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Arquidiocese de Porto Alegre Curso de teologia biblica 29 de maio de 2014 Como se formou 0 Novo Testamento? Jesus de Nazaré “O novo Rabi de Nazaré, depois de receber 0 batismo das maos de Jodo, da inicio ao seu ministério de Messias Salvador. Age e fala, Suas palavras e os milagres que realiza impressionam as multiddes ¢ os chefes dos judeus. Agia ¢ falava com uma autoridade (cf Me 1, 22.27; 2, 12) jamais conhecida num profeta. Perdoava todos os pecadores, sem distingao; e levantava perante 0 povo graves questdes referentes a Deus e aos irmaos. Abria 0 coragio dos discipulos, chamados por ele a segui-lo, A novidade da sua pessoa e comprometia sua vida na construgdo do Reino de Deus. Comegou falando assim: “completou-se 0 tempo. Chegou o tempo. Chegou o Reino de Deus. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). O Reino de Deus é duas coisas a0 mesmo tempo: a presenga de Deus como agio salvifica na histéria presente (= soberania de Deus), mas também o estado final escatolégico que pord fim ao velho mundo, dominadd pelo pecado e pela morte, e inauguraré o mundo novo da Ressurrei¢ao universal, também cdésmica (= reino de Deus). A soberania de Deus é para 0 presente, convoca € compromete no presente, ouve-se mediante a f€, esta liberta do mal e liberta para o bem. O Reino de Deus (juizo final, Parusia do Senhor, nova criagao) é para o futuro, é “adventus”. Toda via, nao hd descontinuidade total: 0 que no mundo futuro ser4 plenamente visivel e transparente, jé aqui esta em ago, ocultamente. Jesus de Nazaré nfo se limita a narrar as “parabolas do Reino”. Sua pessoa e sua vida constituem, sozinhas, uma impressionante parabola do Reino: “O Reino de Deus ja esta no meio de vés!” (Le 17, 21). Sua vida é logo e coerentemente marcada pelo efeito do “choque”, como se vé em Mc 2, 1-3,6. Sao cinco historias perturbadoras que obrigam as testemunhas presentes a tomar posigdo: 0 perdido dos pecados ao paralitico, a refeigao com os publicanos ¢ pecadores, a defesa dos discipulos que n&o jejuam e que colhem espigas em dia de sdbado, uma cura em dia de sabado. A conclusio das cinco histérias antecipa aquela que seré o fim: “Ao se retirarem, os fariseus com os herodianos imediatamente conspiraram contra ele sobre como o matariam” (Me 3, 6). Sobretudo dele, 0 profeta, o mundo nao era digno (cf. Hb 11, 38). A fé crista é também adesao nao facil ao modo imprevisivel, escandoloso (para os homens!) de inaugurar o Reino por parte de Jesus, Jesus devia morrer, rejeitado e crucificado pelos chefes do povo, como ele mesmo tinha anunciado (cf. Me 8, 31-33; 9 30-32); mas tinha acrescentado que “depois de trés dias ressuscitaria dos mortos”. A ressurreigio confirmou definitivamente aos olhos dos discipulos a verdade das palavras de Jesus e de toda a sua miss&o, como enyiado de Deus e Messias de Israel, como Senhor vivo. Os discipulos, fortalecidos pelas aparigoes de Jesus ressuscitado e iluminados por seu Espirito no Pentecostes, proclamam agora com total franqueza a sua fé: Jesus nao é apenas o Cristo, isto é, 0 Messias, mas € 0 Senhor € Salvador tinico, é 0 filho de Deus feito homem. Muitos entre os judeus acreditariam em Jesus Cristo € a Igreja se desenvolveu rapidamente; mas a maioria recusou Jesus ¢ a Igreja nascente. O apéstolo Paulo, também ele israelita, chamado por Cristo a levar 0 Evangelho além dos limites da Palestina, nos centros mais importantes do mundo Greco-romano, deu a rejeigdo de Israel o nome de “mistério” (Rm 11, 25): também ele, pois, misterioso projeto divino de salvagao universal” (MANUCCI, Valério Biblia Palavra de Deus, Sao Paulo, Paulus, 1986). “ [..] O NT recolhe a mensagem de esperanga do AT na plenitude dos tempos. A finalidade da eleigdo de Israel — ser instrumento de bengao para todos os povos da terra -, € cumprida no Salvador surgido deste povo eleito. Israel é figura de Cristo pois Ele é 0 Eleito de Deus —o Filho ¢ 0 Amado ~ para trazer a salvago a todos os homens, e com Ele, e através dEle, 0 naimero dos eleitos ultrapassou de maneira inimaginavel, qualquer limitagiio. Se no Pentateuco a eleigdo esté unida & promessa, no NT ensina-se-nos que as promessas se tinham cumprido em e por Cristo. Promessas que, a0 longo da histéria da salvagao narrada no At, vaio para além “da posse da terra” para apontar 0 Reino de Deus no NT. O Reino veio com Cristo: instaura uma nova situagio e a sua chegada definitiva continua a ser uma promessa irrevogavel. As aliangas que ratificaram a eleigdo — com Noé, Abraao e Moisés — e as promessas — com Abrafio e David — culminam na nova e definitiva Alianga selada com © Sangue de Cristo. A <>,no entanto, ficaria incompreensivel sem a <>, que com 0 seu contetido préprio era preparacdo da definitiva. Os efeitos desta Nova Alianga so muito superiores aos da Antiga: perdoa e apaga os pecados; Deus habita entre os homens; muda 0 coragdo dos homens e da-lhes © seu espirito. J4 nfo é uma alianga da letra, mas do espirito (Cf II Cor 3, 6), que torna possivel a liberdade dos filhos de Deus; e abarca todas as nagdes em conjunto com Israel, pois o sangue de Cristo refez a unidade do género humano (Cf Rom 5, 5; 8, 4; 11, 27; II Cor 3, 6; Gal 4, 24; Ef 2, 12 ss). A felicidatle que Jesus Cristo nos promete nas Bem Aventurangas preenche a vida do cristo, alimenta a sua esperanga na terra, tanto no meio da afligao e da dor, como na alegria e prosperidade. O cristo sabe que é <> na honra e na desonra, na escassez e na abundancia, na satide e na doenga. O discipulo de Jesus sabe que foi redimido pela sua Paixiio e Morte, e destinado a uma vida eterna com Cristo em Deus. A Nova Alianga nao alcangou ainda a sua plenitude, falta a consumagdo final, € por isso deve ser contemplada com um sentido escatoldgico: a alianga eterna ser a felicidade na morada definitiva dos homens com Deus (Cf. Apoe 21, 3-5). Com a Nova Alianga, revela-se a Nova Lei que, fundamentada também sobre a Antiga, se apresenta agora como Lei de Cristo, lei de liberdade, lei da caridade, impressa no interior do homem pelo Espirito Santo. Em todos estes aspectos, a Lei mosaica ou Tord, era e continua a ser, como ensina S. Paulo, 0 pedagogo que nos conduz a Cristo: uma vez mais a pedagogia divina prepara — agora por meio da Lei —a chegada do Evangelho (Cf. Gal 3, 24-5; CF CIC, 1963-1964). Os livros histéricos do AT constituem a verdadeira pré-historia da Igreja, pela quantidade de figuras que a anunciam. Israel, desde a alianga do Sinai, é constituido como a comunidade de lavé — gelal yahweh -, que os LXX (setenta sdbios de Alexandria) traduzem ekklesia tou K yriou ( Igreja do Senhor). © antigo povo de Deus sera substituido pelo novo, a Igreja de Jesus Cristo. Diziam jé 0s primeiros cristdios que © mundo foi criado em ordem a Igreja; a reunido dos homens num novo povo é a reag&o de Deus perante 0 caos provocado pelo pecado. A prefiguragao remota da Igreja comega com a vocagao de Abraiio e a prefiguragao imediata com a eleigao de Israel como povo de Deus. Jesus de Nazaré, ao realizar em si o plano de salvagiio de seu Pai Deus, na plenitude dos tempos funda a Igreja com 0 <> (Lumen Gentium, 5; ef. CIC, 760-763). A Igreja é, pois, a semente © comego deste Reino na terra (Cf LG, 5; CIC, 768). O Reino ou Reinado de Deus transcende a realidade e 0 conceito que os hebreus tinham forjado dele. Mesmo os Apéstolos de Jesus, poucos dias depois da Ressurreigaio do Senhor, nao tinham ainda superado esta visio terrena do Reinado de Deus (Cf At 1, 6-7; CIC 764-766). O Reino que Jesus Cristo iniciou na terra, nao atingiré a sua plenitude se no quando, no fim do mundo atual, Cristo voltar glorioso, para julgar os vivos ¢ os mortos e entregar ao Pai o Reino Eterno. Quer dizer, a plenitude da realidade desse Reino nao se verificaré neste mundo: comega com a primeira vinda de Cristo na humildade da carne, através da qual realiza a Redengiio do género humano, e sera instaurado definitivamente depois da sua segunda vinda ou Parusia. Entretanto, <> (LG, 49; cf 1 Cor 15, 24; Jo 18, 36-37). O Templo de Jerusalém construido por Salomao, e reconstruido, depois do cativeiro da Babildnia, em tempos de Zorobabel, foi o que viu e onde rezou Jesus. Tal como os profetas, Jesus nao reprova os cultos ali realizados, e denuncia a superficialidade com que Israel vive o culto, anuncia mesmo, com grande dor, a ruina definitiva do Templo. Cristo revela o significado maios profundo do Templo, quando, depois da expulstio dos cambistas e mercadores, os judeus Lhe pedem um sinal: << Destrui este Templo — diz- Ihes- © cu o reedificarei em trés dias>>. Cumpre-se assim a profecia, tantas vezes repetida por Deus, de que habitaria no meio dos homens (Cf Ex 25, 8; Jr 7, 3-7; Ez 43, 9; S15, 12) e que se realiza de modo pleno e inimagindvel no Corpo de Cristo. << Porque nEle habita toda a plenitude da divindade corporalmente>> (Col 2, 9). Sao Joao di-lo também no prélogo do seu Evangelho: << O Verbo se fez carne ¢ habitou entre nds>> (Jo 1, 14). O Templo de Jerusalém nao é mais que uma figura de Jesus Cristo, 0 novo e definitivo Templo, 0 verdadeiro Templo de Deus. Jesus Cristo é 0 Messias anunciado pelos profetas. Deus dé cumprimento as antigas promessas feitas a David € aos seus descendentes (Cf II Sam 7, 4-16), iniciando-se assim a linha do Messianismo real: um descendente de David, 0 <>, sera 0 Messias (Ungido de Iahweh), o Libertador, 0 Redentor. Bastantes passagens evangélicas refletem a expectativa popular do <>. Jesus tem consciéncia de ser 0 Messias, assim como 0 Filho do Homem que Daniel profetizou e 0 Servo de Iahweh do livro de Isafas. A € ¢ 0 testemunho dos Evangelistas e outros autores sagrados do NT siio clarissimos nestes pontos. Para os evangelistas, em Jesus, 0 Messias anunciado e esperado, cumprem-se as antigas profecias de salvagao divina. Tanto a sua missio como 0 seu ser, transcendem sem comparagio a figura dos rabinos ou mestres de Israel. Nas ideias expressas no AT sobre a sabedoria, os autores inspirados no NT viram um fundamento s6lido para afirmar que Jesus Cristo é a sabedoria de Deus encarnada, um apoio sélido para expor em linguagem corrente para os judeus, a gerago eterna de Cristo por Deus Pai, a sua participagao na Criag&io do mundo ¢ o seu significado para os homens. A mensagem salvifica dos Evangelhos Os Evangelhos so, sem divida, 0 coragio de todas as Escrituras <> (Dei Verbum, 18; cf CIC, 125). Foram sempre objeto da maxima honra na vida da Igreja: na sua liturgia, na pregagiio dos pastores, na meditag&o dos figis, no estudo dos seus tedlogos € nos escritos dos Santos Padres e do Magistério dos Bispos e dos Papas (Cf. CIC, 127). Aos trés primeiros — Mt, Me, e Le — chamam-se-lhes atualmente sindpticos — do termo grego sinopsis —porque se podem abranger através dum sé olhar. A palavra evangelho € a tradugdo literal (transliteragio) (Representagio dos sons de uma lingua com os sinais alfabéticos de outra) do vocébulo grego evangelion, que significa Boa Nova , Boa Noticia ¢ faz referéncia as antigas promessas feitas por Deus ao povo de Israel contidas no AT — que se cumpriram em Jesus de Nazaré. Os quatro evangelistas contam a vida de Jesus, Mateus e Lucas iniciam a narragio com noticias sobre o nascimento, infancia e preparagaio de Jesus para a sua vida publica. Jodo, por sua vez, remonta o seu prélogo — com um hino — a eternidade e divindade do Verbo no seio do Pai, expondo a Encarnagiio desse e a sua vida entre os homens, Depois os quatro — Mc aborda também este ponto — relatam a prega¢io do Baptista: a necessidade da peniténcia para receber 0 Messias esperado e um baptismo de purificagdio. Em seguida, os trés Sindpticos narram o jejum ¢ as tentagdes de Jesus no deserto durante quarenta dias, onde fica patente a superioridade de Jesus sobre Jodo Batista e sobre todos os outros profetas do AT. ‘Todas estas fases anteriores so, como ja dissemos, a preparagao de Jesus para a sua vida ptiblica e a formagio de um grupo particular de discipulos mais chegados a Ele. Através de diversos episddios ¢ ensinamentos mostra-se como Jesus passow a sua vida fazendo o bem (Cf. At 10, 38). Curava os enfermos ¢ livrava os possessos dos aldeias e pelos ISSe ESSE deménios; pregava a pequenos grupos ¢ as multidées, por povoagdes, campos; € operava milagres com o seu poder diyino, surpreendia que nao invoca: poder, porque o exercia diretamente com a sua palavra. Jesus de Nazaré demonstra um conhecimento dos mistérios de Deus, do modo de atuar divino, do reino dos Céus e da vida para além da morte, como nunca antes ninguém tinha manifestado. Refere-se, a si mesmo, poderes e qualidades,e exige dos homens uma adesio & sua pessoa, que s6 so proprios de Deus. Explica a Lei de Moisés com a mesma autoridade que Iahweh, esclarecendo o verdadeiro espirito desta. Por isso, aumenta a oposigtio dos escribas, fariseus ¢ principes dos sacerdotes, porque atua com liberdade, sem se submeter a casuistica asfixiante dos mestres da Lei. Essa oposigao culminaré com a sentenga de morte proferida pelo prefeito romano Péncio Pilatos. Jesus vai avalizando os seus ensinamentos e a veracidade do que diz, com a realizago de muitos milagres, que fazem parte da forma como Jesus leva a cabo a revelago do Pai. Os Evangelhos narram também a escolha dos doze discipulos, a quem chama apéstolos, © serao testemunhas da atividade de Jesus e a eles explica-lhes detalhadamente a sua doutrina ¢ o significado de muitos dos seus feitos. Quando Pedro confessa em Cesaréia de Filipe que Jesus é 0 Messias, estamos num ponto de inflexio do Evangelho. A partir desse episédio, o relato centra-se no caminho que Jesus percorre até a sua Morte em Jerusalém e a sua Ressurreigéo. Jesus prevé entio estes acontecimentos finais da sua vida na terra. Com a narragio dos iltimos dias do ministério em Jerusalém encerra-se nos Evangelhos a vida puiblica de Jesus. Os relatos da Paixio, Morte e Ressurreig&io referem, sem comentarios, os episédios mais importantes do fim da’ vida de Jesus Cristo: a sua prisio, interrogatérios, suplicio e crucifixdo no Calvario, uma pequena elevagaio de terreno contigua as muralhas de Jerusalém e fora da Cidade Santa; a Ressurreigéio de Jesus ao terceiro dia depois da sua morte e as diversas aparigdes e iiltimos ensinamentos aos discipulos. Por fim, os evangelistas contam-nos como Jesus, antes da Ascensao aos Céus, envia os seus apéstolos a proclamar a Boa Nova , 0 Evangelho a todos os povos ¢ a batizar aqueles que acreditassem, para a remissio dos pecados. A Tereja no livro dos Atos O livro dos Atos apresenta a salvagdo em Jesus Cristo através da Igreja. Ao longo do relato da primeira propagacao do Evangelho — tanto de judeus como pagios — Lucas, apresenta-nos 0 cumprimento da obra apostélica que Jesus confiou aos seus Apéstolos: ser suas testemunhas << até os confins da terra>> (At 1, 8). Os protagonistas escolhidos para este livro sao precisamente Pedro e Paulo. Lucas, no seu Evangelho, evidenciaria sobretudo a dimenséo salvifica da <> em Jesus; agora nos Atos faz sobressair a salvacao na missao dos apéstolos. ‘Ambos os livros possuem uma expressio argumental paralela: no Evangelho trata-se da proclamagao da Boa Nova da salvagao, da Galiléia a Jerusalém; nos Atos, de Jerusalém até Roma, ent&o centro do mundo conhecido. Até a estrutura geral dos dois livros € também paralela; no primeiro:ministério de Jesus na Galiléia, viagens de Jesus pelos territérios judaicos, da Galiléia a Jerusalém. Nos atos: propagagao do evangelho em Jerusalém e territérios limitrofes, viagens missiondrias de Paulo por paises no judeus, pregagao do evangelho em Roma. O livro dos Atos dos Apéstolos é, no seu conjunto, uma <>, porque narra o estabelecimento da nova Igreja e a propagagdo inicial do Evangelho depois da Ascensio de Jesus Cristo. Lucas, historiador e tedlogo, apresenta Jesus como © cume da histéria da misericérdia de Deus para com os homens. Através de uns episédios — num contexto geografico & temporal bem determinados — ¢ uns personagens — Pedro, Estevao, Barnabé, Paulo, etc. — enquadra as palavras ¢ os fatos de Jesus na vida incipiente da Igreja. A Igreja nasce no dia de Pentecostes pela intervengaio do “vento e do fogo” do Espirito Santo; no é um produto de uma criagéo humana, mas do Espirito de Jesus. O Espirito Santo é amor, ¢ por isso promove reconhecimento e cria unidade, como se pode notar ja na aceitag&io da diversidade e na multiplicidade de linguas. A Igreja, € pois, catdlica a partir do momento do seu nascimento, é jé a Igreja Universal. A espera do Espirito Santo é significativamente preparada pela permanéncia dos discipulos no cendculo: <> (At 1, 14). Depois da irrupgao do Espirito, aqueles primeiros fiéis da Igreja <

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