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ABTURAS = © Nacional e o Popular na Cultura Brasileira + Artes Plésticase Literatura ~ Carlos Zio, Ligia Chiappinie J. Lutz Lafeté * Cinema — Jean-Claude Bernardet © M. Rite Gelvéo ‘s Misica — Enio Squeff e José Miguel Wisnik Seminérios — Marilena Chau! + Teatro — José Arrabal e Mariingela Alves de Lima * Televisio ~ C. A, Messeder Pereira @ Ricardo Miranda '* Sertdo Mar ~ Glauber Rocha e a Estética da Fome — Ismail Xavier * Vianinha ~ Teatro, Politica @ Televis8o — Femando Peixoto org.) Coleco Primeiros Passos Oque 6 Cultura ~ José Luie dos Santos # Oque é Cultura Popular — Antonio Augusto Arantes ‘que 6 Folclore ~ Carlos R. Brando ‘que & Nacionatidade — Guillermo Raul Rubem Colestio Tudo 6 Histéria * A Aventura da Jovern Guarda ~ Paulo de Tarso C. Medeiros ‘+ A Chanchada no Cinema Brasileiro — Afrénio Ml. Catanie José indcio de M, Souza ‘= Cultura e Participarsio nes anos 60 — Heloisa B. de Hollande @ Marcos A, Goncalves + Teatro Oficina (1958-1962) Trajetérla de Uma Rebeldia Cultural = Femando Peixoto * Tio Sam Chega ao Brasil — A Penotraeo Cultural Americana = Gerson Moura ‘= Um Palco Brasileiro ~ 0 Arena de Sto Paulo — Sdbato Magali Renato Ortiz Cultura brasileira e identidade nacional 12 edigéo 1985 edigao i i 2 o o Copyright © Renato Ortiz, Capa:, Ettore Bottini Revisdo: José W. S. Moraes José E, Andrade brasilianse Editora Brasiliense S.A. R. General Jardim, 160 01223 — Sao Paulo — SP Fone 1011) 231-1422 Indice ae Introducao ......-. eee ‘Meméria coletiva e sincretismo cientifico: as teorias ra- ciais do século XIX 13 Daraca a cultura: a mesti¢agemeonacional.......... 36 Alienagfo ¢ cultura: o ISEB . 45 Dacultura desalienada a cultura popular: 0CPC daUNE 68 Estado autoritérioe cultura . 9 Estado, cultura popular e identidade nacional ......... 127 BilBbcetahiay 00s) cnr 8c. es cepa vg ae 143 adescoberta: Seguimos nosso caminho por este mar de long Até a oitava da Pascoa is ‘Topamos aves Ezhouvemos vista de terra (Pero Vaz de Caminha, Poesia Pau-Brasil) Introducao__ ‘Ovtema da cultura brasileira e da identidade nacional € ‘um antigo debate que se trava no Brasil. No entanto, ele per- manece atual até hoje, constituindo uma espécie de subsolo estrutural que alimenta toda a discussio em torno do que € 0 nacional, Os diferentes autores que tm abordado a questao concordam que seriamos diferentes de outros povos ou paises, sejam cles europeus ou norte-americanos. Neste sentido, a cri- tica que os intelectuais do século XIX faziam & “cépia” das idéias da metrépole 6 ainda valida para os anos 60, quando se busca diagnosticar a exist€ncia de uma cultura alienada, im- portada dos paises centrais. Toda identidade se define em re- Jagd a algo que Ihe ¢ exterior, ela é uma diferenca. Poderia- mos nos perguntar sobre 0 porgué desta insisténcia em bus- carmos uma identidade que se contraponha ao estrangeiro, Creio que a resposta pode ser encontrada no fato de sermos um pafs do chamado Terceiro Mundo, o que significa dizer que a pergunta é uma imposig4o estrutural que se coloca a partir da prépria posieaio dominada em que nos encontramos no sistema internacional. Por isso autores de tradigbes dife- rentes, ¢ politicamente antagonicos, se encontram, ao se for- mular uma resposta para o que seria uma cultura nacional. Porém, a identidade possui ainda uma outra dimensio, que é interna. Dizer que somos diferentes no basta, & necessario: 8 RENATO ORTIZ ‘mostrar em que nos identificamos, Este é 0 ponto polémico, 0 visor de aguas entre autores como Gilberto Freyre e Alvaro Vieira Pinto. Se existe uma unidade em afirmarmos que 0 Bresil é “distinto” dos outros paises, o consenso est longe de se estabelecer quando nos aproximamos de uma possivel defi- nigo do que viria a ser o nacional, © objetivo deste livro é retomar as diferentes maneiras como a identidade nacional e a cultura brasileira foram consi. deradas. Minha preocupagio inicial foi a de compreender ‘como a questao cultural se estrutura atualmente no interior de ‘uma sociedade que se organiza de forma radicalmente distinta do passado, pois, na medida em que o capitalismo atinge no- vas formas de desenvolvimento, tem-se que novos tipos de or- ganizaco da cultura sto implantados, em particular a partir ‘de meados dos anos 60. Dentro deste contexto, qual o signi cado da nocio de cultura brasileira? Qual o sentido de uma identidade ou de uma meméria que se querem nacionais? Fo- Fam essas perguntas, que estilo subjacentes no texto, que me orientaram, inclusive no estudo relativo aos intelectuais do fi- nal do século XIX. De certa forma, o passado se apresentava para mim como uma maneira de se conhecer e entender me- Ihor 0 momento presente. Neste sentido ¢ interessante ressal- tar que a problemAtica da cultura brasileira tem sido, e per- manece, até hoje, uma questo politica. Como 0 leitor podera perceber, eu procuro mostrar que a identidade nacional esté profundamente ligada a uma reinterpretaco do popular pelos grupos sociais € a propria construgdio do Estado brasileiro. Mas, ao colocar o debate dentro desta perspectiva, eu tive de enfrentar um problema que se tornou cldssico na discusstio da cultura brasileira: o de sua autenticidade. Como veremos no iiltimo capitulo, ereio que é 0 momento de reconhecermos que toda identidade é uma construgio simbélica (a meu yer necesséria), o que elimina portanto as diividas sobre a veraci- dade ou a falsidade do que & produzido, Dito de outra forma, nioexiste uma identidade auténtica, mas uma pluralidade de \identidades, construfdas por diferentes grupos sociais em dife- Fentes momentos hist6ricos. O “pessimismo" de Nina Rodri- ‘gues, 0 “otimismo” de Gilberto Freyre, 0 “‘projeto” do ISEB ‘Silos diferentes faces de uma mesma discussio, a da relacdo entre cultura ¢ Estado. Na verdade, falar em cultura brasileira € falar em relagBes de poder. Quando os intelectuais do ISEB CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 9 afirmam, por exemplo, que nao existe um pensamento brasi- Jeiro anterior ao modernismo, o que de fato eles esto fazendo ¢ introduzir um corte arbitr4rio na histéria. Eles selecionam ‘um evento para orientar politicamente uma luta ideolégica contra um outro grupo social, que até ent&o possula o mono- polio da definigao sobre o Ser nacional — os intelectuais tra- Gicionais. Nao resta diivida de que o estudo dos escritores do século XIX mostra a existéncia de um pensamento autéctone, brasileiro. O que me assusta é o seu carater profundamente conservador. Na verdade, a luta pela definigo do que seria uma identidade auténtica é uma forma de se delimitar as fron- teiras de uma politica que procura se impor como legitima. Colocar a problemética dessa forma é, portanto, dizer que existe uma histria da identidade e da cultura brasileira que corresponde aos interesses dos diferentes grupos sociais na sua relagio com o Estado. ‘O que oleitor encontrar nos capitulos que seguem éuma tentativa de trabalhar a problematica da maneira que expli- citamos anteriormente. O livro, no entanto, nfo fai escrito por um historiador, Nao me preocupei, por exemplo, em estabe- lecer uma periodizagio, ou ainda em esgotar as miltiplas de- finigdes que existem sobre o nacional. Tenho consciéncia de que este trabalho podera ser realizado com maior sucesso por historiadores profissionais. O que fiz foi procurar compreen- der 0 assunto dentro de uma ética diferente da qual ele é ha- bitualmente discutido. Se a histéria se encontra presente na discussio, e nao poderia ser de outra forma, eu parti da An- tropologia, e integrei varios conceitos como de “sincretismo”, “meméria coletiva”, “mito”, simbolo”, em minhas andlises Sobre os autores nacionais. De alguma maneira procurei lé-los como Lévi-Strauss “leu” os mitos primitivos. Nao que a ana- lise proposta seja estruturalista, mas, ao tratar os diversos dis- ‘cursos sobre o Brasil, recuperei toda uma corrente da Antro- pologia que se inicia com Durkheim e Mauss em seus estudos sobre as categorias de classificagao primitiva, e que desagua em autores mais recentes como Victor Turner e Clifford Geertz.’ Por outro lado, me yoltei também para Mauss, cujo (1) Ver Durkheim, Les Formes Elementaires dele Vie Religiouse, Pats, PUF, 0 Textes, 3 vols., Patis, Ed. Minuit; Marcel Mauss, Anthropologie e So- i 0 RENATO ORTIZ conceito de totalidade me auxiliou em muito para entender a questo do nacional e sua relacdo com o popular. Nao me preccupei, porém, em realizar toda uma discussdo teérica an- ‘tes da utilizacdo dos conceitos. Optei por nao sobrecarregar em demasia o texto, pois poderia perder de vista 0 proprio as- unto que me propunha tratar. Fica nesta introdugao uma ra- pida observacio para o leitor, o que lhe permite situar o pen- samento do autor dentro de um quadro mais abrangente. Mas, se me voltei para a Antropologia na busca de novos horizontes, foi-me necessario sair dela ao tratar da problemé- tica da cultura brasileira. A Antropologia Classica, ao se ocu- par das sociedades primitivas, deixa de lado, ou minimiza, ‘uma série de questdes que so cruciais para o entendimento das sociedades industrializadas. Estado, ideologia, hegemo- nia, intelectuais sio temas que crescem 4 sombra do pensa- mento antropolégico mas que ocupam uma posigao de desta- que em outros setores das Ciéncias Sociais. Por isso o antro- pélogo de algumia maneira deve “‘distorcer” os conceitos & combind-los a um quadro de anilise que the permita passar para o nivel sociolégico. E isso que possibilita conferir ao pen- ‘samento uma maior abrangéncia ao mesmo tempo que se pode enxergar a realidade social e politica com novos olhos. Nao ereio que esteja propondd com isto uma leitura eclética de autores de tradigdes diferentes, simplesmente sou daqueles que pensam, como Marx e Durkheim (deixando de lado sua inclinag3o positivista), que si ténues as fronteiras entre os campos de conhecimento, e preferem buscar o entendimento da sociedade dentro de uma perspectiva global. ‘Uma titima palayra. Os estudos aqui reunidos resultam em grande parte das discusses realizadas pelo Grupo de So- ciologia da Cultura ligado & Associagdo Nacional de Pés-Gra- duacao e Pesquisa em Ciéncias Sociais. Os varios encontros que fizemos para tratar do problema da cultura brasileira contribufram em muito para oamadurecimento de minhas re flexdes. Evidentemente assumo a responsabilidade pelas posi- ‘g6es que pessoalmente tomo ao longo de minhas anilises, mas iologie. Paris, PUF; Oeuvres, 3 vos., Paris, Ed. Minuit; V. Turner, The Forest ‘of Sinbols, Londres, Cornell University Press, 1977; C. Geertz, Interpretago as Cutturas, Rio de Janeivo, Zahar, 1978, (CULTURA BRASILEIRA F IDENTIDADE NACIONAL n sinceramente gostaria de agradecer aos colegas que me propi- Garam a oportunidade de fazer com eles este debate. Prefiro nao citi-los nominalmente nesta introdugio, pois sto muitos, ‘mas eles se encontram neste livro no corpo do texto, nas notas de referéneia e na bibliografia sobre o assunto que procurei organizar para o leitor. Pampulha, 21 de agosto de 1984 | Memoria coletiva e sincretismo cientifico: as teorias raciais do século XIX* ‘Onue surpreende o leitor, ao se retomar as teorias expli- catiyas do Brasil, elaboradas em fins do século XIX ¢ inicio do século XX, é a sua implausibilidade. Como foi possivel a exis- téncia de tais interpretacées, e, mais ainda, que elas tenham se algado ao status de Ciéncias. A releitura de Silvio Romero, Eu- clides da Cunha, Nina Rodrigues é esclarecedora na medida em que revela esta dimensio da implausibilidade e sprofunda ‘fossa Surpresa, por que nao um certo mal-estar, uma vez que desvenda nossas origens. A questo racial tal como foi colo- ‘cada pelos precursores das Ciencias Sociais no Brasil adquire na verdade um contorno claramente racista, mas aponta, para além desta constatagiio, um elemento que me parece signifi- ativo ¢ constante na historia da cultura brasileira: a proble- miitica da identidade nacional. Gostaria de tecer neste capi- tulo algumas reflexdes em torno da Telacdo entre questo ra- Gial e identidade brasileira. Acredito que privilegiando um + momento da vida cultural poderei talvez aprender alguns as- ne ‘Mais gerais das diferentes teorias sobre. cultara brasi- leira, Tomemos como objeto de estudo alguns autores, como Silvio Romero, Nina Rodrigues ¢ Euclides da Cunha. Esta es- 4 (*) Publicado nos Cademos CERU n? 17, sat. 82, “4 RENATO ORTIZ colha nao é arbitréria; ela privilegia justamente os teéricos que so considerados, ¢ com razdo, 08 precursores das Cién- cias Sociais no Brasil. O estatuto de precursor revela a posi¢ao desses autores que na virada do século se dedicaram ao estudo conereto da sociedade brasileira, seja analisando suas mani- festacdes literarias, seja considerando as tradicdes africanas ‘ou 0s movimentos messidnicos. O discurso que construfram Possibilitou o desenvolvimento de escolas posteriores, como Por exemplo a escola de antropologia brasileira, que, vincula- da 20s ensinamentos de Nina Rodrigues, adquire com Arthur Ramos a configuragto definitiva de ciéncia da cultura. Neste sentido, Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha podem ser tomados como produtores de um discurso paradig- mitico do perfodo em que escrevem; tém ainda a vantagem de podermos consideré-lo como discurso cientifico, o que de uma certa forma esclarece as origens das Ciéncias Sociais brasj- Ieiras. Ao se referir ao declinio da hegemonia do romantismo de Gongalves Dias ¢ José de Alencar, que podemos situar em torno de 1870, Silvio Romero arrola um lista das teorias que teriam contribuido para a superacdo do pensamento roman- tico.' Dentre elas, trés tiveram um impacto real junto a intel- ligentsia brasileira: € de uma certa forma delinearam os limi- tes no interior dos quais toda a produgio tedrica da época se constitu: 0 positivism de Comte, o darwinismo social, 0 evo- Iueionismo de Spencer. Elaboradas na Europa em meados do século XIX, essas teorias, distintas entre si, podem ser con- sideradas sob um aspecto tinico: 0 da evolugio historica dos povos. Na verdade, 0 evolucionismo se propunha a encontrar lum nexo entre as diferentes sociedades humanas ao longo da historia; aceitando como postulado que o “simples” (povos primitivos) evolui naturalmente para o mais “complexo” (so- ciedades ocidentais), procurava-se estabelecer as leis que pre- sidiriam 0 progresso das civilizagdes. Do ponto de vista poli- tico, tem-se que o evolucionismo vai possibilitar elite euro- péia uma tomada de consciéncia de scu poderio que se consu- lida com a expansio mundial do capitalismo. Sem querer re- {1} Sivio Romero, Historia de Litoratura Brasivira, Rio de Jeneito, José Olympia, 1543 Ta (CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 15 duzi-lo a uma dimensio exclusiva, pode-se dizer que evolucio- mismo em parte legitima ideologicamente a posi¢ao hegem0- fniea do mundo ocidental. A “superioridade” da civilizacao ‘européia torna-se assim decorrente das leis naturais que orien- fariam a hist6ria dos povos. A “importacZo” de uma teoria dessa natureza nao deixa de colocar problemas para os inte- ectuais brasileiros. Como pensar a realidade de uma nagao ‘emergente no interior desse quadro? Aceitar as teorias evolu- cionistas implicava analisar-se a evolugao brasileira sob as fu- es das interpretagdes de uma histéria natural da humani- dade; 0 estagio civilizatério do pafs se encontrava assim de imediato definido como “inferior” em relacdo a etapa alcan- ‘cada pelos paises europeus. Torna-se necesséirio, por isso, ex- plicar o “atraso” brasileiro” ¢ apontar para um futuro pré- ximo, ou remoto, a possibilidade de 0 Brasil se constituir en- quanto povo, isto é, como naco. O dilema dos intelectuais desta época é compreender a defasagem entre teoria ¢ reali- dade, o que se consubstancia na construgao de uma identidade nacional. A interpretacdo do Brasil passa necessariamente por esse caminho, dai a énfase no estudo do “‘caréter nacional”, 0 ‘que em iiltima instncia se reportava a formagao de um Es- tado nacional. O evolucionismo fornece a intelligentsia brasi- Ieira os conceitos para compreensio desta problemitica; po- rém, na medida em que a realidade nacional se diferencia da européia, tem-se que ela adquire no Brasil novos contornos eculiaridades. A especificidade nacional, isto é, 0 hiato entre teoria e sociedade, s6 pode ser compreendido quando combi- nado a outros conceitos que permitem considerar o porqué do “atraso” do pais. Se 0 evolucionismo torna possivel a com- Preensto mais geral das sociedades humanas, € nevessério po- rém completé-lo com outros argumentos que possibilitem 0 entendimento da especificidade social. O pensamento brasi- Ieiro da época vai encontrar tais argumentos em duas nogdes Particulares: o meio e a raga. Qs parametros raga ¢ meio fundamentam o solo episte- molégico dos intelectuais brasileiros de fins do século XIX e inicio do século XX. A interpretagao de toda a histGria brasi- (2) € sugestivo que 0 cap. Il do livro de Silvio Romero se intitule “A FFlosofis de Buckle e oatraso do pove brasileiro” 16 RENATO ORTIZ Ieira escrita no periodo adquire sentido quando relacionada a esses dois conceitos-chaves. Nao & por acaso que Os Sertées abre com dois longos e cansativos capftulos sobre a Terra e 0 Homem:’ Silvio Romero, ja em seus primeiros estudos sobre 0 folclore, dividia a populagao brasileira em habitantes das ma- tas, das praias e margens de rio, dos sertdes, e das cidades.* ‘Nina Rodrigues, em suas andlises do direito penal brasileiro, tece inimeras consideragbes a respeito da vinculagao entre as caracteristicas psiquicas do homem ¢ sua dependéncia do meio ambiente.’ Na realidade, meio e raca se constitulam em categorias do conhecimento que definiam 0 quadro interpre- tativo da realidade brasileira. A compreenstio da natureza, dos acidentes geogréticos esclarecia assim os préprios fend- ‘menos econémicos e politicos do pais. Chegava-se, desta for- ma, a considerar o meio como o principal fator que teria in- fluenciado a legislaco industrial e o sistema de impostos, ou ainda que teria sido elemento determinante na criago de ‘uma economia escravagista. Combinada aos efeitos da raca, a interpretagio se completa. A neurastenia do mulato do litoral secontrape, assim, A rigidez do mestigo do interior (Euclides daCunha); a apatia do mameluco amazonense revela os tra- ‘cos de um clima tropical que o tornaria incapaz de atos previ- dentes e racionais (Nina Rodrigues). A historia brasileira é, desta forma, apreendida em termos deterministas, clima e raga explicando a natureza indolente do brasileiro, as mani- festacdes tibias e inseguras da elite intelectual, o lirismo quen- te dos poetas da terra, 0 nervosismo ¢ a sexualidade desen- freada do mulato. O evolucionismo se combina, assim, a dois conceitos-cha- ves que na verdade tém ressonancia limitada para os te6ricos europeus. No entanto, so fatores importantes para os intelec tuais brasileiros, na medida em que exprimem o que ha de especifico em nossa sociedade. Quando se afirma que o Brasil no pode ser mais uma ‘‘cépia” da metr6pole, est subenten- ido que a particularidade nacional se revela através do meio (2) Euclides da Cunha, Os Sert6es, Rio de Janoto, Ed, Ouro. () Silvio Romero, Cantos Populares ne Brasil, Rio de sane Olympia, 1958 (@) Nina Rodrigues, As Races Humenas @ 9 Responsablidade Ponal no ‘Brasil, Rio de Janviro, Ed. Gusnabara, s.4.. , José (CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL v7 eda raga, Ser brasileiro significa viver em um pais geogr ‘camente diferente da Europa, povoado por uma raga distinta a curopéia. Silvio Romero compreende claramente esta si- tuagtio quando considera 0 meio e a raga como “fatores in- terns” que definiriam a realidade brasileira.’ Ele vai con- trapbslos as “forgas estranhas”, seja, as influéacias estran- jgeiras que possibilitam uma “imitacao” da cultura européia.” Meio e raca traduzem, portanto, dois elementes imprescin- diveis para a construcio de uma identidade brasileira: 0 na- ional eo popular. A noco de povo se identificando & proble~ mitica étnica, isto 6, ao problema da constituigao de um povo no interior de fronteiras delimitadas pela geografia nacional. Consideremos brevemente a problematica do meio. Uma interpretagdo do atraso brasileiro, cortente entre os intelec- tuais da época, é a do historiador inglés Buckle. Ao procurar analisar a realidade brasileira em contraposicao a civilizagio européia, Buckle retoma as perspectivas de outros autores que buseavam entender a evolugao hist6rica do homem. Basica- ‘mente, o que se propunha era vincular o desenvelvimento das civilizagdes a alguns fatores como calor, umidade, fertilidade da terra, sistema fluvial. Em principio, terfamos que todas as civilizagdes teriam evoluido a partir desses elementos de base. Surge porém pergunta: se o Brasil contém esses elementos fundamentais, qual a razao da inexisténcia de uma civilizagio nesta parte do mundo? A resposta, pueril, mas conyincente para o momento, era simples: por causa dos ventos alisios. Segue-se toda uma argumentaclo climatolégica que procura justificar o atraso brasileiro através deste elemento conjuntu- ral, 0s ventos alisios. Resulta dessa interpretagao um quadro (6) Sivio Romero, Histri.... 0p. ct, p. 258. {7| interessante observar que para os autores considerados a ideia de “imitagdo" vem um dupio significado, Um primeio nogativa sa refere & nego ‘do “copia” © procura anizar o elemento estrangoio supericiaimente assim: lado pelos brasileros. Por exemplo, Eucides da Cunha acredita que a fores do ‘mestio do interior results, em parte, da distancia do sertdic om relacHo 20 {tora Em prinspin, 0 miata elo aval astara mais exposto as influéncias ne {astas © 208 mocismos da metronole portuguesa. O segundo significado & cla- Famente positivo o se aesocia as teorias de Gabriel Tarde, Imita significa, neste sentido, s9sociaizar, A educacdo sed através do processo de{mitacdo, 0 que Bossbita a ansmiaaio da hranea cultural atraves das erates, Tarde ¢ um ‘autor citado indmeras vez0s pelos intlectuals do periodo, o que mostra que se ‘desconhecia a erticas de Durkheim om rela¢So 8 essa teora da socializago. 16 RENATO ORTIZ acentuadamente pessimista do Brasil, onde a natureza su- Planta o homem, a cultura européia tem dificuldades em se enraizar, o que determinaria o estagio ainda bérbaro em que Permanece 0 conjunto da populacio brasileira, Silvio Romero aceita a interpretagéo de Buckle mas a considera incompleta, se prope por isso a aprimora-la com um estudo mais deta- Ihado do meio e particularmente relacionando-o a questo ra- cial. A posigio é idéntica em Euclides da Cunha ¢ Nina Ro- rigues. As criticas que os intelectuais fazem as teorias de Bu- ckle se referem simplesmente aos exageros, 20 pouco conheci- ‘mento que o autor inglés tinha do Brasil, Elas nao tocam, no entanto, a substancia de seu pensamento; aceita-se, sem ne- nhum conhecimento critico, 0 argumento do meio como fun- damento do discurso cientifico. Um exemplo claro de conti- nuidade dessa tradicZo é 0 livro de Euclides da Cunha sobre Canudos. O nordestino s6 é forte na medida em que se insere ‘num meio indspito ao florescimento da civilizagio européia. Suas deficiéacias provém certamente desse descompasso em relacio ao mundo ocidental, sua forga reside na aventura de domesticagao da caatinga. Procura-se dessa forma descobrir 05 defeitos e as vieissitudes do homem brasileiro (ou da sub- raga nordestina) vinculando-os necessariamente as dificul- dades ou facilidades que teria encontrado junto ao meio am- biente que ocircunda. A problemética racial é mais abrangente; Silvio Romero chega a consideré-la como mais importante que a do meio. Na realidade, ela é vista como “a base fundamental de toda a his- téria, de toda politica, de toda estrutura social, de toda a vida estética e moral das nagdes”." A politica de imigrac&o desen- yolvida no final do século vem ainda reforgar a importancia deste assunto. Retoma-se assim uma questo que desde mea- dos do século tinha sido considerada tanto pelos viajantes es- ‘trangeiros que permaneceram um curto perfodo no Brasil (Gobineau, Agassiz) quanto pelos autores brasileiros. Couto de Magalhes havia abordado o problema da mestigagem in- digena durante os anos 70;° os escritores roménticos descobri- {8} Siivio Romero, Histria.... op. et, p. 185. (B1 Couto de Magalhées, 0 Selvagem, Sio Paulo, Cla, Ed. Nacional 1928, ——p CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 19 ram 0 elemento nativo para promové-lo a simbolo nacional, IAs reflexdes em rela¢do ao cruzamento inter-racial sao, no entanto, superficiais e pouco esclarecedoras. O trabalho de Couto de Magalies ¢ na realidade uma coleta heterogénea de informagSes sobre os indios, que um general letrado procura other a0 longo de sua carreira militar. O romantismo de Gongalves Dias e José de Alencar se preocupa mais em fabri- car um modelo de indio civilizado, despido de suas caracte- risticas reais, do que apreendé-lo em sua concreiude."” Por outro lado, nada se tem a respeito das populagdes africanas; o periodo eseravocrata é um longo siléncio sobre as etnias n gras que povoam o Brasil. Em sua bricolage de uma identi dade nacional, o romantismo pode ignorar completamente a presenca do negro. A situagio se transforma radicalmente com 0 advento da Abolicao. Como fato politico a Aboligao marca 0 inicio de uma nova ordem onde o negro deixa de ser milo-de-obra escrava para se transformar em trabalhador li- vre, Evidentemente, ele sera considerado pela sociedade como um cidadao de segunda categoria; no entanto, em relagio a0 passado tem-se que a problemitica racial torna-se mais com- plexa na medida em que um novo elemento deve obrigatoria- mente ser levado em conta. O negro aparece assim como fator dinimico da vida social e econdmica brasileira, o que faz com que, ideologicamente, sua posigao seja reavaliada pelos intelec- tuais e produtores de cultura, Para Silvio Romero e Nina Ro Grigues ele adquire uma importancia maior que a do indio (que se acredita estar fadado ao desaparecimento), ou, como dirdo alguns: “o negro ¢ aliado do branco que prosperou”. Abordar a problematic da mestigagem é na realidade tetomar a metéfora do cadinho, isto ¢, do Brasil enquanto espaco da miscigenagio. Somente que, aquilo que posterior- mente ser analisado em termos culturais por Gilberto Freyre, se caracteriza como racial para os intelectuais do periodo con- siderado. Neste momento torna-se corrente a afirmaclo de Que © Brasil se constituiu através da fusio de trés racas fun- damentais: 0 branco, 0 negra eo india. O quadro de inter- Pretagdo social atribufa porém a raga branca uma posicao de (10) Sobre o romantismo @ sua relago com o nacionalismo ver AntOnio CAndido, Formardo da Literatura Brasileira, S8o Paulo, Ed. USP, 1975 —_ 20 RENATO ORTIZ superioridade na construcdo da civilizacdo brasileira. As con- sideragdes de Silvio Romero sobre o portugués, de Euclides da Cunha sobre a origem bandeirante do nordestino, os escritos de Nina Rodrigues, refletem todos a ideologia da supremacia racial do mundo branco. “Estamos condenados a civilizagao”, dira Euclides da Cunha, 0 que pode ser traduzido pela andlise de Nina Rodrigues: 1) as racas superiotes se diferenciam das inferiores; 2) no contato inter-racial e na concorréncia social vyence a raga superior; 3) a hist6ria se caracteriza por um aper- feigoamento lento ¢ gradual da atividade psiquica, moral ¢ intelectual." Associa-se, desta forma, a questo racial ao quadro mais abrangente do progresso da humanidade. Dentro desta perspectiva, 0 negro ¢ o indio se apresentam como en- trares ao processo civilizatério. E interessante notar que os estudos de Nina Rodrigues sobre as culturas negras decorrem imediatamente de suas premissas racistas; se & verdade que procura compreender o sincretismo religioso, € porque 0 con- sidera como forma religiosa inferior. A absoreao incompleta de elementos catélicos pelos cultos afro-brasileiros demons- tra, para o autor, uma ineapacidade de assimilacao da popu- lagio negra dos elementos vitais da civilizagao européia. O sineretismo atestaria os diferentes graus de evolugdo moral € intelectual de duas racas desiguais colocadas em contacto. ‘Surge assim um problema te6rico fundamental para os “‘cien- tistas” do perfodo: como tratar a identidade nacional diante da disparidade racial. Do equacionamento deste problema decorre a necessidade de se sublinhar o elemento mestigo. Na medida em que a civiliza¢ao européia nao pode ser transplan- tada integraimente para 0 solo brasileiro (vimos que 0 meio ambiente é diferente do europeu), na medida em que no Brasil duas outras ragas consideradas inferiores contribuem para a evolugiio da historia brasileira, torna-se necessario encontrar ‘um ponto de equilibrio. Os intelectuais procuram justamente compreender e revelar este nexo que definiria nossa diferen ciagio nacional. O mestigo é para os pensadores do século XIX mais do que uma realidade conereta, ele representa uma (11) Ver Nina Rodrigues, op, ci 12) Ver Nina Rodrigues, L“Aninisme Fétichiste de Négres de Bahia, Paris, 1890. CULTURA BRASILEIRA © IDENTIDADE NACIONAL a categoria através da qual se exprime uma necessidade social — a elaboragao de uma identidade nacional. A mestigagem, moral ¢ étnica, possibilita a “aclimatagao” da civilizagao eu- ‘opéia nos trépicos. Esta idéia de aclimatagao, que Couto de ‘Magalhiies desenvolve em relagao aos indigenas, e que é reto- ‘mada por nossos intelectuais, parece-me essencial. Afirmar que a raca branca se aclimata nos trépicos significa considerar ‘aexisténcia de um fator diferenciador que deve ser levado em conta, E do resultado dessa experiéncia actimatadora que se pode caracterizar uma cultura brasileira distinta da européia. A tematica da mestigagem neste sentido real e simbélica; coneretamente se refere as condigdes sociais e histéricas da amflgama étnica que transcorre no Brasil, simbolicamente conota as aspiracSes nacionalistas que se ligam 4 construgaio de uma nacdo brasileira. Colocada da maneira como a analisamos, tem-se que a problematica da miscigenacao se apresenta aos intelectuais do perfodo como um dilema. Se por um lado é urgente a elabora- {Gio de uma cultura brasileira, por outro se observa que esta se fevela como inconsciente. Vimos que a crenga no determi- nismo provocado pelo meio ambiente desemboca numa pers- Dectiva pessimista em relacdo as possibilidades brasileiras; as consideragdes a partir das teorias raciais vigentes vao agravar este quadro ainda mais, © mestico, enquanto produto do cru- zamento entre racas desiguais, encerra, para os autores da Epoca, os defeitos e taras transmitidos pela heranga biol6gica, A apatia, a imprevidéncia, o desequilibrio moral e intelectual, a inconsisténcia seriam dessa forma qualidades naturais do élemento brasileiro. A mesticagem simbélica traduz, assim, a Tealidade inferiorizada do elemento mestico concreto. Dentro desta perspectiva a miscigenacio moral, intelectual e racial do Povo brasileiro s6 pode existir enquanto possibilidade. O ideal nacional é na verdade uma utopia a ser realizada no futuro, ‘9u seja, no processo de branqueamento da sociedade brasi- Ieira. E na cadeia da evolucdo social que poderio ser elimi- hados os estigmas das “'ragas inferiores", © que politicamente ©oloca @ construgao de um Estado nacional come meta e no ‘como realidade presente. 2 RENATO ORTIZ ‘Uma interpretacio dissidente Ao estudar as idéias racistas que influenciaram a elite intelectual brasileira, Skidmore propde uma periodizagao in- teressante do predominio dessas idéias: 1888-1914," O pe- iodo demarcado corresponderia 4 hegemonia de um determi- nado tipo de pensamento que definiria uma intelligentsia bra- sileira; ele constituiria 0 que Sartre denominou o Espirito da Epoca, 1888 é a data da Abolicdo da escravatura, mas repre- senta também, particularmente para nés neste ensaio, 0 mo- mento de publicagao da obra mestra de Silvio Romero, Histé- ria da Literatura Brasileira. 1914 simboliza o inicio da Pri- meira Guerra Mundial, isto é, a emergéncia de um espirito nacionalista que procura se desvencilhar das teorias raciais ¢ ambientais caracteristicas do inicio da Repiiblica Velha, E importante sublinhar a unicidade de um determinado tipo de pensamento que prevalece junto aos intelectuais brasileiros. ‘Nina Rodrignes esereve em fins dos anos 90 e inicio do século, Euclides da Cunha publica Os Sertdes em 1903. Entretanto, neste mesmo ano, Manuel Bonfim esereve em Paris América Latina: Males de Origem.™ © livro retoma as mesmas preocu- aches dos autores estudados, a questo nacional, mas o re- trato do Brasil obtido contrasta vivamente com 0 anterior. Consideremos as idéias mestras que orientam 0 estudo de Ma- uel Bonfim, elas nos permitirio colocar algumas questées singulares a respeito da histéria da cultura brasileira. Manuel Bonfim se insere no interior dos grandes marcos que delimitam as fronteiras do pensamento da época — Com- te, Darwin, Spencer. No entanto, sua interpretacdo desses au- tores é sui generis e se opde as combinacdes brasileiras que absorvem 0 evolucionismo aos parametros da raga e do meio. Na verdade, Manuel Bonfim se aproxima algumas vezes do positivismo durkheimiano, cuja inspiragao se encontra na teo- ria biologica do social desenvolvida por Augusto Comte. Veja- mos como 0 autor procura diagnosticar os “males” da Amé- rica Latina. (13) ‘. Skicmore, Preto no Branco, Rio de Jansiro, Paz. Terra, 1976, a, alia Manuel Bont, Améric avna Mates de Origa, Rio do Janet, (CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL a ‘Um primeiro ponto chama de imediato a atengiio: a pro- ‘plematica brasileira somente existe enquanto parte de um sis- tema mais abrangente, o da América Latina, Manuel Bonfim sui uma visdo internacionalista que ndo encotitra corres- pondéncia nos outros autores brasileiros da época. Neste sen- fido a questo nacional se reveste de uma especificidade poli- tica mais geral, pois perguntar-se sobre o Brasil ecuivale a se indagar a respeito das relacdes entre América Latina e Eu- ropa. A compreensio do atraso latino-americano se liga assim fo esclarecimento das relagdes entre nacdes hegeménicas ¢ na- (ges dependentes. Para explicar esta posigao peculiar 4 Amé- rica Latina, Manuel Bonfim recorre as teorias de Comte, mas retém em particular sua comparagao entre a sociedade e os ‘organismos biolégicos. Seu instrumental tebrico pode ser re- sumido através dos seguintes pontos: 1) as sociedades existem ‘como organismos similares aos biol6gicos; 2) existem leis or- ginicas que determinam a evolugio; 3) a anélise éa naciona- fidade depende do meio em agdo combinada com seu pas- sado.” E necessrio observar que o evolucionismo de Manuel Bonfim se refere menos as etapas das sociedades do que uma filingio 2 Comte, que enfatiza o estudo do social enquanto organismo biolbgico. As leis da evolugtio cedem, assim, lugar Asleis biol6gicas, isto &, desloca-se o enfoque evolucionista no sentido da proposta de Comte que desenvolve a anzlogia entre a sociedade e os organismos vivos. Este aspecto de Comte é ignorado pelos outros autores brasileiros. Manuel Bonfim se aproxima de alguns autores como Durkheim, para quem 0 biolégico ¢ modelo de compreensio dos fatos sociais.” Da analogia entre biologia e sociedade chega-se 4 nogio de doen- 2, conceito-chave para o entendimento do atraso latino-ame- ticano. Retomando os argumentos biolégicos, Manuel Bon- fim define a doenca como uma inadaptagao do organismo a Certas condigSes especiais. Desde que as condigSes presentes 82 revelem como favordveis, a cura se daria através do conhe- (15) Manuel Bontim, op. cf, p-34 (16) Os argumentos utiizados pele autor lembram mutas vazes alguns fesludos de Durkheim, em particular sua "Diviszo do Trabalho Social”. No an Tanto Manuel Bonfim nfo cita Durkheim em nenhum momento, 0 que toma fel identiicar seu pensamento @ ume possve eavalaedo duntheimians de com, 4 RENATO ORTIZ cimento da histéria da doenca. © paralelo com as sociedades subdesenvolvidas pode entao ser realizado: “aparentemente néo ha nada que justifique 0 atraso em que se véem, as difi- culdades que tm encontrado no seu desenvolvimento. O meio € propicio, e por isso mesmo, diante desta anomalia, o socié- Jogo nao pode deixar de voltar-se para 0 passado a fim de buscar as causas dos males presentes”."” Temos por um lado anecessidade de se conhecer o passado das nagées latino-ame- ricanas, pois somente através do conhecimento da inadapta- Ho do organismo-sociedade poderemos diagnosticar os pro blemas atuais. Por outro, tem-se que a problematica do meio encontra-se descartada, uma vez que se postula a existéncia de um meio ambiente propicio & evolucao social. A analogia entre biol6gico e social leva Manuel Bonfim a construir uma curiosa teoria do imperialismo baseada em ter- mos de parasitismo social. Podemos resumi-la na seguinte forma: 1) 0 animal parasita possui uma fase depredadora, ‘momento em que ataca sua vitima; 2) durante 0 periodo para- sititio, o parasita vive da seiva nutritiva elaborada pelo ani- mal parasitado; 3) partindo-se do prinefpio de que a “funcao faz 0 6rgio”, tem-se, em certo periodo longo de parasitismo, um atrofiamento dos 6rgtios do animal parasita. A coriclustio natural desta comparagdo é que uma sociedade que vive para- sitariamente das outras tende a degenerar, a involuir. Trans- ferindo-se os resultados das experiéncias biolégicas sobre 0 parasitismo para o mundo social, pode-se ent afirmar: ‘'so- bre os grupos sociais humanos, os efeitos do parasitismo slo os mesmos. Sempre que hd uma classe ou uma agremiagao parasitando sobre o trabalho de outra, aquela — o parasita — seenfraquece, decai, degenera-se, extingue-se”."* Interpreta- se desta forma a exploracdo social e econdmica como capitulo de um parasitismo social; as leis bioldgicas se referem, por- tanto, mais a uma involuc&o da sociedade parasita do que propriamente as etapas de progresso social da humanidade. Dentro desta inusitada teoria biolégico-social tem-se que as relacdes entre colonizaidor e colonizado sto apreendidas en- quanto relacoes entre parasita e parasitado. Dois momentos (17) M. Bonfim, op. oft, p. 35. (18) M. Bonfim, op et. p. CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 2 cruciais determinam esta relagao; o primeiro é relativo a um periodo de expansao agressiva, o segundo a.uma fase de fixa- ‘¢do sedentéria, O tempo de expansio caracteriza afase depre- dadora do colonialismo, é 0 momento em que a metrépole pilha as colOnias, seja através da exploraco do ouro, pedras preciosas, destruigHo das civilizagdes autéctones, etc. Neste sentido, 0 escrito de Manuel Bonfim é um libelo contra a opresstio das nagdes colonizadoras, Portugal e Espanha. A metrOpole “suga” as coldnias e vive parasitariamente do tra- ‘balho alheio; a introdugao do trabalho escravo vai consolidar ainda mais este estado de parasitismo social. O periodo de fi- xago sedentiria corresponde a implantagio de um regime de dominagio no qual a nacio colonizadora se define como pélo de poder. Esta etapa se define sobretudo pela consolidagio de um Estado forte e conservador que procura através da forga e da tradicZo manter 0 status quo. O resultado dessa situa- ‘cao colonial é duplo: por um lado tem-se que a metrépole tende a se degenerar, a involuir,” por outro essa dimensio de degenerescéncia se transmite aos proprios colonizados. O etrato das nacdes latino-americanas pintado por Manuel Bonfim ¢ ciustico: “lutas continuas, trabalho escravo, Es- ado tirdnico e espoliador — qual serd 0 efeito de tudo isto sobre o carter das novas nacionalidades? Perversio do sen- so moral, horror ao trabalho livre e A vida pacifica, édio 20 governo, desconfianga das autoridades, desenvolvimento dos instintos agressivos”.” Analisar 0 Brasil dentro de uma visio do parasitismo so- cial significa consideré-lo na sua inter-relaco com a metré- pole portuguesa, No entanto, na medida em que ocolonizado € educado pelo colonizador, tem-se que aquele procura imi- ti-lo, As mazelas do “animal” parasita se transmiiem, assim, hereditariamente para o parasitado. Das qualidades transmi- tidas que definiriam o car&ter brasileiro, duas delas Manuel Bonfim considera como as mais funestas: 0 conservantismo ¢ 8 falta de espirito de observaco. O conservantismo decorre da (13) M. Bonfim interpreta desta forma o atraso de Portugal © Espanha, ‘mes se esquece de que o progresso das demals nagBes européiss se dove £0: bretudo a expansio colonialisia que sua sndlise biolbgiea nfo consegue inte rer. (20) M. Bonfim, op. cit, p. 178. % RENATO ORTIZ posigio do colonizador, que procura, euste o que custar, man tera tradigdio que Ihe assegura o poder, Explica-se dessa for- ‘ma o horror com que os brasileiros encaram todo projeto de mudanga social; 0 apego as tradigdes conservadoras traduzna verdade uma dificuldade em se colocar diante do progresso social. A critica de Manuel Bonfim se dirige principalmente a05 politicos e intelectuais, que ele considera como essencial- mente conservadores. A falta de espfrito de observacdo corres- ponderia a uma ineapacidade de se analisar e compreender a pripria realidade brasileira, © abuso dos “chaydes ¢ aforis- ‘mos consagrados” (o bacharel), a imitacao do estrangeiro se- riam fatores que contribuiriam para o florescimento dessa miopia nacional. Paralelamente a essas qualidades negativas transmitidas pelo colonizador, mas reelaboradas pelo colonizado, outras, deorigem indigena e negra, se integram ao espirito brasileiro. Porém, contrariamente a Nina Rodrigues, Silvio Romero ou Euclides da Cunha, o autor considera a mistura racial como “renovadora”, no sentido de que tenderia a reequilibrar os elementos negativos herdados do colonizador. Nao nos faga- ‘mos porém grandes ilusdes. Dentro do pensamento positivista da época, Manuel Bonfim toma partido pelo progresso, isto ¢, pela civilizagfo européia. O carter “renovador” das culturas negra e india nao possui, como o da cultura portuguesa, as qualidades que possibilitam orientar o progresso no sentido da evolugo da sociedade; entretanto tal afirmagio se da sem que se faga apelo As teorias racistas vigentes. Pelo contrério, todo © capitulo relativo ao cruzamento racial procura refutar tais teorias que predominavam junto a elite intelectual brasileira. Recusa-se dessa forma as qualidades de indoléncia, apatia, imprevidéncia atribuidas seja ao mestigo, seja aos negros ou fndios. Manuel Bonfim vai ainda mais longe ao denunciar esas teorias como ideologias que procuram legitimar uma si- tuagao de exploragdo em detrimento das nagdes subdesenvol- vidas. Dir4: “levada a pratica a teoria (racista) deu o seguinte resultado: yo os povos ‘superiores’ aos paises onde existem esses povos ‘inferiores’, organizam-lhes a vida conforme as suas tradigdes — deles ‘superiores’ —, instituem-se em classes dicigentes e obrigam os inferiores a trabalhar para sustenta- los; e, se estes no o quiserem, entdo que os matem e elimin de qualquer forma, a fim de ficar a terra para 0s superiore CULTURA BRASILEIRA F IDENTIDADE NACIONAL 2 os ingleses governem 0 Cabo, e os cafres cavem as minas; se- jam 0s anglo-saxées senhores e gozadores exclusivos da Aus- tralia, e destruam-se os australianos como se fossem uma es- pécie daninha...Tal é em sintese a teoria das ragas inferio- res”. A passagem ¢ clara, através dela pode-se perceber que 0s autores como Gobineau e Agassiz so substituidos por ou- tros, como, por exemplo, Topinard, o que possibilita a M. Bonfim fundamentar seu discurso contra uma pretensa desi gualdade das ragas humanas. A “copia” das idéias estrangeiras As anilises de Manuel Bonfim, quando comparadas ao pensamento dominante da intelligentsia brasileira, colocam um problema recorrente na histéria da cultura nacional: o da absoreao das idéias estrangeiras. Se levarmos em conta o tes- temunho de diferentes criticos do pensamento brasileiro, nos deparamos de imediato com a questo da “imitagao”’. Parece ter-se transformado em senso comum a tese do Brasil en- quanto espaco imitativo. Os protagonistas da Semana de Arte Moderna denunciaram ao infinito esse trago do “caréter bra- sileiro”, que Manuel Bonfim chamava de “falta de espirito de ‘ebservacio”, ou que Silvio Romero combatia em seus estudos literdrios. Particularmente durante o periodo estudado tem-se a impressio, através dos proprios criticos, de que o Brasil se- ria um entreposto de produtos culturais provindos do exterior. A iiltima moda, em particular a parisiense, aporiava no Rio e Janeiro para ser em principio consumida sem maiores pro- blemas. Se aceitisscmos esse quadro explicativo para com- Preender a penetragto das idéias estrangeiras junto aos inte- ectuais brasileiros, como interpretar a diferenga profunda ‘entre autores como Manuel Bonfim e Nina Rodrigues? Ro- berto Schwarz, em seu debate sobre as ‘‘idéias fora do lugar”, afirmava que as idéias “‘viajam”;”” como entender no entanto © fato de algumas idéias chegarem ao porto de destino e outras (21) M. Bonfim, op. cit, p. 308. {22) Roberto Schwarz, Ao Vencedor as Batatas, Séo Paulo nies 2, ‘Schwarz, Ao Vencedor as Batetas, Sio Paulo, Duas Ci

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