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A CÂMARA DA PAZ

Antonio de La Maria

Tarde da noite, quase madrugada. Ao meu redor, a silenciosa Morada. Após


um dia de intensa atividade, projetos, planos e conversas, a quietude
novamente se fez. Preparo-me para o momento pelo qual há muito tenho
aguardado. Á frente, a escada em caracol, símbolo da espiral mística pela qual
devo ascender até... até onde?

Subo devagar, sem ruídos, mas expectante, o coração respirando forte.


Lembro de descrições feitas, de impressões relatadas. Mas nada se compara
ao sentimento de se estar a alguns passos do... lugar? No alto da escada, o
momento da purificação - lavar as mãos, beber a água:

“Assim como esta água purifica minhas mãos, possa sempre a Presença
Cósmica purificar meus atos! Assim como esta água purifica o interior de meu
corpo, possa sempre a Presença Cósmica purificar meus pensamentos e
minhas palavras!”

Mais três degraus até a Câmara. Já os vi antes, já estive diante deles. Não
aqui, mas em outro local também sagrado, em outra circunstancia a cada vez
especial e única, mesmo que repetida à exaustão. Entro, enfim! E sou
recebido! Finalmente, estou aqui!

Reverência... Solenidade... Atemporalidade... Exaltação!... Alegria, alegria,


alegria!...

E paz...

Estou no Útero! O Espelho flutuante reflete minha verdadeira face, o que


realmente sou. O perfume do incenso se mescla com os aromas que vêm da
mata. Sua fumaça se confunde com a névoa da agora madrugada, e que me
invade e me lembra a infância. Ouço as palavras de meu próprio coração que,
silenciosamente, são mais eloquentes do que todos os discursos já escritos.
E minha Alma se lembra de erros cometidos, de faltas, de omissões e de
excessos. Se lembra da humana natureza e do pecado original. Lágrimas
sulcam a face cansada, e brilham no Espelho, à luz dos círios que nunca se
consomem. Então a Alma se recorda também da Inocência Original! Do
Retorno! Da Reintegração! E fala...

Revela o que já havia sido revelado, mas que a máscara do ego havia,
engenhosamente, ocultado.

Mostra que as coisas mais simples são sempre as mais estáveis, e vice-versa.

Mostra que amar DE VERDADE não é estar, é ser; não é mais ou menos, ou
quando, é tudo e sempre; não é possuir, é dar, libertar; não é restringir,
guardar, é participar, compartilhar; não é roupa, é pele; não é azul, rosa ou
vermelho, é luz; não é julgar, é confiar; não é ter, é pertencer; não é pensar, é
sentir. Amar é estar em paz.

... que é mais fácil e agradável para o ego hostilizar, ironizar, dividir, segregar,
rejeitar e ignorar, mas é infinitamente mais luminoso, puro, harmonioso e
evolutivo compreender, tolerar, respeitar, perdoar, aceitar e conviver.

...que é preciso estar atento e sensível, a cada instante, ao "invisível aos


olhos", às entrelinhas da vida.

...que ingenuidade, inocência, pureza, sinceridade e autenticidade são jóias


raríssimas, cujo real valor é impossível de ser avaliado por quem se espanta,
se maravilha, se engana e se contenta com vidro comum, latão amassado e
papelão velho.

...que sou feliz quando estou em harmonia com as circunstâncias, situações e


contingências, e vou em sua direção devagar, dia após dia, percorrendo a vida,
seus caminhos e desertos, montanhas e vales, rios, pântanos, cruzando
pontes, florestas e mares, noites e dias, caindo, levantando, caindo de novo e
levantando...

...que de vez em quando preciso parar tudo e ajeitar o Quarto de meu Ser, abrir
as janelas para a Luz entrar, arrumar a bagunça, colocar tudo em ordem,
limpar a sujeira, e me livrar de sentimentos inúteis, de coisas que me ligam ao
que já se foi. Dói, mas é preciso, pra se ter o Quarto da Alma sempre limpinho,
gostoso e aconchegante.

...que somos seres que mudam porque esta é a Lei; que a mente é o mundo.

...que a vida e a consciência continuam pelo tempo e o espaço, e estes são


apenas ferramentas necessárias a elas;

...que há uma Intenção Cósmica presente em tudo, e que se manifesta através


de três atributos de nosso próprio ser: Inteligência (como percepção e
discernimento - Luz), Energia (como poder e vitalidade - Vida) e a sutil mas
inequívoca certeza de uma Unidade íntima de tudo o que vive - Amor.
Saio, enfim, daquele lugar que é, já, meu Lar. Estrada à frente, o Amanhecer
se aproximando. E me entrego, então, à vida e ao mundo, coração inundado de
gratidão e felicidade, mãos prontas para o Serviço, olhar voltado para onde o
Cósmico apontar.

Morada do Silêncio (Chaminé da Serra – PR), Outubro, 2009

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