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ALEXANDREA AD AEGYPTUM. PROTOTIPO DE METROPOLE UNIVERSAL José das Candeias Sales’ «A cidade de Alexandre», «a luz do mundo antigo», «a feitoria do mundo», «o templo do mundo», «a cidade amada dos deuses», «a amante do belo», «a terra das artes», «a pérola do Mediterraneo», «a porta de Africa», «0 trono apostélico» ... os intimeros epitetos, mais ou menos metaféricos, usados para descrever as glorias da antiga cidade de Alexandria desfilam nos autores classicos e medievais como uma litania de titulos que tenta dar conta das miiltiplas facetas que a cidade conheceu e apresentou durante os séculos mais esplendorosos da sua existéncia. Fundada em Janeiro de 331 a. C. por Alexandre Magno, na zona da antiga povoagio egipcia de Rakotis, na embocadura ocidental do Nilo', Alexandria est, pelo seu nome e pela sua gléria como grande cidade do mundo antigo, indelevelmente vinculada a figura do seu inspirador e fundador®. Das intmeras cidades fundadas pelo grande conquistador mace- dénico um pouco por toda a parte do seu imenso império, a Alexandria do Egipto foi a nica que cresceu e prosperou e que subsiste no mesmo local de origem mantendo ainda a atmosfera do seu passado lendario, nao obstante * Universidade Aberta * Cf Michel Chauveau, «Rhakdtis et la fondation d’ Alexandrie» in Egypte, Afrique & Orient, n 24, Centre Vauclusien d'Egyptologie, Villeneuve-les-Avignon, décembre 2001, pp. 13-16. ? Recorde-se que, de 334 a 332 a. C., Alexandre Magno realizou uma série impressionante ‘Negro até ao vale do Nilo, que culminaria justamente com a fundagio de ‘ubtraiu ao jugo dos Aqueménidas grandes regides de outrora como a Misia, . a Frigia, a Pisidia, a Panfilia, a Fenicia, a Palesti © Egipto, bem como grandes cidades como Sardes, Efeso. Priene, Mileto, Mégara, Halicarnasso, Biblos, Sidon, Tiro, Gaza, Ménfis, etc. (Cf, José das Candeias Sales, «As campanhas de Alexandre Magno e a definigao de uma (nova) identidade politico-cultural no final do séc. 1 a. C.» in Discursos. Lingua, Cultura e Sociedade, II Série, n.° 1, RegiGes/ Identidade. Lisboa, Universidade Aberta, 1999, pp. 60. 76). a Lidia, a Céria, a Paflager 83 José das Candeias Sales as inevitdveis modificagdes que o tempo e as sucessivas dominagées poli- ticas e culturais lhe infligiram’. A fundagao de Alexandria é, de facto, historicamente atribufda a Alexandre. Segundo Arriano, foi o proprio Alexandre quem «fixou os limites da cidade, o lugar onde se devia construir a dgora, o perimetro dos muros eontimero de santudrios e de deuses que neles se venerariam, incluindo néo 56 08 gregos, como também o egipcio, dedicadoa [sis*. Por seuturno, o relato de Plutarco sobre a fundagao da cidade explicita que a localizagao exacta foi sugeridaa Alexandre «quando a noite, dormindo, teve uma visao maravilho- Sa» por um ancido de cabelos brancos (identificado como sendo Homero)‘ € que a marca¢ao do tragado da cidade (feita com farinha) foi acompanhada por um extraordindrio pressdgio: «subitamente, vém do rio [Nilo] e do lago [Mare6tis] intimeras aves, de toda a espécie e grandeza, que descem sobre o local, como nuvens, e ndo deixam nem rasto da farinha»*. Tal augtrio perturbou o préprio fundador, mas os adivinhos tranquilizaram-no com uma interpretacao favoravel: a nova cidade a implantar naquele local asseguraria «abundancia» € alimentaria «habitantes vindos de todos os paises do mundo»’, Também Arriano* e Quinto Ciircio’ fixaram estes prodigios do momento da fundagao de Alexandria, inscrevendo-a, assim, num destino excepcional de cidade predestinada"”. * Ha quem fale de 70 cidades fundadas por Alexandre com o nome de Alexandria. Hé quem, Porém, considere tal ntimero um exagero e prefira outras cifras inferiores: 57, 34 ou 17 (Cf. Francisco Espelosin, «Alejandria, la ciudad de las maravillas» in Ciudades del mundo antiguo, Madrid, Ediciones Clisica, 1997, p. 64; Pierre Lévéque, L'aventure grecque, Paris, Armand Colin, 1964, p. 346; André Bemand, Alexandrie des Ptolémées, Paris, CNRS, 1995, p. 32; André Bonnard, Civilizagdo grega Ill. de Euripides a Alexandria, Lisboa, Estudios Cor, 1972, p. 192; C. M. Bowra, Grécia Classica, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1965, p. 168; J. M. Cook, Os Gregos. Na Jonia ¢ no Oriente, Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 161; Henri van Effenterre, A Idade grega. 550 42704, C., Lisboa, Publicagdes Dom Quixote, 1979, p.271; Matthieu de Durand, Histéria abreviada da Grécia antiga, Lisboa, Editorial Noticias, 1993, p. 180. Vide também P. M. Fraser, Cities of Alexander the Great, Oxford, Oxford University Press, 1996). * Arriano, III, 5. *Plutarco, 26. No Pseudo-Calistenes (Romance de Alexandre), 0 anciio que apareceu a Alexandre era 0 préprio deus Amon e a visio teria ocorrido no santuério Nbico de Siuah, * Ihid., 26. ” Ibid., 26. * Artiano, IIL, 2, 1-2. *Q. Caircio, IV. 8, 6. "Entre 0s relatos antigos é notéria uma importante discordancia: enquanto Arrianoe Plutarco colocama fundagio de Alexandria antes da visita de Alexandre ao ordculo de Siuah. Diodoroe Ciircio colocam essa fundagio apés o regresso do conquistador do deserto (Cf. Peter Green, «Alexander's Alexandria» in Alexandria and alexandrinism, Malibu- California, The J. Paul Getty Museum, 1996, P. 8). Osinformes de Quinto Ciircio dizem-nos ainda que as muralhas da cidade tinham um perimetro de 80 estadios, isto é, c. de 14.800 m (Quinto Curcio LV, 8, 2) 84 Alexandrea ad Aegyptum. Proténipo de Metrépole Universal Ao pratico e experimentado olhar militar de Alexandre Magno nao teriam passado despercebidas as enormes possibilidades estratégicas ofere- cidas pelo lugar, mau grado o desafio geografico que tal empresa constituia (face a inéspita e perigosa costa e as deficientes caracteristicas da terra para aagricultura)''. Daf o seu directo envolvimento nas cerimG6nias de fundagio que os escritores antigos mencionam. Como diz André Bernand, «Si Alexandre, en fondant Alexandrie, défiait la géographie, il agissait au nom de I’histoire»'?. Objectivamente, para concretizar o antigo projecto de Filipe II, depois de se apoderar das cidades da costa siro-fenicia e de dominar, assim, 0 litoral leste do Mediterraneo, retirando ao Grande Rei dos Persas as suas principais bases de apoio maritimo, Alexandre precisava de fazer do Egipto, mais particularmente da cidade a fundar, uma das sedes do seu poder. O primeiro grande passo (0 dominio do litoral) estava dado e cumprido com sucesso. Faltava dar o passo seguinte: a edificagao de uma cidade-pélo do império, voltada para o Mediterraneo oriental, que servisse como centro militar maritimo para toda essa regido'’. O Egipto era o objectivo moral eestratégico de Alexandre", tal como 0 plano de construgao da cidade pode muito bem ser encarado como um produto das ligdes de Aristételes, seu antigo pre- ceptor", Seria, contudo, com o primeiro dos Lagidas, Ptolomeu I Séter (305- -285 a. C.), que a cidade cresceria, em dimensio e em populagio, e se implantaria como primeira cidade cosmopolita, internacional, atraindo Gregos e Persas, Macedénios e Judeus, Indianos e Africanos, Sirios e Anatélios, Mesopotémicos e Gauleses, a «desnorteante variedade de ragas eculturas» tipica do perfodo helenistico pés-Alexandre'*. O impulso econé- " Cf, André Bernand, Alexandrie la grande, Paris, Hachette, 1996, pp. 27-37. Did, p. 49. "Cf. P. Green, Ob. Cit., pp. 7-8, € Francois de Polignac, «L’ombre d’Alexandrie» in Alexandrie III siécle av. J.-C. Tous les savoirs du monde ou le réve d’universalité des Ptolémées, Paris, Editions Autrement, 1992, p. 40. "Cf. Ashraf Iskander Sadek, «Alexandrie, fille de Rakotis et fruit des relations egypto- grecques» in Le Monde Copte. Revue trimestrielle de la culture copte, n.* 27-28, Paris, S.1. P. E., 1997, p. 10. '$Q livro VII deA Politica de Arist6teles apresenta, de facto, consideragdes sobre a instalagio de uma cidade, a repartigao da sua populagio («estado ideal») € a construgio de edificios que podem ter plausivelmente sido por ele instigados no jovem aluno. Aristételes seria, nesta acep¢io, 0 verdadeiro urbanista e arquitecto de Alexandria e Alexandre Magno o simples condutor dos trabalhos (Cf. A. Bernand, Alexandrie des Piolémées, pp. 8.9 € 13). Cf. M.H. Rocha Pereira, Estudos de Historia da Cultura Classica. I Volume. Cultura Grega, 7. ed., Lisboa, Fundagio Calouste Gulbenkian, 1993, p. 522. 85 José das Candeias Sales mico que a posse e explorago de dois portos acarretou — o «Grande Porto», 0 porto oriental, e o «Porto Eunostos», o porto ocidental — possibilitou que Alexandria florescesse, redefinindo as iniciais motivacGes estratégicas de Alexandre. Em torno das competéncias econémicas de Alexandria, deu-se a deslocagiio dos eixos comerciais do Mediterraneo". Capital dos Ptolomeus e do Egipto Greco-Romano, cidade de mili- tares, funciondrios, negociantes, intelectuais e artistas, Alexandria viria a tornar-se a capital econémica, industrial e cultural do mundo helenistico civilizado, verdadeiro empério do mundo aonde aflufa toda a espécie de bens e mercadorias, substituindo Atenas como centro de irradiagao do helenismo. Como emblema do helenismo, Alexandria materializou o encontro entre a cultura grega ea cultura oriental-egipcia'*. Com o passar dos séculos, 0 lendario farol de Alexandria — uma das sete maravilhas do Mundo, construida, em 280 a. C., por Séstrato de Cnido, durante o reinado de Ptolomeu II Filadelfo (285-246 a. C.)'? — tornou-se simbolo da luz cultural emanada da cidade”. Capital politica do Egipto desde o fim do século tv a. C. até ao sé- culo vil d. C., isto é, durante cerca de mil anos, Alexandria manteria a sua importancia comercial e cultural até 4 Idade Média’'. No imagindrio de cidade fixado pela historicidade e pela lenda, a partir de um caleidoscépio de imagens e nogées progressivamente reelaboradas, Alexandria ocuparé um lugar impar como a mais surpreendente, fascinante e importante cidade de toda a Antiguidade, nao obstante os fortes argumentos e atributos apre- sentados no mesmo sentido por Atenas, Roma e Bizancio-Constantinopla. O facto de Ptolomeu I ter interceptado-roubado 0 corpo embalsamado de Alexandre e de, depois, Ptolomeu II 0 ter sepultado em Alexandria, constituiu, logo no final do século tv a. C., uma das principais fontes de atraccdo da cidade, despertando a curiosidade de ilustres viajantes-visitantes””. ‘Claude Mossé, Annie Schnapp-Gourbeillon, Sintese de historia grega, Porto, Edigoes Asa. 1994, p. 447. 'S Sobre esta aproximagio cultural entre oriente e ocidente ocorrida em Alexandria, Ashraf Sadek € peremptorio: «C'est aussi Alexandrie qui, en dépit des tentations du syncrétisme et de Mhétérodoxie, parvint & préserver la qualité de cette union des cultures orientale et occidentale sans mélange ni confusion, dans le respect du génie de chacune. Alexandrie est (...) le seul exemple de ce type de civilisation» (A. I. Sadek, Ob. Cit., p. 17). " O farol seria destruido, no século xt, por uma erupgao vul * No Corio, o farol é um signo de procura da verdade e de bengio divina (baraka). *O declinio de Alexandria comegaria, a partir de 646, com a conquista drabe, mas s6 seria efectivo com 0 estabelecimento do Cairo como capital e centro cultural, em 968. * Como diz P. Green, «in death he ceased to be a tourist, and became a tourist attraction» (P. Green, Ob. Cit.,p. 17).O projecto inicial de Perdicas era que o corpo de Alexandre fosse inumado Anica, 86 Alexandrea ad Aegyptum. Protétipo de Metrépole Universal A fama do grande conquistador granjeava poder e prestigio para os Ptolomeus e uma particular magia e aura para Alexandria’. Em con- sequéncia, a antiga Alexandria foi celebrada por escritores gregos, romanos e drabes da Antiguidade e da Idade Média’. A ideia de riqueza da cidade e do proprio pais nao s6 marcou os espiritos da época e dos vindouros como foi concretizada em intimeras produgées artisticas. Os mosaicos romanos apostam na representacao de paisagens nildticas (ex.: grande mosaico de Palestrina) e de cenas alegéricas como simbolos da fecundidade egipcia e da sua capital ou mesmo em figuras que personificam a prépria cidade de Alexandria (ex.: mosaico de Thmuis, em que uma mulher surge coroada com a proa de um navio com mastro e verga)**. na necrépole real macedénica de Aigai. Ptolomeu, ainda sdtrapa do Egipto, interceptou na Siria 0 cortejo fiinebre safdo de Babil6nia e transportou 0 corpo de Alexandre para Ménfis onde estaria inumado cerca de 40 anos. Seria o faraé Ptolomeu Il Filadelfo (285-246 a. C.) a trasladar 0 corpo de Alexandre para o cemitério de Sema, situado na intersecgdo das duas principais ruas de Alexandria ‘onde ainda se encontraria no tempo dos Romanos. Depois perdeu-se 0 traco da sua existéncia (Cf. Estrabiio, 17. 1,8). O tdmulo de Alexandre foi local obrigatério de visita em Alexandria. Jilio César, ‘Augusto, Caracala, Caligula e Septimio Severo contam-se, por exemplo, entre os seus mais distintos visitantes. Em Roma, a partir de Augusto, Alexandre era considerado por muitos como o protétipo do soberano cujo Império se confundia com 0 mundo civilizado (Cf. Giinther Grimm, «Le tombeau @’Alexandre le Grand» in La gloire d’Alexandrie, Catalogue genérale de l'exposition «La gloire 4d’ Alexandrie», Paris, Paris-Musées, 1998, pp. 92, 93), Sobre as duas formas normalmente utilizadas pelos estudiosos para se referirem ao timulo de Alexandre (t owpc, soma, «corpo» ¢ tO oT|HO., ‘Sema, «corpo morto»)— «pequena diferenca na forma, grande no significado» — vide Zeinab Tawfik, «Alexander's grave between the two idioms of onpat Ko Gwe in Proceedings of the 20 International Congress of Papyrotogists, Copenhagen, Museum Tusculanum Press, 1994, pp. 598. 599. » «Alexandre vivant avait fondé une ville; Alexandre mort donnait naissance au réve de la métropole universelle» (Frangois de Polignac, Ob. Cit., p. 48). ™ Sobre as descrigdes medievais de autores érabes como Ibn Jubayr, Al-Mugaddasi, Al- Mas‘édi, Al-Idrisi, Ibrahim Wasif Shah, Ibn Hawal, Abal-Fida e Ibn Battata, vide Christian Décobert, «La vision d’Alexandrie chez les Arabes» in La gloire d'Alexandrie, pp. 304-306. » Vide figs. destes mosaicos em A. Bernand, Ob. Cit., pp. 11, 91 e 93. Alguns autores tém, porém, interpretado estes mosaicos como representagdes da rainha Berenice Il, esposa de Prolomeu III Evérgeta Il (Cf. Ludwig Koenen, «The Ptolemaic king as a religious figure» in AAVV, Images and ideologies. Self-definition in the hellenistic world, Berkeley/ Los Angeles/ London, University of California, 1993, entre paginas 86 ¢ 86, Figs. 2 a) e b). 87 José das Candeias Sales Terminologia e histéria politico-social Os ecos da grandeza da mitica urbe helenfstica do Egipto devem também muito as importantes instituigdes culturais que ai estavam sediadas € que moveram e inspiraram, sob patrocinio e expensas reais, pléiades de poetas, filésofos, cientistas e investigadores, designadamente, a partir de 295 a. C., em torno do Museu” e da Biblioteca”. No mundo competitivo dos reinos helenisticos, os museus e as biblio- tecas eram simbolos de prestigio e de poder para os seus fundadores**. A fundagao do Museu inscreveu-se numa politica que ultrapassava os limites estritos de Alexandria”. A Biblioteca de Alexandria, sobretudo no perfodo dureo do seu funcionamento, comportou-se como um «lieu utopique, od tout savoir repose sur ce qui fut un jour écrit, lieu de mémoire totale et de visibilité absolue, observatoire intellectuel qui supplante les vertus épistémologiques du regard empirique»™. * O Museu, fundado por Ptolomeu I Séter, cujo nome significa «templo das Musas», est estreitamente associado ao desenvolvimento da ciéncia no perfodo ptolomaico. Verdadeiro centro de investigagao e primeira instituig’o académica financiada pelo Estado, foi dirigido inicialmente, entre outros, por dois discfpulos de Aristételes, imbuidos da ambig&o aristotélica do saber universal: Demétriode Falero.e Estratao. O primeirodelesé mesmo considerado o principal instigador dacriagdo do Museu ¢ um experiente e influente «filésofo no poder» (Cf, José Ribeiro Ferreira, Civilizagaes Cldssicas I. Grécia, Lisboa, Universidade Aberta, 1996, p. 225; Claude Mosse, «Démétrios de Phalére: un philosophe au pouvoir» in Alexandrie III siécle av. J.-C., pp. 83-92; A, Bemnand, Alexandrie la Grande, pp. 112-118; Mostafa El-Abbadi, «La bibliothéque d’ Alexandre» in La Gloire d’Alexandrie, p. 112). * A Biblioteca de Alexandria, também criada por Ptolomeu I Séter, com 0 concurso de Demétrio de Falero, foi, sem dtivida, mesmo com a rivalidade da de Pérgamo, a mais famosa de toda a Antiguidade: «C'est grice a (sa) bibliothéque, principalement, qu’ Alexandrie a connu une vie imellectuelle si florissante et ce de maniére durable, parce qu’elle se fondait sur l'étude et 1a compréhension profonde des valeurs du passé jugées dignes d étre préservéesm (Mostafa El-Abbadi, Ob. Cit..p. 116). Centro depositério do saber antigo e produtor dacultura helenistica, onde se recolheu a maior colecgao de livros até entao (400.000 volumina ou rolos de papiro, segundo Calimaco de Cirene), contou entre os seus bibliotecdrios homens ilustres, de auténtico espirito enciclopédico, como Zenédoto de Efeso, Apolénio de Rodes, Eratéstenes de Cirene, Aristéfanes de Bizancio ¢ Aristarco de Samotricia (Cf. J. R. Ferreira, Ob. Cit, p. 224; A. Bernand, Ob. Cit. pp. 118-121; Jean Lallot, «Zénodote ou l'art d’accommoder Homére» in Alexandrie III" siécle av. J.-C. , pp. 100-113; Christian Jacob, «Un athlate du savoir: Eratosthéne» in Alexandrie IIF siécle av. J.-C.. p. 127). f. Dorothy J. Thompson, «Cultura escrita y poder en el Egipto ptolemaico» in Cultura escrita y poder en el mundo antiguo, Barcelona, Editorial Gedisa, 1999, p. 111; Vide também J. H. Cardinal Newman, «L'école d’ Alexandrie, precurseur de l’université moderne» in Le monde copte, n* 27-28, juin 1997, pp. 129-132 * CEA. Bernand, Ob. Cit., p. 114. ” Christian Jacob, «Un athléte du savoir: Eratosthéne» in Alexandrie IIF siécle av, J.-C. p. 127. 88 Alexandrea ad Aegyptum. Protétipo de Metrépole Universal Entre os varios contributos fornecidos 4 cultura ocidental tal como hoje a entendemos, Alexandria fez jus ao refinamento e difusao cultural que marcou o perfodo helenistico e assistiu, a partir do século III a. C., as primeiras formulagées cientfficas da teoria heliocéntrica (Aristarco de Samos), ao desenvolvimento da medicina (Praxd4goras de Cés, Zenao, Mantias, Filino de Cés, Sarapiao de Alexandria e Glaucias), 4 fundagao da anatomia (Heréfilo da Calcedénia) e da fisiologia (Erasfstrato de Cés), ao estabelecimento das bases da matematica e da geometria (Euclides de Alexandria, Apolénio de Perga, Estrataéo de Lampsaco), da fisica e da mecdnica (Arquimedes de Siracusa, Héron de Alexandria, Ctésibios e Fflon de Bizancio), da geografia e da cartografia (Eratostenes de Cirene), da astronomia (Aristarco de Samos, Eratéstenes de Cirene, Conon de Samos, Dositheos, Hipsicles de Alexandria e Hiparco de Niceia) e aos primeiros passos da historia da literatura, da critica textual, da filologia, da gramatica e da lexicografia (Zenddoto de Efeso, Calimaco de Cirene, Filitas de Cés, Eratéstenes de Cirene, Arist6fanes de Bizancio, Aristarco de Samotracia, Tedcrito, Herondas e Dionjsio Tracio). A €poca de florescimento cultural que Alexandria viveu sob a dinastia lagida marcaria para sempre a feigdo intelectual da cidade. A posteridade veneraria de diversas formas 0 brilhante desenvolvimento das ciéncias dessa época e 0 erudito e grandioso estatuto dos seus cientistas. Como metrépole e capital do saber, Alexandria foi um centro de atracgio e de irradiagao de sdbios e letrados"'. Toda e qualquer tentativa de reconstitui imagindria da antiga Alexandria, além da refer€ncia obrigatéria ao centro cultural fmpar que a cidade sempre foi, tem que considerar um primeiro indicio das suas parti- culares e excepcionais condigées e privilégios que é 0 seu proprio nome Alexdndreia pros Aigyptéi, isto é, «Alexandria junto do Egipto». Os Ptolomeus referiam-se aAlexandriacomoestando nao «no Egipto», mas «junto do Egipto». No perfodo romano, as nomenclaturas Alexandrea ad Aegyptum ou Alexandrea apud Aegyptum ou Alexandria in Aegypto ou Alexandrea quae est in Aegypto consubstanciavam a mesma realidade e 0 préprio titulo do prefeito romano do Egipto era sintomatico desta dicotomia: praefectus Alexandreae et Aegypti, «prefeito de Alexandria e do Egipto»*”. " Cf, Luciano Canfora, «Le monde en rouleaux» in Alexandrie II siécle av: J-C., pp. 50¢ 62. * Christine Favard-Meeks encara a expressiio Alexandrea ad Aegyptum no ambito da prépria mundividéncia egipcia e conclui: «Alexandrie ad Aegyptum serait donc aussi une expression qui refleterait attitude que la civilisation égyptienne aurait en |'égard de son propre littoral» (Christine Favard-Meeks, «Le Delta égyptien et la mer jusqu’a la fondation d’Alexandrie» in Studien zur Altdptischen Kultur, Hamburgo, Helmut Buske Verlag, 1989, p. 63). 89 José das Candeias Sales A terminologia de referéncia testemunha, portanto, a situagdo excep- cional de Alexandria. A cidade era, simultaneamente, o local de residéncia real” ¢ a capital do reino ptolomaico — e, dessa forma, parte integrante do territério do Egipto™* —e um mundo a parte, separado e distinto, do pais real (chéra). Geograficamente, o lago Marestis separava naturalmente a capital do resto do Egipto tradicional e sé com o estabelecimento de vias de comunicagao artificiais (canais) se fez a sua ligagdo ao Nilo (a multissecular via de comunica¢ao do Egipto dos faraés antigos) e através deste com o resto do pais provincial e com Ménfis, a antiga capital faraénica®’. Este afastamento entre a capital ptolomaica, centro nevralgico do pais, ea chéra suplantava, porém, o factor geografico-natural. Na verdade, duas outras importantes caracteristicas segregavam a cidade: por um lado, era a Unica fundagao urbana de significado do reino ptolomaico* e, por outro, apresentava uma populacao cosmopolita em que os Egipcios nao eram, de todo, o grupo social dominante”’. No confronto politico-social com os greco- -macedénicos, os Egipcios safam claramente prejudicados. Na expressio 0 palicio real dos Ptolomeus situava-se no cabo Lochias. Hi iniimeras alusdes a este palicio nos autores clissicos, mas nunca se encontraram provas arqueolégicas da sua localizagio (Cf.A. Bemand, Alexandrie des Ptolémées, pp. 10,71), “E preciso, desde logo, nao descurar que 0 «Egipto» dos Lagidas é um conceito que tem um sentido proprio, na medida em que excede os territérios que normalmente esto associados ao termo geografico nas épocas mais antigas ou na actualidade. O territério dos Lagidas é, portanto, mais extenso do que as dreas localizadas no continente africano. De facto, produto directo das relagdes politico-militares-diplométicas, o espago territorial légida foi uma drea em permanente mutacdo, de que a Cirenaica e Chipre, além do Egipto propriamente dito, faziam parte integrante. Nao obstante, para determinadas épocas, sobretudo os reinados do século IIa, C., alguns enclaves no Mediterraneo centro-oriental ¢ nas costas da Asia Menor (Cilicia, Lfcia, Céria, etc.) e no corredor siro-palestinense (Tiro, Palestina, Gaza, etc.) stio também abrangidos pela designagio de «Egipto» ptolomaico. Cf. F. J. Gémez Espelosin, Ob. Cit, pp. 65, 66. “A politica urbana ptolomaica foi muito diferente da das pdleis gregas que se esforcavam para criar col6nias a partir da metr6pole, da actividade de Alexandre Magno ou, por exemplo, da dos Seléucidas, seus vizinhos, que apostaram na proliferago de centros urbanos. Durante os cerca de trés séculos de dominagio do territorio egipcio, a tinica cidade fundada pelos Ptolomeus (criagao de Ptolomeu I Séter) foi Ptolemais, no Alto Egipto. Néucratis, antiga colénia milésia, era uma heranga do passado helénico; Alexandria era uma heranca de Alexandre e apenas Ptolemais era uma criagio lagida (Cf. André Bernand, Lecon de civilisation, Paris, Fayard, 1994, p. 234, 235). ” Esta ideia nao deve, contudo, toldar-nos a percepgdo e fazer esquecer que a intelligentsia egipcia, usandoa lingua grega, desempenhou um papel preponderante no desenvolvimento intelectual da cidade (Cf. Mounir Shoucri, «Alexandrie hier et aujourd'hui» in Le Monde Copte. n.* 27-28, p. 63; Dorothy J. Thompson, «Literacy and the administration in early ptolemaic Egypt» in Life in a multicultural society: Egypt from Cambyses to Constantine and beyond, Chicago, The Oriental Institute of the University of Chicago, 1992, pp. 324; Willy Peremans, «Le bilinguisme dans les relations gréco-égyptiennes sous les Lagides» in Egypt and the Hellenistic World. Proceedings of the International Colloquium. Leuven. 24-26 May 1982, Lovanii, 1983, pp. 255-258; Id., «Sur le bilinguisme dans I'Egypte des Lagides» in Studia Paulo Naster Oblata. Il. Orientalia Antiqua, 90 Alexandrea ad Aegyptum. Protétipo de Metrépole Universal de Claude Vial, «les deux populations étaient dans le méme pays mais ne vivaient pas exactement dans le méme espace». A op¢ao voluntaria dos Lagidas de nao generalizar o sistema da cidade vedou a helenizagao da chéra®. Isto significa que a feic¢Zo urbana e cosmopolita da cidade-capital favoreceu, sob patrocinio da administragao central, sobretudo, os greco- -macedénicos. O dualismo étnico autéctones-ocupantes estrangeiros mani- festava-se na lingua, na cultura e na consciéncia de cada grupo social". A etno-classe indigena, a maioria demogréfica do pais, estavam reservados os subtirbios da cidade e um usufruto mitigado dos direitos de cidadani: A periferia urbana correspondia, portanto, a periferia politico-social-admi- nistrativa. Em meados do século Il a. C., 0 historiador grego Polibio (200- -118 a. C.) verificou in loco esta situagao quando teve a oportunidade de visitar Alexandria’, Estrabao relata-nos os sentimentos de Polibio da seguinte forma: «Também Poltbio, que visitou a cidade, expressa 0 seu desgosto pelo estado emqueaencontrou no seu tempo. Trés tipos de habitantes, diz ele, viviam na cidade: os Egipcios, ou seja, os nativos do pais, inteligentes e submissos as leis; os mercendrios, grosseiros, numerosos e indisciplinados que a nulidade dos principes ensinara mais a comandar que a obedecer (...) e 0 terceiro tipo, os Alexandrinos, que (...) no eram faiceis de governar, sendo, no entanto, melhores que aqueles Leuven, Uitgeverig Peeters, 1982, pp. 143-144; Philippe Derchain, «Grecs et égyptiens en Egypte & Tépoque heliénistique. Essai sur les raprochements culturels» in Bulletin de I'Association angevine et nantaise d’ Egyptologie Isis, n.° 5, Angers, 1998, pp. 7-17. . Claude Vial, Les Grecs de la paix d’Apamée d la bataille d’Actium, 188-31, Paris, Editions du Seuil, 1995, p. 24. + Garantidos 0 controlo estreito do pais ¢ a recep¢io dos impostos através do sistema das tradicionais divisdes administrativas, nfo era necessério transformar em metr6poles as cidades dos nomoi, nem criar novas cidades gregas para estruturar 0 espaco e organizar a sua populago, nem tampouco atrair populagées gregas para esses lugares (Cf. Jean Ducat, «Grecs et égyptiens dans T’Egypte dans TBeypte lagide: hellénisation et résistance A ’Hellénisme> in Entre Egypte et Gréce. ‘Actes du colloque du 6-9 Octobre 1994, Paris, Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 1995, pp. 72,73). © Cf, Barbara Anagnostou-Canas, «Rapports de dependance coloniale dans I'Egypte Ptolémaique 1. L’appareil militaire» in Bulletino del'Istituto di Diritto Romano Vitorio Scialoja (BIDR), Vol. XXXI-XXXII, 1989-90, pp. 166, 167. 41 Polibio visitou a cidade durante o reinado de Ptolomeu VIII Evérgeta I, cujo segundo reinado se estendeu de 145 a 116 a. C. E verosimil que Polfbio tenha estado na cidade em 140 a. C., acompanhando a embaixada de Cipido Emiliano, seu amigo. Nada, porém, permite confirmar com ‘certeza estes dados (Cf. Strabon, Voyage en Egypte Un regard romain. Préface de Jean Yoyotte; trad. de Pascal Charvet; commentaires de J. Yoyotte et P. Charvet, Paris, Nil éditions, 1997, p. 96, nota 144). 91 José das Candeias Sales {os mercenarios], pois, embora constituidos por uma populagéo mesclada, eram Gregos de origem e como eles ndo haviam esquecido os costumes comuns aos Gregos.»® Com 0 passar dos anos, a coabitaciio e coexisténcia social, mais ou menos forgada, das diferentes etnias conduziu a comportamentos ora unila- terais ora bilaterais de aceitacao activa e passiva da dominagio estrangeira®’. Aglomerado populacional sui generis, com o seu melting pot of all nations incessantemente buligoso e frenético, com uma permanente auréola de esplendor e gloria, Alexandria atraiu povos de todos os lados, mas particularmente Gregos da Hélade, com os olhos postos na carreira adminis- trativa dos Ptolomeus* e nas excelentes condigdes comerciais que os seus movimentados portos ofereciam*. Como Gémez Espelosin, podemos con- cluir que «Alejandria era sin duda, como el resto de Egipto, la tierra de las oportunidades a Ja que afluyeron griegos desde todas partes de la Hélade»*, As revoltas dos Alexandrinos Face as fortes clivagens politico-sociais da capital tornam-se compre- ensiveis as frequentes revoltas populares que marcaram a historia da cidade. Estes tumultos constitufam, na expresso de Claire Préaux, uma «revo- lution-féte», servindo de vélvula de escape para as tens6es e ressentimentos acumulados. *Estrabio, XVIL, 1, 12. A tradugio é nossa, a partir de Strabon, Voyage en Egypte Un regard romain, pp. 97 € 99. Para o quadro social de Alexandria ficar completo, deve-se acrescentar A enumeragio de Polfbio-Estrabiio os habitantes do bairro Delta, isto é, os Judeus (Cf. A. Bernand, Alexandrie des Ptolémées, p. 43). ® Barbara Anagnostou-Canas analisa 0 caso concreto das aproximagdes sociais no meio militar (Cf. B. Anagnostou-Canas, Ob. Cit., pp. 213, 221-223), “Como defende A. Bernand, «Dans le domaine de la bureaucratie, on peut dire que tout part d’Alexandrie et y aboutit» (A. Bernand, Ob. Cit., p. 74). * Como deixam perceber virios autores — ex.: Claude Orrieux, Les Papyrus de Zenon. Lihorizon d'un grec en Egypte au HIF siecle avant J.C., Paris, Macula, 1983 —, as excepcionais Possibilidades de enriquecimento na vida comercial ou de estabilidade socio-econénica pela entrada na hierarquia burocritica do Estado ligida estavam entre os principais factores de atracgo da cidade de Alexandria sobre os estrangeiros, particularmente sobre os Gregos e 0s Macedénicos. Doyen e Preys escrevem mesmo: «l"immigrant grec, venu en Egypte dans le but de s’enrichir ou de faire carrigre, trouvait Ia, en sa faveur, une politique pro-helléne telle que l’ont développée les premiers Lagides» (Florence Doyen, Rene Preys, «La présence grecque en Egypte ptolémaique: les traces d'une rencontre» in L'atelier de orfevre. Mélanges offerts a Ph., Leuven, Peeters, 1992, pp. 63-85), “FG. Espelosin, Ob, Cit., p. 68. 92 Alexandrea ad Aegxptum. Protétipo de Metrépole Universal As multiddes imiscufam-se directa e abertamente nas querelas palacianas, tomando partido pelos seus candidatos preferidos. Tal aconte- ceu, por exemplo, apés a morte de Ptolomeu IV Filopator, cerca de 205 a. C., quando a populagao de Alexandria respondeu violentamente as extrava- gancias pessoais do general Tlepolemo”, seu anterior favorito, e o forcou a retirar-se da vida publica. O mesmo sucedera j4 com Sosfbios e Agatécles, os ministros de Ptolomeu IV que os Alexandrinos rejeitaram e puniram**. Durante o reinado de Ptolomeu VI Filometor, na primeira metade do século II a. C., Dionisio Petosiris, um oficial do exército e alto personagem da corte, amotinou a cidade de Alexandria contra o rei, arregimentando 4000 revoltosos e estendendo a insurrei¢’o ao Faium, a Tebaida e a Pandpolis®. Ficaram também célebres, em meados do mesmo século, as lutas em Alexandria entre os partidarios de Ptolomeu VI Filometor e de seu irmao, Ptolomeu VIII Evérgeta II’. Este ultimo, em 127-126 a. C., depois de recuperar 0 poder e regressar 4 capital, suprimiu todas as associagdes intelectuais (incluindo a Biblioteca e o Museu de Alexandria) e desportivas gregas como forma de represdlia pelo apoio e colaboragao dos Alexandrinos ao seu irmao e a sua irma (Cleépatra II)*!. Muitos Alexandrinos foram, nesta ocasiao, entregues a fiiria dos soldados e os massacres sucederam-se. Na viragem do século II parao século Ia. C., a sucessdo de Ptolomeu VIII, isto é, entre Ptolomeu IX Séter II e Ptolomeu X Alexandre I, foi também marcada pela empenhada participacao politica dos Alexandrinos, favoravel a Ptolomeu IX, o primogénito e governador de Chipre. A morte de Ptolomeu IX, 0 tnico herdeiro legitimo do sexo masculino pertencente 4 Casa Real légida era Ptolomeu XI Alexandre II, filho de Ptolomeu X Alexandre I e de uma mulher desconhecida, sobrinho de Ptolomeu IX Séter Ile protegido do ditador romano Sila. A rainha Cleépatra Berenice III (esposa de Ptolomeu X Alexandre I, filha de Ptolomeu IX Soter II e de Cledpatra IV), habituada ao poder por mais de 20 anos, nao agradou a ideia de oferecer de mio beijada 0 trono ao seu primo e enteado. Foi estabelecido casamento entre ambos, mas este s6 duraria trés semanas, tendo a esposa-rainha sido assassinada pelo marido-primo. A ira dos * Prosopographia Prolemaica 1. 50. * CE. Polibio, XV. 31, 33, ” Cf. Diodoro, Biblioteca Histérica, XXX1, 17. ; © Cf. Dieter Kessler, «Flistoire politique des lagides et domination romaine sur l'Egypte» in L’Egypre. Sur les traces de la civilisation pharaonique, Col6nia, Kénemann, s.d., pp. 290-295. 510 honordvel director da Biblioteca de entio, por exemplo, Aristarco de Samotrécia, foi substituido por um militar sem cultura (Cf. Violaine Vanoyeke, Les Ptolémées, derniers pharaons d'Egypte. D’Alexandre & Cléopdire. Paris, Editions Tallandier, 1998, p. 265). 93 José das Candeias Sales Alexandrinos, muito ligados 4 rainha, voltou-se, entéo, imediatamente, contra o jovem Ptolomeu que foi linchado pela multiddo sublevada. Estava- -se em 80a. C. E também conhecida a extrema hostilidade dos Alexandrinos contra Ptolomeu XII Auleta, o pai de Cleépatra VII, devido ao seu total e dispendioso comprometimento com os Romanos para se manter no trono como socius et amicus populi romani, «rei aliado e amigo do povo romano», e, assim, conseguir a autonomia do seu territério. Esta excessiva dependén- cia em relagao a Roma foi conseguida a custo do aumento de impostos, da anexagao de Chipre (lex Clodia de Cypro) a provincia romana da Cilfcia e a condenagao do irmao de Ptolomeu XII, que reinava em Chipre e que, em consequéncia do rumo dos acontecimentos, se suicidaria. Exasperado, 0 povo de Alexandria forgou o rei ao exilio em Roma, durante quatro anos (58-55 a. C.), onde se colocaria sob a proteccdo do poderoso Pompeu. Apés 0 regresso ao Egipto, em 55 a. C., Ptolomeu XII aprisionaria e depois assassinaria a filha Berenice IV que, entretanto, durante o seu exilio, assumira 0 poder com Arquelau da Capadécia (também eliminado com o regresso de Ptolomeu XII), o que acabou por reacender os édios populares. O pai de Cleépatra VII ainda se manteria no poder, até 51 a. C., mas s6 pelo constante apoio das Gabiniani, as trés legides que Aulo Gabinio, 0 governador da Siria, cedeu a troco de novas remessas financeiras do rei do Egipto (10.000 talentos). Servem estes episédios respigados da histéria politica dos Ptolomeus para ilustrar a desordem da vida publica e a frequéncia e o alcance das revoltas e rebelides populares em Alexandria. De simples demonstrag6es colectivas de desagrado e forga chegaram a atingir directamente a pessoa do rei (morte; exilio), sem, contudo, arrasarem irremediavelmente a instituigao monérquica. Além da sua intervengo na politica interna, os Alexandrinos manifé tavam-se radicalmente contra determinadas ingeréncias exteriores decidi das pela Coroa que pudessem pr em perigo a estabilidade das instituigdes. Por tudo isto, as revoltas dos Alexandrinos sao um sintoma dos (novos) comportamentos sociais que marcaram a Epoca Helenistica®. Alexandria como residéncia do rei e da corte e sede da administrago central era 0 alvo favorito e imediato de todas as revolugdes™. J. Gémez Espelosin, «Las revueltas de Alejandria: Pautas de comportamiento de una ‘masa urbana en época helenistica» in Estudios Humanisticos 8, 1986, pp. 49-75. Sobre as diversas categorias sociais agrupadas sob a designagio «alexandrinos», vide A. Bernand, Ob. Cit, p. 41. Cf. Ibid. p. 75. 94 Alexandrea ad Aegyptum. Protétipo de Metrépole Universal Oespfrito «dit de governar» dos Alexandrinos contagiou os pré- prios Egipcios e as intimeras rebelides nacionalistas (domestica seditio) que deflagraram no Egipto, a partir de 207-205 a. C., testemunham bem a tensdo socio-politica latente na sociedade ptolomaica. Apés a sua participacao na batalha de Réfia (217 a. C.), que terminou com a Quarta Guerra da Siria, entre os Ptolomeus e os Seléucidas, os indigenas tomaram consciéncia da sua forga e do seu valor e passaram a reivindicar um outro tipo de tratamento. A «questo indigena» foi o produto de uma particular conjuntura de agitacZo social e o resultado paradoxal da vitéria de Réfia*. Ao armar os naturais do Egipto contra Antioco III, Ptolomeu IV Filopator «avait pris une résolution convenant au présent, mais il avait compromis I’ avenir»**. Os machimoi (soldados egipcios) queriam agora uma outra valoriza- ao social, consenténea com a quota-parte de importéncia militar que haviam adquirido. Revoltaram-se, assim, contra as intimeras taxas entre- mentes langadas pelo poder central. Eodespertar do sentimentoe do orgulho nacional egipcio: sacerdotes, aristocracia e povo unem-se contra a dinastia estrangeira e promovem graves perturbag6es internas contra os opressores. Oterritério egipcio torna-se palco de uma luta endémica. A partir de 207 a. C., 0 Alto Egipto escapa-se ao controlo de Alexandria. Como regista Polibio, os amAveis e pacientes egipcios eram capazes, quando se excitavam, de surpreendentes atrocidades*. Neste quadro, a tomada de consciéncia e 0 espfrito de resisténcia dos indfgenas provocou considerdveis alteragdes econémico-sociais”. «Ensi- nados» na rebelido pelos Alexandrinos, os Egipcios questionaram o funci- onamento politico-social. A «premiére mise en question (...) de la priorité du GrecenEgypte» foi, no fundo, provocada pelos préprios Gregos. Melhor: foi promovida pela pressao explosiva das condi¢des sociais na cidade de Alexandria. Os Alexandrinos ficaram também célebres pelo seu mocking spirit, bem patente nas alcunhas com que mimosearam os soberanos lagidas. Pelo uso das alcunhas, percebemos que as camadas populares de Alexandria rejeitaram os actos a-sociais do poder, criticaram os soberanos e definiram a contrario 0 comportamento real ideal pretendido. Cf. B. Anagnostou-Canas, Ob. Cit, pp. 186-188, 5 Claire Préaux, «Esquisse d'une histoire des révolutions égyptiennes sous les Lagides» in CaE 11, Bruxelles, Musées Royaux d'Art e d'Histoire, 1936, p. 528. % Cf. Polfbio, XV, 33, 10. 5'Cf. Ibid., V, 107, 3. 5 CFC. Préaux, Ob. Cit., p. 375. 95 José das Candeias Sales Para os soberanos lagidas podemos identificar na documentacaio 14 nomes-alcunhas: Trifon, «magnificente; generoso» (atribuido a Ptolo- meu III, Ptolomeu IV, Cleépatra II e Ptolomeu VIII); Fiscon, «gordo; barrigudo; obeso; inchado» (Ptolomeu III, Ptolomeu VIII, Ptolomeu IX, Ptolomeu X); Koccé, «obscena; prostituta» (Cledpatra III); Koccés, «filhoda prostituta; o da prostituta» (Ptolomeu X Alexandre I); Gallos, «(tatuado) de Dioniso» (Ptolomeu IV); tes Agathocleia, «de Agatocleia» (Ptolomeu IV); Memfites, «menfita» (Ptolomeu VIII); Kacérgeta, «malfeitor; malvado; perverso» (Ptolomeu VIII); Fildlogos, «amigo de falar; amigo da palavra» (Ptolomeu VIII); Latiros, «ervilha ou grao-de-bico» (Ptolomeu IX); Potheinos, «desejado» (Ptolomeu IX); Pareisaktos, «intruso» (Ptolomeu X Alexandre 1), Auleta, «tocador de aulo (flauta); flautista» (Ptolomeu XII); Nothos, «bastardo; ilegitimo» (Ptolomeu XII); Cesarido, «pequeno César» (Ptolomeu XV)*. A opiniao publica expressava e sublinhava as suas preferéncias e ddios pelas actuagées dos reis. As alcunhas funcionam, objectivamente, como julgamentos e sentengas. O desdém popular assim expresso nao se restringiu apenas as qualificagdes morais (ou auséncia delas) — ex.: Trifon, Kacérgeta, Koccé, Koccés — ou ao cardcter politico (ex.: Nothos, Potheinos, Pareisaktos). As préprias caracteristicas ffsicas foram usadas para rebaixar e até escarnecer dos soberanos lagidas (ex.: Fiscon, Latiros). E admissivel que muitas das alcunhas tenham sido postas em circula- ¢4o no decurso do reinado dos reis visados, demonstrando um atento acompanhamento da vida politica e dos seus epis6dios (ex.: tes Agathocleia, Potheinos, Nothos, etc.). Estrutura urbanistica e imaginaério Através de Diodoro da Sicflia, que visitou Alexandria no ano 60 .C., quando a cidade contava j4 com mais de 300.000 habitantes, podemos obter algumas informagées sobre a estrutura fisica da cidade: «Deu-the [Alexandre] uma forma semethante a de uma clamide e esta cortada mais ou menos a meio por uma grande avenida de dimensées e beleza admirveis que a atravessa de porta a porta (...). Esté adornada em toda a sua extensdo com templose edificios muito luxuosos (...).A cidade tomou tal incremento Vide Cap. V Epitetos de culto dos Ptolomeus ¢ qualidades reais da nossa tese de doutoramento, Ideologia e propaganda real no Egipto ptolomaico (305-30 a. C.), Lisboa, Universi- dade Aberta, 2002, p. 219 — exemplar policopiado, 96 Alexandrea ad Aegyptum., Protétipo de Metrépote Universal durante os anos sucessivos que é considerada por muitos a primeira do mundo. Com efeito, pela sua elegdncia e pelo seu tamanho, pelo volume dos seus ingressos e pela quantidade de coisas que contribufram para o seu luxo, supera em muito todas as demais.» Até Cledpatra VII, inclusive, no século I a. C., todos os Ptolomeus se empenharam em embelezar Alexandria, acrescentando-lhe palacios e tem- plos. Esta dimensao construtora valorizou extraordinariamente a cidade aos olhos da contemporaneidade e elevou-a ao estatuto de «primeira e mais brilhante cidade do mundo». Na senda dos seus antecessores ligidas, também os imperadores romanos equiparam a cidade com variadas edificagées de utilidade publica (teatros, gindsios, anfiteatros, est4dios, hipédromos, tribunais, etc.)"'. O testemunho de Estrabao — que esteve na cidade na €época de Augusto, entre 25 e 24 a. C. — menciona-nos que Rakotis, entre a costa mediterranica e o lago Mareétis, a poucos km a oeste do braco de Canopo do Nilo que desaguava na foz de Roseta, fora o berco principal de Alexandria® e ajuda-nos também a reconstruir a imagem urbana da antiga Alexandria: «A cidade estd cheia de edificios piblicos e sagrados, sendo o mais belo de todos o Gindsio, que tem pérticos com mais de um estddio de largura, No centro da cidade encontram-se 0 paldcio da justiga e os arvoredos.» A descrigio de Estrabao demonstra que o autor concebia a cidade 4 maneira tradicional das poléis gregas e da grande urbe itdlica, ou seja, como uma unidade de convivéncia e como uma entidade juridico-politica. Dai que tenha sido particularmente sensivel ao Gindsio de Alexandria, que, com outros gindsios e com os respectivos atletas, sob patrocinio dos reis lagidas, havia feito também a celebridade internacional de Alexandria na Epoca Helenistica. “ Diodoro da Sicilia, XVII, 52, 1-7. “CfA. Bemand, Ob. Cit., pp. 82-84. CI. Estrabio, Geografia., XVI. 1, 6. © Jbid., XVI, 1, 10. Estrabiio refere-se também ao Sema de Alexandre (Cf. Ibid., XVI. 1,8), O estadio, unidade de medida grega, equivale em Estrabiio a 400 cévados de 52,5 cm, ou seja, a 210 metros (Cf. Strabon, Voyage en Egypte, p. 276). 7 Jost das Candeias Sales A lista dos espléndidos edificios e construgdes que adornavam a cidade a que os autores antigos aludem, integrava ainda o paldcio real dos Ptolomeus, o hipédromo, 0 teatro, a stoa, o mercado, o museu, a biblioteca, © farol e, naturalmente, diversos templos consagrados a divindades gregas e egipcias™. Atravessando a cidade de leste a oeste, a Via Canépica era a principal rua de Alexandria®. A estrutura urbanistica de Alexandria, hipodamica, isto é, em quadricula, articulava as varias ruas com a Via Canépica, formando uma reticula®. A cidade ficava, assim, dividida em cinco secgGes ou bairros, claramente diferenciados consoante a populagdo que os habitava, designa- dos, como indica Fflon de Alexandria (século I), pelas cinco primeiras letras do alfabeto grego, de o (alfa) a € (épsilon). O bairro mais importante era, logicamente, aquele onde se situava 0 paldcio real, na zona do Grande Porto, entre o mar e a Via Canépica®”. A volta da cidade erguia-se uma muralha que delimitava 0 espaco urbano de Alexandria (com cerca de 15 km de comprimento no periodo ptolomaico) e que, além da sua protec¢ao, era um eloquente simbolo do prestigio e da riqueza da cidade™. As construgées realizadas em Alexandria so um indice da impres- sionante vitalidade da urbe e das suas populacoes bem como um precioso auxiliar da nossa reconstituigao imagindria da cidade. Ao mesmo tempo, possibilitam-nos compreender os elementos constituintes e os mecanismos de fixago e de difusao da cidade no (nosso) imagindrio. O percurso pelos edificios importantes de Alexandria leva-nos directa e inevitavelmente para a acrépole da cidade, onde estava situado o Serapeum, o templo dedicado ao deus hibrido Serdpis, e remete-nos para uma das mais importantes dimensGes da cidade: a criagdo e «exportagdo» de divindades. * Muitos destes edificios so conhecidos através das moedas alexandrinas. * A rua Candpica corresponde aproximadamente 4 actual rua Bab-Charkieh. 0 projecto urbanistico de Alexandria € atribuido a Dinécrates de Rodes. O tipo de estrutura regular de planta ortogonal chama-se hipodémica em honra de Hipédamo de Mileto que, segundo parece, teria desenhado a planta da sua cidade natal segundo esse sistema (CF. Juan Antonio Ramirez, Construcciones ilusorias. Arquitecturas descritas, arquitecturas pintadas, Madrid, Alianza Editorial, 1988, pp. 16. 17). © O bairro delta, como ja referimos, era ocupado pelos Judeus, na parte oriental da cidade (Cf. A. Bemand, Alexandrie la Grande, pp. 241-257). * No inicio do periodo romano, a muralha teria entre 30 a 40 estddios de comprimento e 7a 10de largura(Cf.A. 1, Sadek, Ob. Cit.,p. 13. Vide também Y von Garian, «Les muraillesd’Alexandrie» in La gloire d’Alexandrie, p. 8; Jean Yves-Empereur, Alexandrie rredécouverte, Paris Fayard/ Stock. 1998, pp. 46-48). 98 Alexandre ad Aegyptum. Protétipo de Metropole Universal «A cidade amada dos deuses» Situada geogréfica e historicamente na charneira de dois mundos, Alexandria pros tou Aigypton possuia um clima eminentemente propicio ao nascimento de deuses «universais». Frangoise Dunand denomina significa- tivamente esta qualidade de Alexandria como «la fabrique des dieux»™. Foi, efectivamente, em Alexandria, no século III a. C., numa cidade que era, pela sua cultura e religiao dominantes, uma cidade grega, que se elaborou uma imagem diferente, complexa e subtil dos deuses eg{pcios, nascida do encontro entre a religiao tradicional egfpciae as técnicas e modos de express4o oriundos da Grécia. Daf 0 significativo titulo de gléria que a cidade granjeou como «a cidade amada dos deuses»”. Ocaso mais relevante desta justaposi¢ao religiosa deu-se com o deus Serdpis, criagdo ptolomaica que, sob aparéncia grega, congregava a esséncia egipcia. Reunindo atributos dos deuses helénicos Zeus, Hélio, Dioniso, Plut&o, Hades, Poséidon ou Asclépio e dos egipcios Osiris e Apis, 0 novo deus, misturava em si caracteres funerdrios, cténicos e solares provenientes de diversas origens culturais. Em Alexandria, a iconografia inscrevia-se na interpretatio graeca, claramente favoravel 4 imagética antropomérfica”. Aelevagao de Serapis a deus principal de Alexandria visava juntarem torno de uma divindade hibrida e do seu culto Os grupos étnicos greco- -macedénico e egipcio”. A notdvel li¢do de ci zagao dada pela tole- rancia religiosa dos Ptolomeus é um facto realgado por inimeros autores. Para os sacrificios e petigdes dos Gregos havia um altar diante do templo. Para o culto rendido a estétua 4 maneira egipcia devia haver, em princfpio, O titulo «La fabrique des dieux» para caracterizar Alexandria é usado por Francoise Dunand in Alexandrie IIF siécle av. J.-C. Tous les savoirs du monde ou le réve d'universalité des Ptolémées, Paris, Editions Autrement, 1992, pp. 171-184. Sobre as varias divindades cultuadas em Alexandria, vide o cap. 5. «Religious life» in P.M. Fraser, Ptolemaic Alexandria, Vol. 1, Oxford, The Clarendon Press, 1972, pp. 189-301 7! Em Ménfis, em contrapartida, preferiu-se sempre a tradicional iconografia taurina ou hfbrida (corpo humano com cabegade| touro), expressando, assim, visualmente, a heranga-descendén- cia directa do antigo deus local, 0 boi Apis. 7 A data de introdugio do culto de Serdpis em Alexandria (problema cronolégico) é, ainda, alvo de viva controvérsia, sendo complicado pela prépria flutuacio e ambiguidade da terminologia usada pelos modemos estudiosos determind-la com precisiio, mas admite-se que 0 «periodo possivel» corresponda a ditima década de Ptolomeu I Soter, servindo as datas de 308/ 306 a. C.e 291 a. C. como balizas cronolégicas (Cf. J. E. Stambaugh, Sarapis under the early Ptolemies, EPRO 25, Leiden, E. J. Brill, 1972, p. 6). P. M. Fraser opta pelo periodo entre 286 ¢ 278 a.C., ou seja, final do reinado de Soter? inicios do de Filadelfo, para a instalagao e dedicagdo da estétua de culto (Cf. P. M. Fraser, Ob.Cit,, p. 267). 99 José das Candeias Sales capelas em estilo egipcio na 4rea muralhada do templo”. O Serapeum de Alexandria funcionava como auténtico santudrio multicultural, onde a justa- posi¢ao das devogdes concorria para a conciliagao e concérdia religioso- -social. Os reis ldgidas tentaram judiciosamente realizar no plano religioso uma integragao das etnias que recusavam noutros planos. E preciso lembrar que os casamentos mistos entre Gregos e indigenas, por exemplo, eram interditos em Nducratis e, durante muito tempo, em Alexandria e que houve sempre, como referimos, uma atitude favordvel por parte do poder central & primazia dos Gregos na vida social da capital. Ao mesmo tempo, a nova Casa Real do Egipto dotava a jovem cidade de uma divindade tutelar. Serapis transforma-se, assim, na divindade protec- tora de Alexandria, presidindo regularmente a actos politicos e sociais de grande significado na vida da pélis’. O santudrio rectangular do periodo polomaico, com 170 m de comprimento por 73 m de largura, impunha-se 4 cidade como um dos seus mais importantes pélos. Na época imperial romana, Serdpis simbolizard a propria cidade de Alexandria, demonstrando como 0 seu culto e o seu templo se afirmaram na vida da cidade e, em consequéncia, na mentalidade mediterranica’’. Outro aspecto importante de frisar é 0 da propria localizagao escolhida por Ptolomeu I Séter para o Serapeum de Alexandria. Ao optar pelo ponto mais elevado da colina de Rakotis (Ra-ked, em egipcio; actual Amud es Sawari, «sustentdculo de colunas»), a sudoeste de Alexandria, o fundador da dinastia l4gida alcangou um triplo desiderato: 1) escolheu o mesmo sitio de um eventual culto local pré-existente, conferindo, dessa forma, uma continuidade simbélica e funcional 4 heranga egipcia”; 2) concretizou as sugestdes aristotélicas que advogavam que o deus principal de uma cidade “Cf. F Dunand, Le culte d’Isis dans le bassin oriental de la Méditerranée. I. Le culte d'Isis et les Prolémées, EPRO 26, Leiden, E. J. Brill, 1973, p. 57. E preciso considerar que os habitantes da egipcia Rakotis, no obstante a imtegragdo da sua localidade como «bairro indigena» da capital Alexandria, conservaram provavelmente os seus deuses, da mesma forma como os novos habitantes ‘greco-macedénicos trouxeram as suas préprias divindades (ex.: Deméter e Dioniso),Ihes construiram templos e capelas e [hes dedicaram festas especificas (Cf. F, Dunand, «La fabrique des dieux» in cle aved.-C.. pp. 171, 172). * Na época romana, um rito de passagem para a efebia levava os jovens a cortarem 0 seu cabelo em honra da cidade precisamente no temenos do Serapeum, atestando claramente o prestigio do santudrio nas instituigdes da cidade (CE. P. Ballet, Ob. Cit., p. 155). CLP. M. Fraser, Ob. Cit., pp. 27 € 116. ™ Cf. Frangois de Polignac, «Une ville singuliére» in Alexandrie IF siécle av.J.-C., p. 136. 100 Alexandrea ad Aegyptum. Prototipo de Metrépole Universal devia ser instalado numa localizagdo elevada, tutelando e dominando simbolicamente.a vida publica”; 3) fez do templo de Ser4pis oelemento vital da organizagao do espago urbano de Alexandria, dominando os dois portos maritimos da cidade, praticamente no enfiamento do pontao que dava acesso a ilha de Pharos. Oculto a Serapis tornou-se o culto da dinastia reinante e, em resultado das novas construgées sagradas realizadas pelos Lagidas nas suas posses- sGes exteriores, difundiu-se rapidamente por toda a bacia mediterranica”. O omnipresente casal Osiris-Isis da tradigio faradnica deu lugar nos monumentos helenisticos a insepardvel dupla Serdpis-Isis. Alguns autores nao hesitam em considerar 0 novo casal divino como «les dieux dynastiques des Ptolémées»”. Em Alexandria, a antiga deusa egipcia assumiria as fungées de protectora da navegagao e dos marinheiros (/sis Pharia, «{sis, senhora do mar»; Isis Pelagia, «Isis, deusa do mar», e [sis Euploia, «isis da feliz nave- gacdo»)". A «lsis» de Alexandria seria representada ora com roupagens gregas (chiton ou peplos e himation), ora com vestes de origem egipcia, embora sob reinterpretagio «a grega»*!. Apesar de jé ser conhecida no mundo grego, no tempo dos primeiros Ptolomeus, {sis prosseguird a sua «carreira» em Alexandria um pouco a ” Cf. A. Bernand, Alexandrie des Ptolémées, p. 79. ™ Cf. José das Candeias Sales. «A obra de Maneton e 0 culto alexandrino a Serdpis: dois instrumentos de organizagio da meméria ptolomaica» in Discursos. Lingua, Cultura e Sociedade, Il Série, n.° 3, Meméria e Sociedade, Lisboa, Universidade Aberta, 2001, pp. 61-87. ™R. Merkelbach, «Fétes isiaques 4 l'époque gréco-romaine» in Bulletin de la Faculté des Lettres de Strasbourg, Strasbourg, Palais Universitaire, 1962, p. 236. ™' As formas de Pharia, Pelagia e Euploia como senhora do mar ¢ da navegagio, atestadas abundantemente desde a Epoca Helenistica, si consideradas formas tipicamente gregas da deusa, pois, primitivamente, ndo se Ihe conhece nenhuma relag’o com o mar. Artisticamente, a imagem da deusa, de pé, & proa de um navio, com o vento enfunando a vela, também nio representa qualquer elemento da arte faradnica (Cf. Jean Leclant, «Isis, déesse universelle et divinité locale, dans le monde gréco-romainen in Bulletin de Correspondance Hellenique. Supplément XIV. Iconographie classique et identités régionales, Athénes, Ecole frangaise d’ Athdnes, 1986, pp. 346, 347. Na numismética alexandrina hd testemunhos das trés facetas da deusa (/sis Pharia, [sis Euploia e [sis Lactans) — Cf. P. Ballet, Ob. Cit., p. 156; F. Dunand, Ob. Cit., pp. 176, 177; Soheir Bakhoum, «Les edifices alexandrins d'aprés les documents monetaires» in Alexandrie. Lumiere du Monde Antique. Les Dossiers d’Archéologie, n° 201, mars 1995, Dijon, Editions Faton, 1995, pp. 2-11: fd., «La vie religieuse d'aprés les monnaies» in Le Monde Copte., n.” 27-28, pp. 75, 77, 79, e Iside. It mito. HN misterio. La magia, pp. 103 (III. 12 111, 13], 104 [IIL, 14] e 106 [HIl, 18). “' Em relagdo as vestes e aos simbolos distintivos de fsis. vide /bid., pp. 98 (III, 22), 108 (III, 22)e 111 (II, 27). Subjacente ao «guardaroba rinnovato» de isis ha uma permanéncia iconogratica multimilenar (Cf. Michel Malaise, «Iside ellenistica» in Lside. I! mito. I misterio. La magia, p. 86). 101 José das Candeias Sates sombra de Serdpis®. Na chéra, no entanto, Serépis nunca alcangaria a devogaio popular dedicada A deusa [sis, pelo menos por parte da populagao indigena, a maioria demografica do pais. De finais do século IT a meados do século I a. C., época marcada pelas revoltas nativas contra a dominagdo administrativa e cultural grega, a «Senhora» (upto) egipcia suplanta claramente o marido alexandrino, 0 «Senhor» XC) Kbptoc). Nao €, por isso, de estranhar que haja muito mais estatuas de {sis do que ha de Serapis". Ainda assim, hd intimeros testemunhos do culto serapiano, quer ex- votos, quer estatuas de diversos tipos (talhas, candeias, terracotas, bustos em mérmore, grandes estatuas de madeira, etc.), que assinalam o seu relativo sucesso popular, sobretudo em Alexandria™. Na nova dinamica cultual, sob impulso dos Lagidas, Serapis (patrono da realeza) e [sis, sua companheira originaria do Egipto, eram 0 casal di sustentador do soberano lagida. Se as rainhas lagidas chegam a auto-inti- tularem-se Nea Isis, «Nova Isis», 0 rei é ele proprio o representante humano do deus dinstico (como Horus era 0 representante de Osiris no Aquém). Serapis € percepcionado como um rei. Os reis humanos configuram-se ao modelo real-divino representado por Serdpis. Neste registo intelectual, Serapis € 0 patrono e o suporte do poder da nova dinastia. Os Lagidas eram ‘os sucessores dos antigos farads. A justaposigao cultural age aqui a favor do novo poder politico. Por acgiio directa de mercadores e devotos convertidos gragas a curas milagrosas, 0 culto de Serdpis e de {sis difundiu-se pela bacia do Mediter- raneo na Epoca Greco-romana, sendo conhecido e praticado com bastante sucesso em Chipre, nas ilhas do Egeu, na costa sul da Asia Menor, na Siria, is estava ligada a Serdpis, sendo venerada como «a condutora das Musas» (Cf. A. Bemmand, Ob. Cit., p. 84; Id., Alexandrie la grande, p. 132). * Quer fsis, quer Serdpis. «the two new major deities promoted in the Hellenistic pantheon trough Alexandria» tomaram-se conhecidos sobretudo por c6pias tardias (Cf. R.R.R. Smith, Ob. Cit.. 106). Vide elementos iconograficos in La gloire d’Alexandrie, pp. 244, 245; Iside. I! mito. Il misterio, La magia, Milio, Electa, 1997, p. 100 — Ill, 7). Além das representagdes sob forma antropomérfica, sobretudo no periodo romano, Serdpis e {sis sio também figurados, como ja aludimos, sob forma animal: duas serpentes coroadas com os seus respectivos atributos, evocando 0 aspecto de «bons génios» e garantes da prosperidade ¢ fertilidade do solo. * O nome Lepage o seu feminino, Zepa, so abreviaturas de nomes formados a partir de Serdpis e demonstram igualmente a importancia e a popularidade desta divindade (Cf. Etienne Bernand, Inscriptions grecques d'Hermoupolis Magna et de sa nécropole, Cairo, Institut Frangais d’Archéologie Orientale, 1999, pp. 39, 43 e 54, ¢ P. M. Fraser, Ob. Cit., p. 274). O nome te6foro grecizado Zapémiov era também muito usado por indigenas e indicia a mesma popularidade (Cf. W. Peremans, «Les mariages mixtes dans I'Egypte des Lagides» in Scritti in onore di Orsolina Montevecchi, Bologna, Editrice Clueb, 1981, pp. 276, 280, 281). 102 Alexandrea ad Aegxptum. Protdtipo de Metrépole Universal em Rodes, em Delos, em Atenas, na Peninsula Itdlica, na Peninsula Ibérica (caso de Pandias, no territério que hoje é Portugal), em York, etc’. Com Ptolomeu IV Filopator (221-204 a.C.), Horpakhered ou Harpécrates, o «H6rus crianga», foi integrado como filho de Serdpis e de [sis (copiando o multissecular modelo da triade Osiris-[sis-Hérus)**. A nova triade que dominaré a vida cultual alexandrina conheceré ainda a jungao de um antigo comparsa osiriano: o deus Anupu/ Antibis. O seu culto esta também atestado no Serapeum de Alexandria (bem como em Ménfis e em Canopo)*’. Harpécrates e Anubis acompanharam Serdpis e [sis na difusio pelo Mediterraneo*. O antigo «circulo osiriano» transfere-se, portanto, integralmente para 0 circulo «familiar» do deus Serdpis, o que constitui um elemento suplementar de apelo para os devotos egipcios. Serdpis € um deus que age a diferentes niveis, seja pelos seus idiossincraticos e sincréticos atributos e fungées, seja pelas motivagdes que estiveram na base da sua criagio e da manutengao do seu culto. Sé por razdes operatérias podemos compartimentar as principais valéncias deste culto, uma vez que, na pratica, todas elas funcionam em simultaneo e de forma integrada. A par de uma acgio em prol da harmonizag4o (mas nao fusao) das 8 Cf. J.C. Sales, Ob. Cit., p. 71, e Robert Etienne, «Les syncrétismes religieux dans la Péninsule Ibérique a I’époque impériale» in Les syncrétismes dans les religions grecque et romaine, Paris, PUF, 1973, p. 160. * 0 jovem Harpécrates alexandrino era representado de pé, nu ou com uma simples climide no brago esquerdo, um pouco desengongado, segurando o como da abundancia, insfgnia da prosperidade do reino. Os elementos que recordam a sua origem indigena soa coroa pschent (adupla coroa brancae vermelha da antiga realeza egipcia) ¢ 0 dedo indicador na boca (gesto tipico dos antigos deuses-crianga egipcios). Este gesto incitou os Gregos instalados no Egipto a identificarem-no como deus do siléncio. Nas emissdes monetérias romanas, Harpécrates surgiré coroado com a pschent,com 0 wraeus, a serpente fémea protectora de divindades e farads, ou, ento, emergindo de uma flor de lotus, referéncia ancestral da tradigao mitolégica egipcia para o nascimento dos deuses-crianga, designadamente no Ambito cosmogénico hermopolitano. Esta Gtima iconografia est também presente em terracotas ¢ em numerosos relevos de templos ptolomaico-romanos (Cf. J. C. Sales, As divindades egipcias. Uma chave para a compreensdo do Egipto antigo, Lisboa, Editorial Estampa, 1999, pp.168-170; P. Ballet, Ob. Cit., p. 157; Soheir Bakhoum, Ob. Cit., pp. 77, 78, e Marie-Frangoise Boussac, «Harpocrate» in La gloire d’Alexandrie, p. 247. Vide elementos iconograficos in [bid., pp. 235 € 247). * Na época romana, na fungdo de deus dos mortos e da mumificagao, Anupu/ Aniibis ficou bem patente nos ttimulos de Alexandria. Era 0 equivalente egipcio de Hermes e chegou a ser honrado sob a forma de Hermanubis, cujo nome mais no € do que a contracgdo da onomédstica das duas deidades (Cf. P. Ballet, Ob. Cit., p. 157). Hermaniibis foi a segunda divindade autenticamente helenistica, isto é, criada na época de apogeu do alexandrinismo (Cf. $. Bakhoum, Ob. Cit., p. 78). CFP. Ballet, Ob. Cit., pp. 157, 158. «L’hellénisation des dieux égyptiens aménera ceux-ci A connaitre Iuniversalité, succés qu’ils n’avaient jamais remporté jusqu’alors» (Florence Doyen, Rene Preys, «La présence grecque en Egypte ptolémaique: Les traces d'une rencontre» in L'atelier de orfevre. Mélanges offerts & Ph. Derchain, Leuven, Peeters, 1992, p. 82). 103 José das Candeias Sales culturas e das memirias religiosas e cultuais de Gregos e de Egipcios é de destacar, pelo seu sentido ideolégico, a vertente de figura protectora da dinastia ptolomaica e da cidade de Alexandria. A sua «exportagao» fez-se a conta da sua feigdo alexandrina de deus agregador e unificador das popula- gées, ele proprio arauto de uma mensagem universal e cosmopolita. A metrépole que Alexandria foi durante os séculos III e I a. C., sem se poder separar da sua feicfo industrial, comercial, cultural e de centro académico, no se pode igualmente afastar do seu pantedo hibrido, novo, em que se conciliaram tracos funcionais e formais ancestrais com outros emergentes, na demanda de um sincretismo original, frutifero e eficaz. Qual «templo do mundo», como os textos herméticos Ihe chamam, Alexandria ad Aegyptum impés-se também pela vitalidade dos seus cultos”. Conclusao O imagindrio prodigioso da cidade de Alexandria compée-se de miltiplos aspectos. O seu «brilho» €, sem diivida, material, como grande centro comercial e placa giratéria entre 0 Ocidente e 0 Oriente, entre a civilizagio europeiae as civilizagdes faradnica, coptae drabe; mas é também e sobretudo um esplendor intelectual e espiritual, no mais completo abrangente sentido do termo, de uma extrema riqueza e diversidade. O seu glorioso passado, os homens ilustres ou menos ilustres que a dinamizaram, os espectaculares monumentos de outrora registaram-se para sempre no imagindrio colectivo da Humanidade. O seu destino de vocagéo ecuménica e a dimensio colectiva do trabalho intelectual alexandrino galgaram os séculos. Como um palimpsesto, a cidade de Alexandria guardou marcas das sucessivas dominacées politicas e culturais e forneceu modelos referenciais ao Oriente bizantino, ao Islao medieval e ao Ocidente latino. As trocas comerciais, técnicas e espirituais fizeram de Alexandria uma urbe de pululante vida e dinamismo e um centro de civilizagao universal com papel fundamental na modelagio dos tempos vindouros. A cidade microcosmos assumiu-se na Epoca Greco-romana como a quinta-esséncia da civilizagiio. Lugar de memorias, Alexandria reflectiu um projecto de alcance universal. O seu legado cultural e espiritual ultrapassou as fronteiras do Egipto e até da propria bacia mediterranica. Cf. P. Ballet, Ob. Cit., p. 147. 104 Alexandrea ad Aegyptum, Prototipo de Metropole Universal Incarnando um mundo com vastissimas fronteiras histéricas e geogra- ficas, Alexandria foi 0 coragio do império helenjstico e da cultura antiga. Como escreveu 0 ministro da Cultura do Egipto no catdlogo de exposi¢ao La gloire d’Alexandrie: «Alexandrie c’est une cité dont la gloire ne rejaillit pas sur la seule Egypte mais sur I’humanité toute entiére»™. A cidade de Alexandre foi um dos maiores locais da nossa civilizagéo, num momento privilegiado da histéria do Egipto helenistico. Nao é, por isto, exagerado vé- -la como protétipo de metrépole universal nem tampouco como uma das pedras angulares da historia da propria civilizagdo ocidental. “ Farouk Hosny in Catalogue générale de !'exposition «La gloire d’Alexandrie» (Paris, 7 mai-26 juillet 1998), Paris, Paris-Musées, 1998, p. 24. 105 O ESPACO URBANO COMO ENCRUZILHADA DE SINAIS Isabel Barros Dias’ So sobejamente conhecidas miiltiplas narrativas de fundagéo de cidades. Algumas dessas lendas surgem na historiografia produzida sob os auspicios de Afonso X de Castela e de Ledo'. Como exemplo, podemos referir o caso de A Corunha, fundada por Hércules (PCG: I, 9-10), de Sevilha, fundada por Julio César (PCG: I, 8-9) ou de Cartagena, fundada por Cartagineses (PCG: I, 36-7). Estas narrativas servem, 4 semelhanga de Universidade Aberta. ' Serd aqui considerado, sobretudo, o texto da “versio régia” da Estoria de Espana. Esta versio integra o textoeditado por Ramén Menéndez Pidal como Primera Cronica Generalde Espaiia, |. Gredos. 1977 (de aqui em diante PCG). Saliente-se. no entanto, que esta edigdo se baseou manuscritos compésitos onde intervieram diversas mos em épocas distintas. No entanto, 6 seu trecho inicial (até ao cap. 616) consiste na “versio régia” afonsina, ou seja, 0 texto aprovado pelo soberano como “oficial” aquando da redacgdo da primeira versio da Estoria de Espana. Cabe ainda referir aqui que, critica reconhece duas versdes afonsinas principais da Estoria de Espanna, a “versio primitiva™ (cerca 1270-74) e a “versao criti (cerca 1282-84). Estas duas versdes foram, posteriormente, combinadas das mais variadas formas, abreviadas, ampliadas, adap- tadas, traduzidas e entrecruzadas com novas fontes ou com trechos de fontes jé usadas mas anterior- mente desprezados, dando origem a uma familia textual enorme e extremamente complexa. Sobre estas questdes ver Diego Catalin, De Alfonso X al conde de Barcelos, Madrid, Gredos, 1962 e, mais recentemente, idem, De la silva textual al taller historiogrdfico alfonsi - Cédices, crénicas, versiones y cuadernos de trabajo, Madrid, Fundacién Ramon Menéndez Pidal / Universidad Auténoma de Madrid, 1997 e idem, La Estoria de Espaita de Alfonso X — creacién y evolucién, Madrid, Fundacion Ramén Menéndez. Pidal / Universidad Aut6noma de Madrid, 1992. Ver ainda Inés Fernéndez- -Ordéitez, Versién Critica de la Estoria de Espanta, Madrid, Fundacién Ramén Menéndez Pidal / Universidad Aut6noma de Madrid, 1993, bem como a til sintese: idem, “La transmisidn textual de Ia “Estoria de Espafia” y de las principa as” de ellas derivadas”, Alfonso X el Sabio y las Crénicas de Espaia, Valladolid: Fundacién Santander Central Hispano / Centro para la Edicién de los Clisicos Espafioles, 2000, pp. 219-260. 107 Isabel Barros Dias outros discursos fundacionais, para catalisar uma esséncia que se projecta sobre um espago determinado, marcando-o de forma tinica e, deste modo, distinguindo-o dos outros espagos urbanos, contiguos ou mais longinquos. Acresce ainda a eventual existéncia de outras tradigGes, j4 nao fundacionais, mas que nao deixam por isso de assinalar 0 espago a que se referem e onde se situam acontecimentos que tanto podem ser gloriosos como infames, caso de Toledo, cidade marcada pela trai¢do dos judeus que af habitavam e do seu conluio com os mugulmanos*. Estas diversas narrativas constituem formas bastante evidentes de valorizagao (ou desvalorizagao) de um espago. Quer se trate de uma aura de gléria que cintila gragas 4s personagens ilustres que af viveram ou que ai actuaram ou, pelo contrario, de narrativas infamantes veiculadas por tradigdes ligadas a valorizagdo de cidades rivais, estas histérias fazem com que cada terra assuma um cardcter tinico, contagiando com essa identidade quem Ia viva ou de 14 provenha. No fundo, estamos perante procedimentos em tudo idénticos aos que, se bem que a uma escala diferente, contribufram para construir os estériotipos dos diversos paises e respectivas populagdes, fazendo com que, por exemplo, os alemaes possam ser conhecidos como rudes, os franceses como chauvinistas, os italianos como galanteadores... No entanto, estas narrativas também nao consistem na tinica forma de assinalar um espago, mormente um espago urbano. Com efeito, para além deste nivel mais genérico, existem miltiplas estratégias que se tornam tanto mais interessantes quanto s4o passiveis de estabelecer teias de referéncias significantes. No caso da Estoria de Espanna afonsina, é possivel identificar jogos deste tipo, ou seja, o estabelecimento de associagdes que funcionam tanto a n{vel sincrénico como a nivel diacrénico, tendo como base espacos urbanos concretos. Com efeito, sempre que se refere que uma determinada cidade é agraciada com um gesto de um soberano, estabelece-se uma relagdo sincrénica de valorizagdo ou de desvalorizagao entre aquela cidade e aquele rei especificos, consoante se trate de gestos ou de obras benéficas ou maléficas realizados numa terra valorizada positiva ou negativamente. Por outro lado, sempre que um ?“E dize don Lucas de Thuy en loor desta cibdad, que seyendo ella buena, poderosa, fuert et complida de mucha buena caualleria que siempre ouo en ella, que a ora fue metuda en poder de los ‘ysmaelitas et uenguda sin otra batalla que y ouiesse por la traycion de los judios; ca dizen que en dia de Ramos que salieron los cristianos, por onrra de la fiesta que era grand, fuera de la uilla, et fueron a la eglesia de santa Leocadia por oyr y la predigacion et la palabra de Dios; e los judios que auien puesta su sennal de traycion con los moros, cerraron las puertas de la villa a los cristianos et abriron las a los moros: e desi por que el pueblo de los cristianos estaua desarmado et sin sospecha de mal, saliron a ellos los moros et mataron y a todos” (PCG: I, 316a). 108 0 Espago Urbano como encrucithada de sinais soberano age sobre determinado espaco, também se associa, isomorfica- mente, aos outros lideres que, a nivel diacrénico, j4 tinham, anteriormente, estabelecido uma relagao com aquela terra. Este tiltimo tipo de associagées, em particular, pode dar origem a redes de correspondéncias tao subtis quanto significativas, decorrendo dai a possibilidade da sua utilizagéo como ferramenta retérica com vista a defesa ou a promogao de finalidades pragmaticas bastante concretas. A forma mais clara de relacionar, diacronicamente, personagens dis- tintas consiste, obviamente, em comparagées explicitas com antecessores de um passado, tanto mais prestigioso, quanto mais longinquo. E 0 caso, por exemplo, da narrativa que nos veicula o raciocinio de Julio César perante uma estdtua de Alexandre, achada em Cédis: yentre otras muchas ymagenes que y auie, fallo una del rey Alexandre, e dizien todos que fuera fecha a semeianga del, de grandez.e de faygon; e quando Cesar la uio, estudo la catando grand piega cuydando, e depues dixo que si Alexandre tan pequenno fuera de cuerpo e tan feo e tan grandes fechos ¢ tan buenos fiziera, el, que era tan fermoso ¢ tan grand, por que no farie tan grandes fechos o mayores. (PC 1, 9a) O mesmo mecanismo repete-se em intimeras remissGes e alusGes que, ocasionalmente, povoam 0 relato estabelecendo nexos entre figuras que, apesar de distantes no tempo, podem ser consideradas, de alguma forma, isomorfas, constituindo, deste modo, cadeias de exemplos, tanto positivos, como negativos, ou seja, dois paradigmas compostos por figuras comparaveis entre si’. “Eo caso, na PCG, da comparagio entre Julio César e Alexandre (favoravel ao primeiro), acima citada, ou de uma batalha entre Jilio César e Pompeu, que se afirma ser superior as travadas, por Hércules ou Alexandre (1,82 cap. 104). Aquando do elogio de Pompeu surge uma comparagao ‘com Hércules, Alexandre e Libero (I, 82 - cap. 105), sendo este considerado o melhor do seu tempo (até Julio César, depreende-se). Encontramos ainda comparagdes, por exemplo, em I, 142—cap. 192 (entre Trajano ¢ Alexandre), 145 ~ cap, 195 (entre Trajano e huilio César) ou 170 — cap. 275 (entre Aureliano e Jilio César e Alexandre). Estas comparagdes parecem tentar criar um linha de herdis exemplares (imperadores / unificadores) como Hercules, Alexandre, Julio César, o espanhol Trajano (acerca do qual ainda se aponta a ascendéncia troiana: I. 142 — cap. 192) .. Para o perfodo do inicio da Reconquista saliente-se a eloquente comparagio de Pelaio e dos seus homens com os Macabeus. Enunciado em termos muito explicitos, se bem que agora no paradigma negativo, é ainda 0 facto de se mostrar como Otio associa o seu nome a Nero, de quem fora amigo, pois € por este meio que Ordo tenta justificar-se como Imperador uma vez que assumira esta posigao sem direito a ela (I, 129-30 - cap. 180). Sobre estes assuntos ver também Georges Martin, Histoires de l'Espagne médiévale. Historiographie, geste, romancero, Paris, Publication du Séminaire d’ études médiévales hispaniques de l'Université de Paris XIII / Klincksieck, 1997. particularmente “Temporalités (trois logiques temporelles du récit historique médiéval)” (pp. 57-68) que refere, a par de um tempo da hereditariedade e de um tempo da causalidade factual, a existéncia de um tempo da exemplaridade 109 Isabel Barros Dias No entanto, mais do que nesta forma extremamente clara de estabe- lecer nexos, centrar-nos-emos aqui num modo particular de relacionar figuras que se concretiza no espago fisico de algumas cidades. Trata-se de uma estratégia que se baseia no recurso a utilizagao de sinais, mensagens mais ou menos enigmaticas, deixados por algumas personagens emblematicas do Passado mais remoto para os seus congéneres vindouros. E Hércules quem mais sinais deixa Para os herdis seguintes, caso de Jilio César, destinatdrio da estatua e da inscrig¢do com que foi assinalado o lugar onde Sevilha seria povoada (PCG: I, 8-9)‘. Também Pirus, genro de Espan, povoa Toledo no lugar anteriormente marcado pelas torres, fruto da divinamente castigada discérdia que opés os filhos do mitico rei Rotas (PCG: I, 12-14). Idéntica, e ainda mais remota, é a narrativa segundo a qual 0 rei Rotas teria assinalado o lugar onde Roma posteriormente surgiria, conforme relatado no seguinte excerto: Otros cuentan en las estorias antiguas de Espanna que quando el rey Rocas andido por el mundo uuscando los saberes, assi cuemo es ya contado en el comiengo desta Estoria dEspanna, que uino por aquel logar o despues fue poblada Roma, y escriuio en dos marmoles cuatro letras: las dos en ell uno et las dos en ell outro, que dizien Roma, y estos fallo y despues Romulo quando la poblo, et plogol mucho por que acordauan com el so nombre: et pusol nombre Roma (PCG: I. 85a)* um trecho que tem ainda a grande vantagem de ligar aquela que foi o centro do Mundo Antigo e sede do Império Romano com a Espanha, gragas ao percurso de uma figura de ligagao, Rotas, um rei mitico, vindo da Antiguidade mais longinqua. Acresce, ainda, a curiosa nota segundo a qual 0 primeiro nome de Roma teria sido “Valéncia” (PCG: I, 84). onde situagdes particulares formam cla . ilustrando assim 0 que. de acordo com aideologia do historiador. se ‘exemplarité historique est done fonction du temps dans la mesure oit la fréquence (effective ou virtuelle) d'une configuration factuelle fonde Vinduction de la loi qui définit une classe d'équivalence événementielle.” (p. 66). a ainda uma segunda estitua, em Cadis, assinalando a sua entrada na Peninsula Ibérica. A tradigio textual deste trecho revela-se muito curiosa dadas as modificagdes ¢ os diversos Propdsitos que serviu. Sobre este assunto ver Isabel Barros Dias, “O mundo paralelo dos «Simulacra»”, Anténio Branco (Coord.). Figura. Actas do I! Coléquio da Seegdo Portuguesa da Associagéio Hispanica de Literatura Medieval, Faro, Faculdade de Cigncias Humanas e Sociais dt Universidade do Algarve. 2001, pp. 219-232 e “Dialogue et Confrontation Idéologique™, Danielle Buschinger (ed.), La Guerre aw Moyen Age, Amiens, Presses du Centre d'Etudes Médiévales: Université de Picardie “Otrechoant ino poraquel logar © fuc despues poblada Roma, y escriuio en un marmol quatro letras de ka una parte que dizien Ror yestas fallo y despues Romulo quando la poblo. ¢ plogol mucho por que acordauan con el so nombre. e pusol nombre Roma.” 110 O Espaco Urbano como encrucithada de sinais Estes pormenores, tanto por si sé, como ainda mais quando amplificados pelas associagGes diacrénicas que estabelecem entre figuras diversas, inscrevem-se, com a maior facilidade, numa linha de criagdo de “passado” ou de “antiguidade”, com vista a dignificagdo das cidades mais importantes da Espanha. Além disso, independentemente de alguns dos acontecimentos descritos terem efectivamente tido lugar ou nao, acentuamos, aqui, 0 facto da sua narragdo ser construida de forma a fazer com que se articulem nao s6 ao nivel de personagens histéricas, mas também, e sobretudo, de modo a conjugarem-se com relatos e personagens obviamente miticos, ficticios, gracas as correspondéncias efectuadas. Desta forma, estabelecem-se as bases para a construcao de um imaginario que nada tem de inocente ou de fortuito mas que, pelo contrério, remete para finalidades bem definidas, como adiante veremos em maior detalhe. Variantes destes procedimentos podem ainda ser consideradas as miltiplas alusdes que ligam distintas personagens a diversos monumentos ou locais especfficos, ou porque os restauram, ou porque af celebram alguma solenidade digna de nota. Com efeito, ao interagirem com, ou num determinado espaco fisico concreto, cada figura passa, assim, e de certo modo, aintegrar a cadeia que une as diversas personagens para cujo percurso aquele espago, em particular, foi importante, ou, pelo menos, significativo. Um exemplo bastante evidente sera o do aqueduto de Segévia, mandado restaurar por Afonso X, segundo testemunho da General Estoria, 0 que implica a associagao do nome deste soberano ao monumento romano*. Este caso assemelha-se a multiplas outras associagGes relativamente discretas. Assim, podemos, igualmente, mencionar Espan que termina a obra de Hércules (PCG: I, 11) ou Julio César que renova a antiga torre da Corunha, erigida, segundo a tradigdo, por Hércules (PCG: I; 92). Também a forma como os restos mortais de Julio César séo guardados (PCG: I, 97) é depois ecoada nas exéquias de Trajano (que por sinal, além de imperador, era espanhol) e o tnico enterrado dentro da cidade de Roma apés Juilio César (PCG: I, 145). Outras personagens h4 que se caracterizam (e se aproximam deste modo entre si) por tentarem estabilizar e/ou ordenar 0 territério, caso de Constantino (PCG: I, 196) ou, posteriormente, de Bamba, também visto como um restaurador na medida em que € apresentado a reconstruir 0 que fora destrufdo na guerra (PCG: I, 292, 293 ou 294). Outra possibilidade * Esta questdo ja foi apontada por Francisco Rico, Alfonso el Sabio y la ‘General Estoria’. Tres lecciones, Barcelona, Ed, Ariel S. A., 1984, p. 120. I Isabel Barros Dias consiste, ainda, num percurso tao exaustivo quanto possivel do territério, uma atitude em tudo coerente (a nivel simbélico) com a tomada de posse desse mesmo espago, e que poderd ser exemplificada com o circuito vitorioso que Jtilio César empreende pela Peninsula Ibérica, duplicando 0 itinerario anteriormente levado a cabo por Hércules (PCG: I, 8-11): Pues que Julio Cesar ouo tornadas todas las Espannas so el sennorio de Roma et so el suyo, uino a la prouincia de Guadalquiuir, et mudo a Seuilla el nombre, et mando Ja llamar Julea Romulea. Desi andando por las otras tierras de Espanna, fizo fazer en la prouicia de Guadalquiuir et por ell Andaluzia por nobleza et prez del so nombre las carreras a que agora dizen Arracifes. E fue a Galizia al logar que llaman Crunna, et renouo la torre del faro que fiziera Hercules que era ya lo mas della cayda. (PCG: I, 92a) Cabe ainda salientar que estas estratégias nao se verificam sé no Ambito do positivo. Jé numa associago de conotagao negativa, é ainda Hercules quem deixa o marco fatidico da casa maravilhosa, em Toledo, cuja violagao, pelo rei Rodrigo, faz soltar (como se de uma nova caixa de Pandora se tratasse) a noticia da eminéncia da invasdo muculmana, mas cuja boa e respeitosa manutengao seria, implicitamente, o garante da continuidade inabalada do reino godo’. O relato da Estoria de Espanna articula-se, desta forma, em torno de exemplos positivos e negativos (tanto de personagens como de situagGes), exemplos estes que vao surgindo, de forma diferente, ao longo do decurso temporal abarcado pela narrativa, mas sempre carregando valores idénticos, cada um como pré-figuragao do seguinte, constituindo o que poderiamos 7™“En la cibdad de Toledo auie estonces un palacio que estidiera siempre cerrado de tiempo ya de muchos reys, et tenie muchas cerraduras, ¢ el rey Rodrigo fizol abrir por que cuedaua que yazie y algun grand auer; mas quando el palacio fue abierto non fallaron y ninguna cosa, sinon una arca otrossi cerrada. Ee! rey mando la abrir, et non fallaron en elle sinon un panno en que estauan escriptas letras ladinas que dizien assi: que quando aquellas cerraduras fuessen crebantadas et ell arca et el Palacio fuessen abiertos et lo que y yazie fuesse uisto, que yentes de tal manera como en aquel panno estauan pintadas que entraien en Espana et la conqueririen et serien ende sennores. El rey quando quello oyo, pesol mucho por que e! palacio fiziera abrir, e fizo cerrar ell arca et el palacio assi como staan de primero. En aquel palacio estauan pintados omnes de caras et de parescer et de manera et de uestido assi como agora andan los alaraues, ¢ tenien sus cabegas cubiertas de tocas, et seyen en cauallos, et los uestidos dellos eran de muchos colores, ¢ tenien en las manos espadas et ballestras et sennas algadas. E el rey et los altos omnes fueron mucho espantados por aquellas pinturas que uiran (PCG: 1, 307a-b). 112 Espago Urbano como encrucithada de sinais qualificar como conjuntos de associagées tipolégicas seculares*. Com efeito, a associagdo entre eventos equivalentes ou aproximaveis consistia num hdbito intelectual dos mais correntes. O sistema de ensino medieval baseava-se, concretamente, na pratica da leitura interpretativa, para a qual concorriam as técnicas que cedo deixaram de ser aplicadas em exclusividade aos textos sagrados. Assim, se, curiosamente, o sentido literal ou hist6rico era considerado como 0 nivel mais simples de leitura e de andlise, a este vo sobrepor-se os sentidos alegérico, tropolégico e anagégico’, que nao deixaram de ser aplicados a miltiplas formas textuais, entre as quais * A criagio de analogias deste tipo foi igualmente constatada por Gabrielle M. Spiegel, The Past as Text. The Theory and Practice of Medieval Historiography, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1999, pp. 91, 97 ou 108. A autora considera que 0 uso secular desta forma de pensamento pela historiografia constitui uma estratégia eficaz para a criagio de relagdes entre 0 passado e o presente. Assinala ainda o facto deste tipo de analogia contrariar a progressao linear da historiografia, sendo, por isso, necessério estabelecer um compromisso ou equilfbrio entre duas tendéncias opostas: “As evidence of historical continuity, it [Genealogy] lends plausibility to the analogizing tendencies of medieval historical thought, allowing perceived relationships between historical figures and events in the past and present to be viewed as part of one continuous stream of history. prevents these “typologies” from becoming purely simbolic connections and therefore saves history from allegory.” (p. 97). Sobre este assunto ver ainda Inge Skovgaard-Petersen, “Saxo Grammaticus: a national chronicler making use of the genre chronica universalis", Jean-Philippe Genet (ed.), L’historiographie médiévale en Europe, Paris, éditions du S.N.R.S., 1991, pp. 331-340 que refere igualmente a promogao de associagSes tipol6gicas. + Enquanto o sentido dito “histérico” seria o mais conforme a realidade dos acontecimentos narrados, os restantes sentidos ja conferem ao discurso outras dimensdes. No que se refere ao sentido alegérico, este nivel € considerado no corpo do texto. Quanto aos restantes sentidos, em termos genéricos, o sentido tropol6gico procura, a partir da realidade vis(vel, descortinar verdades morais superiores eo sentido anagégico, indo um pouco mais além, parte igualmente da realidade mundana ‘mas que agora é entendida como representagio das realidades celestes e da vida futura. De salientar, ainda, como esta organizagdo pode variar, seja na ordem, seja no nimero dos seus elementos, podendo apresentar formulas tanto triplas como quddruplas. Sobre estes assuntos ver, nomeadamente, a obra classica de Edgar de Bruyne, Etudes d’Esthétique Médiévale, Paris, Albin Michel, 1998, vol. 1, pp. 682-3 ou, ainda, estudo monumental de Henri de Lubac, Exégése Médiévale. Les quatre sens de l’écriture, Paris, Aubier, 1959 (1 Parte, Le If), 1961 (II Parte, 1) € 1963 (II Parte, Il) que refere miltiplas formulagdes, evolugées, mutacdes e arrumagdes que esta estrutura exegética apresentou. O sentido literal ou hist6rico & abordado primordialmente na I Parte, Il, pp. 425-487 (cap. VII), onde é igualmente relacionado com a historiografia. Quanto aos restantes sentidos, Henri de Lubac equaciona a alegoria com a fé,a tropologia com a misticae a anagogia com a escatologia. De salientar, também, as curiosas e ilustrativas formulas mneménicas referidas por este autor como seja “Littera gesta docet, quid credas allegoria, / Moralis quid agas, quo tendas anagogia.” (Intr., 23) ou “Dicitur historicus quem verba ipsa resignant, / Et allegoricus priscis qui ludit in umbris; / Moralis per quem vivendi norma tenetur, / Quid vero speres anagogicus altius offer.” (Intr., p. 24). Para uma andlise que equaciona os niveis de leitura com o imaginario semistico da historiografia, ver Georges Martin, Histoires de l'Espagne médiévale. Historiographie, geste, romancero, Paris, Publication du Séminaire d'études médiévales hispaniques de l'Université de Paris XII / Klincksieck, 1997 (Lohiatus référentiel (une sémiotique fondamentale de la signification historique au Moyen Age)”. pp. 43-56). Ver, também, Martin Irvine, The Making of Textual Culture. ‘Grammatica' and Literary Pres Isabel Barros Dias precisamente a historiografia. Referimo-nos aqui, em particular, ao sentido alegérico que, apoiado, regra geral, no método tipoldgico, procurava, na sua origem, estabelecer relagdes entre as cenas do Antigo e do Novo Testamento. Trata-se, pois, de uma forma de relacionar factos e personagens em tudo semelhante ou equivalente 4 que aqui se desenha. Com base nesta dindmica, é possivel constatar que a histéria, para Afonso X, se constréi, também, como uma espiral de momentos positivos e negativos. Apesar do tempo na historiografia cristé ser sempre concebido como um continuum, uma progressao que tem 0 seu inicio com a criagdo do Mundo e encontraré 0 seu termo quando Deus decidir do fim dos Tempos, esta nogdo nao impede, necessariamente, a presenga de outras ldgicas que, nao a contrariando, também nao deixam de a complexificar. Assim, o decurso do tempo, na Estoria de Espanna, apesar de linear, repete-se em situagdes isomorfas, dando origem a uma espiral onde a evolugio cronolégica nao obsta ao retorno aos mesmos locais, de forma idéntica, de personagens mais ou menos equivalentes, com atitudes semelhantes ou, de alguma forma, associdveis. Diferem exclusivamente pelo facto de ocorrerem em momentos diferentes, ou seja, pela sua assincronia. A ter em conta 0 idedrio politico de Afonso X, 0 binémio das associagGes entre personagens positivas e negativas é facilmente articulavel com os pélos antitéticos que opdem a expansio e a unificacao territoriais A desagregacao do territério dividido em facgdes rivais ou mesmo em reinos distintos, nogio esta que se conjuga perfeitamente com os exemplos que temos vindo a considerar. Desta forma, também os sinais, as “mensagens cifradas” que algumas figuras de excepgao vio deixando nos espagos urbanos, jd existentes ou a fundar, para personagens futuras, igualmente de destaque, contribuem para a sua integragdo nestes paradigmas mais latos. De um lado, temos a unificacdo territorial, considerada positivamente, fruto da acgdo de personagens gloriosas, conquistadores, unificadores ou mesmo imperadores (como se verifica, para o periodo mais antigo, com Hércules e Espan, com Jiilio César e outros Imperadores romanos apresentados de forma positiva ou, ainda, com os Godos). Pelo outro lado, temos a desa- gregacao, a divisao do territério, fruto de invasées, de traigdes e/ou de desacordos, marcados como calamidades, quase 4 imagem dos castigos € catdstrofes que, no relato biblico, assinalaram as primeiras Idades do Theory 350-1100, Cambridge, Cambridge University Press, 1994 — em particular a Parte 6 (pp. 244- +271) onde o autor acentua que os quatro sentidos constituem meras formas de cla significados e nio diferentes niveis ou cédigos. Distingue, entdo, o que considera operativos efectivamente usados na pritica: hist6ria, alegoria e tipologia (pp. 259. u4 0 Espaco Urbano como encrucithada de sinais Mundo, protagonizados por personagens consideradas de forma menos favoravel. O ultimo destes momentos terriveis teré sido precisamente a invaséo muculmana de 711, ainda tao presente, e que renovava a meméria de outras situagdes igualmente destruidoras, associando, deste modo, uma série de acontecimentos que, mesmo se afastados no tempo, se aproximam a nivel ideolégico e/ou emotivo'”. De acordo, ainda, com esta estruturagao légica dos acontecimentos, os gigantes de Babel no se limitam a caracterizar 0 paradigma do desen- tendimento em geral. Este converge, e concretiza-se frequentemente, na situacdo mais precisa da divisdo territorial, encarada como consequéncia do estado de desacordo. Dada esta ligagdo de causa-efeito, as duas situagdes, ou seja, tanto o desacordo como a divisao territorial, sao associadas ao estigma do castigo divino'' e, consequentemente, marcadas de forma sobremaneira negativa. Com base neste a priori disférico, decorre todo 0 peso critico que condenaré os variadissimos exemplos de guerras civis cujas consequéncias sio sempre apresentadas como funestas, desde 0 caso mitico dos filhos do rei Rotas ao dos diversos combates que opuseram Pompeu e seus partidarios a Jtilio César'?, Esta situacao vird, posteriormente, a espelhar-se nas guerras fratricidas ocorridas entre os filhos do rei D. Sancho de Navarra, Garcia, Fernando e Ramiro, senhores, respectivamente, de Navarra e da Cantabria, de Castela e de Aragdo (PCG: II, 474 sgts); bem como nas contendas que opuseram os filhos do rei Fernando I, Sancho, Afonso e Garcia, soberanos, respectivamente, de Castela, de Ledo e de Portugal e Galiza (PCG: II, 493 sgts). No entanto, também depois destes periodos de divisdo e de combates, "Caso das destruigdes referidas na PCG: cap. 14-15 (pelos “almuiuces”. os de Flandres e de Inglaterra) ou das invasdes dos vandalos, silingios, alanos € suevos que irrompem pelo Império Romano. Estes momentos podem, de certa forma, reproduzir, & escala da Peninsula, o que catéstrofes, como a expulsio do Paraiso, 0 Dilivio ou a destruigio da Torre de Babel terio significado para a Humanidade. Acresce ainda 0 facto de, no pranto pela destruigio da Espanha, aquando da invas mugulmana, alm da recordagio das outras destruigdes anteriores, ainda serem estabelecidas comparagies com grandes cidades igualmente flageladas como Babilsnia, Roma, Jerusalém ou Cartago (PCG: I, 313 - cap. 559). "que nuestro sennor Dios danno el Lenguaje en tal guisa ques non entendien unos a otros, ¢ poresta razon solamientre fueron departidos en fos lenguajes. mas aun en las woluntades, de manera {que non quisieron morar unos con otros.” (PCG: I, 4b). Esta imagem punitiva é acentuada, um pouco depois. com 0 castigo dos judeus, desterrados e cativos pelo mundo apés a destruigdo de Jerusalém pelo imperador Adriano (PCG: 1, 148-9 cap. 199), © Depois relembrados explicitamente quando Otdo manda matar Galba (PCG: cap. 179), Do mesmo modo, num momento em que se verificam desavengas ¢ destruigdes na Ju estabelecida uma comparagio com a desordem que sobreveio quando Jesus Cristo foi morto Barrabis libertado (PCG: cap. 183). is Isabel Barros Dias numa sucesso alternante, ressurgem novas e elogiadas reunificagdes, primeiro com Fernando I e, depois, com Afonso VI". Verificamos, assim, como o estabelecimento de ligagdes entre diversas personagens, com base em ancoragens, ou seja, no assinalar de espagos urbanos determinados constitui um vector importante para a construgio de analogias que, no seu todo, se revelam como particularmente significantes, fundamentais, mesmo, para a manutengdo da coeréncia interna da obra, nomeadamente na medida em que contribuem para veicular mensagens ideolégicas concretas. Desta forma, a historiografia constitui, efectivamente, uma eficiente arma de combate politico e ideolégico, sobretudo se tivermos em conta 0 contexto mais geral das ambi¢ées unificadoras e imperiais do rei Sabio bem como a forma subtil como a sua historiografia usa outras ferramentas retéricas para a defesa dos mesmos valores, caso da genealogia'! ou da apresentacao de sinais premonitérios, interpretados profeticamente em prol dos interesses do soberano mecenas'’. "Para uma nogio dos testemunhos existentes dos trechos que acabamos de referir, tanto na versio primitiva, como na versio critica, ver Inés Ferndndez-Orddiiez, op. cit (2000). pp. 228-230 23: " Caso da referéncia a uma curiosa linhagem que, na General Estoria, procura ligar os antepassados imperiais de Afonso X a linha mais ilustre da Antiguidade clissica. tragando a ascendéncia dos Staufen até ao proprio Jupiter (Afonso X (ed. de Anténio G. Solalinde), General Estoria, Primera Parte, Madrid, Centro de Estudios Hist6ricos, 1930. pp. 200-201), Esta construgio Parece constituir um fio privilegiado de figuras excepcionais no seio do paradigma positive. A semelhanga da rememoragao dos bons exemplos que visa, em ultima andlise, a sua superagio no Presente, também a linha de excepgio apontada remeteria para um representante coevo impar, um papel ao qual Afonso X provavelmente no se furtaria, '* As figuras de excepgiio podem também ser alvo de profecias, agoiros, sonhos, sinais ou milagres. E 0 caso de Hércules e Julio César. Adriano cumpre uma profecia de Daniel (PCG: I, 148 — cap. 199) e Bamba € agraciado, seja com sinais, como o da abelha (I, 284 - cap. 513), seja com milagres (1, 323 - cap. 568). Mais referéncias a agoiros, sonhos ou sinais dirigidos a personagens diversas. positivas ou negativas, surgem na PCG: 1. 25 (cap. 37), 38 (cap. 57), 97 (cap. 122), 115 (cap. 164), 118 (cap. 166), 120 (cap. 169). 127 (cap. 178), 201 (cap. 349), 255 (cap. 452), 269 (cap. 487) ou 274 (cap. 494), Finalmente, o proprio Afonso X, surge como o destino implicito da explicagio de um fenémeno que se realiza aquando do nascimento de Jesus Cristo, remetendo-o para‘o tio ambicionado Império (PCG: 1, 108), 116

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