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FARSA DE INÊS PEREIRA - A FIGURA FEMININA NUM MUNDO EM TRANSIÇÃO

Tatiana Alves Soares Caldas


(UNESA e UniverCidade)

Mas coitada
da molher sempre encerrada
que pera seu passatempo
não tem desenfadamento
mais que agulha e almofada!

(Camões, Filodemo)

A Farsa de Inês Pereira, uma das mais conhecidas peças de Gil Vicente, teatrólogo/dramaturgo do
Humanismo português, conta a história de uma moça que recusa os papéis preestabelecidos e questiona o destino
imposto à mulher na sociedade quinhentista. Com a ironia característica das farsas medievais, o auto apresenta um
desfecho surpreendente, sugerindo as transformações que ocorriam na época. As personagens femininas do texto são
marcantes - não é por acaso que uma delas dá título à peça - e apresentam diferenças entre si, sendo expressivo o
facto de cada uma refletir um aspeto da sociedade de então. Por meio dos diferentes discursos enunciados por elas, o
texto desvela a ideologia de cada uma, num entrelaçamento de falas, provérbios e negações.

Acreditando que a atitude da protagonista – expressa, inclusive, a partir de seu discurso – simboliza os
valores de um mundo em transição, propiciando uma reflexão acerca das mentalidades medieval e pré-renascentista,
o nosso estudo propõe uma análise do auto em questão à luz dessa transição, nos seus aspetos histórico, social e
linguístico, no olhar desse escritor situado entre dois mundos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher.

Originalmente concebido como o desenvolvimento dramático do provérbio “mais quero asno que me
carregue que cavalo que me derrube”, a Farsa de Inês Pereira constitui-se no primeiro provérbio glosado em teatro.
Trata-se de uma sátira com intenção moralizadora, apresentando traços de uma comédia de caráter e de costumes
com tipos bem definidos. Além de explorar a dicotomia ser / parecer, o texto reflete sobre o momento histórico, na
medida em que mostra a decadência da nobreza – um cavaleiro sem posses – e a ascensão de uma povo pré-burguês,
na figura do parvo Pero Marques.

Segundo classificação proposta por Fidelino de Figueiredo, o auto estrutura-se a partir de sete quadros que se
sucedem, organizados da seguinte forma: apresentação da vida de Inês, ainda solteira, com a mãe; conselhos de
Lianor Vaz sobre o casamento; apresentação de Pero Marques; entrada do escudeiro; as desilusões do casamento; a
viuvez de Inês Pereira e a vida de casada com Pero Marques.

A apresentação de Inês, já no início do texto, é marcada por uma atitude de revolta diante das entediantes
tarefas impostas à mulher da época. Só, em casa, cantarola e amaldiçoa a própria condição:

Inês: Renego deste lavrar


e do primeiro que o usou!
Ao diabo que o eu dou,
que tão mau é d'aturar!
Ó Jesu! Que enfadamento,
e que raiva, e que tormento,
que cegueira, e que canseira!
Eu hei de buscar maneira
d'algum outro aviamento.

(VICENTE, 1984: 303-304.)

A fala da protagonista é marcada pela amargura e pela revolta diante de um trabalho que lhe é odioso,
sensações acentuadas pelos termos tormento, cegueira e canseira, refletindo o tédio presente na sua vida. A sua fala
é repleta de expressões que sugerem uma crítica à falta de perspetivas para a mulher da época. O seu desencanto diz
respeito, principalmente, à estagnação que vitimava as moças de então.
Isabel Allegro de Magalhães, no seu estudo O Tempo das Mulheres, destaca o tempo estático das mulheres
na Idade Média, um tempo de ficar, em contraste com o tempo masculino, o tempo de partir, marcado por aventuras
e por um espaço aberto e externo. Já às mulheres resta a clausura, o emparedamento. Note-se que é justamente
nesse ponto que reside a queixa de Inês, que lamenta o marasmo de sua vida:

Inês: Já tenho a vida cansada


De jazer sempre dum cabo.
(...)
Esta é mais que morta.
São eu coruja ou corujo,
Ou são algum caramujo
Que não sai senão à porta?

(Ibidem, p.304.)

A Farsa de Inês Pereira apresenta a condição da mulher encerrada em casa, mas, num vislumbre do novo
tempo, mostra uma protagonista que se rebela, renitente, contra o destino que lhe é oferecido. Inês representa a fala
destoante, pois nega os lugares-comuns, inclusive por meio de uma linguagem que defende a mudança. Seu
posicionamento ideológico de recusa dos valores vigentes verifica-se, linguisticamente, por um discurso repleto de
exclamações – marcando o seu temperamento intempestivo, e por indagações, como que a interrogar a própria
condição:

Inês: Coitada, assi hei d’estar


encerrada nesta casa
como panela sem asa,
que sempre está num lugar?
E assi hão de ser logrados
dous dias amargurados,
que eu possa durar viva?
E assim hei d’estar cativa
Em poder de desfiados?

(Ibidem, p. 304.)

O lamento de Inês esbarra na oposição da mãe, humilde e simples, cuja fala reflete o conformismo diante da
sociedade de então. Além de censurar os desejos da filha, defende as regras e valores da época, ao aconselhar Inês a
ter bom senso:

Mãe: Toda tu estás aquela...


Choram-te os filhos por pão?
(...)
Como queres tu casar
com fama de preguiçosa?
(...)
Não te apresses tu, Inês:
«Maior é o ano que o mês».
Quando te não precatares,
virão maridos a pares,
e filhos de três em três.

(Ibidem, p. 305-306)

O discurso da Mãe, impregnado de lugares-comuns e provérbios populares, marca a reprodução de valores


da época. A sua fala, que atua como contraponto à de Inês, é marcada pelo conservadorismo. Valendo-se de frases
feitas, demonstra, no plano discursivo, a sua identificação com o pensamento de então. Enquanto Inês simboliza a
renovação, as demais personagens femininas representam a perpetuação de um pensamento ainda marcado por um
ranço medieval. A Mãe, conformista, pensa que o destino natural da filha é o casamento e a maternidade, chegando
mesmo a instruí-la a agir de modo a causar boa impressão no pretendente:
Mãe: Se este escudeiro há de vir
e é homem de discrição
hás-te de pôr em feição,
e falar pouco e não rir.
E mais, Inês, não muito olhar,
e muito chão o menear,
porque te julguem por muda,
porque a moça sesuda
é ua perla pera amar.

(Ibidem, p. 323-324)

A Mãe parece sugerir à moça que represente um papel para agradar ao rapaz, sugerindo a hipocrisia vigente.
Expressivos são os conselhos dados à filha, demonstrando que os atributos femininos desejáveis então eram aqueles
ligados à passividade e à submissão: falar pouco, não rir, não encarar e olhar para baixo, numa atitude subserviente
condizente com a misoginia da época.

O conservadorismo da Mãe é visto também por ocasião da chegada de Lianor Vaz, que afirma ter sido
violentada por um clérigo. Dignas de destaque são as palavras de ambas, uma valendo-se de subterfúgios para se
justificar por não ter resistido ao ataque – estava cansada, teve um acesso de tosse, outro de riso – e outra desfiando
todas as possibilidades, e demonstrando desconfiança, uma vez que Lianor não apresentava as marcas de laceração
decorrentes do autoflagelo que deveria seguir-se ao estupro. Ambas comungam dos códigos vigentes, facto que pode
ser percebido nos conselhos dados por Lianor a Inês:

Lianor: Não queirais ser tão senhora!


Casa, filha, que te preste,
não percas a ocasião.
Queres casar a prazer
No tempo d'agora, Inês?
Antes casa em que te pês,
que não é tempo d'escolher.
Sempre eu ouvi dizer:
«ou seja sapo ou sapinho,
ou marido ou maridinho,
tenha o que houver mister.»
Este é o certo caminho.

(Ibidem, p. 312-313)

Numa sociedade em que a única forma de sobrevivência feminina estava no matrimónio, a alcoviteira
aconselha a moça a casar-se, mesmo que isso a incomode, numa reprodução dos valores da época. Na repetição de
ditados, um discurso que se limita a repetir os costumes e pensamentos de então, sem questioná-los:

Mãe: «Mata o cavalo de sela


e bô é o asno que me leva».

Lianor: Filha, «no Chão do Couce


quem não puder andar, choute.»
E «mais quero eu quem me adore
que quem faça com que chore».

(Ibidem, p. 313)

Significativa é uma das imagens evocadas pela Mãe: “mais vale um asno que a leve do que um cavalo que a
derrube”, numa retomada do mote e num prenúncio do desfecho do auto. Inês é firme nas suas convicções: quer um
homem culto, ainda que não seja rico, e que a faça feliz. Movida por essa ilusão, despreza o primeiro pretendente, o
rude Pero Marques, filho de lavradores ricos, mas que peca pela rusticidade. A sua linguagem revela a timidez e a
ignorância, além de marcar a sua ingenuidade, aspeto fundamental para o desfecho da peça. No processo de
caracterização por meio da linguagem, os traços mais flagrantes de Pero Marques são evidenciados, gerando o
repúdio de Inês. O seu discurso denuncia a sua ingenuidade, ora exagerando na formalidade, ora indicando a sua
forma provinciana de se expressar:

Senhora amiga Inês Pereira,


Pêro Marquez, vosso amigo,
que ora estou na nossa aldea,
mesmo na vossa mercea
me encomendo. E mais digo,
digo que benza-nos Deus,
que vos fez de tão bom jeito;
bom prazer e bom proveito
veja vossa mãe de vós.
e de mi também assi,
ainda que eu vos vi,
estoutro dia de folgar,
e não quisestes bailar,
nem cantar presente mi...

(Ibidem, p. 311)

Inês repudia o pretendente em virtude de sua rusticidade, chegando mesmo a depreciá-lo, criticando-lhe a
simplicidade. A sua condição financeira não a atrai, e ela recusa o pedido de casamento. Tal recusa, nesse momento, é
importante, pois marcará a diferença de perspetivas da protagonista no decorrer da história. Curiosamente, a
ingenuidade de Pero Marques, que será vista no final como algo extremamente conveniente, é agora motivo de
escárnio por parte de Inês, que o ridiculariza por não se ter aproveitado de estarem a sós:

Inês: Pessoa conheço eu


que levara outro caminho...
Casai lá com um vilãozinho,
mais covarde que um judeu!
Se fora outro homem agora,
e me topara a tal hora,
estando assi às escuras,
falara-me mil doçuras,
ainda que mais não fora...

(Ibidem, p. 318)

E, na sociedade em que o parecer vale mais do que o ser, surge a figura do escudeiro Brás da Mata, calculista
e mentiroso, que finge viver de forma abastada, apenas para impressionar. Os Judeus casamenteiros, através das
críticas que fazem entre si, desnudam a verdade sobre o Escudeiro, bem como o Moço que o acompanha, fazendo-nos
sabedores de suas mentiras e dificuldades financeiras. Impressiona Inês de imediato, pois o seu discurso é galante e é
habilmente utilizado para conquistá-la. Curioso é o facto de, tanto a má impressão, deixada por Pero Marques, como
o deslumbramento, inspirado por Brás da Mata, serem decorrentes dos seus discursos. Com um tom que remonta aos
cantares de amor, o escudeiro encanta a moça:

Escudeiro: Antes que mais diga agora,


Deus vos salve, fresca rosa,
e vos dê por minha esposa,
por mulher e por senhora;
Que bem vejo
Nesse ar, nesse despejo,
Mui graciosa donzela,
que vós sois, minha alma, aquela
que eu busco e que desejo.
Obrou bem a Natureza
em vos dar tal condição
que amais a discrição
muito mais que a riqueza.

(...)
Sei bem ler
e muito bem escrever,
e bom jugador de bola,
e quanto a tanger viola,
logo me ouvireis tanger.

(Ibidem, p. 325-326)

Após o casamento com o escudeiro, Inês é rapidamente confrontada com a verdade: o marido revela-se um
déspota, proibindo-a de cantar, chegando mesmo a ameaçá-la fisicamente em caso de desobediência. A reclusão de
Inês fica ainda mais patente, pois ele informa que a manterá trancada, sob permanente vigilância:

Escudeiro: Ó esposa, não faleis,


Que casar é cativeiro.
(...)
Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas m'andáveis vós?
Juro ao corpo de Deus
Que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar
Eu vos farei assoviar.
(...)
Vós não haveis de falar
com homem nem mulher que seja;
nem somente ir à igreja
não vos quero eu leixar
Já vos preguei as janelas,
porque vos não ponhais nelas;
estareis aqui encerrada,
nesta casa tão fechada,
como freira d'Oudivelas.
(...)
Vós não haveis de mandar
Em casa somente um pêlo.
Se eu disser: – isto é novelo –
Havei-lo de confirmar
E mais quando eu vier
De fora, haveis de tremer;
E cousa que vós digais
Não vos há-de valer mais
Que aquilo que eu quiser.

(Ibidem, p. 332-335)

Arrependida de sua precipitação, Inês afirma que, se lhe fosse dada outra chance, não incorreria no mesmo
equívoco. Significativamente, ela principia o seu novo discurso com o mesmo termo com que antes amaldiçoava o
lavrar: renego. Entretanto, o que ela renega aqui é a discrição, qualidade que a fez desposar o homem que a faz
infeliz. A protagonista modifica-se ao longo do auto/farsa, passando por um processo de sofrimento e de
aprendizagem:

Inês: Renego da discrição,


comendo ao demo o aviso,
que sempre cuidei que nisso
estava a boa condição;
cuidei que fossem cavaleiros
fidalgos e escudeiros,
não cheos de desvarios,

e em suas casas macios,


e na guerra lastimeiros.
Juro em todo meu sentido
que, se solteira me vejo,
assi como eu desejo,
que eu saiba escolher marido,
à boa fé, sem mau engano,
pacífico todo o ano,
e que ande a meu mandar...
Havia-me eu de vingar
deste mal e deste dano!

(Ibidem, p. 337)

A trama sofre uma reviravolta, pois Inês é informada de que o escudeiro havia sido morto. Tal acontecimento
possibilita que ela ponha em prática sua nova visão de mundo. Pero Marques, ainda mais abastado, volta a cortejá-la,
e a moça agora aceita seu pedido:

Inês: Andar! Pero Marques seja!


Quero tomar por esposo
quem se tenha por ditoso
de cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
asno que me leve quero,
e não cavalo folão;
antes lebre que leão,
antes lavrador que Nero.

(Ibidem, p. 340)

Após ter sofrido nas mãos do marido, Inês chega à conclusão: mais vale o asno que a carregue do que o
cavalo que a derrube. Numa sociedade em transição, os valores aos poucos se modificam: mais vale o camponês
simplório – o asno – do que o representante de uma aristocracia decadente – o cavalo – que simbolicamente a
derruba. Dessa vez, a moça é quem dita as regras, com as quais Pero Marques concorda. Em dado momento, Inês
reencontra um ermitão a quem desprezara no passado, e o texto sugere que ela o tomará como amante. A referência
ao asno que a carrega assume aqui uma dimensão literal, uma vez que o casal tem de cruzar um rio, e ela pede que
ele a leve às costas. A passagem, que termina o auto/farsa, mostra-nos ainda o marido fazendo-lhe as vontades, e
Inês, numa dose de ironia, começa a cantarolar, e o marido a acompanha no refrão “Pois assi se fazem as cousas”,
num indício de que Inês dará as ordens, cabendo a ele apenas repetir o refrão, uma frase que sintetiza a sua
aquiescência:

Inês: Pois eu hei só de cantar


e vós me respondereis,
Cada vez que eu acabar:
Pois assi se fazem as cousas.

Canta Inês Pereira:

Inês: Marido cuco me levades,


e mais duas lousas.

Pero: Pois assi se fazem as cousas.

Inês: Bem sabedes vós, marido,


quanto vos amo;
sempre fostes percebido
pera gamo.
Carregado ides, noss'amo,
Com duas lousas.

Pero: Pois assi se fazem as cousas

Inês: Bem sabedes vós, marido,


quanto vos quero;
sempre fostes percebido
pera cervo.
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.

Pero: Pois assi se fazem as cousas

(Ibidem, p. 346-347).

A ingenuidade do inocente Pero impede-o de perceber o comportamento de Inês. Ela, irónica, mostra que o
fará de bobo, num discurso em que o chama de gamo, símbolo do homem traído, e em seguida de cervo, numa
exploração lúdica do léxico, que reforça a ideia do gamo, e remete, por semelhança fónica, à subserviência do servo.
Ambos – traição e submissão – marcarão o casamento de ambos. Observe-se que a mudança de postura de Inês
reflete os valores do mundo em que está inserida: do encantamento e da fantasia em relação à figura cortês do
cavaleiro – imagem que significativamente desmorona no decorrer da farsa – a protagonista percebe as vantagens de
aceitar a chegada do simplório, porém, bem situado Pero Marques, numa troca que sugere as inúmeras mudanças a
que a sociedade assistia. O mote da farsa – “antes quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube” -
constitui a síntese estrutural do auto, e a dicotomia que atravessa o texto metaforiza a transição da sociedade
medieval para a renascentista. Gil Vicente, um homem situado entre dois mundos, soube como poucos escrever a
história de uma sociedade ainda guiada por um pensamento religioso e medieval, mas que se descobria aos poucos
tão mais valiosa quando assinada pelo homem.

BIBLIOGRAFIA

MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo das mulheres. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.

VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. Introdução e estudo crítico pela Prof.ª Cleonice Berardinelli. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

A Professora,
Teresa Moura Pereira

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