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i) Edmund Burke Reflexdes sobre a Revolucao em Franca eg a ae s CE See awh Oa oe Cees Pe] Editor Universidade de Brasilia Edmund Burke Reflex6es sobre a Revolucdo em Franca Pensamento Politico Traducao de Renato de Assumpcao Faria, Denis Fontes de Souza Pintoe Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura Minka Impahpével Bibhoteca NEI Editora Universidade de Brasilia Com oapoo FUNDAGHO ROBERTO MARINHO Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizagao escrita do Editor Impresso no Brasil Editora Universidade de Brasilia Campus Universitario - Asa Norte 70910 — Brasilia — Distrito Federal Titulo original: Reflections on the revolution in France de Edmund Burke Copyright © 1982 by Universidade de Brasilia Introduction and Notes copyright © Penguin Books, Ltd, 1969 Direitos exclusivos de edigao da Introdugao € das Notas em lingua portuguesa: Editora Universidade de Brasilia Capa: Arnaldo Machado Camargo Filho Equipe Técnica Editores: Licio Reiner, Manuel Montenegro da Cruz Maria Riza Baptista Dutra e Maria Rosa Magalhies Supervisor Grafico: Eimano Rodrigues Supervisor de Revisdo: José Reis Controladores de Texto: Antonio Carlos Aires Maranhio, Carla P. Frade Nogueira Lopes, Clarice Santos, Lafs Serra Bator, Maria del Puy Diez de Uré Helinger, Maria Helena Miranda, Monica Fernandes Guimaries, Patricia Maria Silva de Assis, Telma Rosane Pereira de Souza e Vilma G. Rosas Saltarelli. FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNIVERSIDADE DE BRASILIA Burke, Edmund, 1729-1797. B95% Reflexes sobre a revolucdo em Franga. Trad. de Renato de Assumpgao Faria, Denis Fontes de Souza Pinto ¢ Carmen Lidia i Editora Universidade de Brasilia, p. 239 (Colegio Pensamento Politico, 51) Titulo original: Reflections on the revolution in France. 944.04 32(420) t série Sumario APRESENTACAO . INTRODUGAO Notas REFLEXOES SOBRE A REVOLUCAO EM FRANCA. Sociedade Constitucional . ~Sociedade da Revolugao . . DA MONARQUIA NA CONSTITUICAO INGLESA . Sermio do Dr. Price. Discussdo do Primeiro Principio do Dr. Price: O direito de escolhermos nossos governantes. Discusséo do Segundo Principio do Dr. Price: 0 direito de depor os go- vernantes por indignidade Discusséo do Terceiro Principio do Dr. Price: O direito de estabelecer uum governo para n6s mesmos....... 2.02200 ee eevee eee ees ASSEMBLEIA NACIONAL E A REPRESENTACAO. OS PRIMEIROS ATOS REVOLUCIONARIOS O que a Franga fez. O proveito que ela tirou de sua conduta . A Assembléia Nacional: sua composi¢ao. ‘0 Terceiro Estado. . . NOClet0. eee cee ee ‘A Nobreza Caracteristica principal da Revolugao na Franga: fe Sobre a igualdade dos homens e sua admissdo em todos os empregos . Sobie a representacdo de um Estado: o lugar que se deve conceder ao ta- lente; o lugar que se deve dar a propriedade. A representacdo na Franca. 7 73 74 75 78 79 80 81 82 Sobre um ponto do sermo do Dr. Price: se € possivel aplicar-se a Ingla- terra os principios da Franga . O que o Dr. Price pensa da representacdo inglesa . Conseqiéncias dessa opinido. Psicologia dos revolucionérios: € preciso que destruam alguma coisa Sobre os verdadeiros direitos do homem ... . De como a Ciéncia da filosofia ¢ experimental e exige mais experiéncia do que aquela que o homem pode adquirir em vid: De como os direitos do homem sao incompativeis com ciedade . Do perigo de se manter no esp/rito idéias revolucionérias . - Entusiasmo do Dr. Price diante dos atentados de 5 e 6 de outubro de De comoa ‘Assembiéia delibera : A atitude da Assembléia depois das jorada de outubro. As jornadas de outubro perante a histéria. . . Uma das causas do entusiasmo do Dr. Price . . CO espirito de cavalheirismo . . . . nee eee Seu desaparecimento, conseqiéncias.......... . Perigos de se suprimir os antigos costumes e regras de vida. Sobre os sentimentos que é natural experimentar a respeito das jornadas de outubro. O que se pensa na Inglaterra das caltinias levantadas contra De como os franceses fazem uma falsa idéia da Inglaterra. De como os preconceitos so venerados nesse pais... 01.6... eee bee ee eee De como € falso pretender que a Franga se tenha inspirado nos princi- pios ingleses. 6... 0... ce eee cee eee De como a Inglaterra est4 decidida a nao seguir o exemplo da Franga . A RELIGIAO E A SOCIEDADE CIVIL. 0 CONFISCO DOS BENS ECLESIAS- TICOS E A DESTRUICAO DAS ORDENS RELIGIOSAS. ............... De como a religifo é a base de toda a sociedade. A religido na Inglaterra e a consagrago do Estado De como essa consagragdo exige um culto piiblico por parte da Nagao... De como o culto publico exige uma instituigdo religiosa estatal. Como a educagao inglesa leva 4 crenga nessa instituigao . . Necessidade da existéncia de propriedades eclesias independéncia da Igreja e sua dignidade. . . De como os bens da Igreja sfo considerados inviolaveis pelos ingleses. . Sentimentos existentes na Inglaterra em relagdo ao confisco dos bens da Igreja na Franca SN Pretextos usados para se realizar 0 confisco . 103 106 109 109 Wd 17 118 119 122 122 124 ~ A causa real do confisco . . . 125 A inconsisténcia do pretexto inventado para outorgar 0 confisco - 128 Precaugées tomadas por outros tiranos para realizar confiscos andlogos . 129 Se a situago financeira da Franca justificava um confisco . 131 ~ Se a atitude do Clero justificava 0 confisco 131 O perigo da confisco.............. sees 132 O curso forgado da moeda...........-.-44- 133 O confisco aplicado as compensagées a serem concedidas aos detentores de cargos judicidrios.. 0.2.0... e cece e eee eer eee cece ee 133 Sobre a democracia e se ela convém a um grande pais. Seus efeitos so- bre a liberdade dos cidados .... 21... eee e cece eee eee eee 135 0 antigo governo da Franga e seus efeitos sobre a prosperidade do p: segundo a populacdo e a riqueza. en bees 136 \A Populagao. sees 137 \A Riqueza . . 138 A atual situagdo da Franca 141 As caliinias dos revoluciondrios contra a Nobreza e 0 Clero . 142 \A Nobreza. Aquilo que ela foi 142 \O Clero. Aquilo que ele foi seeeee 145 0 que a Revolugao fez do Clero ceeee 150 O que os protestantes ingleses pensam do confisco religioso 1 na a Fraga. 152 Perigos em que outras nagSes incorrem por causa do exemplo francés .. 153 Legitimidade das agdes defensivas de outras nagdes. A propaganda revo- luciondria. . cece eee eee 154 O injusto confisco na Franca fez desaparecer muitas corporagdes que poderiam ser utilizadas para o bem puiblico.............. 00.005 156 Sobre a venda dos bens eclesidsticos considerada como uma transferén- cia de propriedade seeeeeees 159 \Os bens dos bispos, monges e abades . » 161 A NOVA CONSTITUICAO FRANCESA 163 NA Assembléia ...........- 163 O seu modo de obter e conservar o poder 164 O desejo que os motivou: contornar a dificuldade . . As dificuldades que um reformador deve super: As precaugdes ¢ a lentidao que se fazem necessérias 166 Exame das instituigdes criadas pela Assembléia Nacional. 168 Constituigao do Poder Lepiatvo, . 169 A base territorial... ... : 169 A base populacional. 170 A base da contribuicao. . 7 Como o sistema eleitoral francés protege os ricos. 172 Se o sistema ¢ logico em si. 174 A Franga dividida como um pais conquistado......... 176 A necessidade da existéncia de diferentes classes sociais em uma nagdo . 177 Como a resolugdo de dividir 0 pais em repiblicas separadas levou os co istituintes 4 maioria de suas dificuldades e contradigdes ......... 179 Constituigao Francesa e Constituicdo Inglesa. Nao reelegibilidade dos deputados 180 Os meios adequados a manter unidas estas repiblicas separadas . 181 O confisco . pasenraagasiee 181 Supremacia de Paris... 185 ‘A Assembléia, Poder Soberano. A auséncia de Senado . 186 Poder Executivo. 187 Porque nés conservamos um Rei, 190 Os ministros . 191 0 poder Judiciério 192 Do Exército . 195 Ateceita Beg an oop ee 206 O crédito. Onus que gravam as propriedades confiscadas. 2u1 Se as medidas financeiras da Assembléia trouxeram algum alivio a ao, POVO. eee cece eee ee ene e tenes Se a Assembléia é capaz de dar a liberdade Se a Assembléia fez algo de bom. Conselhos aos ingleses .. . . a ceeaee Notas 2... ee eee Apresentacdo REFLEXOES SOBRE A REVOLUGAO EM FRANCA Edmund Burke nasceu em Dublin em 1729, filho de um advogado. Formou-se pelo “Trinity College”, Dublin, em 1748, indo depois para Londres, para ocupar a fun- do de leitor do Forum de Justica. Em 1756, publicou o seu primeiro trabalho literd- tio, A Vindication of Natural Society e On the Sublime and the Beautiful e na mesma época, também, se casou com Jane Nugent, Em 1765, Burke tornou-se secretario parti- cular de Rockingham, Primeiro Lorde do Tesouro, tendo sido eleito para o Parlamento pelo burgo de Wendover em 1766, acompanhado os Rockingham Whigs na oposi¢fo no ano seguinte. Em 1771, apés a publicagdo de dois panfletos, Observations on the Present State of the Nation e Thoughts on the Present Discontents, ele foi designado ‘Agente de Londres para o Estado de Nova Iorque e em 1773 visitou Paris. Um forte opositor da administrago de Lorde North, ele enfaticamente atacou a politica ameri- cana do Governo nos seus discursos On American Taxation (1774) e On Conciliaton With the Colonies (1775). Nas eleigdes de 1774 tornou-se deputado por Bristol, lugar por ele perdido seis anos depois em decorréncia de sua defesa dos direitos comerciais da Irlanda. Lorde Rockingham, entretanto, deu-lhe uma cadeira pelo seu burgo em Maltan. A popularidade de Burke em nada aumentou quando ele iniciou 0 processo de impeachment de Warren Hastings e em 1788 seu amigo Charles Fox, que deveria for- mar um Governo, nao 0 apoiou. A “Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca” foi escri- ta na primeira metade de 1790 e publicada em novembro do mesmo ano. Durante 0 resto de sua vida, suas preocupagGes estiveram em torno dos problemas na Franga e na Inlanda. Ele morreu em Beachonsfield em 1797. Conor Cruise O’Brien membro do Parlamento irlandés pelo distrito nordeste de Dublin e Pré-Reitor da Universidade de Dublin desde 1973. Nascido em 1917, ele rece- beu os graus da B.A e Ph.D pelo “Trinity College” de Dublin e entrou para o Ministé- tio das Relagdes Exteriores da Irlanda em 1944, Em 1955 ele era Conselheiro em Paris e de 1956 até 1960, Chefe da Divisio das Nagdes Unidas e membro da Delegaco irlan- desa junto 4 ONU. Em 1961 representou o Secretério-Geral da ONU em Katanga, mas 2 Edmund Burke a0 fim daquele ano renunciou a seu cargo. Foi Vice-Reitor da Universidade de Gana de 1962 até 1965 ¢ Professor de Humanidades de Albert Schweitzer na Universidade de Nova lorque de 1965 até 1969. Entre seus livros est4o incluidos: Parnell an His Party (1957), To Katanga and Back (1962), Writers and Politics (1965), The United Nations: Sacred Drama (com desenhos de Feliks Topolski, 1968) e States of Ireland (1972). Introdugdo “O MANIFESTO DE UMA CONTRA-REVOLUCAO” 1 O espectro que perseguiu a Europa no Manifesto Comunista (1848) e que conti- nua a perseguir atualmente o mundo, aparece pela primeira vez nas paginas de Burke: “da sepultura da monarquia francesa assassinada brotou um espectro grande, tremendo e sem formas, numa roupagem muito mais assustadora de que qualquer ou- tra que j4 tenha tomado conta da imaginago do homem e vencido a felicidade huma- na: partindo diretamente para 0 seu objetivo, nao intimado pelo perigo, nao paralisado pelo remorso, desprezando todas as m4ximas comuns e todos os meios comuns, aquele odioso fantasma dominou a todos que ndo acreditavam ser possivel a sua exis- téncia. Convencidos mais pelo habito do que pela natureza, tais pessoas acreditavam em sua existéncia apenas baseada em principios necessdrios para o seu proprio bem- estar e para seus modos ordinérios de ago”. ‘A revolugdo que Burke tanto temeu nao € obviamente idéntica a revolucdo comunista de Marx, mas tem muito em comum com ela e, em alguns aspectos, muito mais em comum do que com a Revolugdo Francesa dos dias de Burke. Ele provavel- mente veria nos principios da revolu¢do comunista o surgimento de uma forma ainda mais pura daquilo que mais detestava na revolugdo contemporanea, cujo desenvolvi- mento na Franga ele via com horror e fascinago e que, na Inglaterra, ele procurou por em xeque com elogiiéncia ¢ inteligéncia, © espitito da renovacdo total e radical; a des* truigdo de todos os direitos consagrados pela tradico; 0 confisco da propriedade, a, destruigao da Igreja, da nobreza, da famflia, dos costumes, da venerago aos ances- trais, da nagdo — esse é 0 catélogo de tudo aquilo que Burke odiava nos seus momentos’ sombrios, ¢ todos esses elementos ele encontraria no marxismo. Na personalidade do proprio Marx ele veria encarnada aquela energia que, segundo ele, era malévola para a ordem social: a energia da habilidade sem propriedade? . Em Engels, ele veria um tipico Tepresentante de um grupo Cujas atividades via ndo somente como nocivas, mas tam- 4 Edmund Burke bém como incompreensiveis: 0 grupo de homens de bens que encorajava a difusdo de principios incompativeis com 0 direito de propriedade?. Da mesma forma que Burke, Marx e Engels, cuidadosa e apaixonadamente, investigaram a Revolugao Francesa, pro- curando no seu desenvolvimento o segredo do desenvolvimento futuro da politica européia e mundial*. Como a dele, a imaginago de Marx e Engels foi profundamente penetrada pelas energias que a Revolucdo descarregou, profundamente impressionada pelo constraste entre a dimensdo daqueles acontecimentos e a rotina da politica em um mundo que esperava que a Revolugio poderia ser ignorada, ou tratada como um evento excepcional e puramente local, isolada no tempo e no espago. Também como ele, esses tiltimos olharam por entre a fachada politica da Revolugdo, em busca da sua substancia econémica e social: Burke oferece, nas Reflexdes* e em outras obras, alguns dos melhores exemplos da critica aristocratica em relagdo 4 burguesia, da qual o Manifesto Comunista faz uma apreciagao sarcdstica. Burke e Marx procuraram compreender os princfpios revoluciondrios presentes na Franca ~ Burke com vista a impedir sua propagagao e a destruir 0 nticleo da infecgdo Marx para elogiar a vitoria de uma nova revolugdo, trazendo consigo o triunfo de tudo aquilo que Burke via de mais desprezivel — ¢ ndo daqueles aspectos mais benéficos — da velha ordem. As grandes revolugdes de nossa época, a russa e a chinesa, ocorreram, sob a lide- ranga comunista, em paises que nunca tiveram um equivalente da Revolugdo Francesa. A Franca e aqueles outros paises ocidentais mais expostos as idéias do Iluminismo e, como a Gr&-Bretanha e os Estados Unidos, menos resistentes aqueles principios de democracia politica que Burke renegava, ndo esto, hoje, entre aquelas nagdes mais revolucionérias do mundo. O pais que foi o centro da contra-revolugdo nos seus dias © pais cuja Imperatriz ele admirava®, se tornaria para a nossa época o nucleo da infec- ¢do revolucionaria que a Franca foi na época de Burke. Nés temos condigées de ver a Rissia, por meio de suas vit6rias revolucionarias, deixar de ser uma forga revolucion- ria para ser substituida por um poder que estava ligado, muito antes da Russia, as for- mas ancestrais, que forneceu o supremo exemplo no mundo, de grande adequagdo a0 contrato social na forma pela qual Burke o via ~“‘uma sociedade ndo somente entre os vivos mas também entre os vivos, os mortos € aqueles que haverdo de nascer.”"” Se, como Burke desejou e emocionadamente instigou, as monarquias européias tivessem sinceramente se unido para esmagar logo no inicio, e completamente, a Revolugao na Franga, enquanto suprimiam totalmente qualquer manifestagdo, mesmo incipiente, de potencial revoluciondrio nos sedis paises, poder-se-ia imaginar os sucessos que tal atitu- de poderia produzir a longo prazo. Nao seria possivel, entretanto, que as forcas revolu- cionarias, mais comprimidas do que suprimidas, tivessem explodido em um periodo posterior, com muito maior violéncia, sob uma lideranga mais disciplinada, consistente e determinada, e com efeitos muito mais radicais sobre a estrutura social? Perguntar é, penso eu, levantar dividas sobre o grau de esclarecimento dos interesses da alianca contra-revolucionaria internacional. Retornarei a esse ponto, ao considerar a importan- cia de Burke para o anticomunismo militante dos nossos dias. De inicio, entretanto, — na medida em que a atitude de Burke em relagdo 4 Revolugdo no foi, inicialmente, um comportamento de cruzada — é necessario discorrer sobre o desenvolvimento real Reflexées sobre a Revolugéo em Franga 5 das suas opinides, emogdes e apreensdes sobre a Revolugdo, pelo menos naqueles pontos que sao revelados por seus escrifos. Desde 0 inicio, logo apés a queda da Bastitha, os eventos, que para muitos signi- ficaram 0 advento de uma nova era de liberdade, provocaram um certo receio em Bur- ke, sem, entretanto, leva-lo a uma condenacao geral. “Para nés, aqui”, ele escreveu para Lord Charlemont em 9 de agosto de 1789°, “todas as reflexes sobre os nossos problemas internos ficaram suspensas pela nossa preocupagdo pelo maravilhoso espetaculo em um pais vizinho e rival — que especta- dores e que atores! A Inglaterra olhando com surpresa a luta, na Franga, por liberda- de e néo sabendo se deve recriminar ou aplaudir! Tudo isso, apesar de eu achar que algo parecido jé estava em curso hd muitos anos, tem algo de paradoxal e misterio- so. E impossivel ndo admirar o espirito, mas a velha ferocidade parisiense explodiu de uma forma assustadora. E verdade que isso pode ser meramente uma explosio subita... mas se isso tiver um cardter basico, ao invés de simples explosdo, entao esse povo ndo est preparado para a liberdade, devendo, assim, ser governado por uma mio forte como aquelas de seus antigos senhores. O homem deve ter uma certa dose de moderagdo para poder ter liberdade, para que ela ndo se tome nociva e prejudicial ao corpo so- cial”. = ‘A mesma atitude, a de um espectador apreensivo e desgostoso, aparece refletida em outros comentarios de Burke em 1789. A desaprovagao, entretanto, aumenta em 10 de outubro de 1789, depois da transferéncia revolucionaria do Rei de Versalhes para Paris, quando escreve para seu filho sobre “. . . O prodigioso Estado francés — onde os elementos que compdem a Sociedade Humana aparentam estar todos dis- , solvidos, foi substitufdo por um mundo de monstros — onde Mirabeau preside como © Grande Andrquico, e o antigo Grande Monarca se transforma em uma figura ridi- | cula e merecedora de pena. Espero vé-lo demitir o regimento que ele chamou para ajudé-lo, para beber a sua sade . . .e saber que ele escolheu um corpo de amazonas parisienses para a sua guarda pessoal (Corv. VI, pp. 29-30).” Em 4 de novembro, Chames Jean — Francois de Pont, “um jovem nobre de Paris” escreveu para Burke uma carta, para qual as Reflexdes so uma resposta. “Son Coeur”, ele disse, “battu pour la premiere fois au nom de Liberté en vous en entendant parler... Si vous daignez Vassurer que les francais sont dignes d’étre libres, qu’ils sauront distin- guer Ia liberté de la licence et un gouvernement légitime d'un pouvoir despotique; si vous daignez enfin Vassurer que la Révolution commencée réussira, fier de votre té- moignage il ne sera jamais abattu par le découragement qui suit souvent l’espérance.”" (Corv. VI, pp. 31-2). Desde 0 inicio da Revolugao até sua morte, Burke nunca pode dar a certeza pedida por seu jovem correspondente, mas a sua resposta original é muito mais branda do que a feroz polémica das Reflexdes. Ele enfatiza sua ignorancia sobre o estado atual da situagio e desconfia do seu préprio julgamento “Se eu parego” ...diz ele, “expressar-me em uma linguagem de desaprovacdo, seja gentil em olhé-la como uma 6 Edmund Burke mera expresso de duvida”. Ele explica qual a liberdade que ele admira: “a liberdade a qual me refiro € a liberdade social. E aquele estado de coisas no qual a liberdade é garantida pela igualdade na aplicagdo das sangGes, um estado de coisas no qual a liber- dade de nenhum homem, de nenhum grupo de homens e de nenhuma corporacdo de homens possa ter meios de se impor a liberdade de qualquer homem ou de qualquer grupo de homens na sociedade. Sem a existéncia disso, tornando-se inviavel o estabele- cimento de uma real liberdade pratica com um Governo capaz de proteger, incapaz de destrufla... teremos uma Monarquia subvertida, mas no uma liberdade recuperada... Passaremos a viver em um novo estado de coisas; sob um plano de Governo, no qual nenhum homem pode falar com base na experiéncia. Os franceses ainda passaréo por novas transformagGes”. Burke dé um conselho ao gosto dessa poca de luzes... ‘mas como o ultimo fruto maduro da experiéncia — Nunca separe idealmente os méritos de uma questo politica do homem que nela esté interessado... O poder de um homem mau néo é algo indiferente...” a carta termina com um elogio a prudéncia e 4 moderagdo: “Prudéncia (em todos os casos uma virtude, na politica a primeira das virtudes). Acredite-me, Senhor, em todas as modificagGes de Estado, a moderagdo é uma virtude, nao somente agradavel, como poderosa. E uma virtude despojada, conciliatéria, cons- trutiva... ousar ter duvidas quando tudo € to cheio de presungGes e audacias. Essas repreens6es inteligentes e memordveis nao so de forma alguma incompati- veis com as ReflexGes — que contém varias passagens no mesmo teor — mas a chama dessa grande época ainda nao foi acesa. Ainda ndo ha nenhuma nota de alarme. “Em relacdo 4 Franca”, como ele escreveu ao Conde Fitzwilliam na época em que ele devia estar escrevendo a réplica a de Pont, “‘se eu fosse dar asas as especulagdes que povoam a minha imaginagGo quanto ao presente estado de coisas e que agora comegam a ser desvendadas, eu acreditaria que fosse um pais desfeito... Eu certamente gostaria de ver a Franga cercada por lagos moderados. O interesse desse pais requer, talvez os interes- ses da humanidade também requeiram, que ela nao esteja em uma posicao despética capaz de impor leis 4 Europa: mas eu creio ver muitas inconveniéncias, néo somente para a Europa como um todo, mas para esse pais em particular, na total extingdo po- litica de uma grande Nagao civilizada situada no corago do nosso sistema ocidental”? . Antes de Burke e mesmo apés sua época, muitas pessoas foram surpreendidas por “inconveniéncias” de outras formas. Até o fim de 1789, entretanto, ele permanece desinteressado € pouco motivado. “Os problemas na Franga, na Inglaterra,” ele escreve para o seu amigo Philip Francis em dezembro, “nos so apresentados como uma ques- tao curiosa, com os quais 0 nosso sentimento de “dever” nio se interessa; ndo somos levados a nos intrometer com seus efeitos: e talvez as loucuras da Franca, pelas qu: ainda ndo fomos afetados, possam empregar a nossa curiosidade de uma forma mais agradavel, e mais util do que a corrupedo da Inglaterra, que é mais calculada para nos fazer sofrer”!”. Foi por volta de janeiro de 1790 que a atitude de contemplacao de Burke come- gou a desaparecer dando vez a um comportamento mais ativo. Uma carta escrita a um desconhecido, datada da segunda quinzena daquele més, demonstra essa transicao. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 7 Nessa carta ele é mais filos6fico ou teleoldgico sobre a situa¢Zo na Franca do que em qualquer outro de seus posteriores pronunciamentos: “O homem é um animal gregario. Ele suprird gradativamente suas necessidades naturais e essa coisa estranha terd, algum dia, uma forma mais civilizada. O peixe ird finalmente construir uma concha que o ser- viré”. Assim ap6s alguns comentarios sarcésticos sobre Voltaire e Rousseau, ele expoe um argumento que demonstra sua preocupacdo: “Eu vejo que certas pessoas aqui que- rem que nos tornemos seus professores e reformemos nosso Estado segundo o modelo francés. Eles j4 comecaram, e jd € tempo daqueles que querem preservar 0 morem ma- jorum de estarem vigilantes”. A primeira fase das atividades contra-revolucionrias de Burke — aquela das Reflexdes — foi a da luta contra a influéncia revolucionaria na Inglaterra. Nessa pri- meira fase ele nao via, basicamente o perigo proveniente da Franca, mas na forma de pensamento que levou aos conhecimentos na Franga e naqueles homens que querian) levar esse pensamento a Inglaterra. O perigo aparecen para elé mais evidente ao ler os serm6es do Dr..Price € na correspondéncia da Sociedade Revolucionéria com a Assem- bléia Nacional! Logo apés, no Parlamento, Charles James Fox elogiou com grande énfase a Revolugdo Francesa, dizendo que ele “‘a elogiava por seus sentimentos e seus principios”, Pitt também esperava uma Franga livre e reconstrufda “como uma das poténcias mais brilhantes na Europa”. Foi entdo que, pela primeira vez, Burke, em 9 de fevereiro de 1790, tomou uma posigdo publica contra os princfpios da Revolugdo. O cémputo final de seus discursos faz ver que sua' principal preocupagdo declarada era © perigo de infecedo proveniente da Franca, na Inglaterra: ‘a casa deve perceber, pela sua antecipagdo em entender dois de seus melhores amigos, como ele estava ansioso em evitar a menor tolerancia na Inglaterra em relagao a loucura na Franga, pois estava cer- to que pessoas fracas na Inglaterra estariam propensas a recomendar que se imitasse © espirito de reforma francés. Ele estava t4o contrario 4 menor tendéncia de introdu- zir esse tipo de democracia, assim como os fins a que ela visava, que ndo hesitaria, por maior que fosse 0 sofrimento, em abandonar seus melhores amigos (apesar de ndo crer que eles pudessem tentar isso) e se juntar a seus piores inimigos para se oporem, ndo somente aos meios como aos fins desse tipo de democracia; e para resistir a todas as manifestag6es violentas desse espirito de inovacdo, tao distante de todos os principios da reforma segura e verdadeira, um espfrit calculado para derrubar governos, mas completamente incapaz para aperfeigod-lo®!?.) As Reflexdes sobre a Revolugao em Franga desenvolvem, defendem e ilustram esse argumento. 3 O sucesso posterior, porém nao imediato, das Reflexdes junto as classes pro- prietérias — devido ao crescente panico causado pelo. progresso da Revolugdo — e seu -eféito de restaurar Burke A condi¢&o de favorito real}? e 4 concessfo de uma pensfo apés_a_sua-aposentadoria naturalmente levaram 0s opositores de Burke a afirmar que ele — como dirfamos hoje — tinha se “vendido”, abandonando suas crengas em troca de dinheiro e posigao. Tom Paine no seu “Direitos do Homem” acusou-o de suborno: 8 Edmund Burke desenhos da época repetem esse tema; Marx, posteriormente, reafirmava em seus escri- tos essa visio do posicionamento contra-revoluciondrio de Burke!*. Como poderia ser explicada a transformagdo, a defecgdo da causa da liberdade, daquele que tinha, como era acreditado, liderado a causa da Revolugdo Americana? A acusa¢do se tomou plausivel em decorréncia da situagdo financeira complicada de Burke, sua vida cara em Beaconsfield — sobre a qual Dr. Johnson comentou: “Non equidem invideo; miror magis” — e da reputagdo que a familia Burke tinha, em virtude de transagées financei- ras passadas!. Por mais plausivel que possa ter parecido para seus opositores da época, e 0 debate sobre as Reflexdes continua tdo vivo que seus opositores sempre tiveram uma tendéncia de aparentar contemporaneidade, a acusago de que Burke se opés 4 Revolu- ¢do em troca de favores ndo pode ser aceita. No inicio de sua carreira — e como condi- do para ter uma carreira — Burke entrou em contato com uma grande quantidade de pessoas da nobreza e de propriedade. Ele mesmo era um dos melhores exemplos de uma conjuntura que ele achava temivel para uma sociedade madura: habilidade sem pro- priedade. Tivesse ele nascido em circunstancias sociais similares em Arras em 1750 ou em Dublin ou Belfast em 1760, ele provavelmente teria sido um revoluciondrio perigo- so, j4 que era inteligente. Mary Wollstonecraft pensou dessa forma: “Lendo as suas “Reflexdes” demoradamente, cheguei 4 conclusio de que, se vocé tivesse sido francés ¢ apesar de seu respeito pela hierarquia e autoridade, vocé teria sido um revolucionario violento. Sua imaginagdo teria se incendiado..."#6 Mas em decorréncia da vida que le- vou, nascido em Dublin em 1729, ele colocou sua habilidade, desde 0 inicio, a servico dos homens nobres e de posse. Ele permaneceu fiel, sem subserviéncia, ao lado que escolheu. Seus escritos sobre os problemas americanos ndo eram revolucionarios, eles eram longe disso, uma tentativa de impedir o desenvolvimento e a exarcerbacdo de uma situagdo revolucionéria. E verdade que ele nunca condenou a Revolugao america- na, como fez com a francesa, uma secess4o, entretanto , de um grupo de colonias ndo € um evento similar 4 derrubada de uma ordem estabelecida em uma grande poténcia, apesar de a palavra Revolugdo ter sido usada para ambas. As cartas de Burke da segunda metade de 1789 — referidas acima — mostram que sua atitude em relagdo 4 Revolugdo Francesa era de desaprovagdo desde o inicio, mesmo antes de ter que assumir um posi- cionamento publico. Mesmo acreditando nos influentes pendores de Burke para previ- sOes politicas, seu ataque 4 Revolugdo na Franca ndo parecia, na primeira metade de 1790, um caminho seguro para uma pensio futura. Em 1790, a Revolugdo na Franca nao parecia perigosa para a maioria dos ingleses. A Franga parecia até que estava se “acomodando”. Burke mesmo foi informado, por volta dos fins de 1789, que “o calor estava diminuindo”.!7 O perfodo desde a transferéncia do Rei para Paris (outubro de 1789) até a sua tentativa de fuga (junho de 1791) foi um dos mais calmos da Revolu- ¢do: “os primeiros tumultos” tinham terminado; a elaboragao da constituigao estava em curso, com muita especulacdo sobre o exemplo inglés; os principais eventos que passariam a ser conhecidos como os “horrores da Revolugao”, os massacres de setem- bro, a execugdo do Rei e da Rainha, 0 reino do Terror — séo todos acontecimentos futuros. Nesse contexto, a veeméncia dos ataques de Burke, apesar de, certamente, afastarem muitas das suas amizades politicas, nao atrairam muito apoio e, de fato, seu Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 9 efeito imediatO\foi de aumentar sua impopularidade. Um escritor atual resumiu a situa- ¢40 logo aps a publicagdo das Reflexdes: “Burke ndo teve nenhum sucesso imedia- to nem com o Governo, nem com a Oposigao. A impressao geral nos circulos politicos foi de que Burke, apesar de eloquiente e genial, foi muito longe nas suas opini6es; muito longe na sua oposigdo sistemdtica e total 4 Revolucdo Francesa; muito longe nos seus ataques aos reformistas; muito longe nas suas preocupagdes com o perigo que sofria a Constituigao inglesa; muito longe ao chegar a fazer reunides ptiblicas e a quebrar ami- zades, em relagdo a um assunto que nunca deveria ter sido debatido”"*. O que salvou sua reputagdo foi o progresso da Revolugao em diregdo aquilo que ele previu. Em um debate que Burke participou — em fevereiro de 1790 —, Pitt falou sobre a Revolugo de uma forma conciliatéria. Mesmo depois, quando os acontecimen- tos comegaram a confirmar as previsdes de Burke e que ele e o Governo se aproxima- ram, Burke nunca seguiu a linha governamental, ao contrario, sempre recriminou 0 Governo por sua politica pragmatica e falta de ardor contra-revoluciondrio. 4 ~O que eu mais invejo em Burke”, disse Dr. Johnson “foi o fato de ele ter sido sempre o mesmo.”!° Johnson parece referir-se, principalmente, ao temperamento uniforme do escritor na sua maturidade, mas 0 leitor de Burke provavelmente achard o comentdrio mais aplicdvel a sua obra, incluindo as Reflexdes. Quanto mais a obra de Burke é lida, mais se fica impressionado, eu penso, com a profunda coeréncia interior, nao sempre com a linguagem ou a opinido, mas com o sentimento: uma coeréncia cujos principios basicos ¢ uma grande capacidade de afei¢do e um grande desprezo por todo raciocinio que nao seja inspirado pela afeigdo por aquilo que nos é proximo e caro “Eu ndo tenho uma boa opiniao por aquele sentimento de humanidade abstrato, me: fisico e contingente, que friamente sujeita o presente e aqueles que vemos e falamos as calamidades presentes em favor de um beneficio futuro e incerto de pessoas que sO gxistem idealmente.”? volume de énfase, incomum em Burke, é, penso eu, propor: cional a forga de seus sentimentos sobre o tema. (Vide ReflexGes, a passagem que termina por “‘t&o poucas pequenas imagens de um grande pais no qual o coragdo en- contra algo que pode ser preenchido”). A coeréncia ndo exclui de forma alguma a complexidade e as contradigdes; antes disso, é a coeréncia de uma personalidade com- plexa e poderosa, suportando com sucesso uma pressdo incomum. Os sentimentos familiares de Burke foram aos olhos de contempordneos ingleses — excessivos, na medida em que eles ndo visavam apenas a sua familia ~ sua mulher Jane, seu filho idolatrado Ricardo e seu irmAo Ricardo — mas também aquilo que um antropologista moderno chamaria de “familia extensa”."“Ele sempre andava”, disse o Professor Copeland, 4 frente de um cla”! Primos da Irlanda e parentes desafortuna- dos eram bem-vindos em Beaconsfield. Em sociedade, o séquito de Burke era to gran- de a ponto de impressionar até os seus admiradores.2? Se Burke tivesse sido aquele aventureiro com interesses puramente egoistas, como dizem alguns dos seus opositores, ele teria agido de forma diferente em relagdo a seus parentes. Esses seus sentimentos, 10 Edmund Burke também, se estendiam além — mas ndo indefinidamente além — de sua familia. Eles abrangiam a sua terra natal, os seguidores da religido de sua mae, ja que ele nunca deixou de lutar por maiores concessdes 4 Irlanda e maior liberdade para o catolicismo. Assim sendo, novas atitudes comprometedoras: um aventureiro irlandés ambicioso na Inglaterra do século XVII teria, se guiado tdo-somente pela razdo, ¢ evitado esses assuntos. Burke foi, em decorréncia desses sentimentos, caricaturado, vestido em um habito de jesuita ou, como disse Wilkis sobre ele, “seu oratorio fedia a Whiskey e batatas”. A afeicgo de Burke também se dirigia a seu velho professor Schackleton, da seita Quaker, a seu filho, a seu patrdo, 0 marqués de Rockingham, e, em geral. sob uma forma mais atenuada de lealdade, aquela classe social inglesa — a oligar- /quia Whig — a cujos interesses ele serviu e sob cuja protegdo ele e seu cld viveram. E na mesma proporcdo em que ele amava ou respeitava essa classe social e o meio em que ela vivia, ele odiava tudo aquilo que, de acordo com sua inteligéncia sensivel, pudesse ameagé-la,?? A distancia, entretanto, é grande: entre os catélicos irlandeses arruinados ¢ os detentores do poder e riqueza na Inglaterra existia um grande abismo a ser ultrapassado pelo sentimentalismo de Burke. Acredito, baseado nas alegacdes que serdo apresenta- das, que haja uma conexdo entre as tenses dessa dicotomia e a carga emocional. a compaixdo e a firia das Reflexdes. E evidentemente natural, dessa forma, que tenham sido as palavras do Dr. Pri- ce?*, que deslancharam a avalanche da eloqiiéncia de Burke contra a Revolugio. Os sentimentos de Burke em relagdo ao Dr. Price ¢ seus seguidores eram fortes e pouco claros, entretanto, durante algum tempo sua atitude hostil foi predominante. Na pri- mavera de 1789, muito antes dos problemas franceses passarem a preocupar os ingle- ses, Richard Bright escreveu a Burke para pedir-lhe ajuda para esses dissidentes. A sua resposta é reveladora: “Nao hé ninguém a que eu tenha estado tao ligado por estima e afeigdo do que a alguns desses dissidentes. Desde hd muito minhas conexées foram muito intimas. Eu me orgulho de ainda ter amigos entre eles. Eles j4 foram muito in- dulgentes para comigo ao pensar que (em decorréncia do meu pequeno poder de o- brigar) eles tivessem qualquer obrigacdo para comigo”. Em 1784, uma grande mudan- ga ocorreu*®, “todos eles, que pareciam agir como uma corporagdo, expuseram-me a0 6dio ptiblico, como se eu fizesse parte de um grupo de rebeldes e regicidas, que conspirava para subverter a monarquia, aniquilar, sem razdo, todos os privilégios do Reino e destruir a Constituigéo. Nao é culpa deles que eu esteja em uma posicao, cujo voto possa ser, por eles ou por outros pedido”?® , Pouco depois, Burke teve a oportunidade de acusar os seguidores da escola do Dr. Price de todas aquelas acusagdes que ele achava que essa corporagao tinha usado contra os Whigs — rebelido, regicidio, subversio e reptdio a Constituigdo. Em 13 de fevereiro de 1790, Bright novamente escreveu a Burke buscando apoio para sua resolu- 40.7 Nessa época, ele ja tinha lido os escritos de Price, e ao fazer um discurso sobre 0 orgamento do Exército demonstrou que as Reflexes estavam nascendo. Aparece, entdo. uma nova atitude hostil: Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga uN “Nos tltimos anos muitas coisas aconteceram ou chegaram ao meu conhecimen- to que néo ajudaram a modificar minha atitude passiva (i. e. em relagdo 4s petigdes dis- sidentes). Coisas extraordindrias se passaram na Franca; coisas extraordindrias tem sido ditas e tém ocorrido aqui e publicadas com grande ostentago, a fim de levar-nos a acei- tar os principios que nortearam os acontecimentos na Franga e a imité-los. Acredito que tais atitudes sejam muito perigosas 4 nossa Constituigdo e 4 nossa prosperidade. Tomei conhecimento recentemente de duas publicagdes**, que nado me deixaram divi- das de que um partido considerdvel foi formado e esté atuando sistematicamente para destruir a Constituig&éo nas suas partes essenciais. Fico surpreso em ver assembléias religiosas transformarem-se em lugares de exercicio de politica e crescimento de um partido que parece ter muito mais discérdia e poder do que piedade para com o seu objetivo”? Dessa forma, acredito que, se a influéncia desses dissidentes tivesse sido usada em favor dos Whigs, a0 invés de contra eles, a reago de Burke em 1784 a linguagem de Price, Palmer, Robenson e outros teria sido provavelmente mais moderada” Burke foi um homem emotivo, ardente nos seus ressentimentos e nas suas predilegdes e a ele agradava devolver aos dissidentes aquilo que ele considerava ter sido obra deles — 0 ataque e suas posigdes, seis anos antes. Os ressentimentos politicos de Burke em rela- Go aos dissidentes aliado a frustrago de seus Ultimos anos no Parlamento tiveram o efeito de liberar seus potenciais mais intimos. Se Rockingham estivesse vivo, se ele € seus amigos estivessem no poder, se tivesse obtido o apoio dos dissidentes, seria muito dificil que Burke tivesse escrito cont tanta elogiiéncia sobre a Revolugao na Franga. Frustrado, entretanto, ele estava livré?! } A importancia da discussdo de Burke com os dissidentes nos seus escritos sobre a Revoluco*? vai muito mais além do que um mero debate especifico sobre politica par- tidéria. Era natural que os dissidentes — ¢ em geral os protestantesvingleses — vissem os primeiros estdgios da Revolugao Francesa com bons olhos, na medida em que ela se apresentava corho uma forma de destruiggo do poder do Papado. A primeira vitoria revolucionéria que mais agradou ao Dr. Price foi a “difusio do conhecimento, que diminuiu 0 poder da superstigdo e do erro”. Para a maioria dos ingleses da época, dissidentes ou ndo, essas palavras soavam bem, na medida em que elas foram utilizadas em um contexto no qual “superstigao e erro” implicavam necessariamente nas suas ‘origens romanas. Mas Burke nao era inglés, apesar dele escrever e falar como um inglés. Ele era irlandés de uma velha familia tradicional, como bem afirmou um bidgrafo moderno: “Edmund Burke foi um puro irlandés”.™ Essa distingdo é, de uma certa for- ma, mais importante do que a baseada em uma mera crenga religiosa formal. As fami- lias mais recentes na Irlanda eram, em geral, militantes protestantes, cuja crenga eles associavam A sua posse da terrae sua posicdo dominante na sociedade. Sobre as familias mais antigas que tinham tornado-se protestantes recafa a suspeita de terem abjurado a religido meramente para escapar a lei penal — para manter suas terras, se as tivesse, para ter acesso a certas carreiras. Burke pessoalmente sofreu essa acusagdo, como vi- mos, € mesmo no inicio de sua carreira ele foi denunciado a Rockingham como um cripto-cat6lico.*5 Nao hé nenhuma razéo para descrer da sinceridade de sua negativa, a perspectiva geral de seus escritos torna claro que ele ndo era o tipo de pessoa que iria 12 Edmund Burke aparentar acreditar em certos dogmas ou abstrag6es, enquanto acreditava em outros. Seus sentimentos sao de outro tipo. A um correspondente desconhecido que — no auge da contravérsia revoluciondria — perguntou-lhe sobre suas crengas religiosas, ele respon- deu que tendo sido batizado e educado na Igreja da Inglaterra, ndo via nenhuma razdo para abandonar aquela comunhio. “Quando eu ajo, eu procuro agir segundo minhas convicgdes ou meus erros. Acredito que essa Igreja harmoniza-se com a nossa Consti- tuigdo civil... Eu estou ligado ao cristianismo como um toda, muito por convicgdo, mais por afeigio,"* fart)) 16 ‘As referéncias de Burke @ Igreja da Inglaterra slo frias, politicas, pragmaticas e contingenciais. Nao era & Igreja da Inglaterra — muito menos ao Protestantismo — que ele estava ligado, “muito por convicefio, mais por af isti um todo”. Isso é estranho. Nada é mais incompativel com o padrdo habitual de Burke pensar, escrever e sentir do que estar atraido por algo “de modo geral”, ao invés das subdivis6es que ele fazia disso. Na medida em que ele ndo demonstra um grande entu- siasmo pelo seu “pequeno pelotio”?” e aprova 0 exército como “um todo”, acredito ser correto inferir que ele ndo se sentia bem na posi¢do por ele ocupada, e isso nao é, de forma alguma, surpreendente. A mie de Burke era catdlica, assim como 0 seu sogro amigo, Dr. Nugent; seu pai, Richard Burke “parece”, segundo o Professor Thomas Copeland, “ter adotado a Igreja da Inglaterra em 13 de margo de 1722 na época em que comecou a advogar em Dublin”®*, pois para poder exercer a advocacia naquela época era preciso adotar a fé anglicana. A mulher de Edmund, Jane, como ele, era fruto de um “casamento misto. Nao se sabe onde eles se casaram, mas se cré que tenha sido um casamefito catélico realizado em Paris. O “cla” encabecado por Burke sempre foi acusado de catolicismo, em uma época e lugar nos quais deviase aparentar ser protestante, e que ser catdlico, além de econdmica e socialmente prejudicial, signi- ficava uma forte convigdo religiosa. Burke pode ndo ter visto “nenhuma razio para abandonar” a Igreja da Inglaterra, mas as suas tradigdes familiares eram to fortes — € seus sentimentos também — que ndo Ihe era possivel encarar os ataques feitos a Igreja de Roma com a tipica atitude inglesa, ou seja, com indiferenga, complacéncia e uma certa aprovacio.? Esses sentimentos religiosos explicam, de uma certa forma, 0 contetdo e a rapi- dez de suas respostas aos acontecimentos na Franga. = A origem itlandesa de Burke e suas conseqiiéncias influenciaram sua reago con- tra a Revolugao de outros modos além do religioso. A alta sociedade inglesa dos fins do século XVIII —.antes de 1793 ~ nfo poderia imaginar uma revolug%o social como uma realidade possivel. A familia Burke, proxima dos ressentimentos sociais e politicos da Irlanda, estava muito mais consciente da es- trutura social vigente e do perigo dela decorrente. Richard Burke Jr. que freqiente- mente expressava as opinides do pai com uma veeméncia por vezes indiscreta — escre- veu, na época da composigao das Reflexdes, uma adverténcia a Lord Fitzwilliam, seu patrio: Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 13 “Jmagine que ao andar pelas ruas de Peterboroughs, eles surjam de sob as pedras que ao se levantarem de sob os paralelepipedos sujos que o Senhor comprou do Sr. Parker, dominem o Governador daquelas ruas. O que acontecerd entdo com a elogién- cia persuasiva, as concessdes moderadas ¢ os expedientes contemporizadores do Sr. Fox?! Q tom tranqiiilo da resposta de Lord Fitzwilliam demonstra que o jovem Burke nao conseguiu transmitir as suas apreensdes. Como era comum naquela época, as preocupagées de Burke, angustiadas pelo fantasma da Revolugdo,“? ficaram esquecidas “por aqueles que ndo acreditavam ser possivel que ela pudesse existir...” Um irlandés nao podia ser tao discrente, tao tranqiilo. A revolta era iminente na Irlanda e efetivamente ocorreu em 1798, um ano apés a morte de Burke Ninguém na Inglaterra estava mais angustiado com seu espectro do que Burke. “Acreditamos que seja o grande deménio da nossa época”, ele escreveu ao Dr. Hassey em dezembro de 1796, “o crescimento do jacobinismo, e estamos certos de que, por uma série de ra z®es, que nenhuma regio é mais favordvel ao crescimento desse mal do que 0 nosso infeliz pafs."*° Ele abominava o movimento dos Irlandeses Unidos, que procurava reu- nit dissidentes e catélicos em um mesmo movimento nacional, democratico e revolu- cionério sob a inspiragao francesa e.com a ajuda francesa ~ “aquelesque, sem nenhuma preocupagdo para com a religifo, retinem toda sorte de dissidentes, buscando produzir toda forma de desordens”®*. Em telagdo, entretanto, aos catélicos irlandeses, ele faz uma tnica concessdo, se nfo por uma forma legitima de Jacobinismo, pelo menos por uma forma inerente a natureza humana. As duas formas, entretanto, estdo, na concep- g4o de Burke, muito proximas. “Esse jacobinismo”, disse ele ao escrever a Hussey, “que é especulativo nas suas origens, que provém da libertinagem deve ser controlado com firmeza e prudéncia... mas 0 jacobinismo que decorre da pentiria e da revolta, da lealdade escarnecida e da obediéncia recusada tem raizes muito mais profundas. O seu alimento vem do fundo da naturez: ana... e nfo do humor ou caprichos ou opinides sobre privilégios ou liberdades’” oy As referéncias de Burke sobre o perigo de uma revolugdo na Irlanda sdo natural- mente mais freqiientes nos tltimos anos de sua vida, em uma época mais proxima da eclosdo da revolta. A Irlanda, entretanto, nunca ficou distante de seus pensamentos. Como escreveu um moderno estudioso de Burke: “‘... como todos os irlandeses respon- sdveis e inteligentes, com forte carga emocional, Burke tinha sempre consigo a Irlanda como o seu “velho homem do mar”.** Burke afirmou em 1780, que quando pela primeira vez foi eleito para o Parlamento, catorze anos antes, o que estava “primordial- ‘Mente nas suas atengdes, era a esperanga de, sem prejudicar esse pais, ser de alguma forma util 4 minha terra natal onde fui educado”...*7 Conhecemos, em decorréncia de suas notas contra as leis sobre o Papado (Popery Laws), escritas logo antes de sua elei- ¢4o para o Parlamento, a extensdo de suas ilusdes, e a forma pela qual elas sdo apresen- tadas € perfeitamente consistente com aquilo que ele posteriormente escreveu sobre a condigao da Irlanda.*® Chega-se a concluso, dessa forma, que a opinido de Burke sobre a Irlanda — um pais oprimido e perigoso — fez parte integrante de seu ambiente intelectual. O seu rela- cionamento para com a Irlanda fez com que fosse impossivel para ele dar, como outros 14 Edmund Burke ingleses, uas respostas tipicas aos acontecimentos iniciais da Revolugad: a de aprova- 40 a algo que parecia uma feforma anticatélica e a de que “isso ndo pode Ocorrer aqui.” “Aqui”, para Burke significava ndo somente a Inglaterra, mas também a Irlanda, dessa forma, para ele, a revolucdo era algo totalmente possivel. Isso explica a rapidez da resposta de Burke, j4 que ele foi o primeiro homem de importancia na Inglaterra a denunciar 0 perigo que dentro de pouco tempo seria a grande preocupacao dos senho- tes proprietarios. Isso explica a sensibilidade de Burke, sua intuicdo para detectar o perigo; mas ndo explica, entretanto, a intensidade de sua paixdo contra-revolucipnéria, Ele nao foi, pelos padroes da época, um sénhor proprietério, apesar de ele ter procura- do manter um certo padrao. As acusagGes de que suas atitudes e escritos foram preme- ditados, buscando suborno e uma pensdo futura nZo podem ser aceitas.*? Seu relacio- mento com a oligarquia Whig era real, mas ndo emocional. Burke, na época da compo- sigdo das Reflexes, jé estava idoso, desapontado, sobrecarregado de trabalho e estafado com as enormes complexidades dos trabalhos com o impeachment de Warren Hastings. De um homem nessa situagdo, consciente do perigo na Franga, pode-se esperar ta0-so- mente, a prudéncia da adverténcia, nada mais. Apesar disso, de onde surge a tremenda forga emocional que animou néo somente aquela obra de nome enganoso ~ As Refle- x6es ~ mas também todos os seus escritos sobre a Revolugao, incluida a quarta “Carta sobre uma Paz Regicida”, deixada incompleta em virtude de sua morte? Uma pergunta dessa natureza, em relagdo tanto a um vivo como a um morto, nao pode ser respondida com certeza. Gostaria de oferecer, entretanto, uma resposta con- juntural que me parece estar de acordo com o que sabemos da vida e dos escritos de Burke. Nos seus escritos contra-revoluciondrios, o escritor estava liberando parcialmen- te, e de uma forma permissivel, a parte revolucionsria sublimada de sua propria perso- nalidade. Os seus escritos, que parecem ser superficialmente uma defesa total da ordem estabelecida, constituem em um de seus aspectos — e isso para Burke nfo era de peque- na importancia — um forte ataque contra a ordem estabelecida na sua terra natural e contra o sistema de idéias dominante na propria Inglaterra. A ordem estabelecida na Irlanda era a supremacia protestante, a supremacia lega- lizada da minoria protestante sobre a maioria catdlica. Essa supremacia continuou nas ordens revoluciondrias de 1688 ¢ dinda hoje € comemorada em Belfast como a origem gloriosa da subordinagia permanente dos catdlicos romanos: Burke, como-um Whig, necessasiamente-aderiu aos princ{pios da Revotuyao Gloriosa, tendo ou nio razoes de interesse particular levado esse aventureiro irlandés a aderir 4 causa Whig. E claro que lealdades pessoais, habitos e interesses intelectuais — assuntos que Burke nunca separou radicalmente — logo levaram-no a aderir aos Whigs como uma corpora¢éo. Mas se Burke como Whig admirava, pelo menos na teoria, a Revolucdo Gloriosa, o mesmo Burke, j4 como irlandés com lagos emocionais estreitos com 0 povo conquistado, de- testava aquela supremacia protestante, que aquela Revolucdo tinha imposto ao povo Jo seu pais. Esse 6dio aparece escondido, nos seus primeiros escritos, por uma “veia politica bem clara”, entretanto, ele se torna evidente, e mesmo violento, nos escritos nais livres dos seus tltimos anos. “Acredito que dificilmente pudesse exagerar o male- Reflexdes sobre a Revoluggo em Franca 15 ficio dos principios da supremacia protestante naquilo que ela se refere a Irlanda...”° “A_palavra protestante é 0 charme que aprisiona nos calabougos da servidao trés mi- Ihdes do nosso povo””.. A visdo de Burke em relacdo a historia irlandesa, e seus sentimentos para com ela, se tornam evidentes em uma memoravel carta, que ndo foi terminada, escrita a seu filho, Richard, em 1792. “Se as classes dominantes na Irlanda fossem mais inteligen- tes”, ele escreve, “no enfatizariam a origem de suas propriedades confiscadas”. “Elas no despertariam de um sono trangiiilo nenhum Samuel para perguntar-lhe por qual ato de um monarca arbitrério, por qual argiigdo de um tribunal corrupto € testemunhas torturadas, por qual meio ficticio foram destitusdas inteiras tribos despro- tegidas e seus chefes (sic). Elas ndo chamariam os fantasmas das ruinas dos castelos e igrejas para dizer-lhes que as propriedades da velha nobreza irlandesa seriam confisca- das se tentassem incentivar o estabelecimento de uma legislatura irlandesa, se ten- tassem formar um exército de voluntdrios sem permissdo especial da Coroa em fa- vor dessa independéncia. Eles ndo chamariam esses fantasmas para dizer-lhes qual © ato do Parlamento inglés que, imposto a dois reis relutantes, fez com que as terras de seu pais fossem postas 4 venda em qualquer loja de Londres de uma forma vergonhosa, divididas em pedagos para pagar os soldados mercendrios de um usurpador regicida. Eles no teriam tanto orgulho dos titulos adquiridos sob Cromwell, pessoa que, a0 mesmo tempo que massacrava uma rebelido irlandesa contra a autoridade soberana do Parla- mento inglés, tinha, ele proprio, se rebelado contra esse mesmo Parlamento, cuja sobe- rania ele, assim como a nacdo irlandesa, acreditavam plena. A nagao irlandesa poderia rebelar-se contra esse Parlamento ou poderia rebelar-se contra o Rei que foi vitima tanto do Parlamento como de Cromwell, enviado para sub- julgar e confiscar a nagdo irlandesa, a quem ambos serviam(S? Um irlandés, se realmente tivesse cometido o crime de rebeliao, teria ndo somen- te se arruinado como seus filhos e netos até a quinta e sexta geracdo.” _O contraste entre essa explosdo apaixonada e as referéncias anteriores, discursos pUblicos sobre a harmonia serena da relagdo entre a Irlanda e a Gra-Bretanha € prova da tensdo que sempre existiu entre o perfil publico de Burke — parte téo importante Nos seus sentimentos — e seu relacionamento em relagdo a seu povo e a seu pais.°* Essa tensdo foi relaxada pela Revolugdo Francesa e especificamente pela reagao do Dr. Price € seus amigos, que, a0 colocarem a Revolugdo Francesa na mesma linha da inglesa, relembravam a Burke qudo revolucionaria, qudo anticat6lica e, para elé, qua atienada tinha sido a Revolugao Inglesa.™ Essa visdo desconcertante tinha de ser exorcizadae a maioria dos argumentos — e a parte mais forcada da argumenta¢io — tanto das Re- flexdes como do “Appeal from the New to the old Whigs” consiste em uma tentativa de mostrar que a Revolugfo Inglesa, diferentemente da francesa, nao tinha sido realmente uma revolucdo — uma tentativa que podemos achar bem sucedida se esquecermos as contribuig6es dos contemporaneos de Henrique VIII e Oliver Cromwell. Mas o drama de Burke em relago 4 Revolugdo e ao seu poder advém da participagdo de duas perso- nagens. E como se as palavras e as agdes de Price e seus amigos tivessem acordado, naquele idoso e racional Whig, um jacobita escondido:*> — 16 Edmund Burke Em relagdo a Inglaterra e a Europa essa posi¢ao “Jacobita” é obviamente contra: revoluciondria. Mas, em relagdo a Irlanda, a aspiracdo jacobita € objetivamente revolu- ciondria, na medida em que é uma expresso da vontade do povo conquistado dé-que- brar a serviddo. Assim. no momento em que ele foi mais contra-revolucionario. em relacdo 4 Franga e a Europa, foi inconscientemente subversivo em relagdo a ordem esta- belecida no seu pais de origem. E seus argumentos, dirigidos 4 nobreza e 4 burguesia inglesas. procuraram persuadir essas classes. afirmando que seus interesses estavam liga- dos ao catolicismo na Europa, que o Catolicismo era o bastido da ordem, enquanto que o Protestantismo nas suas formas militantemente anticatdlicas — 0 Protestantismo dos dissidentes e seus simpatizantes — era a fonte do jacobinismo." Esse argumento. se aceito, era em ultima instancia, ruinoso para o sistema de castas vigente na Irlanda, para o qual a doutrina de que a lealdade necessitava um antipapismo latente era funda- mental. O argumento foi aceito. no seu aspecto pré-catdlico, apesar de bem mais tarde do que Burke desejava, E certo que as palavras de Burke tinham um peso especifico naquelas classes as quais elas se dirigiam e que tiveram uma parte importante na evolu- go da politica britinica na diregdo por ele desejada.*” A “Lei de abrandamento em relagdo aos catolicos” de 1793 — concedendo a franquia— e €m 1795 a fundacao de Maynooth — um semindrio catélico com apoio oficial — foram importantes etapas (nessa direcdo. $8 Em relagdo 4 Unido, a supremacia protestante foi progressivamente Wiminuida, exceto em uma regido. o Ulster Oriental. onde tinha uma forte base popu- lar. Do ponto de vista de um membro tipico da classe dominante na Irlanda dos dias de Burke, esses eram desenvolvimentos revolucionarios, inicialmente contrapostos & disseminagao de uma atitude ostensivamente contra-fevoluciondria. Ainda nesse mesmo ponto de vista. 0 espectro do jacobinismo foi inteligentemente usado para reabilitar 0 Papado e os papistas.? Nao ha divida de que a reabilitacao do catolicismo fazia parte das intengdes de Burke, ja que ele explicitamente argumenta nesse sentido, procurando disseminar a preferéncia da “supersti¢do” em detrimento do ateismo. E evidente que isso foi téo-somente parte de suas motivagdes, pois 0 seu ddio pelo jacobismo era real € mesmo obsessivo, no havendo hipétese de que ele teria sido produzido por uma razdo posterior. O seu antijacobinismo. entretanto, ndo pode ser separado do seu senti- mento de indentificagao com os catdlicos, ou seja com suas origens irlandesas. Em uma carta de 1795, ele afirma que o seu “centro politico € o antijacobinis- ino”; que o “primeiro, ultimo e dnico objetivo da Hostilidade jacobina ¢ a religido”; jue a pratica do catolicismo, “como ela se apresenta ¢ a barreira mais eficiente, se ndo a Unica, contra o jacobinismo”; e “que particularmente na Irlanda a religido catélica romana deveria ser olhada com muito respeito e veneragio”.® Aquele Burke que estava revoltado com a perseguigdo jacobina contra os padres e freiras “recalcitrantes” era 0 mesmo Burke que ficara revoltado pelo enforcamento ¢ esquartejamento do “re- belde” Irmao Shechy em 1766.*! Ele nao péde fazer um protesto piiblico, sua resposta foi explicar calmamente a seus amigos irlandeses 0 porqué dele ndo ter podido publi- camente defender um papista irlandés acusado.** Foi possivel, entretanto, para ele defender publicamente a causa dos catélicos franceses, entre 1790 — 1797 e ao apoid-los, indiretamente estava procurando presti- giar sua familia e seus conterraneos. Sera, por acaso, irreal acreditar que 0 extraordind- Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 17 rio fluir de uma elogiiéncia controlada mas passional que comeca com as Reflexdes seja a liberacdo de uma indigna¢do intima longamente contida por uma atitude politica de prudéncia? ‘A importancia da nacionalidade de Burke-em. relago a seus escritos sobre a Revolugdo na Franga tem sido, acredito, freqientemente subestimado ou amente compreendido. Essa tendéncia foi incentivada pela necessidade de classificagao: “Burke falando sobre a Irlanda” é encarado de forma diferente do que “Burke falan- do sobre a Franga”, ou “Burke falando sobre a América”. Apesar de como Yeats mos- trou, ser sempre 0 mesmo Burke. Burke nao foi um homem que fizesse separagGes ri- gidas das coisas, e podemos estar certos de que os sentimentos e idéias — que também no foram compartimentos separados — do homem que escreveu para Sir Hercules Langrishe sobre a Irlanda so idénticos aos daquele que escreveu para M. de Pont sobre a Franga, A tendéncia ao esquecimento da importancia da nacionalidade de Burke é tam- bém encorajada por outros fatores. Entres eles se incluem a impressdo geral de que Burke é anglo-irlandés e que pertence a tradicdo protestante®. De fato, ndo hd, nada “inglés” naquilo que sabemos sobre ele ou seus lagos familiares — pelo menos nos seus iltimos escritos que sio aqueles que nos interessam — muito menos na designaco “protestante”. Finalmente, algumas pessoas que ficaram impressionadas com os escritos de Burke sobre a Revolucdo Francesa ignoraram o fator irlandés, provavelmente em de- corréncia da convicgdo de que, em compara¢ao com os importante temas tratados nas “Reflexdes”, suas preocupagdes com a Irlanda foram triviais e provincianas. Como uma argumentagdo genérica ela é defensavel, apesar de, em relacdo a Burke, ser incon- gruente. A situaco irlandesa é de pequena importancia se comparada com a grande Revolugdo, mas foi a situacdo irlandesa que gerou Edmund Burke e a Irlanda e 0 jaco- binismo constituiram-se em preocupagdes freqientes nos seus tiltimos sofridos anos. O autor das “Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca” escreveu numa roupagem. de. inglés — 0 que provocou tanta confuso — mas a sua esséncia, a sua concepeo era a de um irlandés. 7 A interpretagdo a tada tenta dar uma explicagdo para uma questo intrigante: a do estilo of estilos de Burky. Burke nos seus escritos sobre a Revolugao em Franga apresenta/tréspstilos basicos, que podem ser combinados em varias propor- ges. De inicio, aquele que se poderia chamar de estilo Whig: racional, perspicaz, comercial. Esse foi o estilo basico de seus discursos e escritos sobre a América e na primeira parte das Reflexdes, embora no seja aquele da maioria das passagens fre- quentemente citadas. Era um discurso perfeitamente adaptado as suas finalidades, ow seja, a de convencer pessoas que tinham muito a perder, que algumas politicas, nto outras, estavam de acordo com os seus interesses. Foi com essa énfase que ele advertiu os Lordes Whigs que © confisco das propriedades da Igreja na Franca — um desejo que muitos ndo escondiam em decorréncia de principios de “Reforma” ou “Iluminismo” constitufa uma ameaga clara a sobrevivéncia econémica da sua classe social: 18 Edmund Burke “A minha maior preocupagdo é que se chegue na Inglaterra a considerar 0 confisco como um direito do Estado em prover-se de recursos ou que certas categorias de cidadaos sejam levadas a tomar outras como objeto de pilhagem... As revolugGes sio favordveis ao confisco, e é impossfvel saber sob que nomes odiosos os préximos confis- cos serfo autorizados. Estou certo de que os princfpios vigentes na Franga sdo des- tinados aplicagZo em todo o pafs, a um grande namero de individuos e a clas- ses inteiras, que imaginam que sua calma indoléncia é a garantia de sua seguranga. Nada mais fécil que tomar a indoléncia dos proprietérios como inutilidade, e, depois disso, transformar tal inutilidade em incapacidade de possuir seus bens”. (Refle- x@es). E muito improvavel que, ao ler essa passagem, qualquer proprietério Whig nfo tenha diminufdo seu apoio as causas antipapistas. O seu Segundo estilo poderd ser chamado de, “jacobita’7: gongérico e politico. O mais notdvel exemplo-désse estilo nas Reflexdes é 0 famoso trecho sobre a Rainha, que muitos foram levados a acreditar como sendo um exemplo tfpico do estilo de Burke. Apesar de ser uma das suas formas de estilo, ele s6 a utiliza raramente.* Aqueles que lem essa passagem isoladamente, perdem grande parte de sua forca, que provém da mudanc¢a de tom, uma quebra emocional dentro de um quadro racional. Na medida em que se estd ciente dessa carga emocional subentendida, até a parte mais prosaica da argumentagdo adquire uma sonoridade formidavel. Qcterceiro estilo, de Burke é uma forma peculiar de feroz ironig. A Ironia é uma marca caracterfstica da literatura irlandesa, j4 esclareci em outro estudo® que o caré- ter irlandés, com seus contrastes marcantes entre ilusdo e realidade, é muito favordvel a0 desenvolvimento dessa forma de expresso. Para a nossa interpretagdo de Burke, é preciso tdo-somente ter em mente que 0 atrito entre o “outer ego Whi jacobita” era em si mesmo irdnico e fértil naquela agressividade que é a forga motriz da ironia. A ironia de Burke, nos seus escritos sobre a Revolug4o Francesa,é mais agres- siva do que evasiva, j4 que ele se encontrava em uma posigdo de ataque. A sua ironia, entretanto, é mais evasiva do que se poderia imaginar, na medida em que seu sarcasmo feroz, dirigido abertamente aos apologistas da Revolugdo Francesa, se apresenta como uma critica disfarcada contra a cultura protestante dominante na qual ele estava apa- rentemente assimilado. ——>o Nas Reflexdes, a ironia de Burke é subentendida, aprarecendo ocasionalmente em certas passagens: “‘aquele argumento servir4, como um porto para sustenté-lo...” “O Rei foi levado a declarar que o Delfim deveria ser educado de conformidade com a sua situagdo. Se ele deve se ajustar a sua condig4o, ele nfo deverd ter nenhuma educagao”. Nos seus escritos posteriores sobre a Revolugdo — escritos nfo resguardados, mas amar- gos, indignados, triunfantes ~ sua ironia aparece em explosdes conscientes. A sua fa- mosa Carta a um Lorde Nobre (1796) — contra o Duque de Bedford, que se ops a soncesséo de uma penso a Burke — é um exercicio em ironia que impressionou Karl Marx, com muita razo. A ironia de Burke nunca é discreta, as vezes chega a se aproxi- nar do humor da “Camara dos Comuns”, que, por sua vez, € parecido com o humor de am colegial\ inas a sua rudeza ¢ freqiientemente transfigurada em uma combinagdo Je prazer, fantasia e hipérboles irlandesas, bem ao gosto de Burke. Duas passagens Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 9 sobre os gatos valem a pena serem citadas: a primeira é extraida da Carta a@ um Lorde Nobre e se refere a forma pela qual os revoluciondrios parisienses olham seus simpati- zantes aristocréticos ingleses, como o Duque de Bedford: “Pouco importa o que Sua Graga pensa de si mesmo, pois eles o olham ¢ a tudo aquilo que Ihe pertence com a mesma atengdo que tém para com os bigodes daquele pequeno animal de rabo com- prido que por muito tempo tem sido um jogo para filésofos sisudos, reservados, pér- fidos, narigudos, com patas macias e olhos vivos, que caminham com duas ou quatro A segunda passagem extraida da primeira das Cartas sobre uma Paz Regicida se refere a um argumento, utilizado pelos defensores de uma paz com a Franca ( em 1796), que um acordo tinha sido concluido com autoridades afamadas, os senhores ile- gais de Argel. “Sera que os Senhores, que defendem esse argumento, nao tém idéia do comportamento diverso que se deve ter face a um mesmo mal quando estd em situa- des diferentes? Eu posso ver, sem medo, um tigre nacional ou real em volta de Pegu. Posso olhd-lo, com uma leve curiosidade, como um prisioneiro na torre. Mas se, por meio de um habeas-corpus ou qualquer outro instrumento, ele aparecesse na entrada da Casa dos Comuns e se sua porta estivesse aberta, seria prudente que procurasse uma saida pela janela dos fundos. Eu certamente teria mais receio de um gato selvagem no meu quarto do que de todos os ledes que rosnam nos desertos da Argélia. Mas, no nosso caso, € 0 gato que estd a distincia, e os ledes e os tigres que esto na nossa ante-sala. Argel ndo esta perto; Argel ndo € poderosa; Argel ndo € nossa vizinha; Argel ndo esta doente. Argel, independentemente do que seja, é uma velha criagdo e temos muito bons dados para calcular todos os males que dela provém. Quando eu vir Argel trans- ferida para Calais, ai, entdo, eu direi o que penso sobre isso” $# Dos trés estilos que foram por nés distingiiidos — 0 Whig, 0 “jacobita” e o irénico — s6 0 primeiro é encontrado, com relativa freqiiéncia, no seu estado puro, que forma a matéria-prima das Reflexées. O estilo “‘jacobita” na sua forma pura aparece muito raramente: a passagem sobre a “Rainha” nas Reflexdes e, nas “Cartas sobre uma Paz Regicida”, a passagem sobre “‘o tumulo da monarquia assassinada” — citada no inicio dessa introdugao — sfo os dois exemplos tipicos desse estilo. Quando o tom jé ficou claro, entretanto, Burke pode evocé-lo de novo com a parciménia de uma ressal- va. “E uma pena que Cloots no tenha tido uma suspensfo temporaria de sua sen- tenga de ser guilhotinado até que ele pudesse completar sua obra! Mas aquela maquina funcionou antes da cortina se fechar sobre a dignidade da terra.” Na maioria dos mais importantes trechos das Reflexdes, Burke utiliza um esti- lo intermediério entre 0 Whig e 0 “jacobita” — mais elevado que o primeiro e menos teatral que o segundo — um estilo sério e grandioso, comum a um clérigo Tory. Esse © tom da famosa argumentagdo que faz a apologia do principio da heranca ao assimilé- lo & ordem natural, da defesa da desigualdade na propriedade, da teoria da continui- dade e da parceria — “uma parceria, uma sociedade néo somente entre vivos, mas tam- bém entre .0s vivos, os mortos ¢ aqueles que haverdo de nascer”. E nesse meio-campo que Burke esté mais seguro; essa 6 a forma que harmoniza o Whig e o “jacobita” 20 Edmund Burke dentro dele; esse é, também, o tom no qual, com a maior autoridade, ele alcanga a pla- téia por ele visada — a8 proprietérios fundidrios da Inglaterra, e a’classe abastada de um modo geral. Essas palavras dao uma grandiosidade, uma gravidade, uma mistica 4 defe- sa dos seus interesses. Elas preparam o animo ¢ 0 comportamento do conservadorismo e do liberal-conservadorismo ingleses para o século XIX. Na medida €m que a8 bases do “status quo” foram téo bem definidas e defendidas, a insinuagdo do defensor jacobita deve ter sido mais agradével do que odiosa. Ela escondia, de uma certa forma, o pathos € 0 encantamento de uma causa perdida, causa essa que era ardorosamente defendida por aqueles a quem Burke se dirigia. Ao mesmo tempo, a aceitagao desse pathos e en- cantamento de uma certa forma reabilitou a mais irremediavelmente perdida das causas britanicas. O catolicismo romano desenvolve o apelo do romantico, em uma época na qual essa forma de apelo est4 comegando a tornar-se socialmente relevante. Burke tem um outro estilo com caracteristicas situadas entre 0 irdnico ¢ 0 Whig, da mesma forma pela qual seu estilo sério e grandioso se situa entre o Whig e o “jacobita”. Essa segunda caracteristica é aquela dos seus aforismos e epigramas. O senhor do estilo retumbante também o é do conciso. Os escritos sobre a Revolugao sao ricos naquelas generalidades incisivas e memordveis com as quais o século XVIII enri- queceu nossa cultura. O epigrama de Burke, entretanto, tem uma caragteristica parti- cular, j4 que nas suas maos essa forma de raciocinio ¢ dirigida contra a presungao inte- lectual: “a sabedoria ndo € 0 corredor mais eficiente da loucura”, “nenhuma relagdo fria € um cidaddo ardoroso”, “. ..enquanto uma pessoa irrita a natureza contra si, ela estd imprudentemente confiando no dever”™. Essas nfo so epifanias isoladas, elas tém um significado social. A presungao intelectual — ou autoconfianga — é a moral do revolucionério, que o torna apto a por em questdo a ordem estabelecida na sociedade, no Estado, na Igreja, na Famflia. Essa é a forma pela qual a habilidade se aproxima da propriedade. Ao utilizar seu génio intelectual para por em questo os apelos do intelectual, Burke esté exercendo uma dupla funao-Ele serve aos interesses da classe proprietaria e adqui- Te, a sua gratidfo. E, a0 mesmo tempo, ele reabilita a religido e especificamente — “por meios indiretos e de uma forma discreta — aquele tipo de religifo que durante o século XVIII esteve mais exposto aos ataques diretos da Razdo. E a forma pela qual ele 0 faz, nos mostra que possui a qualidade que ele procura questionar. Um racionalista radical, procurando interpretar a opinigo de Edmund Burke sobre a importancia da inteligéncia j4 percebe de antem‘o, pelo tom do estilo de Burke, que sua interpretagdo sera por si s6 ridicula. E importante distinguir, na prosa de Burke, essas varias maneiras e combinagdes de estilo.”" Mas a sua graga-e forca esto melhor apresentadas na flutuagdo lirica na qual ele se move de uma forma a outra e de um nivel de intensidade a outro. Ele pode variar da injuria e da irdnia até ao mais alto grau da ternura romantica — como na pas- sagem sobre a Rainha. E por um outro lado ele mistura em uma mesma frase a ternura campestre com a ironia radical: “Todos aqueles riachos trangiiilos que irrigam uma campina silvestre, compacta, mas nfo infértil se perdem na amplidao sem limites, ocea- no improdutivo da filantropia homicida da Franga.””” Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga a Transigdes abruptas de estilo estéo entre as formas de recursos tradicionais da oratoria e da advocacia: Burke conhecia Cicero.”? Desse modo, ele utilizou a0 maximo os recursos da oratéria tradicional — um repertério de malicias apesar de seiis €féitos terem sido tnicos e sem precedentes. Nenhum outro orador ou escritor politico, antes ou depois dele, teve essa combinagao de qualidades: seu poder de articular as emogées, sua percepcdo instrutiva das forgas sociais, sua capacidade de argumentacdo analitica, sua ternura, fantasia, sabedoria e poder de combind-las, por meio de um controle total sobre os recursos da lingua, buscando atingir fins claramente escolhidos e apaixonada- mente desejados, A riqueza e a variedade de estilo das Reflexdes encantaram, logo de inicio, alguns e inquietaram outros. As Reflexdes so dificeis de serem classificadas e para alguns isso é um escandalo, O titulo do trabalho nao se harmoniza com o seu tom, que € apaixonado e, por vezes, brutal. O trabalho come¢a como uma carta, mas termina como uma mistura de tratado, panfleto e discurso. Muito antes de sua publicacdo, criticas ji tinham sido feitas 4 sua forma. Philip Francis, que trabalhou com Burke no processo de impeachment de Warren Hastings, achou a primeira parte das Reflexdes que Ihe tinha sido encaminhada, “muito sem coordenagao.”"* Na medida em que Burke buscava “corrigir, instruir outra NacZo” e apelava para “toda a Europa” ele deveria escrever “com especial ponderagdo”; “distante de pilhérias, zombarias e sarcas- mo, sobretudo sendo grave, direto e,sério””*. Burke ficou ferido — ao tomar conhecimento da carta de Francis, ele disse “eu nao dormi desde entdo” — mas nfo abalado. “O trabalho que vocé acha sem coordena- ¢80, eu acredito que também o seja. Eu nunca pretendi que fosse de outra forma...” ‘Ao receber a recém-editada Reflexdes, Francis foi ainda mais severo, de uma manei- ra ambigua que Burke deve ter achado ainda mais ofensiva do que uma condenagdo clara: “Eu gostaria que vocé me deixasse ensinarhe inglés. ...Por que vocé ndo deixa ser persuadido de que a polidez pode ser um instrumento da preservagao? Eu ainda nao consegui ler mais do que um tergo do seu livro. Eu devo apreciélo devagar, o seu saber é extremo, o vinho é muito rico, eu ndo consigo tomar um gole dele.””” Como muitos criticos estilisticos, Francis nao gostava da forma nem do con- tetido. Alguns outros, a quem, também, a substancia ndo era do agrado, tiveram maior percepgao. Um critico da época, Sir James Mackintosh viu imediatamente que aquela forma, desordenada na aparéncia, de fato multiplicava a forga do argumento de Burke. “Ble pode encobrir a mais infame retirada com uma brilhante alusdo. Ele pode apresentar seus argumentos com incrivel dominio quando necessério. Ele consegue escapar de uma posicdo insustentavel com uma declamagdo espléndida. Ele consegue impregnar a comunicagdo mais reticente com ternura e fazer desaparecer um grupo de silogismos com uma zombaria. Abstraido de todas as leis do método vulgar, ele conse- gue fazer com que um grupo de horrores magnificos fagam uma Tenida Hos nossos cora- 22 Edmund Burke s6es, através da qual a mais indisciplinada turba de argumentos pode entrar em tri- unfo,”” Francis com a sua “Certeza” ¢ ““Educagdo”, nfo conseguiu ver o lado apontado por Mackintosh, que, sendo o mais perspicaz critico de Burke, foi o primeiro a definir —~ logo em 1791 -- a real caracteristica das Reflexes. “E um manifesto da contra-revolugao...” / As observagées de Mackintosh sobre o método de Burke, e sua definigao sobre 0 caréter da obra, mostram Burke como sendo, antes de tudo, um propagandista. Apesar da ressalva “antes de tudo” — que comentaremos adiante — nfo ha duvida de que Burke tenha sido um propagandista consciente. Ele apresenta certas caracteristicas de ter sido, realmente, o primeiro propagandista moderno, ou seja, o primeiro a ter cons- ciéncia da necessidade de um esforgo organizado, adequadamente financiado e refor- ado pela “agdo estatal’*”* com vistas a moldar a opinido publica em questées ideolé- gicas e de politica internacional. Ele foi o primeiro, também, a procurar organizar um tal esforgo.” A sua originalidade, entretanto, ndo deve ser exagerada, pois desde a Reforma e a Contra-Reforma que a Europa Ocidental esteve inundada de propaganda, tendo sido o século XVIII o apogeu dos panfletérios. A originalidade de Burke nao foi a de se engajar na propaganda, mas em pensar seriamente sobre sua natureza, seu poder a melhor forma de utilizé-la. Ele estava bem consciente do papel desempenhado pelas propagandas, inclusive a anti-religiosa, de Voltaire e seus amigos na derrubada do ancien régime e sobre a necessidade de um contra-ataque organizado, O tratamento que Burke dispensa a esse assunto nas Reflexes: comecando com “junto com os inte- esses, desenvolve-se um novo tipo de homem...” “O homem politico das cartas”® tem um desenvolvimento maior na segunda “Carta sobre uma Paz Regicida”. “A cor- respondéncia do mundo mercantil, o interc4mbio literdrio entre as academias e, acima de tudo, a empresa controlada pelas classes médias se tornaram efervescentes por toda a parte.®? A imprensa tornou cada governo, na sua esséncia, democratico. Sem ela os primeiros momentos da Revolugdo nao teriam, talvez, existido”. Burke ficou aborrecido com a falta de interesse entre os aristocratas franceses refugiados em relagdo a propaganda, Em janeiro de 1791, ele escreveu para um dos refugiados, buscando algumas informagoes — detalhes sobre o sistema francés de pro- priedade fundidria que “poderiam ser uteis para o meu procedimento sistematico de convencimento ptiblico em seu favor, que gostaria que os nobres franceses colaboras- sem sob a diregdo de ingleses justos”.® Burke continuou a incentivar a idéia, mas foi desencorajado pela aparente inércia da nobreza francesa, comparando com a atividade de seus oponentes... “Os emissarios da usurpagdo esto aqui muito ativos em difundir histérias que levam a alienago publica desse pais em relagfo aos sofredores. Nenhum refugiado francés tem inteligéncia ou espirito suficiente para contradizé-las”.** Ele procura mostrar a necessidade dos refugiados franceses levantarem fundos para essa causa: “Se a avareza deles ou sua dissipagdo valem mais do que a honra e a seguranga deles, entdo sua causa é totalmente deplordvel.”® Dessa forma, Burke estava adiantado 4 época que defendia. Ficou, entretanto, t8o-somente na condugfo da propaganda efetiva da contra-revoluggo. Nos seus pré- Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 23 prios escritos ele foi, entre outras coisas, um propagandista consciente. Ele utilizou uma linguagem emotiva, como uma politica deliberada. Isso, entretanto, ndo representa- va para ele nada de novo, pois como politico ele tinha consciéncia do valor da violéncia verbal. Antes da ecloséo da Revolugo Francesa, quando seus interesses estavam volta- dos para outros assuntos, ele escreveu para um colega da oposi¢fo, sugerindo que se a oposi¢do realmente tinha a intencdo de defender seus principios “deveria mudar seu tom calmo de argumentagdo que efetivamente nao se coadunava com interesses tio grandes e importantes... estilo tao diferente daquele perseguido por Lord North.”87 Dois anos apés, enquanto do processo de impeachment de Warren Hastings, ele desenvolveu a sua teoria da violéncia verbal, ao rebater a sugestao do Ministro Thurlow de que “o método pacifico de inquérito” é a melhor forma de aproximagao: “o méto- do pacifico de inquérito é uma forma muito calma de perdermos 0 nosso objeto, € uma forma bem certa de encontrar muito pouca calma por parte de nossos adversérios. Sermos violentos é a unica forma deles serem razoaveis”. Ele se tornou incrivelmente “violento” quando “os grandes e importantes inte- resses” da reaco 4 Revolugfo Francesa apareceram: as Reflexdes comparadas com a tltima Carta sobre uma Paz Regicida aparenta ser um modelo da “forma pacifica de inquérito”. Em relagdo ao “Apelo dos Novos aos Velhos Whigs (1791)” ele se apresen- ta profundamente devotado aquele método tdtico de enfatizar a8 argumentagdes que distingue 0 verdadeiro propagandista do mero crente de uma causa. Ao escrever a seu filho Ricardo e ao mencionar que mesmo 10% do Partido Whig apoiava os princ{pios revoluciondrios franceses, ele comentou: “E de se perguntar por que eurepresento todo um partido como tolerante, e ao tolerar, aprovar esses procedimentos. Deve-se utilizar ao m4ximo sua inatividade e estimuld-los a fazer uma declaracdo piiblica...”** O fato de que Burke escreve como um propagandista consciente e politico prati- co, consciente das provaveis conseqiiéncias imediatas de suas palavras, nfo é freqiiente- mente considerado por seus admiradores, que gostam de olhé-lo como sendo essencial- mente um filésofo politico. A importancia do elemento — propaganda — também nao deve ser exagerada, Ndo ha razo para se descrer da sinceridade da indignagao de Burke, levantada pela descoberta da existéncia de uma certa simpatia inglesa para com a Revolugdo Francesa. Essa indignago aparece claramente, nfo s6 na sua correspon- déncia privada como nos seus escritos publicados. A opinifo, defendida por Marx e por outros, de que isso era tudo farsa, de que ele esfava-simptesmente “pasando por roméntico”® assim como ele ja tinha “passado por liberal”, ndo pode ser seriamente considerada. A premeditagdo aparece nfo ao se disfargar uma emogo que néo existe, mas ao se decidir até que ponto deve-se mostrar ao publico uma emogdo genuinamente sentida. Em certas circunstancias — se os Whigs estivessem no poder, por exemplo, e Burke com eles — dificilmente Burke “teria mostrado-se”. Mas ao decidir expor-se em piiblico, ele inevitavelmente libera forgas que nenhuma premeditacao poderia fazé-lo. Ele entrou na controvérsia como um Whig e termina como 0 {dolo dos Tories. Ele coloca seu amigo Charles James Fox em uma situagdo dificil, como anteriormente tinha feito com Lord North. E praticamente improvavel que esses resultados tenham sido preme- ditados. E mais provavel que Burke nunca tenha imaginado — até que os acontecimen- tos na Franga forneceram o teste critico — qudo profundamente ele estava em desacor- 24 Edmund Burke do com o que era fundamental na filosofia dos ingleses com quem ele tinha se aliado: ingleses, que acreditaram nos principios da Revolugdo Gloriosa e no Iluminismo, e que achavam que esses principios fossem essencialmente os mesmos ou que, pelo menos, tivessem uma origem comum™, uma rejeicdo racional 4 supersticao. ‘Nem mesmo os tories —apesar de admiré-los — pareciam melhores na sua opi- nifo. Eles eram frios e pragméticos, que defendiam uma guerra limitada com a Franca, nao empenhados com a defesa dos princfpios contra-revolucionarios. Os ultimos dias de Burke representam o fim daquele politico pratico: As Cartas sobre uma Paz Regici- da so certamente propaganda, mas uma forma estranha, pessoal e apaixonada de pro- paganda, o extravasamento profético, e até mesmo, da loucura — de um homem isola- do, inconsoladamente abandonado, fraco, mas ainda rejuvenecido pelo seu poder incomparavel de expressar sua fuiria em palavras cuja exuberdncia é até hoje impres- sionante. As Cartas sio uma propaganda viva de um homem 4 beira da morte em favor de uma “longa guerra”,>" uma guerra que, aliés, s6 terminou quase vinte anos depois de sua morte. 9 N&o é surpreendente que no nosso tempo a propaganda contra-revolucionéria contida nos ultimos escritos de Burke tenha sido usada para fins da Guerra Fria. O primeiro a perceber o potencial de Burke para o anticomunismoWo século XX parece ter sido A. V. Dicy, que, em um artigo publicado em 1918, tdo-somente substituiu “Franca” pela “Russia” em algumas das mais ardentes frases de Burke. Foi sé, entre- tanto, com o inicio da Guerra Fria na década de 40 que os trabalhos de Burke passa- ram a ser sistematicamente utilizados para fins anticomunistas e que ele passou a ser encarado e elogiado como um pensador politico. Esse processo teve inicio com a publicagfo em 1949 da “Politica de Burke”, uma antologia que continha uma introdu- ¢40 escrita por Ross Hoffman e Paul Levack. Um grupo de professores ¢ escritores americanos, incluindo um forte elemento catdlico, comegou a exaltar Burke como um grande filésofo polftico e expoente da Lei Nacional, assim como da Ordem estdvel, antevendo a Comunidade do Atlantico.” Os membros dessa escola passaram a desco- nhecer ou mesmo a minimizar o dado propagandista, polémico e pratico de Burke e supervalorizar a importancia e a consisténcia de sua “filosofia”. Eles passaram a atri- buir enorme importancia a duas frases de Hoffman e Levack: “A politica de Burke... estava baseada no reconhecimento da lei universal da razo e da justica provinda de Deus como o fundamento de uma boa sociedade. Ao fazer esse reconhecimento poe fim ao esquema maquiavélico de separagao entre Polftica e Moral...”°°. Peter J. Stan- lis, um dos mais férteis escritores desse grupo, vé o ano de 1949 como o ano da epifa- nia de Burke — como 0 infcio de uma “contra-revolucdo em bases tradicionais”, basea- da na obra de Burke. _ Um artigo de Peter J. Stanlis na Burke Newsletter — da qual Peter J. Stanlis era co-editor — afirmou que ele “nao poderia achar na teoria moderna uma frase que tivesse um efeito maior do que aquela frase de aspecto to simples escrita por Hoffman e Levack”™. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 25 Apresentar Burke como uma espécie de porta-voz semi-oficial da lei da natu- reza tem 0 efeito de dar a seus escritos uma-autoridade sobre-humana. Duvidar dos argumentos de Burke é um insulto 4 natureza, como Burke, em uma situagdo comple- tamente diferente, afirmou: “A natureza das coisas é, eu admito, um adversério resolu- to”.°5 Um aliado resoluto também. Burke assim como o “aliado resoluto” passaram a ser usados para fins politicos especificos. A Burke Newsletter, que passou a registrar 0 progresso da “contra-revo- lugdo baseada na escola de Burke”, foi, de inicio, publicada como parte da Moderna- ge, um periodo americano de direita.®) “Os escritos de Burke”, segundo o bidgrafo americano de Burke, Carl B. Cone, “é uma parte fundamental do renascimento conser- vador contemporaneo”®”. A utilidade especifica de Burke para os restauradores do conservadorismo ficou bem esclarecida por um dos seus lideres intelectuais, Russell Kirk: “A concepgao de Burke sobre a comunidade das nagdes e sobre a lei natural da necessidade de combinar esforgos contra o fanatismo revoluciondrio se aplica total- mente as circunstancias atuais desse pafs... Burke no esté ultrapassado...”” A América desempenha hoje o papel que a Inglaterra teve nos fins do século XVII, € como os ingleses na época, nds, os americanos, nos tornamos sem 0 querer, defensores da civilizagdo contra os inimigos da justica, da ordem, da liberdade e das tradigdes da civilizagdo. As nossas so obrigagSes imperiais que requerem grandes inte- lectos para sua execugao.* Os escritos de Burke, assim, se tornaram fontes para “grandes intelectos”, prepa- rando-os para as “obrigacdes imperiais”, a eles impostas pela necessidade de combater © “fanatismo revoluciondrio”. Eles fabricaram uma linguagem espléndida e anteceden- tes respeitaveis — nas sombras vulnerdveis da “lei natural” da “ordem, justiga e liberda- de” — para legitimar o imperialismo contra-revolucionério americano e para treinar pessoal para servir a essa politica,® Conservadores mais astutos do que Kirk logo perceberam que Burke nao é um aliado totalmente confidvel. Algumas dessas raz6es esto na Parte II dessa introdugao. E evidente, entretanto, que claramente expostos, os tltimos escritos de Burke, come- gando com as Reflexdes, podem fornecer um grande material para a pregac¢do con- tra-revolucionéria, adaptada aos fins imperiais, Ao fazermos a igualdade jacobino = co- munista — afirmagdo que pode ser feita sem nos afastarmos dos principios de hostilida- de de Burke ao jacobinismo —, poderemos deduzir dos ultimos escritos de Burke um repert6rio de méximas e apoio 4 politica externa — e também a outros setores — que ficou associada a John Foster Dulles e que até hoje exerce uma forte influéncia na acdo dos Estados Unidos. Para Burke, assim como para Dulles, a doutrina revoluciondria é a expresso do mal encarnado: “Aqueles que fizeram o 14 de julho so capazes de fazer qualquer mal. Eles no cometem crimes para obter seus fins, mas fabricam fins para cometerem cri- mes. Nao é a necessidade, mas a sua natureza que os leva a isso”.!°° Esse mal tem uma posi¢do central e estratégica que deve ser deslocada: “Esse mal no coragdo da Europa deve ser extirpado desse centro ou nenhum lugar em torno dele estar livre dos erros 26 Edmund Burke que se irradiam dele, e que se espalhardo de circulo em circulo, apesar das pequenas precaugSes defensivas que possam ser empregadas contra ele,”!°! E uma empresa for- midavel — a ser combatida com forcas armadas — para a subversdo de todos os valores: “Agora temos nossas armas em mdos; temos os meios de opor o sentido, a coragem, os recursos da Inglaterra ao mdximo, da forma mais astuta,na melhor combinagao e com a maior forga jé feita desde o comego do mundo, contra toda propriedade, toda ordem, toda religifo, toda leie toda a real liberdade”.!°? A doutrina malévola, as forgas armadas postas a disposigéo daqueles que professam. a doutrina e seus simpatizantes em outros paises, constituem uma ameca que deve ser encarada pela forga: “N6s estamos em guerra contra um sistema que, na sua esséncia, & inimigo de todos os Governos, que faz a paz ou a guerra, se essas contribuirem para a sua subversdo. E contra uma doutrina armada que estamos em guerra. Ela tem, por sua esséncia, apelo a opinido, ao interesse, ao entusiasmo, em todo pats. Para nds é um colosso que transpde nosso canal. Tem um pé em um solo estrangeiro e outro no brita- nico. Como essa vantagem, e se ela puder existir, prevalecerd”.!°> A luta contra uma doutrina armada é uma guerra religiosa, uma nova cruza- da.1 Ela deve ser enfrentada no somente pelas armas no estrangeiro como pela re- pressdo interna; os “‘juizes devem proibir a circulacdo de livros traigoeiros, de federa- gGes facciosas, de qualquer comunicagdo com povos fracos e desesperados em outros paises.,.!08 A teoria do dominé do Presidente Eisenhower ~ que ainda inspira a politica americana no Extremo Oriente.— teve um defensor em Burke: “Se a Espanha cai, Na- poles rapidamente a acompanhard. A Prussia é quase certo... A Itdlia esté dividida; a Suiga Jacobinizada, estou certo, completamente.”1 A guerra que ele defende contra a doutrina armada é total, violenta, ideol6gica. Ele prevé, desde logo, que uma guerra dessa espécie serd mais violenta do que qualquer guerra passada e aceita essa necessidade: “A guerra civilizada ndo pode ser praticada; nem os franceses que esto no poder podem esperd-la. Eles, cuja politica conhecida é de assassinar todo dao suspeito de ndo concordar com a tirania deles e de corrom- per as tropas dos inimigos, ndo devem esperar mudanga na nossa atitude hostil. Toda guerra, que ndo seja uma batalha, seré uma execugfo militar. Isso provocar4 uma reta- liagdo de nossa parte, e toda retaliag4o produzird uma revanche. As crueldades da guer- ta, de ambos 08 lados, serao claras. A nova escola da barbérie, instalada em Paris, tendo destrufdo todas as maneiras e princfpios que civilizaram a Europa, também destruird o modo de guerra civilizado, que mais do que qualquer coisa, distinguiu 0 mundo cristéo”.107 Do ponto de vista de Dulles e de Dean Rusk, a desvantagem da pregacdo contra- tevoluciondria de Burke é que ela vai além do que os prudentes contra-revolucionarios modemos julgam praticavel, na medida em que Burke sarcasticamente condena @ idéia daquilo que hoje chamamos “‘contengdo”. Ele nfo acredita que isso seja suficiente contra essa doutrina, é preciso destrui-la no seu centro: “ A Franga € o centro do dep6- sito e da circulagdo de todos aqueles principios perniciosos que se formam em varios Reflexdes sobre a Revoluggo em Franca 7] Estados. Seria uma loucura merecedora de piedade e de pouca valia se pensar em repri- mi-lo em um pais, quando eles sio predominantes 14”.!°8 Se os escritos contra-revoluciondrios de Burke fossem literalmente transpostos para linguagem moderna eles seriam apropriados nfo tanto para a direita moderada mas certamente para as tentativas mais agressivas da reacdo americana. Eles poderiam ser invocados em favor de uma guerra contra a Unido Soviética na década de quarenta. Eles poderiam atualmente também ser aplicados em favor de uma guerra contra a China. 10 Uma tal conclustio deve ser, por si s6, uma adverténcia contra transposigdes sim- plistas. O fato de Burke ter defendido uma guerra contra-revoluciondria contra a Fran- ga ndo permite que seus argumentos sejam legitimamente invocados em favor de uma guerra contra a Russia, China ou qualquer outro pais. Os principios comunistas sio, segundo o ponto de vista de Burke, to detestaveis quanto os principios jacobinos. AS circunstancias, entretanto, s40 completamente opostas e Burke varias vezes recusou recomendar ou apoiar agdes sem ter antes tomado conhecimento em detalhes das cir- cunstancias de cada caso: “As circunstancias (que para alguns ndo tém significado) dfo, na realidade, a cada principio politico seus aspectos diferenciadores e seus efeitos Liltimos. As circunstancias sfo os elementos que do a cada esquema politico ou civil © seu carter benéfico ou malévolo para a humanidade” e acrescenta: “Devo ver com 0s meus proprios olhos, devo, de uma certa forma, tocar com minhas proprias mfos, nfo somente as circunstancias permanentes mas também as momenténeas, antes de po- der propor qualquer tipo de projeto politico. Devo saber 0 poder e as circunstancias para aceitar, executar 0u apoiar. Devo conhecer os meios de corrigir 0 plano, para quan- do os corretivos forem necessdrios. Devo ver as coisas, devo ver os homens”.!°? Nés ndo podemos imaginar qual seria seu conselho se pudesse ver “as coisas” ¢ “os homens” de hoje. Ele certamente aprovaria qualquer a¢4o que lhe parecesse, den- tro das circunstancias, mais apropriada para evitar a difusdo dos principios e do poder comunistas. E inconcebivel, entretanto, que nas atuais circunstancias de uma balanca de terror termunuclear, ele fosse defender uma politica de guerra contra a Uniéo So- viética. E também, improvavel que, no estdgio atual das relagdes entre os varios grupos humanos, ele fosse defender uma guerra contra a China.""° Os seus escritos também nao se aplicam a polftica que aqueles que normalmente o citam com louvor esto aplican- do, ou seja, a conteng4o do comunismo por meio de uma série de intervengdes em pai- ses subdesenvolvidos. Néo é 0 fato de que Burke explicitamente condenou a politica de “contengdo” na sua época,'! que ela teria de ver rejeitada hoje também, pois circunstancias diferentes implicariam conseqiéncias diferentes. Hé algo mais funda- mental na argumentag4o de Burke que reprovaria a politica de contengdo como ela é/ aplicada. Burke distinguia entre movimentos revolucionérios provenientes da “‘devassi. do e da abundancia” e daqueles que surgem “do centro da condigao humana”. Os | 28 Edmund Burke movimentos asidticos que a politica de “contengfio” quer esmagar — como a Frente Nacional de Liberta¢do do Vietnd — dificilmente podem ser encarados como prove- nientes da “devassiddo e da abundancia”. Burke compreendia muito bem os sentimen- tos de um povo conquistado — sentimentos que ele préprio sentia e, apesar da relutan- cia, ele perdoava aquela forma de agGes revolucionérias que aparecem, de inicio, no cam- pesinato desesperado: o terrorismo agrario. Ele também compreendia a forga das leal- dades nacionais e mesmo tribais que s4o, pelo menos, tao importantes quanto os fato- tes ideolégicos para os movimentos revolucionérios de hoje. As implicagGes da politica de contengdo, ou seja, a ascendéncia mundial americana, ndo seriam muito atra para a sua visfo.1"2 Inevitavelmente haverd nessa politica um elemento de ufania, de vangl6ria, que desgostava Burke e sobre o qual ele advertiu os ingleses de sua época: “Ao se tomar precaugdes contra ambigGes, nfo seré de menos se tomar precaugfo con- tra nossa propria ambigdo. Tenho medo de sermos tao terriveis. E ridiculo dizer que no somos homens, e como homens, nés nunca deveriamos desejar a supervalorizagdo de uma forma ou de outra. Poderfamos dizer que nesse momento nfo estarfamos nos engrandecendo? Nés temos o controle de quase todo o comércio do mundo. O nosso Império na India € uma coisa tremenda. Se pudéssemos estar em uma situagdo na qual tivéssemos ndo somente ascendéncia sobre 0 comércio, mas que fossemos capa- zes de, sem o menor controle, assegurar, que 0 comércio de todas as nagGes fosse totalmente dependente do nosso humor, diria que nao estarfamos abusando desse poder impressionante. Mas todas as nagées pensardo que esto abusando desse contro- le. Nao € impossivel que proximamente esse estado de coisas provoque uma alianga contra nés que poderd terminar na nossa ruina.”""9 Essa passagem parece que passou despercebida a Russell Kirk quando ele invocou a autoridade de Burke e a Inglaterra de sua época para legitimar as “obrigagdes impe- riais” americanas de hoje. Burke foi um contra-revolucionério mas nao pode ser facil- mente taxado de imperialista, j4 que ele mostrou um profundo repidio as formas contemporaneas da psicologia imperialista, néo somente em relacdo 4 América, nos seus primeiros estudos — uma América, na época, objeto do imperialismo, e no a sua fonte — mas também em relacao a India e a Irlanda nos seus tiltimos escritos e as impli- cagdes de uma tal psicologia para o proprio poder imperial. Nao se pode legitimamente invocar a autoridade de Burke para apoiar qualquer politica a ser aplicada em circuns- tancias por ele desconhecidas. No caso especifico, ¢ ainda mais inadmissivel querer aplicar seus escritos para legitimar uma politica que contém elementos por ele total- mente repudiados, ou seja, a extensio das obrigagdes imperiais, a repressdo de movi mentos agrdrios espontaneos, a supremacia, a ufania.!* Talvez se pudesse argumentar que a pratica, atualmente, da contra-revolugdo requer aquilo que ele nfo aprovava: a expansao do imperialismo. A realidade moderna, segundo esse argumento, coloca o nticleo central da infecgao revolucionaria fora de controle. Tudo o que pode ser feito é evitar que a infecgdo atinja outras areas. Alguns paises — sobretudo os desenvolvidos, os paises industrializados, Europa Ocidental e Japdo — tém condigées de, por seus proprios meios, evitar o contdgio. Os paises que ndo esto nessa posig&o, as nagdes pobres, sobretudo, no tém condigéio de de- fesa, o que leva a necessidade de um “‘protetorado”, direto ou indireto, das poténcias Reflexes sobre a Revolugdo em Franga 29 contra-revolucionérias sobre eles. Essa presungdo de autoridade € provavelmente cha- mada de “ajuda” ao invés de imperialismo, mas ela contém a esséncia do dominio imperial: a Ultima palavra nao é a do nativo, mas a de um estrangeiro. / $e a contra-revolugdo requer, nas atuais circunstancias, o imperialismo, entdo o pensamento de Burke tal como ele chegou a nés nio seria aplicado hoje, jé que as cir- cunstdncias sfo diferentes daquelas vigentes quando da sua formulacdo. Podemos, entretanto, afirmar que um conservador que teme a expansio desmesurada dos poderes de seu pais — como o Senador Fulbright — pode invocar amparo em Burke com igual validade que os praticantes da conten¢Zo contra-revolucionéria. 1 O modo como um escritor é lido e seus estudos postos em pratica é um assunto de maior importancia do que a forma pela qual ele deveria ser lido ou até que ponto nossas ilagGes prdticas possam ser legitimamente creditadas a ele. Ndo hd diivida de que hoje Burke é lido e admirado basicamente como um conservadoye ym contra-revo- luciondrio, dispontvel para apoiar ¢ legiti comunismo, Nao foi sempre que o Burke encarado como contra-revoluciondrio apareceu como tendo funda- mental importancia. Durante século XIX; ndo s6 os liberais como 0. conservadores apoiaram-se nos seus conceitas."# Aquele etemento “subversivo” em Burke, que sali- entamos em felagdo a Irlanda, amedrontava alguns conservadores do século passado. Morley retrata em um de seus escritos que quando Gladstone estava ponderando sobre a aplicagdo da lei de autonomia local da Irlanda (Home Rule) ele leu Burke e fez algu- mas anotagdes. “Podemos imaginar”, escreve Morley, “como o calor daquela fornalha profunda e encandescente influenciou mais ainda os fins ¢ agilizou as decisées de Glad- stone”. O Duque de Argyll escreveu para dizer que estava muito triste com os escri- tos de Burke: “O seu perfervidum ingenium Scoti no precisa ser tocado com carvao em brasa daquele altar irlandés”."16 Se na relativa estabilidade politica da Inglaterra no século XIX, Burke aparecia como radical € quase revolucionério, em lugares onde as condigdes apresentam reais ameagas revolucionérias aumenta o interesse por Burke no seu aspecto contra-revo- luciondrio. Isso era verdade na Europa do século XIX. O tradutor alemao das Refle- x6es, Friedrich Von Gentz (1768 — 1832) era conselheiro particular de Metternich e principal secretério do Congresso de Viena, e os escritos contra-revolucionérios de Burke, junto com os de Maistre e Bonald — deram a inspiragdo aos Ifderes e propagan- distras da Santa Alianga. Nao € supreendente, dessa forma, que os defensores atuais de uma nova Santa Alianca — de uma policia internacional em uma escala nunca sonhada por Metternich — tentem levantar, nesse aspecto, o interesse pablico por Burke. Esse € 0 significado da famosa “contra-revolugdo na obra de Burke” que tenta liberar o campedo da contra-revolugo daquilo que Peter J. Stanlis chamou “do grande lamagal servo da escola positivista sobre Burke”. Isso significa que 0 complexo Burke que a Inglaterra do século XIX conheceu, o escritor que pode inspirar Gladstone e amedron- tar o Duque de Argyll, passou a ser repudiado em favor de Burke sem contradigdes ou 30 Edmund Burke paradoxos, a pura esséncia do pensamento conservador, para a inspiracdo dos herdeiros intelectuais de Metternich.""” E incontest4vel que aqueles que advogam ou aprovam a contra-revolugéo mo- derna se interessam enérmemente pelas Reflexdes. Mas por que aqueles que se op6em 4 contra-revolugao moderna ¢ ao novo conservadorismo que est entre as mais aceitas expressdes intelectuais devem ler o primeiro manifesto contra-revolucionério moder- no? O fato de que tal questo possa ser levantada evidencia uma fraqueza profunda e consolidada do pensamento esquerdista. O direitista inteligente nfo se pergunta as raz6es para ler Marx ou marxistas. Ele os lé porque as obras sfo importantes e ele esta no lado oposto. Ele aprende, e, por vezes, recebe conselhos; um burgués alemao, por exemplo, aprenderia ao ler Marx e Engels que nio seria inteligente proceder radical- mente a aboli¢So dos vestigios feudais no século XIX. O direitista inteligente faz uso das conclusées marxistas — como geragGes de historiadores burgueses fizeram — mas para 0 seu préprio proveito, como Guderian fez uso de De Gaulle. Ele aprende dos seus adversérios sobre as fraquezas e as forgas de sua posigdo — e também as do outro lado. O intelectual de esquerda, por outro lado, apesar de notaveis excegdes, tem uma grande tendéncia a negligenciar seus adversdrios e a evitar mesmo seus escritos mais influentes. Isso é associado, acredito, com uma outra caracterfstica marcante da es- querda, ou seja, ndo entender ou subestimar as forgas opostas. De fato, a esquerda deve- tia ler as Reflexdes tio atentamente quanto a direita tem lido o Manifesto Comunis- ta. O fato de o manifesto de Burke ter iniciado o primeiro movimento contra-revolu- ciondrio moderno e que ainda € mencionado como apoio para a contra-revolucZo mo- derna deveria ser uma 1azdo suficiente para se estudar esse manifesto com cuidado. O que aqueles que nfo concordam com sua linha de racioc{nio poderiam apren- der ao ler Burke? Nao é, certamente, um sistema de filosofia polftica. Burke, na sua obra, foi sistematicamente assistematico e os varios sistemas denominados “filosofia de Burke”, construfdos por formalistas pedantes, desprovidos dos componentes bombés- ticos de sua ret6rica e as generalidades de sua educacdo, sfo tristes, aborrecidos e sem valor. Nao procuramos, também, em Burke uma andlise da Revoluggo Francesa.Como decorréncia da leitura dos arquivos e dos trabalhos realizados por varios historiadores, sabemos, hoje, ou pelo menos, podemos saber, mais sobre a Revoluco Francesado que qualquer contempordneo da época poderia ter sabido. Mesmo que Burke tivesse sabido mais do que ele aparentou, ainda assim as Reflexdes nfo seriam interessantes como andlise hist6rica porque ndo foi para isso que elas foram escritas, Burke deliberadamen- te rejeitou “a forma pacifica de inquérito”, ele estava disposto a, quando necessério, praticar uma “economia de verdade”. Suas palavras nfo so as de uma anidlise, elas so tipicas de uma persuasfo premeditada. Nao é, entretanto, um esforgo comum de per- suasdo. E, como Burke afirmou, “o tiltimo fruto maduro da mera experiéncia”. A argu- mentagfo explicita de Burke é de menor importancia do que a experiéncia que provo- cou essa afirmagdo, ou seja, um conjunto de sentimentos adquiridos em relagdo as grandes forcas politicas e suas particularidades. A percepgdo das grandes forcas atinge 9 nivel do profético. Durante minhas aulas sobre Burke na Universidade, percebi que os alunos acreditavam que as Reflexdes tivessem sido escritas ao final da Revolugio Reflexdes sobre a Revolug#o em Franga 31 e no na época na qual efetivamente foram escritas, como se os massacres de setembro, a execugdo do Rei e da Rainha, o terror jé tivessem ocorrido, apesar de terem sido, como realmente foram nos escritos, tfo-somente previstos. Essa crenga, entretanto, é fruto nfo somente do desconhecimento do aspecto profético de Burke como também em decorréncia da sua retérica literdria. Ele exagerou o que jé tinha efetivamente ocorrido, mas o fez de uma forma como se eles ainda no tivessem ocorrido. O contras- te é extraordindrio entre os pressdgios sombrios de Burke, em 1790, e o tom dos seus contempordneos pr6-revoluciondrios, Paine e Cloots, que escrevem, nessa mesma épo- ca, para afirmar que o movimento estava findo e que a Revolugdo gloriosa e quase pacifica estava completada. As mudangas e “as varias situagdes novas” que foram previstas por Burke levaram A sentenga de morte de-Paine e Cloots ¢ a propria execugdo de Cloots na guilhotina. Burke nfo somente previu 0 aumento da violéncia e uma guerra, mais sangrenta que todas as outras, mas também previu o surgimento de um déspota militar, o que realmente ocorreu nove anos apés ter escrito, e dois anos apés a sua morte, no 18 de Brumério de 1799. A verdade é que — e esse aspecto é geralmente esquecido pelos admiradores de Burke — essas profecias foram, em grande parte, por si s6 cumpridas. A hostilidade contra a Revolugdo Francesa que Burke deliberadamente procurou incentivar, e a guerra contra a Franca revolucionéria, que Burke persistente- mente pregava, levaram a Revoluc&o a assumir formas mais violentas e criaram a neces- sidade de uma ditadura militar. Isso, entretanto, no diminui 0 cardter de previsio das afirmagdes de Burke. A reacdo estrangeira contra a Revolugdo Francesa e a resposta re- voluciondria a essa reagSo estavam entre os fatores por ele alegados, j4 que suas afirma- ges sobre a natureza da guerra contra-revolucionéria mostravam que ele estava cons- ciente do funcionamento da dialética da violéncia. Ele sabia que haveria dentro da Franga uma utilizagdo da forca patriética do pais contra a invasio programada. “A Franga esté fraca, dividida e convulsionada”, ele escreveu em janeiro de 1791 “mas Deus sabe que, quando se trata de um pais, os invasores poderao descobrir que sua campanha nfo era de dar apoio a um partido, mas de conquistar um Reino”. Ele previu uma “longa guerra”, ele sabia que sua civilizagfo “estava no inicio de uma era de revoltas”. Pois, com o poder de sua inteligéncia e a dimensfo de sua imagi- na¢fo, ele tomou conhecimento das dimensdes daquilo que teve inicio em 1789. Os seus contempordneos acreditavam que ele estava exagerando, e de uma certa forma, estava, mas na medida em que os eventos vieram a comprovar sua previsdo, ficou claro que “‘aqueles que ficaram impassiveis” é que ndo tinham compreendido. A sensibilidade de Burke para os detalhes e para a politica rotineira ndo é menos remarcdvel do que sua sensibilidade para as grandes causas. As duas, entretanto, sfo inter-relacionadas e formam uma intuigdo politica de sensibilidade inigualével. Uma simples observagdo de Burke é, as vezes, mais rica em conselhos polfticos do que todo um tratado de certos analistas abstratos. As Reflexdes so ricas naquilo que ele cha- mou de “os ultimos frutos maduros”. Algumas vezes, seus comentdrios se apresentam como uma investigago do cardter intimo de seus adversérios: “Vocé rird da coeréncia de alguns democratas que, quando esto descontra{dos, tratam as classes mais humil- 32 Edmund Burke des com grande desprezo, ao mesmo tempo em que querem fazé-las depositirias do poder”. Ja algumas vezes, essas investigagdes produzem aforismos como o que se segue sobre os homens de letra e sobre a esquerda: “Os homens de letra, desejosos de ficar em evidéncia, so raramente contrdrios 4 inovagdo”. Algumas vezes é uma generalizacdo, decorrente de uma clara compreensao da realidade politica, como a passagem que se segue. classica definigdo do cardter essenci- almente burgués da Revolugdo Francesa: “A totalidade do poder obtido por essa revo- lugdo ficard nas cidades com os burgueses ¢ com os donos do capital que os lideram™ Exemplos desse tipo poderiam ser multiplicados. mas é to errado transformar as “Reflexdes” em uma antologia como a tentativa de parafrased-las ou sistematizd-las. Elas devem ser lidas como um todo. um perfeito trabalho de arte politica. 12 “Nao hé politico s4bio, que ao ter de tomar uma importante deciso™, escreveu Harold Laski. “ndo procure aclarar suas iddias discutindo com as idéias de Burke”. “As varias posigdes “liberais” de Burke nda devem fazer-nos esquecer que Burke era efe- tivamente. de coracdo, um conservador extremo, que confortou mentes liberais muito mais por seu temperamento generoso e compreensivel que. nas horas importantes, 0 afastava daquele ponto no qual suas convicgdes se sentiam seguras. do que pela marca de sua compreensio”. Esse elogio é retumbante. principalmente porque provém de alguém que esté fora dos circulos conservadores ou liberal-conservadores. Nao acredito, entretanto, que o esforgo de Laski para explicar o porqué da aceitacdo de um “conservador extre- mo” pelas “mentes liberais” tenha sido satisfat6rio. A generosidade e a compaixdo de Burke ndo eram to grandes como procura demonstrar Laski, Ele certamente foi um homem generoso e décil nos seus assuntos particulares e mesmo civis — ele conseguiu muita impopularidade ao se opor a deciséo de por homossexuais no pelourinho — mas na politica ele chegou a ser cruel, j4 que ndo hé nada de compreensivel e generoso ao se pregar uma “longa guerra” — cujo cara- ter destruidor foi por ele constatado além de uma repressdo interna severa. Também ndo € muito claro que ele tenha sido um conservador extremado. E certo que nos seus liltimos dias de vida ele o foi, mas é dificil de se provar que essa seja a situagdo “na qual suas convicgdes se sentiam seguras”. Nao estou plenamente convencido de que ele se sentia bem consigo mesmo: seus contemporaneos ndo o viam dessa forma — eles freqiientemente o chamaram de histérico — e pessoas seguras de si mesma ndo so sempre to ativas como Burke foi. A cadéncia de sua prosa e a durea que envolve 0 século XVIII produziram uma ilusdo, ou seja, olhamos Burke de uma forma mais ama- wdurecida do que realmente ele foi. Seria surpreendente que Burke realmente tivesse sido um “conservador extremo”, jé que ele sempre foi um estrangeiro, originario de um pais cujo povo era oprimido e cujo governo dominante ele sempre procurou atacar, Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 33 Nao so essas as melhores condigdes para o surgimento de um conservadorismo plena- mente aceitdvel. Mary Wollstonecraft estava com a razdo quando olhava Burke como um homem que “poderia ter sido um revolucionério violento”. Ele nunca se tornou um revoluciondrio, mas a condi¢do de rebelde frustrado o incomodava, sobretudo, em relag&o aos problemas irlandeses. Nao foi o caréter pecu- liar de seu temperamento, mas a peculiaridade de uma situagdo — que chamei de jaco- bita versus Whig — que formou seu conservadorismo. Pode-se também especular que as contradigées da situagdo de Burke enriqueceram sua eloqiiéncia, aumentaram seu alcance, aprofundaram sua sensibilidade, aumentaram sua fantasia e tornaram possivel aquela estranha atrag&o exercida sobre “‘os homens liberais”. Em decorréncia dessa interpretacdo, uma parte do segredo de seu poder de penetrar no desenvolvimento da tevolugdo deriva de uma recalcada simpatia pela revolugdo, combinada com uma per- cepeao intuitiva das possibilidades da propaganda contra-revolucionéria, na medida em que afeta a ordem vigente no seu pais de origem. Isso dé ao seu “conservadorismo extremo” um cardter particular, totalmente diferente de outros reaciondrios europeus, como Maistre e Bonald. Ao contrario desses, Burke tinha razGes para saber qual seriam ‘0s sentimentos de um revolucionério, pois as forcas da revolugdo como da contra-tevo- lugdo existiam nfo somente no mundo como também dentro dele proprio. Connor Cruise O'Brien Notas 1. A primeira das “Cartas sobre uma Paz Regicida (1796); trabalho V, p. 155; Marx devia co- nhecer essa passagem, pois conhecia alguns trabalhos de Burke. Ha uma passagem violenta sobre Burke no “Capital”: “O camaledo, pago pela oligarquia inglesa, se passou pelo roman- tico laudator temporis acti contra a Revolucao Francesa, assim como pago pelos rebeldes das Colénias americanas, se passou por liberal contra a oligarquia inglesa, foi um burgués vulgar € repulsivo” (Capital, I, Moscou 1954, p. 760, n° 2), Antes ele tinha descrito Burke como aquele a quem ambos os partidos na Inglaterra olhava como 0 modelo do estadista inglés (N. Y. Daily Tribune, dezembro de 1855). Do ponto de vista marxista ndo ha obviamente contradigdes entre essas duas descrigées. 2. “Mas como a habilidade é um principio ativo ¢ rigoroso, e a propriedade ¢ apatica, inerte € timida, essa dltima s6 poderd estar a salvo dos assaltos da habilidade na medida em que ela predomine, além de qualquer proporgao, na representagdo” (Reflexdes). 3. Vide a Carta a um Nobre Lorde (1796). Works V, pp. 110-154. 4. Marx, nos seus primeiros anos, aplicou as liges da Revolugao Francesa muito esquematica- mente, como demonstrou seus escritores para o Rheinische Zeitung e The Civil War in Fran- ce. No seu. The Brumaire of Louis Bonaparte, entretanto, de uma forma deliberada, ele mos- tra claramente como a grande Revolucdo influenciou a sua época. 5. Vide como exemplo a passage (Reflexdes) sobre a ascendéncia de especuladores financei- tos: “E aqui que terminam todos os sonhos decepcionantes, todas as quimeras da igualdade e dos direitos do homem. Eles desaparecem no “lamagal servo dessa vil oligarquia, af sio ab- sorvidos, afundados e perdidos para sempre". Vide também a discussio sobre a participacio do Terceiro Estado ¢ suas implicagdes: ‘Assim que tomei conhecimento de tal lista, vi distin- tamente € quase como de fato ocorreu, tudo aquilo que ocorreria”. 6. “Carta & Imperatriz da Rissia (1791)”, corr. VI, pp. 441-5, 448. Ele tinha certas reservas pessoais. 7. Reflexes, pp. 194-195. 0 longo trecho no qual essa passagem estd incluida ainda tem um grande apelo para todos aqueles que admiram as varias formas de sociedade tradicional. Um brilhante escritor africano. Ali al Amin Mazrui, afirmou que nessa passagem Burke se apre- senta como um africano, préximo néo daquele afticano educado nas universidades euro- 36 10, 13. 14, 15. Edmund Burke éias, mas do africano que ainda vive nos moldes tradicionais (Comparative Studies in Socie- ty and History, vol. 1, n® 2, jan. 1963). A argumentagdo de Mazrui sobre a compatibilidade da doutrina de Burke com o pensamento tradicional africano é seguramente forte, as suas tentativas, entretanto, de aplicar os principios de Burke no Congo foram prejudicadas pela inadequagao das informagées por ele obtidas, 0 Acordo de Tananarive de 1960 néo foi, co- mo ele pensou, um ajuste intertribal, mas uma tentativa de compromisso entre forcas inter- nacionais. Correspondence VI, pp. 9-12. Esse foi o primeiro comentario conhecido de Burke sobre a Revolugio. Os editores da Correspondence VI comentaram: “Em 1769, Burke, a0 descrever as dificulda- des financeiras da Franga, escreveu: “Nenhum homem, acredito, que tenha um pouco de atengdo com seus negécios, mas que deva procurar por alguma convulsio extraordindria no sistema como um todo, o efeito disso tudo na Franca e, mesmo, em toda a Europa, ¢ dificil de imaginar” (Corr. VI, eds, Cobban e Smith, p. 10, n9 2). Essa € a carta de “outubro de 1789" mencionada por Burke no seu prefécio. Cobban e Smith, entretanto, estabeleceram que cla foi escrita em novembro, mas provavelmente s6 enviando no fim daquele ano. (Corr. VI, pp. 39-50). s editores da Correspondence VI acreditam (p. 78) que “‘tenha escrito por volta da tiltima quinzena de janeiro de 1790. Eles também mostram que Burke s6 leu os discursos do Dr. Price e as correspondéncias da Socie tade Revoluciondria apés a sua chegada & Londres para as sessdes do Parlamento no dia 21”. Cert. VI, p. 81. A conclusio da carta parece mostrar a influéncia desta leitura. No més de margo do ano seguinté & aparigZo das Reflexes, a Sra. Burke orgulhosamente re- Petia para seu cunhado uma conversa com George III: “Vocé tem sido de grande valia para 1nés todos e isso é a opinido geral, nao é verdade Lorde Stair?... F, disse ele; ~ Se Vossa Ma- jestade a adotar, verdadeiramente geral — disse Ned, ela se tornard. Eu sei que essa é a opi- nido geral, e também sei que ndo hé ninguém que possa autodenominar-se Gentleman que no se sinta vinculado a vocé, pois foi vocé que defendeu a causa dos Gentleman. (Carr. VI, pp. 237-9, Jane Burke para W. Burke, 21 de marco 1791). Alguns meses antes, Burke afir- mou que tinha recebido “do Duque de Portland, Lord Fitzwilliam, do Duque de Devonshire, Lorde John Cavendish Montagu e de outros membros do partido Whig, uma aceitagao total dos prinespios daquele estudo (As Reflexdes) e uma indulgéncia para a sua execugéo" (Corr. VI, pp. 176-80, para Sir V. Eliot, 29 de novembro de 1790). (Uma pensio de funcionirio puiblico de cerca de £ 1.200 por ano, a partir de 1795, Em uma carta enderecada a Fitzwilliam, apés 0 desentendimento com Fox, Burke recrimina Fox por ter afirmado “que eu néo tinha nenhum motivo para explicar a minha luta, nos iltimos dois anos, contra a propagagdo dos principios franceses nesse Reino, a ndo ser a.suborno que re- cebi dos Ministros”, (Corr. VI, pp. 271-6, 5 de junho de 1791). Vide nota I, p. 1, Marx cita a obra de Burke Thoughts and Details on Scarcity (1795, leis do comércio, que so as leis da natureza sio, também, em conseqiléncia, leis de Deus”. “Nao é de se admirar”, completou Marx, “que obedecendo as leis naturais ¢ divinas ele te- nha se vendido ao melhor prego”. (Capital, I, p. 760 n° 2). Vide Dixon Wecter Edmund Burke and his Kinsmen: A Study of the Statesman’s Financial Integrity and Private Relationship (Boulder, 1939). “Sem fazer uma acusagdo séria contra 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24, 25. Reflexdes sobre a Revolugfio em Franca 37 esse impressionante ilandés, baseada em puro interesse egoista”, escreve Wecter, “pode-se relacionar sua defesa da Companhia das Indias Orientais, entre 1766 € 1772, com seus inte- resses familiares e, em parte, aos “Fundos da Companhia”. O seu dltimo ataque contra 0 or- ‘gulho e arrogincia dessa Companhia em incentivar 0 projeto de lei de Fox sobre as Indias Orientais e o subseqiiente impeachment de Hastings com o fato de que Will Burke (parente ¢ amigo de Edmund) deixou de ser um especulador londrino para tornar-se um “funciondrio Piiblico na India, Ao fazer um comentario sobre a investigagao de Wecter nas financas de Burke, 0 Professor Copeland afirmou “... é facil de perceber que na ocasifio, Ricardo (irmio de Edmund) e Will nao honravam os seus compromissos financeiros. Edmund, apesar de nunca ter-se provado que ele estivesse conscientemente envolvido, estava tio associado com 0s dois, que inevitavelmente levaria parte da culpa que cabia aos dois". (Edmund Burke: Six Essays. Londres, 1960). A Vindication of the Rights of Man (1790). O filho de Burke, Ricardo ~ apesar de aberta- mente apoiar a politica do pai achava que poderia obter vantagens em decorréncia de uma Tevolugdo: “Eu vejo com muito interesse e com bons olhos as mudangas que ocorreram na Franga... ou em qualquer outro lugar” (Sheffield Papers; R. Burke Jr. para Fitzwilliam, 20 de julho de 1780). Corr. VI, pp. 39-50; resposta a De Pont, novembro de 1789; vide acima pp. 14-15. Burke, de inicio, hesitou em enviar a carta porque “em épocas de inveja, a supeigao é fato notério”, mas acabou por envid-la aps tomar conhecimento da diminuicdo das tensdes. R. R. Fennessy, O. F. M.: Burke Paine and the Rights of Man, Haia, 1963, (pp. 193-4). 0 “Journal of a Tour to the Hebridis”, de Boswell, de 15 de agosto de 1773. Coleridge pensava da mesma forma: “nenhum homem foi mais coerente consigo mesmo do que Burke” (Essay on the Grounds of Government, 1809). Tom Moore, por outro lado via-0 como uma pessoa que, nos seus estudos ¢ na sua vida, procurava uma identidade mo- ral. (“Memories of Sheridan”, 1825). Moore, diferentemente de Machintosh que era mais politico, via nas atitudes de Burke em relago @ Revolugdo Francesa uma completa ruptura com sua posicao anterior. Edmund Burke: “Six Essays” Burke sofria vérias pressdes por parte de sua familia: 0 seu filho, “enojado” de toda a huma- nidade, seu irmao, muito parecido com seu filho, e seu primo Will Burke... um ataque a qual- quer pretensio de poder que Burke pudesse ter tido. A Sra, Burke tinha a seus cuidados a Srta. French que era a mais “perfeita” das irlandesas. (St. G. Elliot, 2 de maio de 1793 - Life and Letters of Sir G. Eliot, ed. Condessa de Minto, Londres, 1874. Il, 136). Life and Letters of Sir. G. Elliot, op. cit. Il, 140. “Sheffield Papers.” Corr. V, pp. 470-74; 8 € 9 de maio de 1789. A referéncia é para a vitéria eleitoral de Pitt naquele ano, para a qual a influéncia dos dissi- dentes contribuiu enormemente para a derrota dos Whigs € conseqiientemente para o isola- mento de Burke nos seus iltimos dias. “Sheffield Papers.” 38 21. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34, 35. 36. 37. 38. 39. 40. Edmund Burke Carta a um membro da Assembiéia Nacional (1791). Works II, p. 549. Cort. VI, pp. 67-75, 109-15; Paine para Burke, 17 de janeiro de 1790... Cloots para Burke, 12 de maio de 1790... “Deixe a sua Ilha, meu caro Burke, venha para a Franca”. Cort. VI, pp. 82-5 para R. Bright de 18 de fevereiro de 1790. A violéncia de seus ressentimentos pessoais apareceu no fim da segunda Carta para Bright. / Para Burke, 0 apoio a petigdo dos dissidentes seria “um mau exemplo, e uma tendéncia imo- ral ao se mostrar aos homens que algumas pessoas podem perseguir ¢ caluniar seus amigos verdadeiros... ¢ mesmo assim fazer uso de suas virtudes para servir aos seus interesses. Esse, ‘meu caro Senhor, é um péssimo exemplo”. Um contemporneo via essa frustracdo e essa vaidade ferida como as causas das “Reflexdes”. “*Vocé foi o Cicero de um dos lados da Casa por muitos anos”, escreveu Mary Woustonecraft, “o fato de ter ficado no esquecimento e ver suas honrarias desaparecerem foram capazes de fazer surgir, ¢ levarem voos a produzir as “Reflexdes...” (A Vindication of the Rights of Man). Disraeli, em Lybil, adotou uma interpretagdo parecida. “Burke jogou todas as forcas de sua vinganga contra o centro agitado do cristianismo”, etc. Vinganga contra Fox por ter tomado a tideranga Whig de Burke, afirmava ele. A discusso no terminou com a publicagdo das Reflexdes Em 1791, ele escreveu que “aquilo que eu vejo com seriedade é a estrutura de partido que existe no grupo de dissiden- tes” e estima que 90% do grupo preg os principios da Revolugdo francesa. (Corr. VI, pp. 481-22; para Dundas em 30 de setembro ae 1791). Reflexées, p. 157. © nome Burke é de origem normanda, tendo sofrido influéncia gaulesa. “O pai de Burke”, afirma Sir Philip Magnus, “provém de uma familia com grandes inter-relagdes com a popula- 40 celta do pais" (Edmund Burke: A Life, London, 1939, pp. 1-5). Em 1765 08 inimigos de Burke informaram ao Duque de Newcastter, que, por sua vez, infor- mou Rochingham, que Burke era um papista educado pelos jesuftas. Burke, ao negar esse fa- to, ofereceu sua rentincia a Rochingham que a recusou. (Carl B. Cone, Burke and the nature of Politics: The Age of the American Revolution). Corr. VI, pp. 214-16; escrita a um desconhecido em 26 de janeiro de 1791. Reflexdes, p. 135, “amor ao pequeno pelotio ao qual nés pertencemos na sociedade que ¢ 0 primeiro principio (o germe pot assim dizer) de nossas afeigdes publicas”. Basil O'Connel. “The Rt. Hon. Edmund Burke... a gasis for a pedigree”, “Journal of the Cork Historical and Archeological Society,” vol. LX, pp. 257-74, janeiro-junho 1956. W. B. Yeats nos seus dltimos anos achava que Burke assim como Swift, Berkeley, Goldsmith, Grattan e Parnel — ‘eram Glorias da tradigdo anglo-irlandesa protestante. (Vide “The Senate Speeches of. W. B. Yeats”, ed. Donald R. Purce, London 1961). O Burke real no pode ser enquadrado nessa categoria. W. B. Yeats op. 41. 42, 43. 45, 47. 49. 50. 51. ReflexSes sobre a Revolu¢fo em Franca 39 Ricardo procurava influenciar o presidente do partido Whig para que ele repreendesse Fox € Sheridan, lideres Whigs na Cimara dos Comuns, que tinham enaltecido a Revolugio. Ele es- creveu sem o consentimento do seu pai, mas como afirmou “eu sei que exprimo néo s6 os meus sentimentos, mas também os dele”. Fitzwilliam afirmou, entretanto, que cabia a ele a determinaco da hora e da conveniéncia de qualquer reprimenda (julho e agosto de 1790). A expressio nio é, de todo, retérica. E, entretanto, surpreendente a freqiéncia das argumentagSes de Burke em relacéo & Re- volugio que sio baseadas em termos sobrenaturais ou peculiares. Os lideres revolucionérios foram “arrancados como por encanto das posigdes mais inferiores da hierarquia” (Refle- x6es); “eles sfo daqueles que esquartejam seus parentes e os poem em uma fornalha” (ibid). Em cartas particulares ele chama a Revolucdo “dessa coisa estranha, inomindvel, selvagem ¢ entusiéstica”” Ganeiro de 1791) e de “vil quimera, sonhos sujos de um Governo” (setembro de 1791); os amigos da Revolugfo na Inglaterra slo a “facco infernal” (setembro de 1792); sua imprensa de “Jornais do inferno” (outubro de 1792). Nos seus diltimos anos, como era de se esperar, essa imaginacdo se torna mais obsessiva — vide a passagem que comega por “A Revohugéo. odienta na Franga provém das trevas ¢ do inferno”, em “uma Carta a um Nobre * (1796); a passagem sobre o “espectro”, na primeira “Carta sobre uma Paz Regicida” ‘0 alcance questiondvel” (“Segunda Carta”, 1796). E da ditima “Carta” ndo termi- : “Na minha época, eu sempre caminhei em um terreno maravilhoso. Tudo é novo e de acordo com a palavra da moda, revolucionéria”. Burke também usa palavras assustadoras so- bre a Irlanda. “Sheffield Papers”; C. 6 de dezembro de 1796. “Sheffield Papers”; para Hussey, 18 de maio de 1795. Para Hussey, C, 6 de dezembro de 1796. Ndo hd dividas de que Burke pensava nos catdlicos irlandeses quando escreveu essa passagem: ele via os dissidentes Irlandeses como um gripo privilegiado. T.H. D. Mahoney, Edmund Burke and Irland, Londres, 1960, p. IX. “Sheffield Papers”, para Thomas Burgh, Ano Novo, 1780. Ele afirmou que quando notou que sua esperanca tinha desaparecido “todo o brilho de minha imaginagio se escureceu, € me senti espoliado”. “Letter to the Rt. Hon. Edmund Parry (1778); Letter to a Pur of Irland” (1782); Letter to sit Hercules Langrishe (1792); Letter to William Smith (janeiro de 1799); “Second Letter to sir Hercules Langrishe (1795); Letter to Richard Burke (1792). “Works V', pp. 486, 491, 510, 282; III, p. 298; VI, pp. 49, 56,61. E duvidoso que uma eloqdéncia do nivel apresentado nas Reflexdes possa ser mercenéria. ‘Um-Embaixador de um pequeno pais, mas diplomaticamente significativo, discutiu como ‘autor a sua posigo. Ao chegar a conclusfo que seus argumentos eram inaceitiveis, ele afir- mou: “Eles me pagam para dizer certas coisas, mas porque insistir? Eles ndo me pagam tan- to”. Works V1, pp. 61-80; datada pelo Dr. J. A. Woods como tendo sido de antes de 19 de feve- reiro de 1792. Compare a concepgfo altamente ideal da histéria irlandesa no famoso “Discurso sobre a Conciliagfio com as Colénias" (1775); Works I, p. 450: “Nio foram as armas inglesas, mas a 52. 53. 54. 5S. 56. $7. 58. 59. 60. 61. 62. Edmund Burke Constituigio inglesa, que conquistou a Irlanda. No mesmo discurso Burke utiliza o puritanis- mo do protestantismo em algumas colénias como argumento em seu favor. Esses pontos de vista esto em contraste com 0 tom dos seus tiltimos escritos. ‘A preocupagio e a ambigiiidade de Burke, em relacdo ao impacto da Revolugio Gloriosa na Irlanda aparecem claras em uma passage de uma carta, jé citada, escrita a Richard Burke. Burke néo “tenta defender” os irlandeses pela sua rebeligo contra o Parlamento inglés, mas acredita que “‘a moderagdo” deverd ser admitida, que os irlandeses resistiram ao Frei Gui- Iherme “baseados nas mesmas razGes que os “ingleses ¢ escoceses resistiram ao Rei Jaime”, ¢ finalmente que os “irlandeses catdlicos teriam sido os piores e mais antinaturais dos rebeldes se ndo tivessem apoiado o Rei Jaime”. “O mais perfeito protestante é certamente aquele que protesta contra toda a religido cristd.” (“Letter to Sir Hercules, Langrishe,” 1792: Works III, p. 313). Vide também as referéncias sarcasticas em “Letter on the Affairs of Inland” (1797) em relagdo ao “‘Diretério Protestante de Paris... e a0 her6i protestante, Bonaparte...” (Works VI, p. 87). Em um contexto inglés, entretanto, Burke nas Reflexdes escreve como um protestante, mas que ndo condena violen- tamente o sistema romano de religigo. (pp. 257-70). Burke procurou — sem sucesso — utilizar a Revolugdo americana da mesma forma. A perse- Buigio de uma “nagdo” — como ele descrevia os catélicos irlandeses — talvez tenha jé sido conduzida com seguranca: “Mas hé4 uma revolugdo nos nossos assuntos que a faz justa.” (Speech at Bristol, 1780; Works II, p. 155). Obviamente que no é dito que Burke fosse politicamente um jacobita, jé que ele era um homem muito pratico para assumir uma posicdo dessa. O ponto a ser salientado é que, emo- cionalmente, ele era simpatico a causa dos catélicos irlandeses, cuja lealdade jacobita estava na base das penalidades ainda impostas na época de Burke. Vide Carl B. Cone, “Burke and the Nature of Politics: the Age of the French Revolution”, pp. 487-8. Burke passou a ser olhado “como o chefe e talvez como o-tinico defensor das me- didas favorsveis aos catdlicos irlandeses”, “E abominavel; mas hoje é certo que a defesa catélica é 0 tinico obstaculo a ascendéncia pro- testante”, “Sheffield Papers”, Burke para Hussey, 18 de janeiro de 1796. “Defesa” era o ter- mo utilizado para a forma de terrorismo agrério praticado na Irlanda. Trinta anos antes, pa- rentes de Burke tinham sido acusados de participagdo em um movimento similar a0 do “White Boys”. Corr. I, p. 1478. Carl B. Cone, op. cit. pp 512-16. Primeira des Cartas sobre uma Paz Regicida. Works V, p. 157. Para Willian Smith, Esq., 26 de maio de 1795. Works VI, p. 53. Ibid., pp. 215-16. Ele pede a seu tio — cujo filho tinha raptado uma herdeira protestante, cuja pena era a morte, para refletir sobre “‘como distante eu estava desse povo”* — na Ingla- terrae que muitas “maquinagSes engenhosas” foram feitas para arruindo (para Patrick Nagle; 14 de outubro de 1765). Burke para John Trevor, Cort. V, pp. 216-19. 63. 65. 66. 67. 68. 69. 70. n. 72. 73. Reflexes sobre a Revolugtio em Franca 41 Joseph Hone na sua excelente biografia W. B. Yeats (1865-1939) - Londres, 1942 — afir- mou que Yeats foi “tomado pela pergunta: Como coadunar a tradigdo aristocratica e protes- tante de Swift, Berkeley e Burke com o moderno nacionalismo Gaulés” (p. 359). De fato, Burke foi to Gaulés quanto qualquer nacionalista moderno. Burke aparenta ser mais aristo- cxético em uma retrospectiva literdria do que para seus contemporancos, que 0 viam mais como“um novorrico frlandés do submundo catélico do outro lado do Canal de Bristol” (Sir Philip Magnus, Edmund Burke, p. 216). (A relagao de Burke com o protestantismo é discuti- da no texto). ‘Como Hazlitt corretamente observou: “Burke estava tdo distante de ser aquele escritor sim- pitico a todos e de linguagem delicada que acabou sendo o escritor severo que nés tivemos”. (Essay on the Character of Burke, 1807). Vide 0 trabalho “‘Our wits about us” in “Writers and Politics”. Hazlitt achava que seus discursos chegavam em certas horas “‘a atingir 0 cimulo do ridicu- 1o”, Dr. Johnson tinha uma péssima opinifo sobre ele: “Esses conceitos... Burke nunca con- seguiu fazer uma boa piada”’. Vide a colegdo de opinides criticas sobre Burke na publicagdo ‘"Earnund- Burke: Selections, editada por A. M. D. Hughes ¢ publicada pela Claredon Press em 1921. Letter to. a Noble Lord (1796): Works V. p. 142. Primeira Carta sobre uma Paz Regicida (1796): Works V. p. 225. A critica dcida das “Car- tas” muitas vezes produz efeitos que se aproximam mais da ironia de um caricaturista do que aquela de um escritor. Essa é sua descrigdo, na mesma carta, das relagdes diplomiticas entre 0 Governo revoluciondrio em Paris e as Cortes da Europa: “No momento em que aque- las portas forem abertas, que visio se terd do recebimento dos plenipotencirios da impotén- cia real, na ordem de precedéncia obtida pelas suas intrigas e que seré dada segundo a anti- gilidade de suas degradagSes, na presenga dos regicidas, ainda com aquele sorriso de subser- viéncia nos lébios, apresentando ainda os resquicios apagados das galanterias da corte ¢ a0 se encontrarem com a figura sidica, feroz e desprezivel de um rufido assassino, que, enquanto recebe a homenagem, mede, com os olhos o tamanho do pescogo dos enunciados com vistas a ajustar sua guilhotina” (ibid, p. 171). A quarta das “Cartas sobre uma Paz Regicida”: publicada posteriormente; Works V. p. 388. Essas citagdes so extraidas das Reflexdes. Muitas outras combinagdes poderiam ser apresentadas. Ha, por exemplo, um estilo mediano entre o “formal” ¢ 0 “irdnico” que Burke gostava de utilizar contra o Dr. Price e que Mary Woustonecraft descreveu muito bem: “uma afabilidade gotica é o estilo que vocé quer ado- tar, a condescendéncia de um Bardo, no a civilidade de um homem liberal”. (A Vindica- tion of the Rights of Men.). A terceira das “Cartas sobre uma Paz Regicida” (1797). Works V. p. 268. Taine acreditava que “‘nio havia sentido de Burke estudar Cicero, porque ele continuava “meio bérbaro”. “As finas culturas grega e francesa nunca encontraram lugar nas nagdes ger- minicas”, Ele, entdo passa a elogiar Burke em uma linguagem extravagante ¢ inapropriada, As citagdes foram retiradas do vol. Ill da edigdo de 1965 do History of English Literature, New York, H. Taine. Hazlitt, como normalmente, foi mais direto: “Burke néo tinha a ele- 42 14. 15. 16. 7. 78. 19. 80. 81. 82. 83. 85. 87. Edmund Burke gancia polida, a flexibilidade, a regularidade genial e a modulagio artistica de Cicero. Ele, entretanto, foi muitas vezes mais rico e original, mais forte e mais enfético do que Cicero”. (Essay on the Character of Burke, 1807). Told. Esse no foi o primeiro nem o tltimo comentirio desse tipo feito por um critico inglés a um escritor irlandés. Francis também critica a énfase de Burke na passagem sobre a Rainha; Vide pp. 169-70 ¢ notas. Corr. VI, pp. 150-55; Francis para Burke, 3 ou 4 de novembro de 1790. Burke achou que a resposta de Francis foi mais um “método de controvérsia” do que uma “‘animosidade de um amigo” (Burke para Francis, 9 de novembro de 1790). Corr. VI, 17 de dezembro de 1789. Cort. I, pp. 248-49. “Vindicial Gallicae” (1791) Mackintosh procurou ardentemente se retratar do seu ataque contra Burke e modificar sua anterior critica, Burke, segundo Mackintosh em 1799, “foi no somente o mais severo e astuto escritor, j4 que era um homem eloqilente, mas também a for- 2 € © vigor permanentes dos seus argumentos que se afastavam da observagio vulgar pelas gloria pelas quais elas eram enriquecidas”. (R. F. Mackintosh. “Memories of... Sir James Mackintosh, Londres, 1935, p.91). A principal fungéo do Estado nesse campo era de suprimir a propaganda do lado contrério. Vide p. 61. Um escritor francés modemo da contra-revolugio escreveu: Parmi tous les theoricitns de la contre-revolution, le premier, dont les oeuvres aient eu un reténtissement international, a é1é Langlais Edmund Burke. Jacques Godechort (“La Contre-Révolution”, 1789-1804, Paris, 1961). Reflexdes, p. 90. Works V, p. 259. Burke parece antecipat Marshall McLuhan. Corr. VI, pp. 206-8; Burke para o Visconde de Cicé, 24 de janeiro de 1791. Corr. VI, pp. 241-3; Burke para o Chevalier de la Bintinaye, margo de 1791. Cor. V, pp. 436-45; Burke para Windham, C. 24, janeiro de 1789. Ele recomendou a publi- cago de “manifestos severos”. Cort. VI, pp. 197-9; Burke para W. Adam, 4 de janeiro de 1791. Outra afirmagfo: “A falsidade e a desilusio nio sfo nunca permitidas; mas como no exerci- cio de todas as virtudes, hd uma economia de verdade. E uma espécie de meio-termo, quan- do o homem diz a verdade com moderagdo ele a dird por mais tempo e mais freqUentemen- te”. (Primetra das Cartas sobre uma Paz Regicida, 1796; Works V, p. 230). Cort. VI, pp. 315-20; Edmund Burke para Edmund Burke Jr. 5 de agosto de 1791. Foi um ataque calculado. “Néo hé nenhum homem na oposico que nifo esteja, no entender de Burke, fazendo oposicio a constituig#o desse pais, pois quem methor os conhece do que o Sr, Burke? Portland para Lawrence, 23 de agosto de 1791. (Sheffield Papers). 89. 90. 91. 92. 93. 94, 95. 97. 98. 99. 100. Reflex6es sobre a Revolugfo em Franca 43 Nenhum estudante sério poderia ter feito um tal erro, mas os estudantes sérios slo to raros quanto homens econémicos. A afirmagéo de Hazlitt se aplica; “o Unico espécime de Burke ¢ tudo aquilo que ele escre- ‘veu", (Essay on the Character of Burke, 1807). “Eu o digo enfaticamente e com um desejo de que isso seja afirmado em uma longa Porque sem essa guerra, a experiéncia nos mostra que uma poténcia perigosa ndo poderé ser reduzida ou posta no seu devido lugar”. Primeira Carta sobre uma Paz Regicida, 1796; Works V, p. 195. “Burke on Bolshevism", em “Nineteenth Century and After” julho-dezembro de 1918. Vide também A. A. Baumann: “Burke, the Founder of Conservatism”, Londres, 1929. “Ele viu... © que nés americanos estamos tentando ao organizar uma ordem internacional es- tivel... (Burke's Politics, New York, 1949, p. 36). Essa iniciativa necessitava uma “restau- rago”, que ainda nfo foi definida, talvez, o “recuo da cortina de ferro” esteja af inclu/do. Burke's Politics, 1949, p. XV. Terceira das Cartas sobre uma Paz Regicida (1791); Works V, p. 281. Esse acordo funcionou bem de 1959 até o comeco de 1961, quando, em decorréncia de uma mudanga editorial, a “Modern Age” deixou de publicar “Burke Newsletter”. Havia também alguns neoconservadores que discordavam da énfase dada a Burke. Como um estudioso do movimento” neovoriservador afirmou, havia “muitos problemas ao se procurar enquadrar Burke para consumo no mercado americano”. (E. Cain, They Would Rather be Right, New York, 1963). “Burke Newsletter”, primavera de 1962. Mr. Cone discordava da tentativa de se equiparar a retérica de Burke a uma filosofia: “Acredito que haja razdes para se duvidar de algumas de suas afirmagGes, quando sabemos que Burke estava defendendo uma causa...” Certo, mas nfo podemos esquecer o “renascimento neo-conservador esté também defendendo uma causa”. “Burke Newsletter", inverno 1962-3. O Sr. Kirk esté revendo o estudo “Conservatism in America” de Clinton J. Rossiter, que “‘tinha restrigdes a Burke como guia da agiio conserva- dora na nossa época”. Hi uma edigdo das Reflexdes com uma introdugfo do Sr. Russell Kirk em uma série intitulada “Classics of Conservatism” (Nova Rochelle, N. Y; sem data). ‘Nessa introdugio, ele descreve as Reflexdes como “um trabalho que é atualmente a base (do conservadorismo moderno na Gra-Bretanha, Estados Unidos e outros paises ocidentais”. “Burke”, escreve o professor Alfred Cobban, “‘escapou das loucuras da esquerda inglesa para se tornar vitima da adulagdo sistemética da diréita americana... Essas tentativas de exaltagio ‘ou condenagdo de idéias ou de utilizagéo do nome € da reputagso de Burke, assim como de qualquer tentativa de exploragdo do passado em proveito de interesses polfticos passageiros, no se constituem em Histéria”. “Edmund Burke and the Revolt Against the Eightnth Cen- trury”. Prefécio a 28 edigo, Londres, 1960. Carta a um membro da Assembiéia Nacional (1791). Works Il, p. 534. 101. 102. 103. 104. 105. 106. 107. 108. 109. 110. 1. 112. 113. 114, 115. 116. Edmund Burke Heads for Consideration on the Present State of Affairs (escrito em novembro de 1792). Works Ill, p. 409. Prefécio a livro de M. Brissot Address to His Constituents (1794). Works III, pp. 525-6. Primeira Carta sobre uma Paz Regicida (1796). Works V, pp. 164-5. Remarks on the Policies of the Allies (iniciada em outubro de 1793); énfase como no texto. Works III, p. 442. Edmund Burke para Richard Burke Sr, 24 de julho de 1791;Corr. V1, p. 307. “Remarks on the Policy of the Allies” (iniciada em outubro de 1793). Works Ill, p. 441. Carta a um membro da Assembléia Nacional (1791), Works IL, pp. $42-3. Segunda das Cartas sobre uma Paz Regicida (1796). Works V, p. 232. Reflexées, p. 90. Nem todos aqueles que exaltaram Burke como um filésofo politico conservador endossaram ou aceitaram a utilizago neoconservadora de seus escritos. Peter J. Standis repudiou a alega- do do conservadorismo moderno de que “Burke fosse 0 porta-voz de suas priticas politi- cas”. (Burke Newsletter, vol. III, primavera de 1962). Nido que as técnicas da contengio fossem sempre despreziveis para ele. Ele repudiava aquilo que denominava uma “nagdo estranha” — “que um Estado nio tem o direito de interferir de forma discricionéria, nos assuntos internos de outra nagio”. (Sheffield Papers; Burke para Grenville, agosto de 1792). O que esti em questo agora é, entretanto, a forma discricionéria pela qual o direito ¢ exercido. “Remarks on the Policy of the Allies” (iniciado em outubro de 1793). Works Ill, p. 448. ‘A argumentagSo baseada no prestigio, razdo pela qual se procura justificar a guerra america- na no Vietnd é a que ele mais criticou: “Eles Ihe dizem, Senhor, que a sua dignidade esta vin- culada a algo. Sei como isso se passa, mas essa sua dignidade € uma terrivel incumbén pois ela tem estado em guerra com os seus interesses, sua eqiiidade e com suas idéias pol cas, Faga com que o objetivo de sua luta seja razoavel, mostre que faca sentido, mostre que ele € o meio de se atingir um fim dtil ¢ eu estarei disposto a envolvé-o com a dignidade que vot busca. Mas qual é a dignidade que se tem, na perseveranga ¢ no erro? Isso esta além do meu discernimento”. (Discurso sobre a Taxagdo na América, 1774). Works I, p. 393. Mesmo para conservadores vitorianos era dificil aceitar a idéia de que Burke pudesse ser usa- do, mais uma vez, com fins contra-revolucionérios. Ninguém, atualmente, escreveu Edward Dowclen, “pode desejar converter Edmund Burke em um tambor, onde se possa tocar um hino contrarevolucionério, o tempo desses criticisnos polémicos jé passou...” (The French Revolution and English Literature), Londres, 1897. Néo, obviamente, das Reflexes. Era em relag&o i Irlanda e & América e no a Franga — que Gladstone achava que Burke fosse “um livro de sabedoria’ Morley, “Gladstone”, III, p. 280. Reflexdes sobre a RevolucSo em Franca 45 117. Em um discurso proferido no Trinity College, Dublin, pela ocasiéo do bicentenétio de fun- dagio do Burke's Club, 14 de marco de 1947. Laski confirma o teste de Hazlitt: “Sempre fiz tum teste de bom-senso e humor com todos aqueles que pertencem a um partido de oposi- do, se eles aceitavam Burke como um grande homem’. (On the Characters of Burke, 1807). Reflexdes sobre a Revolugao em Franca Talvez ndo seja indtil informar o leitor de que as Reflexes que se-seguem tive- ram sua origem-na-correspondéncia entre o autor e um jovem fidalgo de Paris, que lhe concedeu a honra de desejar conhecer sua opiniao “sobre os acontecimentos que entZo ocupavam, e ainda ocupam, a atengdo de todos. Uma resposta foi escrita no més de outubro de 1789, mas consideragées de prudéncia impediram que ela fosse enviada. Faz-se alusio a esta carta nas paginas que se seguem. Desde entdo, ela se encontra com a pessoa a quem foi dirigida. As razGes pelas quais sua remessa foi retardada en- contram-se expostas em uma pequena carta dirigida a0 mesmo fidalgo. Esta resposta fez com que ele se interessasse ainda mais em conhecer os sentimentos do autor. O autor comecou uma segunda discussdo mais aprofundada do assunto. Primeiro ele pensou em publicéta no comego da Ultima primavera, mas, entusiasmado pelo te- ma, percebeu que 9 trabalho iniciado no s6 ultrapassava bastante a éxtensdo de uma carta, como também, pela sua importancia, exigia um exame mais detalhado, que nesta ocasiao ele ndo tinha tempo de fazer. Entretanto, tendo organizado seus pensa- mentos em forma de carta e, quando comegou a escrever, estando com a intencao de escrever uma carta particular, achou que‘ seria dificil mudar a forma, depois de ter exposto seus sentimentos com mais desenvolvimento e de lhes ter dado uma outra di- recao. Nao the escapou também que um outro plano podera ter sido mais favordvel a uma melhor divisdo e distribuigdo do assunto. Londres, 19 de novembro de 1790. Caro Senhor, O senhor quer conhecer novamente, e com algum interesse, as reflexdes que os iltimos acontecimentos na Franga me inspiram. Nao quero dar-Ihe raz6es para crer que eu atribua a meus sentimentos o valor suficiente para desejar que eles sejam pro- curados. Eles sdo de muito pouca conseqiiéncia para que eu me inquiete em comuni- cé-los ou em guardé-los para mim, e foi em consideracao pelo senhor, e s6 pelo senhor, 48 Edmund Burke que eu hesitei no momento em que, pela primeira vez, 0 senhor desejou conhecé-los. Na primeira carta que eu tive a honra de lhe escrever e que, afinal, decidi Ihe enviar, ngo me considerei porta-voz ou representante de nenhum partido: esta ainda é a posi- 0 na qual me mantenho hoje. Meus erros, se os cometer, serfo de minha inteira res- ponsabilidade; somente minha reputagdo deverd responder por eles." -— A longa carta que Ihe enviei ter-lhe-a mostrado, senhor, que desejo de toda 0 co- ra¢do ver a Franga animada de um espirito de liberdade racional, e, em minha opinio, deveria ser criado um corpo permanente onde este espirito possa residir, e um Orgdo pelo qual ele possa agir eficazmente, No éntanto, tenho a infelicidade de manter gran- des dividas sobre varios pontos importantes de suas iiltimas operagdes. Sua Ultima carta me mostra que a aprovacdo pablica solenemente dada por dois clubes londrinos, a Sociedade Constitucional e a Sociedade da Revolugdo”, a certos atos praticados na Franga, fez com que o senhor imaginasse que eu poderia me encon- trar entre os que aprovam estes atos. E verdade que tenho a honra de pertencer a mais de um clube onde se venera grandemente a Constituigdo deste Reino e os principios de sua gloriosa Revolugdo, e eu mesmo me encontro entre os que mais ardorosamen- te procuram manter em sua pureza e vigor estes principios e esta Constituigdo. Mas é justamente esta a razdo pela qual desejo que ndo haja nenhum equivoco a meu respei- to. Todos os que veneram a memoria de nossa Revolugdo e que respeitam nossa Cons- tituigdo, ter¥o grande cuidado em nao se deixarem confundir com homens que, sob a aparéncia de zelo pela Revolugdo e pela Constituicao, se distanciam freqientemente de seus verdadeiros principios, e estdo sempre prontos a abandonar o espirito firme, cir- cunspecto e avisado que produziu a primeira e continua a presidir a segunda, Antes pois, que eu comece a responder aos pontos mais importantes de sua carta, permita que the envie as informagdes que pude recolher sobre os dois clubes que julgaram de bom alvitre interferir, como um todo, nos assuntos da Franga, e receba a certeza de que eu nao fago, nem jamais fiz, parte de nenhuma dessas Sociedades. SOCIEDADE CONSTITUCIONAL A primeira, que se chama Sociedade Constitucional, Sociedade de Informagao Constitucional ou algo semelhante, tem, creio eu, sete ou oito anos de existéncia. Ela deve sua existéncia a um fim de aparente caridade: foi criada para fazer circular, as expensas de seus membros, um grande nimero de livros que pcucas pessoas, sem isso, teriam podido comprar, e que, assim, corriam o risco de permanecer exclusivamente nas mos dos livreiros, em prejuizo de qualquer agremiacao util. Nao saberia dizer- Ihe se a caridade empregada em fazer circular tais livros foi empregada com a mesma intensidade na sua leitura. E possivel que bom numero destas obras tenha sido expor- tado para seu pais, € que, pouco procuradas na Inglaterra, tenham encontrado merca- do na Franga. Ouvi falar muito das luzes que se pode tirar de tais livros. Nao sei se — como se diz de certos licores — eles teriam ganho algo em atravessar 0 mar; mas 0 que ha de certo é que nunca encontrei nenhum homem de bom-senso, ou com um cer- to grau de informacao, que dissesse uma palavra em favor da maioria deles; como, alids, Reflexdes sobre a Revolugiio em Franga 49 nunca vi serem levados a sério os atos da Sociedade que os fez circular, a ndo ser por alguns de seus membros. A Assembléia Nacional da Franca parece ter adotado a mesma opinifo que eu a respeito deste pobre clube de caridade. Seus representantes guardaram toda a eloqiiéncia de seus agradecimentos para a Sociedade da Revolugao, ainda que, a bem da justiga, seus companheiros da Sociedade Constitucional também tivessem alguns direitos a estes agradecimentos. SOCIEDADE DA REVOLUCAO Uma vez que os franceses escolheram a Sociedade da Revolugo como o grande ‘objeto de seu reconhecimento e de seus elogios piblicos, o senhor hd de me perdoar se eu tomar o recente comportamento desta Sociedade como objeto de minhas observages. A Assembléia Nacional da Franga deu importancia aos membros de tal Sociedade, ado- tando suas posigSes; e estes retribuframa gentileza, comportando-se como um comité destinado a propagar, na Inglaterra, os principios da Assembléia Nacional. E preciso pois, doravante, consideré-los como. um tipo de pessoas privilegiadas, como membros nfio despreziveis do corpo diplomatico. Esta € uma das revolugGes que deu esplendor 4 obscuridade\e distinguiu méritos insuspeitdveis! Com efeito, até recentemente, eu nunca tinha ouvido falar deste clube que em momento algum ocupou os meus pen- samentos e nem, creio, os de qualquer outra pessoa além de seus membros. Depois de me informar, soube que um clube de dissidentes, cujo nome ignoro, conserva h4 muito tempo o hdbito de se reunir em um de seus templos para comemo- rar 0 aniversario da Revolugdo de 1688, ocasifo em que ouvem um sermio e, em se- guida, vao passar alegremente o dia em uma taberna, como, alids, fazem os membros de outros clubes. Mas eu nunca soube de nenhuma medida publica ou de algum sis- tema politico que tenha sido objeto de uma deliberagdo formal nestas solenidades, € menos ainda que se tenha discutido os méritos de uma Constituigdo estrangeira. Qual nfo foi pois minha surpresa ao ver estes senhores, revestidos de uma espécie de capacidade piblica, enviar 4 Assembléia Nacional uma mensagem de felicitag6es, por meio da qual os atos da segunda recebiam o apoio da autoridade dos primeiros. Nao vejo nada a ser reparado no que concerne aos antigos principios ou anti- ga orientaco deste clube — ou ao menos naquilo que era declarado. Mas, em minha opinifo, é provavel que novos membros tenham entrado no clube com finalidades se- cretas, e que alguns destes politicos realmente cristdos, que gostam de distribuir ben- feitorias, escondendo a mao que as executa, devem ter feito. deste clube um instru- mento de seus piedosos projetos. Entretanto, ainda que eu tenha raz6es para descon- fiar de suas finalidades secretas, eu s6 terei por certo aquilo que é ptblico. Primeiramente, aborrecer-me-ia muito em que me vissem direta ou indiretamente envolvido com suas maneiras de agir. Sem duvida, como todo o mundo, me permito es- pecular, sob minha propria responsabilidade, a respeito dos fatos que aconteceram ou acontecem na cena do mundo, tenham eles se dado num pais antigo ou num pais mo- derno, na repiblica de Roma ou na de Paris. No entanto, como no estou investido de nenhuma missdo de apostolado universal, como sou cidad4o de um Estado peculiar 50 Edmund Burke cuja vontade pablica me limita em proporgdes considerdveis, penso que cometeria um ato no minimo inconveniente e incorreto, iniciando publicamente uma correspondén- cia_formal com um governo estrangeiro, sem ter sido expressamente autorizado pelo governo sob o qual eu vivo. Estaria ainda menos disposto a iniciar tal espécie de correspondéncia, integrado a algo que se assemelha a uma associagdo equivoca, correndo o risco de fazer crer a todos que nfo estivessem a par dos costumes de meu pais, que a associaco na qual eu teria entrado, seria composta de pessoas revestidas de uma espécie de cardter piblico, autorizadas pelas leis deste Reino a se manifestarem sobre o significado destas leis. As sociedades de nomes genéricos, que ndo so autorizadas, esto envoltas em tanta ambigilidade e incerteza, podendo praticar tantos abusos de confianga, que néo € por puro formalismo que a Camara dos Comuns rejeitaria, por mais obsequiosos que fossem os termos ou mais insignificantes os objetos, qualquer peticao que Ihe fosse apresentada sob esta forma de assinatura. E, no entanto, foi um documento desta es- pécie que os franceses receberam de bragos abertos, tendo sido introduzido na As- sembléia Nacional com a mesma ceriménia e a mesma pompa, sob os mesmos aplau- sos que teriam recebido a majestade representante de toda a nagdo inglesa. Se o que esta Sociedade julgou de bom alvitre enviar aos franceses, fosse uma pega de peso e importancia, nfo seria essencial conhecer sua procedéncia, pois os argumentos nfo seriam, por isso, nem mais nem menos convincentes. Mas, aqui, trata-se apenas de um voto, de uma resolugdo, que repousa unicamente sobre a autoridade dos que a emi- tiram, ou seja, no caso presente, sobre a autoridade de individuos dos quais s6 se conhece um pequeno nimero. Em minha opinifo, a assinatura de todos os membros do clube deveria ter sido anexada ao documento. Isto teria permitido ao mundo todo saber quantos so, quem so, que valor suas opiniGes tiram de seus talentos, de seus conhecimentos, de sua experiéncia, de sua influéncia e de sua autoridade no Estado’. A mim, que sou um homem sem artiffcios, tal atitude me parece por demais refinada e engenhosa. Ela se assemelha muito a um estratagema politico destinado a dar, gracas a um nome pomposo, as declaragGes publics deste clube, uma importancia que elas nao tém quando se olham as coisas de perto. Tal politica tem muito aspectos de fraude.! Eu me orgulho de ser, tanto quanto qualquer dos membros deste clube, amigo de uma liberdade méscula, moral, e bem regrada, e, talvez, eu tenha podido dar, no curso de minha vida pablica, melhores provas deste sentimento que qualquer um des- tes senhores. Como eles, creio, nao invejo a liberdade de outras nagSes. Mas so poderia me adiantar e distribuir criticas ou elogios concernentes a ages ou interesses humanos, considerando a coisa no seu absoluto, na nudez e isolamento de uma abstragdo metafi- sica, So as circunstancias — circunstdncias que alguns julgam despreziveis — que, na tealidade, do a todo principio politico sua cor propria e seu efeito particular. Sdo as circunstancias que fazem os sistemas politicos bons ou nocivos 4 humanidade. Falan- do-se em abstrato, 0 governo, assim como a liberdade, € bom; no entanto, hé dez anos, teria eu podido, em s& consciéncia, felicitar a Franga por possuir um governo (pois ela tinha um) sem ter, de antemfo, inquirido o que era este governo e de que maneira ele funcionava? Posso hoje felicitar esta nago pela sua liberdade? A liberdade é, sem duvi- Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga Sl da, em principio, um dos grandes bens da humanidade; no entanto, poderia eu seria- mente felicitar um louco que fugiu de seu retiro protetor e da saudavel obscuridade de sua cela, por poder gozar novamente da luz e da liberdade? Iria eu cumprimentar um assaltante ou um assassino que tenha fugido da prisdo, por terem readquirido seus di- reitos naturais? Seria recomegar a histria do Cavaleiro da Triste Figura*, que empre- gava todo o seu heroismo em libertar criminosos condenados as galés. Quando vejo.o principio de liberdade em aco, vejo agit um principio vigoroso, ¢ isto, de inicio, é tudo o que sei. E 0 mesmo caso de um Iiquido que entra emeferves. céncia; os gazes que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, € necessario que 0 primeiro movimento se acalme, que 0 liquido se torne mais claro, e que nossa observac4o possa ir um pouco além da superficie agitada. Antes que me aventure a felicitar alguém sobre um bem que lhe advenha, é necessirio que eu esteja- relativamente seguro de que a pessoa tenha de fato recebido tal bem. A bajulago cor- rompe ndo s6 0 que a faz, como também o que a recebe; adular nio é util aos povos, nem aos reis. Por tal razdo, eu deveria me abster de felicitar a Franca por sua nova li- berdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza com 0 governo, com o poder piblico, com a disciplina e a obediéncia dos exércitos, com 0 recolhimento e a boa distribuigdo dos impostos, com a moralidade ¢ a religigo, com a solidez da propriedade, com a paz e a ordem, com os costumes piblicos e privados. A sua maneira, todas estas coisas so bens, e se elas vierem a faltar, a liberdade-deixa de ser um beneficio e perde a chance de durar muito tempo. O efeito da.liberdade eve pemitir aos homens fazer aquilo que Ihes agrada: vejamos, pois, 0 que lhes serd-agra- os carMos-acumprimentos que muito cedo, talvez, devam davel fazer antes de nos ai ser convertidos em pésames. A prudéncia nos ditaria tal conduta se se tratasse de in- dividuos separados e isolados; mas quarido-os-homens-agem-em-corpo,a-liberdade chama-se poder. Antes de se pronunciareém, pessoas esclarecidas gostarfo de conhecer © uso que é feito do Poder, sobretudo ando se trata de algo tao delicado quanto um novo poder confiado a novos depositarioS\que conhecem pouco ou nada dos prin- cipios, das caracteristicas e das disposigGes do poder, e em circunstancias nas quais 0s individuos que mais se agitaniitalvez ndo sejam os mais capazes de agao. Entretanto, a Sociedade da Revolucdo julgou que descer a estas considerages estava abaixo de sua dignidade transcendente. Enquanto estive no campo, de onde tive a honra de lhe escrever, tive apenas uma imperfeita idéia daquilo que ela tramava. Quando voltei para a cidade, consegui um relatério dos atos, por ela publicado, con- tendo um sermao do Dr. Price com as cartas do Duque de la Rochefoucauld e-do Arcebispo de Aix®” e outros documentos anexos. O conjunto desta publicagao, com © claro objetivo de ligar os negécios da Franca aos da Inglaterra, levando-nos a imitar a conduta da Assembléia Nacional, deixou-me em considerdvel inquietacdo. Os efeitos desta conduta sobre o poder, o crédito, a prosperidade e a tranqililidade da Franga tor- nam-se a cada dia mais evidentes. A forma futura de sua nova Constituicao torna-se mais clara. Hoje, podemos, com mais exatidfo, vislumbrar a verdadeira natureza do modelo que nos era dado imitar. Em algumas circunstancias a sabedoria, filha da dis- cregdo e da dignidade, prescreve o siléncio; em outra, a sabedoria de uma ordem mais elevada pode nos autorizar a dizer nosso pensamento. Sem diivida, a confusfo é ainda 52 Edmund Burke bastante pequena na Inglaterra, mas, nfo vimos na Franga uma confusfo inicialmente bem menor chegar em pouco tempo a uma forga capaz de destruir montanhas e de lutar contra o proprio céu? Quando a casa de nosso vizinho pega fogo, ¢ recomendé- vel que-tomemos precaugGes para proteger a nossa, pois é melhor aumentar_as dis- cussdes por excesso de precaucdo, que se deixar arruinar por excesso de confienca. Se bem que a Situagdo de seu pais ndo me deixe insensivel, é a paz de minha p& tria que est no centro de minhas preocupagGes. Gostaria de assegurar um pouco mais de publicidade Aqu¢lo que inicialmente foi escrito para sua satisfac pessoal. Contu- do, nfo deixarei de considerar os negécios franceses e continuarei a me dirigir a0 Se- nhor. Perdoe-me se, usando o estilo epistolar, deixar meus pensamentos e sentimentos se exprimirem na ordem em que se apresentarem ao meu espfrito, sem preocupar-me um plano regular. Comego me ocupando da Sociedade da Revolucdo, mas nfo me li- mitarei a ela. Como poderia fazé-lo? Parece que me encontro diante de uma grande cri- se, nfo apenas francesa, mas européia, e, talvez, mais que européia. Considerando-se bem as circunstancias, 4 Revolucfo Francesa é a mais extraordindria que 0. mundo ja viu, Os resultados mais surpreendentes se deram e, em mais de um caso, produzidos pelos méios mais ridiculos e absurdos, da maneira mais ridicula, e, aparentemente, pelos mais vis instrumentos. Tudo parece fora do normal neste estranho caos de leviandade e ferocidade, onde todos os crimes aparecem ao lado de todas as loucuras. Diante do espetaculo desta monstruosa tragicomédia, 0s mais opostos sentimentos se suce- dem em nés e, algumas vezes, se confundem. Nés passamos do desprezo a indignacao, do riso as légrimas, da arrogancia ao horror. Da Monarquia na Constituicao Inglesa I Nao se pode, contudo, negar que este estranho espetdculo tenha sido considera- do por alguns de um ponto de vista bem diferente. S6 tiveram entusiasmo e exaltagdo. Em tudo o que se passou na Franga, eles viram o emprego firme e equilibrado da liber- dade, compativel com a moral e a piedade ao ponto de nao s6 merecer o elogio secular de audaciosos e ma \s politicos, mas de se tornar um excelente tema para to- das as expansset@ee Bourtatba foquéncia sacra. SERMAO DO DR. PRICE Na manhi do dia 4 de novembro, o Dr. Richard Price, eminente ministro ndo- -conformista, fez para os membros de seu clube, reunidos na sala de Old Jewry, um sermfo bi bizarramente confuso, onde alguns bons sentimentos religiosos e morais, muito bem. expostos, : SE :mistoram e: em _uma espécie de caldo, composto de diferentes opinides e reflexes polfticas: mas a|Revolugao Francesa¢é 0 grande ingrediente da receita. Con- sidero que_o documento transmitido por Lorde Stanhope® , em nome da Sociedade da Reyolugao, nasceu dos princfpios expostos neste sermao, sendo um corolirio deles. Com efeito, a mogdo foi feita pelo préprio pregador e foram os ouvintes, ainda entusi- asmados pelas suas palavras, que a votaram sem criticas nem restrig6es explicitas ou implicitas. Se, entretanto, algum destes senhores desejasse separar 0 sermao da resolu- go, ele teria meios de reconhecer um e de negar a outra. Estes senhores podem fazé- Jo, eu nao posso. Para mim, este sermfo parece ser a declarago piblica de um homem muito li- gado a conspiradores literdrios, filésofos intrigantes, ; tedlogos e politicos tedlogos da Inglaterra e do continente. Sei que estes 0 apresentam como uma espécié ‘de ordculo porque com as melhores intengdes do mundo, ele filipisa naturalmente, e canta seus hinos proféticos em total acordo com seus objetivos’. ©. \\ 54 Edmund Burke Este sermdo tem um estilo que, creio, ndo é ouvido em nenhum dos piilpitos to- lerados ou encorajados neste reino, desde 1648, quando um predecessor do Dr. Price, © Reverendo Hugh Peters®, fez ressoar na propria capela do rei em Saint James, um sermffo sobre a honra e o privilégio dos Santos, que “com louvores a Deus em suas bocas, e uma espada com duas laminas em suas maos, deveriam executar 0 julgamento dos pagios € 0 castigo do povo, aprisionar os reis e colocar seus nobres sob ferros.” * Poucos discursos sacros, salvo no tempo da Liga na Franca e no tempo de nosso pacto solene, respiraram t4o pouca moderacdo quanto este de Old Jewry. Mesmo consideran- do-se que houvesse algo de moderado em tal discurso, ainda assim deverfamos ter em. mente que a polftica e 0 pulpito pouco se harmonizam. As igrejas s6 deveriam ouvir a doce voz da caridade cristd, e tal confusio de fungSes ndo serve nem a causa da li- berdade e do governo civil, nem a da religiio. Aqueles que deixam seu proprio caré- ter para assumir um outro que ndo lhes pertence, em geral, ignoram tanto o cardter que deixam como 0 que assumem. Ignorando o mundo no qual se movimentam, sem experiéncia nos negdécios sobre os quais se pronunciam com tanta seguranga, eles sé tém em comum com a politica as paixGes que excitam. A Igreja € certamente um lu- gar onde uma trégua de um dia deveria ser permitida as discuss6es e as céleras dos homens. Esta_espécie de eloqiiéncia sacra, revivida depois de t4o longo intervalo, tem para mim ares de novidade; mas de uma novidade que nfo est4 inteiramente livre de perigo. Ndo que eu veja perigo em todas as partes do sermdo. A regra de conduta su- gerida a um nobre e responsdvel tedlogo-leigo (lay-divine), tido como membro impor- tante de uma de nossas universidades**, como alids os conselhos dados a outros te- 6logos leigos ‘da nobreza e da literatura”®, podem ser proprios.e apreciados, mesmo que contenham algumas novidades. Se estes nobres Seekers nao podem satisfazer suas piedosas fantasias nem no velho depésito da Igreja nacional, nem nos ricos sor- timentos das lojas das congregag6es dissidentes, o Dr. Price aconselha-os a improvisa- rem sobre 0 nfo-conformismo, devendo cada um fundar uma Igreja baseada em seus proprios principios* ** E extraordindrio como este respeitdvel reverendo ¢, ao mes- mo tempo, tdo ardente em promover seitas novas, e tao indiferente as doutrinas que elas possam ensinar. E um homem cujo zelo tem um curioso cardter: nao € pela propa- gacdo de suas proprias opiniSes, mas pela propagacdo de quaisquer opini6es; no € pela difusio da verdade, mas pela difusdo da contradi¢&o. Que os nobres doutores come- cem a se separar — de quem ou de que, pouco importa — e, uma vez obtido este gran- * Salmo 149. ** Discurso sobre o Amor da Patria, 4 de novembro de 1789, pelo Dr. Richard Price, 3%edl, pp. 17 18, ‘**#"Qs que ndo amam 0 culto prescrito pela autoridade piblica, deveriam, se lhes for imposstvel achar um fora da igreja que eles aprovam, criar para si seu prOprio culto; e, assim agindo, dando este exemplo de uma adoragfo racional e viril, os homens que tém importancia pela sua postedo ou pelo seu talento literdrio, prestariam os maiores servicos a sociedade e a0 mundo.” Serm&o do Dr. Price p. 18. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 55 de feito, estaremos certos de que sua religido sera racional e digna dos homens. Eu du- vido que esta “grande companhia de grandes pregadores” traria a religifo todos os beneficios atribuidos por este pastor calculista. Certamente, isto acrescentaria um no- mero importante de espécies ndo classificadas 4 ampla colegdo de classes, géneros espécies. conhecidas, que enriquecem o hortus siccus" da dissidéncia. O sermao de um nobre duque, de um nobre marqués, de um nobre conde, ou de um audacioso barao, seria uma nova e preciosa distragdo para esta cidade cansada da uniformidade de seus tediosos divertimentos. Pediria, simplesmente, que estes novos Mess-Johns" de capae coroa, guardassem na exposicdo dos princfpios democraticos e niveladores, a medida que se deve esperar de sua elogiiéncia titulada. Os novos evangelistas desapontaro, ouso dizer, as esperancas que neles foram depositadas. Eles nao se tornaro, em sentido proprio ou figurado, polemistas em teo- logia; ndo estado dispostos a organizar suas congregagSes ao ponto de poder, como nos bons velhos tempos, pregar suas doutrinas a regimentos de dragdes ou a corpos de infantaria e artilharia. Tais condutas, ainda que favordveis 4 causa da liberdade civil e religiosa obrigatoria, podem n4o produzir, em semelhante grau, a tranglilidade nacio- nal, Espero que nao se veja nestas restrigdes grandes tracos de intolerancia, nem vio- lentas manifestagdes de despotismo. 45: Entretanto, posso dizer que nosso pregador, “utinam nugis tota illa dedisset tempora soz vitie’”? . Nem tudo em seu fulminante discurso é t4o inocente assim. Suas doutrinas afetam partes vitais de nossa Constituigao. No seu sermifo politico, ele diz’ Sociedade da Revolugdo que o Rei da Inglaterra “é talvez 0 tinico soberano legitimo que existe no mundo, porque ele € 0 tinico que deve sua coroa a escotha de seu povo” Este “ arquipontifice” dos Direitos do Homem expée reis do mundo ao desprezq pu- blico, e os excomunga, com um poder igual em plenitude, e superior em audacia, a0 poder de deposigéo reconhecido ao Papa pelo fervor do século XII; no que concerne estes reis que usurparam, diz ele, 0 poder que eles exercem sobre 0 mundo inteiro, cabe a eles considerar como acolherdo em seus paises missionarios que pretendem en- sinar a seus povos que eles ndo sfo reis legitimos. Mas cabe a n6s, num importante interesse doméstico, examinar seriamente a solidez do tnico princfpio segundo o qual estes senhores reconhecem ao rei da Gra-Bretanha direitos a fidelidade. Na medida em que ela se aplique ao principe atualmente reinante, esta doutri- na € um absurdo — e, portanto, nao 6 verdadeira nem falsa — ou a afirmagao da opi- nigo mais mal fundada, mais perigosa, mais ilegal e mais inconstitucional que existe. De acordo com este espiritual doutor em politica, se 0 rei ndo deve sua coroa.a esco- Iha de seus siditos, reina injustamente. Ora, nada mais falso que se imaginar que a coroa deste reino seja assim mantida por sua majestade. Eis porque, segundo o mesmo princicio destes senhores, o rei da Gra-Bretanha que ndo recebeu suas fungdes de ne- nhuma forma de eleicfo popular, ndo vale mais que todo este bando de usurpadores que reinam, ou melhor, que se imp6em a todo o universo, sem ter nenhum direito ou titulo a obediéncia de seus siditos. Vé-se, agora, 0 objetivo que norteia esta doutrina geral. Os propagadores deste evangelho politico esperam que seu principio abstrato (principio segundo o qual a escolha popular é necesséria 4 existéncia legal da sobera- 56 Edmund Burke na magistratura) seja tolerado a partir do momento em que o rei da Grd-Bretanha nao seja por ele atingido. Entretanto, aos poucos, eles acostumardo seus clubes a conside- rarem tal princfpio como um axioma indiscutivel. De inicio, seré apenas uma teoria, preservada na eloqiiéncia sacra, e guardada para posterior uso. Condo et compono qua mox depromere possim™. Assim, enquanto nosso governo se asseguraria gracas 4 uma excegdo a qual ele ndo tem direito, suprimir-se-ia a seguranga que ele tem em comum com todos os governos, — se é que existe seguranga na opiniao. E assim que estes politicos trabalham, enquanto ndo se presta atencGo a suas doutrinas; mas, se se chega a examinar 0 verdadeiro sentido de suas palavras e a fina- lidade direta de seus princfpios, entdo, eles recorrem aos equivocos, ¢ se jogam nas escapatorias. Quando dizem que o rei tem a coroa pela escolha de seus siiditos, e que, assim, ele € 0 tnico soberano legitimo no mundo, talvez, queiram nos dizer que al- guns dos predecessores do rei tenham sido chamados ao trono por alguma espécie de eleigdo, assim sendo, ele também detém a coroa por causa da escolha de seus stiditos. Desta forma, gracas a um miserdvel subterfagio, esperam tornar sua proposi¢do acei- tével, despojando-a de todo o seu sentido. Que sejam bem-vindos ao asilo que mere- cem por seus crimes, j4 que eles se refugiam na loucura. Pois, se admitimos tal inter- pretacdo, em que sua idéia de eleigdo difere de nossa concepgdo de hereditariedade? E como a fixagdo da Coroa na linhagem de Brunswick, descendente de Jaime I, pode legitimar nossa monarquia mais que a de nagGes vizinhas? Certamente, em um ou ou- tro momento, todos os fundadores de dinastia foram escolhidos pelos que os chama- ram a governar, e pode-se sustentar a opinifo de que todos os reinos da Europa foram, no passado, eletivos, com mais ou menos limitagdes nos objetos de escolha; mas, qual- quer que tenha sido a natureza do poder real, h4 mil anos, ou qualquer que tenha si- do a maneira pela qual as dinastias reinantes da Inglaterra ou da Franga tenham se ini- ciado, o rei da Grd-Bretanha € rei, hoje, por uma ordem de sucessdo fixay de acordo com as leis de seu pais; e enquanto as condig6es legais do pacto dé-Soberania forem preenchidas (como elas s4o hoje), ele possuira sua coroa sem ter de se preocupar com a escolha da Sociedade da Revolugao, cujos membros, alias, nao tém, individual ou co- letivamente, nenhum diteito a eleger um rei; fato que, acredito, nfo os impediria de se erigirem em colégio eleitoral se as coisas chegassem ao ponto em que suas pretensdes pudessem se realizar . Os herdeiros e sucessores de Sua Majestade, cada um a seu tem- po e ordem, possuirdo a coroa, sem que se preocupem com a escolha da Sociedade da Revolugio. E um grosseiro erro de fato, suport que Sua Majestade (ainda que toda a nagdo a acompanhe com seus melhores votos) deva a sua coroa a eleic&o de seus siditos. Qual- quer que seja 0 sucesso que a Sociedade da Revolugdo encontre ao se equivocar com este erro, é certo, ao menos, que ela ndo pode eludir sua declaraco bem explicita so- bre o principio de que o povo possui um direito de escolha, principio que ela man- tém formalmente e ao qual ela se atém com tenacidade. Todas as insinuagées maldo- sas sobre a eleicdo se baseiam nesta proposigdo, ¢ se relacionam a ela. Alias, com medo de que justificando exclusivamente a legitimidade do poder real na Inglaterra, fosse apenas visto como alguém que tentasse conciliar em suas declamagdes 0 amor a liber- Reflexdes sobre a Revolugo em Franga 57 dade com o amor & adulag0, nosso pastor politico afirma dogmaticamente* que o povo deste pais adquiriu, gragas aos principios da Revolugdo, trés direitos fundamen- tais que, diz ele) s4o insepardveis um do outro, e podem ser expressos em uma curta frase. Sdo: 1. Escolher nossos préprios governantes. 2. Depé-los por indignidade (misconduct). 3. Estabelecer um governo para nés mesmos. Esta nova declarago de direitos, desconhecida até agora, e ainda que feita em nome de todo o povo, pertence apenas aos senhores da Sociedade da Revolugao, e somente 4 sua faccfo. O conjunto do povo inglés ndo a partilha e desaprovava-a com- pletamente. Ele combaterd sua colocagdo em pritica, decidido, se preciso for, a sa- crificar, para impedi-la, sua fortuna e sua Vida. As leis de seu pais o obrigam a isso, estas leis que foram feitas por ocasifo desta mesma Revolugdo, cuja sociedade que abusa de seu nome, queria cobrir suas pretens6es a direitos ficticios. DISCUSSAO DO PRIMEIRO PRINCIPIO DO DR. PRICE, “(0 direito de escolhermos nossos governantes) Estes senhores de Old Jewry, em todos os seus raciocinios sobre a Revolugdo de 1688, tém de tal forma diante de seus olhos e no seu coragdo a revolucdo que se deu na Inglaterra quarenta anos mais cedo, e a que se produz na Franca atualmente, que, cons- tantemente, confundem as trés. E necessirio que separemos o que eles confundem. Lembremos as suas desgarradas imaginagGes, os atos da Revolugdo que veneramos, a fim de pedermos descobrir seus verdadeiros princtpios. Se os principios.da Revolugio de-1688 esto inscritosem algum lugar, certamente, este lugar serd o estatuto chamado Declaragdo de Direitos."® Nesta declatacdo cheia de sabedoria, moderagao e prudéncia, elaborada por grandes juristas e grandes estadistas, e ndo por mornos e inexperientes entusiastas, no h4 nenhuma palavra, nenhuma alusdo que se relacione a um direito geral “‘de escolher nossos proprios governantes, de depé-los por indignidade, e de esta- belecer um governo para nds mesmos.”” Esta Declaragdo de Direitos (ato do 1° ano de Guilherme e de Maria, Sess. 2, Cap. 2) € a pedra angular de nossa Constituigao, reforgada, explicada, melhorada, e para sempre definida nos seus principios fundamentais. Ela se intitula/“Ato declaran- do 05 direitos ¢ as liberdades do stidito e fixando a ordem de sucesso di Cota.” Sr. poder4 observar que a exposigao destes direitos e o regulamento desta sucessao se en- contram no corpo de uma mesma lei, e que esto indissoluvelmente ligados um ao outro. Alguns anos mais tarde, uma ségunda oportunidade surgiu de se afirmar o direito dos siiditos Para€legerem seu soberano. A perspectiva de se ver-o Rei Guilherme e a Princesa, mais-tarde Rainha Ana.sem posteridade, suscitou no Parlamento a questo de se saber onde fixar a Coroa e como garantir no futuro as liberdades do povo. O Par- lamento ocupou-se, desta vez, em legitimar a soberania, apoiando-se nos principios que * Discurso sobre o Amor da Pitria, Dr. Price, p. 34. 58 Edmund Burke os senhores de Old Jewry atribuem falsamente 4 Revolucdo? Nao. Ele se ateve aos prin- cipios da Declaragdo de Direitos, limitando-se a indicar com mais precisio quem, na linha protestante, deveria herdar a coroa. Este ato também incorporou, pela mesma po- Iftica, nossas liberdades e 0 regulamento da sucessdo real pela via hereditdria. Em vez de um direito de escolher nossos governantes, o Parlamento declarou que o-estabeleci- mento da sucessdo na linhagem protestante, descendente de Jaime I, era condig&o ne- cesséria “da paz, da tranqiilidade e da seguranca do Reino”, e que também era indis- pensével “manter, no que concerne a sucessdo, uma regra fixa;\ qual os siditos pos- sam recorrer _para.sua-propria protegdo.” Estes dois atos que contém os principios cla- ros-e certos da Revolugdo, longe de justificarem pretensdes decepcionantes ¢ enigmati- cas a um “direito de escolher nossos governantes”, mostram, ao contrério, quanto a sabedoria da nagdo se ops a que se erigisse em regra de conduta aquilo que foi necessi- dade de um dia. Houve, inegavelmente, quando da Revolugao, na pessoa do Rei Guilherme, um pequeno e tempordrio desvio na estrita ordem de uma sucessSo.hereditéria regular; mas é absolutamente contrario a todos os principios elementares da jurisprudéncia, derivar um principio de uma lei feita em um caso especial, e concernente a uma pessoa isolada. Privilegium non transit in exemplum. Se houve um tempo favordvel ao estabeleci- mento do principio segundo o qual a legitimidade do rei advém de sua eleicdo pelo po- vo, este tempo foi, sem divida, o momento da Revolucdo. O fato de ele nao ter sido estabelecido nesta época, é a prova cabal de que a nagao inglesa era de opinifo que ele nunca deveria ser estabelecido. Nao hd ninguém tao ignorante de nossa historia a ponto de nfo saber que a maioria dos dois partidos no Parlamento estava tZo pouco disposta a estabelecer algo de semelhante a este principio, que, de inicio, ela decidiu colocar a coroa vacante, nfo sobre a cabega do Principe de Orange, mas sobre a de sua mulher, Maria, filha do Rei Jaime, a primogénita de seus filhos, reconhecida, indubitavelmente, como sua filha.” Seria recomecar uma hist6ria bem triste, lembrar todas as circunstan- cias que demonstram que, aceitando o Rei Guilherme, o Parlamento nao fazia propria- mente uma escolha. A verdade é que para aqueles.que-ndo queriam chamar de volta © Rei Jaime, nem ensangiientar sua patria, e precipitar de novo sua religifo, suaseis e suas liberdades nos perigos dos quais eles acabavam de sai, o recorihecittiento do Rei Guilherme foi um ato ditado pela necessidade — no mais estrito sentido moral que esta palavra possa ter. ~ ue uma vez, € num tinjco caso, o Parlemento abandonou a estrita ordem de hereditariedade a favor de-um principe. que, alids, sé hdo-era-o-primeiro na linha de sucesso, estava perto de sé-lo, Mas é curioso observar, no proprio ato que san- ciona tal abandono, como Lorde Somers'®? que redigiu a Declaragao de Direitos, condu- ziu-se nesta ocasido delicada. E.curioso observar quanta habilidade este grande homem eo Parlamento.que o seguia usaram para Cissimular €s{a passageira solugo de conti- nuidade, a0 mesmo tempo em que eles se esforcavam em reforcar e exaltar tudo aquilo que, neste ato imposto pelas circunstancias, pudesse justificar a idéia de uma sucesso hereditaria. Abandonando o estilo seco € imperativo habitual nos atos do Parlamento, Lorde Somers levou os Lordes ¢ os Comuns a declararem numa espécie de hino legisla- tivo “que Deus foi, para nés, de uma maravilhosa providéncia e de uma misericordiosa Reflexdes sobre a Revolugfo em Franga 59 bondade, conservando as ditas Majestades Reais a fim de fazé-las, muito felizmente, reinar sobre nds do alto do trono de seus antepassados, e quejeles Lhe dirigem do mais profundo de seus coragdes seus louvores e suas mais humildes agGes de gracas.” Nao hé divida que o Parlemento tinha em vista o ato de reconhecimento do pri- /meiro ano do reinado de Elizabeth I (Cap. 3) ¢ o do primeiro ano do reinado de Jaime I, documentos onde a natureza hereditéria da Coroa_est4 fortemente_afirmada; pois, mais de uma vez ele seguiu, com uma preciso quase literal, os termos e a propria for- ma das ag6es de gracas que se encontram nestes antigos estatutos declaratérios. As duas Casas, no ato do Rei Guilherme, ndo agradeceram a Deus 0 fato de Ele Ihes haver propiciado uma boa ocasido para afirmarem o direito do povo de eleger seus governantes, e, ainda menos, de Ihes haver colocado em posigao de fazer da elei¢g0 0 unico titulo de ascensdo legitima 4 Coroa. Muito pelo contrério, elas consideraram uma ocasido providencial o fato de estarem em condi¢do de evitar até mesmo a aparén- cia de uma justificativa de elei¢Go. Elas jogaram um espesso véu politico sobre as cir- cunstancias capazes de enfraquecer os direitos que elas queriam perpetuar na ordem de sucessio .melhorada, e dissimularam tudo aquilo que fosse suscetivel de fornecer um precedente a qualquer abandono ulterior da regra que queriam estabelecer para sempre. A fim de nao arranhar a autoridade da Monarquia e de se conformarem estrei- tamente A pratica de seus ancestrais, tal como elas apareciam nos estatutos declarat6- tios das rainhas Maria e Elizabeth, os membros do Parlamento reconheceram a Suas Majestades, pelo artigo segundo, todas as prerrogativas legais da Coroa, declarando “que estas prerrogativas lhes eram muito integralmente, muito legitimamente e muito completamente adquiridas, incorporadas, unidas e anexadas.” No artigo terceiro, a fim de suprimir as dificuldades que poderiam nascer da produgio de pretensos titulos i Co- roa, o Parlamento declarou (ainda aqui, conforme a tradi¢do nacional e servindo-se da linguagem tradicional a ponto de reproduzir como uma rubrica os termos dos atos pre- cedentes de Elizabeth e de Jaime) que “‘a unidade, a paz, e a tranquilidade deste reino dependem inteiramente, sob Deus, de uma regra fixa na sucessdo de seus soberanos.” O Parlamento sabia que um titulo duvidoso de sucesso seria muito semelhante a (em eleigao, € que a eleigao destruiria completamente “a unidade, a paz e a tranqiiili- ‘e de desta nagdo”, bens que julgavam dignos de alguma con: consideracao. A A fim de salva- ‘YWardar estes bens, e, pois, de repudiar a doutrina de Old Jewry a respeito de “um di- reito a escolher nossos governantes”, os membros do Parlamento introduziram no arti- go quarto um compromisso solene, tirado do ato de Elizabeth; compromisso 0 mais so- Tene possivel de respeitar a hereditariedade da sucessdo, a mais formal rentncia que se possa imaginar aos principios que a Sociedade da Revolugdo lhes queria imputar: “Os Lords e: e temporais, bem como os Comuns, agindo em nome de todo 0 dito povo/4e submetem.com toda a humildade e fidelidade, eles, seus herdeiros e sua poste- rae btm on sinceramente que eles empregardo todas as suas forgas para manter e defender as ditas Majestades, assim como a limitagdo da Coroa tal qual ela se encontra especificada e contida no presente ato.” A Revolugdo nfo nos dou o-dista de eles Nossos reis, € fearo au 3 8 nha que0-TErTETos possuido antes a nagfo ingles, por ocssfo da KevoliGag/renun- 60 Edmund Burke ciou solenemente a ele, por ela ¢ por todos os seus descendentes. Deixemos estes se- nhores de Old Jewry se orgulharem de seus principios whigs, tanto quanto queiram. Para mim, nao desejarei jamais passar por melhor whig que Lord Somers, entender os princfpios da Revoluggo melhor que os que a realizaram, nem encontrar na Declaragéo de Direitos mistérios desconhecidos daqueles cujo estilo penetrante fez entrar em nos- sas leis e gravou em nossos coragdes os termos € 0 espirito desta lei imortal. E bem verdade que neste momento, investida que estava de poderes nascidos da forga das circunstancias, a nago se encontrava, num certo sentido, livre para colocar no trono quem ela quisesse; mas livre somente com a liberdade que ela também tinha de abolir completamente sua monarquia ou qualquer outra parte de sua Constituiggo. No entanto, seus representantes ndo imaginaram ter 0 direito de poder realizar mudan- gas tdo audaciosas. E dificil, talvez impossivel, estabelecer-se limites 4 competéncia pu- ramente abstrata do poder supremo, tal qual o exercido pelo Parlamento nesta época; nfo é menos verdade que os limites da competéncia moral — que mesmo num poder mais indiscutivelmente soberano, subordinam as vontades de um dia a uma razdo per- manente, as méximas fixas da boa fé, da justica e das regras fundamentais da politica — que estes limites, dizia eu, so perfeitamente discenidos e observados pelos que, sob qualquer nome ou a qualquer titulo, exercam uma autoridade no Estado, E assim que, por exemplo, a Camara dos Lordes néo tem moralmente o direito de dissolver a Cama- ta dos Comuns, nem o de dissolver a si propria, nem o de abdicar, se ela desejasse, a porgdo do poder legislativo que ela possui entre o reino. Um rei pode abdicar por ele mesmo, ele ndo tem 0 direito de abdicar pela Monarquia. RazGes t4o fortes, talvez mais fortes ainda, impedem a Camara dos Comuns de renunciar a sua autoridade. 0 compro- misso, 0 pacto social que se chama geralmente de Constitui¢ao, proibe tais abusos ¢ tais abandonos de poder. As partes constituintes de um Estado devem respeitar as obri- ‘gages ptiblicas que elas tém umas em relagdo as outras ¢ em relaggo a todos os que de- rivam algum interesse sério de seus compromissos, da mesma forma que um Estado, co- mo um todo, é obrigado a manter sua palavra face a comunidades separadas. De outra forma, competéncia e poder seriam logo confundidos, e as leis nada mais seriam que injung6es da forga vitoriosa. Segundo este principio, a ordem de sucesso a Coroa sem- pre foi o que ela ¢ hoje: uma ordem de sucessdo hereditéria fixada pela lei. Era, na anti- ga linha, 0 direito costumeiro; hoje, é uma lei de garantia, mas que opera a partir dos principios do direito costumeiro, sem ter modificado sua substdncia, regulamentando apenas 0 modo de seu exercicio e determinando as pessoas 4s quais ele deva se aplicar. Estas duas espécies de leis tém forga equivalente e derivam de uma mesma autoridade que emana do acordo comum e do pacto original do Estado: communi sponsione repu- blicae.° Como tal, elas obrigam igualmente o rei e 0 povo enquanto suas condigées forem observadas; e elas servem para perpetuar 0 mesmo corpo politico. N&o é impossivel — se recusamos nos deixar enredar nos labirintos de um sofisma metafisico — conciliar o emprego de uma regra fixa com o fato de um desvio acidental; © carter sagrado do princ{pio hereditdrio na sucesso de nossos reis com o poder de mudar sua aplicago em caso de extrema necessidade. Mas mesmo neste extremo — se medimos a extensfo de nossos direitos pelo exercicio que deles fizemos na Revolucéo — 6 necessdrio se limitar 4 mudanga da parte deteriorada, daquela que tornou o desvio Reflexdes sobre a Revolucdo em Franga 61 necessdrio; e levar a cabo tal mudanga sem a pretensdo de decompor todo o corpo civil € politico, com a finalidade de se criar uma nova ordem civil a partir dos elementos ori- ginais da sociedade. Um Estado onde no se pode mudar nada, nao tem meios de se conservar. Sem meios de mudanga, ele arrisca perder as partes de sua Constituiggo que com mais ardor desejaria conservar. Os dois principios da conservag4o e da correg4o agiram fortemente nos dois periodos criticos da Restauragdo e da Revolucdo, quando a Inglaterra se en- controu sem rei. Em cada um destes dois perfodos, o fator de unio do velho ediffcio nacional foi rompido: nem por isto a nago destruiu todo o edificio. Ao contrario, em- pregou-se as partes da antiga Constitui¢fo que nada tinham sofrido na regeneracdo da- quela que faltava. Conservou-se as antigas partes exatamente como eram, a fim de que aquela que se reconstituia pudesse ser adaptada a elas, Agiu-se por meio das antigas ins- tituigdes organizadas na forma tradicional de sua organizago, e nfo por meio de mole- culae € dissociadas de um povo desagregado. Talvez em momento algum, o Parlamento soberano manifestou mais solicitude para com a Coroa, este princ{pio fundamental da Constituigo briténica, que no momento em que ela deixou a linha direta de sucessio hereditaria. A Coroa saiu da linha na qual ela vinha sendo transmitida até entao, pas- sando para a nova linha que se originava do mesmo tronco. Ela continuou sendo uma linha de sucessdo hereditdéria no mesmo sangue, mas especificou-se que a coroa sO seria transmitida aos membros protestantes da famflia. Quando o Parlamento mudou a linha de sucesso mantendo o principio da hereditariedade, demonstrou que considerava tal princfpio inviolével. Alids, antigamente, bem antes da revolugdo, a lei de sucesso admitia que este princfpio fosse emendado. Algum tempo depois da conquista, grandes debates surgi- ram sobre os princfpios legais da transmissdo hereditaria. Houve davidas a respeito de quem seria.o titular de direito 4 sucessdo, se o herdeiro per capita ou se o herdeiro per stirpes.® Mas que o primeiro tenha cedido ao segundo, ou que 0 herdeiro catélico tenha sido preterido em favor do protestante, ainda assim, o principio da hereditariedade foi conservado como uma espécie de imortalidade através das mudangas — multosque per annos stat fortuna domus et avi numerantur avorum.”' Tal € 0 espirito de nossa Cons- tituigdo, nfo nos perfodos de normalidade, mas em todas as suas revolugdes. Qualquer que tenha sido o primeiro rei, de onde quer que tenha vindo, que ele tenha obtido a coroa pela lei ou pela forga, a sucesso hereditdria continuou ou foi adotada. Estes senhores da sociedade de propaganda revoluciondria véem na Revolugdo de 1688 apenas o nfo cumprimento da Constituigfo, eles tomam o desvio do principio pelo proprio principio. Eles pouco consideram as Obvias conseqiiéncias de sua doutri- na. No entanto, devem ver que ela deixa uma autoridade positiva a bem poucas insti- tuigdes deste pais. Uma vez que se aceita um princfpio t4o injustificavel quanto o que s6 reconhece como legitimos os tronos eletivos, é certo que nenhum dos atos pratica- dos pelos princfpes reinantes antes desta suposta elei¢go podem ser considerados vali- dos. Serd que estes teéricos pretendem imitar alguns de seus predecessores que tiraram 08 corpos de nossos antigos reis da tranqiiilidade de seus tamulos? Ser4 que querem atingir e depor retrospectivamente todos os reis que reinaram antes da Revolucio, e, assim, sujar o trono da Inglaterra com o oprobio de uma usurpagdo ininterrupta? Tém 62 Edmund Burke a pretensao de invalidar, anular ou questionar os titulos de toda a linhagem de nossos teis, e este grande corpo de nossas leis constitucionais que foi estabelecido nos reinados daqueles que eles chamam usurpadores? Anulando leis inestimavelmente preciosas para nossas liberdades e que certamente valem todas as que foram votadas durante ou de- pois da Revolucao? Se reis que ndo devem sua coroa 4 eleigéo nfo tém titulo para fazer leis, 0 que ser4, ento, do estatuto de tallagio non concedendo? — e da petigdo de direi- tos? — e do habeas corpus?” Ser4 que estes novos doutores dos direitos do homem vo sustentar que o Rei Jaime II, que subiu ao trono em virtude de um direito heredi- tério ainda nfo limitado ao ramo protestante, nao era para todos os fins o legitimo Rei da Inglaterra, antes que ele tivesse praticado os atos que foram justamente conside- rados como uma abdicagfo a sua coroa? Se ele ndo fosse rei, o Parlamento poderia ter evitado muitas das dificuldades da época que estes senhores celebram. Mas no , o Rei Jaime era um mau rei investido de um justo titulo: ndo era absolutamente um usurpa- dor. Os principes que se sucederam em virtude do ato do Parlamento que colocou a coroa sobre a cabega da eleitora Sofia e sobre as de seus descendentes protestantes, reinaram, tal qual o Rei Jaime, em virtude de um titulo hereditario. O Rei Jaime rei- nou em virtude da lei que existia no momento em que ele subiu ao trono; e os princi- pes da Casa de Brunswick herdaram a coroa, ndo por meio de uma eleig#o, mas em vir- tude da lei que existia no momento em que respectivamente a receberam, e que fixava a coroa no ramo protestante, como acredito ter suficientemente demonstrado. A lei pela qual esta familia especificamente destinada ao trono é 0 ato do 12° e 13° anos do reinado do Rei Guilherme. Os termos deste ato nos ligam, até o fim dos tempos, “‘nds, nossos herdeiros e nossa posteridade, a eles, seus herdeiros e sua posteri- dade”, protestantes, nos mesmos termos que a Declaragdo de Direitos nos tinha ligado aos herdeiros do Rei Guilherme e da Rainha Maria. Este ato garante, pois, a um s6 tem- po, uma coroa hereditéria e uma fidelidade hereditdria, Que razdo tinha o Parlamento em rejeitar a bela e abundante escolha de principes que nossa patria lhe. apresentava, para ir procurar em pafses longinquos uma princesa estrangeira donde pudesse derivar, para a série de nossos futuros reis, seu titulo para governar milhes de homens ao lon- go dos séculos — sim, que razdo, sendo a tirada do objetivo constitucional de estruturar um sistema que garantisse, para o futuro, uma ordem de sucessfo capaz de descartar qualquer elei¢go popular? A Princesa Sofia foi nomeada, no ato do 12° e 13° anos do reinado do Rei Gui- Iherme, apenas como tronco e como raiz do direito hereditario de nossos reis; e ndo por seus méritos possiveis de detentora temporaria de um poder que ela poderia nunca vir a exercer,... e que de fato ela jamais exerceu. Eis a raz&o, a Gnica razio que 0 ato da para sua escolha: “a mui alta Princesa Sofia, Eleitora e Duquesa Viva de Hanover, € filha da falecida mui alta Princesa Elizabeth, Rainha da Boémia, filha do falecido nosso Soberano e Senhor o Rei Jaime I, de feliz meméria, e aqui ¢ declarada a primeira na linha da sucesso protestante,... € a coroa transmitir-se-4 a seus herdeiros protestantes.”” O Parlamento elaborou este ato nfo s6 para que no futuro a coroa da Inglaterra se transmitisse aos herdeiros da Princesa Sofia, como também (e julgou isto muito impor- tante) a fim de que esta princesa servisse de ligagdo entre o novo ramo ¢ o velho tronco de Jaime I. Desta forma, a Monarquia preservaria sua unidade intacta através dos tem- Reflexdes sobre a Revolugo em Franga 63 pos, conservando-se (com seguranga para nossa religifo) 0 seu antigo modo de sucessao hereditaria que, se um dia ameagou nossas liberdades, no mais das vezes, defendeu-as em meio a todas as tempestades e todos os conflitos de privilégios e prerrogativas. O Parlamento agiu bem. Nenhuma experiéncia nos ensinou que, sob qualquer outra forma de governo que nfo uma monarquia hereditdria, nossas liberdades poderiam se perpe- tuar € se conservar no respeito como nosso direito hereditdrio. Um mal-estar violento e inesperado pode exigir uma medicagao enérgica e excepcional; mas a sucesso heredi- téria do poder real caracteriza 0 estado de satide da Constituigao briténica. Pode-se dizer que quando o Parlamento fixou a coroa na descendéncia feminina de Jaime I, representada pela Casa de Hanover, no viu os perigos que podia representar a chegada ao trono da Inglaterra de dois, trés ou talvez quatro estrangeiros? Nao, tais perigos nfo Ihe escaparam, teve deles o sentido correto. Justamente, 0 fato de haver o Parlamento perseverado em fixar a sucesso no ramo protestante da velha linhagem, nao se esque- cendo dos perigos e dos inconvenientes advindos de que era ele estrangeiro, prova de maneira decisiva que a nagdo inglesa tinha a firme convicgdo de ndo estar autorizada, pelos principios da Revolucdo, a eleger seus reis a seu bel prazer, e sem levar em conta 0s antigos principios sobre os quais se fundamenta nosso governo. Hé alguns anos, todos estes argumentos nio teriam sido necessérios, ¢ eu teria me envergonhado em sugerir um assunto to bem defendido pela sua propria evidéncia. Mas hoje, esta doutrina inconstitucional e sediciosa & aceita, ensinada, publicada. De- testo as revolugdes, sei que freqiientemente é do pilpito que se dé o sinal para o seu desencadeamento. Vejo reinar na Franca um desprezo absoluto por todas as institui- gOes antigas quando se lhes apresenta como opositoras 4 maneira atual de conceber as coisas, ou 4 direcdo das inclinagGes de hoje. Temo que este desprezo se estabeleca entre nos. Todas estas considerag6es me fazem pensar que no & intitil conduzir nossa aten- go para os verdadeiros princfpios de nossas leis domésticas, a fim de que o Senhor, meu amigo francés, comece a conhecé-los, ¢ que nds continuemos a respeité-los. Nao devemos, de nenhum dos lados do canal, nos deixar impor as falsificagdes que al- gumas pessoas, usando uma dupla fraude, exportam para a Franca no fundo de malas proibidas, e que so apresentadas aos franceses, ainda que estes as desconhecam por completo, como verdadeiros produtos ingleses, para em seguida contrabanded-los para a Inglaterra, depois que Paris as adaptou ao mais novo gosto de uma liberdade aperfei- goada. _ + O povo da Inglaterra nfo imitaré métodos cuja experiéncia nunca tenha realiza- do, nem retomard métodos que a experiéncia mostrou ser nocivos. A lei de transmis- sdo hereditaria da coroa aparece-lhe como um de seus direitos, nfo como um dos seus deveres; como uma vantagem, ndo como um abuso; como uma garantia de suas liber- dades, ndo como o selo de sua escravidao. Ele olha a estrutura da coisa publica, na for- ma em que ela existe atualmente, como um bem de valor inestimavel; e a transmissi0 pacifica da coroa aparecethe como a garantia da estabilidade e da perpetuidade de to- das as outras partes de nossa Constituiggo. Antes de ir adiante, permita-me, senhor,\assinalar-lhe alguns dos despreziveis ar- tificios por meio dos quais certos senhores, apresentando a eleig§0 como 0 tinico titulo legitimo a soberania, sfo capazes de tornar quase odiosa a defesa dos verdadeiros prin-

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