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HISTORIOGRAFIA DO PROTESTANTISMO NO BRASIL:

PERCURSOS E PERSPECTIVAS *
Dossiê

Bertone de Oliveira Sousa**

Resumo: o presente artigo busca refletir sobre a construção do campo de pesquisas acerca
do protestantismo na historiografia brasileira, a partir de uma discussão interdisciplinar e
enfocando as principais obras, autores e formas de abordagens sobre esse tema no Brasil.
A delimitação de um campo de abordagem do fenômeno protestante, especialmente do
neopentecostalismo, ainda é um desafio à história do tempo presente, sendo uma área
na qual diversos historiadores têm se inserido contribuindo com teses e dissertações.
Sendo incipiente, uma historiografia do protestantismo brasileiro é um caminho aberto
a muitos pesquisadores.

Palavras-chave: Guerra. Protestantismo. História. Brasil.

HISTORIOGRAPHY OF PROTESTANTISM IN BRAZIL: PATHS AND PERSPECTIVES

Abstract: this essay reflects on the construction of a field of research on Protestantism


in Brazilian history, from an interdisciplinary discussion and focusing on major works,
authors and types of approaches on this issue in Brazil. The delineation of an approach
of the Protestant phenomenon, especially the neo-Pentecostalism is still a challenge to the
history of this time, being an area in which many historians have already been inserted
contributing theses and dissertations. Being in its infancy, a history of Protestantism in
Brazil is a path open to many researchers.

Keywords: Protestantism. History. Brazil.

M
uitos estudos sobre o Protestantismo têm sido realizados no Brasil desde meados do século
XX. Em sua maior parte, essas pesquisas se deram no campo da Sociologia e da Antropolo-
gia. Apenas recentemente, os historiadores brasileiros vêm se voltando para essa temática,
lançando mão, sobretudo, de conceitos da História Cultural e da metodologia da História Oral. No
entanto, esses trabalhos são principalmente teses de doutorado e dissertações de mestrado, ainda não

* Recebido em: 10.09.2012. Aprovado em: 30.09.2012.


** Doutorando em História pela Universidade Federal de Goias. Professor Assistente do curso de História da
Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaína. Bolsista pela CAPES. E-mail: bertonesousa@
hotmail.com

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publicados. Nesse texto, pretendemos elencar os principais autores e tendências nas abordagens que
têm sido feitas acerca do protestantismo brasileiro e mostrar que se trata de um campo de pesquisa
amplo, aberto aos historiadores da religião e da história do tempo presente que pretendem se debruçar
sobre as características dessa religiosidade.
Por isso, não pretendemos citar todos os autores e tendências que se destacaram como abor-
dagens históricas do protestantismo, até porque eles têm se tornado relativamente numerosos nas
últimas duas décadas. Este texto pretende principalmente problematizar referenciais metodológicos
e abordagens, apontando vias de acesso ao pesquisador que pretende se debruçar sobre a temática
protestantismo/pentecostalismo.

PRINCIPAIS ABORDAGENS DO PROTESTANTISMO NO BRASIL

O protestantismo ainda é um tema relativamente pouco estudado pela historiografia brasileira.


Até cerca de 1960, a maior parte dos estudos sobre sua atuação no Brasil era realizada por clérigos e
apresentava caráter hagiográfico e com finalidades eclesiásticas. Tratava-se de obras de caráter des-
critivo, cronológico e que narravam indícios da atuação do sobrenatural sobre os pais fundadores, ao
estilo de Atos dos Apóstolos (WATANABE, 2007, p. 03). Congregacionais, presbiterianos e metodistas
foram os principais segmentos de produção de material acerca de suas igrejas. Mesmo recentemente,
grande parte dos trabalhos sobre este objeto tem sido produzida em cursos de Sociologia, Antropo-
logia e “Ciências da Religião”.
O historiador francês Émille G. Léonard, que veio ao Brasil no final da década de 1940 para
lecionar na USP, foi um dos primeiros a fazer uma abordagem histórica das religiões protestantes
no Brasil, numa obra intitulada “O Protestantismo Brasileiro”, somente reunida em livro no ano de
1963 (dois anos após a morte do autor). Nela, o autor inicia fazendo uma delimitação de fontes, para
dissertar desde o estabelecimento das primeiras missões estrangeiras, passando pelas reações dentro
do catolicismo hegemônico, até os problemas eclesiásticos ocorridos no interior do protestantismo
a partir da separação e fundação de novas igrejas (LÉONARD, 2002). O pesquisador francês, que
escreveu também uma obra sobre o protestantismo em geral, veio ao Brasil recomendado por Lucien
Febvre para lecionar História Moderna e Contemporânea na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da USP. Produziu aqui uma obra pioneira que orientou muitos pesquisadores.
O seu livro supera as narrativas hagiográficas anteriores, munindo pesquisadores posteriores
de uma rigorosa pesquisa documental e da aplicação de um método de investigação histórico próprio
a um trabalho científico. Nesse sentido, ele descortina os embates que o protestantismo travou com
o catolicismo para ganhar espaço no Brasil, mostrando a importância das missões estrangeiras para
sua consolidação. Não deixa de notar, por exemplo, a influência da Guerra de Secessão nos Estados
Unidos, que impulsionou a imigração de muitos sulistas confederados para o Brasil, especialmente
São Paulo, sendo “em sua maioria, presbiterianos, metodistas e batistas. Entre eles se encontravam
vários pastores destas denominações” (LÉONARD, 2002, p. 85).
Esse protestantismo de missão, como viria a ser chamado, recrutou prosélitos não apenas
entre as camadas sociais menos favorecidas, mas também entre intelectuais e aristocratas. Também
dissertou a respeito da formação de comunidades evangélicas autônomas, isto é, sem a intervenção
de missionários, sobretudo no sertão, onde viagens eram dificultadas por falta de estradas, transpor-
te e pelas distâncias; passando pelas crises internas, cisões (como a divisão da igreja presbiteriana
em virtude do debate a respeito da questão da maçonaria), a contínua reação católica, sobretudo na
República, a fim de salvaguardar seu espaço de atuação e sua posição de religião hegemônica, até
fazer algumas considerações sobre o pentecostalismo. A obra de Léonard, portanto, permanece um
referencial a pesquisadores do tema, tanto pelas preciosas informações que contém como também,
conforme ressaltado, pelo seu pioneirismo enquanto projeto historiográfico sobre o protestantismo.
A partir da década de 1970, a Sociologia da Religião se desenvolveu no Brasil e diversos órgãos
de pesquisa passaram a realizar levantamentos acerca do protestantismo de missão e do pentecos-
talismo, como o ISER (Instituto de Estudos da Religião), fundado em 1971 e o CEHILA (Comissão
de Estudos da História da Igreja na América Latina e no Caribe), em 1973. Nesse mesmo período,
destacaram-se autores como Cândido Procópio Ferreira de Camargo, Regina Novaes, Beatriz Muniz

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de Souza, Francisco Cartaxo Rolim e Rubem Alves, que usaram de ampla documentação histórica,
pesquisas de campo e repertórios teórico-metodológico da Sociologia para compreenderem o fenô-
meno protestante no Brasil.
Na década de 1980, distinguem-se os trabalhos de Antonio Gouvêa Mendonça. Diferindo no
tocante aos métodos de abordagem, sua principal obra é “O Celeste Porvir”, originalmente uma tese
de doutorado em Sociologia, defendida junto ao Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Nessa obra, Mendonça analisou a evolução do pensa-
mento protestante, sobretudo calvinista, e as feições que assumiu nos Estados Unidos, onde a formação
de uma “religião civil americana”, aliada à “Doutrina do Destino Manifesto”, impulsionou diversas
missões religiosas daquele país para outras partes do mundo.
Mendonça também investigou a atuação do metodismo na América do Norte, seus embates
com o catolicismo, quando as migrações oriundas de países europeus majoritariamente católicos se
intensificaram no século XIX. A seguir, enfatizou os aspectos fundantes do protestantismo de mis-
são no Brasil novecentista, a partir da atuação de missionários norte-americanos. O autor se deteve
especialmente no presbiterianismo, focando no principal hinário usado por esta e outras igrejas
reformadas, o “Salmos e Hinos”, a fim de compreender o protestantismo rural brasileiro no século
XIX e o impacto das missões estrangeiras e na assimilação dessas doutrinas pelos grupos que a ela se
converteram (MENDONÇA, 2008).
O autor dissertou também acerca da relação conflituosa entre o protestantismo missionário
e o catolicismo, especialmente no sertão, onde a recepção e aceitação da nova mensagem era mais
complexa, devido às diferenças litúrgicas entre os credos e ao analfabetismo da população2; pesava
também a distância entre os núcleos populacionais no interior do país, as dificuldades de locomoção
de missionários no século XIX e ainda o temor de parte da população de sofrer expropriação religiosa
ou de seus domínios em caso de aceitação da nova mensagem. Concluiu que o proselitismo religioso
de algumas facções protestantes não se coadunava com o caráter rural e fortemente católico do sertão
brasileiro do século XIX.
Tendo sido pastor presbiteriano, Mendonça rompeu também o hagiografismo eclesiástico pre-
cedente e produziu uma obra inovadora, unindo o rigor metodológico a uma densa pesquisa biblio-
gráfica e documental. Usando como fonte principal o hinário supracitado, esquadrinhou o universo
mental do recém-instalado protestantismo brasileiro do século XIX e sua marginalização, em grande
parte espontânea, em relação à cultura local, da qual se sentia e permaneceu estranho por cerca de
um século, devido à sua origem estrangeira, p. 51.
Em outro texto (MENDONÇA, 2005), o autor introduz novo debate, ao problematizar o termo
“protestantismo” e diferenciar as diversas tendências em seu interior, e conclui que não há um pro-
testantismo genuinamente brasileiro, haja vista sua forte ligação com as matrizes teológicas norte-
-americanas e/ou sua dependência teológica daquele país; o autor divide a trajetória dessa religião no
Brasil em quatro períodos: a sua implantação, de 1824 a 1916, com a chegada das missões vindas da
Europa e Estados Unidos, suas relações com a escravidão e a sociedade brasileira e o dilema “converter
ou civilizar” que dividia parte dos protestantes.
O segundo período ele denomina de Projeto de Cooperação e Unionismo, de 1916 a 1952,
quando houve uma tentativa de aproximação entre as diferentes igrejas evangélicas, de superação
das diferenças teológicas e do desenvolvimento de programas evangelísticos. Por outro lado, houve
bloqueio à entrada do Evangelho social no país e a emergência do fundamentalismo como reação ao
liberalismo teológico e aos métodos da ciência moderna, especialmente o evolucionismo3. O autor
também pontua que apesar de a Era Vargas ter refletido no protestantismo com a busca pela autonomia
administrativa das igrejas, que ele denomina de “nacionalismo protestante” (MENDONÇA, 2005,
p. 59), a literatura voltada para a educação religiosa continuou baseada no modelo norte-americano,
não havendo, portanto, abertura para a autonomia cultural do protestantismo brasileiro. No entanto,
o nacionalismo, a industrialização e os agravantes sociais dela decorrentes foram a semente para a
formação de uma nova consciência nos cursos de teologia protestantes.
Na periodização de Mendonça, a terceira fase tem duração de dez anos, de 1952 a 1962 e foi
marcado pela chegada de novas teologias, introduzidas por uma juventude burguesa intelectualizada
e universitária que passaram a se voltar para os aspectos sociais da vivência religiosa. Nesse sentido,

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as leituras de Karl Barth (1886-1968), Rudolf Bultmann (1884-1976) e Dietrich Bonhoeffer (1906-
1945) foram importantes em muitos seminários do Brasil. Para Barth, por exemplo, que se opusera
ao nazismo, a construção de um mundo justo era possível desde que os cristãos não se conformassem
(MENDONÇA, 2005, p. 60).
O quarto e último período, o autor denominou de “repressão e isolacionismo das igrejas: 1962-
1983” (MENDONÇA, 2005, p. 61), marcado pela pressão fundamentalista externa e interna e a iden-
tificação que os setores conservadores das igrejas faziam entre ecumenismo e comunismo que, aliado
ao regime militar que passou a vigorar a partir de 1964, “provocaram o expurgo progressivo da ala
chamada liberal ou modernista das igrejas representada por estudantes universitários, seminaristas
e jovens pastores” (MENDONÇA, 2005, p. 64).
Todavia, se os trabalhos citados de Mendonça representaram importantes contribuições para
a historiografia do protestantismo brasileiro, os mesmos encômios não podem ser feitos em relação
a uma obra que escreveu em parceria com Prócoro Velasques Filho, “Introdução ao Protestantismo
no Brasil”, publicada conjuntamente pela editora Loyola e o Programa Ecumênico de Pós-Graduação
em Ciências da Religião. Nesta, os autores abordam diferentes temas, desde a questão religiosa no
século XIX, envolvendo divergências entre a Igreja Católica e o Império Brasileiro e os benefícios que
o protestantismo logrou desse evento, passando por diagnósticos dos cultos protestantes, o cresci-
mento dos pentecostalismos e do fundamentalismo e sua forte ligação com representações de mundo
conservadoras.
Não obstante a abordagem histórica que fazem, a obra resvala em tentativa de escoimar o pro-
testantismo de sua herança imperialista (sobretudo nos ensaios de Prócoro Velasques), aculturante
e excessivamente dogmática (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 2000, p. 230). O texto enfatiza
o “compromisso maior com Jesus Cristo” e afirma que “a verdadeira conversão deve estar voltada
para Deus e seus propósitos” e que ela [a conversão] reflete a “gratuidade do perdão e da graça” (p.
230); outras passagens explicitam a defesa de uma religiosidade pura e de uma transcendência a ela
subjacente, além de lições moralistas sobre amor ao próximo ((MENDONÇA; VELASQUES FILHO,
2000, p. 9, 230).
A obra carece, portanto, do distanciamento e do formalismo necessários a uma pesquisa
científica. Tais questões não comprometem de todo o trabalho de Mendonça e Velasques Filho, mas
esvaziam sua pretensão historiográfica, ficando como exemplo de algo que o historiador não deve
fazer; o livro também não possui introdução, nem delimitação de fontes e exposição metodológica,
o que deixa o leitor em dúvida acerca do direcionamento teórico que os autores pretendem dar, pre-
dominando o estilo ensaístico.
Posicionamento diferente e condizente com um trabalho acadêmico é adotado pelos autores
do livro Brasil & EUA: religião e identidade nacional, de 1988, entre eles Roberto DaMatta, Carlos
Rodrigues Brandão, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Rubem César Fernandes. Os autores trabalham
dentro de um panorama teórico-metodológico definido. Brandão e Queiroz, por exemplo, enfocam a
religião a partir de aspectos identitários da formação da sociedade brasileira e dos diferentes credos
formadores desta cultura.
No ensaio intitulado Ser Católico: dimensões brasileiras – um estudo sobre a atribuição da iden-
tidade através da religião, Brandão examina a construção de identidades religiosas no Brasil contem-
porâneo, a pluralidade de credos e suas relações com o catolicismo; identifica ainda aspectos subjetivos
nessa diferenciação referentes à participação do fiel na comunidade religiosa (BRANDÃO, 1988, p. 50):

Diferentemente do protestantismo, onde o fiel precisa ser para participar [...] no catolicismo, tal
como o povo brasileiro o vive e significa, há uma pluralidade de modos de ser que configuram
uma equivalente pluralidade de maneiras de participar.

Nesse sentido, este trabalho aproxima-se do enfoque acima por primar pela investigação da
formação e afirmação da identidade assembleiana em Imperatriz, no Maranhão, nosso atual foco de
investigação. Ao tratar da conversão e do testemunho, por exemplo, é possível perceber como a par-
ticipação do assembleiano nos cultos está intimamente vinculada ao seu “ser” pentecostal, ou seja, à
assimilação de um modo de agir e pensar peculiar ao grupo a que pertence. Isso é importante, pois

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redefine uma história individual a partir de sua adesão à história de uma comunidade religiosa, com
quem passa a compartilhar uma identidade e uma memória comuns.
A partir da década de 1990 diversos pesquisadores intensificaram os esforços na produção
acadêmica e compreensão do crescimento do protestantismo no Brasil, entre os quais se destacam
os trabalhos de Pierucci e Prandi (19960, A Realidade Social das Religiões no Brasil; Mariano (2005),
Neopentecostais: nova sociologia do pentecostalismo no Brasil; Corten (1996), Os Pobres e o Espírito
Santo; o trabalho organizado por Antoniazzi (1994), Nem Anjos nem Demônios: interpretações socio-
lógicas do pentecostalismo (1994) e Bittencourt Filho (2003), Matriz Religiosa Brasileira: Religiosidade
e mudança social.
Neste último trabalho, Bittencourt Filho (2003, p. 17) busca defender a tese de que há uma
matriz religiosa neste país, “que provê um acervo de valores religiosos e simbólicos característicos,
assim como propicia uma religiosidade ampla e difusa entre os brasileiros”. Para o autor, essa matriz
se formou a partir do resultado do encontro entre diferentes culturas e visões de mundo. No período
colonial, por exemplo, duas grandes concepções se relacionaram: “uma, que sacralizava o ambiente
natural e as forças espirituais a ele subjacentes; outra, que ressaltava símbolos religiosos abstratos e
transcendentais” (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 49). Para ele, houve uma simbiose desses ele-
mentos (o primeiro, predominantemente indígena e africana e o segundo, cristão) na formação da
religiosidade brasileira. Naturalmente, o protestantismo que aqui se formou, também foi afetado por
essa simbiose, sobretudo em suas vertentes pentecostais e neopentecostais. Mas também, e em menor
escala, estiveram presentes elementos muçulmanos e judaicos nessa formação.
Assim, por exemplo, ao usar o recurso da magia para resolver problemas cotidianos, mes-
clando suas práticas rituais e simbólicas com a de outros credos, o neopentecostalismo promove um
deslocamento em relação ao protestantismo clássico (oriundo da Reforma), ou seja, “de verdade e de
certeza sobre o mundo, passa a ser uma resposta localizada a problemas localizados” (BITTENCOURT
FILHO, 2003, p. 81). O autor também enfatiza que, nas últimas décadas, com a difusão dos meios de
comunicação de massa e do movimento Nova Era, as igrejas tradicionais perderam espaço para um
tipo de religiosidade que valoriza o bem-estar espiritual, a subjetividade, o misticismo e a expressão
de sentimentos, não raramente difusos. O Neopentecostalismo se inscreve nesse contexto ao oferecer
um modelo religioso centrado no tripé cura, exorcismo e prosperidade.
Nos últimos dez anos tem se destacado a atuação da Associação Brasileira de História das Re-
ligiões (ABHR) e as publicações a ela vinculadas. É importante incluir uma obra recente, que parte
do diálogo interdisciplinar, com ensaios redigidos por vários autores e organizados por João Cesário
Leonel Ferreira, “Novas Perspectivas Sobre o Protestantismo Brasileiro”, de 2008. Os ensaios variam de
perspectiva conforme o autor e o objeto: História Cultural, Sociologia, Linguística, Teologia. A partir
dessa leitura polissêmica, os autores traçam um panorama dos diversos matizes do protestantismo
brasileiro, rural e urbano, analisando seu papel na mídia, suas estratégias de difusão, seus aspectos
litúrgicos, sua relação com a modernidade, entre outras questões.

PROTESTANTISMO E TEMPO PRESENTE: UM DESAFIO À HISTORIOGRAFIA

Seguindo a trilha deixada por diversas obras produzidas, sobretudo nas últimas duas décadas,
e propondo-se a construir uma abordagem renovada, é necessário que o historiador lance mão do
diálogo interdisciplinar e da oralidade, além do manejo com diversos tipos de fontes que possam
auxiliar a pesquisa: registros eclesiásticos, mensagens gravadas, documentos eletrônicos.
Desde a década de 1980, a contestação de um padrão historiográfico que prioriza a “visão
retrospectiva” dos fatos, isto é, o recuo no tempo em relação ao objeto investigado pelo historiador
para garantir a distância necessária ao melhor exercício de seu ofício, abriu espaço para a inclusão de
temas contemporâneos e sua incorporação à história, à valorização das experiências individuais e da
oralidade, pela sua importância no resgate dessa vivência (FERREIRA, 2002). Se, por muito tempo,
o contemporâneo esteve proscrito dos clássicos da historiografia4, por outro lado, a aceleração dos
acontecimentos na modernidade tardia e o paradigma proposto pela História Nova e a Nova História
Cultural abriram novos horizontes à pesquisa histórica, como o tempo presente. Um dos aspectos
positivos do debate historiográfico que vem sendo feito a partir dos Annales é a mudança paradig-

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mática no tocante à ampliação da noção de documento histórico, que se torna ainda mais relevante
em nossos dias com a expansão dos meios de comunicação, diários, iconografia, entre outros, pelos
quais o historiador pode lançar mão. Como assinalam Karnal e Tatsch (2009, p. 22):

A expansão documental não diz respeito apenas a novos objetos ou à inclusão de personagens
comuns, mas ao próprio caráter holístico do trabalho. Assim, o documento escrito clássico passou
a ser somado ao documento arqueológico, à fonte iconográfica, ao relato oral (quando possível), a
análises seriais e a todo e qualquer mecanismo que possibilite uma interpretação. Não foi apenas
a noção de documento impresso que ficou ultrapassada; foi o próprio trabalho de um historiador
que apenas lia livros sobre um tema e ilustrava com fontes documentais.

Em trabalho recente (SOUSA, 2011), buscamos demonstrar como a abordagem da Análise


do Discurso pode ser importante para investigar as formações discursivas do neopentecostalismo,
especialmente mensagens e testemunhos que tratam da Teologia da Prosperidade. Mostrar as raízes
dessa teologia, os acontecimentos que marcavam a sociedade brasileira quando de sua implantação no
Brasil e perscrutar as razões de seu êxito em nossos dias é um desafio que se apresenta ao historiador
das religiões. Todo discurso possui uma historicidade e está conectado a outros discursos. O neopen-
tecostalismo tem operado mudanças substanciais no pentecostalismo brasileiro e nas formas como a
religião é praticada, daí a necessidade de analisar historicamente as características dos discursos de
seus representantes e como estes são recebidos pelos fiéis.
Este é um aspecto para o qual Chartier (2006, p. 38), também dá destaque, ao mostrar que a
articulação entre práticas e discursos é um desafio que está lançado à história cultural. Em sua obra,
a noção de “representação” tem importância central, ao que acrescentamos que, na abordagem de
um tema religioso, esse conceito torna-se fundmental na medida em que nos remete às formas pelas
quais os agentes históricos percebem a si mesmos e ao mundo. Assim, explica Chartier (2006, p. 39):

Esta noção permite, com efeito, ligar estreitamente as posições e relações sociais com o modo
como os indivíduos e grupos se concebem e concebem os outros. As representações coletivas,
definidas à maneira da sociologia durkheimiana, incorporam nos indivíduos, sob a forma de
esquemas de classificação e juízo, as próprias divisões do mundo social. São elas que suportam as
diferentes modalidades de exibição de identidade social ou de força política, tal como os signos,
os comportamentos e os ritos os dão a ver e crer. Enfim, as representações coletivas e simbólicas
encontram na existência de representantes, individuais ou coletivos, concretos ou abstratos, as
garantias da sua estabilidade e da sua continuidade.

Em Como se Escreve a História, Veyne (2008, p. 216) enfatiza que, para que possa ser completa,
a História deve incluir entre seus objetos os acontecimentos contemporâneos. Chartier (2005) vê as-
pectos positivos e promissores na história do tempo presente. Para este autor, o fato de um historiador
ser contemporâneo daqueles cujas vidas são narradas constitui um mérito, pois também pode ter um
amplo repertório de fontes à sua disponibilidade, ao passo que muitos questionamentos dos demais
historiadores podem ficar sem respostas devido a carências de documentos. Ele menciona ainda a
dificuldade que os “historiadores dos tempos consumados” têm de operar a tradução do período que
estudam em relação à superação do paradoxo existente entre a descontinuidade do “aparato intelectual,
afetivo e psíquico do historiador e dos homens e mulheres cuja história ele descreve” (CHARTIER,
2005, p. 216). Por outro lado, para os estudiosos do tempo presente, a quase inexistência dessa distância
lhes proporciona uma narrativa mais próxima das categorias e referências de seu objeto de estudo.
Chartier também enfatiza que a história do tempo presente não é menos criteriosa no tocante à ver-
dade e suas contribuições têm sido valiosas no debate entre escrita histórica e ficcional, no sentido de
corroborar a primeira como narrativa e saber contra aqueles a quem ele denominou de “falsificadores
e falsários” (CHARTIER, 2005, p. 217).
No que diz respeito ao protestantismo brasileiro, que tem se expandido de forma mais acelerada
a partir da década de 1950, sua incorporação como objeto de estudo da historiografia pode e tem enri-
quecido bastante a produção acadêmica, a partir da valorização da memória histórica desses grupos e
sua interação com os acontecimentos e as peculiaridades dos locais onde se estabeleceram. A amplia-

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ção do leque de fontes disponíveis com a expansão da internet, a consolidação da história oral e de
outros meios de divulgação tem contribuído para as pesquisas nessa área; mesmo o historiador não
vislumbrando o “fim” do acontecimento que descreve. Pode-se afirmar que isso não compromete a
qualidade do seu trabalho, nem a sua interpretação do fenômeno, pois, como afirmava Michel de
Certeau (2002, p. 66-77) o historiador fala a partir de um lugar social, quer seu objeto esteja recuado
no tempo ou ainda atuante em várias instâncias da sociedade. Para Certeau, o lugar do qual fala o
historiador torna-se “a condição de análise da sociedade” (p. 77), onde os procedimentos de análise e a
escrita se combinam na realização de seu ofício5. Nesse sentido, a História Oral, enquanto metodologia
de pesquisa, pode ainda enriquecer a pesquisa histórica, tanto pela valorização da memória histórica
desses grupos como também por ser um importante meio de produção de fontes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Reis (2006), um dos principais méritos da Escola dos Annales foi ter retirado a História do
isolamento e aproximá-la das demais ciências sociais. Durante algum tempo, os historiadores brasileiros
evitaram imiscuir-se no debate sobre o protestantismo, num contexto em que muitos pesquisadores es-
tavam voltados para as questões políticas e a militância contra a ditadura. Contudo, passado este período
e devido à ampla divulgação da História Cultural, as pesquisas históricas sobre esse tema têm vicejado
em vários departamentos de pós-graduação stricto-sensu de norte a sul do país.
Para Foucault (apud REIS, 2006, p. 79), “a história é a primeira das ciências humanas”,
fornecendo-lhes um chão, um pano de fundo e limites. Todas as pesquisas comentadas neste artigo
fizeram uma abordagem histórica do fenômeno protestante no Brasil, utilizando fontes e uma dimensão
temporal. Não pretendemos, com tal afirmação, invalidar os métodos e as contribuições das ciências
sociais, tais como a Sociologia ou a Antropologia, mas mostrar que o diálogo interdisciplinar não pode
prescindir de uma abordagem histórica e, para parafrasear Veyne (2008, p. 227), os historiadores por
muito tempo abandonaram à Sociologia tudo o que não é crônica política.
A História do Tempo Presente conclama os historiadores a mudarem essa forma de perceber
o tempo. Em decorrência disso, os historiadores que trabalham com formas de religiosidade ainda
atuantes (como os vários protestantismos) podem produzir trabalhos inovadores a partir de fontes
ainda inexploradas. Buscamos mostrar como a história oral pode ser importante nesse aspecto, como
os meios de comunicação, onde os pentecostais, por exemplo, tanto atuam, também podem ser meios
de produção de fontes para a pesquisa histórica. Portanto, investigar o protestantismo e suas rever-
berações na sociedade brasileira é, não apenas uma possibilidade, mas um dever dos historiadores.

Notas

2 “O culto protestante não inclui o gesto e a imagem, não oferece apoio ao sensível: ele é discursivo e racio-
nal, mais uma aula do que um encontro com o sagrado. O pequeno espaço reservado à emoção corre por
conta do cântico congregacional, mas os hinos também são discursos. De modo que a participação no culto
protestante exige significativo domínio da linguagem” (MENDONÇA, 2008, p. 226).
3 “[...] o fundamentalismo se define pela defesa da ortodoxia protestante a respeito da Bíblia como infalível e
acima de qualquer reinterpretação que parta da ciência moderna, especialmente o evolucionismo. O fun-
damentalismo institucionalizou-se como movimento internacional após a Segunda Guerra Mundial com
a fundação do Conselho Internacional de Igrejas Cristãs, em 1948, em Amsterdã, sob a liderança do pastor
presbiteriano norte-americano Carl McIntre (1906-2002). Voltando-se principalmente contra o movimento
ecumênico, que também se institucionalizava, O ICCC (International Council of Christian Churches), pela
voz de seu fundador, chamado pelos seus adversários de ‘apóstolo da discórdia’, promoveu crises internas
nas igrejas. As brasileiras [...] não ficaram imunes à pregação de McIntre, que esteve no Brasil ao menos
duas vezes [...]” (MENDONÇA, 2005, p. 58).
4 Ferreira (2002) chama a atenção para o fato de que, mesmo a Escola dos Annales, que priorizou o econômico
e o social em detrimento do político, manteve inalterada a relação do historiador com temas contemporâ-
neos; prova disso é que os temas medievais e modernos eram os principais objetos desses pesquisadores.
5 “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural.
Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto

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de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada
a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos,
que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes são propostas, se
organizam” (CERTEAU, 2002, p. 66-7).

Referências

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