Você está na página 1de 24
Michéle Petit Os jovens e a leitura Uma nova perspectiva editora 34 EDITORA 34 itora 34 Ltda. : 7 Ea aria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 Bee lo. SP Brasil TeVFax (11) 3811-6777 www.editora34.com by 50 ; ca 34 Ltda. (edigao brasileira), 2008 © Edito x orate ture: une autre approche © Michéle Petit, 1998 Les Jeunes et la lect A FOTOCOPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO EILEGAL E CONFIGURA UMA APROPRIAGAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR, Edigio conforme 0 Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa, Titulo original: Les Jeunes et la lecture: une autre approche Imagem da capa: A partir de gravura de Moisés Edgar, do Grupo Xiloceasa, Sao Paulo Capa, projeto grifico e editoragio eletrénica: Bracher & Malta Producao Grafica Revisdo: Camila Boldrini, Fabricio Corsaletti, Alberto Martins, Mell Brites 1* Edicao - 2008, 2* Edigdo - 2009 (2* Reimpressao - 2013) CIP - Brasil. Catalogagao-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Petit, Michéle P28) Os jovens ¢ a leitura: uma nova perspectiva / Michéle Petit; traduco de Celina Olga de Souza — Sao Paulo: Editora 34, 2009 (2? Edigao). 192 p, Tradugao de: Les Jeunes et la lecture ISBN 978-85-7326.397.8 1. Leitura - Jovens, 2, Educagio - Acesso a leitura, 1. Sor Acewo uuza, Celina Olga de. CDD - 372.4 Terceiro encontro O MEDO DO LIVRO Vimos ontem que a leitura poderia ser a chave para uma série de transformagées, em diferentes Ambitos, contribuindo sobretudo para uma recomposigao das representagGes, das identidades e das relagGes de pertencimento. E que também poderia ser o preltidio para uma cidadania ativa. Consequen- temente, o fato de ela suscitar medos e resisténcias nao deve causar surpresa, ainda mais nos dias de hoje, em que todos clamam a uma s6 voz: “E preciso ler”. Os seres humanos tém uma relacdo muito ambivalente com 0 movimento, a novida- de, a liberdade, 0 pensamento, que podem ser, por um lado, objeto de fortes desejos, mas também de medos associados a esses desejos. Falarei entao desse medo do livro, ou ao menos de al- guns de seus aspectos, pois me parece que est’io sempre pre- sentes, mesmo que as vezes assumam formas mais sutis que as conhecidas no passado. Esclarego que esse medo nao diz respeito apenas aos jovens. Ele est4 presente em torno deles, sobretudo se nasceram em um meio onde 0 livro € pouco fa- miliar. Ele pode estar na familia, no bairro, entre os amigos € até mesmo entre os professores. E também esta presente entre os que detém o poder, por tras dos belos discursos dos politicos sobre a difusao da leitura. . . Com frequéncia pensa-se que 0 acesso ao livro deveria ser algo “natural”, a partir do momento em que a ae dispde de algumas competéncias € certo Brau de esco a S40. Entretanto, praticar a leitura pode se revelar impossive!, 103 © medo do livro ua grande parte do tempo livre as azeres gin desc pata casa fazer trabalhos manais j- Cr re a“ opted pl fat de a Fr 8 UM Prater Slt dante Fenguanto I, a pessoa se afasta do grupo, ac 5 ns serio Mas fore da palavra, hol dean fe deseo nao era bem-vindo nm mundo ro, a cer radcnalmente pola homogenidade a ae epeesenasdes€valofes; wm mundo en get se roeapeno", acreditar ser alguém”, se distingur ge ceo de opinides ow de sentimentos pessoas ndovec Sn ncusive hoje, et ipo de "preocupasao consign Mramo" cas sexponta i luz do dia pode ser julpado Conveicn, groser, ali onde a preferencia € dads is at ‘isdes comparihades, ds fidelidades familiares e comun tira, senso nos fats, 20 menos nos valores. A afirmagso dura singulidade nem sempre é algo natural mesimo que tm muito espaosrurais, a sociabilidade tradicional pees Cais vee mais importncia, mesmo que, como observa Lu cee, ane éramos como uma fami, todo mundo agi da ‘mesma forma, Hoe cada um est na Soa”. “Gada um eséna sua” mas para se entregar ecuraé necesrio deixar ogropo sempre na ponta dos pe: € native dacs a sua grande maoria, as pessoas do campo qu co hefemos equ gostam de ler renham dito que iam 3 is 3 cama, no imporaaidade, a situagao familiar ou peo Sonal ara tar um exempo, ougamos esta mulher: “Nunes Idan oda. Nunca antes do anoitecer,E mesmo hoje 2 {x podea fro, no consig. Leio noite, Quando cia $a reprendda! Faia iso um pou is escondidas.-> ass alene,um tercir tipo de interdito: no cam esd ave nas cidade, o dominio da lingua eo aess0 205 trea oam or mio repo peli daa le, 04 sa, 0s notaveis, os represent 106 Os ovens ea ftort edo Estado © da lata. E estes sempre quiseram 1 Stores, Obcecada pelos perios dais ames Ins 2 grea catblica, em particular, condenou ducame nas tempo as leituras no contoadis da Bia eee Frotanas ee esforgou em fazer da leita um genase Penquadrado. ‘Confronta-sedirtamente com os livzos, sm item: dirion, € distanciar-se desse modelo tclisiowo dan tars iricanes, da letara vigiada que se praticou com igang Stciedades rurais. E escapar dos lugares predcermnadon inde et fom asus pes condi, are es Fontera que mantinka no ostracismo agueles que esavane destinados as atividades manuais, ‘Ler, no campo, pressupde muitasvezestransgrdir esses jnterditos,seia negociando com eles, seja usando de astcia frente a valores que, durante sécuos, deram senido& vida € cuia meméria parece sempre pesar sobre o modo de viver € pensar. Em diferentes regides, muitos habitanes do campo rmencionaram a dificil conqusta de um espago de letura, um pouco clandestino: quantas recordasdes de emus ets ar de uma lanterna, sob os lengéis, até mesmo a hr da lua! E rio eram somente pessoas de idade, relembrando infincias, distantes, que nos contavam isso. Ainda hoe hi pessoas que se excondem para ler, como conta a esposa de um arialkot “Ea mentalidade dagui:nio se perde tempo lendo ‘ou fazendo palavras eruzadas, Sempre tem gente ave passa e dz: E incrivel, ela nio faz nada enquanto seu ‘marido se acaba no trabalho!. Quando veo alavémn che Bando, escondo o livro. Vejo quem vem. Estou sempre alerta. Ao menor ruido... me aprumo”- Ali deler era uma pratica mais comur®, a ‘wadro da vida rotineira que as pessoas do campo ter salvo em algumas familias ou algumas regices, on- - “écom frequéncia fora do 07 © medo do tiveo " va, Como sea Keita SUPUSESSE upturn, *jerpo de infincia em que se viva na demos fem 09 gut x een os, ou como dia © note”, Spa ie ne STamiiares, astro, do diaa dia da aldcia, eo fo. denn aes tara goto pelos livros durante yn fea ednanclmen 0:00 intermato, a guerra ou nee Ao oxen, pensva em como a letra, assim go Pea oma asociada a0 exo. las iniciava no mor lb pew do corpo a corpo com a terra, de um éxoda ty Tugar costume. Sepa. Nature. iviamog acess leita ragdes BUSES sas "Nunca apret Abro agui um parénteses para lembrar que, para a ps canilise,aleitura tem um parentesco com as atividades J, tas desublimagio, que se desviam das pulsies sexuais pars objetos socialmente valorizados: principalmente, segundo Freud, a aividade artstica ea investigagao intelectual. Estas atividades de sublimagao nascem com a separagio, com o ‘rimeiro objeto com o qual se deve fazer o luto. Para Winn. ‘ott de modo mais preciso, as experiéncias culturais pressu Sem um “espago” no qual situé-las, que ele chama de espago twansiconal eque se estabelece entre a crianga e a mie, desde que a crianca se sinta em seguranca.' Nesse sentido, certos objetos — sea um urso de pelicia que a erianga abraga 20 dorm, seja uma cancdo que repete, ou, mais tarde, os obje- tosculcurais—,representam a transigao, a viagem da crianga ‘ue passa do estado de unido com a mae ao estado em que “stabelece uma relagio com ela. Esses objetos protegem dt snes de “/ ives acess esrita © Ietura, roo ideas limits 408 cuidados a Cin de hes incite respeito plo pine oe < heres, ni0”. pds ue pba 04 75 0 se jatur, pariculaemente na Carolina do Sul que anni elm a ae ‘erro Manguel? Os proprietrios de escravos temiam que Genegrosencontrassem n0s livros idcias revolucionacias que adesem ameasar seu poder. Por exemplo, através da letra de panfers pedindo a abolisio da escravatura ou mesmo pela lara da Biblia, eles poderiam se abrir as idcias de re. telta, de iberdade, Manguel evoca os proprietérios de plan. {ations que enforcavam qualquer escravo que tentasse ensinar ‘osoutrosa ler. Evoca também os eseravos que apesar de tudo aprenderam alee pelos meios mais ins6liros. Como a mulher «que havia aprendido o alfabeto enquanto tomava conta do bebé do proprietario da plantation, brincando com blocos onde estavam desenhadas as letras. Quando o proprietério a surpreendeu, deu-lhe pontapés e uma sutra de chicote. En 1981, no Chile, D. Quixote foi proibido pela junta niltar, pois Pinochet acreditava (com razao, diz Mangvcl) “que livzo continha um apelo pela liberdade individual € tum ataque 4 autoridade consticuida”.""E vocés sabem como © dltimos anos foram ricos em loucuras desse tipo, princ- Palmente relacionadas com a ascenso dos fundamentals ‘mos, No Egito, a circulagio de As mil e uma noites foi con- todas as mulheres Irodo de resting quanto as mul ‘Quo exer} A, Gitado por Franois Furete Jacques Ozouf, Lie t écrit: [ah habitation des Fram pease ation des Francais de Cavin a Jules Ferry, Paris, Minuit, 197% Ua bist daa ea 0 Paulo, Com un dre a4, ako Maia Sores, So Palo “bid p. 337 12 aati 0s joven —_ srolada, Nese mesmo pals, como tambén wri alguns escrtores foram panera ‘Of escitors, que sabem mute bem goo redo em relacio ao liv, escrevem is vere akg es? ee tamak emcee tues ads ter passado anos endo, é toma de supine $Tideia de ndo ser mais dono de s mesmo: “tim sekerng reina sobre milhdes de pessoas poderiadenar persone fn Spit fasespronunciadss por um outro” hes enon fag ent numa busca sem fim ar ser cle mace es nas ele mesmo”, Passa anos qucimando todos os inte de oe tim dia gostou € que oinfluenciaram, pos todos ohye Hibelas que o cercam, carregados de lembrames descent bes de dela, o impedem de “ser ele memo” En soonda afasta todas as pessoas que poderiam Ihe influenciar — sobre tudo as mulheres, pois “toda mulher que se aproximasse dele, pouco a pouco confundiia seus pnsamenton es initsars ‘em seus sonhos”. Bela imagem de Narciso nos fornece esse principe, apavorado com a ideia de ver seu reino ameagado Pela inrusdo de uma frase, uma lembrangasuma assay de ideias, um sonho amoroso. ord, Turguia 05 asassinados, Salman Rushdie evocou 0 medo do livro de maneira pa- recida, num conto chamado Haroun e 0 mar de bistoras.* no qual Haroun, que é filho de um contador de historias, co mnhece um personagem chamado Mestre do Culto, que tem ‘como inica ambigio na vida destruir todas as historias. En to Haroun Ihe pergunta: “Mas por que vocé odeia tanto as historias? As historias sio diveridas...”. 0 Mestee do Cut Fesponde: “O mundo nao ¢ feito para ninguém se divertir. 0 “Orhan Pamuk, Le lor nor, Pars, Gallimard, 1990, 9429-48. * Pats, 10/18, 1914p 187 fe baer: Harum coma i trad a Mara Lando, So Paulo, Compania das Leta 98 O medo do livro " oo Controlar, [4] Todos 08 mundos mundo € pura oXstem race Dominado- dentro de cada Sora deni so do Mat de Historias, enste um mundo, um mons cada dominar. Esta € a rasigs Se histmas, que eu nde cOnsIBO ‘Creo que Rushdie acertou na mosc Jeanna os romana sobre, Molaven ee portanto assustadores para aqueles que query rercontole de tudo, Os fundamentalstas desciam ter oma opolo abvoluto do sentido, Eas historias sio inguietaney porque as palvras tm esa caracteristca peculiar de excayn Eequalguer controle dos signos, a partir do momentoem gen ada um pode carroga las de seu proprio desci@e assoxia uiras palayras, come vimos Is historias, oy 0 primeira din a seu modo, Sobre nso, para continua nossa pequena invests para recolher indices, gostara de hes apeesentar lo uc ne tnterssou muito e que demonstra ate onde pox levara son tade plinca de controlar os yogon da linguagem. Trata se sin observaces de uma linguista argelina, Malika Greth tema de ensno do arabe em vigor na Angelia hi mars de tents anos. Ese sistema, ela observa, tem a unc tna ade de empobrever a ingua pura tentarredusr-laa um mera tn ‘io instrumental. Explica que durante os quatro primes anos de excola, as erangas nio ouvem nem lem test alguns Has sio condisonadas a retlexos paslosianos por metosos audiovsuais do tipo pergunta-resposta, O que se pretende € indus uma lingua oral, de dislogo — no uma Lingus Para a desergo, marragio, argumentacio € pensamicnto Esse modelo adotado na Angelia em 1965 fo, na real dide, emprestado do modelo em vigor na Franga da éPe! ‘modelo para as classes reservadas as criangas filhas Je 1 RIMELE 208 joven franceses com deficigncias sntelectuat ces ampanha de reeducayio lingustica”, a vomtade de Teabtece a lingua, colocar-the freios, var muito longs. AS Mnnées ois do Ministerio argelino da Educayie she m4 Os jovense# leet? nama rournaironimer decor ena si pictamente om profesorer ea Set por exemplo, palavra ween as, recomend Sempre ree Malka Gretow mente? Certamente ni0 S80 a8es miratiras nem tadoade ted aor", Omesmo ocr cw dn nn O acesso a0 texto — relatos, versivulon,poestr emma para dar peeferéncia 20 uso Uoaudiontsuatedetahe heat Aver que, nas raras escolas que possiem una binees og {as ni sio encorajadas a ler, ay cnn 3s Nez io até pr dhs de tocar nos livros Borges dizia que a verdadeirafun0 dow monarcas ra constuirfortiticaydese incendiae biblioteca Queter enti laros deslocamentos no espago € 0 jogo da linguagem ¢ pro savelmente uma kinica € mesma coisa Um mesmo pavor de «que as linhas se movam, um mesmo temor dagilesedague las que ni podem ser trancados em uma cia. Eno, al onde existe uma cultura, feta de contribuigies multilas, aberta a todos 0s jogos, a todas as aproprindes os poderes 2utoritisios quscram impor um cvidig, un vnjuneo de pe ceitos; ali onde existe um quadeo, nuances, uzes€sombras, eles quiseram substituir por uma moldurarigda. Fem ne hum lugar se est asalso de sua determinagao em controlar © 10,0 das palavras: por exemplo,na Franka, um patio de extrema direita, xenofobo, ganbou a eleigies recentemente €M Varios municipios, Quando assumiu o poder, uma das Primeieas medidas foi colocar as miosis bine tar ® acesso a elas e controlar seus acer. Mas deveriamos estar atentos dp formas mais suis ve «38¢ medo dos jogos de linguagem pode assumie.O med do © Mohamed Benrabah, Lame et posvaren Alene aumatisme lngustgue, ats, Segue, 1990-1 sore ae us © medo do veo : — suri de modo imprevisivel, grasa polisseny ot nape, 0 medo 20 texts lterios, nos quae tne pir vla a ribar, © onde se express a com seer complexidade humanas. As sociedades ocidensg atpaneti doents, seu modo, na manera como tana ‘Simp, ness ideologis da “comunicacio” que ind a wee ‘Cpreseetagzo da lingua como um simples comérco den formagbes. Nesta visio eigida do “e6digo” semantico, que te relza nessa era de primazia do téenico, de multiplca so dosages utlirios. E bom lembrar que o modelo wis ‘ao na Arg fi concebido na Franga, povavelmente com 2 melhores imengdes.E esta mancira de mutilar a lingua ¢ acompanhada, naturalment, de uma pane do imaginrio © da "cise do vncuo social”. 0 que complica ainda mais as coisas, é que 0 soberano aque teme perder o controle de seu peaueno reno e que gos taria de dominar tudo, pode também atuar no coragao da familia eno coragio de cada um. £ 0 que veremos, depos desta digresso, quando voltarmos aos jovens que vivem nos bairos marginalizados dos quasfaleiextensamente ontem ‘TRAIR 5 seus? Ontem eu diaia que uma minoria ativa se apropria das [ibliotess instaladas nesses bairros e dos livros que melas s¢ xcortram, Um é preci 7 1a minotia, pois é preciso dizer que a maior dos qu vive ali infelizment ra des bible Mhinfelizmente, nunca passou da porta dss Earazio diso€ ‘i 5 sso & que esses jovens também se confront censtitios obsticuloseimerditos. Muitas vezes encontra™S Shreyas caracteristicas semelhantes as que Pudemes “Gale ge Meio tual: a exigéncia do que é considers? : ianga em relagdo ao que se pensa set al8° ne . Osjovense Ito it~ a opto dos rcos, ou mesmo dos exploradores, dos exe Fedores E também encontramoso mo dole on transforma o leitor,levé-lo a outros hares afer seus, emancipi-lo do grupo, los ‘Por exemplo, em determinadas falas de inigeanes vindas da Africa do Norte, ou mais frequentemenre he ‘gia, esta desconfianga ¢abertae declarada, Chega «pons eeompromerer a escolaridade das cringas, como epee ‘Aiché, que ajuda as criangas de origem turca a fazezem seus deveres: “No ensino fundamental, vocé tem a imagem do hhomem pré-histérico, Noss religiondoa aceita.Entio a crianga volta para casa com ses livtos © 08 pasa re ppreendem: “O que significa iso? Contam uma histiia cextpida e voo’ actdita nels [.]-E depois, a quimica, a biologia, tudo iso, a imagem que 0 profesor cons na cabega da crianga é destruida em casa. Entio arian ‘62 nfo se encontra mais. Ouvi muitos alunos dizer: “Minha mie disse que tado que faziam na escola ra bes teira: © que signticam essas histras de ratos que fa- lam? (ela se reeria ds histéras dos livros infants em que 0s animals falar)". [A propria Aiché, que sinha grande deseo de aprender ¢ deer, teve de contormar esses interditos: "Meus pisme pro biam de pegar qualquer liveo feancés, Me diam: "0 gue ¥0- é pegou agora?” E eu respondia: "Nao, nio, mie, Sio hveos due peguei ha trés semanas, vou devol¥é-los biblioesa™ ‘Ougamos ainda este jovem curdo, que fal do Inga Se origem de seus pais: “Lead ea peguen cr. dese ci culkara [..] todo mundo tinha a mesma ‘gual, eo trabalho era realizado no campo o¥ <0 © medo do livre A vida dees € baseada nessas poucas coisa, seem o mundo como nds o vemos. Veem apenas o wles Nio veer 0 et [-}: Quando Thes fala ve jo conhecem, encontram de algo n0v0 que i sempre sea pos neatva. Ecealmente medo 0 que semen, domo ndo conhecem, colocam unta barreira. Nao é poe seal, para discrminat algo, um objeto ou um ser hums, tho no, € eealmente uma protesio, querem que figue. ros em seu ciclo, Mas no podemos mais fcar no sey circulo”- ‘Quando se viveu em um registro de balizas muito es. ‘retas para pensar a relagio com 0 que esta a sua volta, in, trodurirconhecimentos ou valores novos pode ser percebido ‘como algo perigoso, que desestabiliza demais um universe frig. As familias recém-chegadas nesses baitros das perf. sas das cidades francesas, oriundas, repito, de meios eurais analfaberos, se veer as voltas com uma verdadeira colisio de universos culturais, principalmente no que diz respeito a situagio das jovens. E€ um pouco como se a familia devesse ser uma fortaleza, no sofrendo nenhuma transformagio. Evidentemente, a leitura representa 0 risco de que o mundo «terior faga uma iteupeo, que faga tremer os muros da for taleza. Temem que os livros levem seus filhos, receiam per- der o controle sobre eles, e mais ainda sobre elas; Ihes asus ta ideia de que as desviem do mundo doméstico no qual pre- ‘endiam confind-las. Algumas criangas, sobretudo algumas meninas, tivera™ {ue conquistar com muita luta 0 direito de ler e de i biblio~ {cca tiveram que enfrentar a resisténcia dos pais em relasi0 ‘cultura etrada, Como Zohra, que é de origem argelina: “Nio admitiam que houvesse uma cultura, prin flmentsuma cultura francesa, Para ele apalavra cl ‘ar senficavasobretudo “car em casa ese protege © us - Os ovens eal a tnelbor postive do eerie Es pasg Geto drab Nios 9 do sesentam obiados [1A those oo Inger de prazer ede ner, ks semper asm dae ema, Quando meu psa fndoc cto quran eae nrg tm vo nas mis, comesaam an sa ue nos lsemes por peer, Tinham ae tietar qe tviatence monemospenn cin Entretanto, gostaria de lembrar que, mesmo neste caso em que omedo é explicto, a situagio pode molar, Ousmea novamente Zohra: “Meu pai, muitas vezes, la o jomal so dia do tiercé [uma espécie de loteria popular haseada em cor ridas de cavalos]. Parecia que estavalendo. Ee at usa clos hoje em dia; e ele continua, lé 0 jornal a partir dos nimeron, ‘Conhece perfeitamente seu jornal[.] chega a eodifca, en contrar pontos de referéncia”. Assim, neste casal to host leitua, 0 pai €analfabeto... mas é,a seu modo, um “lio Quanto a mae: “Muitas vezes minha mie me dizia:‘Voeé de. veria escrever um livro’. Ela tinha vontade de contr sua his ‘ria! Porque muitas vezes nos contava histéras de faa terriveis, € eu pensava em como seria bom se eu pudess crever tudo aquilo, porque vou esquecer tudo 0 que ea me contava...". Assim, quase poderiamos nos pergunta s, 20 apr: priar da cultura escria e mas tarde torarse hibits Zohra mio deu voz a uma parte secreta de sus pais sen Fealizou um desejo nao expresso por esta cultura lerada tio et igmas agem "Chat, Pais, Jaliard, 1998, p. $4. 128 Os jovens a et —_ © nator ort ven, uc jotecria ese deixalevar pelos acy m SSicaAn nce tet Rr cents meso tts me canny est sa asociaglo entre o fato dese aproxinne aay coriso de perder avislidade pode coer dg gue € esi € GUE arena oko de nun? ainda que de forma momentinea: ese rapazes eng den, deixar sua carapaca de lado por uns instore acy jum abismo de raquers.* Masiso ea puta ro no caso de leituras que tém mio a vercon dade. Para os rapazesnio€ fil actor quae espaco vazio em que se pode acolher a vor de um outrose ce tipo de letura pode ser percebido, inconscientemente, coma algo que 0s expée a0 risco de catragio. A panes imobilidade que a leitura parece exigir podem tambem ser sivdas como algo angustiante.De fat shandowene texto, deixar-se levar, deixar-se tomar pelas palaveas, pres supde talvez, para um rapaz, ter que acetar, que assimilar seu lado feminino. Se isso € algo relaivamente tcl nas tases médias ou em um meio burgués — onde existem outros mo- dos de vrlidade, onde a cultura letrada cone coma um valor —, é particularmente dificil em um meio popular, onde os rapazes se mantém sob estreto controle mito. Os conflitos socioculturais podem reforgar ou mascarar ‘smedos mais inconscientes:esesrapazes avez nio spor tema divida, a sensasio de caréncia que acompanta todo ‘prendizado, e se stam perseguidos por plavtas que 05 Imetem a interrogagdesarcaicas, morte, a0 ex0, 205 mission da vida, a perda. Nio esquecamos a antiga associagao entre o livro, 0 a ‘thecimento e os mistérios do sexo. Encontramos, lis, sina disso no fato de que muitas vezes obtemos os primeitos ©" 2.00 Por uma i Serge Boimare, Nouvelle Reme de Paychanls 1°37, 178 9 © medo do tvro 1 osexo no dicionsrio. Sea curios mea po cnsiderada um deft, isso nao de ree retro fato de que, segundo a psicanalise, me se tecment origins a criosidade sexual dang? ie maneia ras prec, acutiosidade conse soe moment, em saber do que é feito 0 interior fy ao por excelénca, 0 interior do corpo materno, Meigen Keine James Strachey, por exemplo, mostraram que hang toma etal para inconscente entre os vos ew cons Mimena* Melante Klein cscreveu: “Ler significa, pars? Conscience, romar 0 conhecimento do interior do corpo trie [.] 0 medo de despoj-la € um fator importante x. iibges em rlagdo altura. Alberto Manguel também reconhece iso em sua Hist. ria da letura, quando di: secimentos sob dade f “0 medo popular do que um letor possa fazer en- «eas piginas de um livro € semelhante ao medo intem- poral que 0s homens tém do que as mulheres possam faze em lugares secretos de seus corpos, e do que as bru a3 08 alquimistas possam fazer em segredo, atris de suas portas trancadas” 5? Se estou indo um pouco longe,é justamente para que sintam que letura nio €uma atividade anddina a qual, fe ‘Ber porexemplo, Melanie Kein, Paychanalyse des enfants Pais UR, 1990 *Conibuion la chéorie de Pinhibiton intellects” sai de prychanaye, Pars, Payot, 1968; Roger Dorey, Le Désir des [ns Fas, Denod, 198, e rangoise Schulman, “Le lecteur, ce ¥OFeH"> in sprit 0483, 1976, {Melani Klin, “Contribution. Strachey, “Some conse: acorn Rendng dered fea of PhO ‘ye eg ue Reading” international oural of Po Op. cit p37, ener gS BOsaram deg gaergue€possivel alidar os joven se Tecmo, ta Fangs, © pelo per pela 08 paz com ea reimgs, poesia, metiforas, qu e {face wos quis les podem liar ener sea fines que a letra eas suagSes de pends ee fam nels e que paralisam seu pesumemo, Auten oP ‘osmogonia de Hsiodo, ocontos denn se ea es de Jlio Verne, Boimae Ihe permite uli ins muito arcico. Assim, sua neesidade keene ee ominio, sua rigider, dio pouco a pounce ee menos poguicos. tsa Epa dram 4 superman na erapeuta Serge Boimare!® # apresenande hers rium se imaging Alguns rapazes fazem, espontaneamente, uma esolha diferente da virilidade gregéria: uma escolha pela busea de ‘mesmo. Fiquei particularmente surpresa com o nimero de rapazes que me disseram gostar de ler ow esrever poesia. Mas € claro que ndo comentam com seus amigos, para evitar a repressio que sofre todo aquele que é“estudioso™. £0 cas0 de Nicolas, que diz: “Se pensamos: ‘esse ai vai gozar de mim... iso ‘mostea como a vergonha tem um peso muito grand so- bre a leitura ea escrita, Sto coisas reservadas para uma lite. Tenho um amigo que adora fequentar sales arte e com ele acontece a mesma coisa: s vai a cube de esportes, vai guardar isso pra si, nio vai falar dso om ninguém... Abrie-se com os outros écrcl demas A quantidade de gente que Ie que nunca fala dso & Na realidade, nos meios populares, ndo 6 quay paz que vai seguir © camino da leitura. Com fra aquele que, por alguma ra230, se diferencia do gar € ‘gamos novamente Nicolas: PO. Oy. Nao acho que eu seja do tipo que fica Vagands pelasruas. Nunca me interei a0 grupo, porgue nies tha anogo de grupo [J Fo! por sso que fui obigaty a sir da escola. Doisdcles me causaram problemas ay smas forte que eles, porém todo 0 grupo cait em cima de rim, ¢ eles eram cinquenta pessoas. Nao tive escolng deixeia escola, deixei os amigos, eu sentia muito medor Vamos ouvir agora Jacques-Alain, que é um leitor ay siduot “Sempre fui um menino solitario e diferente, volady para dentro [..]. Meus amigos eram os livros”. Ou Roger, ‘num outro contexto, o do campo. Roger € um agricultor au. todidata: “De onde me vem esse amor pelos livros? Sabe, 20s vinte anos, eu caminhava pela vila, rentava passar de percebido, nao dizia bom-dia a ninguém. Era muito t= mido. Voltado para dentro. Nunca joguei futebol, detes too bar. Gostava de andar de bicicleta, por qué? Como cexplicar... Ndo sei. De qualquer maneira, sempre gostei de er” Para terminar, ougamos Richard Hoggart, um intclee tual origindrio das classes populares inglesas, que escreved sua autobiografia: “Precsava descobit algo por mim mesmo, devia -me do caminho tragado, realizar minhas proprias do cobertas, encontrar minhas préprias inspirag6es, fo"® aquilo que os professores propunham ¢ muito além do roy (0s jovens ea —_~ oe dam a maior prt de mescolgae rea pen lonea muy ean ‘A individalieaglo ea eturacaminhan juntas my cel pesuponhy 0 mon ua rn ia previa do grupo, O4 uma difculdade em fase pane ne seal, um deseo de dferencarse dele toe ona encod, dara ela leitura. . ‘Vamos observar que iso pode ocore também, em me- nor proporsio, para as meninas. Como cco con Lng dima jovem de dezessete anos, oriunda do Zaire, que vive ay periferiaparisiense: “Eles, eles andam em grupo, E, 20 com ero, uando venho a biblioteca, venho sot, Peto ter minhas coisas sinha, nio tenho esprit decoltiade™ ‘Mesmo entre aqueles que frequentam bibiotecas, hi al- guns que 56 vo em grupo para fazer suas tarefs,e que nunca tomario gosto pela leitra ou descobririo algo por si mes- mos. Enquanto hé outros que algum dia irio se aventurar sozinhos entre as estantes, Por que, entio, alguns permane- cem sempre colados aos outros sem que jamais thes ocorra abrir um lvro, enquanto outros tragam um camino singular em diregdo a leitura? Por um lado, é uma questi de empe- ramento pessoal; por outro, existe 0 pressuposto de que 0 jovem usuério de uma biblioteca tenha uma autonomia que, na realidade, espera-se que tanto a letura como a bbliote- ‘8 ajudem a construir. Porém, elas podem apenas encorsiaty contribuir para isso, Sea leitura ¢ biblioteca ajudam muito ‘quem tem vontade de mudar, de se rornar diferente, de “es- viar do caminko tragado”, isso € muito mais incerto para uem esta pouco seguro desse descjo. clos 33 Newport Stret, Autoiographie dwn interes des Populaire anglaise, Paris GallimardSeul, 1994s. 228 O med do tveo _ al ™ Dien eon forms ears pode ref © fato de alguém se entregar a ela jg yi, mas Prestup (in presupt, tale, aie ea tena se constuide oe re ficara 86s, confrontada cons ei cienee que suport igo mesma En reospiaralitios letra ajuda aelaborara “aan Gjonaade”pra war aexpressio de Winnicor,porén 9 Supde que se tenha tido acesso a essa transicionalida te tenha saido do estado da “fusio”. ata ler vos e, mais ainda, para ler literatura — gue algo que perturba, ue poe em quest2o a seguranca, as rls gies de pertencimento —, €necesséria ma estruturayso my hima do sujeito? Que margem de manobra dispomos pars atraras pessoas para a letura, jovens ou menos jovens. qua recessitam de uma identidade feita de concreto armadi (pela falta de uma verdadeira seguranga em relag3o a identidade)? Nios seria preciso refletr mais sobre isso com psicanals tase psicdlogos. Se nio se pode trabalhar nesse sentido, entio teremas, 'na maior parte do tempo, dois caminhos: alguns vio escolher © spirit de grupo virile terdo medo do encontro consigo ‘mesmo que a letura implica, medo da alteragao que ela aca eta eda caréncia que ela pode sigificar;e outros vio eso- ther um caminho singwlar. Evidentemente, um homem que ‘ao tem medo de sua propria sensibilidade me parece muito ‘mais maduro, mais hamano, que aqueles que se deslocam em hordss,alardeando ruidosamente a forca de seus misculos. io escondo minha preocupagio a0 observar que na Fran ‘etundo pesqusas recente, a divisio entre rapazes © mos fem se aeentuado no que toca a leitura: trés quartos dos le ‘ore de romances hoje em dia so leitoras. Ent3o, 0 que #2" Tat dv os rapazesrenham menos medo da interioridade, 4 senbiidagg tammenos med da interio Como thes trans utes SAE a ateg, ie, que ncia de smiti, em particular, a experiéns “omens que nela encontraram dimens6es infinita™=™ ™ iwc Os ovens a a a ee jes? Como 0 eitor Jan Louis sib Baud queer seat belo texto sobre sa relasiocom aes ee ve eres —s do al xt alumar eget A leieura me parcca uma atividade espeicamen: te destinada as mulheres, como, por exemple dann ‘Os homens 56 paticipavam dela na medida em quem cos conduzia mais direcamente 8s mulheres Leu ing erase fazer de cavalo a serviga dos prizes dena sma, que eram, antes de tudo, prazees de expresio, A Teiara era to ferinina que feminilizava aguees que, cor smo meu pai, entregavamse a ela Femiiliava-s 4 pon to de tornéelos capazes de elles a luz dessas vies aque as mulheres eesplandeciam, virtudes asociadas 20 exercicio e ao dominio da linguagem: intelighcia, ste leza finer imaginacio, eo dom que les pateciam pos- sur de enxergar além das aparéncas. Mas sobreudo,¢ talvez um pouco paradoxalments, 2 lituea constiuia tum dos atributos da autonomia que ex hes atribola” ‘Uma vez mais, a licua se vé associa is mulheres Mas, para esse escritor,longe de tornicladespezivel, ao contri, €0 que constitu seu encanto, seu atrativo. Fis ai, portanto, um certo mero de “materia” sobre © medo em relagio ao livco, Eu os leva pasear por mits lugares — dos campos franceses as margens da Ari, dos faneasmas arcaicos is plantagdes escravagisa ima 3" Jdddevam estar mareados. Assim, sem tera pretensio de dizer 7 ilkima palavra sobre tudo isso, pois a questio é imens ¢ Permanece aberta, 0 que podemas observar se nos era "mos em recapeular wm pouco? Haverd algo em coms lt © Un autre temps, n Nowvele Rare de Pyare 37 195, as © msdo do tvro —“! Sa eee udscoma pra 2 one oben roqueem gra relgios05, 08 8 dade, os pais ave ecto? “Talver sea o remor de perder o dominio sobre alo, ¢ smedo dese ver confrontado com a caréncia, com a plan. Tate de setidos coma contradigdo a alteridade, de se perce ter milplo, O medo de vera identidade desmoronar, quan. do ea é vista como algo monolitico, imutavel, oral Og talver sea, a0 menos, a difculdade de passar de um modo em (que a identidade € vvida como uma entidade fixa, preserva, da por um alco grau de oclusio diante do outro, para umn ‘modo no qual a identdade & concebida mais como um pro «ss0, um movimento, €0 outro € visto como uma possiil- dade de enriquecimento Aguee que fica & distncia dos livros teme perder algy ima coisa, enguanto o que se aproxima deles sente que tem algo a ganhar. © primeiro teme se confrontar com uma ca- réncia, que tenta negar com todas as suas forcas. O segundo scredita que, por meio dos livros, e em particular da liter 'ura, poder, a0 contrrio, apaziguar seus medos. E o que diz © esritor italiano Alessandro Baricco: "Aliterarara deve ser um meio para que possamos tofenta a tisea da realidad, os nossos medos © 0 sico. Ba deve ear pronunciaepalavras, pois mos eo do desconhecdo do inomindvel,Acredito ve todas as hisévas —tanto a minhas como as de ost05 stores ~so apenas elaborages linguistics compl 28 gutta dar um nome a nosas feridas, n0s08 melo, tomandoo, deste modo, menos asustadores ‘@imenso valor étco e civil das narragdes [...). Se muir {psig eem me 05, € porque enter, como {feie da realdade, ainda que nio tenham consciéncia 80. [...] Se conhecemos 0 ‘que nos assusta, podemos 0s jovens elie”! - eft, Nome ob. ata seem domme tome men Re feo a dominasio dat naragie§ dominate fe Sinaloa Note ito ou no padre, hi sempre uma espécie de autoridade Cea een ‘Além do mais, quem evita os livros vé eles algo de de- sencorajador, de austero,distante da vids. Enquanto letor {abe que eles podem ser uma fonte de infinito prazer.F para {dar um pouco mais de leveza, gostaria de dizer que aqueles que tiveram acesso a0s livros evocam, antes de tudo, oprazet delee. Darei a palavra a eles antes de continuar a percorrer ‘os caminhos pelos quais nos tornamos letores. ‘Alguns falam da leitura como um exercico vital (se a pessoa nio Ié, morre; ler alimenta a vida"), ou como uma historia de amor, de amor & primeira vista. Estes se deixam tocar, invadir pelo texto, se entregam a suas aventura, se abandonam a alteragdo: “Kundera mudou minha maneira de Jer", conta-nos uma jover. “Eu o rele dessa vez ele me transformou comple tamente. Deixei de me penguntar © que pensav, 04 5 bre o que estava ou nio de acordos ele me surpreenia, as vezes me chocava, e a partir disso se dew una n0¥8 descoberta da leitura e dos livros. Jé no se cratava de autores ede ideias que podiam me agradar, mas sim do fato de que podiam me trazee algo de diferente” A leitura pode ser um caso de paixio que io espe como ocorre com essa mulher, mie de rs filbos que dit “Se érealmente apaixonante, me envolvo eno importa que mets filhos gritem, tenham fome, nao tem problema: preparo-Thes © Magasin Litérire, er. 1998, p81 © medo do tivro w am ovo ito vo correndo para minha leitura™. Egy. seaman le encontam caminhosalternativos que Ihe tere eegrse #58 PAIN, COMO ESE Arico, Voc sabe, exe minha mulher tiveros sete flhos, aso algo que realmente mantém uma pessoa ocupada, Minha esposaajudava na ita, ensinava o catecismo, ‘Sempre encontramos um eto de dividi © trabalho, ns tow vtkvamos, Etdo, nio me venha com esa histia endo tenho tempo’. Isso nio existe. Quando queremos os organizat, nésconseguimos” ara essa pessoas, 0 gosto pela leitura toma muitas ve 10s a forma de uma incorporagao avida, de uma questio ora ‘Vejamosalgumas expresses que apareceram nas entrevista: “leraté iar saciado”, “devorei tudo”, *saboreei”, "é como uma guloseima”, “€ algo saboroso, saboroso”, “queria sab rear tudo", “tem aqueles que assaltam a geladeira, eu assl- toa biblioteca” etc. Com muita feequéncia, a intensa neces sidade de leitura, a incapacidade de liberar-se dela, faz.com ‘ue seja comparada a uma droga. Como diz-essa mulher: “Os livros sio como uma droga. Se nlo lemos, podemos morrer. ‘Meu marido leu coneladas de livros, eu todas as bibliotecas da cidade, sempre leu e continua lendo 0 tempo todo. E uma doenga. Lia até enquanto comia, nao fazia outra coisa”. CoMo Nos TORNAMOS LEITORES Agora, definitivamente, como nos tornams leitores? ‘Tudo o que dissemos até aqui nos deu muitos elementos Pa? responder a essa questio, Fm grande parte, uma questdo de meio social. Vis Como 0s interditos, os obstéculos, podem ser numer0s0s Pa'* ‘©* que provém de um meio pobre, mesmo que tena si? 1 art 8 Os ovens ~ —_ atabeizados poue0S LVS em casa, ideia de gue a eta para eles, a preferéncia que sedi is atnidades oa A is atvidades com. aapahadas em Settimento dees “pane pose any cada sobre a “utildade” dessa atvidade, ois ates finguagem nacrativa — todo que pode dissuadrlos de bs “Acrescente-se a i880 0 ine de ae se for um rapaz, os ami aceatzmatizam agule Ques deca can stds na ajar, sburguesa”,asociaa a trabalho exelae Mal orders svi oo sal ea ee ree Fran za unter de fibos de eater hoes ro pero por mts. No decorrer dos dimos tnt sos Merengas entre as categorias sociaisdiminuiram pa ong {Gm menos de 25 anos (nflizmente, ito & esukado, sive vitor da diminuigho do nimero de lores asidvosnascate fori superiores... Meso nos mos mas familiares Fem lio finclsive nos meiosedtoriaise ds biti, dr uivesidade onda pesquisa cei}, tosses que tio leem ou que limitam sua pritica de ctara a una Sea profissional restrita ou a um determinado género de ito. E Comum encontrarmos universities que lem apenas tes € ttabalhos de mestrado, bibliotecitis ques imam aera Contracapas dos livros erevists tna, ou profes literatura que folheiam apenas os manuais pedagios. Ts bem &comur observarmos no met de Pars, au €a prin ipl biblioteca da capital pessoas deorigem mesa que setregam 3 leitra com muito pret. sas diferenga enre pessoas de uma mesma cya ‘social podem ser atribuidas em parte a diferengas de tempera mento. Os médicos homeopatas distinguem, por exemplo, diferentes tipos de pessoas, diferentes peris, qe segundos les teriam uma relagdo diferente com a leitura. & muito vertido, Uma médica homeopata um dia me explicou qe 35 Pessoas que fazem uso do remédio Sépia sio as que tem maior ‘lado com a leitura. Vou reproduze suas palaveas: 9 © medo do tiveo “e —_—" «sii io ode rm 5902 um vo sey pd. er unde angustid (VOCES eto vengy npr, tse mais uma v= dea, Be oe oe avai Compe, lev lvoe paca eer sempre ign sobrando para ler. Em ho. rea w diz que a problematica de base de Sepa repeimento, Seu deejo€ conhecet. Em termes sine fateoroconhecimento€o lvro. A parti do momenrs en gue a peson sents esa necesidade de conhecer ty, banc finals ela ndo tem algo que represent nu 9 eu lao, no consegse dorm. AS Sépias 850 as maio. tes compradorasdelvos, est sempre as livearias, omo pretext de que ‘no podem fica sem liveos paca te io pessoas que compram vos que esto acima de suas posblidadesfinancrras. Sépia vai se endivdar ara comprar lizos, € mais que seu proprio alimento Spiaolhaa caps, le conteacapa, compra tudo”, Enquanto a exutava, sentia que ia me transformando cada vez mais em Sépia. (s psicanalistas também teriam algo a dizer sobre este assunto. Por exemplo, para retomar o jargao dos discipulos de Melanie Kein, somos, sem davida, mais suscetves ale tura quando estamos numa posigfo chamada "depressiva”, do que quando estamos na posigio chamada “paranoide” ‘Mas no vou mais brincar com essas pequenas clasificagdes, seria preciso fazer isso de mancira mais sri. Entretanto, a relaglo com aleitura para além da estr- tara psiquica ou do perfil homeopadtico de cada um de voces, em grande parte uma histéria de familia, como vocés bet © saber. Virias pesquisas confrmaram a importancia da fa rnlaridade precoce com os livros, de sua presengafisica ma cass, de sua manipulacio, para que a crianga se tornass ‘nas tarde, um ior. A importéncia, também, de ver os au ‘os Term ainda papel das rocas de experiéneiasrlacio- ma 1 0s jovens elt moiseat © medo do iv ont arcs nid sant ao ACCES ncn pce seenae ste tem das vezes mals chance desetonerar eo a AU. Tomarei o exemplo do escritor antilhano Patrick Cha, ‘cujos pais ndo liam quase nunca: “Minha aproximagio 20s liveos fi soliéia, nunca Jeramn nada para mim, nunca me iniciaram, Haviam me assustado com hist6rias, ninado com cantgas,consola cdo com cantos secrets; mas nagueles tempos os vos ‘fo eram coisa para criangas. Assim sendo,fiquei sé com ‘sss livros adormecidos, intes, mas que eecebiam os cuidados de Man Ninorte (sua mie) Fo sso que cha: ‘mou minha atencio: Man Ninotte se interesava por eles apesar de no terem nenhuma urilidade, Eu observava como utilizava os arames, 0s pregos, a caxas, as garta- fas ou 0s vaporizadores guardados¢, no entant, nunca vi fazer uso desses livros de que ela tanto cuidava, Era, isso que tentava compreender a0 manipuli-los sem pa ‘ar. Encantavacme com sua complexidade pert xas ‘andes profundas desconhecia.Atribuia-Ihesvieudesl- Fentes. Suspeitava que fossem poderosos” Encontrei coisas semelhantes durante as entrevistas que Tels, pos, até em ambientes muito conturhados, i fam las em que o gosto bastante avido pelos livros se transite ‘ma geragio & outra. Como é0 caso desse marinheio cua Galimard, 1997, pI “Eerie en pays domin, Pari, > ahaa una iva dE POCA de pe spect amin maa ma, Toe eso modesta, as COMPFAVA TIVTOS; NO era grant sca mo modes ger forma lia Hivron romance Uteraturas nes Soirées [uma revista feminina, bastanye c* tambien tmya receitas de cozinha, tried, fotonovel, uhusiee ido era garoto”. Ou como no. de Te Soc unde a ean sain mo eg Mane ha ito Quando er jon ae gua leitora, conhecia muito bem o francés e men’ Cen ermine ee Pc vimos,oexemplo dos pas € fundamental. Seja qual ig tk mao ogee eo a neh sito ai Sai eee Bee os bairros urbanos marginalizados, tormar-se leitor ¢ sian pela Mt J onl, Poser tanbin, ryan doles hd outros que dio uma ovat Pena dgidadeque se adquirecm set *sdbio" ce, Sn eu gn deans ies tnd sol out cathe foa-d-a baweyted ox bom ons om ‘so dueringas ua vance social E mesmo secnes pebeieyaiec fake: emccaecto aon Ebab ered ee fin co dade que we appr dessa nstrogto, dh Sans ta ee ewe pesos ‘Alun vs, so os pedpros pals que incentivm 0 Athair bier ov que os acompankiam, Ou elo me ton no se ptm a qu ees requentem esse espago rela: ‘rad com a eo, onde podem permanecer— principale ttarmetnas— dem corer peeigo,Eapago que tab o rte datas, ese modo, hé fata em que ves thos eonclaem seus etudos com exit, frequentam asi mete ibis toma eres, De tat pode se 2s praia rps qu, emboraanalabeton valonza™ Osaneimento ovo do que ter pats que fzra sm Pe ‘curso escolar castico e mantém uma relagao muito ambiv~ = COs ovens ea eur? es la, transmitindo-a, de fr com a escola 1 + de forma consciene on ee seus filhos. ue se muitos adoles. Aerescento a tos adolescents lem estimnla- vrei de sus pis, hd Outros que se tornas lon y apd oy econtando tsa aie “Sapi deho pre eabora Ss singin Re rode eexemplo e55ajovem turca que dizia, apds ter evo. eos ju spb manfestavam plosives Ave atone talveztenba sido iss0 que levou a mim ea minkss dings ler e seguir adiante”. ‘rambém nesse c380 08 escritores testemunharam essas eles essasescapadas solitirias.E alguns jovens entre sees que entrevstamos, como Daoud, que j cit inime- sarfines ea quer cedo novamente a pala ““Tenho dev irmiose emis, somos flhos dos mes mos pis mas no nos parecemos fsicamente nem temos ‘osmesmosgostos. Fles no leem, Minha irma talver Ela eum pouco, mas lé tudo o que as pessoas leem, nfo tem sua propria biblioteca. E 0s demais no leem absolues- mente nada. Ao contritio, consideram isso como um ato de traigdo. Eu no comego era como cles” E quando he perguntamos como explicava essa diferen- «3. responde com toda modéstia: “Isso faz parte das maravi- ‘has da vida: uns nascem Hitler, outros, Mandela” Desde os sete anos, Daoud ia biblioteca com seus co- ‘kgas nos dias de chuva, Deixo-o contar o resto: “Eu tive realmente vontade de ler quando as duas ‘levies quebraram. Vieme diante de uma stuago que ‘uea tinha acontecido, Sem televisio [. todos os meus ‘amigos tinham viajado de ferias. Vie com o que? Com ‘um lvro na mao! Viajei com esse livro, investiguel com Onedo do iro m co pesonagem na Inglaterra, sof os medos de Stephen ing: porem foram livros qu logo deixe de lado, me ito facos”. paeciam mul ans professors biblteirosaudaram mung um apaixonado por Faulkner, Kafka ¢ Joyce, Pees ee encore shdar csc inseam, cade eeeinere en een Sten feed d cht ne cic peer Sreaeueneannesameaan a eunapienotiionmean onions cote discus sootes eeycientty ce nuiedoret”ao vo, en's intncia fa a Sigunr seen eeneasoien hi totin eeaiaier ‘testi vc, on ats, os flboe Etambén proses ee eee Sanne tates tha teemmabdaee dene Kepecieanetesasinnpnasisn vaiton toner eaneneneen gear eom eieseentnaeds nous seem Pe baoina os Davespaden ees on puamas > coxvusinen deoeuteder tele weedeat souinsen aout soe nies nun eth dogs feces macs rancid, oop thonpoe 20 maps de peg Keto, cars tess dion rate, Bm ache ‘esse as Lemoeet-a ot 2 oe Pode eo cs, por explo, de pals que tm UO" bro domestica O quando uma cian apadinhads" quasars, por novi, como essa mulher gue Doe ‘atthe como volinia em uma bibitee: “Minha mae comegou a trabalhar em uma fabrica ‘gvando eu tia quatro anos. Havia uns gerentes Ue 144 Osjovense a limes —_— seman fia sto a0 i lhe que bre itn sve tas Fd cer eas cits pessoas... No fundo eu thes sou muito grata, se con aber goods ware ° sro tipo de edvcacio. Foi entio que comece alr et Sando dem um demo dele é cane Mas ae Rou Kinda 8 ode ages ean comb cos oe ona mei dn, fat conbeca agora Epos Enis eure ee poeceiaka ube tabaliés ee jal come tnar A criangts da egito no lam pi-ndoce tavana moda". Pode ser também que a militincia politica favoreya es- sesenconttos: “Meu pai lia muito. Ele foi exilado politico, ¢ durante seu exilio eve a chance de ficar em um acampamens to onde haviaintelectuais que o iniciaram na letura,e pen so que foia partir desse momento que comesou a sentir essa necesidade”, Trata-se, enfim, de uma questio de “espirito do lugar": umcontexto, um ambiente mais amplo que o da familia, que 0 do proprio meio social, pode incentivar a letura. Em uma pequena regido montanhosa, onde existe ha longa data uma ttadgio letrada, quase todos nossos interlocutores demons fram ter uma relagdo familiar com os livros, e ecorrer com aparente facilidade a leituras ecléticas, segundo suas necessi- ‘ades ou seu gosto do momento. Ao contririo, em outras ‘8s pouco familiarizadas com os livros, onde se pivile- f uma convivéncia esportiva e festiva, a leitura nio é ape- 1s menos frequente, mas ela parece set mais *tensa”, mais ‘marcada também pelo modelo escolar ou rligioso. ama NO*bairos urbanos marginalizados nos deparamos com seus geas#® Semelhante, Quando os pais nao incentivaram tna gle, foi a intervened de um professor, 0 apoio inspetora, de um animador em uma associagi0 co- 9 Md vr us munitaria, de um assistente social ou de um bibliotec4;, permitiu mudar o destino deles. Veremos isso com 10, que talhes amanha, quando falarei sobre o papel do medias de. leitura e de sua margem de acdo. Porque esta ma: ador de longe de ser desprezivel. rBe Mas gostaria de fazer uma ultima observacao; em familias em que os pais nunca proibiram a leitura, he as que leem debaixo dos lengdis, com uma lanterna te “rane contra o mundo inteiro. Hé uma dimensao de trans; ee na leitura. Se tantos leitores leem a noite, se ler é com pia a0 cia um gesto que surge na sombra, nao é apenas uma Guess - de culpa: assim se cria um espago de intimidade, um Se protegido dos olhares. Lé-se nas beiradas, nas iargen a vida, nos limites do mundo. Talvez nao se deva iluminar . talmente esse jardim. Deixemos 4 leitura, como ao amor, tum : parte de sombra. pum 'M esta Os jovens e a leitura

Você também pode gostar