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Cenas juvenis 1994 © Helena Wendel Abramo l edicdo: setembro de 1994 © Error PAGINA AneRTA LTDA. ISBN 85-85328.87.8 (CENAS JUVENIS HELENA WENDEL ABRAMO em codigo com a Anpocs Pos Graduagao em. Digitalizado com CamScanner Tl O estilo monta um espetaculo N ‘cio dos anos 80, no Brasil, a conjuntura econdmica, politica e social, marcada pela “transicao incompleta” da ditadura para um estado de direito, combina-se com a acen- tuagdo das questdes que haviam emergido, numa dimensio imernacional, desde o final do ciclo das transformacses da década de 60 (e que alguns identificam como caracteristico da “pésmodernidade”): a intensificacao da midia e do consu- mo e¢, além da crise econémica geral, crise dos valores, dos modelos politicos e de utopias (Heller, 1987/88; Morin, 1985; Olivei No Brasil, essas questdes haviam ficado mai submersas durante a ditadura, quando os setores de oposi¢i0 ejeitavam todo © universo veiculado como fruto do modelo de desenvolvimento adotado, buscando construir alternativas de Vida € sustentando a utopia de transformar globalmente a Fdem social, por meio da derrubada da ditadura. A reorganizacao dos movimentos populares ¢ as 1uras uy menos 7 eee Digitalizado com CamScanner Helena Wendel Abramo 2 aberta transigio é lento € QUE sno instaura a sensacao de crise wt6j a crise na economia, co ritmo da cacontinus Por outro lado, vai produzir somente ; ton que culminardo com 2 Fecessio de 1982. Os jovens vio so. ther de forma acentuada o estreitamento das possibilidades de arquitetar uma vida saisfatria através da carreira profs. sional e mesmo de sustentar a participago nos espacos da es cola, do consumo e da diversao. Paralelamente, descortina-se a nova configuracao do uni- verso juvenil: a crise do espaco universitario como significati- no final da década os seus maiores efei- vo para a elaboracao das referéncias culturais, 0 enfraqueci mento da nogao de cultura alternativa como modo de contra- posigao ao sistema ¢ a emergéncia de uma intensa vivencia, por parte dos jovens das camadas populares, no campo do la- zer ligado a indistria cultural. E entdo que emergem como personagens expressivos des ‘se novo universo juvenil os grupos articulados em torno do & tila, Sao fendmenos que se desenrolam justamente no cruzi mento dos campos do lazer, do consumo, da midia, da crit” so cultural ¢ lidam com uma série de questées relativas 3 necessidades juvenis desse momento. Entre elas, de de construir uma identidade em meio a intensa com} dade e fragmentagio do meio urbano, ¢ que se reflete Re PF so sinalizador e na velocidade das modas; a necessidade 4 ‘equacionar 0s desejos estimulados pelos crescentes apelos consumo € as possibilidades de realizé-los; a necesidade simarse frente & enxurrada de informagdes veiculadss Peet imcios de comunicagio; a necessidade de encontrar esP™°* de viveniae dversio num meio urbano modernizad0 ™ a necessida- plex Conas juvenis 3 ainda pobre de opcdes e segregacionista, adverso aos jovens " 0 poder aquisitivo; e a necessidade de elaborar a ex- periéncia da crise, com as dificuldades de articular a tus de ftir paras propose parasanedade. Buscando lidar com essas questies, alguns grupos de jo- vens vio construir um estilo proprio, com espacos especificos de diversio e atuacao, elegendo e criando seus préprios bens culturais, sua miisica, sua roupa, buscando escapar da medio- cridade, do tédio da massificacio da propria imposicio da industria da moda. E com essas criagdes que eles manifestam sua posicio no mun- doe as questbes com que se debatem. Num meio onde a princi pal forma de comunicagio se da cada vez mais através da ima- ‘gem e as identidades sociais se expressam principalmente através da ostentacao de artigos de consumo, é pela construgio alegéri- ‘a da propria imagem e com 0 uso esrankode determinados ob- tos, que esses grupos vio tentar se movimentar nesse universo. Os punks foram os primeiros desses grupos a aparecer nas cidades brasileira, e assim podese dizer que surgiram co- ‘mo a primeira manifestagio das novas questdes colocadas pa- 1a essa geracio de jovens urbanos. O seu surgimento e 0 cho- {que por eles provocado desencadearam o aparecimento de diversos outros grupos ou tribes, como se passa usualmente a denominilos. Depois dos punks vieram 0s carecas, 05 meta- leiros, os darks, os rappers, os rastafaris, os rockabillys etc., Pondo em evidéncia a grande diferenciacio e fragmentacio ‘que atravessa a juventude. Mas foram os punks que langaram 4 pista, introduzindo um novo modo de manifestagio ¢ atua- ‘40, estimulando assim outros grupos juvenis a assumirem ‘expressarem suas identidades distintivas E importante observar aqui que hi inimeras diferencas entre esses grupos, da amplitude ao tipo de confgurario que pa Digitalizado com CamScanner SUpeSeRE EMCI SaEEeStEsaEEE ‘Hdena Wendel Abramo ogra de coesio interna, 0s vinculos de perten, congo dew nome de autodesignicao, a esr, fangues ov nso, importancia da identidade er ssando pelas questdes apresentadas © pela sug assume cimento, turacio em ritorial — ‘efincao ideolbgica ‘Mas penso que & ‘ n claboracio e expresso de questdes relativas a vivéncia da ‘ondici juvenil na atual conjuntura, como formas de nego- ciar espacos de vivéncia nesse novo meio urbano, de proces ‘ara elaboracio de identidades coletivas, de forjar respostas que os posicionem frente aos valores correntes na sociedade de prover uma intervenco no espaco social. Podese dizer que, de forma geral, o imaginario € o com portamento dos grupos juvenis nos anos 80 foram bastante mareados pelas questdes lancadas pelos punks. Prineipalmente a proposta de uma atuacéo — em vez da passividade — no pré- prio campo do lazer € do consumo, expressa pelo do it yourself “facaa sua misica, o seu estilo, nao se acomode na postura de ‘espectador passivo”. E, por outro lado, a tematizacao da crise do {futuro — pessoal e social — como questio central: 0 questions: ‘mento do futuro possivel e das possibilidades de esperanca. tom central, a inspiracao dado por jovens das clas ss trabalhadoras. Isso tem ligacéo com o que ja foi exposto 9° ‘capitulo anterior, sobre a elaboracao de uma vivéncia propri ‘mente juvenil entre as camadas populares. Com isso, 08 joven’ \wabalhadores passam a partithar da histéria da “cultura jue nil" internacional, nos termos em que Morin a define. Nesse sentido, penso que é mais interessante considera? dese pss os punks constituem uma “subcultura” deri A haa wen internacional, que assumiu os contornes “ss proletiria, ao contrario de serem uma “subcullur? possivel vélos todos como formas de Conasjuvenis. is) da classe operaria” que teria assumido uma conotacio juvenil, conforme a defini¢ao dos pesquisadores de Birmingham para 0s grupos juvenis ingleses. Parte dos jovens de classe média também se sentiu impac- tada de diversas maneiras pelas questdes colocadas pelos punks, tanto pelo movimento punk inglés com suas deriva Bes culturais, todo 0 pirpunk ea new wave, quanto pelos gru- pos punks brasileiros. Em funcao desse impacto, surgiram vit rios grupos — em Brasilia, Sao Paulo, Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro — que faziam miisica com a tematica da con- igio juvenil urbana numa sociedade em crise e sem futuro. Do meio universitario e colegial de Sio Paulo acabou por surgir uma tribe, articulada em torno de bandas que ficaram conhecidas como rock paulisia e que desenvolveram um estilo posteriormente batizado de dark. Esse grupo ganhou razoavel influéncia nos meios culturais juvenis da cidade € apareceu ‘como uma das mais significativas expressdes da postura de de- sencanto juvenil com a Sociedade e com seu futuro. Foi esse-grupo que chamou especialmente minha atencio, ‘uma vez que sintetizava a mudanca de postura com relagio & geracio universitéria anterior que atuava em torno de uma ute Pia e de bandeiras de transformacio, por isso permitia explo- rar melhor as diferengas operadas. Foi com esse grupo que rea lizei a pesquisa de campo, tentando explorar fundamentalmen- te 0 significado de uma atwagdo centrada na distopia, Mas, para entender o sentido o significado desse grupo, foi necessario procurar compreender melhor o préprio fend- meno punk no Brasil, e de que modo as questées por eles tr balhadas provocaram impacto e significagio na deflagracio de outros comportamentos juvenis. Para tanto, apoictme em Pesquisas e estudos jé realizados sobre os punks de Sio Paulo € do Rio de Janeiro, em documentirios feitos na época de ———_ Digitalizado com CamScanner dena Wendel Abramo 6 sto movimento, registrados em videos ¢filmest,¢ mt ie ‘com integrantes do movimento. em oeealise esses dois grupos — 05 darks © 08 punks — sone! verifiarprincipalmente de que maneira cles sees era ‘como forma de manifestaao de questées juvenis, vrei de uma atuacao cujo exo €a elaboracao de um esti por mei loque pr 5 “Goma jé observamos antes, existerm muitas diferencas en- tre os grupos, mas também elementos semelhiantes ¢ elos for sxdo, no caso dos punks e darks, Para fornecer uma eura exporse como espetéculo no espaco piblico, tesde cones localizacao inicial é importante assinalar que os punks surgi ram primeiro, no final dos anos 70, ¢ existem até hoje (novas geracies de punks), embora com menos forca. Boa parte de- Jes onganizase em gangues, que geralmente, mas ndo neces- soriamente, tém um vinculo territorial; esta estruturacao em {gangues conheceu uma modificacao entre 1982 e 1984, como veremos mais adiante. Os punks so, ou foram, bem mais nu- ‘merosos que a maior parte das outras tribos, embora nao se saiba mimeros que expressem a amplitude alcangada. Surgi- ram grupos punk em quase todos os centros urbanos do pais: vro que em 1982 ha, em Sao Paulo, “um niimero de punks bastante relevante: uns dizem trés mil, outros exageram € cal cculam ito mil” (1982, p. 100). Jé 0s jovens que se reuniram em tomo do underground paulista, os chamados darks, 4° ‘am muito além de uma centena de jovens. Eles néo assum ram um nome definido, arate defini, come veremos mais adiante € no 6 cram as bandas Bangues. O polo de aglutinacao central teo ae c de miisica, umas quinze a vinte bandas du tor cectnee fan GUE #3 grupo vigorou como tal, que pode aproximadamente entre 1983 e 1986. Conas juvenis ” Estilo ‘A nogao de estilo com a qual estou trabalhando é funda- mentalmente aquela desenvolvida pelos pesquisadores do CCS de Birmingham (Hall e Jefferson, 1976); para explicar a “elaboracao subcultural de um estilo distintivo” por parte dos grupos juvenis ingleses, embora nao adote a nogio de “subcultura” para definir os fendmenos em foco no Br: © sentido mais comum do termo “estilo” remete a um modo peculiar de expressio e atuacio. A etmologia mostra que o termo vem da palavra latina . que designava um instrumento de escrita (um objeto pontiagudo para escrever sobre cera) € que, por derivagio, passou a denotar a maneira de escrever. Desse uso, a palavra tomou uma acepcao mais ge- nérica de um conjunto de tragos que caracterizam uma forma de expresso, Atualmente, o termo tem uma gama bem varia- da de aplicagdes, mas todas de alguma maneira referindo-se a um modo distintivo, que pode ser reconhecido, de fazer algo (International Encyclopaedia of the Social Science). E importante salientar que 0 estilo nao é simplesmente 0 conjunto de tracos que se pode observar num artefato, Ele pressupde a criagdo consciente (através de uma eleicao inten- cional) de um conjunto de tragos com um principio de orde- hacao, na qual existe a intengao de diferenciagao em relacdo a outros artefatos. Sao as dimensoes da escolha inten- cional, ¢ da distingdo de um padra formulagao. Também para os pesquisadores de Birmingham o estilo Digitalizado com CamScanner Helena Wendel Abramo 8 fo a andlise desses pesquisadores, os jovens das sub caltras ingles “adotam e adapta’ materiais — bens e merca- apes eorganzam dentro de estos distintvos que ex prenarn a coed des Somer (Clarke, 1976). “A apropriagio desss peeas, a maior parte delas providas pelo mercado, obedece a uma selegao dirigida pela possibilida- de de reconhecimento do grupo nos seus sentidos potenciais: ou sj, os objetos adotados “devem possuir a possibilidade de refleir os valores particulares e preocupacdes do grupo” “Tais elementos sio retirados de seu contexto original ¢ Segund reorganizados num novo ¢ inusitado conjunto, como num processo de bricolage (conceito inspirado em Lévi-Strauss), através do que adquirem novos significados. (Os autores recorrem a andlise de Barthes para lembrar que as mercadorias sio signos culturais, possuem sentidos e conota- es que parecem naturais porque estao fixados por cédigos de sentido dominantes. Quando estes objetos sao realocados num novo conjunto, sio enfatizados determinados detalhes, antes ir- relevantes;sio aproveitados de um modo diferente daquele pa +20 qual haviam sido previamente destinados; ¢ isso provoca subversio e transformagio dos usos e sentidos dados para ou- {10s novos. O resultado é, assim, um conjunto novo e diferente, mas que implica sempre a remissio aos conjuntos dos quais agora se distinguem. O estilo subcultural precisa ser visto sem pre‘em uma relacio de oposi¢ao a um outro cédigo cultural. x Pee Teciproco entre as coisas que 0 grupo usa ¢ Que estruturam e definem 0 seu uso. Os objetos naa ae) mene um conceito tomado a Lé pus sean a @ sua autoimagem. O grup? pelas pecas que usa, € 0 estilo tomase i festacax soma uma significativa mani 4o da identidade do gr las questdes por ele formuladas, Conas juvenis 49 E dessa maneira que se pode diferenciar o fendmeno do estilo do fendmeno da moda. Esta aparece como cépia de um conjunto de tracos que tém uma conotagao ji dada especifi- camente, € nao envolvem um processo de criagio ¢ identifica. 40 com questdes e atuacées de um grupo social. Mas € preci- so ressaltar que ha uma tenséo permanente entre a criacio es ea sua transformagao em moda. Os simbolos criados normalmente por um pequeno gru- po, solidario e coeso, vo suscitando identificagdes por parte de outros grupos ¢ individuos, em situagdes ou com proble- ‘mas semelhantes. Esses novos grupos e individuos vio incor- porando e acrescentando novos elementos a essa criacio, am- pliando esta identificagio para além dos grupos onde primei- ro se originaram. Enquanto houver essa homologia entre a utilizagao do es- tilo e as experiéncias e problematizagdes concretas de quem fo ostenta, o-estilo se manteré como uma criacao cultural viva € significativa. Mas, & medida em que os elementos que com- poem o estilo vao-se difundindo para além das experiéncias € atuagdes dos grupos, o significado neles contido vai-se diluin- do e perdendo 0 cardter simbélico ¢ expressivo. A este pro- cesso, 0s autores de Birmingham chamam de defusion, cujo sentido aproximado é o de diluicio ou desagregacio (idem). E, nesse processo, os agentes da indiistria ¢ do mercado tém papel central, na medida em que buscam se apropriar dessas inovacées a fim de alimentar a ininterrupta producio de novidades e, dessa forma, manter a reposicéo constante das necessidades de consumo. Particularmente desde os anos 50, o mercado mantém uma atengio especial voltada para oS acontecimentos desenvolvidos por tais grupos, buscando P- tar as novas criagdes para oferecé-as como simbolos de iden- tidade juvenil. ——— Digitalizado com CamScanner ‘Helena Wendel Abramo Moda contra estilo io entanto 0 ico de transformacio do estilo em moda pase sr uas ds grandes preocuparoes de tas grupos: co. Pa tar a mudanca do seu estilo em modismo ¢, portanto, a diluigio de seu propésito expressive? Tid como que uma luta constante desses grupos na sua re- lagi com a midia ea indGstria cultural, € da qual resulta um aqui instvel.Imersos nesse meio utilizando seus prod tos para realizar sua propria e distintva cultura e identidade, nas a0 mesmo tempo desejando formas de exposi¢ao e comu- nicagdo, o que inclui a circulagao nos meios de comunicacio, esses grupos juvenis estio permanentemente sob 0 perigo de se verem novamente apropriados pela indiistria cultural pa: dronizados, devolvidos a normalidade como produtos da moda tendo asim seus sgnificados originais diluidos e esvaziados. Esse receio permanente explica os constantes contflitos en- tre estes grupos em tomo do que é genuino e do que & armario, ddo que é auténtioe de quem entrou no esquema etc. No caso das bandas de misica a grande questao reside na relagao que elas podem estabelecer com as gravadoras, e principalmente a ci- Pacidade de resisténcias as exigéncias de mudangas nas suas criagSes, que envolvam modificagao dos contetidos elaborados. Caiafa (1985) afirma que também por isso 08 punks to- mavam, como simbolos de identidade, sinais tio repugnantes como a sudsticae 0 lixo, na tentativa de escapar & incorport- ‘io pelo mercado. . ee Ae, depos do primeiro impacto de sso wpe el Pik nda ea mii come {he rnula na extn de enter cia de ide dife ar e enquadrar os dife- (Cenas juvenis er rentes grupos, a fim de passar a produzir e oferecer uma en- xurrada de novas modas e novos produtos para diversos seg- mentos da populacio, Esse, também, foi um dos motivos pelos quais o grupo do rock paulista resistiu a assumir denominagio de dark ou quak quer outro rétulo, com medo de passar a fazer parte de mais uma das modas oferecidas pelo mercado. Essa uma tensio que permanece como um elemento constante da existencia € da atuagao de grupos juvenis desse tipo. Muitos dos grupos de miisica tém esta questio como te- ma de suas letras, como esta do Legiao Urbana: ‘Asua roupa nova € s6 uma roupa nova voce niio tem idéias, para acompanhar a moda (..) ‘mas voce nunca dangou com édio de verdade (..) ‘yocd € tio moderno, se acha tio modemo, ‘mas é igual a seus pais 6 56 questio de idade, passando desta fase, tanto fer ¢ tanto faz. A danca, Legiao Urbana © uso da roupa sem o sentimento ou a idFia a que ela esti vinculada vira apenas uma moda, ¢ deixa de fazer sentido. Em vez de ser uma manifestagio genuina que visa provocar Teagdes, passa a ser apenas fravessura ou mania juvenil, dest- ado, enquadrada, como rito de passage que jidadte com a heranga deixada pelos pals. DA PERIFERIA AO CENTRO: OS PUNKS Foi no correr do ano de 1978 que surgiram em Sio Paulo os Garotos que gostavam de rock € 44e discos € inovagdes must \cdes, novos — Digitalizado com CamScanner Helena Wendel Abramo «ais, entiramse atraidos pelo som ¢ pelas idéias dos grupos punks que se desenvolviam na Inglaterra. Os pesquisadores, aque se dedicaram a registrar € estudar o fendmeno punk em Sio Paulo (Bivar, 1982; Pedroso ¢ Souza, 1983) mostram que esses garotos sio, na sua grande maioria, de familias de traba- Ihadores de baixa renda, moradores dos subiirbios ¢ perife- rias, Em geral, trabalham em ocupagées des¢ ‘esti em busca de emprego; muitos deles estéo ainda fre- quentando a escola Naquela época, havia punk inglés. As primeiras n Pop, Manchete, Veja. As reportagens retratavam o punk como uma nova corrente dentro do rock, que 0 revolucionava ao retornar ao bisico e a “postura rebelde” das suas origens; também mostravam os punks como um “movimento de con- testagio” de jovens pobres e marginalizados, um movimento de protesto que usava imagens de podridao e violéncia para assim se manifestar “contra as normas vigentes”. Em 1977, a revista Pop langou uma col de grupos ingleses € norte-americanos intitulada Punk Rock. Posteriormente, foram lancados no Brasil alguns discos de bandas como os Ramones, Sex Pistols e Clash. Mas a divulga- so foi muito pequena e restrita e, naquele momento, nao ‘hhouve qualquer repercussio ou desdobramento em termos ‘de exploracio comercial. Até 1979, nao havia nenhum pro- poucas informagdes sobre 0 icias apareceram nas revistas | Brama de ridio ou televisio que veiculasse esse tipo de mis Jativamente a0 largo. Nit hava sequer, como mais tarde veio a acontecer, Uorad® Pela mia de cements do eso punk como 0 inerewe dow sr te afirmar, portanto, que no Brasil 0 Fenny ot Ete elo punk comecou a instal id te de estratégias de marketing e até mesmo Fe da mass media. Conas juvenis eal Nos bairros e subiirbios da cidade de Sio Paulo jé exis tiam, desde os anos 50, grupos ¢ gangues juvenis em geral li- gados ao gosto pelo rock € movidos pela busca de atividades mais intensas do que as oferecidas pelos canais normais de la zer. Como, por exemplo, 0 cultivo de tendéncias musicais nao divulgadas pela midia, a busca de discos raros de bandas jonais ¢ estrangeiras (que envolvia a procura por lojas ex pecializadas, importadoras etc), a cotizacéo para compriclos, a reunido para ouvir € gravar, 0 auxilio de quem conseguia traduzir as letras, a organizacao de festas, a ida em conjunto a festas alheias e a tentativa de “impor” as misicas preferidas na discotecagem. Foi em grande parte através dos canais de pesquisa desen- volvida por esses grupos de jovens que as informagées sobre 0 punk inglés foram divulgadas. Algims deles tiveram sua aten- ‘sio despertada pelas reportagens das revistas, outros pela au- digdo dos poucos discos aqui disponiveis Os analistas citados; (Bivar; Pedroso Souza), assim como 0 jovens que entrevistei aludem ao “sentimento de insatisfago", como mote para a identificagao com a proposta de atuagio contestatéria do movimento punk. Eram grupos de jovens descontentes com 0 estado geral das coisas, num le- que amplo e difuso, que vai das alternativas de lazer as pers nais, as normas sociais, & situacao do pais € por agitacao. Estes jovens encontraram, no ideario punk, uma maneira de afuar, algo em torno do qual estruturar uma diversio genuina, intensa, que fornecesse 20 lade singular e uma forma de ex Para Pedroso e Souza, a adogio do punk por. oven dos subirbios de Sio Paulo fundouse na “identificaio ideo!e 2” com 05 garotos ingleses que experimentavam a me —— Digitalizado com CamScanner ‘Helena Wendel Abramo o preza ¢ violencia; a mesma insatis. jo de desempres® PO! . 3 tuacio de omplexidade ¢ a distancia do rock de entio; fagao com “de uma misica que desse vazio 4 Toca de diversio © a wna atuagao que canalizasse a vontade de agitacio cecontestagio" (idem p: 26)- Pela descrigio desses autores, grupos de jovens agluti- raramse em torno da tentativa de fazer tocar a misica punk ie sales de danca que frequentavam, onde 0 que se tocava fxs rok pesado (0 rock progressivo e suas derivacSes). E. mui- tas veres isso significava a armagio de atritos e brigas com os outros frequentadores € com os organizadores dos bailes, Paulatinamente, esses jovens assumiram um visual inspirado nas imagens vindas do movimento inglés. Ainda segundo ex ses autores, as gangues formaram-se para ir ¢ vir dos saldes. Foram, assim, criando elementos de identificagao préprios — peculiares dentro da elabora¢ao mais ampla do estilo punk — ‘¢ um sentimento de pertencimento territorial, a partir do ‘qual se distinguiam de outros grupos de jovens ¢ mesmo de outras gangues punks. O sentimento de solidariedade inter- rebeldia € na, que dava consisténcia as gangues, era reforcado pelos me- canismos de defesa e ataque acionados nessa atuacao, que en- volvia muitas brigas dentro e fora dos sales. Um misico entrevistado por mim, que foi punk, conta que ele © seus amigos ja formavam um grupo, que “curtia som” junto, reunia-se para comprar discos, gravar, traduzir as letras, e que saia junto, “zoava”, ia aos bailes: ho eos eras rogucitos; mas estivamos de saco cheio me ‘que havia € estivamos a fim de uma coisa mais radical. Ne comeco a gente nio curt muito © punk, quando % rs es PuaBens da Pop, porque achavamos que €F4 do metnuot Pasagera; mas, depois, a gente foi sacal- + Postura, pels informacdes que chegavarn M28 Conas jruvenis 95 revistas importadas, nos fanzines que comegaram a chegar fe achando que tinha a ver; mas eu m do ou uma ita do Generation Xe pd pra alga ad tis aletra me pegou, Seu grupo foi assumindo uma postura punk, radicalizan- do o carater de gangue, compondo um visual mais agressivo, com tachinhas nas j montar uma banda, tas de couro preto, ¢ acabou por lada Restos de Nada: ‘A gente comecou a montar bandas, porque a gente queria falar dos problemas daqui Esses depoimentos permitem tocar num ponto importan- te do debate sobre o significado desses fendmenos juvenis. 0 fato de os grupos estruturarem-se inspirados nos fenémenos de outros paises, divulgados pela indiistria cultural, nao signi- fica que se trate simplesmente de comportamento imitativo, ‘ou de mera cépia ou modismo, imposto pela indiistria. Rock, imitagdo, autenticidade ‘Como foi visto anterioremente, desde 03 anos 50 a viven- ia juvenil € fundamentalmente atravessada pela fruicio de bens veiculados pelo mercado. Ha uma relagio de apropria ‘0 € reapropriagio recfprocas entre jovens ¢ indistria cultu- ral, Os grupos juvenis realizam criages culturais ¢ inovagSes, a partir de bens fornecidos pela indistria cultural ¢ esta cap- \@, reproduz e divulga essas criagdes. Morin assinala a ambi- guidade permanente existente no seio dessas culturas juvenis dada pela dinamica ambivalente presente na sua elaboracao, que tem sempre duas dimensdes: uma de inovagio ¢ critica ¢ outra de padronizacéo e acomodacao, de consumo passivo (Morin, 1986). ee Digitalizado com CamScanner Ne ™” Helena Wendel Abramo aricularmente, tem seu desenvolvimento umbi- “ indstria cultural, Mas nasce também com hheza em relacio aos padres culturais yi. 0 rock, Ficalmente ligado acento de esta 0 se com una dmensio de inovario de costumes € val res, Resultado tunas negra e branca norte-americanat de uma fusio entre culturas diferentes (as cul cele sera sempre meio Jos adul tagio barbara eselvagem, € pelos adultos da comunidade ne- im, como sendo uma diluicio e uma traico dos contetdos dda sua cultura Por outro lado, diz Yonnet, o rock, como género musical, se estabelece com uma estrutura circular, de repetigio da base musical € das atitudes corporais; por isso se torna ime- diatamente reconhecivel e reproduzivel, e se configura como ira de mascara’, podendo ser vestida ¢ imitada ao Edessa maneira que o rock’n roll, quando nasce, ros anos 50, vai poder ser adotado € servir de expressio para um “grupo social emergente, a adolescéncia”, No entanto, ainda de acordo com o mesmo autor, a reelaboragao realiza- da pelos grupos ingleses nos anos 60 (fundamentalmente os Beatles ¢ os Rolling Stones), que ele intitula 0 “ciclo pop do rock’, inaugura uma nova historia do géne como um campo permanente de reinterpretagao € inovacao, nna qual a nova geracdo introduz uma ruptura ¢ inicia um novo ciclo. infini Caiafa também chama a atengio para este carter stra ro are Partir de sua origem basica de mistura de dit Pare eet € que Ihe da a possbilidade de se 26 Em cada Tsas linguagens € continuar sendo sempre rock gar em que chega, sera a “mistura de um elemen” Cenasjvenis 7 to de fora com um elemento de dentro”. Caiafa também se apbia na idéia de que é este “estrangeirismo” do rock que the permite ser adotado como uma linguagem internacional da juventude, estranha em sua sociedade pela sua condigio eti- ria (1985, p- 11). Esse carter internacional do rock nos remete a existén- cia de uma certa dimensio daquilo que Morin e outros auto- que se comuni- ca por cima das mais variadas distingdes sociais — por exem- plo, distingdes geograficas e nacionais. No interior dessas cul turas juvenis hd elementos que diriam respeito a questdes ori- ginadas pela condicdo etéria e geracional e que fariam senti- do para diversos € distintos grupos juvenis, mesmo quando produzidos por um grupo localizado socialmente. Ass identificagao de grupos juvenis de um pais, com as criagdes i —, produzidas por grupos de outros paises nao precisa ser ent dida como imitagao: pode ser vista como fruto do reconh mento de experiéncias similares, que resultam na adocio das rmesmas referéncias (0 fenémeno punk parece ter tido essa capacidade de sin- | tetizar uma experiéncia e expressar um sentimento amplar mente generalizado na juventude, em termos mundiais. Espa- Thou-se como um rastilho de pélvora pelos quatro cantos do mundo antes mesmo que a indistria pudesse ter tido tempo de absorvé-lo para converté1o em moda. No entanto, isso no significa pensar a condicio juvenil como universal, da qual estejam ausentes as mais variadas di- ferenciagSes sociais. E 0 proprio caso da cultura punk, que foi adotada no Brasil apenas por determinados grupos juvenis / com definicéo social especifica: foram os jovens de familias | de trabalhadores, moradores de bairros de ‘subarbio das gran- \ des cidades, que se identificaram com a situagao de margina- \ hel \ b nl Digitalizado com CamScanner felena Wendel Abramo 5 He redutivel contra a ordem, lidade e de exclusio, € com a das pelos punks ingleses. reseata 7 oe punk de Sao Paulo nao é Bivar afirma que “a reb } porta do punk de fora, mas uma identificagio 1982 p. 94). m outros lugares, uma c6pi adaptada a realidade local 'As referéncias produzidas ¢ sadotadas”, sio recodificadas em funcdo das especificidades do novo solo em que se instalam. No Bras rotos consideraram que alguns elementos de fora “faziam ido" para expressar a situago em que se encontravam; senti também julgaram interessante assumi-los como uma forma de atuacio significativa para si. Mas, a partir desses elementos, desenvolveram uma constelacio propria de signos, temas ¢ valores, expressiva da sua situacio concreta social . esses elementos serviam para lidar com as nacional. Para el questdes aqui vividas, especificas do grupo, ao mesmo tempo pelas bandas de Sao Paulo vai ter um acento proprio, centrado na superaceleracao € na curtis io da misica, As letras vio insistir muito na dendincia da s- tuacdo das classes trabalhadoras exploradas pelo sistema jovens oprimidos pelo desemprego, pela m a ial. O conjunto esti culiaridade: usase bem mais © tom negro do que os punks sleses, por exemplo. Nos cabelos, os cortes sdo semelhantes, nas 0s punks do Brasil quase nao tingem os cabelos com idas, como os de Londres. Essas observagdes reforcam o argumento de que 0 dese? Conas jucenis 99, “movimento de revolta” e/ou como um “estilo de vida". Bivar fala em “um movimento de rebelido juvenil”, Pedroso ¢ Souza sugerem que o punk consistiu na “montagem de um estilo de vida original e auténtico”, que expressava uma nova maneira de os jovens encararem a realidade, ¢ que assumiu um carater de “movimento urbano de contestacao (...) de todos os siste- mas que implicam em dominacio". Mas é problematica essa conceituagao do fendmeno tan- to como “movimento social de rebelido” quanto como “pro- posicao de um estilo de vida original e auténtico”. Minha per- cepcao é mais préxima a de Caiafa, que descreve 0 movimen- to punk no Rio de Janeiro como a atuaco de um bando que ostenta signos de choque € provoca atrito, que “intenciona deflagrar desobediéncia, interferéncia ¢ intensidade”. O que estou procurando demonstrar € que essa atuacio centrase na, criagio de um estilo espetacular e na sua intencional exposigao no espaco piiblico. Cena 1: um garoto estranho* Onze horas de uma manha quente de sol do ano de 1978, Em pleno movimento da rua 15 de Novembro, no cen- two de Sio Paulo, aparece um jovem esquisito, magro, eviden- temente um jovem de fat apresentava 0 vigo caracterist Veste uma calga jeans velha, extremamente apertada ¢ ma heranga pobre de alguém de est arqui com pregos € pontas de 1m cadeadlo a guisa de colar. O corte de cabe- Digitalizado com CamScanner Wendel Abramo i Helena io é surpreendentemente curto€ geometric, contra todas ay vo seneies da Epoca,apoiadas no Tongo € 10 natural: curtis. ve na base ¢ erigado no alto, sustentado com espuma de seponete ressecada, deixando & mostra todos os angulos ¢ vTefeitos do rosto. Seus passos sio endurecidos pelos pesados e surrados coturnos pretos, os cotovelos meio Suspensos, co- tno que armados para reagir a um possivel ataque, © conjun- rae explcitamente indigente, soturno e agressivo. E um office-boy, em meio a seu trabalho. E um punk, um garoto de subirbio. Nio ha como nio ter a atencao voltada para um garoto desses, andando pelas movimentadas ruas do centro da cida- de, onde os circundantes procuram ter uma aparéncia a mais digna possivel, tentando acompanhar a moda ¢ parecer-se ‘com os personagens das novelas televisivas. A figura deste ga roto destoa, impressiona. O tom negro evoca 0 Iuto € a pre- senga das trevas, 08 angulos agudos soam desafiantes — pare- cem indicar a impossibilidade de harmonia € contemporiza- Gao; 0s pregos € correntes atemorizam pela intencio de vio lencia. Os simbolos confundem: afinal, o que pensa esse gar” to? O conjunto todo causa uma imensa estranheza. (+ punks investem de forma escancarada sobre si pro prios a percepeao negativa cristalizada na sociedade a resper to dos jovens pobres, buscando tornar explicita sua condisi0 ¢, 20 mesmo tempo, o carter do preconceito: “Sim, somos pobres, feios, sem chances, perigosos" Eles nao tentam disfarcar essa condi¢ao. AO contrarior querem tornéla visivel através de uma acentuagao ¢, 258i Produzir a dentincia da condigao de exclusio, da desigual de de meios e de perspectivas, do preconceito que refors® saexclusio, Conasjuvenis 101 Os que moram do outro lado do muro nunca vio saber ‘0 que se passa no subiirbio cles te consideram ‘um plebeu repugnante cles te chamam de garoto podre se esti desempregado te chamam de vagabundo se fizer greve, te chamam de subversivo apesar do sujo macacdo e do resto suado ‘nao ha um deus que nos perdoe ro temos destino para nés nio hi futuro, para nés ndo hi futuro vivendo acossados pelos batalhées proletarios escravizados destinos abortados, destinos abortados. Garotopodre, Garotos podres Os punks insistem nessa autocaracterizacac ferioridade, a negatividade: eles localizam questio de afirmar que sio do subsirbio, que estéo por bai 0, que estdo nas camadas intestinas da sociedade, nos ni veis inferiores de todas as excalas hierérquicas. E simples: mente Sub. tiulo do primeira disco editado no Brasil, por jependente, em 1982, uma coletinea que n com sinais negatives 1m de auto-aniquilacio. ’ ee Digitalizado com CamScanner Helena Wendel Abramo 102 tem o intito de produzir uma acusacdo, por vento: arealidade € que é indigente, a socie- ; é ela que engendra 0s sinais ¢ 0s con- ve que esta pore, é ela que engen ret ca ordem que o5 lana nessa condicao € € por isso que cles querem “destruila” Pelo contratio, meio do espelha [Nos somos os jovens, nés somos aqucles que vo momar o Brasil de amanha. E 0 Brasil de amanha esté rronado como n6s, gente que passa forme, que t& desem- pregada ‘O punk hoje € a realidade que muitos nao aceitam, nao accitam porque tém medo, mas o punk é a realidade.® © modelo econdmico, a estrutura social, o regime politi- co, 0 governo, a condigao urbana, tudo isso aparece mi do e condensado no termo sistema, ¢ confundido a descricio da cidade. As imagens da cidade, da sociedade e do futuro se justapdem, sublinhando os tracos mais negativos que as cons- tituem. £ neste cenério que eles se localizam; a retrata¢ao da “jwentude despossutda” nas suas figuras mais dramaticas € uum tema constante De noite quando a cidade dorme anjos negros de asassujase escuras saem de suas tocas ¢tomam conta das ruas so 0s reis da diversio do dio e da solidio nio tém esperanga rem de viver nem de vinganga fem cada esquina que vocé passar fem cada beco que vocé entrar no se espante Cenas juvenis 103 cles vio estar Ia venddem sexo e drogas roubam ou matam tem vida curta rndo importa 0 que fagam Nao acordem a cidade, Inocentes {A construgio da prépria imagem com sinals negativos € tomada como instrumento de afirmacio a partir da reinversio dos valores aribuidos a esses snais. © feto passa a consttuir lum ideal estético,a ser base para a beleza; a indigéncia € to- mada como matéria de criagao; a auséncia de conhecimento € virosismo musical como possbilidade de criagdo de uma misica genuina e auténtica. Ow sea, olixo, a falta ea indigén- cia sio as bases sobre as quais se cra um estilo capaz de com- por uma identidadee afrmar uma imagem postva para si. Esses simbolos representam sinais de pertencimento gr pal, que os diferencia dos outros. & uma identidade orgulho- samente ostentada, porque sinaliza um “modo de estar no mundo” (Hall e Jefferson, 1976). O susto, o choque provoca- do pela estranhera, faz parte da demarcagio dessa identida- de, Iso aparece na declaracio de um ex-punk entrevistado: Se vocé € um office-boy, vocé ti fodido. Ai, se voc? vira punk, vocé é alguém; todo mundo vai te identificar. Se al- ‘guém olha pra voeé, ja sabe o que vocé acha da sociedade, vocé no precisa falar mais nada. Vocé encontra uma iden- tidade — voc® fica orgulhoso: sou punk. Era um barato, as pessoas ficavam assustadas.? © estilo punk produz-se como um arranjo que se aticula ‘em torno de elementos opostos aos conceitos imperantes nas s. Constréise sobre aspectos puramente nega: VU“ Digitalizado com CamScanner ‘Heda Wedel Arama 108 ccancia, esarmonia € materiais desvalorizados, de ores ee i Essa estética opera um conceito particular pouca qualidad! pelo grupo. - ic pe x hci (0s sinais de sua condigao através da massa que quer apagar tentativa de seguir a moda dos shoppings, a “juventude dou- ada’, a fim de obter 0 “passe de circulacao”, "A construgéo de um estilo assim diferenciado pode ser sista como critica a imposi¢ao da moda, a valorizacao da rou. pa como sinal de status, 20 mesmo tempo que confirma a no- ao de sua forca para a defini¢ao das identidades sociais. & ‘uma forma de tentar escapar ao seu jogo, sair da corrente dos aque procuram seguila, fazer uma moda prépria fora do es ‘quema industrial, construindo um modo proprio de se vestir que, por meio da diferenga ¢ da espetacularidade, torna-se expressivo de um desejo de oposi¢ao ao padrao vigente. Acestratégia parece ser a da captacao dos impulsos negati- vos € destrutivos da ordem social para inscrevé-los sobre seu corpo, tornados visiveis na sua propria imagem, para poder volti-los — através do choque visual — contra essa mesma or dem social; o estilo feito de simbolos negativos transforma-se ‘em arma denunciadora e destruidora. A estratégia de espe Ihamento faz com que o discurso sobre si se torne um discur- 80 sobre 0s outros, sobre © mundo. O “eu nao tenho futuro ligase ao “futuro da sociedade € negro; sou violento” € um modo de dizer que sofro violencia e que as relagoes socials ° to montadas sobre a violéncia. © uso da suastica como simbolo pelos punks — ° “ Berou tanto espanto ¢ tantas tentativas de interpretaci? | tem pelo menos uma de suas caracteristicas relacionat com a intencio de espelhamento descrita acima, com? um entrevistado: Cenasjuvenis: 105 ‘Um dia fui trabathar com uma camiseta que tinha uma suastica. © meu chefe ficou chocado — ele tava com uma estrela de Davi pendurada no pescoco. Eu falei pra cle: uso isso porque o nazismo ainda existe, sob varias for- ‘mas, € €U quero mostrar que esse nazismo também esta aqui, no trabalho. Af o cara ficou maluco, furioso, me mandou ir tirar a camiseta, Aatuagio punk spt A atuacao punk consiste, entéo, em primeiro lugar, na montagem de uma identidade distintiva que se expressa atra- vés de um estilo de aparecimento, que se apresenta como uma alternativa de diversio ¢ também como uma dentincia, uma fala colérica, um “grito suburbano”. £ um fazer expressivo que esté na composi¢ao de uma mascara, no estilo de aparecimento, na produgao de uma mé- sica, no préprio movimento de deslocamento pelas ruas em bandos nervosos ¢ assustadores, na deflagraco de interferén- cias — como diz Caiafa — na produgéo de um choque. O cen- tro do significado é a propria idéia de atuar, de fazer alguma coisa, mostrar-se ativo, afirmar uma presenca que expresse in- satisfacio e ndo-aceitagao do “estado das coisas’. Vagando pelas ruas tentam esquecer tudo 0 que os oprime © impede de viver ‘mas seré que esquecer seria a solucdo ra esquecer 0 édio que eles tém no coragao? vontade de gritar ssufocada no ar ‘© medo causado pela repressio. Digitalizado com CamScanner dena Wendel Abramo air oorenaingtt oo rio 325 oro site re ge desir Garotas do subrirtio, Inocentes cio aparece como meio através do qual firmar para além da invsibilidade © negacio a que le mesmo como afirmacao da pré- Sua ata ‘uma existéncia estio submetidos. Aparec a priaexiténcia, de uma existencia significativa, como reivind fagio de uma atengio social em direcao a sua figura. "A atuagio consiste, entio, em invadir € conquistar espaos para sua diversio e manifestagio, e em arrancar aten¢ao, a for- assobre suas figuras. Através das imagens, é retratada toda uma condiggo que emerge como protesto. Ao causar estranheza, 20 provocar choque, induzem a interrogacao sobre sua presenca, suas questdes ¢ intengdes. Afirmando sua presenca, sua identi- ‘dade punk, na cidade, obriga a sociedade a vé-os ¢ ouvitos. ‘Cena 2: um bando em célera ‘Um grupo de punks reunido numa das galerias do centro da cidade, em frente a loja de discos Punk Rock, forma um conjunto de tragos negros, angulosos, pontiagudos. © modo de se encostar a parede, de se movimentar, 0 modo de falar, © timbre da voz, emite um tom agressivo, beligerante. Os do nos das lojas da galeria se uniram, em uma ocasiao, para P& dir o fechamento da loja de discos, para livrar-se da present incomoda desses garotos, que julgavam ser motivo de afast mento de fregueses. a de sexta sibado e nos finais de semana #9 vse lando em bandos pela cidade, ou reunidos "° Pontos de encontro, na Praga da Sé ou no Largo S#° eee races (Cenas juvenis Aon Bento, atrés de diversio, Muitas vezes acontecem atos de “vandalismo”: latas de lixo chutadas, limpadas arrebentadas, brigas entre gangues, que podem acabar em ferimentos, ou ainda em quebradeiras gerais de um lugar, um sakio onde so- freram algum tipo de provocacio. A beligerancia, a evocacio da violencia, sio conscienciosa- mente exibidas. Além das correntes, das munhequeiras cheias de pontas de metal que, quando usadas como armas, podem ras- gar a pele do oponente, dos alfinetes espetados na sua propria pele, vemos, nas suas camisetas e butions, nomes de bandas como Célera, Fogo Cruzado, Exterminio, Agressio, Ataque Frontal Quando se deslocam em bandos, pelas ruas, a movimen- tacio amplia essa percepeio de agressividade: um batalhio negro, andando répido, ocupando as calgadas, com olhares de desafio, prontos a responder a qualquer provocagao. As- sustam, fazem as pessoas mudarem de calgada. Podem também ser escutados, através do som forte € “su- jo”, rude mesmo, das miisicas de suas bandas, nas poucas € pobres casas noturnas que abrem espaco para eles. Toda a agressividade de sua figura, de sua miisica e de sua postura assusta, choca. E parece ser isso mesmo o que eles pretendem: chocar, chamar a atengo para si mesmos ¢ para a sua “mensagem”, Aqui, mais uma vez, os punks estio buscando realizar 0 Jogo de produzir uma negacao através da afirmagao: usando seu corpo como espelho do entorno, querem explicitar a vior lencia da sociedade, denunciando-a; ao mesmo tempo, con verter a negatividade em atuagio, vertendo para fora a violém- Cia, voltando-a contra a ordem social que a engendra. A destruigao é uma idéia basica, que toma forma na postr "a assumida de um comportamento violento: a resposta 26° i ” Digitalizado com CamScanner Helena Wendel Abramo 108 siva imediata a qualquer provocacao, mesmo que esta seja ape. oe um olhar de aversio, as constantes brigas entre as gangues por questo de teritrio ou para Provar “quem é mais punk” fPedvoso e Sours, 1983), a forma de dancar que distribui em torno cotoveladas, pernadas ¢ bracadas (quando nao correnta. das); as detonagées dos lugares onde dancam, provocadas por brigas e também pela propria “vontade de destruir”, Cami. ham como uma horda guerreira, com a intencao de mostrar que o mundo esti em conflagracio, de denunciar a guerra ¢ que a engendram. O “inimigo” é 0 “sistema” e aqueles que 0 sustentam, € a arma 0 seu proprio corpo, sua imagem, sua misica ¢ seu estilo beligerante. Morda suas mos soque as paredes, role no chao veja o sangue correr sentindo as balas entrar em voce rite de tanta tensio porque este mundo € um mundo cio vocé esperava poder viver um pouco $6 por viver animais, animais por que somos cobaias por que nao podemos viver? chega de esperar ‘vamos partir vamos gritar indo queremos fazer parte disso para morrer. Bloqueio mental C6ler® ‘to em cade A violéncia também é resultado de ui efeito em Os punks sio vistos como elementos tes, ¢ sio bastante perseguidos pela nas ruas € os detém. A polici mundo para a delegacia; os aderecos Cenas juvenis fon jaquetas — sio apreendidos ou destruidos. Iso tudo provoca mais revolta e vontade de devolver a violencia. Por qué? por que 0 sistema quer acabar com a gente? por que somos novos e nem tio inocentes ‘estamos do lado dos pobres e dos carentes vivo e eles vio morrendo sobrevivo e eles vio apodrecendo por que o sistema quer acabar com a gente? 86 porque nés punks estamos colocando pra fora ‘ quea gente sente nada disso vai ajudar porque na verdade eles querem nos emburguesar. Por qué?, Ratos de Pordo Toda essa violéncia, mais do que “delinguéncia pura € simples” ou “rebeldia desgovernada’, ou ainda “tendéncia pa- ra a anomalia”, como muitas vezes ¢ interpretada, é uma pos- tura cultivada pelos punks. A atitude aparece como forma de ‘expressar uma carregada insatisfacio com a ordem, uma raiva, ‘uma célera, como a expressio do desejo de quebricla. Tratnse dde uma atuacao e é vista por eles como uma postura de “com- bate”. E claro que essa questo da violéncia é bastante contro- versa ¢ envolveria muitas outras considerapbes, mas esta éa di- ™mensio presente nos discursos dos préprios punks. Pedroso ¢ Souza mostram que essa é uma questio polémi- a entre eles mesmos. Por volt ues e, em consequéncia, as atividads anharam maior relevincia do que as arruacas nas ruas. O Problema central dos punks passou a ser, entio, conquistar agos para fazer shows € essa busca comecou a tornarse in: pe Digitalizado com CamScanner “Helma Wendel Abramo 0 a desruicho dos locais onde realizavam seus compative! Com al artculado em torno das bandas da cida. “encontros. is niciou a tentativa de lancar novas normas de yo Paulo ini de de Si Pio. Procuraram circunscrever a violencia ag comport i coor polico, desessmulando a briga entre gangues ¢ a campo si s, Para isso, tentaram dar maior destruigao dos locais publicos eo moximento”, conclamando a “unio de todos os cera fin de escapar a0s ataques da policia © da opiniio pic. (© resultado foi a diluicio da maior parte das gangues Py cidade de Sio Paulo num conjunto maior, que ficou co- nhecido como pesoal da ci, estruturado principalmente em tomo das bandas de miisica, com uma postura mais “politiza- da’, mais preocupada em efetuar agdes “consequentes”. As mudancas corresponderam também as inflexdes ob- servadas no 4mbito internacional do movimento punk. A par- tirde 1981, houve um recrudescimento simbolizado no titulo de um disco de uma nova banda, The Exploited, que se tor nou lema de afirmacio do movimento, repetido no mundo : Punk's not dead, Surgiram novas bandas € foi formu- lada uma postura mais politizada, com a adesio a bandeiras pacifistas, anti-vacistas € de apoio a movimentos revolucion rios (como o dos sandinistas, pela banda inglesa The Clash). Em Sio Paulo a mudanca inaugurou um novo momento do movimento punk. A imprensa passou a Ihe dar maior ate” ‘Go, casas de shows maiores se abriram as sua bandas ¢ eles seguiram gravar seus primeiros LPs, por pequenas gr doras independentes Muitas gangues, porém — particularmente as do ABC ¢ # da Zona Leste da Capital mr Fi — ni concordaram com ess spa && Postura (Pedros ¢ Souza). O resultado foi 0 dese" vohvimento ic dle uma oposigio entre elas e o pessoal da city, rest as mesmas brigas que se queria evitar- Mas !®! Conasjuvenis m cocorrendo um paulatino afastamento ¢ as gangues do ABC foramsse circunscrevendo mais aos seus prépi toriais. Algumas delas iriam depois 8 espacos terri- renciar-se do estilo punk, transformando-se em carecas, inspirados nos skinheads ingleses. Esses grupos novos assumiram posturas fascistas e rac cistas contra imigrantes, numa atitude defensiva do mercado de trabalho; insistiam mais fortemente em atitudes rudes e vio Ientas, foram também configurando um perfil reacionério, machista, nacion: ista, dizendo acreditar na necessidade de “um homem forte para por ordem no caos social” As brigas entre as gangues que subsistiram (e agora entre punks e carecas) comegaram a tornarse mais dramaticas, in- clusive com ocorréncia de mortes. © pessoal da city € outros punks realizaram entio um esforco para distinguir-se, enfati- nna verdade indicaria um desejo de paz. A diferenciagio com to a violé ia irracional e sua condenagio aparerem in- lusive em letras de miisicas: Quanta violéncia impera em todo o lugar sua ideologia é falsa ja deu pra perceber sia, Ratos de Porio Digitalizado com CamScanner Helena Wendel Abramo mm ‘Alta spocaliptics esas batahas empreendidas pelos punks, no entanto, rio ha bandeiras explicitas, nao ha alvo a conquistar. “Acabar vom tudo”, “transformarao radical” sio intengdes, so expres. ct gas Mas transformar no qué? Nenhum sentido aparece, nio ha nenhuma evocacao positiva. A escatologia aqui aparece emo um apocalipse sem redenca0. © primeiro festival punk, onganizado em 1982 no SescFabrica da Pompéia, chamou-se 0 eomeo do fim do mundo, O futuro € negro, como eles dizem, ¢ nao ha salvagao. “Nao ha futuro para mim, nao ha futuro para ‘a sociedade” é uma das frases mais caracteristicas. A realidade € tragica, 0 prognéstico sobre o seu desenrolar igualmente, Nio se pode deixar enganar por ilusdes que elidam esse fato; nio cabe nenhum consolo, mas sim uma postura de combate. (© mundo explodira com o édio e ambicao ¢ levard consigo mesmo toda a ilusio ¢ levard consigo mesmo toda a ilusio. Fim do mundo Fim do mundo Fim do mundo. Fim do mundo, Psykose E criticamente que os punks se referem aos movimentos juvenis da década anterior (os movimentos hippies) pela sua “ilusio" de poder transformar a sociedade “pregando 3 Pa? eo amor": Eles esperaram sentados com uma flor entre os dentes. A gente jé tem a lembranca da experiéncia dos hip” Pies, €a gente sabe que colocando flor na ponta dos fuzis dos ratos a gente ndo vai conseguir nada. Eles sio violentos, cles vém pra cima da gente, 4 ra ir Frat br ima da gene, a gente tprocurando 260 Conas juvenis Te ‘Uma letra dos Inocentes ironiza inclusive a inspiragio nas culturas orient te nos anos 70: em ver da «6 cosmo, invocado pelas religiées orientais, a guerra € a morte: Viaje conosco no Expresso Oriente vyenha conhecer as maravilhas das arabias ‘onde as criangas brincam no front co melhor brinquedo so as armas importadas veja este exemplo de fé e devocio soldados do Ira e do Traque marchando direto pro caixao conhega de perto as lindas ruinas do Libano bronzeie-se no Saara as margens do Rio Nilo viajando no expresso oriente conhega um pouco da cultura palestina se hospedando nos campos de Saabra ¢ Chatila ‘onde 0 cho amanheceu coberto de corpos a triste lembranga da noite dos mil mortos num odsis do deserto um show para voc ‘com dancarinas arabes que desconhecem o prazer na despedida o coral de mutilados da Santa Guerra cantard uma can¢io chamada Paz na Terra viajando no Expresso Oriente. Expresso Oriente, Inocentes No entanto, esses jovens combatem algo: eles véem a si mesmos lutando contra esse estado de coisas, por uma outra situagio, pela inversio deste mundo. Eles lutam — embora a sua maneira — pelo fim das injusticas, da miséria, das guer- Jo, da mediocridade da vida coti- ras, da exploracio, d diana — os males que we Digitalizado com CamScanner quese futuro, a descrene * fanea de qualquer utopia como iTusSria, E possiel peceber aqui uma certa tensio: a necessidade de afimar um ndo hi futuro € combinada com a intengio de tmudanca e transformacao. Ha um certo investimento no fy. turo, uma vontade de interferir sobre ele, um desejo de inter. romper 0 curso que se anuncia, quando se insiste no aviso de {que o mundo virou um inferno e que explodira em fiiria ¢ desencanto. No mesmo sentido, os punks também nao sao exatamen- te coutra tudo e contra todos. Ha uma identificagao com ou- tros personagens explorados e excluidos — os ‘em qualquer proposta, 5, 0S garo- tos de rua —, € que também expressam a sua ira contra 0 sis tema, pelos movimentos operarios, as greves, as passeatas, os quebraquebras de 1982, a Revolucio Sandinista etc. Os punks identificam-se em geral com os movimentos ¢ sujeltos que também se situam fora da institucionalidade vi- Sente ¢ que instauram atuagdes pela transformacao da ordem socal. No ABC formase uma banda que se chama Passeata, oulra que se chama Desordem; algumas gangues do ABC Se © macacio operdrio como roupa caracteristica. mento te Feuniéo de punks, num determinado mo- esdaguete ee MECOU a gitar: “Lula é punk’; nas ee Naverdane cet todos votaram no Lula (Bivar, 1982). dequemni “ie cena ambi idade entre as afirmagdes Motivo pelo qual lutar, nenhuma bar deira pro it conatiutda, ou de que a luta possivel é a da destruicao 40 Sls tomar no cura a8 408 punks, as poses Ve bandas, por exempig, < om*cimentos mais amplos. Muitas Po, Partcipario de shows em prol de causis Conas jruvenis us que julgam justas, como um show de arrecadagio de fundos para a Nicargua € como os shows da Campanha Diretasfi. Nese sentido, 0 ndo tenko futuro é a dramatizagio de uma percepeao real. © desencanto, a falta de otimismo, sio reais; sao porém, exacerbados, dramatizados, convertidos em ele- mentos de encenagao. ‘de morte, nao é indiferenca. f um diagnéstico, uma declara- cao de falta de confianga nas medidas e solugdes disponiveis para o encaminhamento do futuro social, e ha uma luta con- tra isso que se desenvolve através da sua atuagio: uma convo- cacao, um chamado ao combate, um modo de tentar provo- car a reagio capaz de inverter 0 estado de coisas: Agente queria dar um toque, ver se provocava alguma coisa (...) a gente achava que ia mudar 0 mundo; a gente queria destruir o mundo, a gente queria combater as coisas (.) agente queria botar pra quebrar, tava a fim de sair pra rachar (...) a gente queria usar a misica da gente pra dar ‘uma cutucada na mocada? Da UNIVERSIDADE AOS POROES: OS DARKS. A Estagdo Madame Sata € uma casa notuma que fica no lado escuro do bairro do Bexiga, oposto ao dos teatros, cantinas € cafés luminosos que fazem daquelas ruas um dos pontos mais frequentados de Sio Paulo, Esta instalada em uma antiga casa de moradia, velha, bastante deteriorada, numa esquina de duas nas de pouca iluminagao e movimento; pouco produzida, ape nas pintada de cor escura e uma placa com o nome do estabe- entrase numa sala ampla onde lecimento, No nivel da rua, funciona um bar precdrio (apenas um balcio sem banquetas colicas); algumas aque serve quase exclusivamente bebidas alc Digitalizado com CamScanner Helena Wendel Abramo 6 seas com poucas cadeiesespalhadas sem ordem, um vethy fe som: mifsica alta € pouca iluminacao. A decorg. sofa, cas d requins desnudos © seccionados pen, jo é composta por man scm som; as vees, uma performance, COMO em UM periodg fmm que uma mulher dentro de uma jaula suspensa mordia e tuspia bocados de repolho cru, enquanto soltava gritos roucos Descendo uma escada estreita que sai de um canto da sa- la, chegase ao pordo, de cimento, nu ¢ timido, sem janelas, ‘com uma porta que d para um pequeno quintal fechado por muros altos. No pordo 0 som é mais alto; € nesse espaco que se danca e que acontecem os shows. ‘As pessoas, jovens, numa faixa relativamente ampla, dos quinze aos trinta € pouco anos, tém um modo de vestir bas- tante peculiar: 0 que mais se destaca é o tom escuro das ro pas, a predominancia de preto; os cabelos sio impressiona temente curtos, de cortes retos, geométricos; ¢ as faces pili das, com uma maquiagem que ressalta olheiras. As roupas sio uma composicio de pecas antigas, de varias décadas (predo- minando as dos anos 40 50), misturadas a elementos de Plistico e napa, outros trades do punk, reunidas numa espé- cic de elegincia estudada ¢ fria (eles diriam cool), que destoa do Look natural, descontraido e colorido entdo em voga. O Conjunto impressiona pelo aspecto carregado, de Into, que choca a expectativa construida sobre a vivacidade € a cor, a sociadas &juventude, AS poses, 08 gestos e a postura de corpo também ajudam 4 compor essa impressio: so distanciamento, de angulos agus é, as vezes en ‘ruzados, co marcados por um certo ar dé Pela contencao de movimentos e exploraca0 dos. As pessoas ficam preferencialmente ¢™ icostadas nas paredes, Miaos nos bolsos, bragos Pos nas mos. Nao hé gestos largos enquanto s¢ Conas juvenis "7 conversa. Aqueles que estio sozinhos estio muitas vezes com 1 cabega voltada para baixo ou olhando seu copo de bebida, Ninguém se sentara descontraidamente em cima do balcio ‘ow das mesas, ou com as pernas ¢1 zadas, no chio ou no pal- co, como seria comum em outros tempos. Embaixo, no porto, ha pessoas dangando: na danca tam- bem hé a impressio de gestos contidos, porém como que mo- vidos por uma energia explosiva. Os movimentos sio basica- mente verticalizados, pernas e bragos se agitando para baixo ¢ para cima, porém meio desordenados. Nio ha vol dopios, gestos graciosos; também nao ha movimentos amplos. As vezes, a danca parece um desafio estilizado para uma Iuta com punhos; outras vezes, 0 inicio de um ataque ¢ uma movimentacao descontrolada ¢ repetitiva. Quase nio se, sai do lugar, 0 movimento no contém deslocamento; € a agi- tacio forte cria uma espécie de espaco de seguranga em tor- no do dangarino, Nao se danca aos pares; as pessoas dancam sozinhas, com os olhos voltados para o chao ou para a parede — nao € 0 outro que se olha, tampouco o seu préprio inte- rior: parece que se olha o va O show € 0 ponto culminante da noite e comeca tarde, muito tarde para um dia da semana, sempre depois de uma hora da madrugada. Os miisicos, que antes circulavam ou dancavam como os outros, sobem ao palco, que € pequeno, baixo, encostado a uma das paredes do por, sem bastido- res, A iluminacio € muito simples e a aparelhagem preciri. ‘Sem muita preparacio, o show comeca; nao dura muito, em geral cerca de trinta minutos. No palco os mi ‘Tocam, na maior parte das vezes, parados. Os voc se movimentam mais, andam pelo palco, dangam, chegam junto a platéia, Esta fica em pé a beira do paleo; algumas pes- (0 alarde. tas € que icos também nao fazem Digitalizado com CamScanner Helena Wendel Abramo us soas dancam, intimidade que ' apidas; 0 ideo carta oman répidaso (0M grave g re, baxo tem tanto ou MA’Or destaque que g vras evocam imagens SOtUrnas € Agresivas, Fa, ados, de um clima pés-apocaliptico; da do sistema, da mediocridade do cot. cexploracio € opressio eo redo e do vazio que ronda a todos, dos descami ape do amor da amizade, da solidi, Dé-se muita impor que quase sempre sio impressas em folhetos tncia ds letras, Gucsenem de dvulgacio aos shows (€ que sio dfceis dese en entendidas para quem as ouve pela primeira vez, em ra vo da precariedade da aparelhagem ¢ também do preparo téenico do vocalista) ‘0 cenario todo parece bastante soturno, pesado, eas pes- soas parecem marcadas por um irremediavel desgosto. No en- tanto, fica claro que, no interior dessas sombras, existe uma excitagao, um frisson, uma grande energia: é um momento de encontro de amigos, de diversio, de expressao de algo que envolveu intensidade e cria¢ao cultural. Da mesma forma, todo 0 modo como a coisa acontece parece indicar um gucto subterraneo, com rituais secretos, a0 {qual s6 tém acesso os iniciados: no entanto, aliado a um certo sentimento efetivo de gueto, existe uma busca de exposicae para o externo, um grande anseio de comunicagao: as Pes soas circulario pela luz do dia com essa mesma indumentatia (alvez menos incrementada apenas porque nao é moment de festa), gozando 0 espanto que provocam; as bandas qu* Tem mostrarse, querem tocar em outros lugares, nas Praca ie revistas ¢ jornais importados montou um circulo de conhecidos que trocavam € jercambiavam discos e outras images, Eu me lembro de que fi francés, acho que et ha acabado de voltar da Franca, Ele ha de discos. Aj eu escolhi al- guns ¢ pedi emprestado. Nao conhecia nada, Nel son, que era um cara que eu conhecia dos tempos do rock progressive € que agora estava fazendo um som new wave, tinha Nina Hagen, inha muita coisa Ai foi fo- gos, foi um bag amigo meu, new wave, a gente ia na Baratos procurar. Eu me lembro de quando comprei o Simple Minds. Era uma coisa que tina cnergia ¢ tinha uma instrumentacio legal; e era bem mais legal que King Crimsom.” Eu jé ouvia rock com meus amigos de adolescéncia, ti rnhamos fdolos em comum, aquela coisa. Quando eu estava no colegial, me interestei pelo punk, pelo do it yourse— 0 que me chamou a atencio foi alguma coisa que eu li sobre © The Clash, entio eu fui atris dos discos, tinha uma cole tanea, depois todos os discos que saiam eu comprava.(..) Encontrei outras pessoas que também gostavam disso ¢ nos tornamos amigos — foi isso © que nos agregout a gente ma tava as aulase pegava o violio do Centro Académicoe Be 6s grupos punks, parecia trazer uma possi- ressante. As palavras-chave que pareciam sinalizar as buscas — i Digitalizado com CamScanner Se ‘Hedena Wendel Abromo m2 vn madd, wrbnnidade, moderidade — denotavany Poi ae vida ‘cosmopolita, de ligacao a0 que se desenyoy, reciam estreitas para réncias nacionais Pa de captacio ¢ insercao nO es go.Qualquer projeto de cardter n Nene ooae prosncianismo. A insereo radical na contemporang, dade internacional envolvia a incorporacao abso riéncia urbana, da dimensio industrial, artificial da midia, da velocidade e da fragmentacao. ‘Ao lado da busca de referéncias interna o interesse pela movimentacao punk que ja 0 havia mais ou menos dois anos que nesse m idade, com varios shows acontecendo. sencial do cia, por curiosidade, ou “por falta de outra \dos pela idéia de atuacdo e de pela idéia de fazer alguma coisa que 0 grupo punk trazia. A gente achava eles o maximo: essa forga... Eles tin! uma forca, uma unio! Isso de querer fazer algum: {fazer as coisas, mesmo nio tendo muito como. aque era es se de comprar 08 in {rumentos, de nao ter lugar para tocar, de ser super recrimi- nados — em todos os bales pintava policia, por exemplo — maseles tocavan, Hes ia eocavam, Nio sei se 0 nosso interesse foi pela miisica punk, foi | Lode! ae eles, ¢ pela falta de coisas acontecendo. PO, 2 ba nao tinha nada! Entio, 0 que vocé fazia no fim de a crea emu how punk noe onde, pb, sbe mia *In6Feso, vai ld ouvir ses bandas — entio voce ia li. Conas juvenis tudo, ¢ que foi um dos niicleos da reviravolta de que esse era um rock que qualquer garoto podia faze, sem necessidade de aparatos e maiores conhecimentos Apesar do inte- resse € da inspiracao, das tentativas ¢ movimentos de a ‘40, as turmas mantinhamse clarame cia social, o sentimento de pert tas de atuagio eram bastantes sorviam bem os “estranhos", vindos de outro mundo soci outras referéncias. Assim, se algumas bandas novas comegam buscando fazer um som punk, € se alguns grupos de amigos ten- tam integrarse ao movimento, pouco a pouco eles acabam se distanciando ¢ reaglutinando-se num outro conjunto. A gemte tentou se aproximar, ia aos shows, na Praga da Sé; a gen ‘meninas, principalm chamavam de burguesinhas, de new wave, pjorativamente, A gente nao conseguiu participar mesmo — eles até nos respeitavam, mas a gente no entrou de verdad. Por OO Digitalizado com CamScanner seuinnam wm sentiment de densidad muito forte, que cles Gn ide bairro, deles conviverem com os gente ta fora disso. fe mesmos lugares, ia as lojas das , € conversa, levava um a ce jlerias do centro comprar dis mp ndo nha nada er a gene en. i no compradores de dco. A gente nig aa cour com eit lose vet como cle see ei ma caean,que era algumas co = man, ou pureddas, Mas, a0 metho tempe, Seis a pr csarldcurtindo e ftendo exta mica, we icon mode fade parte daqllo. Mas agent ca sere mco 4 pate gente ea vi comme tn grupo de caras que curtiam o punk. Eu cheguei a ir ao Templo, mas eu fui poucas vezes porque era foda; era muita violencia, era muito tenso — ‘no dava pra dancar, era porrada por tudo 0 que era lado. Essa diferenca, que para alguns estava dada desde o ini io, aparece como uma distingdo de referéncias sociais, que sem alimen cembasam as perspectivas de atuagao ¢ as possi construcio de identidade comum. © punk tinha mesmo tudo a ver para a juventude ca- sem grana, que mora no subiirbio, que tem de pega \wés Gnibus para ir trabalhar, ¢ que niio tem mesmo acess0 8 programacio cultural —¢ 0 punk esta na mio, vocé pode fazer iso, voce pode fazer misica. E pra ser punk voc® tem {et propensio, tem de ser macho, porque voce vai enfret- lar uma série de situaces barras-pesadas, vocé vai ser SeBTe- ado em tudo que é lugar: no énibus, na rua. E 0 punk de- Pols ambém se tomou uma coisa muito rigida, autortéria, Sem dar esac para experinentagioe crag. Uma cist Bangue mesmo, de eterna repeticao de enquanto que 0 que a gente tava buscando era justamente uma abertura de criagio, pesquisa, nti lades de zer concessbes Conas juvenis bs A gente tinha uma identidade dada pela excel das idéias que estavam por tris daquilo; mas as. se comunicavam muito, também pore cera muito diferente, a experi ca, gangue de bairro, a vida no subiirbia. Os punks estavam articulados numa origem € num comportamento comurn, A gente tinha outras experiéncias, outras referéncias, Apesar das diferencas e distancias, o punk mantém-se co- mo referéncia original de atitude, de impulso basico, tanto na misica quanto no comportamento € no estilo. A grande influéncia do punk sobre a new wave & a ati- tude de usar barulho, de nao privilegiar necessariamente a melodia, mas a experimentacio, de poder fazer mésica com dois ou ts acordes, de usar instrumentos que voce ‘mesmo faz, de usar as coisas precariamente, de gravar pre- cariamente, Apesar de nio sermos grupos punk, agimos co- ‘mo as bandas punk, de ir tocar de qualquer. com as condigies que se tiver, mal € pore bes com relago as gravadoras e sem far a entrar neste esquema. Se nao existisse © punk, nao existiriam bandas como as nossas. ‘A idéia de fazer misica, de montar a propria banda, co- mo centro de uma atuacao, € uma questio fundamental de todo o fenémeno. Varios conjuntos comecam a ser formades. Alguns compostos por pessoas que ji tinham experimentado fazer miisica; outros, por jovens que simplesmente curtiam ‘miisica € que agora resolvem passar a fazé-la. ‘Algumas delas desenvolviam um som mais pr6ximo a0 punk, outras mais ligadas a outras tendéncias da new wave co da uma, por assim dizer, tinha uma ou algumas bandas ¢* trangeiras como fonte de inspiracao. Aquelas mais lias 20 som punk buscavam tocar em espacos ja montados por eles: pm Digitalizado com CamScanner

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