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Robert H. Hopcke JUNG, JUNGUIANOS HOMOSSEXUALIDADE re i x ke - pemossenal Rober topcke oot cuca eer BH — rnc lace ead Ss 8 aN 35.267.0599.7 ee pcolgiae 2. zane 3 Jung, Cl Ger 18751961 1. Thala 93.282 .cp0.306 766 fodion par cxdlgosiemitio: 1, Homosesldade: Soil 306765 ie OSL 2 BAFSE [Fe ‘© 1989 by Robert H. Hopeke Publicado scb acordo com Shambhala Publications In. #10. Box 308, Boston, MA. U2117 Ditetosexclusivos para o Brasil cedidos & ‘Agincia Siciliano de Livos, Jornas ¢ Revistas Leda ‘Ay, Raimundo Pereira de Magalies, 3305 ‘CEP 05145-200 — Sio Paulo — Beas Coord. editorial: Ana Ema de Olivera Revisto: Kelen G. Amaro, Roger Trimer e nats J. de Mello (Capa: Lya de Paula partir de esculua de ‘Antoine Coysevox, Caror e Poles ditora Siciliano, 1993 2 digi, 1994 u Para Paul, com amor ce para gays € lésbicas em toda pare o que é essa escuridc? esse negrume, esse impenetrivel 4 ser que desconhece limites? que se estica sem membros ‘tris do meu amor? asave Caan “A necessidade de ver" Allons! A estrada esti diante de nés.. ‘Vocé vird viajar comigo? Serf que ficaremos um com o outro enquanto vivermos? war WHTAN “A canglo da estrada aberta” Sumdrio Agradecimentos, 9 Por que Jung, junguianos e a homossexualidade? Uma breve introdugao, 13, CG. Junge a homossexualidade, 23 . As opinides ¢ teorias de Jung a respeito da homossexuali- dade, 60 Os junguianos ¢ a homossexualidade, 77 Teigias contemporaneas da homossexualidade sob uma perspectiva junguiana, 113 Em direcao a uma teoria junguiana da orientagao sexual: homens gays ¢ 0 arquétipo do feminino, 141 Imagindrio do masculino arquetipico na cultura masculina gay, 166 . O Andrégino ea cultura gay: a recuperacao de uma tradi¢ao, americana nativa para os homens gays contemporineos, 183 Conclusio: olhar para tris para poder olhar para a frente, 196 Notas, 205 Por que Jung, junguianos e a homossexualidade? Uma breve introdugio Por tris da concepeao e elaborago de todo livro ha sempre uma ‘série de impulsos, e nao estamos aqui diante de uma excegao. O titulo deste volume enuncia de modo bastante sucinto 0 objetivo deste tra- balho: examinar o que Jung € os autores junguianos tém a dizer a res- peito da homossexualidade. As razdes deste exame so, porém, nu- merosas. Sendo assim, julgo importante examinar, antes de mais nada, 08 impulsos subjacentes & elaboragao deste livro. Como é de esperar, entre esses muitos impulsos h uma intencio profundamente pessoal. Por isso, talvez-seja melhor confessar logo no inicio que este livro teve origem, em grande parte, em meu desejo de ‘compreender melhor minha propria homossexualidade, Embora mi- nha personalidade nao se limite a esse aspecto, ele sem divvida deu a ‘minha vida uma certa forma e muitas vezes exigiu que eu trilhasse um ‘camiaho muito particular. No entanto, como sou também um psicote- rapeuta que trata tanto de individuos como de casais homossexuais € heterossexuais, esse meu impulso pessoal em direcao ao autoconheci- mento tem um uso potencialmente mais amplo. Qualquer que seja esse autoconhecimento, pretendo usé-lo no processo terapéutico, pois, ao desvendar um dos muitos mistérios do poderoso deus Eros — ‘Oapaixonante enigma do por que amamos quem amamos —talvez eu possa ajudar melhor meus pacientes a crescer, mucar ou proclamar sua individualidade e sua sexualidade, quaisquer que sejam estas, A descoberta da propria homossexualidade € em geral um mo- mento significative no desenvolvimento da personalidade. Cultuado 13 pelos gays*. 0 ‘assumir-se’ — expresstio que acabou s¢ tornando.co- ‘mum para a revelagio de qualquer auto-aceitacao radical — € muitas ‘vezes 0 primeito passo da longa trajetoria chamada por Jung e seus adeptos de individuacio, o estabelecimento de uma personalidade ‘prOpria.¢ individual com profundidade e substincia verdadeiras. No entanto, o que ocorre mais tipicamente nas sociedades ocidentais € ‘um longo periodo de inconsciéncia do individuo quanto a sua orienta- ‘go sexual; por isso € t2o freqtiente que o homossexual sinta-se como um enigma a ser desvendado, De onde vém esses desejos to intensos que nao deveriam existr, esse desejo por um companheiro em nada parecido com o que se aprendeu a esperar? O que significa amar meu igual de maneira plena e fisica? Como viver esse tipo de vida sendo in- tegro, feliz, bem-resolvido? E como ser fiel a sua propria natureza? Durante essa busca paralela em direcao compreensio de mim mesmo € do outro — busca que tomou a forma de minha andlise, ¢s- tudo ¢ treinamento como psicoterapeuta — tive a feliz oportunidade de estruturar um estudo independente das Obras Completas de C.G. Jung no final de meu curso de graduago, Durante um ano, litodas es- ‘ses 18 magnificos volumes, da primeira a tiltima pagina. O efeito de ler Jung dessa maneira, seguindo meu proprio ritmo e com toca a profun- didade de que fui capaz, foi uma transformaglo: trouxe A tona um so- rho que existia em mim sem que eu nunca suspeitasse; permitiu acrescentar & minha prética terapéutica aspectos da personalidade fla- grantemente ausentes na minha formagao de predomindncia psicana- Iitica: mitos, histérias, religizo, espiritualidade, arte e beleza, Foi assim que 0 encontro com Jung € seus adeptos, pessoalmente ou por meio de seus trabalhos, exerceu uma influéncia indelével em minha vida pessoal ¢ profissional. Mas o que teriam essas pessoas, Jung e junguia- nos, a dizer a mim enquanto homossexual € aos pacientes que me procuram? Que parte do enigma sto capazes de esclarece:? Como suas atitudes e teorias podem ajudar a mim e a meus pacientes a resolver nossas batalhas e a desfrutar de nossas vidas enquanto seres sexuais, corporificados? Este livro € uma primeira resposta a essas questdcs, ‘uma resposta que desmente minha primeira impressio a respeito do tratamento da homossexualidade pela psicologia analitica, Apesar de sua aparente falta de atengao € do enfoque desconexo em relagao ao tema, Jung e seus adeptos tém tido muito a dizer a respeito da homos- ‘ termo gay refere-se tanto ao homem quanto A mulher homosexual sexualidade; e grande parte disso é de enorme utilidade para aprofun- dar e ampliar a perspectiva que temos tanto da homossexualidade ‘como da heterossexualidade. Uma das palavras de ordem do movimento feminista afirma que tudo 0 que € de ordem pessoal é também politico. Talvez nao haja ‘nada melhor do que a questa da homossexualidade para demonstrar essa maxima. A busca de uma melhor compreensao da homossexuali- dade, a longa e ardua procura da contribuigdo dada por Jung e seus adeptos para essa compreensao, nao pode deixar de ter um significa- do politico € hist6rico. Foi assim que outro impulso veio se juntar a0 primeiro na concepgiio e criago deste trabalho: um motivo politico € histOrico para examinar 0 que dizem Jung ¢ os junguianos a esse res- peito. Ha varias explicagdes para o fato de nao haver até hoje em inglés qualquer manografia sobre a homossexualidade de uma perspectiva junguiana, A falta de uma atengao planejada ao tema por parte de Jung. € 0s junguianos poderia, evidentemente, significar que os psicblogos analiticos nao tém muito de importante a dizer e que, como a psicolo- gia junguiana nunca desenvolveu uma teoria da homossexualidade, talvez ndo deva existic tal teoria. No entanto, ao ler o que foi escrito a respeito, descobri que a falta de um tratamento mais extenso do tema & precisamente isso: uma auséncia, algo que falta. Este livro &, portan- to, uma tentativa de suprir uma lacuna numa bibliografia to rica em certas freas, uma forma de devolver aos que descobriram sua indivi- dualidade na psicologia analitica uma certa parte de sua historia inte- lectual. f também o ponto de partida para um exame mais extenso de uma forma de amor universalmente presente entre homem e homem, mulher e mulher. Além disso, estamos num momento incomum da hist6ria da ho- mossexualidade ¢, embora possa ser interessante recapitular aqui a histéria politica dos dltimos 20 anus do movimento de liberacao gay, nosso tema tem mais a ver com psicologia. © momento atual nessa hhist6ria resulta em grande parte de dois acontecimentos cujo impacto mudou para sempre o pensamento psicolégico e a pratica clinica. O primero foi a publicacao do relat6rio Kinsey em 1948.1 Pela pri- meira vez na histéria, surgia um estudo de base empirica ¢ execugo impecivel a respeito do comportamento sexual americano, Os dados reunidos por Alfred Kinsey e seus colaboradores revelaram, entre ou- {ros fatos surpreendentes, que 37% da populagio masculina america- ‘na havia tido algum tipo de comportamento homassexual até a efacu- 15 Jasdo apés a fase da puberdade? Numa era em que a sociedade em ‘geral considerava a homossexualidade uma blasfémia, uma doe, Luma legal, a eviéncia de que mais de um ergo dos homens ame, anos tiveram experiencia homossexunis na idade aula fo um che, ue do qual a sociedade americana ainda nao se recuperc, tales panes fecupere, Nao € exagerada a impordncia desse dado que es em xeque os preconcetosvigentes, nos quais a homossexualida 10 uma estranha anomalia, aberragio ir peculic ; f y imoral cesta stm dea a men de eves ste = disso, le que todos os estudos - tes realizados por Kinsey confirmaram e deram continuidade s esen tomou 0 relat6rio de 1948 um marco histérico ra ensament a respeito da homossexvalidide Pseanua chamada escala Kinsey talvez seja 0 melhor simbolo da revolue s inggy amano foi comprovada pelos véros estudosrealizados por , SSO, mostraram também sua utilidack i compreensio desse comportamento, £ evi mais dee to. £ evidente que, i tergo da populagio masculina adulta americana eve algae ree ° rican bund momento de destaque na histria do pensamentoame- Aretcaa ne 2 homossexualidade veio 25 anos depois, Em 1973. a dare Gaba nae Association — associagaio Americana de Psi ore a0 fim deum longo emutocontesado debate intr ae foi decorréncia direta do 0 ae eee toa ne ead de 60 inicio da de 70, tse movimento mudou f , tar lividual, da he = ae contestou as atitudes sociais predominantemente negara = ene a 0s falsos esterestipos e peaipes ito i Sri oe 2 FsPe da vida, dos sentimentose das oes dem, 16 Embora os militantes do movimento gay atacassem de‘uma pers- pectiva politica a visio da homossexualidade como uma doenga men- tal mantida pelas instituigdes psiquidtricas, o sucesso obtido em sua Juta com a APA deveu-se menos a intimidacao politica dos psiquiatras do que aos dados pertinentes obtidos em décadas anteriores por pes- quisadores como Havelock Ellis, Magnus Hirschfeld, Alfred Kinsey, Cleland Ford, Frank Beach, Evelyn Hooker, Thomas Szasz ¢ Judd Mar- mor3 Eles revelaram que muitos dos lugares-comuns da psicologia com relagio & homossexualidade nio correspondiam a realidade. Ha- viam comecado, portanto, a formular por si mesmos o que a anilise do movimento de liberagao gay eventualmente consolidou como seu insight mais importante: a constatacio de que muito mais prejudicial do que a homossexualidade em si era certamente 0 avassalador estig- ma social, apelidado de homofobia, relacionado aos gays ou a senti- _mentos de atraglo por pessoas do mesmo sexo. ‘Aiistoria de como e por que a APA deu esse passo revoluciondrio 6 um estudo fascinante do papel da psiquiatria enquanto subordinada e agente de criagao de valores sacioculturais. O passo iniciado em 1973 com essa decisao $6 foi completado, porém, ha pouco tempo, com a tiltima edigio do Diagnostic and statistical manual of mental disorders (Manual estatistico e diagndstico das doencas mentais), Nes- sa tltima publicagto da APA a ‘homossexualidade ego-dist6nica’, ou seja, a que € considerada perturbadora e indesejada pelo individuo, foi também eliminada da lista dos dlisttisbios mentais.4 ‘A conseqiiéncia disso tudo foi a ‘despatologizagao! definitiva da homossexualidade e, portanto, a transformacio de forma irrevogavel do pensamento psicol6gico 2 esse respeito. Atualmente as atitudes em io a homossexualidade esto num ponto critica, tanto no terreno histérico como no psicol6gico, num estado de transformagao radical. A linha mais antiga de pensamento, ainda vigente em varios redutos, que vé 2 homossexualidade como doenga, como um desvio em rela- lo & heterossexualidade — tida como a nica expressio madura do comportamento sexual —, foi, portanto, posta em xeque. Isso em be- neficio de uma linha mais nova, que vé a homossexualidade como ‘uma variagio natural da expresso sexual humana ¢ considera os gays individuos normais que, se experimentam alguma forma de sofrimen- 10, € 0 originado pela intolerdncia e preconceito social injustificados. Com relacao a isso, estamos no meio de uma virada, pegos entre 0 velho ¢ 0 novo, Porque é evidente que a opiniao piiblica e os valores, sociais americanos nao alcangaram a tremenda mudanga de atitude jé v7 realizada no campo da psicologia. Embora na maioria das principais cidades americanas haja comunidades gays bastante grandes, articula- ds ¢ politicamente ativas, ha pouco tempo a Suprema Corte manteve no Estado da Geérgia 0 dircito de declarar a sodomia ilegal e passivel das penalidades da lei. Embora numerosas comunidades estejam rea- gindo com compaixio € dando ajuda pratica a0 enorme ntimero de ‘gays vitimas da morte horrenda provocada pela Aids, ainda se propa- a nos jornais e na televisao que essa doenga fatal nada mais € do que © justo castigo, uma praga enviada por Deus para punir o pecado da homossexualidade. Apesar de lésbicas € gays assumirem publicamen- te sua condigio de forma inédita na hist6ria, tanto nos Estados Uniclos como no resto do mundo, os californianos receberam do governo do Estado pela segunda vez em 1988 uma proposta que estabelecia provi- déncias pari o isolamento em massa de pessoas infectadas com o nus HIV. A transformagio social tem obviamente deixado para tris a desparologizagio da homossexualidade pela psicologia. Este livro surge de um impulso de ver como um dos maiores te6ri- cos da psicologia do século XX, C. G. Jung, tratava a homossexuslida- de em seus textos e em sua pritica, na esperanga de tragar uma ligaga0 entre 0 velho e 0 novo nesta época de transformagdes. Essa curiosida- de € especialmente agugada uma vez que Jung ¢ muito pouco conhe- cido por seu pensamento sobre a sexualidade menos ainda por seus textos a respeito da homossexualidade, Como este livro iri demons- ‘var, Jung de fato nunca apresentou uma teoria coerente para explicar a homossemualidade, Apesar disso, escreveu sobre o assunto do ponto de vista clinico e te6rico em varias ocasiGes: nas Obras Conipletas, em varias cartas e entrevistas, em Dream seminars (Semindrios sobre os sonbos)— s6 recentemente publicados em inglés —e, finalmente, em sua autobiografia, Memdrias, sonbos, reflexdes. Enquanto o impulso histérico por tras deste livro leva-me a per- guntar como Jung ¢ seus adeptos sc cnquadram nessa ampla mudanga do pensamento psicolOgico, 0 impulso académico, se & que se pode chamé-lo assim, leva-me a tentar corrigir, por meio desse estudo mais, detalhado dos textos de Jung a respeito da homossexualidade, as con- cepgdes deturpadas € caracterizagdes erroneas que se ouvem mmuitas vezes de psicélogos analiticos — por exemplo, que Jung pouco teve a dizer a respeito da homossexualidade, ou que o que expressou € in- significante, ou ainda, que manteve apenas uma determinada teoria ou atitude. O exame minucioso que se segue revelari uma série de pontos de vista e também uma série de teorias relacionadas & homos- 18. sexualidade que oferecem uma perspectiva vigorosa e profunda da alma humana, bem tipica da psicologia junguiariz. Ao longo desse exame, veremos que as opinides de Jung sobre 0 assunto, 4 p vista de interesse muito estreito, limitado e até pedante, contém na realidade uma série de questes que vio do campo politico, social v intercultural a0 espiritual, te6rico € arquetipico. Este estudo esclare: © conjunte do pensamento junguiano a respeito da homossexualidade quase tanto quanto esclarece 0 pensamento de Jung como um 19d, destacando, por meio do exame de uma fatia de Seu pensarriento, stias valiosissimas contribuigdes a forma como pensamios, sentimos, expe- rimentamos ¢ reagimos aos impulsos de nossas vidas interiores. Junto com essas motivagdes dle ordem histéricn © acad&mica ha um impulso talvez ainda mais forte, que poderia ser chamado pelos junguianos de impulso em diregao & plenitude. Raramente se atraido pelo pensamento ou pela anélise junguianos por um interesse acad mico [rio ou por uma bem-definida curiosidade histérica, A psicologia analitica é talvez tinica em sua drea na medida em que os adeptos de Jung tomaram seus insights a respeito da nacureza e da dinimica da psique ¢ desenvolverant 2 partir daf um corpo de idéias que, como a mandala, abrange pensamento, sentimento, intui¢do e sensacho, a to- talidade da experi@ncia humana em vez de um segmento isolado dela. Este livro examina em detalhes as textos dos que vieram apés Jung, tanto da ‘primeira gergio’ — composta pelos que conheceram Jung pessoalmente — como da ‘segunda onda’ de analistas € autores jun- guianos, com o objetivo de adquirir um sentido realmente abrangente da profundidade ¢ diversidacle préprias ao pensamento junguiano a respeito da homossexualidade. Para fazer jus a esse impulso em dire- 80 & plenitude, a natureza abrangente desta revistio da bibliografia junguiana deve ser considerada uma expressio do proceso de indivi duacao deste livro, sua luta em diregio a uma visio Gnica ¢ coerente deum fendmeno de grancle impordncia ¢ incrivel diversidade. Psicologia da profundidade no sentido mais verdadeiro do termo, a psicologia analitica tem por objetivo elucidar um nivel da existéncia humana muitas vezes esquecido no mundo moderno: 0 nivel do in- consciente coletivo, da vida simbélica, da alma, daquele lugar obscuro em cada individuo onde as experi¢ncias humanas miticas, primor- diais, fluem ¢ moldam nossa personalidade consciente, onde sonhos apaixonadas ¢ estranhas figuras habitam nossos pensamentos e senti- mentos, tornando-se as vezes companheiros improvaveis de uma es- trada que leva & realizagio, um fim que permanece envolto ainda em 19 hnévoa, mas em dlirego ao qual somos de toda forma atraidos de modo inexoravel. A psicologia junguiana fornece um antidoto muito neces- sicio para a hipertecnicalidade das duas principais escolas americanas de pensamento psicolégico, a psicanilise freudiana e 0 behaviorismo skinneriano, E ela consegue isso voltando dia apés dia a forma pela qual cada um de nés é um individuo nico e, ao mesmo tempo, com- partilha com os outros uma fonte de vida profundamente rica: 0 in- consciente coletivo. Minha expectativa € que este livro, a0 observar a homossexualidade através de uma lupa junguiana e a0 examina a ampla gama de questdes ehicidadas por Jung e pelos junguianos por meio de suas refiexdes a respeito da homossexualidade e do homoe- sotismo, possa nos levar a tacos em diregio a uma compreensio mais Profunda e individualizada do lugar que ocupa a homossexualidade na sexualidade de cada um. Se nosso exame tiver éxito, esclarecera o significado da homossexualidade no nivel da realidade arquetipica e revelard algo significativo ¢ inigualavel sobre aquilo que passei a cha- mar de vida de Eros, 0 causador € diluidor clas paixdes humanas. Ent- bora a propria Psiqué possa ter estado cega a ele num primeiro mo- mento, vamos desafiar 0 destino ¢ tentar captar um vislumbre que seja desse deus em todas as suas miiltiplas encamagées. Com essa finalidade, a parte final do livro ser dedicada a usar a grande riqueza das teorias junguianas a respeito da homossexualidade estes timos 60 anos para examinara cultura gay masculina america- na contemporinea de uma perspectiva ndo muito comum, mas bas- tante necesséria: a arquetipica. Da mesma forma que o pensamento psicol6gico americano foi dominado por muito tempo por Freud eB F. Skinner, a homossexualidade também tem sido tratada primaria- mente como uma questdo externa, um fendmeno sociocultural, um movimento politico criado por uma minoria oprimida. Embora a mili ‘Ancia politica gay nos Estados Unidos nao possa ser, ¢ claro, cescarta- dia ou diminuida em nenhum aspecto, o fato é que a homossexvalida- de como forms de relacionamtento humano © como expressao da paixio sexual existe desde as origens do homem em cada cultura so- brea face da Terra, Nao foi algo que surgiu da noite para 0 dia no mo- tim de Stonewall em 1969, a rebelido de travestis no Greenwich Village tida como o marco do movimento de liberagio gay. Este estudo levan- a questOes que vio além das preocupagées basicamente externas da militancia politica e social: 20 ~+ Quatis 05 temas arquetipicos expressos nessa forma de relaciona- mento humano to universal e carregada de paixdes que € a ho- mossexualidade e o homoerotismo? —--+ O que atrai um homem ao outro, uma mulher a outra, e que signifi- cados individuais encontram sua melhor expressio possivel atrav dos desejos homoeréticos e das relages homossexuais? “+ As pessoas homossexuais diferem das heterossexuais de um pon- to de vista psicol6gico, clinico ou simbélico? —+ Nio haveria temas arquetipicos comuns que reforgassem a encar- nagao de Eros na homossexualidacte ou, até, em qualquer expresso do envolvimento erético com outra pessoa, homem ou mulher, do ‘mesmo sexo ou do sexo opasto? Ao examinar a cultura gay contemporinea em busca de temas ar- quetipicos, usando os insights da psicologia analitica, este livro procu- a, finalmente, responder talvez ao Giltimo principio importante que the deu origem, o impulso teérico, a necessidade de fornecer 0 que tem faltado até agora na psicologia anafitica: uma teoria coerente sobre a orientagiio sexual baseada nos arquétipos, passivel de verificagao no plano empirico, profunda do ponto de vista psicoldgico ¢ evocadora 1no plano espiritual. Embora este livro nao passe de uma primeira con- tribuigao para uma teoria desse porte, o vasto e desorganizado conjun- (0 de idéias que compdem a teoria junguiana da homossexualidade re- presenta o mesmo tipo de tentativa de compor a tio necessaria visio mais abrangente e sintética da homossexualidade, que chega com certo atraso. Essa tentativa de tragar uma teoria arquetipica da orientagao se- xual € importante para os gays por poder ajudi-los a buscar o caminho: de algo que falta no discurso do movimento politico gay, mas que € a marca registrada da psicologia junguiana: um profundo sentido de au- tocompreensio. Isso é duplamente importante nesta era da Aids, em que as comunidades homossexuais enfrentam a monte ¢ a redengio de forma bastante real a cada dia, No entanto, a tcoria arquetipica da orientagao sexual tem, claro, igual importincia para os heterossexuais. Estes poclem se surpreender ao constatar que um exame da homosse- xualidade feito da perspectiva arquetipica lznga luz sobre facetas de sua propria masculinidade ou feminilidade ha muito tempo ignoradas, reprimidas ou pouco valorizadas. Como ficou provavelmente claro ao longo desta introdugo, este li- ro presume que o leitor tenha uma certa familiaridade com a psicolo- a gia analitica, J4 que as descobertas ¢ elaboragbes de Jung exigiram que ele desenvolvesse novos conceitos, o leitor que nao esteja fami- liarizado com tal psicologia pode se beneficiar com a consulta a uma das muitas obras introdutérias a0 pensamento junguiano. Como mi- nha propria experiéncia de transformacao veio da leitura direta do trabalho de Jung e no de textos sobre ele, eu sugeriria a0s nao-ini- ciados que consultassem meu livro A guided tour of the Collected Works of C. G. Jung (Guia das Obras Completas de C. G. Jung). Trata- se de uma breve introducao e guia de estudos para uma leitura direta de Jung, mais do que um resumo geral de suas teorias.> A estrutura deste livro foi ditada em primeiro lugar por meu prazer ‘em usar o racional ao escrever, j4 que quando se lida com um assunto Wo difuso e fragmentado quanto a homossexualidade na obra de Jung € seus adeptas, a organizacao logica e a ordem cronolégica tornam as coisas muito mais faceis. Comegaremos examinando Jung ¢ suas varias declaragdes sobre a homossexualidade do comego ao fim de sua car- reira. Ao final desse segmento, ha uma discussio a respeito das atitudes ¢ idéias de Jung sobre a homossexualidade. Em seguida, examinamos © que foi escrito a respeito por aqueles a quem chamo de analistas da primeira geragio, S6 entdo esse trabalho passa a abranger 0s outros au- ores que publicaram importantes contribuigées & compreensio da ho- mossexvalidade de uma perspectiva junguiana. A partir dai, percorrido todo © campo junguiano, € que procuramos estabelecer 0 esboco de ‘uma teoria da orientagao sexual que reunisse as muitas vertentes do Pensamento junguiano, Nesse momento, dirigindo nosso olhar para a Cultura gay masculina americana contemporanea, procuramos discer- nir temas arquetipicos presentes nessas vidas, tanto num plano coletivo como pessoal. O objetivo € mostrar que o interesse da teoria arquetipi- a da orientagao sexual sugerida antes nao se limita 20s planos acad mico ¢ teérico, mas pode ser de grande ajuda para discemir com- preender a grande diversidade da vida das gays nos Estados Unidos de hoje. Finalmente, ao fazer uso de nossa familiaridade tanto com o cam- Po tedrico como com essas pessoas, nosso capitulo de encerramento Procura tragar um rumo para 0 futuro e propor, talvez pela primeira vez 1a psicologia analitica, uma forma de se usar, para entender mais pro- fundamente toda a sexualidade, uma teoria da orientago sexual sinté- tica, coerente e de base arquetipica, fiel 20 mesmo tempo aos insights de Jung ¢ a realidade empitica contemporinea dos homossexuais, A psicologia analitica comega com Jung e € com ele que comega- ‘mos nossa viagem, 2 2 C.G. Jung e a homossexualidade } } Atarefa que se apresenta é ler Jung, o que ele escreveu ¢ deixou de escrever a respeito da homossexualidade, o que desenvolveu plenamen- fe © que ficou apenas como sugestio em seu trabalho, No entanto, como muitos devem ter percebido, ler Jung nem sempre é algo muito f&- Gil. Autor prolifco, Jung deixou uma obra que pode ser intimidante para ‘© nio-especialista. Sua terminologia peculiar pode impedir mais do que ajudar a compreensio, ea abrangéncia de setis conhecimentos em geral significn que, qualquer que seja 0 foco cle sua investigagto, Jung trata-o de forma altamente indireta e intuitiva e as vezes até dispersiva. Quando so nessa caracteristica dos textos de Jung, vem-me a mente O termo ‘circunkéquio’; Jung costuma circundar um Geterminado assunto a0 invés de ir direto ao ponto de forma clara, ogica e rigorosa Quem conhece bem os textos de Jung sabe, porém, que ele nunca pretendeu construir uma teoria completa e linear a respeito da psique humana, Muito mais ineressacio em descrever e interpretar 0s fatos que via 20 seu redor do que em promulgar posigées teéricas, Jung ndo deixou muitas afirmagdes categoricas, sobretudo a respeito da homos- sexualidade. Nos 18 volumes de Obras Completas, a homossexualida- de é mencionada pouco mais do que uma dezena de vezes; uma des- sas referéncias nao passa de uma relato de caso, ¢ todas as mengdes aparecem em artigos cujo enfoque principal € esclarecer temas outros que nao a propria homossexualidade. Nao ha dlivida de que essa escassez de referencias 4 homossexua- lidade no trabalho de Jung reflete a relativa falta de importancia que 23. este sssunto ocupava em seu pensamento, um fato que deve ser enfa- tizaco antes de prosseguirmos em nosso exame do que cle efetiva- menze escreveu a respeito. A falta de umm discussiio mais extensa a respeizo da homossexvalidade est4 certamente relacionada com a na- tureza nitidamente introspectiva do enfaque psicol6gico de Jung. Come iremos demonstrar mais adiante neste livro, Jung limitou-se quase que exclusivamente a observar © funcionamento interno da menze humana, suas imagens, simbolos e processos. © comportamen- to kemano de qualquer espécie, quer se tate da homossexvalidade, dos xxos sociais ou das duas guerras mundiais, sempre foi visto a partir de sa posicao de psicélogo interessado em saber o significado inter- no cue um comportamento ou outro pudesse ter para o individuo. Isso no quer dizer, é claro, que Jung nunca tenha feito afirmagdes de cariter avaliativo a respeito do comportamento humano, mas sim que tais afirmagdes sempre foram secundérias em relaco a0 propésito pri- méirio de Jung: compreender 0 ser humane em sua totalidade, interna ¢ exiema, baseando-se nos principios da investigacao cientifica (Ourra razdo para essa énfase tio pequena na homossexualidade & a rebstiva falta de importancia dada por Jung 4 sexualidade apés seu distaaciamento de Freud. Muito ligado a ete no inicio de sua carreira, Jung nio se considerava, 20 que parece, wm discipulo de Freud. Ao corrigir uma nota introdut6ria pouco precisa para um de seus artigos em 1934, Jung afiema: fXo situo meu trabalho a partir de Freud, mas de Eugen Bleuler e Pier- re Janet, que foram meus professores. Quando assumi publicamente a eesa de Freud, ja tinha uma posigio Gienifica amplamente conheci- & devido a minhas experiéncias com a associagao, realizadas inde- pendentemente de Freud, € a teoria das camplexos baseada nessas ex- eriéncias. Minha colaboracao foi limitada por uma objega0 em Principio & teoria sexual, e durou até 0 mamento em que Freud identi ficou em principio sua teoria sexual com sev método.! Essa observacio nio implica que Jung mo considerasse a sexuali- dade importante nem que nao tenha abordado questées pertinentes a sexualidade (0 exame que vem a seguir de como Jung considerava a homossexualidade ¢ suficiente para indicar que ele tratou de questoes ligadas & sexualidade de forma bastante profurda). Ao contritio, Jung procedeu de forma tipica ao esbocar uma enfoque decidido da sexuali- dade como elemento bisico da personalidade humana ou como Gnica chave para compreender a psique. 24 Junto com esse enfoque introspectivo e com a relativizagio da se- xualidade, a notéria aversio de Jung pelo que chamava de dogma tem ‘um papel importante na compreensio das razdes pelas quais no ha afirmagoes categoricas a respeito da homossexualidade (e de muitos ‘outros temas) na obra de Jung, 'O dogma, ou seja, uma profissio de fé inquestionavel, é estabelecido somente quando o objetivo é eliminar para sempre toda e qualquer liavida. Mas isso jé nao tem nada a ver com os julgamentos de narureza Cientifica, ¢ sim com um desejo pessoal de poder.? No entanto, o fato € que Jung teve, a0 longo de sua carreira, varias ‘ocasides para abordar a homossexualidade em seus textos; teve pa- cientes que eram homossexuais ¢ viu-se, claro, diante da questo mais geral a respeito do lugar que ocupa a sexualidade humana, com todas as suas variagdes, na esfera maior que € a personalidade do individuo. Para o leitor, a atengio relativamente pequena que Jung parece ter dado a homossexualidade em sua obra € um fato tanto positive quan- 10 negativo, Positivo porque nossa revisto bibliogritfica nao exigira do leitor 0 esforgo herctileo de um especialista. De fato, como veremos, essa brevidade revela uma concisio de pensamento que se poderia considerar incomum em se tratando de Jung. Mas também negativo Porque deveremos aqui abrir mao da quantidade — tio valorizada no Ociclente — em favor de uma apreciagao mais qualitativa do que Jung, teve a dizer a respeito da homossexualidade. Este é um exercicio as vezes capciaso, Como sempre, € preciso lembrar que Jung nunca foi ‘nem pretendeu ser um grande te6rico da homossexualidade. E preciso também estar atento para evitar, de um lado, exagerar a proporcao de suas declaracdes e, de outro, deixar de levar em conta qualquer uma delas, _o~ Essas referéncias relativamente escassas de Jung a homossexuali- “dade permitem que se percorra de forma cuidadosa e cronologica 0 que ele chegou a escrever a respeito, Sao 15 referencias nas Obras Completas, sete em sus comespondéncia publicada, duas em stta auto- biografia Memdrias, sonbos, reflexdes ¢ um pequeno ntimero de men- ‘sdes nos Semindrias sobre os sonbos? ¢ nas entrevistas reunidas em C. G. Jung speaking (C. G. Jung fala). Nossa leitura desses textos sera ci vidida em trés pactes coespondentes a petiodos distintos da carreira de Jung. Em primeiro lugar, examinaremos scus textos mais antigos, de 1908 a 1920, um periodo em que ele estava ainda mu fluencia- do pela teoria psicanalitica, embora tenha rompido com Freud em 25 1912, Na segunda fase de sua carreira, de 1920 a 1927, Jung comecou a desenvolver seus proprios insights do funcionamento da psique hu- mana; este foi um periodo de complexidade e consolidacao teéri Em terceiro lugar, voltaremos nosso olhar para o que se pode chamar de pensamento maduro de Jung, correspondente ao periodo de 1936 a 1950, em que ele estendeu seus insights para as Areas em que con- centrou seu interesse ao longo de seus diltimos anos. Uma vez que nosso objetivo nao é de natureza estritamente académica, nem sempre nos deteremos em trechos repetitivos ou de menor importincia. Deve- vemos, em ver disso, concentrar nossa atengao nos pontos em que ele presenta formas caracteristicamente junguianas cle tratar a homosse- ‘xualidade tanto do ponto de vista clinico como teérico. Tendo em vis- ta uma abordagem completa, porém, até os trechos menos importan- * tes serao indicados em nossa discussio. Além disso, 0 leitor encontraré una lista completa de referéncias bibliograficas nas notas deste capitulo, que auxiliara aqueles com interesses mais académicos. Os primeiros textos ‘psicanaliticos 1908-1920 As primeiras referéncias de Jung a homossexualidade aparecem no periodo de sua vida em que estava ainda fortemente ligado a psica- nilise, ao longo de sua associacio inicial com Freud ¢ depois de sua rnuptura com o pai da psicandlise em 1912. Numa breve resenha do vro de Lowenfeld Homosexnalitat und Strafgesetz (Homossexialida- dee let criminal), um livro coni o objetivo de tragar "uma historia con-, cisa do conceito clinico de homossexwalidadte’, Jung cita Lowenfeld respeito do "atual estado da opiniao": "Embora a homossexualidade ‘seia.uma_anomalia que possa se manifestar.(.,.) junto com doengas ¢ processos degenerativos, na maioria dos casos trata-se de um desvio psiquico isolado em relagio & norma ¢ no pode ser considerado pa- toldgico ou degenerativo, sendo improvivel que diminua.o valor do individuo como membro da sociedade”. Nessa resenha, Jung comenta o artigo 175 do Cédigo Penal alemio, que toma a homossexualidade um delito criminal, caracterizando-a como "nio 56 iniitil e desuman: mas diretamente pemiciosa na medida em que apresenta oportunida- des para a chantagem profissional com todas as suas conseqiténcias triigicas repulsivas’ ‘Apesar cla brevidade dessa resenha de seu enfoque nitidamente nao-psicolégico, essa primeira afirmacao de Jung deixa claro que compartitha da opiniio de muitos psiquiatras da época de que a ho- %6 mossexualidace nao deve ser abordada pelas autoridaces legais. 8 im- portante observar, a essa altura, que na hist6ria das opiniges cientificas a respeito da homossexualidade, a nogio de consideri-la uma doenga em vez de um comportamento criminoso ou uma perversdo chocante da moralidade crista € comparativamente recente. No inicio do século XX, psiquiatras, a quem se juntaram militantes homéfilos da Epoca, muitas vezes se considerwvam os satvadores protetores dos homos._- sexuais, por meio de sua declaragdo de que a homossexualidade era uuma doenca ¢ no algo passivel de ser julgado pelo sistema judicidrio. Tomando-se por base essa referéncia, parece altamente provivel que Jung compartilhasse desse ponto de vista esclarecido € progressista spara a época/ © fato de metade dos estados americancs ainda terem. leis contra a Sodomia usadas até hoje para processar e condenar ho- mens e mulheres homossexuais (com 0 apoio da Suprema Corte dos Estados Unidos) torna esse trecho e essa opinido ‘esclarecida’ mais re- levante do que se pode pensar num primeiro momento, No entanto, & em suas observagdes contidas em The theory ofpsychoanalysis (Teoria da psicandlise), publicada originalmente em alem&o em 1913, que va- mos encontrar um exemplo mais substancial das reflexes mais anti- ‘gas de Jung a respeito desse tema. Esse extenso trabalho foi redigido a partir de uma série de conferéncias dadas na Universidade de Ford- ham de Nova York em setembro de 1912. Portanto, tanto do ponto de vista cronolégico como conceitual, data logo apés a ruptura com Freud. O objetivo das conferéncias era fornecer uma exposicao critica das principais idéias da psicandlise proposta por Freud. A homosse- xualidade € mencionada na segunda conferéncia da série, The Theory of Infantile Sexuality (A Teoria da Sexualidade Infantil). Depois cle qualificar 0 conceito de sexualidade segundo a teoria psicanalitica, Jung explica que a psicandlise concebia a sexualidade como uma ‘pluralidade de impulsos separados’ constituida de.virios <~ ‘components’ mais ou menos fixos. Jung cita, porém, um caso em que .98 interesses de um jovem, de inicio homossexuais, foram eventual- Mente substituidos por um interesse ‘normal’ pelas mulheres, Depais ‘de ser rejeitado por.uma namorada, cle comega a experimentar "uma Aversio por todas as mulheres, até que um dia (...) descobre que se tor- ‘para homossexui de novo, pois os homens jovens voltaram a ter sobre cle um efeito irritante peculiar’6 A respeito desse caso, Jung di ‘Se encararmos a sexualidade como formada por um componente ho- ‘mossexus! ¢ um componente heterossexual fixos, nunca seremos ca- 2 ppazes dle explicar este caso, uma vez que o pressuposto de que haja somponentes fixos impede qualquer tipo de transformagao. Para ana- lizi-lo devidamente, devemos presumir uma grande mobilidade dos, componemtes sexuais, ao ponto de um deles desaparecer quase.com- pletamente enquanto outro ocupa o primeira plano. Se nao tiver ocomtido, nada além de uma mudanca de posi¢io — de forma que o componente homossexual tenha resvalacio com forga total para o inconsciente, deixan- do 0 campo dlo consciente para o componente heterassexual —, 0 cO- rihecimento cientifico modemo nos levaria a inferieque efeitos equivalen- tes surgiriam da esfera do inconsciente. Esses efeitos teriam de ser cencaraclos como resistencias 4 atividade do componente heterosexual, ou seja, oposig4o as mulheres. Mas em nosso caso nao h4 qualquer evidéncia disso. Jung trata aqui de como 0 conceito de energia sexual, ou libido, & uma descricto mais veraz da realidade do que o ultrapassado conceito de componentes sexuais fixos. Era, portanto, urgente dar uma explicagiio adequadla para tal mudanga de cenirio. Para isso, precisamos de uma hipétese dindmica, j& que s6 se pode pensar nessas permutagdes de Sexo enquanto processos dina micos ou energéticos. Sem unta alteragio nas relagdes dindmicas, no osso conceber como um modo de ser poderia desaparecer dessa ma- neira. A teoria ce Freud levou em conta essa necessidade. Seu conceito de componentes (..) foi eventualmente substituiclo por um conceito de energia. O termo escolhido para isso foi ibido® Jung concorda aqui que a libido ¢ uma concepsao mais til do que a de componentes fixos ¢ estiticos para explicar 0 comportamento se- xual. Mais tarde, in bem adiante desse conceito psicanalitico de libido r6tulo geral para toda energia psiquica. ras expit sbre como poderia desaparecer ‘© componente homossexual, "sem deixar nenhtim trago ativo para tris", Jung observa que, de fato, 0 componente homosexual de ho- ‘mens conscientemente hetcrossexuais surge ‘mais prontamente sob a forma de ums irritabilidade peculiar, uma susce- tibilidade especial em relagio a outros homens. De acordo com minha experiéncia, a raz4o aparente desse comporamento caracteristico, do «qual encontramos tantos exemplos em nossa sociedad hoje, é uma per turbagio invariivel no relacionamento com as mulheres, uma forma es- pecial de depencéncia em relacao a elas (. (Caro que esta no € a verda- deira razio. A verdadeira razao € 0 estado infantil do cardter do ho- mem? © termo ‘icritabilidade’ pode estar sendo usado aqui no sentido comum de ficar aborrecido, uma vez que a psicantlise pode conside- s he vais inconscientes. No entanto, o uso anterior do terme ‘iritante’ no caso do homem cuja homossexualidade voltou tona depois de uma rejeigio sugere que ‘excitabilidade’ talvez seja uma tradug’o contemporanea mais precisa. Embora ambiguo em. seus termos, o pensamento de Jung € claro num ponto desse trecho: A homossexualidade deriva ‘invariavelmente’ de um relacionamento perturbado e condicionado com mulheres, advindo da imaturidade psicolégica. Na €poca da publicagao desse artigo, Jung ainda tinha vinculos profundos com o movimento psicanalitico ¢, de fato, identificava-se cont ele no prefiicio da primeira edigao, Em suas proprias palavras, esse artigo representa uma tentativa de satisfazer "0 dever de aplicar uma justa autocritica, baseada num conhecimento adequado dos fa- tos, Parece-me que a psicandlise carece dessa avaliagao interna”. As- sim, a visto expressa aqui por Jung a respcito da homossexualidade esti alinhada com uma compreensio psicanalitica basica da homosse- alidace adulta enquanto manifestago de imaturidade psicologica, uma fixagio ou parada no crescimento psicossexual e, por essa 1az40, aperturbad: Em contraste com este tiltimo trecho, algo denso do ponto de vista te6rico, a proxima referéncia de Jung a homossexualidade acorre na apresentagio da andlise de um sonho de um dos seus pacientes, nar- rado no ensaio "On the psychology of the unconscious" Sobre a psi- cologia do inconsciente"). Esse trabalho, publicado pela primeira ver ‘em 1912 com o titulo de "Neue Bahinen dler Psychologie" ("Novos ru- mos da psicologia") sofreu mais tarde uma revisto to grande que o original ficou como apéndice 20 novo artigo, publicado com outro ti- tulo em 1917, Jung julgou oportuno revisar o artigo a cada nova edi- Gao, em 1918, 1926, 1936 e 1943, A medida que desenvolvia suas idéias, até "Sobre a psicologia do inconsciente”, publicado junto com ‘The relations between the ego and the unconscious" ("As relagdes en- tte © ego € 0 inconsciente") sob o titulo de Bstrclos sobre psicologia anatlitica, Nas palavias de Read, Adler e Fordham, editores das Obras Completas, esses dois ensaios representam "um ponto critico na hist6- 29 via da psicologia analitica, por revelarem as fundagbes sobre as quai se erguieu a maior parte do trabalho posterior do professor Jung." ‘Como em muitas outras referéncias de Jung 4 homossexualidade, em "Sobre a psicologia do inconsciente” ela é mencionada numa dis- cussio a respeito de um tema completamente diferente, no caso o mé- todo junguiano da interpretacao dos sonhos, no capitulo intitulado “The synthetic or constructive method” ("O método sintético ou cons- tutivo"). Para dustrar a diferenga entre uma interpretagao analitica de ‘um sonho, que Jung vé como caracteristicamente psicanalttica, ¢ seu préprio método de interpretagao dos sonhos, a que ele chama ‘sintéti- co’ ou ‘construtivo’, Jung d4 o seguinte exempl Uma paciente minha, que acabara cle atingir a fronteira critica entre aantlise do inconsciente pessoal e a irrupgio dos contetidos do in- consciente coletivo, teve 0 seguinte sonho: Ela estd prestes a atra~ vessar im rio muito largo. Nao existe ponte, mas ela encontra um vau que Ibe permite atravessd-lo. Quando esté para fazé-lo, wm grande caranguejo que estava escondido na agua agarra-tbe o pée ndo a solta. Fla acorda aterrorizada, !? O fato de esse sonho estar relacionado com a homossexualidade € revclado pelas associagées da paciente, que ligam suas dificuldades ‘em atravessar 0 rio a uma briga sua com uma amiga. A respeito dessa amizade, Jung diz: Ha algo de peculiar nas retagdes dela com essa amiga, E uma ligngao sentimental, beirando a homosexual, que durou muitos anos. A amign se parece coma paciente em muitos aspectos e € tio nervosa quanto ela, As duas tém interesses artisticos muito acentuados em comuum. A paciente €, das duas, a personalidade mais forte. Como a relagio entre as duas € muito intima e exclui muitas das outras possibilidades da vida, ambas sto nervosas e, apesar dessa amizade iceal, rem cents vio- lentas devido a irvitabilidade miitua (..). Faute de mieux, es5as brigas permanecem durante muito tempo para ambas como um substitura do razer que elas relutam em largar. Minha paciente em particular nao conseguia passar sem a doce dor de ser mal interpretada por sua me- thor amiga, embora cada cena *a matasse de cansago". Desde entao, havin muito tempo que ela percebera que essa amiizade estava mori- bunda, e que s6 uma esperanga va a levava a acreditar que a relagio podia se transformar em algo ideal. Antes, ela tivera uma relagao exa- rerada e irreal com a mae, Com a morte desta, ela transferiu seus senti- ‘mentos para a amiga.’ © exemplo de Jung de uma interpretacio analitica ou redut causal explica por que a paciente mantém esse dificil relacionamento: ela reluta em abandonar essa amizade por nao estar disposta a sacrifi- car 0 "desejo infantil" de desempenhar um papel masculino com 2 amiga, um desejo acompanhado por "fantasias sexuais coresponden- tes". Esse desejo é infantil por originar-se de um desejo impréprio de recriar a relago com a mae. A visio da homossexualidade implicita nessa interpretagao redutiva-causal est, como no caso anterior, ali- nhada com uma posicao psicanalitica ortodoxa; a homossexualidade, ‘ais ou menos subconsciente neste caso, resulta de um deseo nao-re- solvido de permanecer numa relagao infantil com a fantasia que se tem da mie ou do pai, Jung distancia-se no plano teGrico dessa abor- dagem recutiva na andlise dos sonhos. Considera esse tipo de inter- pretagio “uma séria depreciagao do ideal exaltado de amizade manti- do pela paciente", embora esta, j4 consciente de suas tendéncias homossexusis, houvesse provavelmente accitado a interpretagao. Jung dectara de forma direta em siia discussto que "a interpretagio, na realidade, nao acrescenta nada de novo para a paciente; é, portanto, sem interesse ¢ intitil" 5 Sera que a avaliagtio negativa de Jung desse método significa que ele também discorda do julgamento psicanalitico de que essa ligagio homossexual da mulher é sinal de imaturidade psicologica? Infeliz- ‘mente, para responder a essa pergunta, deve-se passar por uma dis- cussio a respeito da riquissima anilise dos sonhos proposta por Jung Embora 0 método junguiano de interpretacao dos sonhos seja consi deravelmente menos simplista e muito mais evocativo do que a inter- pretagio analitica, sua visio da homossexualidade envalvida no caso em questio permanece essencialmente a mesma, Por meio da associa ¢A0 feita pela paciente do caranguejo com o cincer e, em seguida, ‘com uma amiga que morrera de cancer "depois de uma série de aven. turas com homens’, Jung ve apego de sua paciente a uma amizade problematica como uma defesa contra uma *vertente frivola" que "pode funcionar como uma armadilha que a faga levar uma vida amo- ral", "Portanto’, afirma Jung, "ela fica no nivel infantil, homossexual, por- que serve a ela como defesa. (A experiéncia mostia que esta 6 uma das mais fortes raz6es para se agairar a relagdes infantis e inadequadas.)" Jung repete sua visio da homossexualidacle como algo infantil ain- a uma terceira ver, € de novo no contesto de uma dliscussio de caso, ‘no mesmo artigo. No capitulo intitulado "The archetypes of the collczti- ve unconscious" ("Os arquétipos do inconsciente coletivo"), Jung usa 0 31 caso de um rapaz tratado por ele para ilustrar como chegou a idéia cle arquétipo no nivel de consciéncia subjacente 20 pessoal, chamado por ele de inconsciente coletivo. O importante aqui, porém, € que com essa referencia temos um relato de caso feito pelo proprio Jung em que a homossexualidade do paciente € o objeto do tratamento, ~SEm primeiro lugar, devo familiarizar 0 leitor até certo ponto coma per- sonalidade do paciente cujos sonhos sto analisados aqui; sem esse co- nhecimento, serd dificil se transferir para a atmosfera peculiar desses sonhos (..) O paciente é um rapaz de pouco mais de vinte anos, ainda com a aparéncia de um garoto. Ha até um toque de feminilidade em sua aparéncia e no modo de se exprimir, revelando uma educagao aprimorada. Ele € inteligente, com interesses intelectuais e estéticos muito pronunciados. Seu esteticismo € muito evidente: tornamo-nos imediatamente conscientes de seu bom gosto e de sua refinada apre- cago por todas as formas de arte. Seus sentimentos so delicados, suaves, propensos ao entusiasmo tipico da puberdade, mas algo efe- ‘minados. Nao ha qualquer resquicio de inexperiéncia adolescente cle. Sem divida, é jovem demais para sua idade, um caso bastante claro de desenvolvimento retardado, Dado esse perfil, é l6gico que ele tenha vindo me procurar por causa de sua homossexualidade. Na noi- teanterior a sua primeira visita, ele teve o seguinte sonho: "Estou numa catedral muito espagosa e cheia de uma misteriosa luz crepuscular. Al- guém me diz que é a catedral de Lourdes. No centro, ha um pogo fun- doe escuro dentro do qual tenho de descer’.!? A descrigio do rapaz homosexual di a sensagio do equilibrio ¢ da franqueza com que Jung tendia a encarar as pessoas, independen- temente de sua posigao teérica. Embora nfo deixe de notar a imatuti- dade do rapaz, também percebe nele uma inteligéncia desenvolvida, a sensibilidade estética ¢ 0 ar experiente, incomuns num adolescente. As associagdes do paciente com esse primeiro sonho em andlise levaram Jung a ver o sonho como compensatério, com o paciente abrindo mao de seus pais em favor de uma iniciagio numa forma mais elevada de masculinidade, representaca no sonho pelo sacer- décio. Jung conclui, poranto: "De acordo com 0 sonho, ento, que 0 inicio do tratamento representa para o paciente a realizago do significado pleno de sua homossexualidade, isto €, sua entrada no mundo dos homens adultos’.!8 jung vé em seu paciente o desejo de uma iniciagio masculina sendo despertado em primeiro lugar pela mae do rapaz, mas 32 nao hi nenhum padre instrutor para desenvolver essa iniciagio, para levi-la mais adiante, de modo que a crianga permanece nas, mios da mae. Apesar clisso, 0 anseio de uma lideranga masculina continuow a crescer no garoto, tomando a forma de tendéncias ho- mossexuais — um desenvolvimento imperfeito que talvez nunca ti- vesse ocorrido se houvesse um homem para educar as fantasias i fantis do garoto. O desvio para a homossexualidade tem, & evidente, numerosos precedentes hist6ricos. Na Grécia antiga, como também em certas comunidades primitivas, a homossexuali dade era praticamente sinénimo de educacio. Vista sob essa luz, a homossexualidade da adolescéncia no passa de uma mA com- preensio da necessidade, de outra forma muito apropriada, de uma orientagdo masculina.® De modo algum Jung parece ter uma visto positiva da homosse- xualidade de seu paciente. Apesar disso, a linguagem que ele usa para descrever essa condigio enquanto "desenvolvimento imperfeito" € *mé compreensio" de uma necessidade de outra forma muito apro- priada também nao indica qualquer condenagao mais séria. A tentati- va de Jung de ver esse ‘desvio' num contexto hist6rico mais amplo do que 0 moralismo pés-vitoriano do inicio do século XX também indica uma neutralidade surpreendemte para a época. ‘O muis importante aqui é a tentativa de Jung de encontrar o senti- do dessa homossexualidade adolescente. Embora Jung certamente achasse que a descoberta do significado dle um sintoma facilitaria 2 cura e, portanto, poderia resolver a homossexualidade do paciente, ele parte do principio de que ba um significado individual para essa homossexualidade que independe de seu julgamento analitico, Essa busca de um significado individual na patologia do paciente é caracte- ristica da abordagem de Jung em relagio aos fendmenos psicologicos, € 0 caso em pauta € um excelente exemplo dessa atitude muito jun- guiana em relac2o A satide e& doenca segundo sonho do paciente retoma o tema da iniciagto: Estou numa grandiosa catedral gotica. No altar hé um padre. Esto diante dele com meu amigo, segurando na mio uma pequena figura japonesa em marfim, com a sensagao de que a figura vai ser batizada, De repente, aparece uma mulher de idade; ela tir 0 anel de irmandade do dedo de meu amigo € 0 coloca em seu proprio dedo. Ele ica com edo de que esse gesto 0 prenda de alguma forma. Mas, no mesmo instan- te, ouvimos o som de uma miisica maravilhosa tocada 20 Sxgio® 33 Jung oma esse segundo sonho como uma confirmagio de sua interpretagao anterior, como um sinal de que © paciente est pro- gredindo na superagao da homossexualidade para a qual buscou tratamento. presenga do padre como um simbolo da masculinida- de, a passagem do anel do dedo do namorado para a mulher mais velha, uma substicuta da mie, ¢ a mtisica maravilhosa que acompa- aha a ceriménia, tudo isso € interpretado como "um passo a frente em relagao 4 mac e em diregao 4 masculinidade; e, portanto, uma conquista parcial de sua homossexualidade adolescente’, mencio- nada num ponto anterior desse trecho como "uma condigio relati- vamente infantil" 24 Esses quatro trechos dos textos mais antigos de Jung parecem indi- car que, nesse momento de sua carreira, ele via a homossexvalidade como uma forma de imaturidade causada, em parte, por uma pertur- bagio no relacionamento com os pais, sobretudo com a mile. Essa sto ¢ psicanalitica em sua esséncia, mas hé af pelo menos uma dife- renga importante: Jung parece considerar a perturbacao filho-pais de forms mais varinda do que a teoria psicanalitica de um complexo de Edipo universal. Apesar de sua disposi¢ao em curar essa condi¢do re- Jativamente "infantil", Jung compantlha com Freud a atitude tolerante com relagao a homossexvatidade, uma atitude caracteristica dos pri- mérdios da psicanélise (tolerante, mais uma vez, em comparagto com 9s valores sociais ¢ religiosos desse periodo). E sto dignos de nota tanto a tentativa de Jung de sitwar a homossexualiciade numa perspec- tiva hist6rica, bem como a abordagem compreensiva assumida por ele 20 buscar o possivel significado da homossexualicade de cada pacien- fe. Dessa forma, esses trechos prenunciam 0 que se tornaria a marca registradla da psicologia analitica cle Jung, Complexidade te6rica e consolidagdo: 1920 -1927 A publicagio de Tipos psicolgicas em 1921 marca o fim do longo periodo de exame interior que comegou para Jung com sua expulsio Pblica dos circulos psicanaliticos no final de 1913. Redigido em gran- de parte entre 1913 ¢ 1917, esse trabalho foi realizado por Jung prima- riamente devido a sua necessidade de "definir de que formas minha vi- sto diferia da de Freud ¢ da de Adler"? ¢ representa assim 0 primeiro exemplo do pensamento maduro e caracteristico de Jung. A peculiaridade dos conceitos usados por Jung em Tipos psicolégi- cos, elaborado durante um petiodo de isolamento profissional, um 34 *periodo abandonado" de conflitos internos, tornou necessiria a in- dlusio do longo capitulo "Definitions" (‘Definigdes") no final do livro. Nesse abrangente glossirio de termos junguianos, ele menciona a ho- mossexualidade em sua conceituacao da ‘alma-imagem’ — que sera mais tarde chamada anima/animus— e fomece uma explicagio para ‘uma das maneiras pelas quais se manifesta 2 homossexualidade: Para o homem, a mulher € mais adequada para scr a verdadeira porta dora de sua alma-imagem por causa da qualidade feminina de sua alma; para a mulher, é 6 homem. Onde quer que haja uma relagao apaixonada entre os dois sexos, ¢ invariavelmente o caso de uma alma-imagem projetada. Uma vez que essas relagdes $40 muito co- muns, 2 alma deve ser inconsciente com a mesma freqiéncia, ou seja, um grande ntimero de pessoas deve estar bastante inconsciente da for- ma como se relacionam com seus processos psiquicos internos. E como essa inconsciéncia sempre vem junto com uma identificagao completa coma persona, essa identificagio deve ser também bastante fre qiente (..) Por outro lado, pode também acontecer de a alma-imagem ‘do ser projetada mas ficar como sujeto, e disso resulta uma identificago com a alma porque 0 sujeito esta nesse caso convencido de que“ forma pela qual se relaciona com seus processos intemnos é seu verdadeiro cari- fer, Nesse caso, a Persona, estando inconsciente, sera projetada numa pessoa do mesmo sexo, fomecendo assim a base para muitos casos de homossexualidade aberta ou latente e de transferéncias para 0 pai nas ho- ‘mens ou para a mae nas mulheres. Nesses casos, sempre ha uma adapta- lo imperfeita a realidade externa e uma incapacidade de se relacionar, porque a identificagto com a alma produz uma atitude predominante- mente orientada para a percepeao dos processas internos e o objeto & desprovido de sev poder de determinacio.® Essa discussdo aparentemente improvisada sobre a natureza da anima apresenta pela primeira vez uma das principais maneiras pelas quais Jung viria a compreender muitos casos de homossexualidade, isto €, como conseqiiéncia da identificagio com 0 arquétipo contra-se- xual da anima ou animus Cala? ou *alma-imagem* na definigao ci- tada acima), A identificagao do homem com sua feminilidade incons- ciente leva assim a projegao de sua persona, quer dizer, de sua masculinidade "externa", para outro homem, Isso, como diz Jung aqui, cria a atragao pelo mesmo sexo, uma vez que a pessoa que projeta sua masculinidade ira perceber portador dessa projec4o como 0 possui- dor de algo essencial ¢ irresistivel, especificamente aquela parte de uma identidade masculina externa que foi ‘jogada fora’ por causa de 35 uma identificagio com sez lado feminina interior. Dessa forma, cestos casos de homossexualidace s0 exemplos de "uma adaptag3e imper- feita a realidade externa e de uma falta de capacidade de se relacio- nar", na medida em que 2 pessoa que projeta sua persona masculina ilo estd se relacionance ce verdade com 0 outro, mas com uma parte de sua propria alma que z'ada nio foi integrada — sua masculinidade. Essa explicagao € exzemamente interessante por varias razbes. Em primeiro lugar, em te=nos ca prOpria evolugao teérica de Jung, 2 teoria da identificaco ds anima nao muda as concepgdes que vimos nos primeiros textos dele, segundo as quais a homossexvalidade ‘uma forma de imaturidade psicol6gica baseada em transferéncias ina- dequadas em relagao a0s pais. De fato, 0 conceito de animafanimus estabelecido por Jung fornece uma explicagio tanto para a homosse- xualidade como para as transferéncias em relagio a mae ou 20 pai ob- servadas anteriormente. Para o homem, tanto essas transferéncias como a homossexualidade originam-se de sua identificagio com uma feminilidade imatura ¢ no-integrada — sua anima. Em segundo lugar, Jung afirma que tanto a atrago homassexual como a paixdo heterossema} so conseqiiéncias dos mesmos mecanis- mos psicol6gicos: a identificagio e a projecio, Na homossexualidade, a persona é projetada por causa da identificagio da anima, na heterosse- xualidade, a antima/animus € projetada por causa da identificagao da persona, O que Jung considera imperfeito nesses casos, portanto, no € nem a homossexualidade nem a hetcrossewuslidade em si, mas a natureza inconsciente dos contetidos psiquicos projetados — o arquétipo da ant- ma/animus—, dai a naturezs muitas vezes mal-orientada da paixlo'se- >xual, homossexual ou heerossexual Em terceiro lugar, Jung ao anuncia aqui qualquer principio uni- versal. A identificagao dz amima é meramente uma ‘base’ para muitos casos de homossexualidace “aberta ou latente’. No € uma causa que leve de modo inexoravel a todos os casos de homossexuatidade, ¢ esta no € compreendida mum sentido puramence genital. A homosse- xualidade, tal como o temo € empregado aqui por Jung, € tanto um estado psiquico de atragio pelo mesmo sexo como a expresso com- portamental dessa atragio sexual por outro homem ou mulher. A.essa altura, deve estar bastante claro que Jung consagrou a ho- mossexualidace uma parcels considerivel de seu pensamento, embo- ra ela nunca tenha ocupado 0 centro de seu trabalho, Podemes ver to- mar forma nestes trechos uma certa abordagem, uma atitude particular, um esbogo de teoria sobre esse fendmeno. Sabemos que, fi 36 em 1918, Jung tinha pacientes homossexusis ou com relagdes marca- das em algum ponto pela homossexualidade, Podemos constatar que ele usa € reve conceitos psicanaliticos para explicar a atrago erética pelo mesmo sexo, e vemos em sua teoria alma-imagem (ou ant- mevanimus) uma definigio genuinamente sua. A conferéncia proferida por Jung para os estudantes da Universi- dade de Zurique no final de 1922, intitulada The Love Problem of a Student (O Problema Amoroso de um Estudante), foi originalmente publicada em inglés em 1928. Uma das exposigdes mais vastas dos pontos de vista de Jung a respeito da inter-relagdo entre sexualidade e Amor, esse curto artigo contém sua discussao mais extensa a respeito da homossexualidade, Como o tema da conferéncia ¢ 0 amor, Jung co- mega por enumerar as varias formas em que o termo tem sido usado, inclusive “o.amor entre garotos, significando a homossexualidade que, desde os tempos classicos, perdeu seu fascinio enquanto instituigao social e ‘educativa ¢ hoje leva uma existéncia horrivel, marcada pelo terror, por ser considerada perversio e delito passivel de punigo, pelo menos no ‘que diz sespeito aos homens. Nos paises anglo-saxdes parece, por ou- tro lado, que a homossexualidade feminina significa pouco mais do que um lirismo sifico, jt que de alguma forma atua como estimulo para a organizagio politica e social das mulheres, da mesma forma que a homossexualitace masculina foi um fator importante na ascensto da polis grega Novamente encontramos a perspectiva hist6rica de Jung ¢ a falta de uma postura julgadora em seu reconhecimento da impomtncia do relacionamento homossexual entre aluno e mestre na civilizagdo gre~ ga antiga e também de seu papel na igualdade contemporinea das mulheres, Deve-se notar também o tom ligeiramente desaprovador que Jung adota em relago 20 tratamento social ¢ judicial da homosse- xualidade enquanto "considerada perversio", desaprovagio coerente tanto com sua perspectiva histGrica como com sua compreensio de psiquiatra, resto da conferéncia deixa claro, porém, que as formas de ho- messexualidade de que ele fala aqui correspondem aos modelos clis- sicos quer de atragao adolescente ou de relagio entre mestre ¢ aluno. Ainda identificando a homossexuatidade com a imaruridade psiquica, Jung escreve: 37 A investida da sexualidade no menino provoca uma poderosa mudan- ‘sa em sua psicologia. Ele agora tem a sexualidade de um homem adul- o.com a alma de uma crianga. (..) A assimilagto psiquica do comple- ‘xo sexual causa-Ihe as maiores dificuldades, mesmo que ele nio esteja consciente de sua existéncia. (..) Nessa idade, 0 jovem esté cheio de idusoes, que sempre sio um sinal de desequilibrio psiquico. Elas tor- fam impossivel qualquer estabilidade ou julgamento maduro. ¢..) Ele esta to crivado de ilusoes que na verdade precisa desses erros para conscientizar-se de seu proprio gosto e julgamento individuais. Ele ainda std testando a vida ¢ rem de testi-la para aprender como julgar as coisas de forma correta. Dai o fato de haver pouguissimos homens que nao te- sham tido experiéncias sexuais antes do casamento. Durante a puberda- de, predominam as experiéncias homossexuais € essas S20 muito mais comuns do que se admite em geral. As experiéncias heterossexuais vem. mais tarde, e nem sempre de uma forma muito bela.35 No entanto, trecho a seguir € sua afirmagao mais extensa e mais forte a respeito da homossexualidade: As relagdes homossexuais entre estudantes de qualquer sexo no sto de modo algum incomuns. Até onde posso avaliar esse fendmeno, eu diria que essas relagdes sio menos frequlentes entre nés e de forma ge ral no continence feuropeu} do que em alguns paises onde os rapazes e mogas estudantes vive na mais rigorosa segregacao. Falo aqui nto dos homossexuais patol6gicos, que sio incapazes de amizade verda- deira e encontram pouca receptividade entre os individuos normais, mas de jovens mais ou menos normais que sentem prazer com essas amizades arrebatadoras e que exprimem também seus sentimentos de forma sexual. No caso deles, nio se trata de masturbacao matua, que std na ordem do dia entre os miais jovens, na vida escolar e universiti- ria, mas de uma forma mais elevada e espiritual que mezece o nome de ‘amizade' no sentido clissico da palavra. Quando existe tal amizade ‘entre um homen rats velho e ourfo mais jovem, sua importancia edu- cativa € inquestionavel. Um professor ligeiramente homossexual, por » exemplo, muitas vezes deve seu brithante talento educacional a’essa inclinagio. A relagao homossexual entre um homem mais velho ¢ ou- {ro mais jovem pode, portanto, ser vantajosa para ambas as partes e ter uma qualidade duradoura. Uma condigao indispensivel para o valor de tal relagao € a firmeza da amizade ¢ a lealdade miitua, Mas muitas vezes falta essa condigiio. Quanto mais homossexual for o homem, maior é sua tendéncia & infidelidade e a sedugio de meninos. Mesmo quando prevalecem a lealdade e a verdadeira amizade, as conse- aiiéncias podem ser indesejiveis para o desenvolvimento da perso- 38 nalidade, Uma amizade desse tipo naturalmente envolve um culto es- pecial dos sentimentos, o elemento feminino no homem. Ele se torna cfusivo, super-sensivel, cioso de valores estéticos etc. — numa pala- vra, efeminado—, eesse compotamento feminino € prejudicial aseu carder, Jung prossegue com observacées a respeito das relagdes entre mulheres: Podem ser apontadas vantagens ¢ desvantagens semelhantes na ami- zade entre mulheres, mas aqui as diferengas de idade e de nivel educa- ‘ional ndo sto tao importantes. O principal valor neste caso € a troca de sentimentos carinhosos de um lado e de pensamentos intimos do ‘outro. Em geral, trata-se de mulheres orguthosas, intelectuais e bastan- te masculinas, que buscam manter sua superioridade e se defender dos homens. Sua atitude em relagio a eles 6, portanto, de desconcer- ante auto-afirmagao, com um elemento de desafio. O efeito disso no cardter da mulher € 0 reforgo de seus tragos masculinos e a destruigao de seu encanto feminino. Muitas vezes o homem descobre a homosse- xualidade dessas mulheres ao perceber que elas 0 deixam completa- mente frio. Normalmente, a pratica da homossexualidade nao € prejudicial a uma atividade heterossexual posterior, De fato, as duas podem até existir paralelamente. Conheo uma mulher muito inteligente que passou a vida inteira como homossexual ¢ que aos 50 anos iniciou um relacio- ‘mento normal com um homem.?” Estes trechos sio a evidéncia de que Jung nao faz qualquer conde- nagao taxativa ou unilateral do fendmeno, Ao contrario, reconhece com franqueza a ampla variedade de relacionamentos abrangida pelo termo bomossexualidade e observa as "vantagens e desvantagens" de cada um, desde as amizades "mais elevadas € mais espirituais* entre garotos até as relagdes de "sentimentos de carinho" e "pensamentos intimos" entce mulheres "orgulhosas". $6 0 fato de tragar as distingdes entre essas relagées ja € uma atitude muito mais positiva do que a de- monstrada por muitos psiclogos depois dele, sem falar em sua vis2o de que esses "delitos passiveis de puni¢ao" podem ter vantagens desvantagens. Mais no inicio do artigo, Jung afirma que ele nao inclui automaticamente a homossexualidade no conceito de perversio se- xual "porque muitas vezes é um problema de relacionamento",8 ¢ 0 trecho que mencionamos logo acima, com as distingdes que faz entre diferentes tipos de homossexualidade, demonstra bem essa visio. 39 Apesar disso, Jung nio aprova indiscriminadamente a homosse- xualidade cm todas as suas formas e scu lado negativo € discutido de modo bastante franco, Ele termina a conferéncia com 0 comentirio de que nao faz "qualquer tipo de julgamento moral a respeito da sexual dade enquanto fendmeno natural, preferindo deisar (sua) avaliagao moral na dependéncia da forma como cla ¢ expressa".” A avaliagto feita aqui por Jung sobre a homossexualidade é ilustrada em seu exemplo de uma relagao entce um homem mais velho e outro mais jo- vem, uma relagao que pode, na sua visio, ser valiosa por sua "frmeza ¢ lealdacle’, Apesar disso, essas condigdes nem sempre sao suficientes Para 0 "desenvolvimento da personalidade" devido & ameaga da identifi cagio da anima € o resultante "comportamento efeminado (..) prejudi- ial ao caréter [do homem)", A mesma avaliagao cautelosa é feita sobre as relagdes lésbicas, quando Jung comenta que as atitudes negativas destas frente aos homens reforgam "seus tragos masculinos’, amuinando assim "seu encanto femining", Apesar dessa avaliagio inquestionavelmente negativa, deve-se ob- Servar que a homossexualicade em si, enquanto fendmeno natural, ndo € condenada por Jung. O que ele faz é avaliar cada relagao ho- ‘mossexual com base em seu efeito titil ou prejudicial para o carter da Pessoa, procurando ver se sua expresso auxilia ou impede a integea- sao da antima/animus, Nesse método de avaliagio moral est implicita a idéia de que ho- mossexualidade e cariter podem ser separados um do outro, Nao ha dtivida de que Jung nao sustenta a idéia cle uma personalidade ho- mossexual universalmente presente em homens ¢ mulheres com atra~ S20 pelo mesmo sexo. Em sua visio, 0 fato de alguém ter sentimentos ou relagGes homossexuais nao quer dizer a prior’ nada de positive ou negativo a respeito da pessoa, jf que, em stias palavras, a homosse- xualidade nfo passa cle "um fenémeno natural’ Se nos distanciarmos um pouco da tearia, poderemos notar que ung parece seguir um processo em duas etapas a0 tabalhar com pa- cientes homossexuais, comecando por um exame compreensivo € isento de julgamento a respeito de como a homossexualidade se ex- Pressa na vida do paciente para em seguida tragar uma avaliagao mo- ral da homossexuslidade com base em seu efeito sobre o cariter do Paciente ou, para usar um termo mais contemporiineo, sobre sua per- sonalidade, Ele duvida que certos valores como a lealdade ¢ a amiza- dle firme possam ser mantidos numa relagio homosexual de modo a torné-la verdadeiramente merecedora de um julgamento moral positi- 40 Vo. Para Jung, s6 raras vezes uma-élagio homossexual chega a ser um. fator positive para o desenvolvimento € a personalidade do paciente. Esse tom pessimist parece originar-se do que se pode chamar vi- fo "quantitativa" de Jung sobre a homossexualidade. Quanto "mais’ homossexual é 0 homem, menos capaz parece ser de demonstrar va- lores positivos como a lealdade ¢ a firmeza na amizade. J4 um homem "ligeiramente" homosexual pode chegar a ser um educador brilhante por causa de sus "inclinag20", Jung no explica 0 que quer dizer com mais ou menos homosexual ‘Uma das possibilidades € que esteja se referindo a frequéncia das relagdes sexuais. A preméncia instintiva no homem com incli- nagdes homossexuais pode resultar na promiscuidade e tornar as- sim dificil manter a lealdade e a amizade firme. Outra possibilidade € que Jung classifique o grau de homossexualidade baseado no grau de identificacao observavel do homem com sua anima, Um homem muito identificado com sua anima, portanto mais homos- sexual, softeria todas os efeitos decorrentes da expresso dessa fe- minilidade inconsciente e, por conseguinte, inferior, e se descobri- ria "hipersensivel" ¢ "efusivo", qualidades incompativeis com firmeza ¢ lealdacle na opiniio de Jung, No entanto, um homem ape- nas ligeitamente identificado com sua anina e, portanto, menos homossexual, provavelmente teria uma relagao razoavelmente boa com seu lado feminino e se daria melhor nas Aguas traigociras dos relacionamentos entre homens. A primeira explicagio ¢ mais prova: yel do que a segunda, uma vez que a identificagao coma aninae a homossexualidade nao sto de forma alguma sindnimos e Jung nto usaria os termos de forma to intercambiivel. Mas ¢ssa visio esira- nha de graus diferentes de homossexualidade parece importante pata ajudi-to na determinagao moral do valor da expresso homos- sexual na vida clo individuo. © iltimo ponto importante é a observagio de Jung de que a pritica homosexual normalmente nfo exchui a pritica heterossemual e que as cluas podem coexistir, Ele no diz sea reciproca seria verdadeira, ou seja, sc a pritica heterossexual nao excluiria a homossemualidade, embora provavelmente nao fizesse abjecio a essa hipéxese, Apesar de muitos ru- ‘mores relacionados a icentidade da muller a quem Jung se refere aqui (por exemplo, de que ela seria uma das conhecicas psicanalistas por ele analisadas, entte elas Matie-Louise von Franz, Barbara Hanaah e Esther Harding, as vezes mencionadas nos meios junguiancs), 0 uso que Jung faz do termo normal parece indicar um valor qualitativo e niio quanticati- 4 vo, sobretudo por ele considerar que até os homossexuais comprova- dos podem chegar a ter um relacionamenta normal, Dada sua cons- cigncia da variedade extrema de rekacionamentos homossexuais © na falta cle outra explicagio, tem-se a sensagto de que por relacionamen.- ‘9 normal Jung quer dizer casamento. Sua abordagem biisica perma- nece, porém, a mesma: a homossexualidade da mulher no exclu sua inteligéncia, Esse rico trecho fornece uma boa visio a respeito do pensamen- fo de Jung sobre a homossexualidade. Ao considerar o fendmeno nao como algo unitério mas como uma variedade de relacionamen- tos, Jung retira 2 homossexualidade do plano da perversio sexual ¢ faz julgamentos morais baseados em sua fungio na personalidade do individuo, que ¢ vista como independente das inclinagdes ho- mossexuais. Embora reconhega que certas relagdes homossexuais Possam ser positivas e promotoras de crescimento, Jung duvida que a maioria delas possa ser de alguma utilidade para 0 individuo, por causa da freqiigncia da identificagio anima/animus subjacente. Da mesma forma, embora reconhega a fluidez da orientagdo e pratica sexuais, Jung di um Gnico exemplo no qual uma lésbica de 50 anos inicia um relacionamento normal com um homem. A visio bastante simplista dos primeiros anos, na qual a homossexualidade era uma forma de imaturidade psicolégica, passou por uma grande evolu- io € baseia-se agora em conceitos que sto peculiares 20 pensa- mento junguiano, Para aqueles que se interessam menos pela tcoria, é interessante observar como as discussdes de Jung a respeito da homossexuslidade muitas vezes ocorrem no contexto de um relato de caso, Na titima das ttés conferéncias dadas no International Congress of Education (Con- {gresso Internacional de Educagio) em Londres, em 1924, publicadas com 0 titulo de Analytical psychology and education (Psicologia ana- Mica e edticagao), Jung menciona o caso de uma menina de 13 anos Part mostrar como as perturbagdes psicol6gicas dos pais muitas vezes ‘se manifestam na crianga, Sofrendo "de uma pressio enorme de emo. s6es contidas que se alimentavam mais de Fantasias homossexuais do aie de relagdes verdadleiras (..) ela confessoui que as vezes desejava ser acariciaca por uma certa professora, ede répente distraia-se e dei- xava de prestar atengio no que Ihe dizian}; dai suas respostas alasur- das", Filha de um pai ausente ¢ de uma mae a crianga nilo recebe um grdo de amor verdadero. E por isso que sofre de sintomas sexuais prematuros, como muitas outeas criangas maltrats~ dias, enquanto ao mesmo tempo € inundaca com 0 chamado amor ma- temo. As fantasias homossemuais mostram claramente que sua necessi- dade de amor nao é satisfeita; em consequncia disso, ela deseja o amor de sua professora, mas de modo improprio. Se os sentimentos de carinho silo jogadios porta afora, © sexo em forma violenta entra pela janela por- que, além de amor e carinho, a crianga precisa de compreensii.% Isso ilustra mais uma vez 0 processo em duas fases usado por Jung para avaliar a expresstio da homossexualicade. Em vez de condenar as. fantasias homossexuais como uma aberrago, ele examina a menina enquanto pessoa por inteiro ¢ descobre que suas fantasias homosse- suis servem como substituto para o verdadeiro amor que Ihe € nega- do pelos pais. ‘Esse caso contrasta de forma interessante com a possibilidade mencionada antes por Jung de uma relagio homosexual entre uma mulher mais velha ¢ uma garota jovem, No entanto, a intensidade da carga sexual por trés das fantasias da menina esti dirctamente relacio- nada com seus "sentimentos de carinho" sendo "jogados porta afora’ pela falta de amor dos pais. Jung vé essa falta de amor, e nao a homos- sexualidade da menina, como 0 foco priméio do tratamento: "A coisa certa neste caso seria naturalmente tratar a mae (...)°3! A discussio desse caso 6 importante para ilustrar por que sao raras em Jung as afirmagoes categérieas a respeito da homossexualidade, a qual, neste exemplo, é secundéria em relagao a dinmica emocional subjacente dentro da familia. Tratar a crianga por causa de sua homos- sexualidade partindo, por exemplo, do pressuposto de que ela sofre de sentimentos edipianos niio resolvidos ou até, na terminologia jun- {uiana, de uma identificagto com 0 animus para compensar a ausén- cia de seu pai pessoal, seria perder de vista completamente a hipétese que Jung pretence demonstrar aqui. As fantasias homossexuiais aqui observadas por ele sto avalindas de acordo com outros critérios, espe- cificamente com 0 efeito positive ou negative que esses impulsos tém no conjunto da personalidade da menina, cuja suposta homossexuali- dade, em si questionavel, parece acesséria em relagao a0 verdacleiro problema: uma sexualidade precoce devida 4 falta de amor intensa- mente experimentada, a No ano seguinte, 1925, jung voltou a dar uma conferéncia no mes- ‘mo Congresso Internacional de Educagio, desta vez em Heidelberg, a fo qual voltou a mencionar 0 caso do adolescente que 0 consultara ara curar sua homossexualidade e antecipara o inicio do tratamento com o sonho de um pogo na catedral de Lourdes. Apesar da evolugao Abvia do pensamento de Jung desde a publicagio do caso pela pri- meira vez em 1917, ele repete sua anilise sem qualquer modificacao, muitas vezes de forma literal. Deve-se, portanto, supor que junto com a visto mais complexa exposta em "O problema amoroso de um estu- dante’, Jung via alguns casos de homossexualidade de acordo com os antigos conceitos de imaturidade psicol6gica e transferéncia materna nao resolvida. Diante do trabalho que ele se ca para explicar 0 cariter algo efeminado e muito voltado para a estética do rapaz, é de sur- preencier que Jung nao tenha reinterpretado esse caso com mais pro- fundidade, usando 0 conceito de alma-imagem, ou seja, da anima, para explicar os tragos de personalidade do rapaz, sta transferéncia em relagio & mie, suas inclinagdes religiosas, bem como seus sonhos. E nio ter feito isso pode ser explicado pelo fato de que 0 caso € citacto nao no contexto de uma discussio a respeito da sexualidade ou da homossexualidade, mas de uma ilustrag2o, para um grupo de educa- dores, do método junguiano de interpretagao dos sonhos. No entanto, Jung cli mostras de que, de fato, mesmo nessa época, ainda tinha em mente sua teoria da homossexualidade enquanto re~ sultado de uma ligagdo com a mae pessoal. No mesmo ano, 1925, ele cita 0 seguinte exemplo em "Marriage as a psychological relationship" °O casamento como uma relagao psicolégica Os piores resultados advém de pais que se mantiveram anifcialmente \conscientes. Tomemos 0 caso da mae que se mantém inconsciente de forma deliberada para nao desfazer a encenagio do casamento ‘sa- tisfat6rio’, De forma inconsciente, ela ird prender o filo a ela, mais ou menos como substituto do marido. O filho, se nao € forgado direta- mente a se tomar homosexual, € obligado a modificar sua escolha de uma forma contratia a sua verdadelra natureza. Ele pode, por exem- plo, se casar com tima moga inferiora sua mie e, portanto, incapaz de competir com ela, Ou pode se apaixonar por uma mulher de disposi- fo tirdnica € dominadora, que talvez consiga arranci-lo da mae.2? OLE CERIO | No entanto, €m'1927, Jang publicou "Woman in Europe" (CA mu- Iher na Europa"); lima longa discussio a respeito da mudanga do pa- pel das mulheres na sociedade européia de um ponto de vista psicolé- gico. Esse aitigo, Um dos mais conhecidos de Jung, € um exemplo perfeito de como ele lava com questies sociaissignificativas na qua- 44 / lidade de psicologo ‘médico’, ou seja, clinico. Nele, Jung discute as vantagens e desvantagens psicol6gicas da entrada das mulheres nos meios politicos € no mercado de trabalho, dominados pelos homens. Entre as desvantagens, cle aponta 0 perigo da identificaciocom o ani- ius em mulheres que se véem num papel novo, masculino: ‘A masculinizagao mental da mulher tem resultados indesejiveis. Ela talvez seja uma boa companheira para um homem sem ter qualquer acesso 20s sentimentos dele. A razao disso € que o animus dela (ou seja, seu racionalismo masculino, que com certeza no é a verdadeira racionalidade), pode ter barrado seus proprios sentimentos. Fla pode até se tomar frigida, como defesa contra o tipo masculino de sexuali- dade que corresponde 20 tipo de mente masculino dela. Ou, se a rea- io autodefensiva nao funcionar, ela pode desenvolver, no lugar da Sexualidade receptiva propria da mulher, uma forma de sexualidade agressiva e urgente, mais caracterfstica do homem. Essa reagio é também ‘um fendmeno voltado para uum propésito, que € exguer uma ponte a viva forge até o homem que desaparece lentamente. Uma terceira possibilida~ de, favorecida sobretudo nos paises anglo-saxdes, € a homossexualidade opcional no papel masculino.*3 ‘A homossexualidade € mais um vez identificada com a posse do animus, embora Jung deise claro que essa posse pode assumir viias formas concretas e derivar mais de fatores sécio-econdmicos do que pessoais. Oleitor mais atento notari como Jung identifica o feminino com as mulheres ¢ © masculine com os homiens. Na discussio que precede 0 trecho citado logo acima, Jung afirma varias coisas diferentes. Ora diz que "vemos que a mulher esti no processo de romper com © padro sexual puramente feminino de inconsciéncia e passividade e que fez uma concess2o & psicologia masculina ao se estabelecer como mem- bro visivel da sociedade", ora afirma que "ao assumir uma profiss’0 masculina, estudando e trabalhando como um homem, a mulher faz algo que nao esté totalmente de acordo com sua natureza feminina, se no Ihe for diretamente prejudicial. Ela faz algo que seria dificilmente possivel ao homem, a menos que este fosse chinés. Seria possivel 0 homem tornar-se baba ou cuidar de um jardim de infancia?" Em outro: ponto do texto, Jung diz: "Uma vez que em nossa natureza humana es- tdo unidos elementos masculinos ¢ femininos, um homem pode viver em sva poreao feminina e uma muther em sua porgao masculina. .) [Mas] o homem deve viver como homem ¢ a mulher como mulher".* 45 Essa identificagdo do papel sexual com 0 género também se reflere distingao feita por Jung entre o papel masculino ea alternativa de papel feminino na *homossexualidade opcional” mencionada logo acima. £ evidente que, mais tarde, com a evolugio da psicologia anali- tica, esses conceitos de feminino ¢ masculino seriam transformacios em prineipios psicolégicos intrinsecamente dissociados do género. Aqui, porém, nao ha distineao entre papel sexual ¢ género. Em conse- qiiéncia disso, a compreensao de Jung da homossexualidade feminina 4 esta altura continua sendo um cruzamento entre uma visio pura- mente arquetipica € outra que considera as lésbicas como desejosas de ser homens, que resolvem esse desejo por meio da homossexua- lidade opcional, Da mesma forma que Jung reconhece uma variedade de relagdes homossexuais com suas possiveis vantagens ¢ desvantagens, ele se arém a uma dlversidade de explicagdes € interpretagdes do comporta- mento homosexual nesse periodo de seu pensamento, Algumas cielas baseiam-se em fatores chamados por ele de arquetipicos, como a ani- ma/animus, outras de suas interpretagdes basciam-se no inconsciente pessoal, mais precisamente em complexos parentais negativos e trans- feréncias no resolvidas em relagao ao pai ou & mae. Essa distingdo entre a mae pessoal e a figura arquetipica da ani- ma/animus € puramente artificial pois, na visio de Jung, as duas esto ligadas de forma inextricivel. Em um de seus trabalhos mais importan- tes, publicado pela primeira vez em 1912, Simbolos da transformacao, Jung examina o mito do her6i, a batalha deste para conquistar a liber. dade em relagio a mae € 0 proceso que essa ‘batalha pela libertago! acarreta. No capitulo intitulado "A mac dual’, Jung observa que os mi- tos, bem como os sonhos ¢ fantasias do homem moderno, confirmam 4 ‘dualidade’ do simbolo maremno tanto em seu cariter, ou ‘valencia’, Positivo (consteutivo para o crescimento individual) ou negativo (des. truidor do crescimento) como na natureza dual do simbolo: pessoal ou arquetipico, Com relaciio a essa dualidade, Jung estabelece a ‘regea Psicol6gica’ segundo a qual *o primeiro portador da imagem da ani- ma € a mae’. Essa é uma idléia que faz muito sentido, tanto no plano psicolégico como no do senso comum, Voltando a jung ¢ 0s trechas dos meados de sua vida sobre a homos- sexualidade, constata-se que sua visto desse fenmeno tomou-se bas- tante complexa, para dizer o minimo. Jung coloca a homossexualidade ‘numa perspectiva cultural © hist6rica € reconhece abertamente o carter variado das relagdes homossexuais. Enquanto médico, aplica um proces- 46 s0 de avaliag’io moral em duas etapas, examinando primeiramente a homossexualidade no contexto da vida do paciente em seu conjunto e, em segundo lugar, fazendo um julgumento clinico a respeito da fin- fo positiva ou negativa dos pensamentos, sentimentos ou agbes ho- mossexuais do paciente. Sem excluir a possibilidade de Jung ter feito julgamentos positivos, nio ha davida de que os negatives eram muito mais freqitentes, pelo menos nos trabalhos examinados até agora. ‘Como vimos, 0s tinicos casos mencionacios por ele so aqueles nos quais a manifestacio da, homossemualidade parece se originar a panir de relagdes perturbadss com a anima/animus, com as pais do paciente ‘ou com ambos, o que toma a perturbagio em si uma mistura complexa de Fatores pessoais e arquetipicos na alma do individuo, Opensamento maduro de Jung : 1936-1950 A visio que Jung tem da homossexualidade no se tomna menos complexa a medida que ele envelhece, e seus dhtimos textos exami- nam ainda outros fatores envolvidos nesse fendmeno psical6gico. Para os que gostariam «le acreditar que Jung estava predisposto a uma atitude exclusivamente negativa frente a homossesualidadé, essa im- pressio errnea pade ser corrigida pelo seguinte trecho do texto "Concerning the archetypes, with spectal reference to the anima con- cept! ('Sobre os arquétipos, com referencia especial a0 conceito de anim), publicado pela primeira vez em 1936 e revisto em 1954: ‘As pessoas mais jovens, que ainda nfo chegaram a metade da vida (em tomo de 35 anos), podem suportaraté a perda total da anima sem sequie~ las, O mais imporante nessa fase para o homem é ser homem. O jovem em crescimento deve ser capaz de se libertar da fascinagio pela animade sua mle. Hi excegdes, sobrerucdo entre artistas, em que o problema muti- tas vezes assume tima outra forma; e também na homossematidade, que € camncterizada pela identidade com a anima, Diante da reconhecids fre- qiiéncia desse fenémeno, sua interpretacio enquanto perversio patologi- cca € bastante diibia. As descoberas no campo cl psicologia demonstra que se trata de uma questio de desligamento incompleto do arquétipo hermafrodita, alindo a uma resisténcia evidente em se identificar com o papel do ser sextal unilteral. Essa disposigio nao deve ser julgada conto eggtiva em rodas as cireunstncias, na mete em que preserva o arqutt- podo Homem Original perdido, de certa forma, pelo ser sewval unilateral, Embora afirme que "depois da metade da vida, porém, a perda permanente da anima acarreta uma diminuigio da vitalidade e da a7

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