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Gregory, representante da tradição representacionalista que Gibson – assim como eu, nesta
tese – quer recusar.
Entenderei por “tradição” o conjunto de autores que aceita alguma versão da seguinte
tese: o processo perceptivo é constituído por dois estágios, o primeiro sendo a recepção de
dados sensoriais, o segundo sendo a elaboração, a interpretação, o processamento ou a
estruturação desses dados de modo a produzir uma experiência perceptiva. É importante
entender a motivação para essa posição em psicologia da percepção, representada não apenas
por Gregory, mas também por outros autores centrais, como Helmholtz (1925) e Marr (1982).
Por que tantos acreditaram que o sujeito precisa, num nível inconsciente, interpretar,
enriquecer ou estruturar o que atinge a retina? A principal razão é que essa posição fornece
uma resposta para o problema da subdeterminação da experiência pelo estímulo proximal.
Vejamos outro exemplo. Uma parede vermelha iluminada pelo do sol projeta sobre a
retina luz de determinado comprimento de onda. Mas uma parede branca sob certo tipo de
iluminação vermelha projeta luz do mesmíssimo comprimento. Portanto, o estímulo proximal
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é ambíguo quanto à cor da parede. Mas a nossa experiência da parede não é ambígua, ao
menos não normalmente: vemos uma parede que parece vermelha ou uma parede que parece
branca sob luz vermelha. Como, mais uma vez, o sistema perceptivo “sabe” que a parede é
vermelha? Como ele passa do estímulo ambíguo à experiência inequívoca?
O problema pode ser expresso de maneira mais geral como se segue: diversas cenas
diferentes – na verdade, uma infinidade delas – projetariam sobre a retina exatamente o
mesmo padrão luminoso; assim, o estímulo proximal, naquela exata configuração, não carrega
informação suficiente para especificar inequivocamente a cena que o gerou. Parece, portanto,
que uma das tarefas do sistema perceptivo – que a sua tarefa – é vencer a pobreza, a
ambigüidade do estímulo; é fazer dele o que puder para desvendar a sua causa, produzindo,
por fim, uma experiência adequada. O processo perceptivo, seja ele o que for, é pelo menos
isso: algo que leva de um padrão ambíguo e empobrecido de estimulação a uma experiência
perceptiva inequívoca. Assim, a tarefa da psicologia da percepção é a de descobrir como
exatamente se vai do estímulo ambíguo à percepção determinada. Eis o pressuposto clássico.
Entra aqui a teoria de Gregory, que ilustra a solução tradicional para esse problema.
Em grandes linhas, sua idéia é essa: a partir de conhecimentos armazenados e da estimulação
proximal, o sistema perceptivo gera hipóteses sobre a causa distal da estimulação; e a hipótese
considerada pelo sistema como a mais provável torna-se o conteúdo da experiência. Vejamos
como isso funcionaria em exemplos simplificados. Tomemos a nossa parede vermelha
iluminada pelo sol. A imagem retiniana projetada por ela, lembremos, é a mesma que seria
projetada por uma parede branca sob certo tipo de luz vermelha (e ainda por uma parede rosa
sob outro tipo ainda de luz, etc.). Ora, o sistema perceptivo está bem armado para lidar com
essa situação, pois, graças à evolução e a processos de aprendizagem, ele possui um estoque
de pressupostos acerca do tipo de ambiente em que o percebedor se encontra e de como a luz
se comporta nele. Um deles é o de que o tipo de iluminação mais comum nos ambientes
freqüentados pelo percebedor é a luz natural. O sistema também “entende” um bocado a
respeito de como as coisas refletem luz. Assim, ele conclui que a explicação mais provável
para a imagem retiniana em questão é a presença de uma parede vermelha iluminada pela luz
do sol. E pronto: nós percebemos a parede como vermelha e como iluminada por luz natural.
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E, ao invés disso, estivermos num quarto todo branco iluminado por uma lâmpada vermelha?
O sistema perceptivo notará então que todos os objetos emitem luz num comprimento de onda
correspondente ao vermelho. Sabendo, como ele sabe, que é improvável que todos os objetos
de um ambiente reflitam luz naquele padrão a não ser que estejam sendo iluminados por luz
vermelha, o sistema decide que a explicação mais provável é a de que os objetos são brancos
e iluminados por luz vermelha.
Se o leitor tiver ficado com a impressão de que a teoria de Gregory faz do sistema
perceptivo uma espécie de cientista, ficou com a impressão correta. A tese é exatamente a de
que a percepção funciona como a ciência: ela é uma questão de produção de inferências para a
melhor explicação dos fenômenos dados:
O sistema perceptivo raciocina. Assim como um cientista postula elétrons pra explicar
o comportamento observado da matéria, o sistema postula a presença de um objeto vermelho
sob iluminação natural para dar conta do dado sensorial. Ele recebe dados (luz atinge a
retina), codifica-os (a estimulação produz certo padrão de ativação dos neurônios retinianos)
e, por fim, a partir de pressupostos a respeito do tipo de ambiente em que se está e do
comportamento característico daquele ambiente, gera uma hipótese a respeito da explicação
mais provável para os dados. Podemos dizer que o processo perceptivo, nessa teoria, é
dividido em quatro etapas: estimulação, codificação que torna a informação compreensível
para o sistema, ativação dos pressupostos e produção da hipótese.
As próprias leis da gestalt não seriam, nessa perspectiva, nada mais do que a expressão
de alguns pressupostos do sistema perceptivo; tal como ocorre com os seus demais
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pressupostos, também a presença desses se deveria, em última análise, ao fato de eles serem
mormente corretos e de terem sido, assim, selecionados pela evolução ou pela aprendizagem:
Essa é, portanto, a teoria geral de Gregory sobre a percepção. Quando o assunto são as
ilusões geométricas, ele propõe algo bem mais específico – e que se tornou uma explicação
bastante popular desse tipo de ilusão. Assim como dizer pura e simplesmente que a ilusão tem
uma causa fisiológica sem apontar um mecanismo específico não seria ainda explicar nada, da
mesma forma afirmar que perceber é inferir a partir de pressupostos e dos dados é ainda muito
vago. É preciso propor um mecanismo. Com sua teoria das ilusões geométricas, Gregory dá
maior concretude à teoria. Essa teoria chama-se teoria da escala de constância inapropriada.
Passemos a ela.
Gregory parte de um fato notado por Sanford (1903), que, ao menos à primeira vista,
parece mesmo ter prováveis implicações teóricas: muitas das figuras de ilusão geométrica
assemelham-se a projeções bidimensionais de cenas tridimensionais familiares, produzindo no
observador a mesma imagem retiniana que aquelas cenas teriam produzido. Tomemos a figura
de Ponzo (Fig. 1.13, p.35): ela lembra a projeção perspectiva de uma linha de trem (Fig. 2.1).
Tome-se Müller-Lyer: lembra a projeção do encontro de paredes em um quarto (Fig. 2.2). A
teoria de Gregory invoca esse fato para sustentar a idéia de que as ilusões geométricas não são
nada mais e nada menos do que interpretações incorretas de tamanho decorrentes de
informações enganosas sobre profundidade.
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Fig. 2.2 Perspectiva sugerida pela ilusão de Müller-Lyer. Autor: António Miguel de
Campos. Reproduzida de https://en.wikipedia.org/wiki/Müler-Lyer_illusion.
Para entender a teoria, é preciso ter claro um de seus pressupostos – uma idéia
amplamente aceita entre os psicólogos da percepção: a de que o tamanho percebido depende
da distância percebida. Essa idéia é uma resposta ao problema colocado pela constância de
tamanho, uma instância particular do fenômeno da constância. Nenhuma teoria ambiciosa da
percepção pode dar-se ao luxo de ignorar o problema colocado por esse fenômeno. Eis um
caso particular do problema. Se, estando na praia, olho para o topo de um morro próximo e
vejo um homem concluindo sua escalada, há um sentido em que o homem me parece
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seria explicar uma ilusão (de tamanho) em termos de outra (de distância), deixando-nos com a
tarefa de explicar essa última, como, nas ilusões geométricas, que são as que Gregory
pretende explicar, o que se percebe são figuras planas, não havendo qualquer percepção de
profundidade. É aí que entra a novidade da teoria de Gregory. De acordo com ele, o processo
de constancy scaling não é disparado apenas pela percepção de distância ou profundidade,
mas também pela mera presença de informação sobre profundidade – ou, como ele diz com
maior freqüência, de deixas de profundidade –, mesmo que essa informação não produza uma
experiência de profundidade. Algumas ilusões geométricas parecem mesmo conter tais
deixas, já que se assemelham a projeções perspectivas de cenas tridimensionais. Como
qualquer um que conheça os rudimentos do desenho em perspectiva sabe, linhas convergentes
simulam profundidade. Exatamente esse tipo de convergência ocorre na figura de Ponzo.
Assim, afirma Gregory, mesmo que ninguém chegue a perceber profundidade nessa figura,
ela contém padrões reconhecidos pelo sistema como informação (deixas) de profundidade;
em particular, ela contém a informação de que a linha de cima está mais distante do
observador do que a linha de baixo. Como o mecanismo de constancy scaling fixa a escala de
tamanho de acordo com as deixas de profundidade e como, nesse caso, há deixas enganosas
de profundidade, a linha de cima é percebida como sendo maior do que realmente é. Deixas
de profundidade presentes em Müller-Lyer explicariam essa ilusão da mesma forma. Basta
olhar para as figuras 2.1 e 2.2 para convencer-se de que a explicação faz sentido. O mesmo
valeria para outras figuras geométricas: em cada caso, as deixas de profundidade são
enganosas, porque indicam haver profundidade onde profundidade não há; conseqüentemente,
a escala é fixada de forma inapropriada, e a percepção resultante é ilusória. Além das ilusões
geométricas – às quais Gregory, por motivos evidentes, prefere chamar “ilusões perspectivas”
–, a teoria explicaria, por exemplo, o famoso quarto de Ames (Fig. 2.3, em que duas pessoas
de igual tamanho parecem ter tamanhos muito diferentes quando postas dentro de um quarto
torto, mas engenhosamente construído e fotografado (ou observado de um ponto fixo) de
modo a parecer regular. Também aqui seríamos enganados por deixas de profundidade
inadequadas – e de maneira muito parecida, aliás, como em Müller-Lyer.
A teoria de Gregory das ilusões geométricas, ainda que convincente – ela certamente
parece boa –, enfrenta sérias dificuldades empíricas. Não as discutirei em detalhe aqui (para
diversas críticas importantes, ver Robinson, 1972 e Over, 1968). Mencionarei apenas dois
fortíssimos contra-exemplos, ambos variações de Müller-Lyer. Um deles é a chamada figura
de halteres (Fig. 2.4). Nessa versão, não há qualquer deixa perspectiva de profundidade
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Para esta tese, cujo interesse maior é no conceito de ilusão e no de percepção, pouca
diferença faz se a teoria de Gregory das ilusões geométricas é ou não empiricamente
adequada. O importante é que é um exemplo de teoria cognitiva que expressa determinada
concepção de percepção: aquela segundo a qual perceber é interpretar um dado. Essa
concepção é motivada, lembremos, principalmente pela noção de que o estímulo proximal
subdetermina a experiência. É porque o estímulo é ambíguo e a experiência é inequívoca que
se postula toda uma mediação cognitiva entre um e outro; é para preencher esse vão que se
imagina um processamento de dados, que se entende o sistema como um agente lógico. A
importância do pressuposto da ambigüidade do estímulo para essa concepção não pode ser
exagerada. Pois, como veremos agora, o projeto de Gibson é o de demolir toda uma tradição
ao questionar justamente essa idéia.
O que torna Gibson tão distante da tradição não é que ele busca fornecer uma resposta
completamente nova para o velho problema da subdeterminação/ambigüidade do estímulo
proximal. É que ele sequer reconhece a legitimidade do problema. O problema, como vimos,
é o de que o estímulo proximal – o padrão luminoso que chega à retina – é insuficiente para
determinar a experiência; e a solução proposta é a de que sua pobreza obriga o sistema
perceptivo a ir além dele – a adivinhar, hipotetizar, representar. Entender exatamente como o
sistema produz um palpite sobre o que há lá fora é o que a tradição entende como a tarefa da
psicologia da percepção. Assim, se você acha que o sistema perceptivo precisa enriquecer,