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PERRY ANDERSON Teoria, politica e historia: | Um debate com E. P. Thompson Em Teoria, politica e historia, Perry Anderson polemiza com E. P. Thompson. Analisa de modo equilibrado e rigoroso problemas tedricos e politicos presentes nas criticas langadas por Thompson, em sua obra Miséria da teoria, contra o filésofo marxista Louis Althusser. Anderson trata de temas como a importancia da teoria, o papel da acao na historia, as relagdes entre infra e superestrutura, a questio da utopia, a estratégia socialista e outros. Forma-se, assim, uma trilogia: os textos de Louis Althusser publicados na década de 1960, a critica que Thompson langou contra eles e, por tiltimo, esta intervengao de Perry Anderson que € uma espécie de critica da critica. Nessa trilogia esta registrado um dos mais importantes debates do marxismo no século XX. A critica de Thompson a Althusser foi publicada no Brasil e obteve repercussao consideravel. Estava faltando publicar esta interven¢ao de P. Anderson para que o ptiblico brasileiro pudesse ter uma visio completa do debate. Ao publicar este livro, a Colegao Marx 21 preenche essa lacuna. Armando Boito Junior COLECAO MARX 21 Esta colegao pretende contribuir pa 0 estudo e a renovagao do marxi mo. Publica obras que obtiveram 1 percussao no exterior, mas que pé manecem desconhecidas do pdblic brasileiro. Excepcionalmente, public também obras ja traduzidas para portugués, mas que se encontram 1 ra de catalogo e sao de dificil aces: para o grande piblico. Perry ANDERSON, nascido em Londres em 1938, € historiador ¢ ensaista politico. Professor de Historia e de Sociologia na Universidade da California em Los Angeles (Ucla), foi editor da renomada New Left Review. ° Unrverstpape ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor MarceLo KNopet Coordenadora Geral da Universidade ‘TertSA Dis ZAMBON ATVARS Conselho Editorial Presidente MAncta ABREU Eucurpes pe Mesqurta Neto - IARA Lis FRANCO SCHIAVINATTO ‘Maina RocHA MACHADO ~ MARIA INfs PETRUCCI ROSA Osvatpo Novalis DE Oniveira JR. ~ RENATO Hyupa DE LUNA PEDROSA RopRIGO LANNA FRANCO DA SILVEIRA ~ VERA NISAKA SOLFERINI COLEGAO MARX 21 Comissio Editorial ARMANDO Boro JuNtor (coordenador) ‘Atrrepo SAAD Fito ~ EUCLIDES DE MzsquiTa NETO Joko Cantos Krourt Quartim DE Moraes ~ MARCO VANZULLT Conselho Consultivo ALVARO BIANCHI ~ ANDREIA GaLVAo ~ ANITA HANDFAS Isapet Louretro ~ Luciano CaviNt MARTORANO Luz Epuarpo MorTa ~ REINALDO CARCANHOLO ~ Ruy BRAGA PERRY ANDERSON TEORIA, POLITICA E HISTORIA Um debate com E. P. Thompson TRADUCAO Marcelo Cizaurre Guirau REVISAO DA TRADUGAO Ivan M. Ribeiro Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lingua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009, FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMACAO Bibliotecéria: Maria Licia Nery Dutra de Castro ~ cRB-8* / 1724 ‘An24t_ Anderson, Perry ‘Teoria, politica e historia: um debate com E. P. Thompson / Perry Anderson; tradugio: Marcelo Cizaurre; revisio da tradugdo: Ivan M. Ribeiro. - Campinas, ‘P: Editora da Unicamp, 2018. Tradugio de: Arguments within English marxism. 1. Thompson, Edward Palmer, 1924-1993. 2. New Left Review. 3. Comu- nismo — Histéria. 4. Socialismo ~ Histéria. I. Cizaurre, Marcelo. 11. Ri- beiro, Ivan M. IIL. Titulo. cpp - 052 = 320.531 ISBN 978-85-268-1453-0 +335.43 Titulo original: Arguments within English marxism Copyright © 1980 by Perry Anderson. Copyright © 1980 by The Imprint ofthe New Left Books Copyright © 2018 by Editora da Unicamp Direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19.2.1998 E proibida a reprodugdo total ou parcial sem autorizagio, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil, Foi feito 0 depésito legal. Direitos reservados & Editora da Unicamp Rus Caio Graco Prado, $0 - Campus Unicamp cer 13083-892 — Campinas ~ sp — Brasil Tel/Fax: (19) 3521-7718/7728 wwweditoraunicamp.combr ~ vendas@editora.unicamp.br historiador pode tender a ser um tanto generoso porque ‘um historiador tem que aprender a escutar e a dar aten- ‘go a grupos muito distintos de pessoas e a experimentar ¢ entender seus sistemas de valores ¢ sua consciéncia. Obviamente, em uma situagdo de grande engajamento, no se pode sempre arcar com esse tipo de generosidade. Mas, arcando-se muito pouco, se é impelido a um tipo de posig&o sectéria na qual erros de julgamento em re- lag&o a outras pessoas sdo repetidamente cometidos. ‘Temos visto muito disso ultimamente. A consciéncia histérica deve ajudar a entender as possibilidades de transformagao ¢ as possibi lades nas pessoa: Edward Thompson ie uy! os Hp eet nes, A esti ob figura en ae a A TMP Mio ay OY Py oo) 1s nT 4 ng ytgte, eae ie cml, st Nay bak Lo eee oe eee am Parent SUMARIO PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA. INTRODUGAO, 1 —HISTORIOGRAFIA.. 2—AGENCIA..... 3 — MARXISMO. 4 — STALINISMO.... 5 INTERNACIONALISMO.. 6 —uropias. 7 ~ ESTRATEGIAS. BIBLIOGRAFIA INDICE. 13 17 29 15 M17 149 177 197 . 231 237 PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA Danilo Enrico Martuscelli presente livro ocupa posigao tinica e até intrigante na histéria das edigdes brasileiras das obras de Perry Anderson. Como é sabido de muitos, o marxista inglés Perry Anderson é um dos mais importantes historiadores europeus e possui diversas obras e artigos publicados no Brasil que versam sobre temas variados, como a historia eu- ropeia e a transigdo social, a histéria do marxismo, o exame critico da pro- dugio teérica de pensadores marxistas e no marxistas, tais como Gramsci, Bobbio, Rawls, Hayek, entre outros, além de reflexdes acerca da conjuntura mais recente, incluindo-se aqui andlises sobre o neoliberalismo e a politica brasileira dos governos Lula e Dilma. ‘Surpreendentemente, a obra que estamos apresentando ao piblico brasi- leiro, Arguments within English Marxism, que é uma de suas obras mais polémicas e importantes para o debate acerca da teoria marxista da historia, nao contava com tradu¢ao em lingua portuguesa até o momento. Nesta pri- meira edigio brasileira do livro, a tradugio foi feita a partir da edigao inglesa original publicada pela New Left Books e Verso Editions em 1980; adotou, contudo, 0 titulo proposto pela tradugéio em castelhano, por consideré-lo mais oportuno quanto a descrig&o dos temas abordados (teoria, politica e historia) e do objeto da polémica do livro: Teoria, politica e historia: Um debate com E. P. Thompson. O livro est dividido em sete capitulos. Nos quatro primeiros (“Historio- grafia”, “Agéncia”, “Marxismo” e “Stalinismo”), Anderson procura analisar aprocedéncia das criticas formuladas por Thompson ao pensamento de Louis Althusser, condensadas na obra The poverty of theory and others essays, publicada pela Merlin Press, de Londres, em 1978. Vale ressaltar que, além do ensaio critico dirigido exclusivamente contra Althusser: “The poverty of theory, or An orrery of errors”, 0 livro continha outros artigos mais antigos que evidenciam alguns tragos marcantes do modo como Thompson pensava a histéria e a historiografia, tais como: “Outside the Whale” (1960), “The peculiarities of the English” (1965), “An Open Letter to Leszek Kolakowski” (1973). Na tinica tradugdo disponivel em lingua portuguesa desse livro de Thompson, apenas o ensaio “The poverty of theory, or An orrery of errors” foi publicado.' Em grande medida, a iniciativa de escrever Teoria, politica e historia.. surgiu da critica exacerbada feita por Thompson a obra de Althusser.? No Brasil, o livro de Thompson A miséria da teoria ou um planetério de erros fez sucesso entre estudantes e professores universitirios ¢ é apresentado como a sentenga final de condenagao da obra de Althusser. Agora, o publico brasileiro tem a sua disposig&o uma avaliagao critica, rigorosa e ponderada dessa sentenga de primeira instancia. Em troca de correspondéncias entre janeiro e margo de 1979, Anderson chegou a convidar Althusser para dar uma resposta a Thompson nas paginas da revista New Left Review, mas 0 filésofo marxista franco-argelino recusou- -se a fazé-lo, alegando nao possuir conhecimento profundo sobre a historio- grafia marxista inglesa, mas lamentando também ter se dedicado muito pouco e de maneira suméria e unilateral ao tema da histéria na obra Lire Le capital (Ler O capital), 0 que nao deixa de ser uma ironia, tendo em vista que uma das questdes centrais que percorreram toda a sua trajetdria intelectual, e nao sé a obra Lire Le capital, foi a de delimitar os conceitos e a problemética tedrica que permitiriam 0 desenvolvimento de uma teoria marxista da histé- ria com bases cientificas.* E de supor que Althusser ndo tenha querido dar nenhuma resposta, pois 0 carater dogmatico e caricatural e 0 tom virulento do livro de Thompson impediam qualquer tipo de didlogo entre eles.* Nos trés capitulos finais do livro (“Internacionalismo”, “Utopias” e “Es- tratégias”), Anderson recupera alguns dos debates que havia travado com ‘Thompson no contexto dos anos 1960 em torno da histéria da formagao social inglesa. Isso, especialmente no que se refere A caracterizagao que faziam do papel da burguesia no processo de transig40 ao capitalismo e do papel dos trabalhadores em relago a burguesia, e da linha editorial do periédico New 10 Left Review, do qual Thompson havia sido um dos fundadores, tendo se reti- rado no momento em que Anderson assumiu a editoria daquela publicagio. O espirito geral do livro que ora apresentamos foi o de estabelecer um didlogo fraterno com Thompson sem, contudo, renuneiar a critica.’ Trata-se de um livro que aborda questées decisivas para o desenvolvimento do mar- xismo como ciéncia e para a luta socialista, destacando-se aqui na sequéncia em que figuram no texto: a relagdo entre dados empiricos e teoria; 0 papel da agéncia humana na hist6ria; as ambiguidades do conceito de experiéncia presente na obra de Thompson; as polémicas em torno da formagaio da classe trabalhadora na Inglaterra; a evolugaio do pensamento de Marx ¢ as bases constitutivas do materialismo histérico; os equivocos de Thompson quanto 4 caracterizag&o de Althusser como um tedrico stalinista; a trajetéria inte Jectual de Althusser, sua critica ao stalinismo e sua proximidade com a Revo- lugtio Cultural Chinesa; a trajetéria politica de Thompson, o que envolve sua saida do Partido Comunista da Gra-Bretanha e sua posterior adestio a um partido de cardter social-democrata: o Partido Trabalhista inglés; o internacio- nalismo e suas implicagdes sobre o debate no interior da esquerda inglesa; a critica ao utopismo politico-moral de William Morris, que havia influenciado a obra de Thompson; o problema da transigdo e da estratégia socialistas. Enfim, esse conjunto amplo de temas debatidos, as polémicas suscitadas por cada um deles e 0 rigor analitico de Perry Anderson sdo aspectos mais do que suficientes para justificar a publicagao da primeira tradugio desta obra no Brasil. Aliés, 0 que causava estranheza era a sua ja referida auséncia na extensa lista de livros e artigos de Perry Anderson traduzidos no Brasil. Notas 1 Ver: A miséria da teoria ou um planettirio de erros: Uma critica ao pensamento de Althusser. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. Dois dos outros artigos da versio origi- nal do livro permanecem sem tradugdo. Hé poucos anos foi publicado no Brasil no formato de livro 0 ensaio “The peculiarities of the English”. Ver: As peculiaridades dos ingleses e outros ensaios. Campinas, Editora da Unicamp, 2012. Essa tradugo havia sido publicada originalmente e com pequena tiragem na colegao Textos Didaticos do IFCH-Unicamp, em 1998. 2. Para uma anilise e uma contextualizago exaustiva de The poverty of theory and others essays, ver: Scott Hamilton. The Crisis of Theory. E. P. Thompson, the New Left and postwar British politics. Manchestet/New York, Manchester University Press, 2011. 3. Sobre a troca de correspondéncias entre Anderson ¢ Althusser, consultar Gregory Elliott Althusser: Detour of theory. Leiden/Boston, Brill, 2006. A primeira edigao desse livro havia \da pela editora Verso em 1987. 7 4 Para uma andlise de contetdo da polémica Thompson/Althusser, ver: César Rendueles. “Teoria social y experiencia histérica. La polémica entre E. P. Thompson y Louis Althusser”, Sociologia Histérica, n. 3, 2013; Pedro Benitez Martin. “Thompson vs. Althusser”. Critica ‘Marxista, n. 39, 2014; Pedro Benitez Martin. En torno a la polémica Thompson-Althusser (puntes para una revisién), mimeo.., 5.4. Vale a pena citar também o trabalho de uma jover estudante brasileira, Geise Targa de Souza. O problema da producdo do conhecimento histérico na polémica Thompson-Althusser. Chapecé, trabalho de conclusdo do curso de licenciatura em Histéria, 2015. Disponivel em: < http://www. libgen.io/book/index. php? ‘md5=0152f9029140¢7e9¢f167755f114340 >. 5. Para um amplo balanco da polémica Anderson/Thompson, ver: José Sazbén. “Duas caras do marxismo inglés: O intercdmbio Thompson/Anderson”. Histéria e Perspectivas, n. 1, jan.-jun. 2014, pp. 235-294, Sobre o debate Anderson-Thompson na New Left Review, con- sultar: Renata H. Dalaqua. “O debate no interior da New Left britanica: O significado da controvérsia entre Perry Anderson e E. P. Thompson”. Histéria Social, n. 16, 2009, pp. 215-232. 12 INTRODUCGAO Edward Thompson ¢ atualmente nosso melhor escritor socialista — certamente na Inglaterra, possivelmente na Europa. Os leitores de A formagdo da classe operaria inglesa, ou mesmo de Senhores e cacadores, sempre se lembrarao dessas grandes obras literdrias. A admirdvel variedade de timbres e ritmos dominada pela escrita de Thompson no maximo de seu alcance —alternada- mente apaixonada e lidica, cdustica e delicada, coloquial e decorosa ~ nao encontra par na Esquerda. Possivelmente, também, 0 éxito estritamente his- torico da série de estudos que se estende através dos séculos XVIII e XIX — de William Morris ao rico grupo de ensaios recentes cuja reuniao esta prometida em Costumes em comum — é talvez 0 produto mais original do corpus da Historiografia Marxista Inglesa para o qual tantos estudiosos talentosos con- tribuiram. Deixando de lado outras consideracées, é raro a qualquer pesqui- sador se sentir igualmente em casa em duas épocas to contrastantes. Qual- quer que seja a avaliagao comparativa feita a esse respeito — na qual, sem davida, nenhum julgamento definitivo sera alcangado — duas caracteristicas distintivas da pratica de Thompson como historiador se destacam. Do comego ao fim, sua pratica foi a mais declaradamente politica de todos de sua geragAo. Todos os grandes — e quase todos os pequenos — trabalhos que escreveu con- cluem com uma reflexdo aberta e direta sobre suas ligdes para os socialistas de seu proprio tempo. William Morris termina com uma discuss&o sobre “realismo moral”; A formagdo da classe operdria inglesa relembra nossa divida com a “érvore da liberdade” plantada pelo antigo proletariado inglés; 13 THORIA, POLITICA HISTORIA Senhores e cagadores termina com uma reavaliagao geral do “Estado de di- reito”; um ensaio como “Tempo, disciplina do trabalho e capitalismo indus- trial” especula sobre uma possivel sintese do “velho e do novo sentido do tempo” em uma sociedade comunista do futuro que tenha superado 0 “pro- blema do écio”. Cada um desses textos é, a sua maneira, uma intervengdo militante no presente, bem como um resgate profissional do passado. A sélida consisténcia de sua diregdio, de meados dos anos 1950 ao final dos anos 1970 — visivelmente atestada no longo posficio a nova edigo do estudo sobre Mor- ris (1977) —, € profundamente impressiva. Ao mesmo tempo, esses trabalhos de histéria sao também contribuigdes deliberadas e orientadas para a teoria: nenhum outro historiador marxista se deu ao trabalho de confrontar e explo- rar, sem insinuagdes ou circunléquios, questdes conceituais dificeis no seu trabalho de pesquisa. As definigdes de “classe” e “consciéncia de classe” em A formagao da classe operdria inglesa; a critica a “base e superestrutura” pelo prisma do direito em Senhores e cagadores; 0 restabelecimento do “uto- pismo” como imaginacao disciplinada na nova edigio de William Morris — todos representam argumentos tedricos que nao stio meros enclaves em seus respectivos discursos histéricos, mas, em vez disso, formam sua culminancia € sua resolugdo naturais. A afirmagaio de nosso respeito critico e nossa gratidao é, desse modo, de complexidade ¢ magnitude formidaveis. No entanto, uma apreciagaio das preocupagées ¢ ideias centrais de Thompson aguarda ha tempos para ser feita. A publicagiio de A miséria da teoria® fornece a ocasiio para comegar tal apreciagao. Langada ha mais de um ano, em geral, essa obra tem tido uma recepgiio favordvel na Inglaterra, Mas, até 0 momento em que escrevo, ne- nhuma resposta aprofundada ao livro apareceu. Dado o desafio que a obra posta, isso aparenta ser algo como um anticlimax. Em muitos aspectos, eu nao posso ser considerado 0 mais apropriado interlocutor. A miséria da teoria contém quatro ensaios, trés dos quais j4 publicados. Entre os trés esta a fa- mosa critica das visdes da sociedade e da historia inglesas desenvolvida na New Left Review — a qual me reintegrei ha mais de uma década -, intitulada “As peculiaridades dos ingleses”.* O inédito € um ataque de mais de 200 paginas ao pensamento de Louis Althusser que, por sua escala e sua novi- dade, inevitavelmente domina 0 livro. O debatedor apropriado para esses * “The Peculiarities of the English”, no original. Em portugués, integra a obra As peculia- ridades dos ingleses ¢ outros artigos. Org. Antonio Luigi Negro e Sergio Silva. Trad. An- tonio L. Negro ef al. Campinas, Editora da Unicamp, 2* reimpr. 2015. (N. da T.) ataques seria, obviamente, um althusseriano. No entanto, na auséncia mo- menténea de candidatos mais indicados, vale a pena rever aqui as teses que ‘Thompson langa no ensaio~ que é quase um livro—que da titulo (e manifesto) ao volume. A miséria da teoria ou um planetario de erros nao é apenas uma polémica contra Althusser: é também a mais sustentada exposigio do credo do proprio Thompson, como historiador e como socialista. Dessa forma, os objetivos do presente ensaio sero trés. Olhar para a critica de Thompson a Althusser e tentar determinar sua justiga; simultaneamente, e mais impor- tante, procurar extrair os pontos cruciais do sélido trabalho de Thompson pela lente dos prinefpios e procedimentos recomendados em A miséria da teoria3 O tratamento de Althusser, comegando moderadamente e terminando ‘em uma tempestade de fuiria, é no convencional em organizagao. A discus- so desse assunto seré facilitada por um reagrupamento de seus temas para um comentario mais conciso sobre cada um deles. A miséria da teoria é, com efeito, dominada por quatro problemas principais: 0 carater da pesquisa his- t6rica; 0 papel da agéncia humana na histéria; a natureza e o destino do marxismo; o fendmeno do stalinismo. Abordarei cada um deles a seu turno, conforme aparecerem nas criticas de Thompson a Althusser e na sua propria pritica como historiador. E, para concluir, tentarei situar o trabalho de Thomp- son em um contexto comparativo capaz de esclarecer, de algum modo, as diferengas surgidas entre ele e a New Left Review, uma publicagao em cuja criagio ele desempenhou papel central. Qualquer que seja a nossa visto so- bre argumentos especificos de A miséria da teoria, a empreitada em si deve ser bem-vinda. Ela representa 0 primeiro envolvimento pleno de um histo- riador inglés, no terreno do marxismo, com um grande sistema filoséfico do continente. O encontro direto das duas diferentes tradigdes discursivas re- presentadas por Thompson e Althusser é, ha algum tempo, necessario para 0 desenvolvimento do materialismo histérico como um todo. E mérito de ‘Thompson ter assumido essa tarefa, iniciando um processo de trocas que esperamos seja, ao final, multiplo. Notas Past and Present, n. 38, 1967, pp. 6-97. The Poverty of Theory. London, 1978, As referéncias as obras serdio, doravante, abreviadas para: PT (The Poverty of Theory); MEWC (The Making of the English Working Class [A formagdo da classe operdria inglesa}), TEORIA, POLITICA B& MISTORIA edigdo Penguin de 1963; WH (Whigs and Hunters [Senhores e cagadores]), 1973; WM (William Morris - Romantic to Revolutionary (William Morris - Roméntico e revoluciond- rio), reedig&o de 1977. 4 Ver os comentérios em Considerations on Western Marxism. London, 1979, pp. 111-112. 1 HISTORIOGRAFIA ‘As segdes de abertura de A miséria da teoria so enderecadas a certas ques- {Wes gerais da historiografia como disciplina. Trés problemas especificos sto ‘explorados por Thompson, os quais podem ser formulados desta forma: (a) ‘Quais so a natureza ¢ o lugar particulares da evidéncia em qualquer pesquisa histérica? (b) Quais sio os conceitos apropriados para a compreensao de /processos hist6ricos? (c) Qual ¢ 0 objeto especifico do conhecimento hist6- rico? Em cada caso, Thompson evoca e rejeita o que ele assume ser a resposta de Althusser e propée sua propria solugao. Ele comega seu caso com a acusa- ‘gllo de que a epistemologia de Althusser exibe uma indiferenga radical pelos -dados primarios que formam o que ¢ nela chamado de Generalidades I: ne- uma explicagdo ou atengao é dada para o cardter ou a origem desses ‘dados —dentre os quais a “experiéncia” lidera. A atitude negligente de Althus- Ser para com os fatos empiricos ¢ confirmada por sua descrigaio das Genera- lidades 11, ou 0 processo de cognigao em si, as quais efetivamente supdem ‘que qualquer teoria cientifica pode definir e produzir seus préprios fatos por meio de protocolos autovalidadores, sem recorrer a apelos externos. Thomp- son argumenta que isso é uma extensdo abusiva dos procedimentos muito ‘restritos e excepcionais da matematica e da légica, sendo totalmente ilegitima ‘se aplicada as ciéncias sociais ou fisicas, nas quais o controle da evidéncia ¢ sempre central. O resultado disso é que nenhum conhecimento novo ge- ‘nuino pode emergir nas Generalidades III (seu pretenso lugar) de Althusser, " considerando que as Generalidades Il j4 empacotaram os dados das Genera- TEORIA, POLITICA & HISTORIA lidades 1 — hd um ciclo epistemolégico. O resultado é “exatamente 0 que € geralmente designado, na tradig&o marxista, como idealismo”! — ou seja, “um universo conceitual autogerador que impée sua propria identidade sobre os fendmenos de existéncia material e social, em vez de se engajar em um did- Jogo continuo com eles”? Qual é a justica nessas acusagdes? Na minha visdo, muita. A teoria do conhecimento de Althusser — tanto da ciéncia quanto da ideologia — é, como argumentei em outro lugar, diretamente tributaria 4 de Espinosa.’ Nao é surpreendente que uma epistemologia com esse fundo metafisico seja in- compativel com os canones da ciéncia moderna. Lucio Colletti observou certa vez: Pode-se dizer que ha duas tradigdes prineipais na filosofia ocidental nesse sentido: uma que descende de Espinosa e de Hegel; outra, de Hume e Kant. Essas duas linhas de desenvolvimento sao profundamente divergentes. Para qualquer teoria que assuma a cigncia como a tinica forma de conhecimento verdadeiro, é indubitavel que a tradi- ‘go de Hume-Kant deve ser dada prioridade e preferéncia sobre a de Espinosa-Hegel.* A vasta verdade dessa afirmagio é incontestavel. No caso em questéo, nado hd qualquer divida de que Althusser no demonstra interesse algum na ori- gem e na natureza (diversas) das Generalidades 1, dentro de seu esquema. Em um aspecto, Thompson até vai muito longe na diregao de Althusser quando, casualmente, supde que a “sensopercepgio” no é “conhecimento”.* De fato, certos tipos de experiéncias perceptivas — os dados dos sentidos com ‘0s quais o empirismo radical, desde Hume, sempre esteve preocupado — nao precisam de transformacdo por qualquer das Generalidades II para gerar co- nhecimento: eles constituem uma forma de conhecimento elementar em si mesmos, sem mais delongas (por exemplo, “como esté 0 tempo hoje?”). O sistema de Althusser erroneamente assimila tout court 0 conhecimento a cigncia —um deslize inaugural distante da trivialidade em suas consequéncias: a origem definitiva de sua insensibilidade em relagao a evidéncia se encontra aqui. Thompson certamente est certo em fazer essa acusaciio. Por outro lado, seu vigoroso ataque 4 nogiio de que fatos histéricos primarios sao, de algum modo, “preparados” ou “pré-selecionados” pela intengaio daqueles que os deixam para tras® é pertinente no que se refere a Popper, que avangou essa controvérsia absurda, mas nao a Althusser, que nunca fez isso. Uma discus- siio salutar em si mesma é aqui mal utilizada para sugerir culpa por associa- gio. Similarmente, Thompson condena, de maneira justificada, dois socié- HISTORIOGRAFIA logos ingleses, Hirst e Hindess,” pela maxima de que “fatos nunca sio dados, so sempre produzidos”, mas falha ao nao observar que o trabalho citado, especificamente, acusa Althusser de “empirismo” e, por essa razio, mal pode ser considerado um representante desse procedimento. Ao construir uma eloquente e necessaria defesa genérica do oficio do historiador, Thompson de fato incorre com muita frequéncia em uma amal- gamaciio de posigdes individuais, cada uma delas deficiente, mas em graus. e maneiras significativamente diferentes. Assim, Althusser de fato responde de modo impréprio a protocolos I6gico-matematicos de prova como modelos de procedimento cientifico. Sua teoria do conhecimento, dissociada dos con- troles da evidéncia, é insustentavelmente internalista: acima de tudo, a ela falta algum conceito de falsificagaio. Ao contrario, no entanto, a forga da fi- losofia da ciéncia de Popper — nao se sabe se Thompson compreende 0 quanto ela é forte — sempre se assentou precisamente na sua insisténcia na falseabi- lidade, um principio crucialmente caracterizado por Lakatos ¢ outros, mas que fica comprometida pelas notérias iluses de Popper relativas aos registros histéricos. A hostilidade que Thompson sente nos dois filésofos quanto a pratica do historiador tem origens opostas — aproximando, uma confianga exagerada nos paradigmas da matematica e da fisica, respectivamente — e consequéncias opostas — negagao de quaisquer leis de movimento no curso aleatério da historia, e sua afirmagao na implacavel maquina da Darstellung. O conhecido argumento de que os opostos se atraem nao é algo que sobreviva ‘uma inspegdo mais proxima. Muito mais pertinente e substancial é a demo- igo analitica de Thompson da maxima de Althusser de que “o conhecimento da historia nao € histérico, tanto quanto nao é agucarado 0 conhecimento do agticar”. Em uma demonstragiio espirituosa, Thompson expée 0 sofisma da comparacio, a qual ele aponta ser sustentavel apenas se léssemos “quimico” no lugar de “agucarado” — e, assim o fazendo, cancelaria sua propria preten- sio.* A intengdo da formula de Althusser, claro, era dramatizar a distancia entre 0 “objeto real” e 0 “objeto do conhecimento”. Ironicamente, a ambi- guidade do vocabulo “histérico” nessa formula produz exatamente a confu- ‘sao que ela deveria evitar. Pois, sozinha entre as ciéncias, a histéria como um termo — diferentemente da astronomia ou da sociologia, da linguistica ou da biologia, da fisica ou da quimica — designa ao mesmo tempo 0 processo € a disciplina que busca capturd-lo. Falhando em localizar o perigo da fustio onde ele genuinamente surge, nesse uso ordinario, Althusser o reproduz na propria forma de seu gesto contra ele. TRORIA, POLITICA B HISTORIA ‘A propria afirmagdio de Thompson da realidade irredutivel e independente da evidéncia historica — e das varias maneiras pelas quais ela pode ser inter- rogada— é, em geral, um modelo de bom senso. Algumas das distingbes que ele delineia — como entre tipos de evidéncias “portadoras de valor” e “livres de valor” ou “laterais” e “estruturais” - so talvez menos precisas do que ele sugere. Mas poucos escritores, ou leitores reflexivos, de historia discordariam de sua descrigdo da “oficina do historiador” aqui. As dificuldades realmente comegam do outro lado de sua enumerago dos diferentes tipos de questio- narios que podem ser utilizados ao se olhar para a evidéncia priméria. Isso se torna agudamente familiar quando Thompson recomenda a “regra da rea- lidade” de J. H. Hexter, segundo a qual o historiador deveria buscar “ahistoria mais provavel que pode ser sustentada pelas evidéncias relevantes existentes” como “itil” - apenas para ter que lamentar imediatamente depois que ela foi posta em curso por seu autor de formas cada vez menos produtivas, em defesa de uma suposigao prévia de que qualquer narrativa marxista seja, necessariamente, improvavel”.° Mas, evidentemente, a banalidade da formula é precisamente a garantia de sua inutilidade: quem deve determinar o que é relevante ou, nesse sentido, o que constitui uma histéria? Somos imediata- mente enviados de volta ao espinhoso problema dos conceitos histéricos. ‘Thompson nao tenta expor ou justificar 0 conjunto especifico de categorias que define 0 materialismo histérico — uma abstengao com consequéncias importantes mais adiante em seu ensaio. Ele sugere de passagem, com per- feita retidaio, que “ha outras formas legitimas de interrogar as evidéncias”"” além daquelas que formam os principais pardmetros de investigagao dos historiadores marxistas. Em vez de permanecer nos cdnones e procedimentos tipicos da historiografia marxista, Thompson enfatiza o usual “teste da l6gica hist6rica”,'' ao qual eles, com todos os outros, devem se submeter. Em um belo parégrafo, ele assim representa 0 veredito geral da disciplina: 0 tribunal esté em sessio para julgar o materialismo histérico ha cem anos e sua decistio vem sendo continuamente postergada. Esse adiamento constitui, de fato, um tributo ao vigor da tradigdio; nesse prolongado intervalo, as acusagdes contra intimeros outros sistemas interpretativos tém sido levadas ao tribunal, ¢ os acusados sumiram escada abaixo”. O fato de o tribunal ainda nfo ter se decidido em favor do materialismo histérico no se deve apenas ao parti pris ideolbgico de alguns dos juizes (embora haja bastante disso) mas deve-se, também, a natureza provis6ria dos conceitos explicativos, aos siléncios reais (ou mediagdes ausentes) que ha neles, ao carter primitivo ¢ nfo reconstituido de algumas das categorias e & determinagdo inconclusiva das evidéncias.'* WISTORIOOKAPIA As formas de apelagao que a corte da disciplina histérica permite so duplas: “evidencial” e “tedrica”. Como Thompson observa, a evidéncia ja foi suficientemente discutida em seu trabalho. E a teoria? Aqui, a apelagao deve ser a “coeréncia, adequagio e consisténcia dos conceitos e a sua con- gruéncia com o conhecimento de disciplinas adjacentes”.'* Onde esta, entio, 4 fora ou a falibilidade dos conceitos histéricos marxistas? Thompson ai se questiona diretamente sobre esse tema. Em vez disso, ele coloca uma questiio mais ampla: qual ¢ a natureza distintiva dos conceitos histéricos em geral — marxistas ou no marxistas? Sua resposta é que eles so “expectati- vas em vez de regras”, pois possuem uma “flexibilidade particular”, uma “generalidade necessdria e elasticidade”, um “coeficiente de mobilidade”"* pela natureza movedica do proprio processo histérico. As “categorias mudam, ‘assim como 0 objeto”.'s Uma vez isso compreendido, pode-se ver que, en. Quanto o materialismo histérico é distinguido “por sua consisténcia persis- tente (infelizmente, uma persisténcia que por vez é doutrindria) em elaborar tais categorias e por sua articulacao dessas categorias em uma totalidade con- ceitual”,'* por razdes semelhantes, ele é também perpetuamente ameagado — ‘em um grau maior que a historiografia nao marxista — pelo perigo de uma conceituagao rigida e estatica, que é radicalmente inapropriada a sucesso historica. E um infortinio dos historiadores marxistas (é certamente nosso infortiinio parti- cular hoje) que alguns de nossos conceitos sejam moeda corrente em um universe intelectual mais amplo, sejam adotados por outras disciplinas, que thes impdem sua propria légica e os reduzem a categorias estiticas,a-historicas. Nenhuma categoria historica tem sido mais mal compreendida, atormentada, paralisada e desistoricizada que a categoria classe social... Ndo é, e nunca foi, tarefa da histéria conciliar esse tipo de categoria inelistica."” Aqui, no entanto, Thompson se equivoca. Sua argumentagiio, com efeito, leva areivindicagao por uma legitima frouxidio de nogées, que seria o privi- légio peculiar do historiador. Mas a natureza do processo hist6rico nao emite tal permissdo especial. O fato de que seu objeto se modifica continuamente nao isenta a disciplina da historia da obrigacao de formular conceitos claros © exatos para sua compreensdo mais do que isentaria a meteorologia — uma ciéncia fisica cujos dados notoriamente se modificam bem mais rapida e mercurialmente que aqueles da prépria histéria. Se 0 clima se mantém, em grande medida, imprevisivel (e incontrolavel), 0 meteorologista nao se re- TEORIA, POLITICA B HISTORIA signa a afirmagdes da aproximacao inerente a seu estudo: ele busca recuar 05 limites do nosso conhecimento por meio de mais investigages cientificas, que envolverao nao menos, mas, sim, mais conceituagao, de uma gama mais ampla de evidéncias. Assim é em qualquer outra ciéncia. A historia néo é excegdio. Brecht certa vez observou que, se 0 comportamento humano parece imprevisivel, nao é porque nao existem determinagdes, mas porque ha mui- tas.'* O necessdrio dever de atengdo, do historiador, ao evento particular ou A pritica concreta nao deve ser livre de suspeitas dobrando-se ou alargando- -se conceitos gerais em torno deles. Ele s6 pode ser absolvido pela reconstru- ao da multiplicidade complexa de suas reais determinagées, 0 que sempre demandara mais — e mais rigorosa — conceituagéio. Thompson tende a ver os conceitos como modelos ou diagramas de uma realidade que nunca se com- porta adequadamente, em uma alternéncia do “abstrato” e do “particular” que se esquece desta injungao central de Marx: “O concreto é concreto por- que é a sintese de muitas determinag6es, portanto unidade da diversidade... as determinagGes abstratas conduzem a reprodugao do concreto por meio do pensamento”.'® Para que as categorias sejam categorias de fato, elas deman- dam definigao precisa e inequivoca. Para capturarem os processos de mu- danga que naturalmente caracterizam a histéria, os conceitos histéricos pre- cisam ser muito cuidadosamente formulados ¢ especificados: mas eles s6 serdio conceitos se fixarem alguma estrutura de invaridincia, por mais variagio interna que tal estrutura possa permitir ~ em outras palavras, por mais ampla que seja sua morfologia. Essa condigao de lucidez intelectual impede uma captura adequada de qualquer historia diacrénica? De forma alguma. Pelo contrario, longe de ser especialmente responsével por uma relagio de con- ceitos estaticos indevidos, o marxismo, como sustenta Thompson, acima de tudo possui conceitos que tanto teorizam as possibilidades e os limites da mudanga histérica como tal (contradig&io) quanto exploram a dinamica de processos de desenvolvimento especificos (as leis do movimento do capital). Seu repertério permanece, evidentemente, parcial e provisério — em certo sentido, mero preltidio 4 composigao da plendria da historia. As auséncias e insuficiéncias de seu instrumental explicativo nao esto, até hoje, em ques- tionamento: Althusser as enfatiza tanto quanto Thompson. Porém, elas nao so razio para uma retirada da empreitada te6rica, mas para avangar em diregao a analises mais plenas. Em outras palavras, as realidades da diver- sidade social e do fluxo histérico obrigam o historiador a ser mais rigoroso € produtivo na criagiio de conceitos, e n&io menos. Apesar de sua grande distancia da pratica do historiador, é preciso dizer que Althusser viu essa exigéncia mais claramente que Thompson. Mas foi Marx quem originalmente inscreveu essa demanda no programa do materialismo historico. ‘Thompson, no entanto, contesta que a histéria seja uma ciéncia e pode, assim, descartar qualquer comparagio com outras disciplinas. Ele argumenta que “a tentativa de designar a histéria como uma ‘ciéncia’ sempre foi confusa ¢ desnecesséria”,” porque o conhecimento historico é, por natureza, provi- sOrio, incompleto e aproximativo. “A antiga, ‘amadoristica’ nogao da hist6- ria como uma ‘humanidade’ disciplinada sempre foi mais precisa.””' Agora, disputar termos seria um exercicio inatil. Mas a recusa de Thompson em conferir o titulo de ciéncia a historia repousa, de fato, em um substantivo equivoco quanto a natureza das ciéncias em geral, o que o leva a criar uma falsa extraterritorialidade para a histéria. Assim ele prossegue ao afirmar: *Nesse sentido, é verdade (aqui podemos concordar com Popper) que, en- quanto 0 conhecimento hist6rico deve sempre ficar aquém de provas posi- tivas (dos tipos apropriados a ciéncia experimental), 0 falso conhecimento histérico est4, em geral, sujeito a refutagao”.” A oposi¢fo postulada aqui é jmaginaria; no entanto, ela sugere uma familiaridade um tanto limitada com fi contemporanea filosofia da ciéncia. Pois Popper, evidentemente, sempre ‘sustentou que a verificagao conclusiva de hipéteses cientificas — nas fisicas ‘ou em qualquer outro ramo do conhecimento — é axiomaticamente impossi- Vel: a pedra fundamental de A légica da pesquisa cientifica é precisamente ‘sua rejeicdo do “principio da verificagao” do positivismo légico.2> Em seu lugar, ele coloca o principio da falsificagao — de que hipéteses sao cientificas Aapenas na medida em que possam ser falsificadas por teste empirico per- tinente. Desse modo, o que Thompson aceita como condig&o excepcional da historia é, na verdade, o status normal de toda ciéncia. Provisionalidade, Seletividade e falseabilidade s4o constitutivas da natureza da empreitada tientifica como tal. Até a falta de controles experimentais nao esta confinada i historiografia: a astronomia também nao permite testes de laboratério. A mais importante filosofia da ciéncia recente — a de Lakatos — tem mostrado ‘05 limites até da descrigdio de Popper, ao demonstrar que uma teoria cientifica pode sobreviver a uma quantidade de falsificagdes e deve ser julgada pelo desenvolvimento ou pela deteriorag&o no longo prazo de seu “programa de pesquisa”, e nao por seu padrao imediato de falhas ¢ nao confirmagdes.** Em ‘utras palavras, o prolongado “adiamento” do veredito sobre o materialismo hist6rico, na metéfora memordvel de Thompson, esté bem proximo de uma descric&io das circunstancias ordindrias de qualquer teoria cientifica. A negagiio de Thompson de exatidao “cientifica” para a historia, por ou- tro lado, dé provas de ser um predmbulo para uma reivindicagaio mais ampla dessa exatidao, pois ele prossegue e escreve: A “historia” deve ser devolvida a seu trono de Rainha das humanidades, mesmo que ela tenha provado, as vezes, ser um tanto surda para alguns de seus stiditos (nota- damente, para a antropologia) ¢ ingénua com seus cortesiios preferidos (como a eco- nometria). Mas, em segundo lugar, ¢ para refrear suas pretenses imperialistas, deve- ‘mos também observar que a “historia”, na medida em que é a mais unitaria e geral de todas as disciplinas humanas, deve sempre ser a menos precisa. Seu conhecimento nunca sera, sejam quantos forem os milhares de anos, nada além de aproximativo.> Essa é, certamente, uma bela imagem, mas seria ela persuasiva? A resposta deve, indubitayelmente, ser negativa. Em que sentido seria a historia “menos precisa” que a estética ou a critica literdria? E suficientemente dbvio que, se quisermos continuar com esses termos, ela é bem mais precisa. Por que seria a hist6ria incapaz do conhecimento “além do aproximativo”? Acaso supomos que a data da Revolugao de Outubro esta sujeita a alteragao no préximo sé- culo? O conhecimento exato e positive nunca esteve além dos poderes da historia: sua vocagdo, assim como a de suas disciplinas-irmas, ¢ expandi-lo— ainda que o processo, como Lenin notou, seja sempre assimpt6tico a seu objeto. Qualquer escrutinio verdadeiro da construgao de Thompson a anula. Uma questao central, no entanto, permanece. O que define 0 contetido da supremacia “unitéria e geral” da histéria sobre todas as outras disciplinas humanas? Chegamos aqui a questio final do discurso de abertura de Thomp- son sobre o método: qual é 0 objeto especifico da pesquisa histérica? O problema constitui o clissico enigma de todas as teorias da historia. Nenhum outro se mostrou tao dificil de lidar a geracdes de debates por historiadores ¢ fildsofos. A resposta inicial de Thompson a esse problema é surpreen- dentemente simples. Ele iguala histéria e passado. ““Histérico’ é uma defi- nigiio genérica: define bem genericamente uma propriedade comum de seu objeto — pertencer ao passado, e no ao presente ou ao futuro”.’* Ao mesmo tempo, ele sustenta que “o passado humano nao é um agregado de histérias particulares, mas uma soma unitéria do comportamento humano”.”” A l6gica dessas proposigdes parece ser a de que a historia é 0 registro de tudo que aconteceu ~ uma conclusio notoriamente vazia para a qual quase todos os pensadores anteriores que se dedicaram ao tema deram um fin de non recevoir. E famosa a critica de Carr sobre o tema.” De fato, o deslize de Thompson 24 até esse tema é um movimento nado premeditado do pensamento, nao sua devida e deliberada resposta a questiio ~ embora nio seja sem significdincia para outro tema de A miséria da teoria, como veremos. Quando trata cons- cientemente do problema em uma seco posterior, em resposta a formulagaio bem incisiva de Althusser sobre a questio, ele concede que “se eu levantar da minha mesa (como farei em breve) para levar o maldito cachorro para passear, isso dificilmente sera um evento ‘histérico’. Assim, aquilo que faz ‘eventos serem historicos deve ser definido de alguma outra forma”. Mas de que forma? E surpreendente que Thompson mal tente sequer uma visita su- perficial ao problema. Ele apenas escreve: [...] mesmo quando definimos inimeros acontecimentos como sendo de interesse li- mitado para a andlise histérica, o que devemos analisar continua sendo um proceso de sucessio de acontecimentos. De fato, é exatamente a significagaio do acontecimento para esse processo que fornece o critério de selegdo.? Em um texto de 200 paginas, duas linhas. O que isso nos revela? Uma tauto- logia: um evento historico é aquele que ¢ significativo ao processo de suces- so histérica. Como sabemos se um evento tem ou nao tal significdncia? Como delimitamos a sucessdo para a qual ele é significante? As duas senten- gas formam um unico e vazio circulo. Provavelmente esse lapso de Thompson decorreu de sua atengaio para polémica estar to polarizada pela solugo de Althusser ao problema que ele ignorou o quanto a sua pr6pria era insuficiente. Curiosamente, seu descon- tentamento com a linguagem de Althusser é tal que ele realmente Ié aqui de maneira equivocada o que ela esta de fato dizendo. Afinal, Althusser efeti- vamente tenta uma definicao mais substantiva do objeto da histéria: um fato histérico é um fato “que causa uma mutacdo nas relagées estruturais exis- tentes”.” O comentario de Thompson € indignado: “O processo revela nao ser de forma alguma um processo histérico (essa alma penada encarnou-se no corpo errado), mas a articulagao estrutural de formagdes sociais e econd- micas... A alma do processo deve ser capturada no ar e convertida a forga na estaétua de marmore do imobilismo estrutural”.*! Em sua ira contra a frase “relagées estruturais”, Thompson negligencia o ponto critico da definigao que ele esté atacando: o termo “mutag&o”. A formula de Althusser poe uma. énfase impecavel na mudanca, e nao na estabilidade — como Thompson ima- gina que ela faz. Isso nao permite dizer que essa formula fornega uma solu- do satisfatéria para o problema. Ao contrario: ela ¢ indubitavelmente muito 25 restritiva. Por exemplo, a morte de Marx causou uma mutagéo em relagdes estruturais existentes? Quase nenhuma. Ainda assim, ela permanece eminen- temente como um fato histérico. O real solo cultivado pelo historiador esta localizado em algum lugar entre um confinamento as mudangas estruturais e uma infinitude de comportamento humano. Nao é objeto de reprovagio que nem Thompson nem Althusser resolvessem um dos mais antigos e mais obs- tinados enigmas na filosofia da histéria. Mas, dos dois, € preciso dizer que foi o filésofo francés, em vez do historiador inglés, que, nessa ocasiao, nos deu a resposta preferivel — superior porque suficientemente firme e definida para ser falsedvel. Resumindo: a definig&o de Thompson do objeto da histéria é casual e circular; sua prescri¢gdo de conceitos histéricos, em uma énfase tradicional no carter aproximativo da disciplina, é, em conclusiio, nada convincente; mas as segdes de abertura de A miséria da teoria eclipsam essas limitagdes na sua espléndida defesa da evidéncia histérica e de sua autoridade sobre 0 materialismo histérico. A falta de controles empiricos que Thompson cor- retamente percebe no trabalho de Althusser faz parte, na realidade, de um padr&o mais amplo dentro do marxismo ocidental, como discuti em outro lugar, de cujo deslize especulativo apenas Gramsci escapou. Na atualidade, 0 periodo dessa longa propensio esta passando, quando uma cultura socialista mais forte e inquisitiva comeca a emergir nos anos 1970. A eloquéncia das adverténcias de Thompson deveria, daqui em diante, se posicionar entre essa cultura emergente e a tentagdo de qualquer retorno ao passado. Notas 1 PT, p. 205. [As tradugdes da referida obra foram feitas para esta edig&o. Nao foi utilizada a verstio que se encontra na edigdio brasileira de 1981. (N. da T.)] Ibidem. Considerations on Western Marxism, pp. 64-65. “A Political and Philosophical Interview”, publicado primeiro na New Left Review, n. 86, P. 11, agora em Western Marxism —A Critical Reader. London, 1977, p. 325. 5. PT, p.224. 6 Idem, p.218. us 8 Ibidem. Idem, p. 387. 9 Ibidem. 10 Ibidem. 11 Idem, p. 236. 26 12 Idem, p. 237. 13 Ibidem. 14 Idem, pp. 237, 248-249. 15 Idem, p. 248, 16 Idem, p. 242. 17 Ibidem. 18 “Die Unberechenbarkeit der kleinsten Korper”, de Me Ti~ Buch der Wendungen, em Ge- sammelte Schriften, vol. 12. Frankfurt, 1967, p. 568. 19 Grundrisse. London, 1974, p. 101. 20 PT, p. 231, 21 Idem, p. 387. 22 Idem, p. 232. 23 A légica da pesquisa cientifica. Trad. Leonidas Hegenberg ¢ Octanny Silveira da Mota. So Paulo, Cultrix, 1972, pp. 41-42: “As teorias nunca sao empiricamente verificdveis. Se qui- sermos evitar 0 erro positivista de eliminar, por forga de critério de demarcagio que esta~ belegamos, os sistemas tedricos de ciéncia natural, deveremos eleger um critério que nos permita incluir, no dominio da ciéncia empirica, até mesmo enunciados insuscetiveis de verificagdo. [...] Essas consideragdes sugerem que deve ser tomado como critério de demar- cago no a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema”. Para Popper, evidente- mente, o problema da demarcagao era o da fronteira entre “as ciéncias empiricas, de um lado, ¢ matemitica ¢ logica, assim como os sistemas “metafisicos’, de outro” (The Logic of Scientific Discovery. London, 1960, p. 34). 24 Imre Lakatos. The Methodology of Scientific Research Programmes. Cambridge, 1978, sobretudo as paginas de 31 a 47. 25 PT, p. 262. 26 Idem, p. 223. 27 Idem, p. 232. 28 What is History?. London, 1961, pp. 5-6. 29 PT, pp. 281-282. 30 Reading Capital. London, 1970, p. 102, 31 PT, p.281. ar 2 AGENCIA O segundo grande tema de 4 miséria da teoria nao é mais procedimental — qual é a natureza da historiografia? -, mas substantivo: qual é o papel da escolha, dos valores ¢ da ac&o humana consciente na histéria? Os leitores de William Morris ou de A formagao da classe operdria inglesa reconhecer&o que esse é 0 tema organizador de toda a obra de Thompson. A paixdo que ele tem trazido para esse tema ao longo de 25 anos transpira de cada pagina do que agora assume o seu lugar como a mais extensa afirmagao tedrica do pro- blema, Seu argumento caminha da seguinte forma: o pecado fundamental de Althusser é sua repetida assergio de que “a historia € um proceso sem um sujeito”,' na qual homens e mulheres individuais so “suportes de relagdes de produgdo”2 Apesar de ser apresentada como a ultima palavra em mar- xismo contempordineo, “esse ¢ um modo de pensamento bem antigo: processo & destino”. Hoje, longe de ser uma proposigao do materialismo histérico, ela esté em sintonia com a mais decadente e reificada ideologia burguesa, & qual todos 0s socialistas engajados devem resistir. Pois, em contrapartida, tanto a heranga genuina da teoria de Marx quanto os achados reais da in- vestigagaio histérica nos ensinam que homens e mulheres sio os “agentes continuamente desnorteados e ressurgentes de uma histéria indémita”.* Nin- guém percebeu ou expressou isso melhor que Morris, quando escreveu: “Pon- derei sobre todas essas coisas, e sobre como os homens lutam e perdem a batalha, e que as coisas pelas quais lutaram surgem apesar de sua derrota, € que quando elas surgem revelam ni ser o que eles almejavam, e que outros 29 homens tém de lutar, sob novo nome, por aquilo que seus antecessores al- mejavam”.* A historia nao é um processo sem um sujeito: é uma “pritica humana indémita”,’ na qual cada hora é “um momento de transformagao, de possibilidades alternativas, de forgas ascendentes ¢ descendentes, de defi- nigdes e esforgos (de classe) opostos, de sinais ambiguos”.’ O meio crucial pelo qual homens e mulheres convertem determinagées objetivas em inicia- tivas subjetivas é a sua experiéncia—a jungdo entre “ser e consciéncia”, pela qual “a estrutura é transmutada em processo e 0 sujeito reingressa na his- toria”.* E por meio de tal experiéncia, por exemplo, que eles se fazem grupos de classe social conscientes de valores ¢ interesses antagénicos e em luta para tornd-los realidad [...] as classes surgem porque homens e mulheres, em relagdes produtivas determi- nadas, identificam seus interesses antag6nicos e passam a lutar, a pensar e a definir valor em termos de classe: desse modo, o processo de formagio de classe € um pro- cesso que gera a si mesmo, ainda que sob condigdes que sto “dadas”? famoso “*paralelograma de forgas” de Engels — no qual “desejos individuais no so satisfeitos” e, mesmo assim, “cada um contribui para a resultante e estd, nesse patamar, envolvido nela”" -, desmantelado e rejeitado por Al- thusser, pode ser reabilitado substituindo-se vontade individual por classe: “se a resultante histérica é, assim, vista como a consequéncia de uma colisao de interesses e forgas de classe contraditérios, entéo podemos ver como a agéncia humana faz surgir um resultado involuntario e como podemos dizer, a0 mesmo tempo, que ‘nds fazemos a nossa propria histéria’ e que ‘a histé- ria faz a si mesma’”."' A verdadeira ligo do materialismo histérico é a “am- bivaléncia crucial de nossa presenga humana em nossa propria historia, de sermos parte sujeitos, parte objetos, agentes voluntarios de nossas proprias determinagées involuntarias”.!? Como veremos, 0 eixo da construgdio de Thompson é a nogio de agén- cia — uma dominante em seu vocabulario desde seus primeiros escritos. De forma atrativa, por vez comovente, como empregada em A miséria da teoria, essa nogiio pode vir a parecer praticamente autoexplicativa. Mas, na verdade, ela demanda um escrutinio cuidadoso e diferenciador, pois sua aparente sim- plicidade é enganosa. Lembremo-nos, primeiramente, de que o termo “agen- te” revela uma ambiguidade curiosa em seu uso ordindrio, possuindo duas conotagdes opostas. Ele significa, ao mesmo tempo, iniciador ativo e instru- mento passivo. A palavra € utilizada por Thompson exclusivamente com a 30 intengo de conotar o primeiro sentido, mas frases como “agentes de uma poténcia estrangeira” e “agentes de um banco mercantil” nos lembram da frequéncia do segundo sentido. Ironicamente, Thompson, sem perceber, uti- liza ele mesmo o termo dessa forma em varios momentos em A miséria da Jeoria, depreciando o que ele chama de diversas “agéncias de importagao” de doutrinas estrangeiras' (entre elas, a New Left Review). A mesma inver- ‘lo de sentido ocorre, evidentemente, com o termo correlato “sujeito”, signi- fieando simultaneamente “soberania” e “subordinagao”: uma coincidéncia surpreendente. No caso de agéncia, contudo, temos uma maneira corriqueira de distinguir entre os dois sentidos da palavra. Quando necessario, a fala ‘eostuma se referir a “agentes livres” para deixar claro que o primeiro sentido 0 almejado. E isso 0 que Thompson pretende dizer com agéncia? A res- posta ¢ de algum interesse. Uma grande questao filoséfica esté claramente ‘em jogo aqui. Ainda assim, em seu longo ensaio, o problema emerge apenas ‘uma vez, em um curto paréntese: “Qualquer que seja a nossa conclusio, no ivém intermindvel da discussaio sobre predeterminagao e livre-arbitrio’ ‘ele observa em dado momento, “é extremamente importante que [...] nos ‘consideremos ‘livres’ (0 que Althusser nao nos permitira pensar)”.'* O reco- hecimento aqui se aproxima de um puro pragmatismo afim a doutrina da *ilusiio util”, de Nietzsche.'’ Em meio a tantos argumentos longos e incon- dicionais contra Althusser, uma breve sentenga abre repentinamente os por- ‘Wes para o definitivo desarmamento ante ele (e se a verdade contradisse 0 ‘conforto?). Depois, a densa massa de refutagdo retoma seu curso. Fomos Jembrados, no entanto, de uma incerteza subterrdnea abaixo do solo confid- ‘vel em que a agéncia é geralmente entoada em A miséria da teoria. O equivoco momentaneo de Thompson desarma todo 0 seu argumento? Ble nao precisa, pois a nog&o de agéncia pode ser mantida, mesmo com pre- mMissas rigorosamente deterministas, se isso significar uma atividade cons- ‘ciente, orientada para um objetivo. Sebastiano Timpanaro propés uma defi- nigdo proxima a essa em seu trabalho On Materialism, de um ponto de vista fiel 4s mais estoicas injungdes do ultimo Engels.'* O problema das fontes definitivas de ago pode, desse modo, ser delineado em uma investigagao historica racional, para um estudo de seus fins. Mas se a agéncia é interpre- tada como uma atividade consciente, orientada para um objetivo, tudo se volta para a natureza dos “objetivos”, pois é bvio que todos os sujeitos historicos se engajam em agdes o tempo todo, das quais eles sao “agentes”, nesse sentido estrito. Contanto que permanega nesse nivel de indeterminagao, ‘a nog&o é um vazio analitico. Para tornd-la operacional, ao menos trés tipos 31 de objetivos qualitativamente diferentes devem ser claramente distinguidos. ‘Ao longo da historia, a maioria esmagadora das pessoas em grande parte de suas vidas perseguiu objetivos “privados”: cultivo de um plano, escolha de um casamento, exercicio de uma habilidade, manutengdo de um lar, conces- sfio de um nome. Esses projetos pessoais estiio inscritos nas relagdes sociais existentes e tipicamente as reproduzem. Apesar disso, eles permanecem sendo iniciativas profundamente intencionais que tm consumido grande parte da persisténcia ¢ da energia humanas ao longo do tempo registrado. O historia- dor de qualquer pequena comunidade mergulha diretamente no meio dessa agéncia universal: o estudo de Leroy Ladurie de uma vila albigense do século XIV ~Montaillou — é um caso arquetipico. Existem, evidentemente, projetos coletivos ou individuais cujos objetivos sao de carater “publico”: quantitati- vamente bem menos, envolvendo menores ntimeros em esforgos intermiten- tes, mas normalmente mais interessantes e importantes para o historiador. Vontade e agdio adquirem aqui uma significdncia historica independente como sequéncias causais em si mesmas, em vez de amostras moleculares de rela- ‘ges sociais. A diferenga esta tipicamente inscrita nos préprios registros his- téricos: podemos pegar dois documentos do final da Idade Média - digamos, entre as Cartas de Paston e as Crénicas de Froissart. Movimentos religiosos, lutas politicas, conflitos militares, transagdes diplomaticas, exploragdes co- merciais, criag6es culturais esto entre os tipos essenciais de tais agendas piiblicas. No entanto, essas também, em sua maioria esmagadora, n&io alme- jam transformar as relagdes sociais como tais — criar novas sociedades ou dominar antigas: na maior parte, elas est’io muito mais limitadas a seu escopo (voluntério). Os objetivos buscados tém sido inseridos de forma caracteristica em um quadro estrutural conhecido, aceito como verdadeiro pelos atores. A fundagao da Ordem Beneditina na Idade das Trevas, a construgaio de Notre Dame, as guerras entre os Valois e os Habsburgos na Italia, 0 Tratado de Vestfalia ou Utrecht, a competigao entre Chapéus e Gorros no parlamento sueco, a viagem ao Japio do comodoro Perry — a maioria dos familiares eventos histéricos ou processos dessa natureza, independentemente de sua miséria ou grandeza, sfio marcados pela busca de objetivos locais no interior de uma ordem aceita que os engloba. As proprias conquistas militares de larga escala, que podem parecer uma excegdo, tém geralmente buscado nao mais do que impor uma nova autoridade econémica e politica em terras de outro modo inalteradas: o Império mongol, o maior de todos, é um exemplo classico. As consequéncias de uma anexagao estrangeira podem, evidente- mente, ser muito mais drasticas, de modos n&o imaginados pelos conquista- 32 dores (0 colapso demogrifico da populagiio mexicana depois de Cortez). Mas isso também é verdadeiro para qualquer das formas de iniciativa historica ucima descritas. Por definigao, é 0 alcance intencional, e nao o resultado involuntario, que distingue uma forma de agéncia de outra. Finalmente, ha aqueles projetos coletivos que tentam fazer de seus ini- ciadores autores de seu modo de existéncia coletiva como um todo, em um programa consciente voltado para a criagdo ou a remodelago de estruturas sociais inteiras. Ha premonig6es isoladas desse fendmeno em colonizagdes politicas, heterodoxias religiosas ou utopias literarias em séculos anteriores, mas, essencialmente, esse tipo de agéncia é de fato bem recente. Em larga escala, a propria nogdo de agéncia em pouco antecede o Iluminismo. A Revo- lugdo Francesa e a Americana sao as primeiras figuragdes de agéncia coletiva nesse sentido decisivo. Originando-se como amplas explosdes espontaneas ¢ terminando em reconstrugées politico-juridicas, no entanto, elas ainda per- manecem a grande distancia das manifestagdes de uma completa agéncia popular que deseje ¢ crie novas condigées sociais de vida para si mesma. E © moderno movimento trabalhista que verdadeiramente fez nascer essa nova ‘concepgdo de mudanga historica; e é com 0 advento do que seus fundadores chamam de socialismo cientifico que, de fato, pela primeira vez, projetos coletivos de transformagao social se casam com esforgos sistematicos para entender os processos do passado e do presente, a fim de produzir um futuro premeditado. A Revolug&io Russa é, nesse sentido, a encarnag&o inaugural de um novo tipo de histéria, fundada em uma forma de agéncia sem pre- cedentes. Notoriamente, os resultados do grande ciclo de revoltas que ela iniciou estao, até o momento, distantes daqueles esperados no inicio. Mas a alteragao do potencial de ago histérica, no curso do século XX, permanece irreversivel. Agora, 0 efeito dos apelos de Thompson a agéncia em sua critica a Al- thusser é para permitir um deslize do sentido um pelo sentido dois até o sentido trés. Seu impacto ret6rico apoia-se nas evidéncias cotidianas de que as pessoas cuidam de suas vidas fazendo todo tipo de escolhas, agindo de acordo com valores e perseguindo propésitos ~ alguns dos quais realizados, outros no, outros realizados de formas nao desejadas. Esse tipo de agéncia (escolha de marido ou amante, na parabola aguda do Thompson sobre a tra- balhadora)!” é, desse modo, suprimido pelo projeto coletivo limitado, que é menos frequente (a greve em sua fabrica) e que pode, assim, tacitamente se equiparar a forma de agéncia indicada pela maxima de Morris, que clara- mente se refere a transformagées sociais por completo (seu contexto é a 33 Revolta dos Camponeses), as quais so, com efeito, muito raras na historia como processos conscientes. A frase reducionista “agentes continuamente desnorteados e ressurgentes” fornece a ligagdo atemporal. O erro conceitual envolvido é amalgamar sob a mesma rubrica de “agéncia” aquelas agdes que silo de fato vontades conscientes no nivel pessoal ou local, mas cuja incidén- cia social ¢ profundamente involuntéria (relaco entre casamento-idade, di- gamos, e crescimento populacional), com aquelas agdes que sdo vontades conscientes no nivel de sua propria incidéncia social. O resultado paradoxal da critica de Thompson a Althusser €, desse modo, reproduzir na pritica a falha fundamental do filésofo francés por meio de uma inverséo polémica. Afinal, as duas formulas antagonistas de um “processo humano-natural sem um sujeito” e de “agentes continuamente desnorteados e ressurgentes de uma historia ind6mita” sao, ambas, afirmagées de um carter essencialmente apo- ditico e especulativo — axiomas eternos que de forma alguma nos ajudam a tragar os papéis reais e varidveis de diferentes tipos de iniciativas deliberadas, pessoais ou coletivas, na histéria. Uma abordagem histérica, em oposigao a uma apoditica, do problema buscaria tragar a curva de tais iniciativas, a qual tem crescido pronunciadamente — em termos de massa de participagdo e es- cala de objetivos — nos tiltimos dois séculos, de niveis anteriores baixos. Ainda assim, no entanto, é importante lembrar que h enormes areas da existéncia que permanecem, em grande parte, fora de qualquer forma de agéncia organizada. Padrdes demograficos, para pegar o exemplo anterior, tém tradicionalmente estado fora do dominio de qualquer escolha social consciente. Se esto agora comegando, pela primeira vez, a ser objeto de tentativas de intervengdo deliberada, experimentos iniciais em controle po- pulacional ainda permanecem em grande parte ineficientes (e também auto- ritarios) — como na india e na China -, ao passo que a indugao do crescimento populacional — como na Alemanha Oriental ou na Franga — tem, até aqui, produzido pouco resultado. Outra zona de pratica humana primordial que permanece até mais involuntaria é, evidentemente, a lingua, embora o século XX tenha visto algumas excegées até nessa area, tais como o renascimento do hebraico em Israel. A area de autodeterminagao, para usar um termo mais preciso que “agéncia”, esteve em expanso nos tiltimos 150 anos, mas ainda &bem menor que a de sua oponente. Todo o propésito do materialismo his- t6rico, afinal de contas, tem sido precisamente fornecer a homens e mulheres 0s meios com os quais eles possam exercer uma autodeterminagdo popular verdadeira pela primeira vez na historia, Esse € exatamente 0 objetivo de 34 uma revolugao socialista, cujo propésito é inaugurar a transigao do que Marx chamou de “reino da necessidade” para o “reino da liberdade”. A auséncia de algum eco desse tema basico do marxismo no ensaio de ‘Thompson sobre Althusser € bastante surpreendente. Mais ainda, talvez, por- que 0 tema encontra um lugar no longo texto dedicado a Kolakowski, escrito anteriormente e agora publicado no mesmo volume. La, Thompson destaca %o potencial humano de agir como agentes racionais e morais” como “um conceito coincidente com aquele da passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade”."* Sob o comunismo, am de cavalgar a humanidade. Os homens. [..] as coisas so derrubadas da sela e dei Jutam livres de sua propria maquinaria e a subjugam a necessidades € decises hu- manas. © homem deixa de viver em uma postura defensiva, repelindo o assalto das “circunsténcias”, seu maior triunfo em engendrar socialmente um sistema de pesos € contrapesos ¢ equilibrar poderes contra sua prépria ma vontade. Ele principia a viver de seus proprios recursos de possibilidades criativas, liberto do determinismo do “processo” dentro de sociedades divididas em classes." Dessa descrigdo, no entanto, Thompson tira uma conclusdio inesperada: “caso esse reino da liberdade seja alcangado, o argumento nao da nenhuma garan- tia de que os homens escolherio sabiamente ou serdo bons”.*” Essa contin- géncia logo assume uma forma bem imediata e tangivel, pois [J existe a possibilidade, terrivelmente impropria como indica a metafora, de que ‘0s paises “socialistas” ja tenham cruzado a fronteira marxista do “reino da liberdade”. Ou seja, enquanto na histéria anterior o ser social parecia, em iiltima andlise, deter- minar a consciéncia social — porque a légica do processo sobrevinha as intengdes humanas -, nas sociedades socialistas pode nao haver tal légica determinante do proceso, e a consciéncia social pode determinar o ser social.”! Thompson continua, especulando assim: [..] 0s métodos de andlise historica aos quais nos habituamos deixariam de ter a mesma validade na investigagao da evolugao socialista. Por um lado, isso abre a perspectiva de um duradouro prolongamento da tirania, Enquanto algum grupo dominante — talvez fortuitamente estabelecido no poder no momento da revolugdo — puder se reproduzir ¢ controlar ou fabricar consciéncia social, nfo haverd légica do processo inerente dentro do sistema que, como ser social, trabalhe com poder suficiente para provocar a derrubada desse grupo.” 35 Mas, ao mesmo tempo, [..] acima e além de qualquer contestagao que surja do “ser social”, o grupo dominante tem mais a temer da contestagaio da “consciéncia social” racional. E exatamente a racionalidade € um processo moral aberto e avaliatério que “precisam” ser a légica do processo socialista, expressa em formas democraticas de autogestio ¢ em institui ‘ges democraticas.”* salto de todo esse argumento — hipoteticamente avangado como é — deve espantar qualquer um familiarizado com a teoria do materialismo hist6rico ou com a realidade da Unido Soviética e de paises associados, pois 0 reino da necessidade é fundado, para Marx, na escassez: 0 salto para a liberdade evocado n’O capital s6 se torna possivel com 0 advento da abundancia generalizada, enquanto a camada dominante na Unio Soviética, longe de desfrutar de um dominio vital das leis do desenvolvimento histérico nesse pais, tem notoriamente esbarrado em uma longa série de crises sociais e pro- cessos econémicos descontrolados imprevistos, de repentinas faltas de graos a desenfreadas epidemias de terror ¢ a assustadoras paralisagées de produti- vidade — todos eles movimentos cegos de uma sociedade as escuras para todos os seus membros. Como Thompson péde chegar a tal construgaio perversa? A resposta est em um erro duplo: em primeiro lugar, ele implicitamente identifica agéncia historica com a expresso da vontade ou da aspiragdo. De fato, ao longo de A miséria da teoria, os termos com 0s quais ele concebe a agéncia tendem a ser existenciais em escala—“escolha”, “valor”, “deciséo”. O que lhes falta é alguma devida énfase complementar nas dimensées cognitivas da agéncia. ‘A pratica soberana dos produtores associados conjecturada por Marx como a realizagao do comunismo era nao apenas fruto da vontade, mas igual e inseparavelmente do conhecimento. Esse componente é central para qualquer estudo materialista das formas varidveis de agéncia social na hist6ria. O “dominio” da sociedade no mero sentido de um voluntarismo politico ins- trumental nao é nenhuma novidade: essa tem sido a ambigao e a atividade de principes desde o despontar da divisio do trabalho. A propria existéncia do Estado, como um aparato de administragao e coergao centralizado, garante ‘a presenca desse tipo de poder em toda sociedade de classes. Desde os pri- meiros tempos ¢ nas mais diversas formagdes sociais, esse poder produziu seus proprios manuais — 0 Espetho dos reis, compilagées de adgios taticos ¢ prescrigées para 0 exercicio bem-sucedido do dominio que podem ser en- 36 contradas do Egito antigo ao Tibet medieval ¢ que floresceram, sobretudo, no mundo islamico. O pensamento politico moderno no Ocidente deve sua origem a esses frégeis guias de dominagio: o que mais é a forma d’0 principe, de Maquiavel? As limitagdes dessa literatura secular so aquelas de sua com- preensao histérica: incapaz de capturar, muitas vezes até de vislumbrar, os mecanismos sociais subjacentes a estabilidade politica ou 4 mudanga, ela esteve confinada a maximas miopes sobre conduta régia, sentenciosas ou cinicas, como urgia a cultura. O tipo de agéncia conservadora que essa lite- ratura codificou sobrevive até hoje, mas com uma alterag&o crescentemente significativa. Com a investida do capitalismo industrial no século XIX, os grandes estadistas da reagdo eram caracteristicamente aqueles que se pro- varam capazes de conduzir grandes transformagées do Estado por meio da exploragiio calculada das forcas sociais ou econémicas para além da jurisdi- ¢do da perspectiva tradicional da politica. Cavour, Bismark e Ito foram os exemplares supremos dessa enorme ampliagao do modelo de superordenagao consciente. Mas a sua lucidez permaneceu operacional em vez de estrutural. Nenhum deles possuia uma vis4o geral do desenvolvimento histérico, ¢ 0 trabalho de cada um resultou em subsequente fiasco, consumado por sucesso- res do século XX — Mussolini, Hitler e os aventureiros de Showa — que erro- neamente tomaram o legado de seus antecessores como li¢&o sobre a eficacia de um voluntarismo sem limites. O culto da vontade politica sem visio social resultou em quase suicidio de classe para o capital alemao, italiano e japonés na Segunda Guerra Mundial. O registro dessa deméncia é um lembrete do quio distante 0 monopélio do poder politico est de um dominio do proceso histérico, O mesmo se mostra verdadeiro, hoje, para a burocracia soviética ‘ou chinesa, cuja capacidade de compreender suas proprias sociedades é ine- rentemente limitada pelas necessidades ideolégicas de suas préprias usurpa- ges e privilégios. De fato, é seguro afirmar que nenhuma formagao social aquém da democracia socialista plena tem 0 potencial de gerar conhecimento preciso sobre suas préprias leis do movimento mais profundas. Por si mesmas, no entanto, até as aspiragdes comuns amalgamadas com a cognigao real — em uma democracia de trabalhadores pés-revolucionaria — nao seriam suficientes para cruzar as fronteiras da necessidade. O segundo erro de Thompson é o de se esquecer das irredutiveis imposicdes materiais da escassez. A Unido Soviética hoje, mesmo que livre do desmando burocra- tico, ainda permaneceria a uma vasta disténcia da perspectiva evocada por Thompson de uma “primazia da consciéncia social sobre o ser social” — um futuro formulado pela primeira vez, nesses termos, 60 anos atrés por Lukacs, a7 durante a Comuna Hingara. A pobreza e a escassez ainda assombram a so- ciedade russa, tanto a rural quanto a urbana, em uma economia cuja pro- dutividade do trabalho permanece metade daquela da Alemanha Ocidental. Uma falha inexplicavel em registrar esse fato conhecido leva Thompson nao apenas a atribuir a lideranga soviética uma liberdade de manobra imagindria, mas também a privar sua emergéncia de qualquer causalidade histérica ra- cional. Assim, ele pode provisoriamente se perguntar se a lideranga soviética ‘ou grupos similares nao foram, “quem sabe, fortuitamente estabelecidos no poder no momento da revolugao”,** quando, na verdade — como todo estudo marxista sério do destino da Revolucao Russa mostra —, foi o cruel ambiente interno de escassez penetrante, aliado 4 emergéncia externa de um cerco militar imperialista, que produziu a burocratizacao do partido e do Estado na Unido Soviética. A andlise original de Trotsky desse processo permanece insuperavel. O reino da necessidade, longe de ter desaparecido dos paises comunistas, ainda continua tanto reproduzindo burocracia quanto a agui- Ihoando. A tinica admissio conjectural de variagao histérica de Thompson a sua descrig&io de agéncia parece confirmar uma tendéncia de subestimar suas circunscrigdes objetivas. Podemos explorar mais essa possibilidade voltando 4 Miséria da teoria e olhando para a categoria central ali empregada como sustenta¢o para 0 seu tratamento da no¢ao de agéncia — 0 conceito de “experiéncia”. Thompson nos diz que é “por meio do termo ausente ‘experiéncia’ que a estrutura é transmutada em processo ¢ o sujeito reaparece na histéria”.25 Repetidamente invocada como um verdadeiro destilador da vida social, 0 que é a experién- cia? Duas respostas um tanto diferentes sio dadas. Thompson inicialmente escreve que “ela engloba a reacéio mental e emocional, seja de um individuo ou de um grupo social, a diversos eventos inter-relacionados ou a diversas repeticdes do mesmo tipo de evento”. Mais adiante, no entanto, ele sugere outra defini¢ao: “A experiéncia é um necessério termo intermediario entre 0 ser social e a consciéncia social”. Assim, se “a experiéncia é, em ultima ins- tancia, gerada na ‘vida material’, é estruturada em formas de classe e, con- sequentemente, o ‘ser social’ determina a ‘consciéncia social”, a0 mesmo tempo, “para qualquer geragao viva, em qualquer ‘agora’, a maneira como eles ‘lidam’ com a experiéncia desafia previsdes e escapa de qualquer defini- Ao estreita de determinagtio”.”” A primeira dessas formulagées situa a expe- riéncia diretamente “dentro” da consciéncia, como uma reagio subjetiva — “resposta mental e emocional” — a eventos objetivos. A segunda e a terceira a intercalam “entre” o ser ¢ a consciéncia e introduzem ainda outro conceito: ae em vez de a experiéncia ser um conjunto de respostas mentais € emocionais aeventos, ela ¢ ela mesma “tratada” para fornecer as respostas (em especial) de classe e cultura, A nog&o de uma segunda ordem de subjetividade, por assim dizer, é reforgada pelo pleonasmo pouco usual ao qual Thompson re- corre ao desenvolver sua descrigdio: “As pessoas nao apenas experimentam suas proprias experiéncias como ideais, dentro do pensamento e de seus procedimentos, ou como instinto proletério. Elas também experimentam sua propria experiéncia como sentimento”.2* O que oscilag6es e incertezas de uso significam? Essencialmente, elas so lembrangas da ambiguidade do termo “experiéncia” na propria linguagem cotidiana. Por um lado, a palavra denota uma ocorréncia ou um episédio como vivido pelos participantes, a textura subjetiva de agdes objetivas, “a passagem por um evento ou sequéncia de eventos pelos quais se ¢ afetado”.*” Por outro lado, ela indica um processo subsequente de aprendizado por meio de tais ocorréncias, uma alteracio subjetiva capaz de modificar agdes objeti- vas posteriores; consequentemente, como coloca o diciondrio, “conhecimento pratico de qualquer matéria conquistado pela experimentagao; observagaio longa e variada, pessoal ou geral; sabedoria derivada das mudangas ou expe- rimentagdes da vida”.! Esses dois sentidos distintos podem ser aqui chama- dos de neutros e positivos. O adjetivo “experiente”, evidentemente, refere-se apenas ao tiltimo. Agora, se olharmos para o uso que Thompson dé ao termo em sua critica a Althusser, podemos ver que, na maior parte do tempo, ele esté inconscientemente transferindo as virtudes ¢ os poderes do (mais restrito) segundo tipo para o (mais geral) primeiro tipo de experiéncia. A eficdcia de um é mesclada a universalidade do outro para sugerir uma maneira alterna- tiva de ler a hist6ria como um todo. A categoria genérica resultante inevita- velmente combina problemas muito diferentes. A ilustragao mais especifica de Thompson da forea do conceito ocorre j no inicio da sua contenda com Althusser. Ele escreve: “A experiéncia é valida e efetiva quando dentro de limites determinados: o agricultor ‘conhece’ suas estagdes, 0 marinheiro ‘co- nhece’ seus mares, mas ambos podem permanecer incertos sobre monarquia e cosmologia”.”* Agora, se seguido em uma diregio, esse comentario leva ao tipo de conclusdo que A miséria da teoria de outro modo negligencia: que agéncia/conhecimento efetivos tém sido hierarquicamente limitados ao longo da histéria humana, seu alcance tipicamente nao relacionado em forma al- guma a relagdes sociais como tais. Em outras palavras, permite-se ao menos a sugestio das assimetrias, das disparidades, entre determinagio e autode- terminagdo em épocas passadas. Mas, evidentemente, somente registrar esse 39 tema nio ¢ suficiente, pois o problema colocado pelo argumento de Thomp- son nao é apenas aquele do alcance espacial de uma dada experiéncia, mas de seu fipo relevante. Agricultura e navegacdio, no exemplo que ele da, so praticas experimentais controladas por resultados observaveis. Elas certa- mente geram conhecimento real, mas nao podem ser tomadas, a partir dai, como emblematicas da experiéncia em geral. Se substituirmos, digamos, 0 par de Thompson por 0 “paroquiano” conhece suas “oragdes”, o “padre” co- nhece seu “rebanho”, a que conclusao chegaremos? A experiéncia religiosa ¢ “valida e efetiva dentro de limites determinados”? Obviamente que nao. Dificilmente se pode suspeitar que Thompson tenha feito concessdes a esse respeito. De fato, em outro momento ele vai ao extremo oposto, comprome- tendo-se com a ousada visdo nao histérica de que “a maior parte da historia das ideias € uma historia de aberragdes” — “para qualquer mente racional”.** Nao precisamos aderir a esse tipo de racionalismo para avaliar que a ex- periéncia religiosa — embora subjetivamente muito intensa e real, embora enormemente eficiente em levar grandes massas de homens e mulheres ao longo dos séculos tanto a executar fungdes de rotina como a empreendimentos excepcionais — nao é “valida” como conhecimento, e nunca foi. Como, entdo, distinguir a experiéncia valida da invélida? Thompson nao nos da indicagdes em lugar algum. Ainda assim, esse problema é claramente central em toda sua hip6tese em A miséria da teoria. Os exemplos discutidos acima so todos praticas regularmente codificadas. Mas a experiéncia, evi- dentemente, assume muitas outras formas, e Thompson, em outro lugar, faz alusio a algumas delas. Algumas paginas adiante, ele escreve: A experiéncia entra sem bater na porta e anuncia mortes, crises de subsisténcia, guerra de trincheiras, desemprego, inflagdo, genocidio. Pessoas passam fome: seus sobreviventes pensam de novas maneiras sobre o mercado. Pessoas séo aprisionadas: na prisio, elas meditam de novas maneiras sobre o direito.* O sentido de “experiéncia” nessa passagem é claramente o da ligo que pro- cessos inesperados ~ vicissitudes ou calamidades — podem ensinar aqueles que sobrevivem a eles. Thompson claramente assume que as ligdes ensinadas serdo as corretas, como pode ser visto no comentério que segue: “nao se vé na epistemologia de Althusser tal apresentagio imperativa de efeitos do co- nhecimento”..* O paradigma presumido aqui é, na verdade, muito mais cen- tral em todo 0 trabalho de Thompson que o tipo anterior. A énfase da “expe- rigncia” de Thompson é, em geral, mais proxima daquela da Erlebnis que 40 daquela da Erfahrung ~ mais moral-existencial que pratico-experimental. Mas o mesmo problema repete-se também nesse registro. O que assegura que uma experiéncia de perturbagao ou desastre em particular inspirara uma particular (moral ou cognitivamente apropriada) conclusao? A fome da dé- cada de 1840 levou o campesinato irlandés a pensar de novas maneiras sobre 0 mercado? Poucos paises no Ocidente permaneceram tdo imunes a critica socialista do mercado, mesmo na mais timida forma social-democrata, como a Republica fundada naquela classe. O aprisionamento de uma geragao de comunistas do Leste europeu antes da guerra os fez defensores da legalidade ede uma justiga humana depois dela? A mais longa provagao em uma prisdo foi suportada por um prisioneiro cujo nome, uma lenda internacional de he- roismo nos anos 1930, tornou-se sinénimo de sadismo nos anos 1950: Matyas Rakosi. A experiéncia como tal é um conceito fous azimuts, que pode apon- tar em qualquer diregaio. Eventos idénticos podem ser vividos por agentes que tiram deles conclusdes diametralmente opostas. Outra das agitagdes transformadoras citadas por Thompson é a guerra, que fornece algumas das mais espetaculares ilustragdes dessa polivaléncia. Assim como € provavel que poucas experiéncias coletivas tenham sido tao intensas quanto a religidio para a maioria dos produtores em momentos especificos de suas vidas (muito desigualmente) em épocas pré-industriais, nos tempos modernos, poucas experiéncias populares tém sido tao fortes e to difundidas entre tantos mi- Ihdes quanto o sentimento nacional ~ materialmente enraizado na localidade, na lingua e nos costumes. O que essa experiéncia ensinou as massas explo- radas da Europa em 1914? Que era certo e natural, mesmo que lamentavel, eles lutarem uns contra os outros em uma escala sem precedentes. Teriam os quatro anos de massacre cruel que se seguiram desfeito essa ilusdo, ensi- nando-os a refletir de novas maneiras sobre a nagiio? Em alguns casos — para a maior parte da classe trabalhadora e do campesinato russo, para muitos da classe trabalhadora italiana e para uma minoria da alema -, sim: a Terceira Internacional se desenvolveu precisamente a partir dessa matriz. Em outros casos, 0 mesmo no ocorreu: 0 patriotismo tradicional das massas inglesas ¢ francesas foi moderado por certo pacifismo pés-guerra, mas nao fundamen- talmente modificado. Em outros casos ainda, o nacionalismo, pelo contrario, passou por uma exacerbagdo infernal: entre a pequena burguesia alema e ita- liana, 0 campesinato austriaco, o lumpemproletariado hiingaro, a derrota comprimiu as primaveras de vinganga em fascismo. A experiéncia em massa da morte e da destruig&o nao trouxe, por si mesma, nenhuma iluminagao 41 necessaria. Uma floresta de interpretagdes cresceu sobre os campos de bata- Iha desertos, Em outras palavras, a tacita primeira verso de experiéncia a ser encon- trada em A miséria da teoria— um conjunto de respostas mentais e emocio- nais como “dadas por” um conjunto de eventos vividos ao qual elas corres- pondem’* ~ nao pode ser sustentada. No entanto, como vimos, Thompson também esboga uma segunda defini¢ao, que parece abrir-se muito melhor a divergéncias e variagées de resposta. Aqui, a propria experiéncia permanece um setor objetivo do “ser social”, que é, assim, processado ou “tratado” pelo Sujeito a fim de gerar uma “consciéncia social” especifica. A possibilidade de diferentes maneiras de “tratar” a mesma experiéncia é epistemologicamente segura. Esse esquema representa, na verdade, a mais recorrente e importante das duas descrigdes desenvolvidas por Thompson, ainda que haja um grau significativo de oscilagao entre elas. Para ver isso trabalhado em grande es- cala, devemos nos voltar para 4 formagdo da classe operaria inglesa. Ao fazé-lo, iremos imediatamente reencontrar o problema da agéncia histérica os niveis mais aprofundados do engajamento intelectual de Thompson com esse tema. Essa grande obra abre com a famosa declaragao: “A classe traba- thadora nao surgiu como o Sol em um momento determinado. Ela estava presente em sua propria formagao”,” pois essa formagao foi um processo ativo, “que deve tanto & agéncia quanto ao condicionamento”.* O nascente proletariado inglés nao foi mero produto do advento do sistema de fabricas. Pelo contrario, “a classe trabalhadora se formou tanto quanto foi formada”.*° A forma fundamental que essa agéncia assumiu foi a da converstio de uma experiéncia coletiva numa consciéncia social que, desse modo, definiu e criou a propria classe. ‘classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiéncias em comum (herdadas ou compartilhadas), sentem e articulam a identidade de seus inte- esses como algo entre eles, e como algo contrario a outros homens cujos interesses silo diferentes dos (¢ frequentemente opostos aos) seus. A experiéneia de classe & amplamente determinada pelas relagdes de produgao nas quais os homens nascem —ou ingressam inyoluntariamente. A consciéncia de classe é a maneira pela qual as expe- riéncias so “tratadas” em termos culturais: ineorporadas a tradigdes, sistemas de valores, ideias e forma titucionais. Se a experiéncia aparece como determinada, a consciéncia de classe nao... a classe ¢ definida por homens enquanto vivem sua prépria histéria e, ao final, essa é sua tinica definigao.” 42 O processo dessa definigaio formativa ¢ estudado em trés movimentos consecutivos. A primeira parte do livro reconstréi as tradigdes politicas ¢ culturais do radicalismo inglés no século XVIII: dissidéncia religiosa, agita- gio popular e conviegao constitucional —a tiltima finalmente culminando na ruptura de Paine com o constitucionalismo, seguida pelo breve episédio do jacobinismo inglés na década de 1790. A segunda parte lida com a experién- cia social catastrofica da Revolugdo Industrial, como ela foi vivida por suces- sivos grupos de produtores primérios — trabalhadores do campo, artesaos, teceldes —e discute o padrio de vida, o proselitismo, a disciplina do trabalho c instituigdes comunitirias de trabalhadores nesses anos sinistros. A terceira parte traga o crescimento da consciéncia de classe dos trabalhadores em su- cessivas lutas politicas e industriais contra a nova ordem durante e apés a era napoleénica — as campanhas parlamentares em Londres, a eclostio do luddismo no Norte e nas Midlands, 0 radicalismo nacional conduzido por Cobbett e Hunt, o massacre em Peterloo, a expansdio do owenismo. Na época da crise de 1832, Thompson conclui: “a presenga da classe trabalhadora era © mais significativo fator na vida politica britanica”.*! Agora, de fato, “ha uma sensagdo de que a classe trabalhadora nao esta mais em formagdio, mas jé foi formada”. Logo faré 20 anos da publicagao de A formacdo da classe operdria in- glesa, Ainda assim, hé surpreendentemente pouca discussio historiografica do livro pela esquerda; seu extraordinario poder parece ter inibido 0 fluxo habitual de reflexio critica e assimilagdo normalmente alcangado por traba- Ihos de tal magnitude. Ha duas vias pelas quais uma reavaliagdo contempo- rinea de A formagdo da classe operdria inglesa poderia seguir. A primeira uma revistio empirica detalhada das evidéncias que tém, desde entao, vindo 4 luz sobre os anos iniciais do proletariado inglés, a fim de ver 0 quanto 0 panorama apresentado por Thompson necessita de retoques locais ou gerais. Nao ha, evidentemente, nem espago nem competéncia para fazé-la aqui. A segunda é um exame mais proximo da estrutura logica do argumento nesse classico da histéria marxista inglesa. Algumas observagdes sobre isso sero tentadas. Do breve resumo feito acima, veremos que trés teses fundamentais dao sustentagdo a arquitetura de A formagdo da classe operaria inglesa. Chamaremos a primeira de a afirmagao da codeterminagdo: isto é, a tese de que a classe trabalhadora inglesa “se formou tanto quanto foi formada”, em uma paridade causal entre “agéncia e condicionamento”.** A segunda é 0 critério da consciéncia como a pedra de toque de classe: a saber, a alegagdo de que “a classe acontece quando alguns homens, como resultado de expe- 43 riéncias em comum, sentem e articulam a identidade de seus interesses como algo entre eles, e como algo contrario a outros homens cujos interesses so diferentes dos (e frequentemente opostos aos) seus”. Essa formulagao ecoa fortemente em A miséria da teoria: “as classes surgem porque homens e mulheres, em relagdes produtivas determinadas, identificam seus interesses antag6nicos e passam a lutar, a pensar ¢ a definir valor em termos de classe” “8 As classes existem no e por meio do processo de autoidentificagao coletiva que é a consciéncia de classe: “A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua propria histéria, e, ao final, essa é sua tinica definigaio”.** A terceira tese poderia ser nomeada as implicacdes do fechamento: em outras palavras, a declaragao de que a identidade da classe trabalhadora inglesa foi, em certo sentido, completada por volta do comego da década de 1830, de forma que podemos falar dela como “nao mais em formagao”, mas “formada”. O titulo do trabalho empresta uma forga de sugestiio decisiva a essa nogiio. Conside- remos cada um desses temas. interesse peculiar do primeiro reside no fato de que nos é apresentado um teste pratico das declaragdes tedricas de A miséria da teoria. As “propor- bes” de agéncia e necessidade sio especificadas em um processo histérico em particular ~a formagao da classe trabalhadora inglesa. Thompson as julga iguais. A clareza e a seriedade com as quais ele situa o problema esto para além do louvor: nao ha precedente na historiografia marxista ou em outra. Ao final de seu estudo, no entanto, se formos figis ao problema por ele le- vantado no inicio, devemos nos colocar algumas perguntas. A primeira é a seguinte: Teria Thompson demonstrado que a classe trabalhadora inglesa se formou tanto quanto foi formada — nao em um sentido postigo, cientifico, mas em termos de um balango de evidéncias plausivel? Poucos dos histo- riadores profissionais que resenharam A formagaio da classe operaria inglesa se detiveram nessa questo, ainda que ela paire sobre o livro todo: sem divida, tem sido geralmente vista por eles como excessivamente “meta-histérica”. Mas ¢ ela incapaz de controle empirico ou arbitramento? Fazer essa pergunta € constatar que A formagao da classe operdria inglesa nao nos oferece, a0 contrério das aparéncias, os meios pelos quais poderiamos resolver a questo. Afinal, se a afirmagao da codeterminagao de agéncia e necessidade tivesse que ser fundamentada, precisariamos ter, no minimo, uma exploragdo con- junta da reuniao e da transformagao objetivas de uma forga de trabalho pela Revolucdo Industrial, e da germinago subjetiva de uma cultura de classe em resposta a isso. Por si s6, isso poderia fornecer os elementos iniciais — nao conclusivos — para um julgamento de seu peso histérico relativo. Esses ele- 44 mentos, no entanto, estio essencialmente ausentes em A formagdo da classe operaria inglesa. A segunda parte do livro, onde se poderia esperar encontré- los, na realidade se concentra amplamente na experiéncia imediata dos pro- dutores em vez de se concentrar no proprio modo de produgao. O advento do capitalismo industrial na Inglaterra é um pano de fundo terrivel para o livro, em vez de um objeto de andlise direto em si mesmo. O resultado ¢ uma desconcertante auséncia de coordenadas objetivas enquanto a narrativa da formagio de classe se desenrola.‘” Causa espanto perceber, ao final de 900 paginas, que ndo se aprendeu um fato to elementar quanto a dimensiio apro- ximada da classe trabalhadora inglesa, ou sua proporgdio no interior do total da populagao, em qualquer data na histéria de sua “formagao”. Uma lacuna como essa nao pode ser ignorada pela mera referéncia des- denhosa as “infinitas estupidezas da mensuragao quantitativa de classes”, até porque o proprio Thompson de fato fornece uma ou duas estimativas numé- ricas de categorias ocupacionais especificas.* De modo mais geral, 0 que a ‘omissao simboliza é a auséncia, em A formacdo da classe operria inglesa, de qualquer tratamento real de todo 0 processo histérico, por meio do qual grupos heterogéneos de artesdios, pequenos proprietarios, trabalhadores agri- colas, trabalhadores domésticos e pobres ocasionais fossem gradualmente reunidos, distribuidos e reduzidos 4 condigdo de trabalho subsumido ao ca- pital, primeiramente na dependéncia formal do contrato de trabalho e, por fim, na dependéncia real da integragao aos meios de produgao mecanizados. Os ritmos temporais recortados e as quebras, as distribuigdes espaciais desi- guais e os deslocamentos da acumulagao de capital entre 1790 ¢ 1830 inevita- velmente marcaram a composigao ¢ o carter do nascente proletariado inglés. ‘Ainda assim, tudo isso nao encontra lugar nessa descrigao de sua formagao. Prdximo ao final do livro, Thompson observa que “a classe trabalhadora britdnica de 1832” foi “talvez uma formagao tinica”, porque [..] © crescimento lento, fragmentério da acumulagio de capital significou que as preliminares da Revolugao Industrial se estendiam centenas de anos para trés. Dos tempos dos Tudors em diante, essa cultura artesa foi crescendo e se tornando mais complexa com cada fase de mudanga técnica ¢ social. Delaney, Dekker e Nashe; Winstanley ¢ Lilburne; Bunyan e Defoe — todos ocasionalmente se posicionaram. em relagao a isso. Enriquecidos pelas experiéncias do século XVII, levando a efeito no século XVIII as tradigdes intelectuais e libertarias que descrevemos, formando suas préoprias tradigdes de mutualidade nas sociedades amistosas e nos clubes de comércio, cesses homens no passaram, em uma geragiio, do campesinato 4 nova cidade industrial. 45 Eles sofreram a experiéncia da Revolugdo Industrial como ingleses articulados, nas- cidos em liberdade.., Essa foi, talvez, a mais distinta cultura popular que a Inglaterra conheceu."” De modo excepcional, aqui, é formalmente concedida ao padrao objetivo da acumulagao do capital uma primazia de determinagdo original. Mas a escala secular na qual ela é evocada—retrocedendo ao tempo dos Tudors — permite ao breve periodo em estudo aparecer sob o disfarce de um codicil. O verda- deiro centro de gravidade da passagem é a sobrevivéncia e a continuidade de tantos valores populares e tradigdes de resisténcia — dos quais o andamento lento do desenvolvimento capitalista na Inglaterra nao é mais que a condigao propiciadora. Ainda assim, a velocidade ¢ a amplitude da industrializagio certamente se tornariam parte da trama da propria textura de qualquer estudo materialista de uma classe trabalhadora. Se elas nao sao tomadas como “ex- ternas” a formagao do proletariado russo ou italiano — como qualquer vislum- bre da historia do trabalho de Petrogrado ou Turim basta para nos lembrar-, por que deveriam ser para o proletariado inglés? Thompson corretamente enfatiza que “a mao de obra das fabricas, bem longe de ser ‘a filha mais ve- tha da Revolugao Industrial’, era convidada atrasada” na Inglaterra, e que trabalhadores externos anteciparam muitas de suas ideias e formas de orga- nizagdo, Mas isso justifica uma investigagao da formagao da classe trabalha- dora inglesa que omita completamente qualquer descrigAo direta desses tra- balhadores de fabrica? Algodao, ferro e carvao formam juntos praticamente a soma total da primeira fase da industrializagéo na Gra-Bretanha: mesmo assim, a forga de trabalho direta de nenhum deles ¢ tratada em A formacao da classe operdria inglesa.‘' Na auséncia de algum enquadramento objetivo estabelecendo o padrao geral da acumulacao de capital nesses anos, ha pou- cas chances de avaliar a importéncia relativa de uma drea da experiéncia subjetiva na classe trabalhadora inglesa em contraste com outra, Proporgdes estdo ausentes. A seletividade de foco ¢ combinada a amplitude de conclusao tipicamente com tal paixao e tal destreza que a primeira pode facilmente ser esquecida pelo leitor. Nao € apenas uma questao de sopesar os diferentes grupos de produtores dentro do processo em desenvolvimento da Revolugdo Industrial. As inter- -relagées so, obviamente, de importancia ainda maior. Thompson devota uma quantidade de paginas bem perceptivas as diferentes culturas populares de Londres e do Norte, 0 que ele chama de dialética de “intelecto e entu- siasmo”, comentando que “cada cultura parece enfraquecida sem 0 comple- 46 mento da outra”.® Essa divisdo, que se estende a Social Democratic Federa- tion (SDF) e ao Independent Labour Party (ILP) ¢ além, tem sido, certamente, um trago decisivo do movimento trabalhista inglés. Mas ela nao esta adequa- damente ancorada em A formagdo da classe operaria inglesa — apesar de todas as suas consequéncias no desenvolvimento da narrativa ~ porque nao hd um mapa espacial do capitalismo britanico que revele a medida de sua importincia. Com efeito, o frio fato econdmico de que Londres permaneceu, a0 longo do século XIX, uma capital arrendadora, comercial e burocratica, dominada pela corte e pela cidade — mais prdxima, em alguns aspectos, a Viena ou Madri do que a Paris, Berlim ou Sao Petersburgo -, seria um grande obstaculo a emergéncia de um movimento trabalhista politicamente agressivo na Inglaterra, Uma capital sem inddstria pesada ajudou a separar um prole- tariado de fabrica de um instinto de poder. Quando o radicalismo dos artifi- ces entrou em colapso — com 0 declinio do comércio especializado no qual era baseado —, as fraquezas inerentes da divisdo entre tradigdes metropolita- nas e provincianas, fundadas em tipos de acumulago to separados, torna- ram-se evidentes.* A influéncia crescente do benthamismo no trabalho de Place e de seus associados depois de 1815, descrita por Thompson, prefigurou desenvolvimentos bem posteriores. Pode-se dizer que Londres acabou por burocratizar a moderagio do Norte em um sistema municipal-nacional, na era de Morrison. ‘Acompleigao peculiar da maior cidade do mundo na época da Revolugao Industrial estava, evidentemente, intimamente relacionada nao apenas a suas instituigdes da corte e do parlamento, mas também, e sobretudo, a suas fun- des imperiais. Contudo, aqui também é dificil sentir que Thompson dé o tipo de ateng&o e 0 peso as coordenadas objetivas de seu tema que 0 titulo do trabalho nos leva a supor. Possivelmente, isso fique mais bvio no préprio nivel politico, no qual ha pouco reconhecimento sustentado das dimensdes internacionais da historia da classe trabalhadora inglesa. Na primeira parte de seu estudo, Thompson enfatiza que, apesar da forca ideolégica do com- plexo de crengas sintetizado na nogao do “inglés nascido em liberdade”, demandas radicais permaneceram aprisionadas nos termos de um consti- tucionalismo imaginario até a década de 1790. A ruptura decisiva, que alterou os parametros da politica radical, veio com a publicagao d‘Os direitos do homem, de Paine, obra que, pela primeira vez, rejeitou a monarquia consti- tucional e atacou a Declaragao dos Direitos.* Thompson também menciona * “The Bill of Rights”, no original. (N. da T.) a7 © sentido pouco notavel do proprio pensamento e da vida de Paine como um agente de alfaindega na Inglaterra até o inicio da década de 1770, e as mudan- gas repentinas precipitadas por sua imigragdo para a América. Do mesmo modo, a circunstancia na qual a obra Os direitos do homem foi escrita, em resposta as Reflexdes sobre a Revolugdo Francesa, de Burke, é, evidente- mente, registrada. Mas em nenhum lugar 0 choque combinado da Revolugao Americana e da Francesa — da qual o trabalho de Paine é 0 produto politico direto na Inglaterra — encontra, em A formagdo da classe operaria inglesa, espago proporcional a sua real importancia hist6rica. O fato é que todo o uni- verso ideolégico do Ocidente foi transformado por esses dois grandes levan- tes. O padrdo de seu impacto internacional é o tema de trabalhos como 0 grande estudo de Palmer: A era da revolugdo democritica. Seu significado — sobretudo o da Revolugao Francesa ~ ¢ incomparavelmente maior para a formagio politica da classe trabalhadora inglesa que, digamos, atitudes po- pulares em relagao ao crime. Ainda assim, 0 segundo tema recebe tratamento meticuloso, enquanto o primeiro é relegado a obscuridade. Apesar de sua importéncia central ao longo de duas décadas, o leitor aprende pouco ou nada sobre as atitudes complicadas e os debates dentro do radicalismo inglés a respeito dos eventos na Franca. Um aparente vicio procedimental os exclui: uma vez que revolug6es sociais no exterior nao podem contar como ativida- des da propria classe trabalhadora na Inglaterra, elas ficam de fora do relato hist6rico feito sobre esses anos. Suas consequéncias também sdo, em grande medida, omitidas das partes posteriores do livro, pois, enquanto Thompson invoca em principio a coin- cidéncia entre Revolugao Industrial e contrarrevolugao politica durante as Guerras Napole6nicas — com sua simultanea “intensificagio de duas formas intoleraveis de relagdo: aquelas da exploragdo econémica e da repressdo politica” ~,** na prética, o impacto de duas décadas de guerra na cultura po- pular inglesa ¢ praticamente ignorado. Como o proprio padrao de acumula- go de capital, a realidade do conflito militar figura apenas como gesto na narrativa. Um resultado inevitavel ¢ a minimizago da mobilizag4o nacio- nalista de toda a populagao inglesa pela classe dominante, em sua gigantesca luta com a Franga pela supremacia. Ainda assim, nenhum retrato completo da cultura popular inglesa depois de 1815 pode ser alcangado sem a devida atengdio a profundidade da captura ideol6gica da “nag&o” para fins conser- vadores na Gra-Bretanha. O resultado é um grave excesso de simplificago do legado das guerras. Assim, em uma conclusiio memoravel da segunda parte do livro, Thompson escreve sobre “a perda de qualquer coesio percep- 48 tivel na comunidade, salvo aquela que os trabalhadores, em antagonismo a seu trabalho ¢ a seus patrdes, construiram para si mesmos”.** Aqui, no en- tanto, eloquéncia nao é necessariamente exatidao. O sentido de comunidade nacional, sistematicamente orquestrado e incutido pelo Estado, pode bem ter sido uma realidade maior na era napolednica do que em qualquer outro periodo nos séculos anteriores. Ao passar por cima disso, Thompson pode argumentar que, embora a classe dominante houvesse governado em 1792 por meio do consentimento e da deferéncia, “em 1816, o povo inglés foi con- trolado pela forga”.®° Ainda que 0 governo de Liverpool fosse odiado por varios setores das massas, esse julgamento deve ser considerado um exagero. Um exército de 25 mil — 0 total de tropas disponiveis para a repressao do- méstica — mal era suficiente para coagir uma sociedade de 12 milhdes.°” O poder do ancien régime inglés se mantinha por uma combinagio de cultura e coergao, depois das guerras nao menos do que antes delas. A principal arma de seu arsenal ideologico— depois de 20 anos de luta vitoriosa contra a Revo- lugdo Francesa e seus regimes sucessores — era 0 nacionalismo contrarre- volucionério, cuja importancia estrutural, geral e durdvel, era certamente maior que aquela do mais local ¢ limitado fendmeno do metodismo, por mais histéricas que fossem suas manifestagdes — ao qual Thompson devota um dos mais inesqueciveis capitulos de seu livro. A Inglaterra foi, na verdade, provavelmente o primeiro pais da Europa no qual a nagao superou a religidio como forma dominante de discurso ideolégico — uma mudanga, evidente- mente, ja em curso no século XVIIL. Seria dificil adivinhar isso a partir da obra A formagdo da classe operéria inglesa, na qual poucos ou nenhum dos elos ideolégicos subordinando os produtores imediatos — nao a seus patroes (metodismo ou utilitarismo esto certamente presentes), mas a seus governan- tes— se materializam. Quanto essas omissGes afetam os progressos de Thomp- son? Afinal, livro nenhum pode dizer tudo. Em face da profusdo de riquezas em A formagéo da classe operaria inglesa, é razoavel exigir qualquer coisa a mais? Pelos padrdes usuais, nfio. Mas o trabalho também nao é um dos temas hist6ricos usuais, como vimos. A pertinéncia das lacunas sugeridas acima — os setores ponta de langa da Revolucao Industrial, a configuragao comercial-arrendadora de Londres, o impacto da Revolugiio Francesa e da ‘Americana, a galvanizagdo do chauvinismo do tempo da guerra — reside no fato de que elas tornam um julgamento do problema apresentado no inicio do livro inegociavel. Na auséncia de qualquer tratamento direto desses s6- lidos moldes da historia nascente da classe trabalhadora inglesa, nao temos como julgar o papel da autodeterminagao coletiva em sua formagao. A pa- 49 ridade entre agéncia e condicionamento afirmada no inicio permanece um postulado que nunca ¢ realmente testado por meio do leque de evidéncias relevante para ambos os lados do processo. Apesar de todo o seu poder, as descrigdes de alienago e pauperizagdo em massa gravadas na segunda parte do livro nao silo, em sentido algum, equivalentes a uma investigagaio das determinagdes objetivas na formagao da classe trabalhadora inglesa. Nao sio as transformag@es estruturais — econdmicas, politicas e demogréficas -, evo- cadas por Thompson no principio dessa parte do livro, que so 0s objetos de sua investigagilo, mas, em vez disso, suas consequéncias na experiéncia sub- jetiva daqueles que passaram por esses “anos terriveis”. O resultado é redu- zir a multiplicidade complexa de determinagdes objetivas-subjetivas, cuja totalizagdio de fato gerou a classe trabalhadora inglesa, a uma dialética sim- ples entre sofrimento ¢ resisténcia, cujo movimento inteiro é interno & sub- jetividade da classe. Essa é a forga do celebrado final do livro. ‘Tais homens se encontraram com 0 utilitarismo em suas vidas coti janas e procu- raram recusé-lo, nfo cegamente, mas com inteligéncia e paixio moral... Esses anos parecem, as vezes, expor no uma mudanga revoluciondria, mas um movimento de resisténcia, no qual os Romiinticos e os Artesdos Radicais se opuseram a proclamagao do Homem Aquisitivo.* Inscrita nas sentengas comoventes de sua conclusao, a afirmagio da paridade entre agéncia e necessidade repete-se, mas, na forma da obra, ndo esta sujeita a julgamento. Podemos, agora, olhar para o segundo maior tema de A formagdo da classe operdria inglesa, 0 de que [... a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiéncias em ‘comum (herdadas ou compartilhadas), sentem e articulam a identidade de seus inte- esses como algo entre eles, e como algo contrério a outros homens cujos interesses siio diferentes dos (e frequentemente opostos aos) seus.” Isso é 0 que chamamos de critério da consciéncia, porque o efeito da defini- go de Thompson é fazer a existéncia de uma classe depender da presenga de uma expressio (sensagio/articulagao) coletiva de interesses em comum, em oposigiio aqueles de uma classe (ou classes) antagonista(s). Em A miséria da teoria, como vimos, Thompson reafirma essa posigao ainda mais nitida e inequivocamente: “As classes surgem porque homens e mulheres, em rela- 50 goes produtivas determinadas, identificam seus interesses antagdnicos e pas- sam a lutar, a pensar ea definir valor em termos de classe”. Consciéncia de classe, aqui, torna-se a propria insignia de formagao de classe. Empirica- mente, quao plausivel é essa definigdo? A resposta é, certamente, que ¢ impos- sivel reconcilié-la com o simples registro da evidéncia historica. Frequen- temente ha classes cujos membros nao “identificam seus interesses anta- gOnicos” em qualquer processo de esclarecimento ou luta em comum. De fato, 6 provavel que, para a maior parte do tempo histdrico, essa tenha sido f regra, em vez da excego. Afinal de contas, no sentido moderno, 0 proprio termo “classe” é uma invengdo do século XIX. Acaso 0s escravos atenienses na Grécia antiga ou os habitantes de vilarejos que viviam sob o sistema de castas na india medieval ou os trabalhadores do periodo Meiji no Japaio mo- derno “passaram a lutar, a pensar em termos de classe”? Todas as evidéncias apontam para o contrario. Ainda assim, a partir de entio, eles cessaram de ‘compor classes? O erro de Thompson é fazer uma generalizacao abusiva com base na experiéncia inglesa que ele mesmo estudou: a notavel consciéncia de classe da primeira classe trabalhadora industrial na hist6ria do mundo é projetada universalmente as classes como tais. O resultado é uma definigao de classe que é extremamente voluntarista e subjetivista — mais proxima de um parti pris ético-retérico que de uma conclusao a partir de investigacaio empirica. Em sua obra fundamental — 4 teoria da histéria de Karl Marx -, Cohen corretamente criticou a légica da descrigo de classe de Thompson, defendendo a tese marxista tradicional de que [...] a classe de uma pessoa ¢ estabelecida por nada além de seu lugar objetivo na cadeia de relagdes de propriedade... Consciéncia, cultura e politica nao contam na definicdo de sua posigao de classe. De fato, essas exclusdes so necessirias para proteger o cardter substancial da tese marxiana de que a posigdo de classe condiciona fortemente consciéneia, cultura ¢ politica." A descrig&io de Cohen da posigdo estrutural do proletario em uma economia capitalista, e da gama de relagdes de produgdo possiveis que geram as clas- ses, é de uma clareza e uma sutileza exemplares. O conceito de classe como uma relagao objetiva com os meios de produgdo, independente de vontade ou de atitude, nao parece carecer de novas reafirma¢ées. A fragilidade da definigao de classe de Thompson na obra 4 formagdo da classe operdria inglesa, se tomada literalmente, pode ser vista a partir do desenvolvimento posterior de sua propria escrita. A medida que o campo de sr sua pesquisa histérica se moveu para tras em diregdo & Inglaterra do século XVIII = um periodo no qual a consciéncia de classe entre os produtores pri- mérios é, obviamente, bem menos visivel -, suas posigdes sofreram uma alterago interessante. Em um brilhante ensaio recente sobre a “Sociedade inglesa do século XVIII”, Thompson desenvolve uma série de novas propo- sigdes. Agora, ele concede que [...] a classe, como ela resultou nas sociedades capitalistas industriais do século XIX € como ela assim deixou sua marca na categoria heuristica de classe, nfo tem, na realidade, nenhuma reivindicagao de universalidade. Classe, nesse sentido, nao é nada além de um caso especial das formagdes historicas que surgem da luta de classes. Pois, no século XIX, [..] classe, em sua acepgdo moderna, tornou-se disponivel ao sistema cognitivo das pessoas vivendo naquele periodo... Por isso, 0 conceito nao apenas nos possibilita organizar e analisar as evidéncias; ele também ¢, em um novo sentido, presente na evidéncia mesma. Podemos observar, na Gra-Bretanha industrial ou na Franga ou na Alemanha, instituigdes de classe, partidos de classe, culturas de classe.” Antes do século XIX, no entanto, os historiadores eram ainda obrigados a usar 0 conceito de classe, no por sua perfeig4o como nogao, mas porque “nenhuma categoria alternativa esta disponivel para se analisar um processo histérico manifesto e universal” — a saber, “a luta de classes”. Esses argu- mentos levam a concisa concluso de que “a luta de classes é o principal, assim como 0 mais universal, conceito”, pois [...] as pessoas se encontram em uma sociedade estruturada de maneiras determinadas (crucialmente, mas nao exclusivamente, em relagdes de produgio), elas experienciam a exploragao (ou a necessidade de manter 0 poder sobre aqueles que exploram), elas identificam pontos de interesse antagénicos, comegam a lutar em torno dessas questdes €, no processo de uta, descobrem a si mesmas como classes, percebendo essa desco- berta como consciéncia de classe. Classe ¢ consciéncia de classe so sempre o tiltimo estagio, nao o primeiro, no proceso histérico real. Por isso 0 paradoxo de que, em toda a Inglaterra do século XVIII, repousa um “campo de forga societal” de luta de classes entre “a multidao em um polo, a aristocracia e a pequena nobreza no outro”, todavia, sem que a ultima constitua verdadeiramente uma classe. 9 Essa abrangente redefinigao resolve as dificuldades da vistio de Thompson sobre as classes? A primeira vista, ela aparenta ser um enorme passo além das formulagées de A formagdo da classe operaria inglesa. Mais de perto, no fentanto, a mesma inspirago tedrica pode ser vista aqui e, com ela, alguns dos mesmos problemas légicos e empiricos reaparecem. Entretanto, 0 que ‘Thompson faz, de fato, é manter a equacao “classe = consciéncia de classe”, ‘mas para postular por trés disso — ao mesmo tempo conceitual ¢ historica- mente ~ um estagio anterior da luta de classes, quando os grupos se confronta- ‘vam sem alcangar aquela autoconsciéncia que define a classe em si. Mas por que, enfim, usar o termo classe, nesse caso, para tal luta? A resposta parece ser essencialmente pragmatica: nfo surgiu nenhuma palavra melhor até 0 momento. Um historiador liberal sem diivida responderia a isso dizendo que © “conflito social” é, desse modo, preferivel, justamente porque é inques- tionavel. Nao é facil saber que resposta Thompson poderia dar, pois todo 0 impulso de seu argumento ainda esta em desatar a classe de sua ancoragem objetiva nas relagdes de produgdo determinantes, ¢ identifica-la com a cons- ciéncia subjetiva ou a cultura. Uma vez isso feito, a auséncia de uma “cultura” de classe automaticamente coloca em xeque a propria existéncia da classe ‘em si—como na Inglaterra do século XVIII. Em uma légica perversa, é ent&o possivel sugerir que houve “luta de classes sem classes” ~ no titulo do en- saio —, afirmago para a qual existem duas respostas objetivas. Em primeiro lugar, a classe dominante — a “aristocracia e a pequena nobreza”, como ele corretamente a designa aqui — era certamente dotada do necessario senso de identidade e combatividade para constituir uma classe, mesmo nos préprios critérios de Thompson, o que nos deixaria com a curiosidade de uma “luta de classes sem classes” — um koan* de uma s6 mao aplaudindo. Em segundo lugar, a auséncia da consciéncia de classe, no sentido do século XIX, de forma alguma significa que a plebe do século XVIII era, portanto, um fenémeno aclassista. Ela no era, evidentemente, um bloco social homogéneo, mas uma coalizio mutavel composta de diferentes categorias de assalariados urbanos e rurais, pequenos produtores, pequenos negociantes e desempregados, cujas fronteiras variavam de acordo com as sucessivas conjunturas que a cristal zavam — bem préximo ao que Thompson tao habilmente descreve. Cada uma dessas categorias, entretanto, pode ser racionalmente ordenada em uma and- * Anedota paradoxal ou charada sem solucio, usada no zen-budismo para demonstrar a inade- ‘quagdo do raciocinio I6gico ou para provocar a iluminagdo (Oxford Dictionary of English ~ versio eletrénica). (N. da T.) 53 lise materialista de classe por suas respectivas posigdes estruturais no interior de diversos modos de produgdo da sociedade hanoveriana, Desagregar as rixas politicas ou sociais daquele tempo em suas unidades componentes de classe ndo é, em outras palavras, praticar uma violencia sua inteligibilidade, mas ¢ ajudar a elucidd-las. Nenhuma necessidade economicista implicita em tal procedimento, o que nao torna 0 estudo do proceso de congregacao que formou as aglomeragdes do século XVIII (radical-dissidente ou monarquista- -clerical, espontanea ou manipulada, conforme o caso) desnecessario, mas até mais preciso e certeiro. A sentenca de Thompson de que “nds sabemos Sobre as classes porque as pessoas se comportam repetidamente em termos de classe”” nao admite sua presenga onde o comportamento parece tdio coa- lescente e contraditério que se torne “como que sem classe”. Seja a énfase posta no comportamento ou na consciéncia® — luta ou valoragao -, tais de- finigdes de classe permanecem fatalmente circulares. E melhor dizer, com Marx, que as classes sociais podem nao se tornar conscientes de si mesmas, podem falhar em agir ou em se comportar em comunhao, mas ainda perma- necem — material e historicamente — classes. A terceira afirmagao central contida em A formacdo da classe operdria inglesa nos traz de volta ao século XIX. O titulo do livro promete tragar um processo com um fim definido: a classe trabalhadora inglesa — inexistente, como tal, na década de 1790 — ¢ formada em meados da década de 1830, quando sua presenga é 0 fator mais significativo na politica nacional, sentida m “cada condado da Inglaterra, e na maioria das esferas da vida”. O termo formagéo possui, aqui, uma forga inequivoca: ele sugere que 0 carter da classe trabalhadora inglesa foi, em seus tragos mais essenciais, formado pelo tempo da Lei da Reforma. Quais sdo os argumentos que Thompson apresenta para essa periodizagio? O primeiro e mais saliente é 0 de que o proletariado inglés havia alcangado uma nova consciéncia de sua propria unidade pela década de 1830. Uma identidade de interesses era sentida por trabalhadores nas mais diversas ocupagdes, onde antes divis6es tradicionais de comércio ou regiao haviam prevalecido. Primeiramente expressa no crescente “ethos da mutualidade” das sociedades amistosas locais, essa identidade emergiu em escala nacional com 0 Sindicalismo Geral de 1830-1834. Politicamente, © curso de toda a crise parlamentar de 1831-1832 revelou a marca de sua ini- ciativa e independéncia. Dessa forma, foi uma peculiaridade do desenvolvi- mento inglés que “onde se esperaria encontrar um crescente movimento de reforma da classe média, com uma rabeira de classe trabalhadora — apenas mais tarde sucedida por uma agitagdo dessa classe -, na realidade, esse pro- 54 ‘eesso foi revertido”.” A partir dai, os reformistas da classe média obtiveram sucesso em utilizar as agitagdes populares para forgar uma emancipagdo em relagdio as classes proprietarias, que foi cuidadosamente demarcada para ex- ‘cluir as massas que a haviam tornado possivel. Nesses anos, também, “algo foi perdido” no fracasso da tradig&o de radicalismo da classe trabalhadora ‘em alcangar uma conexao com a critica romantica do utilitarismo, que era sua contemporanea, Ainda assim, é a conquista coletiva desse momento que ¢ definitivamente digna de nota. “Os trabalhadores nao deveriam ser vistos apenas como as miriades perdidas da eternidade. Eles também nutriram, por 50 anos, e com firmeza incomparavel, a Arvore da Liberdade. Nés devemos, thes agradecer por esses anos de cultura heroica.”” A grandeza dessas paginas de conclusio é unanimemente reconhecida. De certa forma, é seu proprio poder que nos impée seu maior problema, pois, ‘como Tom Nairn escreveu 15 anos atrés, no que permanece até hoje a mais importante reflexao sobre o livro, um dos fatos mais centrais sobre a classe trabalhadora inglesa é que “seu desenvolvimento como classe é dividido em duas grandes fases, e parece, 4 primeira vista, no haver muita conexao entre elas”; afinal, “a historia inicial da classe trabalhadora inglesa é uma historia de revolta, perpassando mais de meio século, do periodo da Revolugio Fran- cesa ao climax do cartismo na década de 1840”.” Porém, [..] no que essa revolta resultou? A grande classe trabalhadora inglesa ~ essa forga ‘social titénica que parecia ter sido liberada pelo répido desenvolvimento do capitalismo inglés na primeira metade do século —ndo emergiu, afinal, para dominar e reconstruir a sociedade inglesa, Ela nao podia quebrar 0 molde e modelar outro. Em vez disso, depois da década de 1840 ela rapidamente se tornou uma classe aparentemente décil Abragou um tipo de reformismo moderado apés outro, ¢ tem permanecido casada as mais estreitas ¢ cinzentas ideologias burguesas em seus principais movimentos.”* Descontado o indubitavel elemento de exagero na tiltima sentenga, que en- fatiza excessivamente 0 grau da dominagao fabiana posterior, a verdade ge- ral de sua descrigdo ¢ dificil de negar. Victor Kiernan recentemente pronun- ciou o mesmo veredito: [..] com 0 cartismo praticamente chegando ao fim por volta de 1850, 0 fracasso da nova classe trabalhadora em ingressar ¢ remodelar a vida nacional deixou-a presa a0 “trabalhismo”, a autoabsorgo e & apatia politica, da qual ela nunca se recuperou realmente.” 55

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