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6. Bifurcacdo de Caminhos Roma e Bizdncio: Séculos V a XIII 86, Uma basilica cris primitva Santo Apolindrio im classe", Ravens. Constrida por volta de 530 4.C QUANDO, NO ANO DE 311 D.C o Imperator Constantino estabelecen a Tere Crista como um poder no Esiado, os problemas com que se dettonton foram enormes. Durante os periodos de perseguiso mio tna havido aecessidade neu. de fato, possibilidade de construir lugares piblicos de culto, As igiejs ¢ sales de eunito que ‘xisiam cram pequenas ¢ de aspectoinsignificants. Mas, uma vez que aIsreja se toruara o poder supremo no {eino, 1odo-o seu telacionamento com a ate teria que ser reexaminatdo. Os lugares de culto nfo podiam adotar por modelo os antiges templos, jé que sua fgao cra inteiamente diferente. O interior do templo era, uusualmiente, apenas tim pequeno sactrio para 4 estémua de um dens. As procissées ¢ os saeriicios tinham Iugar do lado de fora, A igreja, por su vez, tinha que encontrar espago para toda a eongregagio que se reunia para 0 servigo religioso. quando © padke recitava a missa no altar-mor ou proferia seu sermao. Assim, aconteceu que as igtejas nao foram modeladas pelos templos pawios, nis pelo tipo de vastos saldes ‘de reuniao que nos. templos clissicos ram conhecidos pelo nome de "basticas’. 0 que significa aproximadamente *saldes reais", Essesedificios eram usualmente mercados cobertos ¢recinifos para andiéncias piblicas dos tibunais de justica: consistiam principalmente em vastas saldes oblongos. com compartimentos Inais estcitos € mais baixos 20 corter dos lados mais compridos. diviidos do corpo central por colunatas. Na cexitemidade havia fieqtentemente espago para um estrado semicircular (ow abside), onde o presidente da reuniio, ow o juiz. podia tomar assento” A mie do Tmperador Constantino crisiu uma dessas basilicas para Servir de iain e por isso o termo foi institu e oficialzado para as igeias desse tipo, O nicho semicigeular. ou abside. seria usado para o altar-mor. para o qual os oes dos fis cram diniidos. Essa parte do eaifico. onde se sitava 0 altar, passou.a ser conhecida como 0 coro, © espago central entre as colunatas, onde a conerezasto se reunla, seria mais tarde conliceida como a nave, que realmente Significava "uavio", ao passo que’ os compartimentos laterais receberam o nome de alas, o que quer dizer "asas". Na maioria das basics, a ‘espagosa nave era simplesmente coberta por um teto de madeira com vigas visiveis. As alas tinham com fieqiéncia un teto plano. As columas, que separavam a nave das alas, eramt mmitas vezes sunfuosamente ddecoradas. Nenhuma das mais antioasbasilcas permaneceninalterada. mas, apesar ds alteracces e renovagdes feitas no tanseurso dos 1.500 anos desde essa epoca, ainda podemos forma uma idéia do aspecto geral dessas construgdes (fig. 86). ‘A questio de como decoraressas basilcas foi muito mais difeile séria, porque a questio da imagem e seu ‘uso ma religia surgiu de novo e causou disputas muito violentas. Num pomio quase todos os primeiros crstaos concotdavam: mio devia haver estétuas na Casa do Senhor. As estatuas pareciamese demais com aquelas imagens esculpidas de idolos pagaos que a Biblin condenava. Colocar uma figura de Deus ou de un de Seus Santos no altar parecia inteiramente fora de questo. Pois como os miseros pagios que tinham se convertido recentemente a nova fé apreendcriam a diferenca entre suas antigas crengas e/a nova meusagem, Se VisseM tals estétuas nas igrejas? Poderiam facilmente pensar que uma estétua "representa" realmente Deus, tal como pensavam antes que uma estitua de Fidias representa Zeus. Assim, eram capazes de achar até mais dificil compreender a mensagem do Deus Todo-Poderoso, Luvisivel ¢ Uno. a cuja semelhianca tinkam sido feitos. Mas, embora todos os cristaos devotos pusessem objecdes as grandes estatuas copiadas da vida real, suas idéias, sobre pinturas diferiam bastante, Alzuns as consideravam eis porque ajudavam a congregacdo a recordar os censinamentos que haviam recebido € mantinham viva a meméria desses episédios sagrados. Esse ponto de vista foi principalmente adotado na parte latina, ocideutal, do Império Romano. O Papa Gregério, 0 Grande, que viveu no final do século VI D.C., seguit essa orientasao, Lembrou aqueles que cram contra todas as pinturas, ‘que muitos membros da Igreja nao podiam ler nem escrever, e que, para ensiné-los, essas imagens eram 180 iteis quanto os desenhos de um livro ilustrado para criangas. Disse ele: "A pintura pode fazer pelos analfabetos 0 que a escrita faz para o5 que sabem ler", Foi de uma importincia imensa para a historia da arte que uma tio grande autoridade tenha acudido em favor da pintura, Sua sentenga seria repetidamente citada sempre que as pessoas atacavam 0 ts0 de imagens nas igrejas. Mas ¢ claro que o tipo de arte que foi assim admitido era de uma espécie algo restrita. Para que 0 propésito expresso por Gregério I fosse servido, a histéria tinha que ser contada da maneira mais clara & simples possivel, ¢ nido o que pudesse desviar a atengio dessa finalidade principal e sagrada deveria ser omutido No comeso, 05 artistas ainda nsaram 0s métodos narrativos que tinham sido desenvolvidos pela arte romana, mas, gradualmente, passaram a concentrar-se cada vez mais no que era estritamente essencial. A fig. 87 mostra-nos uma obra em que esses principios foram aplicados com a maior consisténcia. Provém de uma basilica de Ravena, entao, por volta de $00 4.C, um grande porta de mar ¢ a capital da costa leste da Italia Ilustra a historia do Evangelho em que o Cristo alimentou cinco mil pessoas com cinco paes € cinco peixes ‘Um artista helenistico teria aproveitado a oportunidade para retratar wma grande multidao numa cena alegre € espetacular. Mas o mestre dos novos tempos escolheu tim método muito diferente. Sua obra nao ¢ uma pintura feita de dgeis pinceladas: € um mosaico. laboriosamente reunido, de cubos de pedra ou vidro que produzem profndidade, cores cheias, ¢ conferem ao interior da igreja, coberto de tais mosaics. um aspecto de solene esplendor. © modo como a histéria € coutada mostra a0 espectador que algo de milagroso € sagrado esta acontecendo. © fundo ¢ composto de fragmentos de vidro dourado e. sobre esse fimdo de ouro. nenhuma cena natural ou realista € representada, A figura imével ¢ serena do Cristo ocupa o centro do quadro. Nao é 0 nosso conhecido Cristo barbudo, mas o jovem claro e de longa cabeleira que viveu na imazinacdo dos primeiros cristaos, Tem tm manto pirpura e estende seus bragos num gesto de béncdo para ambos 0s lados, onde se enicontram dois apéstolos que Lhe oferecem 0s pies ¢ os peixes a fim de que o milagre se consume. Carrezam 0 alimento com a5 mos cobertas, como os sitditos que rendem tributo a seus senhores costumavam fazer nessa época. De fat. a cena parece uta ceriménia solene. Vemos que o artista atribuiu uma profunda significagio a0 que Tepresentou, Para ele, 0 que acontecera algumas centenas de anos antes na Palestina nao era apenas um estranho milagre. Era 0 simbolo e o testexminho do poder inabativel do Cristo, consubstanciados na Tereja. 1380 explica, ot ajuda a explicar, 0 modo como Cristo olha fixamente para o espectador: & a ele que 0 Cristo alimentard A primeira vista, essa pintura parece rigida e fria. Nada tem da mestria de movimento e expressao que era 0 orgulho da arte grega € que persistiu até a era romana. A maneira como as figuras esto plantadas em rigorosa vista frontal pode até lembrar-nos certos desenhos infantis. No entanto, o artista devia estar muito familiarizado com a arte arega, Sabia perfeitamente como enrolar tim manto em torno do corpo, de modo que as principais articulagdes permanecessem visiveis através das pregas. Sabia como misturar pedras de diferentes fons em sew mosaico para transmitit as cores de care on de rochas, Marcow as sombras no chao € nd0 teve dificuldade alguma em representar © escorco. Se o quadro nos parece algo primitivo, deve ser porque © artista quis deliberadamente que ele fosse simples, As idéias egipeias sobre a importancia da clareza na representacao de todos os objetos tinham retornado com grande forea. por causa da énfase que a Tareja dava 4 clareza, Mas as formas que os artistas usaram nessa nova tentativa udo eram as formas simples de arte rimitiva, mas as formas desenvolvidas da pintura grega. Assim, a arte crista da Idade Média tomnou-se uma Curiosa mistura de migtodos primitivos € sofisticados. O poder de observagio da natureza, a cujo despertar assistimos na Grécia, por volta de $00 a.C. voltou a adormecer por volta de $00 d.C. Os artistas deixaram de cotejar stias formulas com a realidade, Nao mais se dispunham a fazer descobertas sobre 0 modo de Tepresentar 0 compo ou de criar a ilusdo de profindidade. Mas as descobertas que tinham sido feitas nunca se perderam, A arte greco-romana fornecet um 87. 0 Milagre dos Pues e dos Peixes. Mosaico da Basilica de Santo Apolinario, 0 Novo, Ravena, cerca de $20 d.C. imenso repertorio de figuras em pé. sentadas, curvadas ou caindo, Todos esses tipos poderiam ser comprovadamente tteis para contar uma historia ¢ assim € que foram assiduamente copiadas e adaptadas sempre a novos contextos. Mas a finalidade de seu uso era ayort Go radicaluneute diveisa que aio Los pode supreender o ito de, superficiahuente, as punturas revelarem pouco de sua origem clissica. Essa questo da finalidade apropriada da arte em igrejas provou ser de imensa importancia para toda a histéria da Europa. Pois constituiu uma das principais questées que levatam as regides orientais. de fala grega. do Império Romano, cuja capital era Biziucio ow Constantinopla, a recusarem a chefia do Papa latino. Uma parte era contra todas as imagens de natureza teligiosa. Eram os chamados iconoclastas, ou "destiuidores de imagens". Em 745, levaram a melhor e toda a arte religiosa foi proibida na Tgreja orienta). Mas seus adversirios estavam ainda menos de acordo com as idéias do Papa Gregorio. Para eles, as imagens nao eram apenas titeis — eram sagradas. Os argumentos com que procuraram justificar esse ponto de vista eram tio sutis quanto os usados pela outra parte: "Se Deus, em sua misericérdia. péde decidir revelar-Se aos ollios dos mortais na uatureza humana do Cristo", argumentavam eles, "por que nio estaria Ele também disposto a manifestar-se em imagens visiveis? Nao adoramos esas imagens em si mesmas, como fizeram os pagdos. Adoramos Deus e os Santos através de suas imagens ¢ para além delas." Seja 0 que for que pensamos sobre a Iégica dessa tese. a sua importincia para a histéria da arte foi tremenda. Pois quando esse partido retornou a0 poder, apés um século de repress, as pinturas numa igreja no mais puderam ser encaradas ‘como meras ilustracdes para uso daqueles que nao sabiam ler. Eram vistas como reflexos misteriosos do mundo sobrenatural. Portanto, a Igreja oriental nao pode continuar permitindo a0 artista que seguisse a sua fantasia na criagdo dessas obras. Por certo, nao era qualquer bela pintura de uma mae com seu filho pequeno que poderia ser aceita como verdadeira imagem sacra ou "icone" da Mae de Deus. mas apenas aqueles tipos consagrados por uma tradicao de séculos. ‘Assim, 08 bizantinos passaram a insistir quase tao rigorosamente quanto os egipcios na observancia das tradigdes. Mas essa questo tinha dois aspectos diametralmente opostes. Ao exigir dos artistas que pintavam imagens sagradas que respeitassem estritamente os modelos antigos, a Igreja Bizantina ajudou a preservar as idéias € realizagdes da arte greza nos tipos usados para roupagens, faces ou gestos. Se observarmos um retabulo bizantino da Santa Virgem, como o da fig. 88, talvez nos parega muito distante das realizagdes da arte grega. No entanto, © modo como as pregas do manto se desdobram em torno do corpo ¢ irradiam em redor dos cotovelos e joelhos. 0 método de modelar a face € as maos acentuando as sombras, € mesmo a amplidao circular do proprio trouo da Virgem. teriam sido impossiveis sem as conquistas da pintura grega e helenistica. Apesar de uma certa rigidez, a arte bizantina manteve-se, portanto, mais proxima da natureza do que a arte do Ocidente em periodos subseqtentes. Por outro lado, a énfase sobre a tadigdo a necessidade de respeitar certos modos pemuitidos de representar 0 Cristo ou a Virgem tomnaram dificil aos artistas bizantinos desenvolverem seus dotes pessoais. Mas esse conservantismo desenvolveu-se apenas gradualmente ¢ € um etro imaginar que os artistas do petiodo nao tinham qualquer amplitude criativa. Foram eles, de fato. que transformaram as simples ilustragdes da arte crista primitiva em grandes ciclos de grandes € solencs imagens que dominam o interior das igrejas bizantinas. Se obscrvannos os mosaicos feitos por esses artistas gregos nos Balcds ¢ na Itélia, durante a Idade Média, vemos que esse império oriental tina conseguido, de fato, ressuscitar algo da grandeza ¢ majestade da antiga arte oriental e usa-la para glorificacao do Cristo e Seu poder. A fig. 89 da uma idéia de como essa arte podia ser impressionante. Mostra a abside da igreja de Monreale. na Sicilia, que foi decorada por attifices bizantinos pouco antes de 1190. A propria Sicilia pertencia a Igreja Ocidental ou Latina. 0 que explica o fato de entre os Santos dispostos de cada lado da janela encontrarmos uma das mais antigas representagdes de S. Tomis Becket, as noticias de cujo assassinato, uns vinte anos antes, tinham ressoado por toda a Europa. Mas. pondo de lado a sua selegdo de santos, os artistas mantiveram-se proximos de sua tradicao bizantina nativa. Os figis reunidos na igreja ver-se-iam face a face com a majestosa figura do Cristo, representado como © Senhor do Universo, Sua mao diteita erguida no gesto de béngao. Por baixo esta a Virgem, entronizada como Imperatriz ¢ ladeada por dois arcanjos ¢ a fila solene de santos. Imagens como estas. olhando-nos desde o alto de paredes douradas ¢ refulgentes. poderiam ser simbolos to perfeitos da Verdade Sagrada que nem parecia haver necessidade alguma de nos desviarmos delas. Assim, elas continuaram dominando em todos os paises governados pela Igreja Oriental. As imagens sacras ou "icones” dos russos ainda refletem essas grandes ctiagdes dos artistas bizantinos. 88. Nossa Senhora no trono com 0 Menino Provavelmente pintado em Constantinopla cerca de 1280, Washington, D.C., National Gallery of Art (Coleco Mellon) 89. Cristo como Soberano do abside da Cotedral de Monreal ‘ingen ¢ 0 Menino, ¢ Santos. Mosaico: por artistas bicantinos na a de 1190. 90. Iconoclasta bizantino apagando com cal uma imagem de Cristo. Do Saltério de Chludov, um manuscrito bizantino pintado por volta de 900 d.C. Moscou, Museu Hist6rico 8. A Arte Ocidental em Fase de Assimilagao Europa, Séculos VI a XI 102. Um “navio ogo” do tipo Viking, com cabesas de dragves, como 0s usados pelos normandos na invasto da Inglaterra. Da Tapecaria de Bayeux, feita por volta de 1080, Bayeux, Biblioteca TRATAMOS da histéria da arte ocidental até ao periodo de Constantino e aos séculos em que ela se adaptou ao preceito do Papa Gregorio, o Grande, de que as imagens sao titeis para ensinar aos eigos a palavra sagrada. O periodo que se seguiu a essa era cristé primitiva, o periodo que sobreveio a derrocada do Império Romano, € geralmente conhccido pelo nada lisonjciro epiteto de Idade das Trevas. Foi assim chamado para significar, em parte, que as pessoas que viveram durante esses séculos de migragdes, guerras ¢ sublevagdes, estavam mergulhadas em escuridio ¢ tinham poucos conhccimentos para gutié-las, mas também para assinalar que poco sabemos a respeito esses sécullos confirsos e desconcertantes que se seguiram ao declinio do mundo antigo e precederam © surgimento dos paises curopcus na configuragao gcogrifica cm que mais on menos os conhecemos hoje. Nao existem, & claro, limites fixados para o periodo, mas, para os nossos propésitos. poderemos dizer que durou quase quinhentos anos — aproximadamente de 500 a 1000 4.C Quinhentos anos € um longo periodo em que mmita coisa pode mudar ¢ muita coisa, de fato. mudou. Mas o que mais nos inferessa € que todos esses anos néo viram 0 surgimento de qualquer estilo claro © uniforme. e sim o conflito de um grande nimero de estilos diferentes que s6 comecaram a se fundir ja em fins desse periodo. Para os que conhecem algo da historia da Idade das Trevas, isso dificilmente surpreenderé. Nao foi apenas um periodo tenebroso; foi também desigual e variegado. com tremendas diferencas entre varios povos e classes. Ao longo desses cinco séculos existiram homens e mulheres, sobretudo nos mosteitos conventos, que amavam o saber € a arte, tinham uma grande admiragdo por aquelas obras di) mundo antigo que haviam sido preservada em bibliotecas ¢ depésitos. Por vezes. esses monges cultos e educados ocupavam posigdes de poder ¢ influencia nas cortes dos poderosos, ¢ tentavam ressuscitar as artes que tanto admiravam. Mas, com freqtténcia, seu trabalho era reduzido a zero por causa de novas auerras € invasdes por incursores vindos do norte, cujas opinides acerca da arte cram, de fato, muito diferentes. As varias tribos teuténicas, 0s godos. vandalos, saxdes, suevos ¢ Vikings, que assolavam a Europa, destruindo ¢ pilhando, eram considerados bérbaros por aqueles que apreciavam as realizagdes ercgas ¢ romanas na literatura ¢ na arte, Numa acepsao, essas tribos cram certamente barbaras, mas isso nao significa necessariamente que nao possnissem um sentimento do belo hem uma arte propria, Tinham Uma torre saxonia imitando Condado de Northampton, 115 A ARTE ‘OCIDENTAL EM FASE DE ASSIMILACAO 104. Uma cabega de dragio, Madeira tathad, ‘encontrada ens Osebere (Worwega). Cerea de 820. Oslo, Museu da Universidade artifices habilidosos © experimentados em tabalhos de metal finamente lavrado, ¢ excelentes entalhadores. compariveis aos dos maoris da Nova Zelindia (fig. 22. p. 24). Gostavam de complicados padrdes que incluiam 05 corpos comtorcidas de dragdes, ot aves misteriosamente entrelagadas. [gnoramos exatamiente onde esses padres se originaram no século VII ow 0 que significavam, mas nao € improvavel que as idéias dessas tribos leuténieas sobre arte se assemelhassem as idéias das tribos primitivas em toda parte, Ha razdes para cer que também elas concebessem essas imagens como wm meio de realizar priticas de magia ¢ exorcizar espiritos malignos. As figuras esculpidas de drazdes provenicntes de trends ¢ navios dos ikings dio uma boa idéia do cardter dessa arte (figs. 102 104). Pode-se perfeitamente imaginar que essas cabegas ameagadoras de monstros eram algo mais do que inocentes decoragdes. De fato, sabemos que existiam leis entre os Vikings noruegueses que impunham a0 capitto de um navio retirar essas carrancas antes de entrar em seu porto de origem, "para niio assustar 05 espiritos da terra’. (Os monges ¢ missionatios da Irlanda celtica ¢ da Inglaterra saxénia tentaram aplicar as tradigdes desses artifices nérdicos 4s tarefas da arte crista. Construiram igrejas e campandrios em pedra imitando as estruturas de madeira usadas por artifices locais (fig. 103), mas os monumentos mais surpreendentes a0 éxito deles so alguns dos manuscritos feitos na Inglaterra ¢ Irlanda durante os séculos VII ¢ VIL. A fig 105 é uma pigina do famoso Evangelho de Lindisfarne, feito em Nortimbria pouco antes de 700 4.¢ Mostra a Cruz composta de um rendilhado incrivelmente rico de dragdes ou serpentes entrelagados, contra um fundo de wm padrao ainda mais complexo. 105. Pagina do Evangelho de Lindisfarne, provavelmente pintado pouco antes de 700. Londres, Museu Britinico E excitante procurarmos abrir caminho através desse espantoso labisinto de formas sinuosas © acompantiar a5 espitais desses corpos inextricavelmente entretecidos, E ainda mais espantoso constatar que 0 restiltado nao € confusio ¢ que os virios padres se correspondem rigorosa ¢ mutuamente para formar uma complexa harmonia de desenho € cor. E dificil imaginar como pode alguém ter pensado em tal trama e tido a paciéncia e perseveranga para levé-la a termo, Prova, se fosse necesséria uma prova, que os artistas que adotaram essa tradigao nativa nao carcciam por certo de habilidade nem de técnica, F ainda mais strpreendente observar © modo como as figuras umanas foram representadas por esses astistas nos manuscritos iluminados da Inglaterra ¢ Irlanda, Ndo parecem verdadeiras figuras humanas, mas estranhos padres compostos de formas humanas (fig. 106). Podemos ver que o artista utifizou alzum exemplo que encontrara numa velha Biblia € o transformou de acordo com seu gosto pessoal. Mudow as dobras da vestimenta para algo como faixas entrangadas, as madeixas de cabelo e até as orelhias para rolos, € a face toda converteu-se numa mascara rigida. Essas figuras de evangelistas e santos parecem quase tio hirtas e exéticas quanto 0s idolos primitivos. Mostram que os artistas que se haviam criado na tradigho de sta arte nativa tiveram dificuldade em adaptar-se as novas exigéncias dos livros cristaos, Entretanto, seria um erro considcrar tais ilustragdes meramente rudimentares. O treinamento de mao ¢ olho que o artista recebera, e que 0 capacitara a realizar um belo padrio na pagina, ajudara-o a trazer um novo elemento para a arte ocidental, Sem essa influéncia, a arte ocidental ter-se-ia possivelmente desenvolvido numa direrdo semelhante 4 da arte de Bizincio, Gragas 106. S. Lucas. De um Evangetho manuscrito, pintado por volta de 750, ‘St. Gallen, Stifisbibliothek 118 A ARTE OcIDENTAL EM FASE DE. ASSIMILACAO. 107. Interior da igreja do mosteiro de ‘Chapelle, consagrada em 805 Aix a0 choque de duas tradigdes, a cléssica € a dos artistas nativos, algo inteiramente novo comecou a crescer na Europa Ocidental Na verdade. o conhiecimento das realizagdes anteriores da arte clissica nao se perdera inteiramente. de forma alguma, Na corte de Carlos Magno, que se considerava o sucessor dos imperadores romaros, a tradigao artesanal romana foi pressurosamente revivida. A igreja que Carlos Magno mandara construit por volta de $00 dC, em sta residéncia de Aix-In-Chapelle (fig. 107) € uma cépia bastante préxima de uma famosa igreja que fora construida em Ravena trezentos anos antes ‘Vimos antes que a nossa nogao modema de que um artista deve scr “original” nic cra absolutamente compartilhada pela maioria das pessoas do passado, Um miestre cgipcio. chines ou bizantino ficaria imensamemte perplexo se Ihe exigissem tal coisa. Tampouco um artista medieval da Europa Ocidental teria entendido por que haveria de inventar novos métodos de planejar uma igreja, de desenhar um célice ou de representar a Histéria Sagrada, quando os antigos métodos serviam tho tem a esses fins. O piedoso devoto que queria dedicar um novo sacrério para tima reliquia de sen santo padroeiro no 56 tentava obter © mais precioso material que estivesse ao sew alcance, mas desejaria também dctar o mestte com tm antigo e venerivel exemplo de como a lenda do santo devia ser corretamente representada, Nem o artista se sentia embaragado por esse tipo de encomenda, Ainda Ihe restava campo stificiente para mostrar se cra tum mestre ot um chatlatao, Talvez possamos entender melhor ¢ssa atitude se pensarmos cm nosso préprio enfoque da misica Se pedirmos a um mtisico para tocar nim casamento, nao esperamos que cle componha algo novo para a ocasitio, assim como mecenas medieval nao esperava uma nova invencio quando encomendava uma pintura sobre a Natividade. Indicamos o tipo de miisica que queremos e o tamanho da orquestra ou do coro, se 0s nossos meios o permitirem. Entretanto, & ainda ao miisico que compete apresentar uma execugio maravilhosa de uma antiga obra-prima ou fazer desta uma barafunda inaudivel. E, assim como dois miisicos ignalmente grandes podem interpretar a mesma pega de modos muito diferentes, também dois grandes mestres medievais podiam criar obras de arte muito diferentes sobre o mesmo lema € até a partir do mesmo modelo antigo, Um exemplo tornara isso claro. A fig. 108 mostra uma pagina de uma Biblia produzida na corte de Carlos Magno. Representa a figura de S. Mateus eserevendo 0 evangelho. Fora costume em livros gregos ¢ romanos ter 0 retrato do ‘autor representado no frontispicio ¢ essa imagem do evangelista escrevendo deve ser uma cépia extraordinariamente fiel dese tipo de retrato. O modo como o santo estd envolto em stia toga, a melhor mancira classica, a forma como sta cabega esta modelada cm mnuitas tonalidades de luz ¢ cor, convence-nos de que o artista medieval se empenhon de corpo ¢ alma para dar uma versto acurada € meritéria de um modelo venerado, 0 pintor de outro manuscrito do século IX (fig. 109) tinha provavelmente diante dos olhos o mesmo exemplo — ou um muito semelhante — dos primeiros tempos cristaos, Podemos comparar as maos, a mao esquerda segurando um tinteito de chifre e pousada na estante, a méo direita emptnhando a pena; podemos comparar os pés ¢ até as vestes em toro dos joelhos. Mas ao passo que o artista da fig. 108 fizera todo o possivel para copiar o original com um miximo de fidelidade, o artista da fig. 109 deve ter almejado uma interpretacdo diferente. Talvez nao quisesse representar o evangelista como qualquer dos antigos homens de saber, sereno ¢ meditativo, trangtiilamente sentado em sew gabinete. Para ele, S. Mateus era um homem inspirado, passando a escrito o Verbo de Deus. O que ele quetia retratar era um evento imensamente importante ¢ imensamente exeitante na histéria da humanidade, ¢ conseguiu, sem duivida, ransmitir algo de seu proprio sentimento de reveréncia ¢ excitagao a essa figura de um homem eserevendo. Nao foi mera inépcia ow ignorancia que o fez desenhar o santo com grandes olhos esbugalhados € maos ‘enormes. Ele quis dar-the essa expressiio de tensa concentracao. © proprio tratamento da tinica ¢ do fundo dé a impressdo de ter sido feito num estado de intensa excitacdo. Creio que essa impressdo se deve. em parte, & evidente satisfacio com que o artista aproveitava todas as oportunidades para desenhar linhas sinuasas, onduladas, ¢ pregas em zigue-zague. E possivel que houvesse algo no original para sugerir esse tratamento, mas o mais provivel € que tenha seduzido o artista medieval por Ihe recordarem aquelas, faixas ¢ linhas entrelagadas que tinham sido a realizagao suprema da arte nordica, Em quadros como esses, vemos 0 surgimento de um novo estilo medieval que possibilitou A arte fazer algo que nem a antiga arte oriental nem a classica tinham feito: os egipcios tinham desenhiado preponderantemente 0 que sabiam existir, 08 gregos o que viam; na Idade Média, o artista aprendeu a expressar também na sua obra o que sentia. Nao se pode fazer jus a qualquer obra de arte medieval sem ter em mente esse propésito, Pois esses artistas nao pretendiam criar uma semelhanca convincente com a natureza ou realizar belas coisas: quetiam comunicar a seus irmaos de fé 0 contetido € a mensagem da Historia Sagrada, E nisso talvez tenham sido mais bem-sucedidos do que a maioria dos artistas de épocas anteriores ou posteriores. A fig. 110 € reproduzida de tm livro dos evangelhos que foi ilustrado (ou, como se diz. "iltminado") na Alemanha mais de um século depois, por volta do ano 1000. Representa o incidente contado no Evangelho de S. Joao (XIII. 4-9), quando o Cristo. depois da Ultima Ceia, lavow os pés dos discipulos Disse-the Pedro: "Nunca me lavaras os pés.” Respondew-Ihe Jesus: "Se eu nao te lavar, nao tens parte comigo." Simao Pedro Ihe pediu entéo: "Senor, ndo somente os meus pés, mas também as midos e a cabeca”. Somente este didlogo importava ao artista. Nao viu razio algnma para representar a sala em que a cena ocorreu; isso poderia meramente ter desviado as atencdes do significado interior do evento. Preferiu colocar suas 108. $. Mateus. De wn Evangetho manuscrito, provavelmente pintado em Ait-a-Chapeli, cerca de $00, Viena, Schatckammer 109.8. Mateus. De um EvangeTho manuscrit, provavelmente pintado em Reims, cerca de 830. Eperay, Biblioteca Municipal 110. Cristo lavando os pés dos apéstolos. Do Livro dos Evangelhos de Oto Hl, iluminado por volta de 1000. Munique, Staatsbibliorhek principais figuras diante de um fundo dourado, plano ¢ uminoso, sobre 0 qual os gestos dos interlocutores se destacam como wma solene inscrig#o: o movimento implorativo de Pedro, o gesto de sereno ensinamento do Cristo. Um diseipulo a direita descalga as sandlias, outro traz uma bacia, os demais| ‘amontoamse por tras de Pedro. Todos os ollios esta rigorosamente voltados para 0 centro da cena e dao- nos assim a sensacdo de que alguma coisa de infimita significacdo esta ai acontecendo. Que importa se a bbacia nao ¢ uniformemente redonda, ¢ se 0 pintor teve que torcer para cima a perna de S. Pedro, 0 joelho algo jozado para a frente, a fim de que seu pé se mostre nitidamente fora da dgua? Ele estava preocupado ‘com a mensagem de humildade divina —e isso ele trausmitiv, E interessante dar uma nova olhada, por instantes, a outra cena representando um lava-pés, 0 vaso grczo Pintado no séeulo V aC. (fig. $6, p. 62). Foi na Grécia que se descobrin a arte de mostrar as "atividades da alma” e, por muito diferente que fosse 0 modo como 0 artista medieval interpretava essa finalidade, a Igreja nunca poderia ter usado imagens para seus proprios fins sem essa heranga, Lembremos 0 ensinamento do Papa Gregorio, 0 Grande, de que "a pintura pode fazer pelo analfabeto ‘0 que a escrita faz pelos que sabem ler” (p. 95), Essa busca de clareza destaca-se nao s@ nas ihumimuras, ‘mas tanibem nas obras de escultura, como a almofada de uma porta de bronze que fot encomendada para a igreja alema de Hildesheim pouco depois do ano 1000 (fig. 111). Mostra o Senhor acercando-se de Adio Eva apés a queda, Uma vez mais, nada existe nesse relevo que nao pertensa estritamente & histéria. ‘Mas essa comcentragio mas coisas que importam faz com que as figuras se destaquem muito mais nitidamente contra o fundo despretensioso — c quase podemos ler o que seus gestos dizem: Deus aponta para Adio, Addo para Eva, e Eva para a serpente no cho. A transferéncia sucessiva de culpa e a origem do pecado expressam-se com tamanho vigor ¢ clareza que nao tardamos em esquecer que as proporgdes das figuras talvez no estejam rigorosamente cortetas € que 0s corpos de Adio € Eva nao so belos pelos 10605 padres, ‘Nao devemos imaginar, porém, que toda a arte nesse periodo existiu exclusivamente para servir idgias religiosas. Nao apenas igrejas foram construidas na Idade Média, mas castelos também, e os bardes € senhores feudais a quem os castelos pertenciam empregavam ocasionalmente artistas. A razo pela qual somios propensos a esquecer essas obras quando falamos da arte do inicio da Idade Média € simples: 05 ‘castelos eram freq(lentemente destruidos, enquanto que as igrejas eram poupadas, arte religiosa era, de ‘um modo geral. tratada com maior respeito, ¢ cuidada com mais zclo do que metas decoracdes de ‘aposentos privados. Quando estas se tommavam antiquadas, eram removidas ou jogadas fora — tal como acontece hoje em dia. Mas, felizmente, tm grande exemplo deste filtimo tipo de arte chegou até nés — e isso porque foi preservado muna igreja. E a famosa Tapecaria de Bayeux, a qual ilustra a histéria da Conquista Normanda. Ignoramos exatamente quando essa tapegatia foi fabricada, mas a maior parte dos estudiosos concorda em que isso acontece no ambito da meméria viva das cenas que ilustra — talvez por volta de 1080. A tapecaria é uma erdnica pictériea do género que conhecemos da antiga arte oriental ¢ romana (a coluna de M1, Adloe Eva depois da Queda. Das portas de bronze da Catedral de Hildesheimy, ‘coneluida em 1015 112.113. ORei Haroldo pres vasslagem ao Duque Guilherme da Normandie, ap6s o que regress Inglaterra. Da Tapecaria de Bayeus, feitapor volta de 1080. Bayes, Biblioteca Trajano, por exemplo; ver fig. 78, p. 86) — a histéria de uma campanha e de uma vitéria. Coata a sua historia com maravilhosa vivacidade. Na fig. 112 vemos, conforme reza a inscri¢ao, como Haroldo presta juramento a Guilherme e, na fig. 113, como regressa A Inglaterra, Nada poderia ser mais claro do que 0 ‘modo como a histéria € contada: vemos Guilherme em seu trono observando Haroldo no momento em que este coloca a milo sobre as reliquias sagradas para jurar vassalagem: foi esse juramento que servit a Guilherme de pretexto para sts pretensdes ao trono inglés. Gosto particular Hiya 11022-1066) fi o we dos alo-sexes que preston esse juramento de fdelitae a Guilherme, o Conquistedor{10271087,e que por este Seria vencidoe moro ma bata de Hastings (N. do) mente do homem no baleo, na cena seguinte, com uma das mios sobre os olhios para espiar o barco de Haroldo. em sua chegada do mar largo. E verdade que seus bracos e dedos tém um aspecto algo singular € que todas as figuras da historia sio estranhos hominculos que nfo foram desenhados com a seguranga dos cronistas assinios ou romanos. Quando o artista medieval desse periodo nao tinka modelo para copiar desenhava tim pouco como uma criauca. E facil somrir dele, mas é muitissimo mais dificil fazer o que ele fez. Conta-nos a epopéia com imensa economia de meios e enorme concentragao no que the parecia ser importante. ¢ o resultado final permanece mais memorivel do que as descricdes realistas dos nossos correspondentes de guerra e cinegrafistas 114. Um monge (Frei Rufillus) escrevendo a letra R (sua mesa com tintas e seu canivete a seu lado). De um manuscrito do inicio do século XII. Sigmaringen, Biblioteca 9. A Igreja Militante O Século XH 115. Uma igreja remanescentes da igreja beneditina de Murbach, Alsécia Construida cerca de 1160 AS DATAS SAO CABIDES indispensiveis onde pendurar a tapecaria da historia e, como todos conhecem a data de 1066, ela pode servir-nos de cabide conveniente, Nenhuma construgao completa sobreviveu na Inglaterra do periodo saxo, ¢ existem muito poucas igtcjas do periods, anteriores aqucla data, que possam ainda ser vistas em qualquer parte da Europa. Mas 05 normandos que descmbarcaram na Inglaterra trouxcram consigo um estilo desenvolvido de construgao, 0 qual ganhara forma em sua geracio na Nomnandia ¢ alhures. Os bispos ¢ nobres que eram 0s novos senhores feudais da Inglaterra cedo comecaram a afirmar seu poderio mediante a flmdacdo de abadias ¢ igrejas de mosteiros. © estilo em que esses edificios foram construidos ¢ conhecido na Inglaterra como estilo normando ¢ no continente europeu como estilo roménico, Floresceu por mais de cem anos apés a invasdo normanda, Nao ¢ hoje ficil imaginar o que uma igreja significava para as pessoas desse periodo. Somente em algumas velhas aldeias do interior podemos ter ainda um vislumbre de sua importancia. A igreja era. com freqtténcia, o tinico edificio de pedra em toda a redonde7a: era a vinica constmcao de consideravel envergadura muitas 1éguas em redor e sew campanatio era um ponto de referéncia para todos os que chegavam de Jonge. Aos domingos e durante o culto, todos os habitantes da cidade podiam encontrar-se ali, e © contraste entre o edificio grandioso, com suas pinturas, stias talhas © esculturas, ¢ as casas primitivas ¢ humildes em que essas pessoas passavam a vida devia ter sido esmagador. Ndo admira que toda a comunidade estivesse interessada na construgdo dessas igrejas e se orgulliasse de sua decoragdo. Mesmo do ponto de vista econémico, a construgéo de um mosteiro. que levava auos, devia transformar uma cidade inteira. A extracdo de peda € seu transporte. a eregao de andaimes adequados. o emprego de artifices itinerantes, que traziam histérias de terras dlistantes, tudo isso constituia um acontecimento nesses tempos Inginquos. A Idade das Trevas no apagara, em absoluto, a. meméria das primeiras igreias, as basilicas, e as formas que os romanos haviam usado em sta construsao, O plano fundamental cra usualmente 0 mesmo — uma nave central evando a uma abside ou coro. ¢ duas ou quatro naves colaterais. Por vezes, esse plano simples era enriquecido por um certo mimero de adigdes. Alguns arquitetos gostavam da idéia de construir igrejas na forma de uma cruz. e por isso acrescentaram uma galeria transversal entre 0 coro € a nave. a que se deu o nome de transepto. A impressao geral criada por essas igrejas normandas ow roménicas €, contudo, muito diferente das velhias basilicas, Nas primeiras basilicas classicas tinham sido usadas colunas que sustentavam “entablamentos” retos. Nas igrejas romdnicas ¢ normandas, cncontramos geralmente arcos redondos (semicirculares) assentes em muacicos pés-diceitos. A impress4o geral causada por essas iarejas, interna e externamente, ¢ de ‘una robustez compacta, Ha poucas decoragdes, as janelas so escassas, mas as paredes e torres sein qucbras Tembram-nos as fortalezas medicvais (fig. 115), Essas podcrosas © quase desafiadoras montanhas de pedra crigidas pela Igreja em terras de camponeses ¢ guerreiros que s6 recentemente haviam sido convertidos de seu modo de vida pagio parecem expressar a propria idéia da Tereja Militante — isto €. a ideia de que aqui na Terta ¢ tarefa da Tgreja combater as forgas das Trevas até que a hora do triunfo desponte no dia do Juizo Final Havia um problema em relagio com a construgao de igtejas que absorvia a mente de todos os bons arquitetos. Era a tatefa de dar a esses impressionantes editicios de pedra um apropriado telhado de pedra. Aos telhiados de madeira que tinham sido ustais nas basilicas faltava dignidade e eram Perigosos porquc se incendiavam facilmente, A arte romana de abobadar edificagdes tao grandes exigia uma considerivel soma de conhecimentos téenicos e de céleulos que em sta maior pane se tinham perdido. Assim, os séculos XT e XI tomaram-se um periodo de incessantes experimentos, ‘Nio eta pequeno traballio cobrir toda a Largura da nave priacipal com uma 127 ATOREJA MILITANTE 116. A igreja na cidade medieval ‘a catedral de Tournai (Bélgica) A nave foi ‘concluida em HTL, as torres provavelmente em 1213 abébada. A solucao mais simples. parecia, era transpor a distincia da mesma forma que se langa uma ponte de um lado para o outro de um rio, Tremendos pilares erom levantados em ambos 95 lados, 0 quais iriam sustentar 05 arcos daquelas pontes. Mas logo se evidenciou que uma abébada dese géncro linha que ser unida com a maior firmeza para nio desabar, ¢ que 0 peso das pedras necessérias, era muito grande. Para suportar esse enorme peso. as paredes e pilares tinham que ser ainda mais robustos. Massas gigantescas de pedra eram necessirias para esas primeiras abébadas de “timel” ou de "canhao seguido” Os arquitetos normandos comecaram. portanto, a ensaiar um método diferente. Conclniram nao ser realmente necessério fazer todo o teto téo pesado. Era suficiente contar com um certo niimero de arcos de reforco para transpor a distancia e preencher os intervalos com material mais ligeiro Verificou-se que o melhor método para fazer isso eta construir os arcos ou "nervuras” (também, chamados "costelas") transversalmente entre os pilares € depois encher as segdes triangulares entre eles, Essa idéia, que no tardaria em revolucionar os métodos de construgao. pode remontar a catedral nor- 128 A IGREJA MILITANTE 117.Um interior normando: a Catedral de Durham. Construida entre 1093 ¢ 1128 (a ab6bada foi completada mais tarde, de acordo com 0 tragado original) : manda de Durham, embora 0 arquiteto que, pouco depois da Conquista, desenhou a primeira abébada em canhio seguido para seu imponente interior (fig. 117) mal se apercebesse das possibilidades técnicas assim criadas. Foi na Franca que as igrejas romanicas comegaram a ser decoradas com esculturas, embora a palavra "decorar” também nesse caso seja um tanto enganadora, Tudo o que pertencia a igreja tinha suia fumgdo definida © expressava uma idéia precisa, relacionada com os ensinamentos da Igreja. O portico do final do século XII da catedral de Saint-Trophime, cm Arles (Sul da Franca). ¢ um dos mais completos exemplos desse estilo (figs. 118-119). Seu formato recorda o principio do arco triunfal romano (fig. 75). No campo acima do timpano vemos 0 Cristo em Sua Gléria, cercado pelos simbolos dos quatro evangelistas. Esses simbolos, o ledo para S. Marcos, o anjo para S. Mateus. 0 boi para S. Lucas e a agua para S. Joao, foram derivados da Biblia. No Antigo Testamento, lemos sobre a visto de Ezequiel (Ezequiel. I. 4-12) em que ele descreve 0 trono do Senhor sustentado por quatro criaturas com cabeca de homem, ledo, boi e dguia Os tedlogos cristaos pensaram que os sustenticulos do trono de Deus significavam os Quatro Evangelistas, ¢ semelhante visdo era um tema perfeito para a entrada principal de uma igreja. Logo abaixo, no dintel, vemos doze 118-119. fachada de St. Trophime, em Atles (Sul da Franga). Cerca de 1180 figuras sentadas, os doze apéstolos. ¢ podemos discernir, & esquerda do Cristo, uma fila de figuras unas ¢ acorrentadas — sto almas perdidas sendo arrastadas para o inferno — enquanto que 4 direita do Cristo se véem 05 bem-aventurados, suas faces voltadas para Ele em gloria eterna, Por baixo, vemos as rigidas figuras de santos, cada um deles marcado por seu emblema recordando aos figis aqueles que podem interceder por eles, quando suas almas se apresentarem ante o Juiz Final. Assim, os ensinamentos da Igreja acerca do objetive final de nossa vida terrena foram consubstanciados nessas esculturas do pértico de uma igreja. Essas imagens perduraram no espirito das pessoas ainda mais poderosamente do que as palavras do sermao do pregador. Um poeta francés do final da Idade Média. Frangois Villon, descreven esse efeito nos Comoventes Versos escritos para stua mie: Sou uma pobre e velha mulher. Muito ignorante, que nem ler sabe. Mostraram-me na igreja de minha aldeia Um Paraiso pintado com harpas E 0 Inferno onde ferviam as almas danadas; ‘Um enche-me de jubilo, o outro assusta-me... Nao devemos esperar que tais esculturas tenham um aspecto tao natural, gracioso ¢ leve quanto as obras clissicas. Elas sio tanto mais impressionantes por causa de sua solenidade macica. Tomna-se muito mnais ficil ver de um relance o que esté representado, ¢ ajustam-se muito melhor a grandeza da construgao (fig. 119). Todos os pormenores no interior da igreja sto pensados com igual esmero, de forma que se ajustem ao seu propésito e a sua mensagem. A fig. 120 mostra um castical feito para a Catedral de Gloucester por volta de 1110. Os monstros ¢ dragdes entrelacados que o formam. lembram-nos o trabalho da Idade das Trevas (fig. 104. p. 115, e fig. 105. p. 116). Mas agora € atribuido um.. significado mais definido a essas formas fantasticas. Uma inscricao latina em tomo de sua coroa diz o seguinte: "Este porta-luz € obra de virtude: com seu brilho prega a doutrina, para que muitos nao se percam nas trevas do vicio". E. realmente, quando nossos olhos penctram na selva de estranhas criaturas. ndo s6 voltamos a encontrar uma vez mais (em redor da protuberancia do meio) os simbolos dos Evangelistas, que simbolizam a doutrina, mas também figuras nuas de homens. Tal como Laocoonte ¢ seus filhos (fig. 68, p. 75), eles so acossados por serpentes e monstros, mas. agora, nao se trata mais de uma luta irremediavelmente perdida. "A luz que brilhou na escuridao” pode fazé-los triunfar sobre o poder do mal. A pia batismal de uma igreja em Liége (Belgica). feita por volta de 1113, fornece outro exemplo do papel desempenhado pelos tedlogos como assessores dos artistas (fig. 122). E feita de latdo € ‘mostra no meio um relevo do batismo do Cristo — 0 mais apropriado dos temas para uma pia batismal. Ha inscrigdes latinas explicando o significado de cada figura: por exemplo. lemos "Angelis miinistrantes” (anjos oficiantes) sobre as duas figuras que aguardam na margem do rio Jordio para receber 0 Cristo, Mas nao sao apenas essas inscrigdes que sublinham a importncia atribuida ao significado de cada detalhe. Uma vez mais. a pia batismal como um todo recebeu esse significado, Até a figura dos bois que a sustentam no esto ai mera 131 AIGREJA MILITANTE 120. Castigal de bronze de sino dourado. Feito para a Catedral de Gloucester, entre 1104 e 1113, Londres, Vietoria and Albert Museum 133 AIGREJA MILITANTE 122. REINER VAN HUY: Pia batismal de lato, S. Bartolomeu, Lidge (Bélgica). Entre 1107 e 1118 mente para fins ornamentais ou decorativos. Lemos na Biblia (2 Crénicas, IV) como o Rei Salomao contratou um habil artifice de Tiro, na Fenicia, que era especialista em fuundigao de bronze. Entre as coisas que ele fez para o templo de Jerusalém, a Biblia descreve: Fez, também, o mar de bronze fundido, que tinha dez cévados de uma borda outra, de forma arredondada... Estava colocado sobre doze bois; trés olhavam para o norte, ttés para oeste, trés para o sul e trés ollavam para este; 0 mar estava sobre eles. e a parte posterior de seus corpos estava para dentro. Foi esse modelo sagrado, portanto, que o artista de Litge, outro especialista em fundi¢ao de bronze, foi solicitado a ter em mente na produgdo de sua pia batismal, mais de dois mil anos apds a época de Salomao, As formas que o artista usa para suas imagens do Cristo, dos anjos ¢ de S. Joao. parecem mais naturais ¢. a0 mesmo tempo. mais serenas ¢ majestosas do que as das portas de bronze de Hildesheim (fig. 111. p. 122), Recordemos que o século XIT € 0 século das Cruzadas. Havia naturalmente maior contato do que antes com a arte de Bizancio, ¢ muitos artistas do século XII tentaram imitar e emular as majestosas imagens sacras da Tereja Oriental (figs. 88-9, pp. 99-100), Em nenhuma outra época, de fato, a arte européia se aproximou mais desse género de arte oriental do que no apogeu do estilo romanico. Vimos a disposicdo rigida e solene das esculturas de Arles (figs. 118-119), € vemos 0 mesmo espitito em numerosos manuseritos iluminados do século XII. A fig. h FOSS NTS sins Dio Ain a om twaio® suébio, cerca de 1150, Stuttgart, Landesbibliothek PANN ON AN aN] 123, por exemplo, representa a Anunciasao, Parece quasc tio hirta ¢ imével quanto um relevo egipeio. A ‘Virgem é vista de frente, as mios erguidas como num gesto de incontido assombro, enquanto a pouba do Espirito Santo desce das alturas sobre ela. O Anjo ¢ visto em meio perfil. sua mao direita estendida rum gesto que na arte medieval significava 9 alo de falar, Se, ao observarmos essa ihumiinura, esperamos: uma vivida ilustracdo de uma cena real, talvez fiquemos desapomtados. Mas, se nos lembrarmos, uma vez mais, de que 0 artista nao estava empenhado numa imitagao de formas naturais € se preocupava exclusivamente com a disposigao de tradicionais simbolos sagrados, que era tudo o que ele necessitava para ilustrar o mistério da Anunciagdo, entdo deixaremos de sentir a falta daguilo que o artista nunca pretendew nos dar Pois devemios compreender como etam grandes as possibilidades que se abriam diante dos artistas, Jogo que finalmente puseram de lado toda a ambigio de representar as coisas tal como as vemos. A fiz 124 mostra uma pagina de um calendario para uso num mosteiro alemao, Assinala as festas principais de santos & serem comemoradas no més de outubro, mas, a0 invés de nossos proprios calendarios, marea- sno $6 com palavras, mas também por ilustracdes. No meio, entre os arcos, vemos S. Willimarus, 0 clérigo, ¢ S. Gall, com o béculo de bispo, um frade que carrega a bagagem do missionério e-rante. As cttriosas imagens no topo ¢ embaixo ilustram a historia de dois martirios que sao recordacos em. outubro. Em tempos mais recentes. quando a arte retomou a representacdo pormenorizada da natureza. tais cenas eruéis foram pintadas frequentemente com profusao de horriveis detathes. O nosso artista pode evitar tudo isso. Para nos lembrar S. Gereao € scus companheiros. cujas cabecas foram cortadas ¢ angadas num pogo. ele dispds os troncos decapitados num circulo em torno da imagem de poco repleto de cabecas, Santa Ursula, que, de acordo com a lenda, tinha sido massacrada com suas ote mill virgens pelos pagios, € vista entronizada, literalmente rodeada de suas seguidoras, Um feio selvagem armado de arco ¢ flecha. ¢ um homem brandindo sua espada, estado colocados fora da pézina e mirando 0 Santo. Podemos ler a historia que esté fora da pagina sem sermos forgados a visua.izé-la. E como o artista péde prescindir de qualquer ilusao de espaco ow de qualquer acdo dramética, pode arranjar suas figuras e formas de acordo com linhas puramente ornamentais. 4 pintuora estava, de fato, a caminho de se converter numa forma de escrita por imagens: mas esse retorno a métodes mais simplificados de representagio dew 124, Santos Gereao, Willimarus, Gall, 0 Martiriode * Santa Ursula com suas 11.000 virgens. De um calendério manuscrito feito entre 1137 e 1147. Stuttgart, Landesbibliothek ~ ao artista da Idade Média uma nova liberdade para experimentar com mais complexas formas de composicao (composicao = por junto). Sem esses métodos, os ensinamentos da Igreja jamais poderiam ser traduzidos em fornas visiveis, (O que se disse sobre formas é também vélido para as cores. Como os artistas nfo se sentiam ais obrigados a estudar e imitar as verdadeitas gradacdes de tonalidades cromticas que ocotrem ‘na natureza, estavami livres para escolher qualquer cor de que gostassem para as suas ilustragées. O ouro brilhante e 0s azuis luminosos de seus trabalhos de ourivesaria, as cores intensas de suas iluminuras, 0 vermelho vivo e os verdes profundos de seus vitrais (fig. 121. p. 132) mostrar que esses mestres tiraram bom proveito de sta independéncia da natureza, Foi essa emancipacio da necessidade de imitar o mundo natural que itia capacité-Los a transmitir a idéia do sobrenatural. 125. Artistas trabathando num wanuscrito € pintura de um ainel. Do livro de modelos do Mosteiro de Reun, feito por volta de 1200, Viena, Nationalbibliorhek

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