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TRIBUNA DA ADVOCACIA PÚBLICA

Os criptoativos e a garantia de execuções scais


É viável uso de criptoativos como garantia em execução scal, com a consequente satisfação do crédito
tributário?

MELISSA GUIMARÃES CASTELLO

25/11/2019 17:15

Crédito: Pixabay

Como já mencionei em outro artigo, há tempos se discute acerca da adequada


classi cação jurídica das criptomoedas – ou criptoativos, para aqueles que
entendem que elas não são moedas. Não obstante, todos concordam que estes
intangíveis são dotados de valor econômico, são usualmente conversíveis para
moeda corrente nacional, e tem liquidez maior do que boa parte dos bens passíveis
de penhora. Por estes motivos, em tese os criptoativos poderiam ser usados para
garantir execuções scais.
Neste artigo, escrito especialmente para a coluna Tribuna da Advocacia Pública,
pretendo expor vantagens e di culdades que serão enfrentadas pelo advogado
público que pretende penhorar estes ativos. Vou abordar três aspectos: a (escassa)
jurisprudência sobre o tema; as formas de localização destes intangíveis; e as
vantagens de penhorar criptomoedas, no lugar de outros intangíveis, tais como
alguns títulos sem cotação em mercado ou marcas.

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Conforme pesquisa nas bases de dados de jurisprudência nacional, o único Tribunal


que já analisou a viabilidade de penhorar criptomoedas foi o Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, que decidiu três casos em que o credor pleiteou a penhora
destes ativos. Nenhum dos casos era execução scal.

No Agravo de Instrumento nº2054931-89.2018.8.26.0000, julgado em abril de


2018, a 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP negou o pedido de penhora, por
entender que o Poder Judiciário não deveria se imiscuir em operações com
criptoativos, na medida em que elas ocorrem à margem de um controle o cial. Pois
bem, muito mudou desde então: em 07 de maio de 2019, a Receita Federal do Brasil
publicou a Instrução Normativa nº 1.888/2019, que “institui e disciplina a
obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com
criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB)”. Logo, o
argumento de que as operações com criptomoedas ocorrem à margem de controle
o cial não mais se sustenta, na medida em que os operadores do mercado de
criptoativos tem a obrigação legal de declarar as operações à RFB, restando
superado este precedente.

Nos outros dois casos julgados pelo TJSP (AI nº 2202157-35.2017.8.26.0000 e AI


nº 2088088-53.2018.8.26.0000), o Tribunal decidiu que, em tese, não haveria óbice
à penhora de moedas virtuais, na medida em que estas são bens imateriais com
conteúdo patrimonial. Não obstante, em ambos os casos foi indeferida a pretensão
dos credores, pois eles não apresentaram sequer indícios de que os devedores
teriam investimentos em criptoativos. Ademais, no entender do Tribunal, não se
poderia admitir o envio indiscriminado de ofícios às exchanges, na busca de bens
penhoráveis.

Portanto, restou assentada a penhorabilidade das criptomoedas, mas se entendeu


que as medidas de pesquisa de bens, na forma pleiteada pelos credores, seriam
ine cazes, pois demandariam esforço muito grande do Poder Judiciário, para
resultados extremamente incertos. Nessa mesma linha, Marcelo Lauar Leite aponta
uma série de di culdades que levariam à inexequibilidade da constrição judicial aqui
debatida, a rmando que “as (pequenas) chances dos credores estão no âmbito das
exchanges nacionais”.

Diante destes precedentes, e já passando ao segundo aspecto a ser abordado neste


artigo, evidencia-se a relevância da já citada Instrução Normativa nº 1.888/2019,
através da qual a RFB impôs a obrigatoriedade de prestação de informações acerca
de operações realizadas a partir de agosto de 2019 com criptoativos. Para a IN,
todas as exchanges domiciliadas para ns tributários no Brasil e todos os
proprietários de criptoativos que realizaram operações sem o intermédio de uma
exchange brasileira devem prestar informações acerca das operações realizadas. Ou
seja, em meados de 2019 a Receita Federal do Brasil passou a receber informações
pontuais acerca de operações com criptoativos.

Portanto, o impeditivo apontado pelo TJSP nos precedentes citados acima, nos
quais a penhora foi recusada diante da sua provável ine cácia, não mais subsiste.
Hoje, basta um único ofício – à Receita Federal do Brasil – para que se tenha acesso
aos dados de eventuais operações com moedas virtuais por parte dos devedores
tributários. Sob a ótica da Fazenda Pública, com a devida autorização judicial a
pesquisa nessa nova base de dados pode e deve ser incorporada às buscas de bens
rotineiramente utilizadas pelos advogados públicos para identi car patrimônio dos
devedores.

Assim, superadas as di culdades técnicas que, em


um primeiro momento, levaram à inviabilidade da
penhora de criptoativos, passa-se ao terceiro
aspecto abordado no presente artigo: seria
vantajoso, para o credor, penhorar estes ativos?

Evidentemente, a resposta deve levar em consideração a existência – ou não – de


outros bens passíveis de penhora em nome do devedor. Conforme determina o art.
11 da Lei de Execuções Fiscais, a penhora deve recair, preferencialmente, sobre
dinheiro. Seguindo a ordem da LEF, as criptomoedas estariam em último lugar, no
inciso VIII do art. 11, que prevê a penhora sobre “direitos e ações”. A análise do art.
835 do Código de Processo Civil leva a conclusão semelhante, na medida em que
as moedas virtuais se enquadrariam como os “outros direitos” do inciso XIII.
Não obstante, na maioria dos casos a penhora de criptoativos será mais favorável à
Fazenda Pública do que a penhora de bens móveis, ou mesmo de alguns veículos.
Isso porque é da natureza das criptomoedas a certeza acerca de sua titularidade.
Como bem destacam Tapscott e Tapscott, a tecnologia por trás das moedas virtuais
(a blockchain) forma um “protocolo de con ança”, que assegura a consistência e
1
imutabilidade dos dados ali registrados . Por consequência, a pessoa registrada na
blockchain como proprietária dos criptoativos será a sua titular, sem que haja
margem para disputas, ou embargos de terceiros. Ademais, as criptomoedas mais
comercializadas são dotadas de elevada liquidez e cotação instantânea, sendo
desnecessários os morosos processos de avaliação, para ns de futura alienação.
Portanto, uma vez identi cados criptoativos em nome do devedor tributário, se
mostra recomendável a constrição judicial destes, para garantia da execução scal.

Renata Baião vai além, e analisa como se daria, na prática, esta penhora. A autora
sugere duas alternativas: a) a apreensão das criptomoedas; ou b) o bloqueio destas,
com conversão em moeda corrente nacional no momento da penhora. Para evitar os
problemas tecnológicos decorrentes da apreensão de um intangível, Renata sugere
que se adote o segundo procedimento, de conversão em moeda nacional, com o
consequente depósito judicial do valor penhorado. Segundo Alves e Silva, esta
sugestão encontra respaldo no art. 852, I, do CPC, que permite a alienação
antecipada dos bens penhorados, quando estes estiverem sujeitos a depreciação.
Assim, a conversão das criptomoedas em moeda corrente nacional, no momento da
penhora, encontra guarida no ordenamento jurídico.

Por todo o exposto, e diante da evolução normativa desde os precedentes do TJSP,


não parece haver óbice intransponível nem à localização dos criptoativos passíveis
de penhora, nem à perfectibilização desta. Logo, almejando garantir a efetiva
satisfação do crédito tributário, é recomendável que as Fazendas Públicas
incorporem às suas rotinas de pesquisas de bens a busca por criptomoedas.

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1 TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution – How the Technology

Behind Bitcoin is Changing Money, Business and the World. Nova Iorque: Penguin
(versão para Kindle), 2016. p. 3.

MELISSA GUIMARÃES CASTELLO – Mestre em Direito pela Universidade de Oxford, Vice-Presidente


Fundação Escola Superior de Direito Tributário, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul.

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