpite sobre o que hé lé fora 6 o que a tradigao entende como a tarefa da psicologia da percepcao. Assim, se voc€ acha que o sistema perceptivo precisa enriquecer, 55 interpretar, decifrar ou estruturar o dado sensorial de qualquer maneira que seja, voce ja esta com a tradigao. E nesse sentido que Gibson quer estar fora dela. Como recusar o problema da ambigiidade do dado? Eu s6 consigo pensar em tés maneiras de fazé-lo. Cada uma delas € uma forma diferente de negar o pressuposto fundamental de que hé um abismo entre o estimulo sensorial e a experiéncia perceptiva. Se nao houver esse abismo, tampouco haverd problema. A primeira estratégia consiste em afirmar que o estimulo proximal nao é todo o dado sensorial ao qual o sistema perceptivo tem acesso, porque ele também tem acesso ao estimulo distal. Essa posigo, sem diivida radical, questiona a idéia de que um episédio perceptivo comeca com a estimulagio proximal do 6rgao sensorial, afirmando que, pelo contrério, o préprio objeto distal j4 est4 envolvido no proceso, Se, de alguma maneira, o objeto distal j4 puder contar como algo a que o sistema tem acesso, entdo o dado sensorial ser4 muito mais rico do que uma mera projegao retiniana; pois ele seré pelo menos t4o rico quanto © préprio objeto distal. E enti o problema da subdeterminag4o sequer surgiré. Eu nao conheco ninguém que tenha escolhido essa rota de Tecusa ao problema; no entanto, preocupado com outro problema, o filésofo Mark Johnston (2004) defende justamente que um episédio perceptivo nasce muito antes de a luz atingir os olhos do percebedor. Johnston recusa uma concepgao comum da causalidade psicofisica, uma concepgio de acordo com a qual a luz refletida por um objeto visto primeiramente estimula a retina, que entdo ativa 0 netvo stico € entao o céttex visual ¢ entao, finalmente, como uma consegiiéncia causal disso tudo, ocorre 0 ato de ver © objeto. (...) Contra essa concepedo, a relagdo entre ver um objeto ¢ o longo processo fisico que envolve a luz vinda do objeto e a operago do sistema visual ndo ¢ a relagao entre um primeiro efeito mental ¢ um proceso fisico prévio que 0 causa, Ver 0 objeto nao é 0 primeiro evento apés a operagao do sistema visual. Ver 0 objeto um evento materialmente constituido pelo Tongo processo fisico que conecta 0 objeto visto ao estado final do sistema, Ver 0 objeto é um evento que é (tal como se revela ser 0 caso) constituido por um processo fisico que se estende até o objeto visto (Johnston, 2004, pp.138-9), Uma segunda estratégia consistiria em conceder a tradigao que o estimulo é ‘meramente proximal, pobre ¢ ambfguo, mas negar que a experiéncia seja rica e inequivoca. Se a experiéncia for tio ambigua quanto estimulo, novamente o problema da subdeterminagao evaporard. Essa alternativa, porém, é muito pouco promissora. E simplesmente um dado 56 fenomenolégico que a nossa experiéncia de uma moeda circular nio é, ao menos nao normalmente, ambigua entre circularidade e elipticalidade; e que, em condigdes normais, a patede vermelha simplesmente nos parece vermelha, ao invés de branca sob luz vermelha. A experiéncia 6, nesse sentido, inequivoca. A terceira estratégia € a que Gibson adota. Gibson concede a tradigdo que o dado sensivel seja apenas proximal (de fato, ele nem mesmo parece vislumbrar altemnativa a essa posigdo), mas nega vigorosamente que tal estimulo seja como a tradig4o 0 concebe: pobre € ambiguo. A revolugio que Gibson quer alavancar tem pot ponto de apoio uma nova concepgio do estimulo proximal como sendo extremamente mais rico do que se o supunha. Se essa nova concepedo estiver correta, entdo os principais problemas que ocupam a tradi¢ao serio ilusGrios, e serd preciso redirecionar a psicologia da percepgio metodolégica, conceitual ¢ teoricamente, Pois entdo nao sera verdade que o estimulo subespecifica o ambiente; nao sera verdade que entre a experiéncia e o estimulo, ou que entre 0 estimulo ¢ 0 ambiente distal, hé qualquer abismo. Um abismo inexistente € um abismo que nao precisa ser vencido — em particular, ndo precisa ser vencido por um processamento interno de produgao de hipéteses. Toda a psicologia da percepgao precisard ser repensada. Justamente, segundo a concepgio de Gibson, 0 estimulo especifica inequivocamente uma configuragio ambiental; ele nao 6 nada ambiguo entre diferentes objetos distais. Para Gibson, a psicologia tradicional s6 incorreu no equivoco de considerar o estimulo como ambfguo porque achou que o estimulo para a visio fosse a imagem retiniana. Nao é. Entende-se por que a psicologia pensou que fosse: como jé sabemos pelo menos desde Kepler (ver Lindberg, 1976), a luz que entra no olho forma uma imagem em foco na retina, & uma tentagdo — embora um erro — supor seja que nés vemos aquela imagem, seja que vemos uma imagem que constréi por um processo de corregio das suas imperfeigdes. Suposigdes desse tipo deram lugar a uma grande quantidade de questoes cléssicas que, para Gibson, sao todas falsas questées (...). Uma delas é (..): por que 0 mundo fenoménico & de cabeca para cima, ao passo que a imagem retiniana € invertida na retina? Outra, que remonta pelo menos a Helmholtz, é: por que 0 mundo fenoménico é estaciondrio, ao passo que a imagem retiniana move-se continuamente em relagdo a retina? Outra ainda (relacionada ao fato da amostragem) é: por que 0 mundo fenoménico é ilimitado, ao passo que cada imagem retiniana é Timitada pelas margens da retina Sob outra forma, essa € a mesma questio que: por que 0 mundo fenoménico parece persistir, ao passo que as imagens retinianas so fugazes? A resposta a todas as questies acima & nés nao vemos as nossas imagens retinianas, Nés vemos o ambiente. A doutrina de 7 Miller de que tudo o que nés vemos so as nossas imagens retinianas (ou, pelo menos, tudo 0 que vemos diretamente) é bastante falsa. Se nds vvissemos as nossas imagens retinianas, nés perceberfamos dois mundos, nao ‘um, jé que hé dele uma imagem separada em cada olho (1972, p.88). Existem pelo menos trés sentidos em que Gibson nega que a imagem retiniana seja 0 estimulo para a visio. Primeiro, nega que a imagem retiniana seja objeto da visio’. Segundo,nega que a imagem retiniana sequer sirva de modelo para a constituigao da experiéncia — um pressuposto que parece implicado nos problemas denunciados por Gibson acima.De fato, assim parecem raciocinar aqueles a que Gibson se opde na passagem acima: tanto o resultado do proceso perceptivo (a experiéncia) quanto a sua matéria prima (a imagem retiniana) sio imagens; edado que hé diferenga de contetido entre essas duas imagens, deve haver um processo que constréi uma imagem a partir da outra. E como se 0 sistema perceptivo fosse um pintor a quem se fornecesse um modelo ~ a imagem retiniana, portanto uma imagem distorcida, invertida, fugaz, empobrecida — e se pedisse que, tomando-a por base, pintasse uma imagem mais determinada, mais rica, mais parecida com 0 ambiente a ser representado Negar que a imagem retiniana desempenhe o papel acima no processo perceptivo nao € contribuigao inédita. Como nota Noé (2004), Descartes, na Didptrica, j4 denunciara essa falicia. No entanto, insistir que a imagem retiniana nao € o estimulo para a visio em um terceiro sentido é distintivo de Gibson. Pode parecer razodvel supor que cada sego transversal temporal da percepgio é determinada pela luz que chega & retina em um instante correspondente do tempo: a petcepedo no instante q teria por base a imagem retiniana formada no instante ty; a experiéncia em t..1, a imagem em ty. Gibson questiona esse pressuposto. Um dos eros fundamentais que ele vé a tradigao como cometendo € o de segmentar a percepgo ¢ 0 seu estimulo dessa maneiraPor que pensar que o sistema perceptivo no € capaz de registrar sendo propriedades instanténeas da luz?Por que apostar que ele s6 tem acesso a uma série de imagens estéticas? Quando Gibson diz que nfo vemos nossas imagens retinianas, devemos, portanto, entendé-lo como nio simplesmente negando que elas sejam 0 objeto da visio ou 0 ® Nao 6 apenas Jobannes Miller que ele acusa dessa falicia: “A maioria das teorias pressupde que a percepgéo do mundo € indireta e que tudo que percebemos diretamente sio nossas imagens retinianas” (Gibson, 1972, p88). 58 modelo para a construgo de uma imagem mais interna, mas, sobretudo, como recusando pressuposto de que nao se é sensivel sendo ao que se passa no olho em um dado instante. Imagem retiniana, para Gibson, significa imagem instantanea. Gibson acredita que 6 dogma de que © estimulo proximal para a percepgio é a imagem retiniana nos sentidos acima que dé uma aparéncia de solidez a tese de que 0 estimulo proximal é ambiguo, tese que, por sua vez Gibson nao contesta a idéia de que a imagem retiniana é amb{gua e empobrecida; ele contesta que seja ela 0 dado a que o sistema perceptivo tem acesso. Mas ento qual € o estimulo para a percepeio, se ndo é a imagem? O estimulo é um fluxo ético. Para entender melhor o que isso significa, € preciso antes entender 0 conceito gibsoniano de arranjo dtico ambiente. Gibson nota que a luz do sol é espalhada pela atmosfera e refletida pela superficie terrestre de modo a atingir um equilibrio tal, que, em qualquer ponto da superficie, hé luz vinda de todas as ditegdes. Assim, em qualquer ponto do ambiente, hé uum encontro de Apices de Angulos sélidos de luz. Um Angulo sdlido € um Angulo tridimensional. A ponta de uma pirdmide, por exemplo, € o épice de um Angulo sdlido. O que Gibson nota € que, em qualquer ponto do ambiente, hé raios de luz cruzando-se de modo a formar intimeros Angulos sdlidos, como se em cada ponto do espago se encontrassem pontas de vérias piramides de luz. A estrutura desse conjunto de angulos serd diferente para cada ponto do ambiente. Além disso, em cada ponto, a luz que chega de cada dirego possui uma intensidade particular — a luz que vem daqui € mais intensa, a que vem dali é menos, etc. Gibson resume esses fatos dizendo que, em qualquer ponto do ambiente, hé luz estruturada; e & luz ambiente estruturada dessa forma ele chama “arranjo dtico ambiente”. B extremamente importante para a teoria que a luz possua essa estrutura no ambiente em que ocome a percepeao. Se nao hé diferenga de intensidade entre as diferentes diregdes, entdo ndo hé estrutura. E 0 que ocorre com a luz que vem de um céu diurno limpo. Olhar para o céu sem nuvens € ser estimulado por luz nao estruturada, (Eu noto lateralmente que é curioso que Gibson coloque como condigao para a estrutura a diferenga de intensidade, mas nao a diferenga de comprimento de onda. Esse tiltimo tipo de heterogeneidade na luz que atinge um ponto do ambiente também parece ser suficiente para o tipo de estrutura que é importante para ‘a teoria de Gibson. Assim, parece que podemos 1é-lo como entendendo o arranjo 6tico ambiente como a luz estruturada seja em termos de diferenga de intensidade entre as 59 diferentes diregdes, seja em termos de diferenga de comprimento de onda, Mas esse é um ponto de menor importéncia), A estrutura que a luz possui em dado ponto — a maneira como 0s raios de luz formam Angulos sélidos naquele ponto e a maneira como eles diferem em intensidade — € chamada “estrutura perspectiva”. Ora, a soma das estruturas perspectivas de todos os pontos que compéem certo ambiente nio é, de acordo com Gibson, toda a estrutura que a luz possui naquele ambiente. Pois hé ainda o que ele chama de “estrutura invariante”. De um ponto para outro do arranjo, hé, claro, diferenga de estrutura: a organizagao da luz aqui é diferente de sua organizagao ali. Entretanto, e isso € algo absolutamente crucial para a teoria, de um ponto para o outro hd também certa manutengdo da estrutura — a organizagao da luz aqui nao é inteiramente diferente da organizagao da luz ali, Algo da estrutura perspectiva mantém-se quando se caminha de um lugar para o outro. O que se mantém chama-se “ invariante” do arranjo ético. O proximo ingrediente da teoria é a tese de que o que estrutura a luz é a configuracao da superficie terrestre. Por outras palavras, o que dé a luz ambiente a sua estrutura sio as coisas que refletem luz, as coisas que se encontram no ambiente — arvores, casas, sapatos, pessoas. Sendo ela mesma estruturada de determinada maneira (h4 uma drvore aqui, uma casa ali), certa cena estrutura a luz ambiente de certa maneira; se a cena fosse outta, ela estruturaria a luz diferentemente. E ento vem aquela que € uma das teses mais caracteristicas de Gibson: a de que a estrutura do arranjo ético ambiente, e em particular a sua estrutura invariante, especifica inequivocamente a estratura do ambiente. A estrutura do arranjo “indica” um tipo de cena (uma cena, por exemplo, em que hd uma drvore aqui, uma casa ali), ¢ apenas um Mais freqiientemente, Gibson expressa essa idéia dizendo que o arranjo ético ambiente contém informagao sobre o ambiente. E importante notar que, para Gibson, apenas o arranjo 6tico ambiente contém informagao desse tipo sobre o ambiente, A imagem retiniana estitica nao contém informago. Ela nao especifica um ambiente, j4 que a mesma imagem retiniana poderia ser o produto de imimeras cenas extemas diferentes. Ela nao carrega informagio nenhuma sobre a cena distal porque, no sentido gibsoniano de “informagao”, a informagao é necessariamente inequivoca, Uma informagao duvidosa ou ambigua, como aquela que se pode dizer que a imagem retiniana carrega, no chega a contar como informacao. Ao navegar pelo ambiente, 0 sujeito € estimulado por um fluxo ético que € uma amostra do arranjo stico ambiente; através de movimentos exploratérios, ele sonda a sua 60 estrutura perspectiva ¢ a sua estrutura invariante e, assim, obtém informagao que especifica inequivocamente certos aspectos do ambiente. Como 0 fluxo ético, a0 contrério da imagem retiniana, nao porta nenhuma ambigitidade, uma vez que o (enha obtido, o sistema perceptive nao precisa formular hipétese alguma a respeito da cena distal. Hipsteses s6 precisam ser formuladas quando o dado de que se dispie é inconclusive. Mas o dado, tal como 0 concebe Gibson — isto é, a informagao — jé especifica um ambiente, e isso é tudo de que 0 percebedor precisa. Por causa disso, nenbum aporte subjetivo ¢ necessério para a realizagio do ato perceptivo, Uma vez que a informagao é obtida, o sujeito nfo entra com nada, Obter a informagao jd é perceber: ‘As teorias ortodoxas pressupdem que exista sempre uma “contribui¢ao objetiva” & percepgao (as sensagdes) e uma “contribuicao subjetiva” a percepgao (idéias inatas, memérias ou campos de forga no cérebro), as duas contribuigées sendo combinadas em diversas proporgdes. Eu rejeito esse pressuposto. Se se disponibiliza informagao-no-estimulo inequfvoca para um observador em um experimento, sua percepgio seri determinada por cla ¢ por mais nada, Quando hé informagao-no-estimulo ambiente dispontvel para um observador fora do laboratério, ele pode selecionar a informagio que © interessa; pode dar atengdo a uma parte ¢ nfo a outra, mas sua percepeio seré determinada pela informagao & qual ele atentar (Gibson, 1972, p.88). © que é, entéo, 0 proceso perceptive? Nao o proceso de construgio de reptesentagées, de produgo de hipsteses a partir de dados inconclusivos. Nao: 0 processo perceptivo comeca e termina com a pura e simples obtengo de dados conclusivos. Na expresso de Gibson, o que o sistema perceptivo faz € “to pick up information”, o que se costuma traduzir por “extrair informagio”. A tradugio tradicional, embora boa, nfo tem a simplicidade que o original quer transmitir: a énfase est4 na idéia de que o percebedor simplesmente pega a informagio, ¢ que isso é tudo. Para pegar a informagao é preciso dispor de certo corpo e agir de determinadas maneiras; mas o ato de pegar a informagio é simplesmente isso: um ato de pegar, nao um ato de construir alguma coisa com o que se pega. Allis, a tinica agdo que se pode realizar sobre a informagao, tal como entendida por Gibson, é, justamente, pegé-la, Em particular, no € possivel transmiti-la ou processé-la, A teoria tradicional vé a estimulagio dos receptores da retina como sendo seguida de um processo de codificagao de informagio, por sua vez seguido de uma transmissao dessa informagdo ao cérebro através do nervo ético, ¢ assim por diante. A informagao, para Gibson, nao se presta a nada disso: 61 ‘Quando a energia do estimulo é transformada em impulsos nervosos, diz-se que eles sio transmitidos a0 cérebro. Mas a informagao do estimulo nao é algo que possa ser enviado por um feixe nervoso ou entregue ao cérebro (...). A informagio, tal como aqui concebida, nao é transmitida nem transportada, nao consiste em sinais ou mensagens ¢ nao implica em um emissor ¢ em um receptor (Gibson, 1979, p.57), Nao € demais enfatizar esse ponto crucial: 0 cérebro nem mesmo precisa processar informagao porque a informagéo nao falta nada, Ela jé € tudo de que o percebedor precisa Foi por ter ignorado a riqueza da informaco disponivel na luz que a teoria tradicional postulou operagées mentais sobre os dados sensoriais. E como se a teoria tradicional enxergasse em cada ato perceptivo a resolugio de um enigma, uma operacio detetivesca: néo sabemos quem foi o assassino e precisamos trabalhar com a escassa evidéncia de que dispomos. Para Gibson, 0 sistema perceptive 6 como a testemunha ocular mais bem posicionada que se pode imaginar: ela vé o assassinato, vé o assassino — ela os vé em primeira mio, nao havendo espago para diividas a respeito do que foi visto, Se o detetive tivesse sido essa testemunha ocular, se ele tivesse visto o assassinato com toda clareza, isto é, se tivesse tido acesso a dados inequivocos, entdo nenhum processo de investigagao se faria necessétio. S6 € preciso juntar pistas e fazer delas o que de melhor se pode — bolar meras hipéteses — quando ainda ndo se tem uma evidéncia perfeitamente conclusiva, Quando, pelo contrério, se € testemunha ocular, tem-se evidéncia conclusiva, e ja se conhece a resposta para o enigma desde © infcio, Isto é, no h4 enigma. Podemos dizer que Gibson acusa a tradigao de ‘transformar num detetive alguém que é, na verdade, a mais bem posicionada das testemunhas oculares, Exploremos a metéfora um pouco mais. Em certo sentido, € mesmo enganoso dizer que a testemunha ocular obteve “evidéncias” ou “informagées” sobre o crime. Ela nao meramente obteve evidéncias sobre o crime. Ela o viu. Um detetive obtém informagdes ou evidéncia (ele as obtém, entre outras fontes, da prépria testemunha); uma testemunha bem posicionada vé. Se, ao entrar na casa de um amigo, eu vejo uma garrafa de vinho pela metade, eu obtenho evidéncias a favor da hipétese de que ele bebeu vinho. Se, ao invés disso, eu 0 vejo beber o vinho, seria estranho dizer que eu tenho “evidéncias” a favor da hipétese de que ele bebeu. O que eu tenho é muito mais do que isso. O que eu tenho é conclusivo, A diferenga entre ver e obter evidéncias apresentada nessa metéfora ilustra bem uma outra: a diferenga entre obter informagées no sentido tradicional (isto é, 0 do cognitivismo) ¢ obter informagées 62 no sentido gibsoniano, Os dois tltimos sao atos diferentes, embora homénimos. Se, a0 explorar o arranjo ético, vocé chega a obter alguma informagio, no sentido de Gibson, a respeito, digamos, da forma do objeto em questo, entdo vocé jé pode parar. Vocé nao precisa juntar mais pistas, nao mais do que eu preciso juntar pistas uma vez que ja tenha visto o meu amigo bebendo vinho. A informagio que vocé obteve, se ela é mesmo uma informagio gibsoniana, € suficiente para o conhecimento da forma do objeto: “os tipos disponiveis de informagao séo especificadores da configuragao, nao sinais, nem indicadores, nem pistas” (Gibson, 1972, p.86). Entender essa diferenga entre informagio como especificadora € informagao como pista é crucial para entender a maneira como Gibson se opde a0 modo classico de pensar em psicologia da percepeao. O proprio Gibson afirma que, se pudesse, teria dado outro nome ao seu conceito de informagao (1979, p.242). Para um autor como Gregory, a obtengdo de informagao € o ponto de partida da percepgao. Para Gibson, pelo contrério, a extragao da informagao é o ponto de chegada, Aqui alguém poderia levantar a seguinte obje¢do a Gibson. A tradigao atribuiu ao cérebro 0 papel de realizador de um trabalho de detetive — 0 trabalho de processamento das informagées e de elaborago de uma hipotese a respeito do que h4 no mundo ld fora. Gibson nega que esse trabalho seja necessdrio. Mas, entdo, qual a fungdo do cérebro, na perspectiva gibsoniana? Pode parecer que, em sua teoria, o cérebro nao contribui de forma alguma para 0 processo perceptivo. Mas essa objedo néo aponta para um problema real. Gibson, que a previu, tem uma resposta simples e satisfatéria: o papel do cérebro, diz ele, é 0 de contribuir para a otimizagao da coleta de informagées. Todos os movimentos € ajustes do sistema ~ do movimento exploratério da cabega & dilatagio das pupilas — ém 0 propésito de coletar 0 méximo de informagdo. A atividade do cérebro nao € excegio. O cérebro & parte de um sistema que “caga”: “O sistema visual caga compreensao e clareza. Ele néo descansa até que 0s invariantes sejam extraidos. Explorar e otimizar parecem ser as fungdes do sistema” (1979, p.218-9). Portanto, enquanto a posi¢do ortodoxa vé no cérebro um detetive, Gibson vé nele um farejador. Mas outra objegao pode representar uma verdadeira dificuldade para Gibson. O problema é, talvez, mais de ordem filoséfica do que cientifical’, Suponhamos que haja mesmo na luz informagio rica a ponto de especificar inequivocamente um ambiente. Suponhamos ainda que o percebedor seja mesmo capaz de extraf-la, Resta explicar por que ter essa * De sala, € preciso dizer que dificuldade parecida acomete a teoria cognitivista rival; portanto, que a teoria sofra desse problema nao constitui razdo para que seja preterida. 63 informagao deveria produzir a visdo do ambiente. Afinal, parece claro que uma coisa é ter acesso & informagio ética que especifica uma cena; outra coisa é ver a prépria cena, ter dela uma experiéncia visual. Gibson, parece-me, nao veria nessa objegdo forga alguma, Para ele, ver ¢ extrair invariantes nao sao atos diferentes. Pelo contrério, parece-me que a melhor interpretagao da teoria de Gibson é a de que, segundo cla, 0 processo da percepeao simplesmente ¢ o de extragio de invariantes do fluxo de estimulag’o; que nio ha nada mais no ato de ver. Portanto, as questdes “Como se vai do ato de extrair invariantes para 0 ato de yer?” ou “Como o primeiro explica 0 segundo?” seriam consideradas falsas quest6es por Gibson. A comparagdo com uma teoria mais conhecida pode ajudar: a teoria da identidade entre a mente ¢ 0 cérebro (tal como defendida, por exemplo, por Smart, 1959). Essa tese filos6fica ndo prope um mecanismo pelo qual a mente age sobre 0 cétebro e vice-versa. Ela recusa a propria necessidade de se propor tal tipo de explicago ao afirmar que a mente simplesmente é 0 cérebro. Podemos ficar perplexos diante dessa afirmagio de identidade, mas ndo podemos acusar alguém que a defenda de ndo possuir uma teoria do “mecanismo” que relaciona cérebro € mente. Pois a sua teoria implica em que a busca por tal mecanismo é iluséria, ‘A situagao da teoria de Gibson é parecida, Talvez sem dar-se conta disso, os comentadores Fodor e Pylyshyn (1981) levantam contra Gibson justamente a objecio de que ele nao prope mecanismo algum pelo qual o sujeito passa da extragdo de invariantes & percepgio do ambiente: a pritica de Gibson deixa razoavelmente evidente que ele quer distinguir entre 0 que é extraido © 0 que é diretamente percebido. De fato, Gibson, no fim das contas, aceita (...) que 0 que é extraido na percepgio visual so apenas certas propriedades do arranjo ético ambiente, Assim, Gibson deve encarar o problema de como, se ndo por mediagao inferencial, a extragio de tais propriedades poderia levat ao conhecimento perceptivo de propriedades do meio ambiente. Isto é: como, se nao por inferéncia, vai-se daquilo que se extrai sobre a luz pata o que se percebe sobre o objeto ambiental do qual a Juz. vem? (1981, p.171), ‘Mas, se Gibson estiver certo, a inferéncia é mesmo desnecessiria. Se A e B sio atos idénticos, realizar A, claro, garante a realizagao de B. Para Gibson, segundo a interpretagao que me parece ser a correta, extrair a informagio da luz e perceber o ambiente sio idénticos. Fodor ¢ Pylyshyn nao notam esse aspecto central de sua teoria ¢, assim, tomam-no como precisando responder ao mesmo tipo de problema para 0 qual a tradi¢ao nos deve uma resposta. Em seguida, acusam-no de nao ter fornecido a tal problema resposta alguma: 64 Lembremos que, embora Gibson as ve7es diga que vemos propriedades ecolégicas do ambiente ‘diretamente’, o fato é que esse tipo de visio direta é mediado pela extragio de informagao na luz. Gibson admite, de fato, que descobrir coisas sobre 0 ambiente depende de primeiro descobrir coisas, sobre a luz. Quando discutimos essa questo, nés enfatizamos que essa concessio (técita) de Gibson levanta a questo de como ~ por meio de que proceso mental — descobrir coisas sobre a luz desemboca em descobrit coisas sobre o ambiente (1981, p.221). Eentio: problema basico para Gibson é que extrair o fato de que a luz é de determinada maneira €, ipso facto, um estado mental diferente do de perceber que o ambiente é de determinada maneira. (...) A questio € que Gibson nio fez nada para evitar a necessidade de se postular tal processo [a inferéncia] (...). E ele nao sugeriu qualquer alternativa & proposta de que 0 processo se resume a realizagao de inferéncias perceptivas a partir dos inputs dos transdutores; no presente estado da arte, essa proposta é, literalmente, a tinica no campo (1981, p.193-4). A primeira frase do tltimo trecho citado mostra que Fodor e Pylyshyn estio lendo Gibson da maneira que me parece ser justamente a incorreta: eles ignoram que a teoria de Gibson identifica do ato de extrair certa informagao com 0 ato perceber certos aspectos do ambiente. Tal identificagdo pode muito bem ser considerada estranha, ¢ mesmo falsa. Teorias de identificagio ~ como a teoria da identidade mente-cérebro ~ freqtientemente sio estranhas. cardter surpreendente da teoria, nesse caso, ameaga levar-nos a interpreté-la incorretamente. Talvez Fodor e Pylyshyn achem tal identificagao t4o implausivel, que nfo cheguem a levar a sério a possibilidade de ler Gibson como a tendo defendido. Em todo caso, pode-se ainda ficar insatisfeito com o seguinte aspecto da teoria de Gibson: ela nao diz praticamente nada sobre a experiéncia consciente. Pelo contrario, Gibson desloca a consciéncia explicitamente para segundo plano, nao entendendo que a psicologia da percepgio precise explicé-la, Podemos entender por que Gibson vé as coisas assim. Ele acredita que um dos erros da tradigao foi ter-se concentrado sobre a sensacio — mais especificamente, foi ter acreditado que a sensagio, ¢ nao 0 mundo, é que era o objeto da percepgio. Assim, ele suspeita de qualquer teoria que dé A sensagdo — e assim & experiéncia consciente ~ um lugar proeminente. Ora, admitir que h4 consciéncia nao é aceitar 0 conceit de sensaco. Gibson, porém, nao parece fazer distingao entre consciéncia e sensacio e, dessa forma, volta as costas para um dos principais problemas a respeito da percepgao. A estratégia 65 de Gibson é afirmar que sensagao e percepgao sio processos bastante independentes: que a primeira é uma reposta nervosa a um estimulo e a segunda é a obteng’o de informagao. Assim, segundo ele, uma teoria que se ocupa da percepeao nao precisa ocupar-se da sensagao —e, dessa forma, nao precisa abordar a experiéncia consciente. Gibson, portanto, nao se imteressa pelo problema da consciéncia. Isso pode, sem divida, ser entendido como uma limitacdo de sua teoria; mas ele mesmo, parece-me, nio veria nessa critica muito peso’*. 2.2.2. papel do movimento do percebedor na extragao de informagio Concedamos a Gibson, para fins de discussio, que a extrago da informagao seja suficiente para a percepeao e sigamos adiante. Resta entender como Gibson defende, contra a tradigio, que a informagao € rica o suficiente para especificar o ambiente. Entra aqui 0 movimento do percebedor. Gibson argumenta que a psicologia tradicional s6 péde acreditar que o estimulo era pobre porque pressupds que o sujeito via o mundo de um ponto de vista fixo, De fato, num experimento psicolégico clissico, o sujeito ¢ tipicamente mantido parado. Projetam-se padrdes sobre uma tela, as vezes por um intervalo muito curto de tempo, ¢ avalia- se a resposta perceptiva. Mais do que pressupor um percebedor imével, a psicologia os produziu no laboratério, Ela restringiu seus movimentos e empobreceu a estimulacao para que © ptocesso perceptivo ~ 0 suposto esforgo do sistema na decifragao do estimulo — ficasse mais evidente. Com isso, ela tormou menos visivel 0 fato de que o ponto a partir do qual o sujeito vé o mundo é mével, ¢ que essa mobilidade, justamente, garante certa riqueza na informagao. Lembremos a distingio que Gibson faz entre a estrutura perspectiva do arranjo ético e a sua estrutura invariante. A estrutura perspectiva é a estrutura num tinico ponto; a invariante aquilo que nfo muda de um ponto para o outro, Esté claro que, ao imobilizar o percebedor, a psicologia o condena a nao ter acesso sendo a estrutura perspectiva do arranjo ético, isto €, & estrutura da luz em um tinico ponto, Mas, justamente, é a estrutura invariante que mais importa para a percepedo, pois ela é a informagao. Para perceber € indispensével realizar um percurso pelo ambiente, * Um gibsoniano poderia afirmar que entre extrair informagio ¢ ter uma experigncia consciente hi relagio de identidade. Isso levantaria os costumeiros incdmodos surgidos diante de teorias que identificam eventos cconscientes com eventos fisicas. 66 Uma maneira familiar de pensar é, talvez, a de que o percebedor explora o ambiente de modo a obter cada vez mais informagdo, mas que, mesmo imével, ele jé dispoe de alguma informagao, pelo simples fato de estar com os olhos abertos. Estritamente falando, isso, para Gibson, é falso. A informagao nao existe em um ponto, ou em uma imagem estitica. Ela s6 existe no fluxo, Nao é para obter mais informagao que 0 percebedor explora, mas para obter informagao, ponto. Afinal, a informagao € justamente a estrutura invariante, e essa sé pode revelar-se num fluxo de variagao. Como diz Gibson, “o que é invariante nao emerge inequivocamente sendo com um fluxo, © essencial se toma evidente no contexto da transformagéo do que nao € essencial” (1979, p.73). A rigor, 0 movimento néo € sempre necessirio para a percepcao. Simplesmente, ele ¢ a melhor forma de produzir um fluxo de estimulacio, o fluxo de que o percebedor precisa para extrair a informagao. Se o percebedor tem acesso a diferentes pontos de vista sobre um objeto mesmo sem mover-se ~ porque, digamos, o prdprio objeto se move, mostrando uma face diferente a cada vez —, entio o movimento pode ser dispensado. E ainda: em geral, um percebedor humano, mesmo imével, olha com os dois olhos. Isso Ihe dé acesso a estrutura perspectiva de dois pontos do arranjo Stico €, com isso, Aquilo que é invariante entre essas duas estruturas. Eis 0 que escreve Gibson: Variar a convergéncia do sistema binocular € um tipo de exploragao, como a fixagdo de cada sistema monocular. © arranjo duplo € disponivel para a exploragio, como a fixagdo de cada sistema monocular. A diferenga de estrutura perspectiva entre dois arranjos € a mesma que a mudanca de estrutura perspectiva de um arranjo quando os olhos sio_movidos Jateralmente através da distdncia interocular (1979, p.214)". Contudo, parece claro que, na maior parte do tempo, 0 movimento nao & substitufvel dessa forma, para Gibson, Afinal, observar de apenas dois pontos de vista — correspondentes a cada um dos olhos — nem sempre é suficiente para extrair a informagao que especifica 0 ambiente, De maneira geral, é necessario que © sujeito se locomova para extrair os invariantes. Lenay assim ecoa essa idéia : “o patalelismo dos receptores sensoriais seria formalmente equivalente a um ‘movimento jf feito, como, por exemplo, a utilizagio da convergéncia binocular para avaliar a distancia de um objeto é formalmente equivalente & mudanga de orientagio de um nico olho em seguidaa um ligeiro movimento dda cabega”. (Lenay, 2006, pp.35-6) 67 Gibson elabora uma lista de invariantes que especificam aspectos do ambiente. Para cada aspecto das coisas — forma, tamanho, distancia, movimento, etc. — ha, segundo ele, um tipo de estrutura invariante que o especifica. Podemos mesmo afirmar que Gibson redefine a propria tarefa da psicologia da percepgao em termos da descoberta desses invariantes: enquanto a psicologia ortodoxa da percepgo toma por tarefa principal desvendar as operagdes mentais que, incidindo sobre o dado bruto, produzem uma representagao, para Gibson a aventura consiste em ir atrés dos invariantes. A psicologia da percepgdo terd cumprido sua fungio principal quando houver encontrado um tipo de estrutura invariante no arranjo dtico para cada propriedade que as coisas podem ser percebidas como possuinds, isto €, quando souber dizer exatamente como cada propriedade perceptivel das coisas é especificada no arranjo dtico ambiente. Enfatizemos: a revolugao, a reestruturagdo do proprio projeto de psicologia da percepe4o que Gibson propde passa pela afirmagdo de que tarefa maior da psicologia da percepgo ndo é a de entender o que se passa no interior da mente do peteebedor. A atengdo do pesquisador deve ser deslocada para o que se passa no exterior. Sem diivida, & parte importante da pesquisa psicolégica a investigagdo da maneira como 0 corpo (incluindo o eérebro) torna o percebedor capaz de extrair a informacao. Mas é bastante claro que, para Gibson, o problema mais urgente é descoberta dos invariantes. Que ele veja as coisas dessa forma é compreensfvel, dado que, muito mais do que uma nova teoria, ele est efetivamente langando todo um novo programa de pesquisa em percepgo: ha novos conceitos, novas normas metodolégicas, hé mesmo uma nova meta para a disciplina. A substituigdo de um programa de pesquisa por outro é algo muito mais radical que a de uma teoria por outra. Quando se propde um novo programa de pesquisa, é essencial que ele parega promissor, sobretudo mais promissor do que o que ele pretende destronar. O programa de pesquisa ecolégico de Gibson nao parecer4 nada promissor caso nao se possa construir, desde J pelo menos uma pequena lista de bons candidatos a invariantes que especificam configuragées do ambiente. E 0 que Gibson se poe a fazer. Vamos a ela, ‘Uma antiga questéo em psicologia diz respeito 4 percepcao da profundidade: como se peteebe uma coisa como estando atrés de outra? Uma xicara, digamos, esté sobre uma mesa qual o percebedor esté sentado, Atrés da xicara hé uma parede na qual se pendurou um quadro. Como o sujeito percebe que a xicara esté mais préxima de si do que o quadro? Em concordancia com a tese tradicional de que o estimulo é pobre, pode-se pensar que, dado que a imagem retiniana projetada pela cena em questio é em principio compatfvel com pelo menos duas familias de cenas diferentes — uma em que é a xicara que esta mais préxima, outra 68 em que € 0 quadro -, a tinica saida para o sistema perceptivo é arriscar uma hipétese sobre a localizagao das coisas. Gibson, é claro, discorda. Para ele, hd um invariante que especifica a maior proximidade da xicara, Sua idéia é a seguinte. Se a xicara esta entre 0 sujeito ¢ 0 quadro, entao a xfcara oclui parte do quadro, isto 6, ela bloqueia aquela parte dele que nao é vista pelo sujeito. Que a xicara oclua parte do quadro de certo ponto de vista, porém, ainda nao € muito: 0 mero fato da oclusio de um objeto por outro em relacZo a um ponto de observagao nao gera informagao no arranjo stico que especifique a menor distancia de um deles em relagdo ao percebedor. Eis, porém, que © percebedor realiza um movimento exploratério com a cabega — digamos, um movimento lateral para a direita. Isso provoca um fluxo de estimulagdo, no qual os invariantes aparecem: na borda esquerda da xicara dé-se uma perda de estrutura do arranjo dtico, ao passo que do na borda direita hd um ganho de estrutura, A medida que © sujeito move a cabega para a dircita, & direita da xicara vai aparecendo uma porgao cada vez maior do ambiente, ao passo que a esquerda da xicara 0 ambiente vai sendo escondido. Isso ~ ganho de estrutura de um lado, perda do outro ~ é um invariante do fluxo'®. Tal invariante especifica 0 fato de que a xicara est4 mais proxima do percebedor do que o quadro. Assim, para perceber essa relagao espacial basta produzir, através de um movimento da cabega, o fluxo em que o invariante se revela, Nenhuma inferéncia a partir de deixas de profundidade é necessatia Aqui o leitor pode exclamar: “Sim, o invariante mencionado existe no arranjo tico. E talvez ele especifique mesmo a relagdo espacial em questo, Mas como exatamente 0 percebedor o extrai? Precisamos de uma teoria sobre isso! A teoria estaré incompleta até que se tenha explicado o ato de extragao do invariante”. E provavel que Gibson quisesse rejeitar tal questéo como uma falsa questo. Ele nao diz nada sobre como o percebedor extrai o invariante para além do fato de que ele realiza o movimento da cabega. Isso dé a entender que ele acredita que realizar essa amostragem do arranjo ético — que submeter seu sistema petceptivo a esse fluxo de luz estruturada ~ é suficiente para a extragao do invariante; que nao h4 nada mais que o sujeito precise fazer. De minha parte, cteio encontrar nisso uma lacuna na teoria. Algo mais, sem diivida, precisa ser dito sobre a “extragdo”. Eis por qué. Uma camera A rigor, isso nfo é um invariante, nao se accitamos a definigo de Gibson de que invariante é o que permanece dda estrutura de um ponto para o outro: “Algumas caracteristicas do arranjo no persistem, ¢ outras persistem (..). Hu as chamarei estrutura perspectiva e estrutura invariante™ (1979, p.73). Pois nem o ganho de estrutura nem a perda existem num ponto ~ logo, nfo podem, propriamente falando, permanecer nem sumir quando se Vai de um ponto a outro. No entanto, 0 ganho e a perda sio relagées entre um ponto do arranjo dtico e outro. Podemos conceder que, numa interpretago mais ampla do termo “invariante”, relagdes desse tipo contem como invariantes, RelagSes e razes si, em geral, o tipo de coisa que Gibson caracteriza como invariantes. 69 de video, portanto um artefato sensfvel & luz, pode ser submetida & mesma amostra do arranjo Stico que os olhos de nosso sujeito. Mas ela nio perceberd nada e, por isso mesmo, nao extrairé invariante algum (j4 que, para Gibson, perceber é extrair invariantes), Mas por que 0 sistema visual extrai invariantes, se a cdmera nfo o faz? que hé no sistema perceptivo que nao hé na camera? O que mais, além de ser sensivel A luz ¢ ser submetido ao fluxo, € preciso para extrair um invariante? Algo est faltando, portanto, & teoria; algo que explique como 0 sistema visual — mas ndo a cAmera — extrai informagdo. Gibson nao é nada explicito a esse respeito. Dada a centralidade do conceito de extracio para a sua teoria, porém, ele precisaria ser. Isso, no entanto, ndo & uma objegdo, mas a observagao de que a teoria, nesse ponto, ndo & inteiramente clara. No mfnimo, esse € mais um sentido em que a (eoria é incompleta. Mas voltemos a lista de invariantes. Outro invariante especifica 0 tamanho de um objeto. Para a tradigao, o problema da percepgao do tamanho coloca-se assim: como o sistema perceptivo pode descobrir o tamanho do objeto, se, & medida que o percebedor se aproxima dele, a imagem que ele projeta sobre a retina se torna maior? Do fato de que o objeto projeta uma imagem retiniana cujo tamanho varia com a distancia, a tradigdo infere que a imagem contém pouca informagio sobre 0 tamanho do objeto; que a partir do tamanho da imagem é preciso adivinhar o tamanho real. Gibson, como sabemos, nio acha que a imagem retiniana desempenhe o papel no processo petceptivo que a tradigdo Ihe atribui. Ele nao vé mistério, portanto, no fato de que a imagem cresga a0 passo que a percepgio permanece constante. E daf que a imagem varia? O importante, segundo ele, € que hi algo que ndo varia quando o objeto se torna mais préximo: a quantidade de unidades de textura que ele oclui. Num ambiente texturizado de maneira regular, um objeto de determinado tamanho sempre esconde 0 mesmo mimero de unidades de textura, ndo importa a que disténcia ele esteja. Isso é um invariante que especifica 0 seu tamanho. (Uma unidade de textura pode ser, por exemplo, uma folha de grama, ou entio uma paralelepfpedo de pedra). Algo parecido vale para a nossa percepgao de extensdes de solo: num ambiente texturizado de maneira regular, extensdes iguais contém um niimero igual de elementos de textura, nio importa sua distancia de nés; portanto, o mémero de unidades de textura contido em uma extensio especifica 0 seu tamanho, 70 Fig. 2.6 Arvores cortadas pela linha do horizonte. Carijé (2012), a partir de Gibson (1979). E raro que nos encontremos num ambiente em que 0 solo nao é texturizado, No entanto, se is 0 acontece, nem por isso o arranjo ético deixa de conter informagao sobre o tamanho das coisas, Outro invariante especifica o tamanho: a proporgao entre a parte do objeto acima do horizonte e aquela abaixo dele. A linha do horizonte corta um objeto, por exemplo uma 4rvore, sempre na mesma proporgdo, nao importa a que distancia esse objeto esteja do percebedor (ver Fig.2.6). (Note-se que a proporgio em que a linha do horizonte corta 08 objetos depende da altura dos olhos do observador, j& que tal linha acompanha a altura dos olhos. Assim, se o topo de um objeto fica justamente na linha do horizonte, ele & percebido por mim como tendo a minha altura; se é cortado exatamente ao meio pelo horizonte, entao & percebido como possuindo 0 dobro da minha altura; e assim por diante), Para um tltimo exemplo, hé um invariante que especifica a forma. Gibson € menos preciso em sua caracterizagdo, mas o que ele tem em mente é relativamente claro. Visto daqui, o tampo retangular de uma mesa projeta sobre a retina uma imagem em forma de certo tipo de trapézio; visto dali, de retingulo; etc. a projegio muda de um ponto de observagio para o outro, No entanto, ha algo que nao muda: certa relagao entre os angulos. Gibson nao deixa claro que relagio é essa, mencionando-a de maneira vaga (em 1979, p.74). Esse tipo de vagueza, no entanto, é tolerdvel. Nao seria justo exigir de Gibson uma especificagao precisa de todos os invariantes de relevancia para a percepedo; justamente, 0 programa de pesquisa, n a0 desenvolver-se, deverd revelar tais invariantes. Nao preciso conhecer todos desde o inicio; se fosse, sequer faria sentido falar em programa de pesquisa. Em todo caso, Gibson tem o seguinte a dizer em defesa de sua tese de que através da exploragio se extrai informagao que especifica univocamente uma forma’ Dado um objeto iluminado com vérias faces (um poliedro, por exemplo), haveré em tomo dele um conjunto ilimitado de pontos de observagio, Cada perspectiva do objeto (sua projecdo em um arranjo ético) é especifica de um ponto de observagao, A familia de perspectivas € especifica de um objeto. Um observador que andasse em torno do objeto (que olhasse para ele “de todos os lados”) obteria a familia inteira. As caracteristicas do objeto que © tomnam diferente de outros objetos possuem caracteristicas correspondentes, na familia de perspectivas, que so invariantes através das transformagoes, perspectivas. Esses invariantes constituem informagao sobre o objeto. Muito embora o observador receba uma sensagio de forma diferente a cada momento dese tour, sua percepgao do objeto, baseada em informagées, pode ser de um mesmo objeto (1972, p.82). “mistério” de como se percebe uma forma distal a partir de uma projeg4o ambigua desaparece quando o percebedor & considerado como mével, pois é apenas a imagem estitica que é ambigua; o fluxo é perfeitamente inequivoco: ele especifica uma forma e nenhuma outra, Logo, se percebedor tem acesso ao fluxo, ndo surpreende que apreenda aquela forma A lista de invariantes compilada por Gibson continua, mas ela sofre uma quebra. E que © fluxo de estimulagao nao especifica apenas 0 mundo ~ ele especifica também o corpo do percebedor ¢ os seus movimentos. De fato, Gibson introduz uma distingdo entre informagao proprioespecffica e informagio exteroespecifica: a primeira especifica 0 corpo; a segunda, 0 ambiente. Mais uma vez, Gibson propde novidades conceituais que desafiam a tradigao. Quando Sherrington (1906) introduziu o conceito de propriocepgao, ele o usou para referir-se a canais sensoriais espectficos: canais respondendo a estimulagdo intra-corporal, como aquela originada nas visceras e nos mnisculos. Para Gibson, no entanto, a distingio entre propriocepgao e exterocepgao deve ser feita através de um critério informacional. Se uma informagio especifica 0 ambiente, ela é dita exteroespecifica; se especifica 0 corpo, é dita proprioespecifica, nao importa por que conjunto de nervos e receptores sua obtengao é mediada, Nenhuma outra distingo entre propriocepgio © percepgio € necessétia; pelo contrétio, a concepgio de Sherrington tende a conduzir aos equivocos da psicologia tradicional, que acreditava que 0 estudo da percepgdo comegava pelo estudo dos canais 2 sensoriais ¢ das sensagdes que eles produzem. Tal distingo pertence ao programa de pesquisa ortodoxo e 1d deve permanecer. Assim é que, de acordo com a abordagem ecolégica, qualquer sistema perceptivo pode, em principio, ser proprioceptivo; basta, para tal, que seja capaz de extrair informagao proprioespecifica. Podemos dividir os tipos de informagao proprioespecifica em dois grandes grupos. De ‘um lado, certos aspectos do corpo do percebedor sio percebidos da mesma maneira que os de outros objetos: o invariante que especifica a forma da minha mao, por exemplo, € do mesmo tipo que o invariante que especifica a forma de uma xfcata. De outro lado, o movimento do corpo proprio & percebido de maneira tinica: ha tipos de variagdo e de invariantes que especificam exclusivamente 0 corpo, nao podendo nunca especificar o ambiente. Vejamos alguns exemplos desse iiltimo tipo de informagio proprioespecifica. Quando © percebedor se move, 0 arranjo stico sofre transformagdes que sao especificas do tipo de movimento que ele realiza. Se, por exemplo, ele move a cabega para a direita, dé-se um fluxo ético para a esquerda. Esse fluxo é global: é como se 0 arranjo todo fosse submetido a uma transformagao unificada. Tal fluxo global especifica 0 movimento do percebedor em relagao ao ambiente. De forma parecida, se 0 percebedor caminha para frente, cria-se um fluxo Stico em dirego oposta A do seu movimento; esse fluxo & caracterizado pela existéncia de um foco a partir do qual o campo parece expandir-se. A medida que o percebedor se desloca, alguns objetos deixam o campo visual, e outros vio se tornando aparentes & distincia; além disso, a estrutura perspectiva de cada componente muda. Algo, entretanto, nao muda: o foco. Esse foco , portanto, um invariante, e o que ele especifica € a diregdo do movimento do percebedor. Bis uma ilustrag40, Quando, no seriado Star Trek, uma nave adquire velocidade extrema, as estrelas parecem, do ponto de vista da tripulagio, deixar um rastro na diregdo contréria & do movimento da nave. Tais rastros apontam para 0 foco. Como o espectador imediatamente percebe, o foco indica a diregao em que a nave viaja Esse exemplo demonstra que a informagao meramente visual & capaz de especificar 0 movimento do percebedor. Gibson insiste na idéia de que nenhuma informagao muscular é estritamente necessaria para a percepcao da locomogio. Pelo menos para certos tipos de movimento, isso parece correto. E esse fato a respeito da visio que torna possivel que, mesmo quando movido passivamente, sentado dentro de um carro ou de um trem em movimento ~ ou seja, mesmo sem ativagdo dos sensores tradicionalmente entendidos como responsdveis pela propriocepedo -, eu possa perceber que me movo, Basta, para tal, que eu extraia a informagao B 6tica que especifica 0 meu movimento, (Para ser mais exato, 0 que o fluxo de expansio (aquele dotado de um foco) especifica é 0 movimento de um ponto de observacio, nao necessariamente 0 movimento do percebedor. © sujeito tem a experiéncia de observar 0 mundo a partir de um ponto cujo movimento é especificado pelo fluxo ético. No cinema, freqiientemente experimentamos um ponto de observagdo em movimento, mesmo quando estamos sentados e iméveis. Se a camera se move de determinada maneira perto do chio, parece-nos que acompanhamos 0 movimento de um animal rastejando; se cla se move a 1,60m dele, temos a experiéncia de ver através dos olhos de outra pessoa, etc. cinema langa mio desse recurso para indicar ao espectador que alguém se move, como se move ¢ para onde se move ~ ou, ainda, que alguém ndo se move, j4 que, como nota Gibson, enquanto o fluxo Gtico especifica a locomogao, um arranjo ético estatico especifica repouso do observador. Tudo isso é possfvel apenas porque no fluxo ético hé informagao que especifica o movimento do ponto de observagao). A exposigéo acima mostra que o sistema visual € tanto exteroceptivo quanto proprioceptivo. Nao preciso ver 0 meu corpo para saber, com base na visdo apenas, em que diregao estou me movendo. E aqui chegamos a uma conseqiiéncia da teoria de Gibson que ele gosta de destacar: nao é possivel perceber o ambiente sem ao mesmo tempo perceber 0 corpo. Percepeao e propriocepcao sao insepardveis. Afinal, para perceber é preciso mover-se, j4 que sem fluxo nao ha petcepgo; mas, se hé fluxo, ele especifica o movimento do percebedor. A extragio da informagio exteroespecifica ¢ a da proprioespecifica andam, assim, de m Ss dadas; na verdade, os dois processo sao um s6 (ou, como diz Gibson, sio “dois lados de uma mesma moeda” (1979, p.96)). Para retomarmos 0 exemplo do tampo da mesa, sé aleango uma percepedo da sua forma quando eu me movo em relagao a ela, porque apenas isso me permite extrair o invariante que especifica a sua forma retangular; mas 0 fluxo produzido nesse processo especifica também o meu movimento ao redor da mesa. Isso, supostamente, & valido para toda ¢ qualquer percepedo, Perceber, portanto, é co-perceber a si mesmo e a0 mundo. Nao 6 preciso acompanhar toda a lista de invariantes elaborada por Gibson. Os exemplos fornecidos acima, espero, deixam claro o suficiente o tipo de explicagéo da percepgo que ele persegue. Concluo, assim, a minha exposigio da teoria da percepgao de Gibson ¢ passo a discutir sua posigdo a respeito da ilusao. 14 2.2.3 As ilusées na teoria da extracao de informagao As ilusdes sao, provavelmente, o principal motor da teorizagdo em percepcao. Toda teoria da percepedo precisa encaré-las. Nao possuir recursos para explicé-las 6 mau sinal. Gibson sabe que precisa ocupar-se delas. Pode parecer, a principio, que ele nfo tem como acomodar as iluses em sua teoria, Afinal, ele afirma que percepgio & extragdo de informagao inequivoca; mas parece que, na ilusio, dé-se uma espécie de equivoco. Essa é, pelo menos, a ‘maneira tradicional de se caracterizar a ilusio. Como pode a extragio de uma informagao inequivoca — portanto, que especifica um ambiente sem a possibilidade de erro — dar lugar a uma experiéncia em que algo parece ser o que nao 6? A teoria tradicional é a de que 0 sujeito actescenta algo ao estimulo, ¢ que, no caso de ilusdes, 0 que ele acrescenta leva a uma experiéncia com conteiido falso. Essa rota pareceria estar fechada para Gibson, que rejeita a nogdo de operagdes mentais inconscientes sobre o dado perceptivo. Ele precisa bolar uma solu original. Gibson nunca bateu o martelo sobre a questo das ilusdes. Até 0 seu tiltimo livro, ele permaneceu indeciso, ¢ admitiu-se assim, Acreditava, no entanto, estar caminhando em uma série de diregdes razoavelmente promissoras: Eu tentei acertar as contas com o problema da ilusdo, Tenho certeza apenas disso: nfo se trata de um problema, mas de um complexo de problemas distintos. Consideremos, primeiro, a miragem de palmeiras no céu do deserto, ot 0 bastio reto que parece torto por estar parcialmente imerso em Agua. Essas ilusdes, assim como a ilusdo de Narciso, surgem gragas & reflexio ¢ & refragao regulares da luz, isto &, a excegdes a stica ecolégica da superficie dispersora-refletora e do meio perfeitamente homogéneo. Consideremos, em segundo lugar, a ilusdo no caso do tubardo sob a égua calma ou do choque elétrico escondido no gabinete do radio. A falha em perceber o perigo nao é, entdo, atribuida ao percebedor. Consideremos, em terceiro lugar, a porta de vidro tomada por uma passagem desimpedida (...). Um quarto caso € 0 do quarto composto por superficies trapezoidais (...), que parece retangular se o percebedor nao abre os dois olhos ¢ nao se desloca. A mé informagio 6tica participa de cada um desses casos de maneira diferente, Mas, em tiltima andlise, eles so mesmo explicados por ‘mé informagao? Ou séo uma questio de falha na extragto de toda a informagao disponivel, da inexaurivel reserva que se presta a uma melhor investigagao? (1979, p.249). ‘As duas tiltimas frases do echo acima exemplificam duas das és solugdes diferentes que Gibson explorou, Vejamos quais so, 1S A primeira das solugdes imaginadas por ele € a de que a ilusio é a extragio de mé informagao (misinformation). O arranjo stico, segundo essa solugio, pode conter tanto informagao correta quanto informagio incorreta. A mé informagio (ou informagao incorreta) € uma informagio no arranjo ético que especifica uma coisa que nao € a que esta diante dos olhos do percebedor: “Hé circunsténcias naturais em que a informagao dbvia na luz especifica uum fato que € falso” (1966, p.288). Quando isso ocorre, o percebedor pode extrair (corretamente) um punhado de informago incorreta, o que constitui a ilusdo. Gibson esta bastante convencido de que esse tipo de solug4o pode dar conta de pelo menos alguns casos de iluso, como o do graveto semi-submerso em Agua, 0 das miragens provocadas por entre outros, Em reflexdo em camadas de ar, o das montanhas que parecem azuis & distan todos esses casos, 0 percebedor, como diz Gibson na citagao acima, ndo tem “culpa” alguma. A experiéncia iluséria nao se deve a nenhum processamento interno que de alguma forma corrompe a informagio recebida; nao, a informagao jé falsa no proprio arranjo dtico; se ha erro, ele esté na estrutura da luz, isto é, na informagao. Gibson vislumbrou uma maneira de expandir essa idéia de modo a acomodar mesmo ilusGes geométricas cléssicas, como a de Milller-Lyer. Também af, segundo ele, a informagao no arranjo especifica algo diferente do que esté no ambiente. A explicacio envolveria a idéia de que a informacio que especifica 0 tamanho de uma linha envolve mais do que o seu tamanho e mesmo do que o tamanho de sua projegdo na retina, Escteve, em trecho com ares gestaltistas: 4 informagao sobre o comprimento de uma linha (...) simplesmente no € 0 comprimento de uma linha. Supé-lo é confundir a imagem considerada como superficie com a informag20 ética disponivel para o olho, Uma linha desenhada num papel no é um estimulo, A informagao no estimulo sobre 0 comprimento de uma linha é alterada ao se combiné-la com outras linhas. Nao deverfamos jamais ter esperado que linhas iguais parecessem iguais quando incorporadas em figuras diferentes (1979, 313). Hi um sério problema com essa primeira estratégia geral de Gibson face as ilusdes: ela parece incompatfvel com a sua prépria nogdo de informagao. Para que essa estratégia possa funcionar, é preciso que um objeto possa “fornecer informagao sobre algo diferente do que ele gue “seu arranjo ético produza, em parte, a mesma informagio estrutural que seria produzida pelo arranjo ético de outra parte do ambiente, em um lugar distante ou um momento diferente” (1966, p.225). Ora, mas toda a tese da percepg4o como extragao direta de informagao repousa sobre o pressuposto radical de que a informagao ¢ inequivocal Se duas 16 configuragdes ambientais diferentes podem produzit arranjos Sticos com “a mesma informagio estrutural” — como precisam poder, para que essa resposta de Gibson ao problema das ilu: s tenha alguma chance de funcionar - entéo j4 estamos usando o termo “informagio” num sentido estranho A teoria de Gibson: 0 sentido tradicional. Pois é exatamente isso — a possibilidade de que diferentes configuragdes ambientais produzam a mesma estimulagao retiniana — que a tradi¢io entende por ambigiiidade do dado sensorial. E justamente esse suposto fato que leva a tradigdo a postular um processamento interno, a entender a informagio como mera pista ¢ 0 processo perceptivo como um trabalho detetivesco. E esse tipo de ambigitidade do dado que Gibson nega ao propor sua teoria da extragdo da informagao. Gibson, portanto, esté tentando realizar uma manobra impossivel. Ele quer levar 0 seu conceito de informagao a desempenhar um papel na explicagao das ilusdes que cle é, por definigao, ineapaz de desempenhar: um papel que envolve ambigiiidade. O ‘mesmo conceito de informagio nao pode ser o de informagio capaz de ambigitidade e o de informagao essencialmente inequivoca. Quando se trata de explicar a petcepgao verfdica, portanto, Gibson é revolucionério; mas, quando a questio é a ilusdo, surpreendentemente, ele d4 um passo atrés, langando mao, talvez sem percebé-lo, do conceito tradicional de informagio como mera pista, Lembremos a citagio acima, em que o prdprio Gibson faz questo de opor essas duas nogdes: “os tipos disponiveis de informagao sao especificadores da configuragao, nao sinais, nem indicadores, nem pistas” (1972, p.86). Esses dois conceitos de informagio nao dao cria comum. Ou a informagao pode conter ambigitidade, ou nao pode. Ao explicar as ilusdes por essa primeira via, Gibson quer as duas coisas ao mesmo tempo. Portanto, a primeira estratégia de Gibson nao lhe serve. ‘Uma maneira pela qual Gibson poderia tentar escapar consiste em aceitar a existéncia de dois tipos completamente diferentes de informacio. Haveria, de um lado, informagao inequivoca e, de outro, informagdo ambigua. Na luz haveria esses dois tipos de “informaga0”, como na 4gua hd oxigénio ¢ hidrogénio ~ dois elementos inteiramente distintos.Apenas no nome os dois tipos de “informagao” seriam semelhantes. A captagio de informacao inequ{voca produziria percepgao € a captagao de informagéo ambigua poderia produzir ilusao. Gibson, no entanto, nfo dé qualquer indicagdo de ter passado a um conceito inteiramente novo de informagao ao falar em mé informagao. Ele parece, pelo contrério, estar fazendo a confusio descrita no pardgrafo acima. Em todo caso, a safda aqui vagamente esbogada € pelo ‘menos imagindvel, ainda que nao esteja claro que ela possa ser desenvolvida de maneira satisfatoria, 7 Passemos & sua segunda estratégia. Aqui, a idéia é a de que hé informagao correta no ambiente, mas 0 sujeito ndo tem acesso a ela, porque ele é impedido de explorar. E assim que Gibson entende uma ilusio como o quarto de Ames, que mencionei acima, em minha exposicao da teoria da Gregory (Fig. 2.3). Gibson nota que sé se sofre a ilusio caso se olhe pata 0 quarto de Ames de um ponto de observacao muito espeeffico ¢ com visio monocular. Quando se € assim confinado, 0 quarto torto nao parece torto, e duas pessoas de igual tamanho dentro dele parecem ter tamanhos muito diferentes. Ora, diz Gibson, quando condenado a ver 0 quarto desse ponto fixo, © sujeito ndo consegue obter a informagao necesséria para a percepgao do ambiente; para tal, setia preciso que ele se movesse. De fato, se ele realiza um movimento exploratério, a ilusio evapora: “O fato é que, quando um observador usa dois olhos e, sem dtivida, quando ele olha a partir de diversos pontos de vista, © quarto anormal (...) é percebido tal como é” (1979, p.168). Portanto, a segunda estratégia consiste em afirmar que a iluséo s6 se instala ali onde nao ha extragdo de informagao suficiente. Gibson encarou essa segunda estratégia como uma genuina alternativa 4 primeira. Em certas passagens, como a citada acima, ele parece exprimir a crenga de que poderia explicar algumas ilusdes através da primeira estratégia, outras através da segunda, como se a segunda fosse uma estratégia auténoma. No entanto, esse nao é o caso. A segunda estratégia no pode funcionar como explicagao suficiente das ilusdes. Ela precisa de um complemento. A razio pela qual é preciso mais do que a segunda estratégia para explicar a ilusdo é a seguinte: na teoria de Gibson, percepgdo extragao de informagao; logo, a auséncia de extragio de informagio € a auséncia de percepgao — ¢ ndo a presenga ilusdo. Da mesma forma, a extragao de pouca informagio € (ou deveria ser) percepgao empobrecida — no uma ilusao. Assim, que © percebedor nao consiga extrair informago (ou que nao consiga extrair informagao suficiente) no nos permite ainda entender por que a ilusio acontece, mas apenas porque a petcepeao veridica nao acontece. Mas a iluso nao é a auséncia da percepgao veridica, De olhos fechados, eu ndo vejo, mas nem por isso sofro uma ilusdo. Assim, retornando ao quarto de Ames, resta entender por que, quando o percebedor é mantido naquele ponto espectfico de observagao, a ilusio se impoe. A segunda estratégia deve ser complementada por uma explicagdo positiva da ilusio. Que complemento seria esse? Uma rota imagindvel para explicar a iluséo do quarto de Ames seria dizer que, naquele ponto do arranjo ético em que 0 sujeito € mantido, hé m4 informagao. Mas nés vimos a dificuldade que esse tipo de explicagao produ para Gibson 8 A terceira estratégia de Gibson (que pode ser combinada com as outras) me parece a mais interessante. Ela é uma variante daquilo que em filosofia contemporanea da percepgao se chama “disjuntivismo”. Essa posigao foi proposta em filosofia sobretudo como estratégia de resisténcia aos célebres argumentos da alucinacio e da ilusio, invocados a favor da teoria da percepeao indireta, O primeiro a defendé-la explicitamente foi Hinton (1967); outros defensores sio McDowell (1982), Snowdon (1980), Martin (2004) e Brewer (2011), havendo quem inclua Husserl nessa lista (Smith, 2008). Para entendé-la, é preciso entender o argumento da ilusfo ou o da alucinag%o, que ela pretende desmontar, O fendmeno da alucinagao nao interessa a esta tese; logo, tampouco o argumento da alucinagao. O argumento da ilusao é 0 seguinte'’, Numa ilusao, um objeto parece ser diferente do que é. Logo, a ilusio deve ser uma representagao. Mas experiéncias ilusérias so subjetivamente indistinguiveis de experiéncias perceptivas nfo ilusGrias; logo, experiéncias ilusGrias ¢ nao ilus6rias sdo experiéncias do mesmo tipo. Logo, as experiéncias nao ilusérias so também representagGes. De minha parte, eu questionaria o segundo passo do argumento, aquele que afirma que ‘uma iluso é uma representagio; e, sem divida, muitos disjuntivistas também o fazem. Mas a estratégia disjuntivista minima consiste em questionar a generalizacao que é feita no final do argumento, O que os disjuntivistas afirmam é que do fato de que experiéncias ilusGrias experiéncias nao ilusérias sejam subjetivamente indistinguiveis simplesmente nao se segue que elas sejam experiéncias da mesma natureza. Afinal, do fato de que duas coisas parecem iguais a alguém nao se segue que elas sejam iguais. Portanto, é perfeitamente possivel que ilusGes sejam meras representages, ou meros encontros com sensagdes, ou experiéncias ainda de outra natureza qualquer, ao passo que percepgdes nao ilusdrias sejam pleno contato com os objetos do ambiente, O disjuntivismo € a negagio de que ilusio e percepgao sejam experiéncias do mesmo tipo fundamental. Essa estratégia, se é que € boa, quebra o argumento da ilusdo. Ela permite, em prinefpio ao menos, que se defenda uma série de coisas sobre a ilusdo — por exemplo, que cla é uma representago -, mas nao aceita que essas conclusdes sejam transferidas para os casos de percepcao nao iluséria. O disjuntivismo diz, por assim dizer, que ilusdes sio mags € percepgdes so bananas, e que uma descoberta sobre as " Trata-se apenas de uma das diferentes verses que o argumento pode assumir. A apresentagao do argumento da ilusio e a do disjuntivismo a seguir sio simplificadas. Por uma questio de foco na literatura psicoldgica, nao discutirei detalhadamente as diferentes versées do disjuntivismo ¢ do argumento da ilusio Entre os defensores <élebres de verses do argumento da ilusio estio Hume (1758) e Russell (1912). Nas versoes deles, 0 argumento rio conelui que a percepeio é representacional no sentido contemporineo (isto é, 0 tipo de coisa que pode sex verdadeiro ou falso), sim que ela é um contato com objetos mentaise privados ~ impress6es ou sensages. 9 propriedades das macs simplesmente no tem conseqiiéncias imediatas a respeito de bananas, Existem duas grandes formas de disjuntivismo sobre a experiéncia perceptiva (ver a arrumagao do espago teérico feita por Byme ¢ Logue, 2009). A diferenga entre elas esté, justamente, em como elas entendem a ilusio. Nos dois pardgrafos acima, para simplificar a exposigao, apresentei o disjuntivismo como uma posiga0 sobre a ilusio, Mas, como jé indicado, ele € também uma posicdo sobre a alucinacio. De fato, o estritamente correto & dizer que © disjuntivismo é primariamente uma posigfo sobre a alucinagdo, ¢ que alguns disjuntivistas, mas nao todos, estendem 4s ilusdes o tratamento dado as alucinagées. Todos os disjuntivistas, portanto, afirmam que alucinagdes sio experiéncias de natureza fundamentalmente diferente das percepgdes. Eles negam 0 senso comum filoséfico de que percepgées ¢ alucinagdes compartilham um fator bésico — uma experiéncia interna, que se passa toda na cabega do sujeito, ¢ que pode ou nio corresponder & realidade. Para eles, experiéncias perceptivas nio sio meros eventos internos que, por acaso, correspondem ao ambiente. Nao: experiéncias perceptivas incluem, como parte integrante ¢ inaliendvel, o proprio ambiente. Por isso, sua natureza é diferente da das alucinagdes. Até af todos os disjuntivistas concordam, E a questao da ilusao que os divide: h4 os que assimilam a ilusio & percepgao — fazendo dela, portanto, um caso de contato direto com © mundo ~ ¢ ha os que a assimilam alucinagao, fazendo dela um tipo de experiéncia fundamentalmente diferente do contato genuino com o mundo que é a percep¢ao, Exemplo de autor pertencente ao primeiro grupo & Brewer (2006, 2008, 2011); exemplo de autor do segundo é Martin (1997, 2004)'*, As criticas a0 disjuntivismo que farei nesta tese so dirigidas ao disjuntivismo do segundo tipo. Isso porque os disjuntivistas do segundo grupo sao aqueles que acreditam que a solucio para o problema das ilusdes 6, justamente, o disjuntivismo: é dizer que ilusdes ¢ percepgdes so experiéncias de naturezas fundamentalmente diferentes. Os autores do primeiro grupo, pelo contrério, adotam o disjuntivismo como solugdo apenas para o problema da alucinagao, nao para o problema da ilusio: reconhecem que, a respeito do tiltimo, algo mais precisa ser dito, Isto é, a minha critica é ao disjuntivismo apenas enquanto pretensa solugio para 0 problema da ilusio. Ora, parece-me claro que Gibson é uma espécie de disjuntivista, e um disjuntivista do segundo grupo, isto 6, daquele que faz. da ilusdo algo totalmente distinto da percepgi0. Ou * bem possivel, no entanto, que Martin tenha se juntado ao primeiro grupo (ver Martin, 2010), 80 melhor, parece-me claro que ha nele pelo menos uma tendéncia disjumtivista. O fato de Gibson nio afirmar diretamente que ilusdo e percep¢o nio so 0 mesmo tipo de experiéncia ndo contribui para tornar seu disjuntivismo aparente. No entanto, ndo deverfamos mesmo esperar dele tal formulagao, j4 que ele sequer trabalha com o conceito de “experiéncia’, que actedita ser reminiscente da tradigdo. Ainda assim, em seus momentos disjuntivistas, Gibson € bastante claro ao insistir que ilusdes e percepgdes devem ser tratadas como tipos totalmente diferentes de fendmenos. Ele afirma mesmo, por vezes, que é preciso construir para cada uma delas uma teoria diferente, ¢ opde-se nisso explicitamente as teorias cléssicas, que explicam percepedo ¢ ilusdo através dos mesmos pressupostos: A ilusio é 0 oposto da percepgio (..) [e, portanto,] 0 mesmo principio no deveria ser usado para explicar por que a percepeao € t2o freqlentemente correta e por que ela é tao freqiientemente incorreta, Sem divida, uma teoria da percepeo deve admitir a ilusio, mas ela nao pode a0 mesmo tempo ser ‘uma teoria da ilusdo (1966, p.287) A sua teoria da extragao dos invariantes € uma teoria apenas da percepco; pressupostos adicionais, diz, sero necessérios para dar conta das ilusdes. Nao devemos esperar uma teoria unificada da percepeao ¢ da ilusio. Como eu disse acima, parece-me claro que Gibson apresenta tendéncias disjuntivistas em algumas passagens. O disjuntivismo foi explicitamente proposto por Hinton apenas em 1967; € s6 comecou a ganhar o centro da discussio em percepg4o nos anos 80, quando Gibson jé falecera. preciso, portanto, dar a Gibson o crédito por ter sido um dos primeiros a vislumbré-la. Este € mais um dos sentidos em que Gibson foi alguém de visio. Hi passagens em que ele formula um quadro disjuntivista particular ¢ bastante claro. Nesses momentos, ele afirma o seguinte: a tradicao, é preciso conceder, esta parcialmente correta. Hi processamento interno, hé inferéncias, hd produgao de hipsteses, hé participagao da meméria no processo. Hé enriquecimento de um dado sensorial ambiguo e empobrecido. Ha tudo isso ~ mas apenas nos casos de ilus4o, Portanto, a tradi¢ao acertou em uma coisa: ela nos fornece uma étima teoria da ilusio, O que ela nao percebeu foi que a tcoria da ilusio nao é a teoria da percepgao, porque a ilusdo nao é uma forma de percepgao. Parece-me que melhor das posigdes de Gibson sobre as ilusdes é, portanto, a seguinte. Uma ilusdo pode ocorrer apenas quando a estimulagio ¢ empobrecida, isto é, quando falta informagao (¢, talvez, quando hé mé informagao, se isso for entendido, como sugerido por mim acima, como algo completamente distinto de uma impossivel informagao inequivoca 81 que, por acaso, € incorreta). Isso se dé, principalmente, quando o percebedor € mantido imével, como nos experimentos classicos de psicologia. Nessas circunstdncias artificiais, 0 percebedor nao tem acesso ao fluxo dtico, ficando restrito & observagdo a partir de um tnico ponto de vista. Ora, se néio se permite que o sistema visual “cace” a informaciio que especifica © exterior, entéo & desencadeado um processamento interno. “Se os invariantes (...) nao aparecem, todo um repertério de processos mal compreendidos, chamados pressupostos, inferéncias ou adivinhagoes, entra em cena” (1966, p.303-4). Esse é 0 processo da ilusao. Segundo Gibson, esse processo € muito interessante ¢ digno de investigagdo, mas nfo deve ser confundido com o processo da percepgao: Eu defendo a idéia de que a adivinhagdo que acontece nesses experimentos, ‘a tentativa de preencher ou completar uma percepgao pela suplementagio de dados praticamente desprovidos de sentido nio é indicativa do que acontece na percepeao ordinéria (1972, p.88), Assim, 0 Gibson disjuntivista estabelece uma cisio fundamental entre as situagdes em que o sistema perceptivo consegue extrair informagées inequivocas ¢ as situagdes em que cle nao consegue, Se ele consegue, ocorre algo de muito distinto: percepeao direta e infalfvel do ambiente. Se ele no consegue, dispara-se um processo de apreciagdo critica do dado empobrecido, e o sistema realiza uma inferéncia (inconsciente, devemos presumir, embora Gibson nao seja claro). Inferéncias, justamente, podem produzir conclusbes falsas, ¢ tal proceso, portanto, pode produzir ilusdes. O processamento do dado que se dé quando o sistema nao extrai a informagio ndo ocorre quando o sistema a extrai. No segundo caso, ha petcepedo genuina; no primeiro, hé algo que muito se parece com a percepgao, mas nao é percepgiio. A chamada psicologia da percepgio, ao invés de estudar a percepgio, esteve estudando esse seu sésia, Ela criou situagdes artificiais em que a informagao era propositalmente escondida do sujeito (ou em que se lhe fommecia mé informagio), e, portanto, impediu-o de perceber realmente: apresentavam-se projecdes bidimensionais ao invés de objetos s6lidos; exibia-se o estimulo por um curtissimo perfodo de tempo; mantinha-se 0 sujeito imével, etc. Tudo isso dispara um processamento interno que nao é percepgao. Se quisermos estudar a percepedo propriamente dita, precisaremos abandonar esses velhos métodos, passando a disponibilizar estimulos “ecologicamente validos”. Apenas assim ele ter acesso A informagao que especifica o ambiente, Apenas assim os sujeitos experimentais deixardo de realizar inferéncias e passario a perceber. 82 E hora de passarmos a uma avaliagao critica dessa terceira tendéncia em Gibson. Eis uma razdo que me parece muito forte para ndo adotd-la. Embarcar num disjuntivismo a respeito das ilusdes € afirmar que uma experiéncia ilusGria nao € uma experiéncia perceptiva, isto que nao é uma experiéncia de ver — de genuinamente ver — uma cena do ambiente. Isso é problemético. Tomemos o exemplo de Milller-Lyer. Olhar para aquele diagrama é softer uma ilusio — com isso todos concordam. Mas nés queremos mesmo dizer que, ao olhar para aquelas linhas, nés nao as vemos? Seria preciso dizé-lo, para acompanhar o terceiro Gibson (ou, pelo menos, para acompanhar a minha versio do terceiro Gibson, a versio que eu argumentei ser a tinica que Ihe serve de fato). Colocando de outra forma, para acompanhé-lo seria preciso aceitar o seguinte: que, quando, em condigdes normais, olhamos para duas linhas paralelas e de igual comprimento desenhadas num papel, nés as vemos; mas que, quando se aotescentam a elas certas linhas obliquas (as flechas de Milller-Lyer), nés de repente deixamos de vé-las. Isso parece incorreto: nés nao deixamos de ver duas linhas. O seguinte exemplo ilustra a mesma dificuldade de maneira mais vivida: a perspectiva disjuntivista gibsoniana implicaria em que, ao olhar para duas pessoas que se enontram dentro de um quarto de Ames (com um olho s6 ¢ do ponto de observagao critico), nés no vemos aquelas pessoas; nés apenas parecemos vé-las. Se a pessoa dentro do quarto nos pergunta “vocé esté jo”. Mais uma ver me vendo?”, a resposta estritamente correta essa parece uma conseqiiéncia inaceitavel. Nao € isso que queremos dizer das ilusdes: que, ao sofié-las, perdemos 0 contato perceptivo com o mundo. © que queremos dizer de ilusbes é simplesmente que, nelas, vemos coisas que nao sao como parecem"”, Resta considerar a perspectiva gibsoniana de Michaels ¢ Carello (1981) a respeito das ilusées. Mais do que na obra do préprio Gibson, nas palavras dessas autoras fica claro a que Ponto a abordagem gibsoniana conta entre suas metas aquela que é também a desta tese, isto 6, a de fornecer uma concepgao nao representacional das ilusdes: As proposigées so as coisas que podem ser verdadeiras ou falsas, logo, se assumimos que percepgdes e agdes podem ser verdadeiras ou falsas (corretas ‘ou incorretas), assumimos necessariamente que percepgies ¢ ages s proposigdes. A posigdo ecoldgica (...) é a de que percepgdes ¢ agdes nao sto proposigées, nem so baseadas em proposigdes, e, portanto, nio podem ser corretas nem incorretas (1981, p.108-9). Um disjuntivista a respeito de ilusbes poderia responder que nés vemos as linhas, s6 nfo vemos © seu comprimento. Mas & estranho dizer que vemos a cor, a forma e mesino a localizag20 daguelas linhas, mas ndo 0 seu comprimento. 83 Escrevem ainda: “Negar A percepeio um status proposicional (...) terminaré por questionar a adequacio da aplicag%o de termos como errénea, falsa, incorreta e de seus opostos a (...) percepgdes” (1981, p.107). ‘Muito embora compartilhemos tal meta, eu rejeito a forma como elas pretendem atingi-la. Tal como o autor em que se inspiram, Michaels e Carello atacam o problema em varias frentes. E evidente, no entanto, que clas buscam para o problema uma solugao geral distinta daquelas propostas por ele. Mais especificamente, elasse apéiam num aspecto da teoria que Gibson que ainda nao explorei, e do qual ele mesmo nao se vale quando assunto ¢ ilusio: a nogao de ambiente. Gibson refere-se a seu prdprio projeto como “abordagem ecolégica”. O significado desse rétulo €, resumidamente, o seguinte: a nova psicologia da percepgao deve descrever 0 mundo percebido em termos que respeitem, por assim dizer, a maneira como 0 animal o percebe; € os processos de percepgo ¢ ago devem ser estudados segundo esse mesmo espitite. O vocabulério da fisica elementar — e mesmo o da quimica e o de certos ramos da biologia ~ nao ajuda. O que o animal percebe nao sao dtomos, forgas elétricas ou substancias quimicas; ele vé lugares, eventos, perigo, alimentos e outros animais. O animal possui, por outras palavras, um ambiente, que deve ser distinguido do mundo estudado pela fisica A principal diferenga entre 0 ambiente ¢ 0 mundo fisico talver. seja esta: no ambiente, mas nao no mundo fisico, ha affordances. Uma affordance é uma oportunidade de ago que algo oferece a0 percebedor. Uma cadeira oferece a oportunidade de sentar-se. Uma plataforma, a de subir, Um alimento, a de nutrir-se. A Agua, ade nadar. O ar, a de respirar. ‘Uma tese notdvel de Gibson é a de que as affordances sao percebidas, ¢ perccbidas diretamente: hé informagao na luz que as especifica. Nao inferimos o fato de que a maga comestivel a partir da percepgio do seu cheiro, da sua forma e da sua cor. Pelo contrétio, essa affordance é imediatamente percebida, e mesmo, em certo sentido, percebida antes da forma e da cor ~ isto é, notar sua forma e sua cor pode exigir um esforgo da atencao, mas o seu caréter de alimento salta aos olhos. Além disso, a affordance nao é subjetiva. Ela existe mesmo que nao seja percebida. Mas ela tampouco é uma propriedade intrinseca das coisas: é relativa ao corpo do percebedor. A nogdo de affordance nao é inteiramente nova; hi uma influéncia gestaltista que Gibson reconhece, sobretudo de Koffka (1935). Mas Gibson distingue-s dos gestaltistas ao afirmar 84 que as affordances dos objetos nio variam com os estados psicolégicos do percebedor: a sensagio de fome e a de saciedade em nada afetam a affordance da magi, que oferece a oportunidade de nutrigao encontre-se o percebedor no estado mental em que se encontrar. Parece claro que a fungio biolégica da percepedo é muito antes a de fomecer acesso as affordances do que a de revelar as caracteristicas dos objetos que interessam aos fisicos. Mas qual a relagio exata entre 0 ambiente ¢ o mundo fisico? Gibson é muito pouco explicito a esse respeito. Nao fica claro se o ambiente ¢ 0 mundo fisico, tal como esse aparece para o animal, ou se, pelo contrério, 0 ambiente ¢ 0 mundo fisico séo entidades distintas, esse dltimo nao sendo absolutamente percebido pelo animal. Isto é, é dificil saber se Gibson pretendeu realizar uma distingdo epistemolégica ou se uma disting4o ontol6gica. Bu optarei, aqui, pela segunda interpretagio, porque essa parece ser a de Michaels e Carello, cuja posigao esta em questio. Actescento, em todo caso, que outros comentadores, tendo notado a ambigiiidade, tomaram a segunda interpretagio como a mais provavel. Fodor e Pylyshyn, que se referem & discussio de Gibson sobre a maneira como estrelas aparecem no ambiente e a forma como o fisico as entende, escrevem o seguinte: ‘A idéia, aparentemente, é a de que hi dois tipos de coisas: ha as pequenas coisas esbranquicadas que vocé vé quando olha para o alto, que contam como objetos ecoldgicos genuinos e, portanto, como objetos genuinos da percepcio; e hé também as grandes esferas de gas quente que os astrénomos descrevem, que contam como objetos astronémicos e, portanto, ndo contam como objetos gemutnos da percepeio (1981, p-220). Ora, essa distingdo pode parecer sugerir uma safda para o problema da ilusdo. A idéia seria a de que uma percepgao s6 parece ser um erro perceptivo quando se toma como medida da corregao o mundo fisico, e que eleger tal medida nao se justifica. Se a percepgao nao deve entregar 0 mundo fisico, entdo reprové-la por nfo o fazer é um despropésito. O importante,para o animal, 6 perceber as affordances, nao o tipo de coisa com que a fisica se importa, Gibson nega consistentemente a importincia te6rica das ilusdes. Michaels ¢ Carello flertam com a negagao de sua prépria existéncia dentro do ambiente: ‘A percepeio diverge da métrica fisica absoluta ~ e, relativamente & atividade animal, arbitréria -, mas devemos supor que, porque os sistemas perceptivos dos animais detectam varidveis diferentes daquelas detectadas pelos instrumentos de um fisico, eles estdo em erro? (1981, p.96) F, algumas paginas antes: 85 TlusGes podem ser definidas como situagdes em que a medida que 0 cientista faz do ‘estimulo’ nao corresponde ao relato do percebedor sobre 0 “estimulo’, De acordo com a tradigao, o percebedor esté “em erro’, mas nds defendemos que o cientista esté em erro ~ que ele esté medindo a coisa errada, (.-) portanto, a importincia das ilusGes esti nas distingSes que clas promovem entre a métrica tradicional para a desctigio do ambiente e uma métrica ecologicamente motivada (1981, p.92). Claramente, a moral que Michaels ¢ Carello querem extrair & a de que o ambiente deve ser descrito através de medidas ecolégicas, medidas que, ao que seu texto dé a entender, estamos por inventar. Uma vez que paremos de tentar medir o ambiente com a métrica da fisica, que Ihe é alheia, ilusées deixarao de ser vistas como eros. Essa tentativa de solugdo no funciona. A razdo é a seguinte: nao é verdade que a ilusio 6 parece surgir quando se compara a experiéncia perceptiva com medidas realizadas por uma métrica estranha ao ambiente, através de instrumentos contaminados por uma fisica que nao se importa com as propriedades relevantes para o animal. Nao é a ciéncia que inventa a ilusio. A ilusio, pelo contrério, é um conflito surgido no préprio domfnio da experiéncia, ou, se se preferir, no “ambiente”. Um galho parece reto quando fora d’4gua, mas parece torto quando semi-submerso: a fisica nao tem parte alguma nesse conflito. Pode ser que a ciéncia prolifere conflitos dese tipo, mas ela certamente nfo os inaugura. Usar uma régua para medir 0 comprimento das linhas de Miiller-Lyer € uma operagao inocente, que ndo envolve o emprego de construtos fisicos. © conceito de comprimento é bastante ingénuo, assim como é a nogao de que o comprimento de um objeto possa ser medido ao se comparé-lo ao de outro. Portanto, a0 usar réguas, ainda nao deixamos o “ambiente” ~ ainda nao entramos no mundo teérico da fisica -, mas ja descobrimos ilusGes. A esperanca de Michaels e Carello parece ser a de que 0 reconhecimento da necessidade de uma “métrica ecolégica” venha a nos convencer de que a percepgaio nunca est4 em erro. Infelizmente para essa solugio, € uma métrica bastante cotidiana que motiva a concepgao de que a ilusdo é um tipo de falsidade. Mas isso nao é tudo que as autoras tém a dizer sobre o assunto. Tal como Gibson, elas langam mao de diversas estratégias para combater a ameaga que as ilusées parecem representar para a teoria da percepcao direta. Elas endossam, por exemplo, as solugdes do proprio Gibson (a excegio da disjuntivista, que sequer mencionam, até onde sei). E, a 86 proposta prépria discutida nos pardgrafos acima, acrescentam a seguinte: devemos tomar por critério de sucesso da experiéncia perceptiva nio sua correspondéncia com o mundo fisico, mas 0 sucesso do conjunto das ages do percebedor. Afinal, a fungdo primaria da percepgio é guiar a ago de forma a que o organismo sobreviva € se reproduza. Se as agdes sfo bem sucedidas, entéo a percepedo também 0 6. Se nao so, entdo talvez a percepgao tenha falhado. Mas, se tiver falhado, no serd por (er representado mal. Isso porque, para garantir a sobrevivéncia do organismo, a experiéncia perceptiva nao precisa representar nada. Ela no precisa conter uma proposigao sobre 0 mundo. Simplesmente, deve ser compativel com a sobrevivéncia. Mas ser compativel com um estado de coisas € muito diferente de representar alguma coisa. Eis dois exemplos fomnecidos pelas autoras Este livro é escrito sobre uma mesa bastante abarrotada, Esse € 0 estado de coisas da mesa. Nenhum argumento, por mais engenhoso que seja, pode provar que esse estado de coisas é verdadeiro ou falso; ele simplesmente é. A quantidade e a disposigo dos itens sobre uma mesa nao pertencem & categoria das coisas das quais se pode dizer que sio verdadeiras ou falsas. Pode-se perguntar se a disposigao atual € compativel com a escrita, por exemplo, mas isso é diferente de perguntar se a disposigdo esté ou no em erro, © estado de coisas de uma mesa no é de forma alguma uma proposigio sobre a escrita; ele é 0 que 6. E se aquela disposigao é testada quanto & compatibilidade — quando tento escrever —, a disposigao passa ou no no teste gragas @ sua compatibilidade com a escrita, nao a sua verdade com respeito & ela. Se 0 abarrotamento ¢ a escrita sio compativeis, eles podem coexistir; se sio incompativeis, nio podem. Estados de coisas, & 0 que argumentamos, ndo precisam ser pensados como proposigées sobre outras coisas ‘Uma analogia biolégica nos aproxima ainda mais de entender o status nio proposicional da percepgio e da agdo. Consideremos os enganchados caninos dos carnivoros. Eles so um estado de coisas nao muito diferente da mesa abarrotada, ou da percepgdo ¢ da ago. Tomados como estados de coisas, os dentes nao podem ser verdadeiros ou falsos. Bles podem & ser compativeis ou incompativeis com certo tipo de comida (1981, p.109) Assim, se a espécie é extinta, nao se deve concluir que as suas percepgdes tinham por contetido proposigdes falsas ~ ndo mais do que se concluiria que os seus dentes continham proposigGes falsas -, mas apenas, talvez, que eram estados de coisas que se tomaram incompativeis com as affordances do ambiente. 87 Eis outra proposta oriunda da abordagem ecolégica que é insuficiente para resolver 0 problema da ilusdo. A sobrevivéncia de uma espécie nao prova que os individuos que a compdem nao sofram ilusdes, nem que as ilusdes que softem nao tenham proposigdes falsas por contetido. Ela sé mostra que esses animais nao sofrem um mimero grande demais de ilusdes. Assim, pode-se sustentar que a ilus4o representa falsamente mesmo diante da evidéncia de que as espécies conseguem sobreviver. A experiéncia, bem entendido, nao poderia ser toda falsa sem que isso atrapalhasse a sobrevivéncia, mas cla ainda poderia ser falsa em casos isolados — toda vez, digamos, que o animal olhasse para um diagrama de Miller yer — sem que isso implicasse em extingao. Michaels e Carello parecem-me estar certas quando afirmam que a percepio nao & proposicional. De fato, o importante numa percepeio é sua compatibilidade com os projetos do percebedor, e essa compatibilidade nao necessariamente implica em representag4o. Mas a abordagem ecolégica nio parece, a0 menos nio até agora, ter sido capaz de produzir uma visdo altemativa satisfat6ria das ilusGes. Enquanto nao tivermos essa visto positiva das ilusdes, afirmar que percepgio nao é representagio poderd parecer, para muitos, algo inteiramente descabido. His 0 que dizem Fodor e Pylyshyn’ Esse problema [o da iluséo] € a tal ponto grave, que por vezes leva gibsonianos a tomar medidas verdadeiramente desesperadas. Por exemplo, Turvey © Shaw (1979) sugerem que lidemos com a questio do ero perceptivo ao ‘tirar a percepgao do dominio proposicional, no qual se pode dizer que cla € correta ow incorreta (...) e realocé-la em um dominio néo proposicional, no qual a questio de se a percepcio & correta ou incorreta seria absurda’ (p. 182). Aparentemente, isso significa que ou nés deverfamos parar de pensar na percepgio como produzindo crengas, ou que deveriamos parar de pensar em crengas como possuindo valores de verdade. Turvey € Shaw descrevem essa proposta como ‘radical’, mas ‘suicida’ talvez seja 0 termo mais apropriado (1981, p.182-3). Mas, ao contrétio do que Fodor ¢ Pylyshyn pensam, ndo é nada claro que afirmar que a percepgio nio é representacional implica em que a experiéncia nio desdgtie em crengas a respeito do ambiente, nem em que crengas ndo possuam valor de verdade. Pelo contrério, 0 raciocinio de Fodor e Pylyshyn é que é desesperado: nesse trecho, eles claramente pressupdem, sem argumento, que todo estado psicolégico — portanto, toda experiéncia — que contribui para a formagao de um pensamento é ipso facto tepresentacional. Nao vejo como se possa justificar tal pressuposto. Compreende-se até certo ponto, porém, a indignagdo de Fodor ¢ Pylyshyn: nao esté claro que haja uma alternativa robusta & tese de que uma ilusdo é uma 88 percepgao falsa; e, assim, recusar a tese representacional pode nao parecer uma opgao. E justamente essa alterativa que estou buscando, a que Gibson e os gibsonianos nio conseguiram entregar. Deixemos, porém, o problema da ilusio tal como Gibson e os gibsonianos o trataram, & passemos a sopesar os méritos de sua teoria da extragao de invariantes de maneira mais geral. Ser minha conclusio pessimista que sua teoria falha em superar a tradig2o em um ponto chave. 2.2.4 A insuficiéncia da abordagem gibsoniana para a superacao da tradicao Gibson promoveu imtimeros avangos no campo da psicologia da percepefo. Para além de ter sido autor de descobertas empfricas importantes (para um exemplo, ver Gibson, 1933), ele promoveu um progresso metodolégico ao insistir na necessidade de se investigar a percepeao tal como se d4 na vida real, ndo apenas a percepcio produzida no ambiente attificial do laboratsrio; desenvolveu a nogao de affordance, herdada dos gestaltistas; colocou de vez 0 papel do movimento exploratério no centro da atengdo; transformou nossa concepgao do que conta como estfmulo para a percepgao; ete, A lista de suas contribuigdes & sem diivida muito longa, ¢ seu legado é extremamente rico. E, no entanto, aquela que ele talvez tenha encarado como a sua maior realizagao talvez. merega rejeitada, Falo da teoria da percepgio como extragio de informagio inequivoca. Rejeitar essa teoria nao implica em rejeitar a contribuigao de Gibson como um todo. A teoria da percepgao como extragao de informagao inequivoca é, sem diivida, parte do niicleo do pensamento de Gibson ~ é parte do que faz de Gibson um revolucionério. Mas no hé por que pensar que seja preciso aceitar ou rejeitar Gibson em bloco: pelo contrétio, € possfvel colocar tal teoria em xeque sem colocar em xeque, por exemplo, as contribuiges citadas acima, que implicam em uma reforma em psicologia. Se teoria da percepeao como extragao de informagao inequivoca fosse correta, entio jé estarfamos de posse de alguns dos principais recursos necessérios para deixar a tradigao para rds. A teoria da extragao de informagao de Gibson, porém, tem um calcanhar de Aquiles da qual nao pode se livrar. O problema esta no préprio conceito gibsoniano de informagao. A teoria, lembremos, pressupde que, quando o percebedor explora o ambiente, ele entra em 89 contato com uma informagio que especifica inequivocamente a configurago ambiental. O ponto em que essa teoria pretende deixar a tradi¢io para trés é este: existe informacéo inequfvoca, ao passo que a tradigao encarava o estimulo como irremediavelmente ambfguo. Como a informagao é inequivoca, nao é preciso interpreté-la, estruturd-la ou processé-la de qualquer maneira que seja. Ora, se desse ponto ~ da existéncia ou inexisténcia de informagao inequivoca ~ depende a disputa entre Gibson e a tradic¢io, enti essa € uma disputa que Gibson nao parece capaz, vencer. Antes de passar & minha critica, menciono aquela feita a Gibson por Varela, Thompson e Rosch (1991). Esses autores, assim como Gibson, buscam uma teoria nao representacional da percepcao na qual a ago do percebedor desempenha papel fundamental; além disso, como ele, entendem que tal teoria deve fazer uma diferenciagio entre o ambiente 0 mundo fisico. No entanto, a abordagem da enagdo, que eles propoem, diferencia-se da de Gibson principalmente pelo seguinte: para Gibson, as affordances ¢ outras propriedades dos objetos que sao percebidas nfo dependem da prdpria atividade exploratéria do percebedor. ‘Como vimos, Gibson insiste na idéia de que as affordances so objetivas no sentido de que existem independentemente dos estados do percebedor. Elas estio 14, prontas para serem petcebidas. Varela, Thompson e Rosch enxergam um problema para essa concepgao. Eles notam que a informagdo na luz nao pode ser suficiente para especificar uma affordance, quando a affordance ~ e, assim, © ambiente percebido ~ depende de fatos sobre © corpo ¢ a ago do percebedor. Por exemplo, uma mesma substincia pode ser alimento para certo animal, mas veneno para outro, Assim, como a extragao de informagao contida na luz pode ser suficiente para a percepeao de uma maga como nuttitiva? A critica que farei A nogdo gibsoniana de informagio é diferente. Ela é préxima da que fazem Fodor ¢ Pylyshyn. Tais autores, porém, entendem o conceito de informagao de Gibson de maneira um tanto diferente de mim. Na leitura feita por Fodor e Pylyshyn, um estado de coisas (a luz estruturada de certa maneira) contém informagdo gibsoniana sobre outro (a configuragao do ambiente) se ¢ somente se existe uma correlagio entre esses dois tipos de * Nesta tese, eu ndo examino a (eoria defendida por Varela, Thompson ¢ Rosch (1991). que motiva Varela e seus colaboradores a resist & tese representacional é diferente do que motiva a mim. Cada um tem suas razbes para questionar tal ortoxia, Gibson, por exemplo, recusa © que ele eré ser um pressuposto seu, a saber, a tese de que o estimulo & pobre, ¢ acredita que abandoné-la faz evaporar uma série de pseudo-problemas em psicologia da percepgao. Ja Varela recusa o realismo metafisico que costuma andar de maos dadas com 0 representacionalismo. Como busquei deixar claro na introdugio, 0 problema que eu vejo na teoria representacional é que ela parece entrar em coniflito com a intuigao de que experiéneia é contato diteto com o mundo, isto 6, de que a experiéncia inclui o mundo, 90 estado, Isto 6, dizer que a luz tem informagao sobre o ambiente no sentido de Gibson seria simplesmente dizer que a luz ¢ 0 ambiente estao correlacionados: “‘contém informagao sobre’ simplesmente significa *€ correlacionado a’ (Fodor e Pylyshyn, 1981, p.194). Em situagdes normais, a correlagio seria forte 0 suficiente para que a estrutura da luz “especificasse” 0 ambiente. Ndo me parece ser isso 0 que Gibson entende por “informagio”. Afinal, se a estrutura da luz estivesse correlacionada & estrutura do ambiente, mas de maneira imperfeita, a luz nao carregaria informagao inequivoca sobre o ambiente. Essa diferenga entre as nossas interpretagdes, no entanto, é de menor importancia. Nossa critica comum é a de que a idéia de que a luz especifica o ambiente implausfvel. Gibson demonstrou habilmente que a informagao obtida € muitfssimo mais rica quando hé explorago. Ele mostrou experimentalmente que 0 ato perceptivo € tomado mais simples e preciso quando se permite ao sujeito o acesso ao fluxo, ao invés de apenas a uma imagem estatica (ver, por exemplo, Gibson, 1962). Isso, porém, nao basta para superar a tradicdo inferencialista. De nada importaré que a informacio seja mais rica do que a tradicao. pensava, se, apesar disso, ela ainda for ambfgua. O ponto crucial € este: se houver a menor réstia de ambigiiidade na informagao, entéo a tradigio poderé insistir que serd preciso “manipulé-la”, “estruturé-la”, “processé-la”, etc. Para que a teoria de Gibson tivesse chance de estar correta, teria que ser possivel existir o que ele chama de informacdo: uma organizagdo do arranjo stico que nfo poderia ter sido produzida seno por certo tipo especifico de configuragio ambiental. Mas algo satisfaz a essa descrigao?Parece que nao: qualquer arranjo ético poderia ter sido produzido por inimeras cenas diferentes. Gibson parece pressupor que esse principio — sobre o qual toda a tradigao est4 montada — € vilido para a estrutura perspectiva do arranjo tico estdtico — para o arranjo que existe um ponto sé — mas no para a estrutura invariante do arranjo, isto é, ndo para um fluxo de estimulagao. A resposta que devemos dar a essa manobra de Gibson é, porém, a de que, se o principio é valido para a estrutura perspectiva do arranjo, igualmente o é para a estrutura invariante, Nao importa 0 quanto 0 sujeito explore: o fluxo ético que ele obtém sempre poderia ter sido produzido por intimeras configuragdes ambientais diferentes. A exploracio nao elimina a ambigiiidade no estimulo. E isso que torna a teoria da extracdo dos invariantes implausivel: Gibson fala como se a exploragao eliminasse toda ambigiiidade. Nao € que a exploragao nao possa subtrair ambigiiidade; € que subtrair ambigitidade nao resolve o problema, se aps a subtragao ainda resta ambigitidade. oO ‘A ambigiiidade do arranjo de luz chegando a determinado ponto é infinita, isto é, hé uma infinidade de arranjos ambientais que poderiam té-lo gerado. Se 0 olho se desloca de modo a obter uma amostra maior de luz com o intuito de reduzira ambigitidade, entio 0 problema da ambigiiidade se recoloca para esse segundo arranjo de luz. De nada adianta apelar para o fluxo: 0 problema da ambigiiidade se recoloca com a mesmissima forga para ele. Fodor e Pylyshyn estio prontos a admitir que um fluxo extraordinariamente vasto de estimulacio, que desse acesso a uma amostra colossal do arranjo ético, talvez pudesse mesmo especificar inequivocamente 0 ambiente (uma concessio que cu nao faria a Gibson). Por exemplo, se tivéssemos acesso a toda a luz do universo, dizem, entio talvez tivéssemos acesso a algo que especifica todas as propriedades do ambiente. Mas a percepgio nao funciona pela obtengio de toda a luz do universo, nem de nada préximo disso. A amostra do atranjo ético relevante para a percepgdo é reduzida: ‘A questio psicolégica importante é se a afirmagao de que ha especificagao pode ser mantida para amostras do arranjo Stico ambiente devidamente limitadas, e o interesse da afirmagao do Establishment de que a percepgao & tipicamente inferencial depende em grande parte da afirmagdo de que a resposta a essa pergunta € ‘nao’ (1981, p.198-9). (...) podemos agora fazer a pergunta critica: é verdade, em geral, que cada estimulo efetivo € inequivocamente correlacionado a estrutura de um layout correspondente? Nés pressupomos que essa seja a mancira adequada de se perguntar se, em geral, a estrutura do meio especifica a estrutura do layout inequivocamente. Quando, porém, a questio é colocada dessa forma, parece Sbvio que a resposta é ‘ndo'. O mapeamento de layouts para estimulos efetivos é, certamente, de muitos para um, visto haver sido mostrado repetidas vezes em laboratérios psicoldgicos que os perceptos podem ser causados por amostras do meio ambiente que, como se pode demonstrar, subdeterminam o layout correspondente (1981, p.200). A razio pela qual a teoria da extragao de informagao de Gibson nao consegue deixar a tradigao para trés € que ela quer fazer sumir por decreto o principal combustivel das teorias tradicionais: a ambigiiidade do estimulo. Se fosse possivel fazé-lo sumir, entZo a0 menos essa motivago para a tese da percepeo como processamento se esfumagaria junto, Mas a ambigilidade do estimulo permanece, com ou sem fluxo — e mesmo com um fluxo composto de toda a luz do mundo. Gibson afirma que est disposto a submeter a teoria da extragao direta dos invariantes a testes empfricos: “Qual o futuro desta abordagem? Ela pre a ser 92 experimentalmente testada, precisa ser mais bem clarificada e as suas implicagdes precisam ser entendidas”. (1979, p.305). Fodor e Pylyshyn podem ser interpretados, na citagdo acima, como afirmando que esses testes empfticos jé foram conduzidos e jé testemunharam contra a teoria, isto é, que j4 se mostrou experimentalmente que um fluxo de estimulago nao specifica um ambiente, Algo que ilustra muito bem esse problema na teoria de Gibson — isto é, que ilustra a que ponto ela nao foi capaz de superar a tradigdo inferencialista no que diz respeito a0 problema da ambigitidade do dado ~ é a maneita como David Marr se coloca diante dela. ‘Marr, famoso por ter proposto uma teoria computacional da visio (Marr, 1982), & por isso mesmo, exemplar paradigmitico de te6rico do que Gibson entendia como sendo a ortodoxia E, no entanto, Marr 1é Gibson como tendo sido um dos primeiros a entender a verdadeira tarefa do sistema perceptivo: extrair a informagdo que especifica um ambiente! Apenas, segundo ele, Gibson nio teria compreendido como isso € feito pelo sistema. Eis os problemas que Marr enxerga em Gibson: Embora se possam eriticar certas falhas na qualidade da anilise de Gibson, suas maiores falhas ~ falhas fatais, de minha perspectiva — encontram-se em um nivel mais profundo ¢ resultam de ele nao ter notado duas coisas. Primeiro, a deteceao de invariantes fisicos, como superficies de imagens, & exata e precisamente uma questio de processamento de informagdes, em terminologia moderna. Segundo, ele subestimou fortemente a propria dificuldade de tal detecgo (Marr, 1982, p.30). Isto é, Marr sequer reconhece o sentido gibsoniano de informacio, tomando Gibson como as voltas com informagio no sentido tradicional. Assim, o que Marr entende por invariante no trecho acima nao é uma propriedade do arranjo ético, ¢ sim uma propriedade do ambiente; e encara a tarefa do sistema perceptivo como sendo a de recuperar tais propriedades a partir da informagao que hé no atranjo 6tico. Marr, é claro, est fazendo uma leitura de Gibson diferente da minha (e, podemos dizer com seguranga, diferente da do préprio Gibson!) Parece claro que Gibson ndo deveria ser lido assim, No entanto, esse ttecho de Marr 6 interessante porque, no menos que as passagens citadas de Fodor e Pylyshyn, revela que a tradi¢o, quando se depara com o conceito de informagao de Gibson, tende a reinterpreté-lo em seus prdprios termos, talvez por entender o conceito de informagao Gibson de como levando a um beco sem safda. 93 Como eu disse acima, levantar tais criticas a Gibson nao nos impede de reconhecer a riqueza de suas contribuigdes. Eu listei algumas delas. Pode parecer, dada a minha discussio sobre a sua nogao de informagao, que a idéia de que 0 estimulo para a percepgao é um fluxo nao me parece estar entre os avangos promovidos por Gibson; afinal, eu enfatizei que mesmo no flux hé a ambigiidade da qual Gibson quis livrar-se. Entretanto, isso nao é assim. O pressuposto clissico de que tudo a que o sistema perceptivo tem acesso direto sio secGes instanténeas do arranjo Stico, e de que sé a meméria pode estabelecer a conexdo entre eles merece ser questionado, mesmo que no fluxo nao haja informacao inequivoca. Por que deverfamos acreditar que o sistema s6 € capa. de detectar diretamente as mais simples e mais instanténeas das propriedades da luz? Por que excluir a possibilidade de que ele seja imediatamente sensivel tanto a varidveis de alta ordem quanto a propriedades que s6 existem na duragdo? Essa é uma critica de Gibson & psicologia inferencialista que mesmo Fodor Pylyshyn reconhecem como perfeitamente valida: A versio da teoria do Establishment contra a qual Gibson tipicamente Langa sua abordagem toma intensidades puntiformes de luz. que incidem sobre a superficie retiniana como as tinicas propriedades primitivamente detectadas pela visto. O argumento de Gibson é, no mfnimo, o de que essa decisto nao pode ser defendida por apelo a razSes a priori, e que descrever o estimulo diretamente detectado como um mosaico instantineo possui implicagoes profundas e implausiveis para o resto da teoria da percepedo, Nés aceitamos ambas as criticas (...) Nao hé nada (...) que exclua de safda que proptiedades da luz. distribuidas ao longo de segmentos muito mais longos de espago-tempo do que os teéricos do Establishment tém assumido possam ser detectadas diretamente (Fodor e Pylyshyn, 1981, p.202), Ob: lango final 6 0 seguinte. Em psicologia, Gibson foi quem mais desafiou a idéia tradicional segundo a qual a experiéncia perceptiva € o resultado de uma inferéncia, uma representagdo, uma hipstese que pode ser verdadeira ou falsa. A maneira como ele fez. isso produziu importantes avangos conceituais ¢ metodolégicos em psicologia da percepgao Contudo, a teoria da extragdo de informagao é insuficiente para a superagdo da tradigao a que Gibson aspira, porque o seu conceito de informacio é por demais problematico. Além disso, a teoria de Gibson nio nos fornece uma resposta satisfatéria ao problema da ilusio. Gibson tem, € verdade, uma posigdo interessante a esse respeito. Essa posigao, no entanto, envolve a idéia de que uma experiéncia iluséria ndo é uma experiéncia de ver. Isso faz de uma ilusdo uma perda de contato perceptive com 0 mundo, © que me parece razio 94 suficiente para nos perguntarmos se existe uma maneira melhor de evitar a concepgio tradicional das ilusées. Com Gibson ¢ contra Gibson, é preciso buscar uma nova alternativa a tradigao, 2.3 Qual tradigao? A proposta de Gibson é recomegar a psicologia da percepcao. A tradi¢ao deve ser jogada fora para que se abra espago para a sua vis4o. Mas exatamente o que deve contar como tradicdo? Toda a psicologia anterior € igualmente problemética? Pode ser surpreendente, para © leitor de Gibson sem muito conhecimento da histéria da psicologia, encontrar um grupo de autores com uma proposta revoluciondria semelhante 4 sua em muitos aspectos, e que o preceden em varias décadas. Nos anos 1910, Max Wertheimer publicava os primeiros trabalhos da escola que veio a ser conhecida como gestaltismo, Como Gibson, os gestaltistas recusavam os termos em que os problemas de psicologia da percepgao estavam colocados. A época, era quase ponto pacifico entre os psicélogos que a tarefa da psicologia eta descobrir as operagGes mentais que davam aos dados sensiveis brutos — as sensagdes, supostos elementos basicos da experiéncia — um sentido e uma ordem, transformando-os em experiéncias perceptivas plenas. A teoria de Helmholtz, justamente, buscava resolver o problema apelando pata a meméria e a inferéncia, O processo perceptivo nao era visto, entdo, como mais do que a ago desses processos cognitivos sobre os dados elementares dos sentidos. E exatamente esse retrato que os gestaltistas recusam. A percepeao, afirmam, nao se explica por inferéncias inconscientes realizadas com o auxilio da meméria sobre as sensagdes; a experiéncia nao possui dois niveis — 0 da sensago e o da percepgao -, diferindo em termos de pureza, organizagdo e simplicidade. Hé apenas um nfvel: a experiéncia perceptiva, organizada nao pela meméria e por inferéncias, mas pelas leis da percepgao, que cabe & psicologia descobrir (para uma apresentacao das leis que os gestaltistas acreditaram ter descoberto, ver Wertheimer (1923), Kofika (1935) ou Guillaume (1937)). O paralelo entre a revolugao gestaltista e a gibsoniana é claro. Ambos recusam a teoria inferencial, o modelo da experiéncia em dois niveis ¢ a tese de que a meméria é ingrediente essencial. Nesse aspecto, a revolugio de Gibson nio € muito original. Em certo sentido do termo “direto”, a posigdo dos gestaltistas é a de que a percepgdo é direta. E, no entanto, 95 Gibson, que, em outros contextos (como a respeito da nogao de affordance), reconhece certa influéncia dos gestaltistas, especialmente a de Koffka, classifica-os como tradicionais. Por qué? Afinal, o gestaltismo esté contra ou a favor da percepgao direta? Gibson nao é claro quanto a isto, mas hé ts sentidos bem distintos da expresso “percepgao direta” em sua obra. Ele oscila entre os trés usos. Nos trés casos, a expressio “direta” tem um funcionamento anélogo ao de expresses como “auténtico” ou “normal”, isto 86 sabemos 0 que significam se soubermos 0 que conta, no contexto, como 0 nao auténtico ow o anormal. (Vide a anélise que Austin (1962) faz do termo “teal”). Assim, € preciso saber ‘© que conta como uma percepgao indireta, pois uma percepgao direta é simplesmente uma percepgao que nao é indireta. Num primeiro sentido, certamente © mais importante para Gibson, a percepgio é indireta se ela é produto de uma série de operagdes mentais inferenciais cujas premissas sio, de um lado, os dados sensoriais ¢, de outro, lembrangas ou pressupostos do sistema perceptivo. Isto é, ela é indireta se envolve, de maneira essencial, inferéncias, pressupostos e/ou lembrangas. Assim, 0 primeiro sentido de “percepgao direta” diz respeito ao processo da percepgaio. Como vimos, a maneira tradicional de pensar sobre o processo perceptivo é, de fato, que ele é indireto dessa mancira: que é um deciframento do dado sensivel; uma tentativa de descobrir 0 que ha diante dos olhos a partir dessa “pista” que é a impressao sensorial. O segundo sentido diz também respeito ao processo, ¢ inclui o primeiro, mas o excede. Aqui, diz-se que a petcepgio € indireta se 0 processo perceptivo envolve qualquer operagio de adigio de sentido ou imposi¢io de estrutura ao estimulo, seja inferencial ou nio. Se a percepedo constréi o que quer que seja com base no dado sensivel - mesmo como alguém constréi uma casa com tijolos, ou pinta um quadro com tinta -, ela é dita indireta, Nesse sentido, a percepgao sé conta como direta se ela for o mero ato de abter o dado sensivel. Qualquer atividade de trabalho sobre o dado, quer envolva inferéncias que interpretam o dado sensivel, quer envolva outro tipo de imposigdo de estrutura a ele, tornaria a percepeio “indireta”’ Finalmente, o terceiro sentido, que Gibson invoca com menor freqiiéncia, diz respeito nao ao processo perceptivo, mas aos objetos da percepgao. Nao como a percepgao se realiza, mas o que € percebido € que é agora relevante. © que é visto é 0 mundo externo? Sao sensagées? Imagens mentais? E a imagem retiniana? Quando uma teoria afirma que o que se 96 percebe primariamente nao é 0 ambiente distal, ¢ sim algo de mental ou o proprio estimulo proximal (a luz, a imagem retiniana, etc.), Gibson classifica aquela teoria como uma teoria da petcepeao indireta: como uma teria de acordo com a qual nao se tem acesso perceptivo sendo a. um simulacro do ambiente, ao invés de ao proprio ambiente. Esses sdo os trés sentidos de “percepcao indireta” em Gibson. A razo pela qual ele costuma tomé-los como um s6 parece passar pelo fato de que ele acredita que uma teoria de acordo com a qual a percepgio é um processo indireto atribuird a ela também objetos indiretos. Eu ndo me posicionarei quanto a isto; até onde vejo, Gibson pode estar certo. Em todo caso, uma teoria pode afirmar que a percepedo é direta no que tange a0 processo, mas ndo no que tange aos seus objetos. Nao h4 contradigo em sustentar a0 mesmo tempo que a percepeao nio opera por inferéncias (ou que nao impée estrutura ao estimulo) ¢ que os objetos percebidos sao meras imagens mentais. Uma teoria pode defender que a percepcdo & indireta no sentido de que a percepcio impée estrutura ao estimulo ao mesmo tempo em que recusa que seja indireta no sentido de ser parcialmente constituida por inferéncias, Segundo Gibson, apenas a sua teoria é uma teoria da percepgdo direta, Todas as outras sio lidas por ele como teorias da percepgio indireta. Ora, mas isso s6 & verdade em certo sentido de “directa”. Pois o gestaltismo € claramente uma teoria da percepedo direta no primeiro sentido: como mencionei, é um aspecto central da inovagio gestaltista a recusa de que percepeao seja um processo de inferéncias realizadas a partir de sensagdes. Em certo sentido, a revolugao que Gibson quer deslanchar em psicologia comegou com Wertheimer. A percep¢ao, segundo o gestaltismo, € explicada por suas préprias leis: ela nio é redutfvel a outros processos mentais. Sem diivida, a razao pela qual Gibson nao reconhece no gestaltismo uma teoria da percepgio direta € que 0 primeiro sentido de “direto”, 0 tinico em que 0 gestaltismo se qualifica como uma teoria desse tipo, & de todos o mais fraco. Se usamos a expresso “direta” no segundo sentido, aparece a face “tradicional” do gestaltismo, que entdo levado a ocupar seu lugar ao lado das teorias ortodoxas: pois as leis da gestalt pregnincia, figura-e-fundo, boa-diresao, ete. (Wertheimer, 1923) — garantem que © processo perceptivo imponha uma estrutura ao estimulo fisico (o que nao é 0 mesmo que dizer que ele impoe estrutura a sensagdes brutas). Gibson condena essa idéia, Para ele, a percepgio nao um processo de enriquecimento, transformagio ou estruturagdo do estimulo em sentido algum. E justamente nisso que consiste a radicalidade de sua tese. Para Gibson, nao apenas as inferéncias nio estruturam a experiéncia, mas nada de subjetivo o faz. Nem o pensamento 7 inconsciente, nem campos de forga no cérebro, nem leis da forma em operagao no percebedor ~nada. Nao ha contribuicao subjetiva para a percepgdo. A tinica coisa que o percebedor faz é obter a informago que hé no estimulo proximal, isto é, na luz. Uma vez que a obtém, ele no faz nada com essa informagio; ele nao a enriquece, interpreta ou estrutura de modo a produzir uma experiéncia fenomenal. Esté claro que Gibson leu os gestaltistas como tendo afirmado que o percebedor obtém a estimulagio e entdo a estrutura segundo as leis da forma. Nesse aspecto, Gibson pretende-se muito mais radical do que o gestaltismo, Ora, a solugao para o problema das ilusdes pode estar justamente nessa escola que Gibson um tanto injustamente classificou como tradicional. Tal, ao menos, seré a minha aposta. Nao as leis da forma — nao é nelas, nao é na mais célebre invengao do gestaltismo, que buscarei uma via, Minha estratégia tem mais afinidades comum conceito mais obscuro, certamente menos desenvolvido, de Wertheimer: o de sistema de referéncias perceptivo. A ele passamos agora & dificil, aliés, imaginar 0 que Gibson poderia enxergar de problemitico num fal retomo ao gestaltismo, jé que o que ele condena nessa escola &, sobretudo, a idéia de que leis estruturam a percepgio. De modo que a proposta a ser desenvolvida no capitulo final desta tese — a interpretagdo das ilusdes em termos de sistemas de referéncia - me parece compativel, em espirito a0 menos, tanto com o gestaltismo quanto com a abordagem ecolégica.

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