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Grupos de teatro nos anos 70

Silvia Fernandes

Em meados da década de 1970, começam a surgir no Brasil, de forma mais intensa em São
Paulo e no Rio de Janeiro, equipes teatrais que fazem do projeto coletivo um modo novo de
posicionar-se na cultura, na sociedade, na política e na arte. A apropriação conjunta dos
meios de produção do teatro, com a cooperativa, a repartição democrática das funções
artísticas, a ausência de hierarquias entre os criadores, com a conseqüente diluição dos
poderes e dos aparatos repressores implícitos na divisão rígida do trabalho, recuperam, para
os jovens artistas independentes, a possibilidade, inusitada na época, de falar em nome
próprio, de escolher projetos, de criar textos cênicos de autoria comum, de desprezar
“cânones teatrais”, de misturar épico, lírico e dramático sem saber que narrar o caso de
família, recitar a poesia do amigo ou brigar na cena de namoro era proceder por justaposição
de gêneros e fazer teatro contemporâneo.

Ainda que o conceito de teatro rapsódico de Jean-Pierre Sarrazac seja adequado para definir
as escrituras cênicas híbridas, mais anárquicas que fragmentárias, é verdade, do Asdrúbal
Trouxe o Trombone, do Pod Minoga, do Viajou sem Passaporte, do Pessoal do Despertar, do
Ventoforte, do Pão & Circo, da Companhia Dramática Jaz-o-Coração, do Teatro Orgânico
Aldebarã e do Teatro do Ornitorrinco, por exemplo, grupos dos 70 que criaram nas cenas
paulista e carioca Trate-me Leão (1977), Salada Paulista (1978), O Despertar da Primavera
(1979), O Mistério das Nove Luas (1977), Simbad, o Marujo (1975), O Triste Fim de Policarpo
Quaresma (1978), Do Outro Lado do Espelho (1978) e Teatro do Ornitorrinco Canta Brecht e
Weill (1977), não se percebia neles uma estética precisa, um desejo de experimentação
formal, um projeto artístico claro. O “teatro de pesquisa”, hoje comum, estava a anos-luz de
distância das propostas das equipes, quando existiam.

No entanto – e talvez seja esse um dos fatores decisivos da inovação que criaram –, o que
fazia a diferença era a posse dos meios de produção do teatro, que sustentava o trabalho
coletivo e a luta pela manutenção do grupo, além de garantir a expressão de todos, a
possibilidade de se reunir para falar de si e ouvir o outro, o desejo de levar aos amigos os
próprios retalhos de história e de experimentar com eles outras possibilidades de cena e de
vida, sem a obrigação de pesquisar linguagem ou de seguir cartilha ideológica. Os improvisos
livres em longos processos de trabalho, às vezes estendidos por mais de um ano, e a
necessidade urgente de trazer para o palco a própria vida, com preocupações ingênuas e
pequenas, de cotidiano limitado por tapumes de metrô e atos institucionais – caso de Trate-
me Leão –, nada disso embaçava a projeção de uma cena inédita, potente, prazerosa, feita a
partir da colaboração de todos os criadores, que bancavam seus trabalhos de teatro e, por
isso, podiam falar em autoria coletiva. Ainda que mambembes, mal-acabados, feitos da
reciclagem de materiais, da luz caseira e precária, eram trabalhos artesanais que justapunham
muitas vozes nos cenários grafitados, nos figurinos de rua, nos trechos de diários, nas
interpretações naturais sem traço de naturalismo, nas trilhas roqueiras, quase dramaturgias
sonoras de contestação à família e à propriedade teatral. Mas seu traço mais marcante era a
intensidade expressiva, uma energia criativa que mobilizava e criava tribos solidárias para dar
uma resposta original ao cala-a-boca recebido das produções empresariais caras e dos
prepostos da ditadura militar.

Pois é exatamente no período em que o país atravessa a repressão ditatorial, com o


desmantelamento das universidades, dos movimentos sindicais, dos focos de resistência da
sociedade, com o assassinato, nos porões da tortura, de operários, professores, jornalistas e

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militantes, e com a asfixia das potencialidades criativas, que esses pequenos núcleos de
teatro, formados por jovens inexperientes em técnicas e repertório, recém-saídos de cursos
livres ou de departamentos de artes cênicas, em geral egressos das classes médias urbanas,
iniciam a prática da criação coletiva. São eles os responsáveis pela abertura, ainda tímida, de
uma oposição teatral produtiva à situação de arrocho econômico e paralisia criativa. Como
observa Mariangela Alves de Lima em texto arguto sobre o teatro da época, ser coletivo era a
condição primeira para uma ação cultural nesse contexto, e alterar o modo de produção era a
exigência indispensável para obter um novo produto no teatro.

Além da alteração da produção, outro traço marcante das criações coletivas era uma espécie
de teatro em progresso, o depois famoso work in progress. Os espetáculos, em geral, se
apresentavam como amostragem prática dos processos de criação e os atores pareciam exibir
os procedimentos com que haviam estruturado as cenas e as atuações. A impressão de
ensaio, de algo inacabado, que mudava a cada noite, às vezes transformava os grupos em
propositores de situações, idéias e estímulos para espectadores que, nos casos mais radicais,
eram tratados como parceiros de criação. O último espetáculo do Asdrúbal Trouxe o
Trombone, A Farra da Terra, por exemplo, foi criado por meio de oficinas públicas e
modificado a partir das opiniões colhidas nos muitos ensaios abertos que o grupo realizou
antes da estréia, no Sesc Pompéia de São Paulo, em 1983. A observação de Walter Benjamin
sobre o caráter modelar de uma produção, que pode ser medido pela capacidade que os
criadores têm de socializar os meios produtivos, sem dúvida se aplica a esse trabalho, que
transformou espectadores em colaboradores.

Não apenas por isso, o Asdrúbal talvez possa ser tomado como paradigma da criação coletiva
nos anos 70. Mas, talvez por isso, sirva como exemplo de união entre o que Jean-Pierre
Sarrazac chama de teatro íntimo e teatro público. O “grande” e o “pequeno”, o público e o
íntimo, o teatro político e o “teatro de arte” ganharam nova conformação nas criações dos
grupos cooperativados. E se projetaram nos processos colaborativos de hoje.

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