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O Homem dos Ratos,


Schreber e Kafka:
Destinos Possíveis para
a Hostilidade
The Rat Man, Schreber And Kafka: Possible
Vicissitudes To Hostility

El Hombre De Los Ratones, Schreber Y Kafka:


Destinos Posibles Para La Hostilidad

Sissi Vigil Castiel, Débora Farinati,


Liege Horst Didonet, Maria Lucia
Fortes Moreira, Roberta Araujo
Monteiro,
Cláudia Rocha,
Daniela Trois Feijó, Juliana Martins
Costa & Luciana Lopez Silva

Sigmund Freud Associação Psicanalítica


Artigo

PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2012, 32 (4), 808-825


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PSICOLOGIA: Sissi Vigil Castiel, Débora Farinati, Liege Horst Didonet, Maria Lucia Fortes Moreira,
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Roberta Araujo Monteiro, Cláudia Rocha, Daniela Trois Feijó, Juliana Martins Costa & Luciana Lopez Silva
2012, 32 (4), 808-825

Resumo: A clínica psicanalítica impõe a observação, por vezes muito presente em determinados quadros,
das tendências hostis que aparecem de forma manifesta ou fantasiada. Partindo dessa constatação e
sustentado na releitura dos textos freudianos, este trabalho propõe uma reflexão sobre as tendências
agressivas e suas implicações na clínica da neurose obsessiva e da paranoia, já que entendemos que a
intensidade da hostilidade nessas patologias se coloca, muitas vezes, como um impasse para o tratamento.
Os quadros clínicos serão exemplificados por meio do caso do Homem dos Ratos e da história de Schreber.
Posteriormente, passaremos a discutir dois textos de Kafka, a fim de indicar uma saída para a elaboração
da hostilidade no sentido de simbolizar e de sublimar as tendências agressivas.
Palavras-chave: Transtorno obsessivo compulsivo. Hostilidade. Sublimação. Psicanálise. Psicopatologia.
Mecanismos de defesa.

Abstract: The psychoanalytical practice demands the observation of acted or fantasized hostile tendencies
which are very common in certain cases. We believe that the intensity of hostility has an increase in cases
like obsessive neurosis and paranoia and often become an impediment to treatment. Considering such
matters and based on Freud’s texts, this paper proposes a reflection on the aggressive tendencies and their
implications in the treatment of obsessive neurosis and paranoia. The clinical frames will be exemplified
by The Rat Man and the history of Schreber. Subsequently we will discuss two texts of Kafka, to indicate an
answer to the elaboration of hostility towards symbolization and sublimation of the aggressive tendencies.
...”Da vez Keywords: Obsessive compulsive disorder. Hostility. Sublimation. Psychoanalysis. Psychopathology. Defense
primeira em que mechanism.
me assassinaram
           Perdi um
jeito de sorrir que Resumen: La clínica psicoanalítica impone la observación, algunas veces muy presente en determinados
eu tinha... cuadros, de las tendencias hostiles que aparecen de forma manifiesta o fantaseada. Partiendo de esa
           Depois, constatación y sostenido en la relectura de los textos freudianos, este trabajo propone una reflexión sobre
de cada vez que las inclinaciones agresivas y sus implicaciones en la clínica de la neurosis obsesiva y de la paranoia, ya
me mataram,
           Foram
que entendemos que la intensidad de la hostilidad en esas patologías se coloca, muchas veces, como un
levando qualquer impasse para el tratamiento. Los cuadros clínicos serán ejemplarizados por medio del caso del Hombre
coisa minha”... de los Ratones y de la historia de Schreber. Posteriormente, pasaremos a discutir dos textos de Kafka, con
                                                                               el fin de indicar una salida para la elaboración de la hostilidad en el sentido de simbolizar y de sublimar
Mario Quintana,
las inclinaciones agresivas.
Soneto XVII
Palabras clave: Trastorno obsesivo compulsivo. Hostilidad. Sublimación. Psicoanálisis. Psicopatología.
Mecanismos de defesa.

A clínica psicanalítica impõe a observação, em comportamentos reais ou fantasmáticos,


por vezes muito presente em determinados visando a prejudicar ou a destruir outrem. A
quadros, das tendências hostis que aparecem agressão se expressa por diversos modos além
de forma manifesta ou fantasiada. Isso se faz da ação motora. Colocamos em destaque a
presente, de modo especial, na neurose questão fantasmática presente nas tendências
obsessiva e na paranoia. A hostilidade hostis, ou seja, a agressividade pode existir
se explicita no tratamento e impõe ao como tendência, não só em caráter de
psicanalista a questão de como ela pode ser ato. Isso leva a pensar no papel que as
elaborada dada a sua intensidade. Dito de tendências agressivas têm na construção do
outro modo, entendemos que a intensidade aparelho psíquico, o que implica dizer que
da hostilidade nessas patologias se coloca, a agressividade é uma tensão correlata à
muitas vezes, como um impasse para o estrutura narcísica do sujeito. Efetivamente,
tratamento. a psicanálise reconhece um lugar para as
tendências agressivas na constituição do
A agressividade, segundo Laplanche e psiquismo, ainda que Freud, por vezes,
Pontalis (2004), é a tendência que se atualiza pensasse que isso se tenha dado tardiamente.

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Nas Novas Conferências Introdutórias sobre análise quando integrados com os elementos
Psicanálise (1932/1989, p.129), por exemplo, da segunda tópica.
ele se pergunta: “Por que necessitamos de
tempo tão longo para nos decidirmos a Para o objetivo deste trabalho, faremos um
reconhecer uma pulsão agressiva? Por que é percurso pelos textos teóricos freudianos,
que hesitamos em utilizar para a teoria fatos para depois abordar o modo como as
que eram evidentes e familiares a qualquer tendências agressivas aparecem na clínica,
pessoa?” Esse comentário de Freud refere- através da neurose obsessiva e da paranoia.
se à ideia de que a postulação da segunda Os quadros clínicos serão exemplificados
tópica delimita um lugar específico para a através do Homem dos Ratos e da história
agressividade como um substrato pulsional de Schreber. Posteriormente, passaremos a
único que caracterizaria a pulsão de morte. dois textos de Kafka, a fim de indicar uma
No entanto, evidências teóricas anteriores saída para a elaboração da hostilidade no
demonstram uma preocupação de Freud sentido da simbolização. Pensamos que
com o tema desde muito cedo, começando nessas patologias exista uma impossibilidade
com a observação das tendências hostis que de desligamento do objeto paterno devido à
fazem parte do tratamento analítico. Isso intensidade da hostilidade presente de parte
se explicita em Dora (Freud, 1905a/1989), a parte, o que leva o psicanalista a indagar:
quando Freud afirma que a hostilidade deve como é possível a fusão da agressividade com
ser despertada e utilizada pela análise ao a sexualidade nesses casos? Do ponto de vista
ser tornada consciente. A hostilidade faria da direção da cura, é necessária a elaboração
parte do que ele denominou, mais tarde, dessas tendências. O trabalho analítico se
transferência negativa. defronta com a volta contra si mesmo e a
transformação no contrário como destinos
Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade pulsionais, particularmente utilizados por
(1905b/1989). Freud afirma que as tendências esses pacientes, o que muitas vezes representa
agressivas apareciam junto à sexualidade; um impasse no que diz respeito à direção da
portanto, nesse momento, os fenômenos cura, dada a impossibildade de simbolização
da hostilidade não foram tratados a partir dos impulsos hostis a partir desses destinos.
de uma pulsão específica, talvez, por isso, o Dentro desse contexto, interessa-nos abordar
comentário de Freud nas Novas Conferências de que forma a simbolização das tendências
Introdutórias sobre Psicanálise (1932/1989). agressivas como sublimação da pulsão estaria
relacionada à direção da cura como uma
Na verdade, a hipótese de uma pulsão alternativa para a elaboração da hostilidade.
agressiva autônoma foi emitida por Adler em Em função dessa hipótese de trabalho,
1908, mas foi recusada por Freud. Mesmo abordamos os casos clínicos da paranoia e
que a autonomia pulsional da agressividade da neurose obsessiva e, por outro lado, os
em relação à sexualidade só tenha sido textos de Kafka.
especificada por ele a partir da viragem de
vinte, não se pode dizer que as formulações A agressividade em Freud
feitas anteriormente a esse período sejam
destituídas de importância. Pelo contrário, Foi em função das manifestações hostis e
todo o tema dos destinos pulsionais, como agressivas que, necessariamente, incidiam
formas de se defender da hostilidade, durante o tratamento analítico, que Freud
representam possibilidades férteis para uma descobriu a resistência. Isso, por si só, já
metapsicologia da agressividade, bem como nos permite dimensionar a centralidade e a
para a elaboração das tendências hostis na importância que a temática da agressividade

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tem no campo psicanalítico, participando sua relação com os meios de alcançar esse
diretamente das condições que promovem, objetivo teria sido retirada deles pela ‘pulsão
agressiva’. Apesar de toda a incerteza e
viabilizam e sustentam a experiência analítica. obscuridade de nossa teoria das pulsões, eu
A experiência clínica da agressividade preferiria, no momento, aderir ao ponto de
na transferência permitiu a Freud o vista usual, que deixa a cada pulsão o seu
próprio poder de se tornar agressiva... (1909
desenvolvimento de outros conceitos e ideias,
a/1989, pp. 145-146)
como, por exemplo, a noção de ambivalência,
que foi definida como coexistência, no
mesmo plano, de tendências, de atitudes Freud se recusa a aceitar a existência de uma
e de sentimentos opostos, por excelência, pulsão agressiva independente e autônoma,
o amor e o ódio (Laplanche & Pontalis, pois, no seu entender, cada pulsão tem o
2004); de igual modo, o complexo de poder de se tornar agressiva. Essa mesma
Édipo, que, desde a Interpretação dos linha de pensamento se encontra em sua
Sonhos (Freud, 1900/1989) é concebido contribuição ao tema da hostilidade em
como uma forma de apreender o problema 1905, nos Três Ensaios sobre a Sexualidade,
relativo à conjunção de desejos amorosos e quando fala na pulsão de dominação. Esta
hostis. Também na descrição do caso Dora se situa na origem da crueldade infantil, e,
(1905/1989), percebe-se amplamente a em princípio, não teria por alvo o sofrimento
articulação entre as constelações amorosas alheio, mas simplesmente não o levaria em
e hostis do complexo de Édipo. Ao mesmo conta. Isso quer dizer que provocar dor em
tempo, vê-se a participação da agressividade alguém não está entre os objetivos pulsionais
na transferência estabelecida pela paciente da criança, e sim, que o ímpeto de dominação
com relação a Freud, o que leva à interrupção pode implicar a supressão do outro que se
da análise. coloca como obstáculo para a dominação
visada sobre algo. Freud situa a origem
No que diz respeito a uma metapsicologia dessa pulsão na organização sádico-anal do
da agressividade e seu desenvolvimento no desenvolvimento da libido.
sujeito, em um primeiro momento, Freud
não a definiu em termos de uma pulsão O texto As Pulsões e suas Vicissitudes representa
específica, pois ele entendia que isso levaria a culminância do pensamento freudiano sobre
a beneficiar um tipo específico de pulsão a agressividade no contexto da primeira
em detrimento de outro, tal como atesta seu tópica, e constitui um artigo de importância
comentário no Historial do Pequeno Hans capital para a compreensão desta. No que
sobre a postulação de uma pulsão agressiva diz respeito aos destinos pulsionais, Freud
por Adler: trata da transformação no contrário e da volta
contra si mesmo como maneira específica de
Não posso convencer-me a aceitar a se defender de tendências pulsionais, como
existência de uma pulsão agressiva especial a agressividade, por exemplo. O primeiro
ao lado das pulsões familiares de auto- desses destinos pode-se perceber em dois
conservação e sexuais, e de qualidade igual
à destas. Parece-me que Adler promoveu processos diferentes, a mudança da atividade
erradamente a uma pulsão especial e para a passividade e a mudança do conteúdo.
autosubsistente, o que é, na realidade, um Já a volta contra si mesmo se dá no campo
atributo universal e indispensável de todas
do objeto da pulsão. Esses dois processos
as pulsões – seu caráter pulsional premente,
o que poderia ser descrito como a sua ocorrem na transformação do sadismo em
capacidade para iniciar movimento. Nada masoquismo.
restaria, então, das outras pulsões, a não
ser a sua relação com um objetivo, pois a

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Freud situa tanto a volta contra si mesmo das tendências agressivas teria alguma relação
como a transformação no contrário como com a direção da cura, aspecto esse que
formações narcisistas, afirmando: será retomado ao final do trabalho e que só
indicamos aqui a propósito de uma de nossas
Se levarmos em conta a fase do sadismo hipóteses de trabalho.
preliminar e narcisista que construímos,
estaremos aproximando-nos de uma
compreensão mais geral – a saber, que as
Já na vigência da segunda dualidade pulsional,
vicissitudes pulsionais, que consistem na a agressividade tem um lugar mais destacado.
volta contra si mesmo e a transformação É a parte da pulsão de morte posta a serviço
no contrário, se acham na dependência dos propósitos de Eros, voltada para fora com
da organização narcisista do ego e trazem
o cunho dessa fase. Correspondem talvez o auxílio da musculatura, que Freud chama
às tentativas de defesa que, em fases mais pulsão agressiva. Isso ocorreria da seguinte
elevadas do desenvolvimento do ego, são maneira: a parte da pulsão voltada para fora
efetuadas por outros meios (1915/1989,
seria o sadismo propriamente dito; a outra
p.153)
parte mantém-se no organismo, onde está
ligada libidinalmente pelo auxílio da excitação
A afirmação de Freud coloca em destaque
sexual, o que caracteriza o masoquismo
a ideia de que as vicissitudes pulsionais da
originário. Chamamos a atenção para a
volta contra si mesmo e da transformação
postulação de Freud, que é clara quanto ao
no contrário são maneiras específicas de
que ele chama de agressividade e sua diferença
lidar com o ódio, como o sadismo e o
para os fenômenos da destrutividade, presentes
masoquismo. Em outras palavras, o ódio
na mudez da pulsão de morte que aparecem
não é fusionado com a sexualidade; nesses
nas condutas de atuação, por exemplo. Com
destinos, ele é tratado narcisicamente, é
isso, quer salientar-se a diferença entre a
transformado em amor ou voltado para
destrutividade muda, característica da pulsão
dentro do próprio sujeito. Por isso mesmo,
de morte, e a agressividade presente em sua
esses desenvolvimentos teóricos possibilitam-
relação com o desenvolvimento da libido.
nos pensar que a patologia consiste na
Nessas situações, a agressividade apareceria
manutenção desses modos de defesa com
fusionada com a libido em maior ou menor
relação à hostilidade em detrimento do
quantidade, fazendo parte de estruturas
recalcamento e da sublimação, descritas por
neuróticas tais como a neurose obsessiva, por
ele, na afirmativa acima, como tentativas
exemplo, nas quais a fantasmatização está
mais elevadas de defesa. Nesse sentido,
em questão. Para a finalidade deste trabalho,
poder-se-ia pensar que Freud entende
iremos centrar-nos nas questões relativas às
que a sublimação e o recalcamento são
tendências fantasmáticas e manifestas de
formas mais elaboradas de lidar com as
hostilidade presentes na neurose obsessiva e na
tendências agressivas do que a volta contra
paranoia, portanto, nos quadros clínicos que
si mesmo e a transformação no contrário.
se relacionam muito mais com a problemática
Justamente essa postulação de Freud põe em
da agressividade e de sexualidade do que com
destaque a vinculação desses dois últimos
o mortífero em seu estado mudo.
destinos pulsionais com a organização
narcisista, aspecto que não estaria presente
Em O Ego e o Id, Freud (1923/1989), a partir
na sublimação, tal como ele afirma no caso
da hipótese da dualidade pulsional entre Eros
Scherber, quando diz que a sublimação é um
e a pulsão de morte, afirma que as duas classes
progressivo afastamento do narcisismo. Essas
de pulsão se unem e se fundem, de forma que
postulações de Freud nesses dois textos são o
o impulso destrutivo pode ser neutralizado,
que nos possibilita pensar que a sublimação
sendo desviado para o mundo externo através

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do aparelho muscular. Dessa forma, as duas Entendemos que, do ponto de vista de


classes de pulsão se unem e funcionam uma metapsicologia da agressividade, a
combinadamente. A libido constitui um conceituação da fusão e da desfusão pulsional
fator de ligação, de fusão, enquanto a a partir da segunda teoria das pulsões, bem
agressividade, um fator de desfusão. A partir como os destinos pulsionais da transformação
da ideia da fusão pulsional, a desfusão é uma no contrário e da volta contra si mesmo
consequência necessária. Quanto maior for relativos à primeira teoria das pulsões são
o predomínio da agressividade, mais a fusão conceitos indispensáveis. A desfusão pulsional,
pulsional tende a desfazer-se. Inversamente, por exemplo, aparece com força na neurose
quanto mais a libido prevalecer, mais se obsessiva e na paranoia. Com efeito, a análise
realizará a fusão. Nesse sentido, a essência dessas patologias permite ver a intensidade da
de uma regressão da libido, da fase genital agressividade presente, o que caracterizaria
à fase anal-sádica, origina-se pela desfusão a desfusão pulsional. Interessa, do ponto de
pulsional, enquanto o progresso da fase vista deste trabalho, investigar os impasses
anal para a genital tem como condição um que se colocam para a elaboração desses
acréscimo de componentes eróticos. impulsos que consistiriam a fusão da pulsão
com a sexualidade. Dentro desse contexto, na
Nesse sentido, o componente sádico da patologia, os destinos da volta contra si mesmo
pulsão sexual seria o exemplo de uma fusão e a transformação no contrário são prioritários,
pulsional útil, e o sadismo, que se tornou porque há uma desfusão pulsional que impede
independente como perversão, seria uma o recalcamento e a sublimação, pois não há a
desfusão. Para fins de descarga, a pulsão simbolização da agressividade.
de destruição é colocada a serviço de
Eros. A regressão da libido reside em uma Além disso, em O Ego e o Id, Freud se pergunta
desfusão pulsional, enquanto o avanço como se explicaria a transformação do amor
para uma fase posterior seria um acréscimo em ódio. Afirma o autor que existiria no
de componentes eróticos. A ambivalência psiquismo uma energia deslocável e neutra
é o melhor exemplo, para Freud, de uma em si própria que poderia ser acrescentada a
desfusão ou de uma fusão que não se um impulso erótico ou destrutivo, tendo assim
realizou. aumentada a sua catexia total. A hipótese de
Freud é bastante complexa, o que torna difícil
Para Freud, todo impulso consiste na fusão segui-la. No entanto, é possível analisá-la com
das duas categorias de pulsões que ocorre vagar. Se a energia neutra é acrescentada aos
em variadas proporções. Os impulsos impulsos eróticos, não parece haver dúvida,
eróticos introduziriam a multiplicidade pois ela é então empregada a serviço do
dos fins sexuais, enquanto os outros princípio do prazer para facilitar a descarga
apenas admitiriam atenuações em sua e neutralizar bloqueios, segundo Freud.
tendência uniforme. No entanto, ambos Entendemos que, nesse caso, a tendência
os grupos pulsionais têm o mesmo poder e será a busca da satisfação pulsional pela
enfrentam-se no mesmo campo, gerando ativação das representações inconscientes, o
os comportamentos e os tipos de relações que poderá ser barrado pelo recalcamento; aí
de objeto. Assim, a postulação da pulsão de vemos um circuito pulsional em andamento.
morte e a ideia da fusão-desfusão pulsional Assim, no caso de a energia neutra incrementar
permitem pensar sobre o funcionamento os impulsos eróticos, o princípio do prazer está
combinado dos dois tipos de pulsão e qual em funcionamento. E, no caso de a energia ser
a parte respectiva e o modo de associação acrescentada aos impulsos agressivos? Freud
dos dois grandes grupos pulsionais. não responde a essa questão. Como hipótese,

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podemos levantar dois aspectos: por que através da identificação e da sublimação


razão mais energia seria acrescentada aos nas diversas atividades sociais, profissionais,
impulsos agressivos? A outra questão diz artísticas e esportivas. Essa transformação da
respeito às consequências desse acréscimo. agressividade levaria em conta a sublimação,
Quanto à segunda questão, podemos supor na medida em que ela perderia sua correlação
que, quando um montante de energia a com o narcisismo, pois a castração implica a
mais é acrescentada aos impulsos agressivos, saída do narcisismo, como se pode ver no
ocasiona a desfusão pulsional e a ulterior terceiro ensaio de Sobre o Narcisismo: uma
regressão. Quanto à primeira questão, Introdução (1914/1989). A agressividade
entendemos que existe um reforço de fora deixa de ser satisfeita através do corpo, no
para que isso aconteça: a agressividade caso do sadismo e do masoquismo, e passa,
paterna ou a identificação com a agressividade então, a ser simbolizada, dada a sua fusão
paterna são o motivo para o incremento com a sexualidade.
dos impulsos hostis. Nesse sentido, Lacan
afirma: “(...) Um genitor severo intimida pela No que diz respeito a uma metapsicologia
simples presença, e basta que seja brandida da agressividade, temos dois caminhos: o
a imagem do Punidor para que a criança a da simbolização e da sublimação e o da
forme. Ela tem repercussões mais amplas captura do sujeito na volta contra si mesmo
do que qualquer sevícia” (1998, p.107). e transformação no contrário. Para falar
Efetivamente, percebemos que, na patologia, desses destinos, passamos aos casos clínicos
a intensidade da hostilidade paterna presente e a Kafka.
como tendência na neurose obsessiva e na
paranoia poderia consistir nesse acréscimo
O Homem dos Ratos
de energia aos impulsos hostis de que falam
Freud e Lacan. Dessa forma, o sujeito ficaria
Em outubro de 1907, Sigmund Freud inicia
capturado nas tendências agressivas. Isso
a análise de Paul (Ernst Lanzer), um homem
justificaria o porquê da utilização prioritária
que se tornou célebre por ter aberto a Freud
dos destinos pulsionais da transformação no
a possibilidade de elaborar uma construção
contrário e da volta contra si mesmo. Por
teórica sólida acerca da neurose obsessiva.
outro lado, o incremento das tendências
De acordo com Mezan (1998), o grande
agressivas impede a fusão e acarreta a
problema colocado pela neurose obsessiva
desfusão pulsional, tal como afirma Freud
e que surge em função do Homem dos
em O Ego e o Id, como descrevemos acima.
Ratos diz respeito ao que se faz com o
A consequência da desfusão pulsional e da
ódio. Pensamos que o destino dado à
utilização da volta contra si mesmo e da
hostilidade marcará de forma contundente
transformação no contrário é a permanência
as possibilidades e as impossibilidades de
do sujeito na organização narcisista, como
satisfação de um sujeito.
Freud observa em Pulsões e seus Destinos,
citado anteriormente. Por isso tudo, nessas
Ernst Lanzer (1878-1914) nasceu em Viena,
patologias, é difícil a elaboração das
em uma família judia, sendo o quarto filho
tendências agressivas.
de uma prole de sete. Em 1o de outubro de
1907, com 29 anos, Ernst procura Freud
Por outro lado, em O Ego e o Id, Freud
com um quadro grave de neurose obsessiva.
(1923/1989) aborda a transformação
Afirma Freud :
da agressividade como implicação da
dissolução edípica. Os impulsos agressivos Os aspectos principais de seu distúrbio
do complexo de Édipo são integrados eram medos de que algo pudesse acontecer

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a duas pessoas de quem ele gostava muito: se pensasse em tais desejos o acometia, por
o pai e uma dama a quem muito admirava. exemplo: o pai deveria morrer.
Estava consciente, também, de impulsos
compulsivos, tais como cortar a garganta
com uma lâmina (1909/1989, p.163) O pai, figura central na história, era um
homem de excelentes qualidades, embora
Esse temor, núcleo de toda a conflitiva pudesse ser, ocasionalmente, impetuoso e
apresentada por Ernst a Freud, decorria da violento. Pai e filho, na realidade, haviam
ambivalência em relação aos sentimentos vivido como bons amigos, à exceção de
que nutria por esses que constituíam os um único aspecto: o pai assumira para o
objetos centrais do drama e da trama de sua filho expressiva oposição à sua vida erótica.
história, ou seja, o pai e a dama. No centro Do sentimento de que o pai constituía um
do agravamento de sua neurose obsessiva, obstáculo à satisfação de sua sexualidade,
estava uma fantasia com ratos, da qual derivou sua hostilidade, que se expressaria
derivou o nome pelo qual esse caso clínico pelo temor de que algo pudesse acontecer
ficara conhecido, a saber: depois de ouvir, ao pai, mesmo após a sua morte. A
nas manobras militares de que participava, passagem que relatamos a seguir demonstra
uma cruel tortura relacionada a ratos contada como Ernst foi estabelecendo as conexões
por um hostil capitão, Ernst passou a imaginar entre seus desejos eróticos e a ideia de que
o castigo sendo infligido a duas pessoas, a o pai a eles se opunha. Quando ele tinha
dama, que lhe era cara, e a seu pai. A partir por volta de três, quatro anos de idade,
desse fato, desenvolveu-se uma série de apanhara do pai por ter mordido alguém,
ações de Ernst a fim de proteger o pai e a provavelmente sua babá. Como reação a
dama de tal tortura. essa ação violenta do pai, Ernst, enfurecido,
proferiu xingamentos enquanto apanhava,
Sua história de vida foi marcada por um porém, “como não conhecia impropérios,
despertar precoce da sexualidade, sendo chamou-o de todos os nomes de objetos
esse fato relatado a Freud como de muita comuns que lhe vinham à cabeça e gritou:
relevância em seu desenvolvimento. Dá ‘Sua lâmpada! Sua toalha! Seu prato! E assim
como exemplo um episódio, tendo ele na por diante’” (Freud, 1909/1989, p.52).
ocasião entre quatro e cinco anos, no qual
recebera da governanta a liberação para Posteriormente, Freud arrisca estabelecer
entrar debaixo de sua saia e tocá-la em seus uma ligação entre a má conduta que seria
genitais e na parte inferior de seu corpo, com a masturbação e a repreensão (surra)
a exigência de que ele não contasse isso a impetrada pelo pai como uma censura a esse
ninguém. Desde então, ele passou a ter uma ato. Diante do ataque de fúria de Ernst, o pai,
“curiosidade ardente e atormentadora de transtornado, interrompe a surra e exclama:
ver o corpo feminino” (Freud, 1909/1989, “O menino ou vai ser um grande homem,
p.14). Relata que, desde os seis anos, “sofria ou um grande criminoso!” (1909/1989,
de ereções” (Freud, 1909/1989, p. 166), e p.52). Essa cena, de acordo com Ernst,
associa essa sexualidade precoce às ideias ficara marcada permanentemente tanto em
que vieram a atormentá-lo, afirmando que, si mesmo quanto no pai, pois conta que,
já nessa época, tinha a ideia mórbida de que desde esse dia, ele jamais tornou a surrá-lo,
seus pais conheciam seus pensamentos. Ao por ter percebido mudança em seu caráter.
mesmo tempo em que percebia seu forte Freud diz, sobre o ocorrido:
desejo de ver nuas determinadas moças, um
A partir daquela época, tornou-se um
sentimento estranho de que algo aconteceria
covarde, por medo da violência de sua

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própria raiva. Aliás, por toda sua vida, Os conflitos de sentimentos no Homem
teve um medo terrível de pancadas, e dos Ratos amalgamavam-se; o ódio à
costumava agachar-se e esconder-se,
cheio de terror e indignação, quando um dama estava ligado ao afeiçoamento ao
de seus irmãos ou irmãs era espancado pai, assim como o ódio ao pai ligava-se
(1909/1989, p.208) inevitavelmente ao seu amor pela dama.
Sobre isso, Freud afirma: “Sabemos que
O pai, ao mesmo tempo amado por Ernst, o amor incipiente com freqüência é
passa a constituir objeto de sua ira, ira percebido como o próprio ódio, e que o
essa inadmissível em sua consciência pela amor, se lhe é negada satisfação, pode, com
culpa que lhe imputava e que encontrou facilidade, ser parcialmente convertido em
expressão em seus pensamentos de que ódio”. Em Ernst, o amor não conseguiu
algo pudesse acontecer ao pai. suplantar o ódio, apenas baniu-o para o
inconsciente através da formação reativa, e
Diversas experiências acabaram por reforçar lá, protegido de ser removido pelas ações
a ideia mágica de que seus pensamentos da consciência, persistiu, cresceu e infiltrou-
se davam a conhecer aos pais, ficando se em sua vida, produzindo um amplo
ele convencido da onipotência de seu espectro de manifestações sintomáticas.
amor e de seu ódio, o que o compeliu a
superestimar os efeitos de sua hostilidade
Schreber
contra o mundo externo. O ódio, de acordo
Em 1911, Freud publicou o trabalho Notas
com Freud, precisa necessariamente ter
Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico
uma fonte, e descobri-la resultava em um
de um Caso de Paranóia (1911/1989), fruto
grande problema para Ernst. Diz Freud:
do estudo detalhado do livro de memórias
“Podemos considerar o recalcamento
escrito por Daniel Paul Schreber (1842-1911),
de seu ódio infantil contra o pai como o
jurista renomado e presidente da Corte de
evento que colocou todo o seu modo de
Apelação da Saxônia. Este apresentou sinais
vida subseqüente sob domínio da neurose”
de distúrbios mentais depois de ter sido
(1909/1989, p. 239). Entendemos que,
derrotado na eleição em que disputava o
quando Freud se referia ao recalcamento
cargo de candidato do partido conservador
do ódio, estaria colocando em questão a
(Roudinesco & Plon, 1998). De acordo com
impossibilidade de que um ódio intenso
Carone (1995), em um artigo irônico de
fosse integrado aos componentes amorosos, um jornal local, a matéria intitulada Quem
permanecendo desfusionado da libido. conhece esse tal Dr. Schreber? evidenciou
o anonimato de Schreber, em oposição aos
Ernst adoeceu na idade de vinte anos, méritos de seus antepassados e à celebridade
aproximadamente, ao se deparar com o de seu pai. Era o ano 1884, Schreber estava
conflito entre o desejo paterno de que ele com 42 anos, e foi hospitalizado sob os
se casasse com uma mulher de sua escolha cuidados do reconhecido Dr. Flechsig, com
e o desejo de se casar com a dama a quem diagnóstico de hipocondria grave, tendo
ele amava há tanto tempo. Os sentimentos permanecido internado por seis meses. Após
para com o pai, assim como os que nutria a alta, viveu um período de oito anos que
pela dama, eram carregados de amor e considerou feliz, embora ofuscado pelas
ódio. Acrescentamos, além disso, que, nesse frustrações da esperança de ter filhos. Em
conflito, reatualiza-se a ideia infantil de que 1893, Schreber foi nomeado presidente
o pai era quem impedia a satisfação de seus da Corte de Apelação de Dresden, o que
desejos eróticos. representava o ponto máximo de sua

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carreira. Sentia-se honrado, mas também sistemas reformadores da natureza humana


sobrecarregado por seus subordinados serem propostos por seu pai, Daniel Gottlieb
mais velhos e experientes do que ele. Antes Moritz Schreber (1808-1861). Dr. Schreber,
da posse, teve um sonho de que a antiga médico ortopedista e pedagogo, pregava
doença nervosa havia voltado, e também um teorias educativas extremamente rígidas
devaneio de que seria bom ser uma mulher e moralistas, com base em práticas de
no ato sexual. Em seguida, um novo colapso higienismo, de ginástica e de ortopedia. Em
mental surgiu, acompanhado por insônia, seus manuais, ele propunha corrigir os defeitos
sensibilidade a ruídos e angústia intensa, da natureza humana e remediar a decadência
ideias de perseguição e morte iminente, o das sociedades, criando um novo homem:
que acarretou um uma nova internação na espírito puro em um corpo sadio (Roudinesco
clínica universitária para doenças nervosas & Plon, 1998). Segundo Carone, pregava
de Lepzig (Carone, 1995). uma doutrina rígida e moralista, objetivando
um controle de todos os aspectos da vida.
Sete anos depois, ainda internado, Schreber Para ele, a retidão do espírito era fruto do
foi interditado, ocasião na qual escreveu aprendizado precoce de todas as formas de
suas Memórias de um Doente dos Nervos contenção emocional e da supressão dos
(1903/1995), publicado em 1903. Em chamados sentimentos imorais, entre eles,
suas memórias, Schreber apresenta o todas as manifestações da sexualidade. A
sistema delirante no qual estabelecia uma partir desses entendimentos, Dr. Schreber
significativa relação com Deus, tendo, adotou seus métodos e experimentos na
inclusive, uma comunicação particular com educação dos filhos, sendo esse um aspecto
ele pela língua fundamental, e achava que fundamental para a compreensão da relação
o fim do mundo estava próximo, sendo ele estabelecida entre Schreber e seu pai.
o único sobrevivente. Além disso, entendia
que Deus lhe confiara a missão salvadora A dinâmica da paranoia proposta por Freud
de gerar uma nova raça, para qual deveria (1911/1989) é que uma grande intensidade
se transmutar em mulher (Roudinesco & de emoção é colocada em forma de poderes
Plon, 1998). externos, enquanto a sua qualidade é
transformada no oposto: o perseguidor
É importante notar que a leitura do livro de odiado e temido foi, em outra época, amado
Schreber, iniciado com a Carta Aberta, torna e venerado, sendo essa transformação já
evidente o lugar de destaque ocupado por anteriormente experimentada com outra
Flechsig. Este, que foi identificado como pessoa importante na vida do sujeito. Com
o seu grande perseguidor, o responsável isso, Freud compreende que as atitudes
pela crise entre ele e Deus, é considerado femininas de Schreber manifestadas em
por Freud (1911/1989) como aquele que relação a Flechsig levariam à proposição de
havia ocupado o lugar paterno no delírio de uma atitude homossexual. O delírio explicita
Schreber. Desse modo, compreende-se a esses impulsos não aceitos que, a partir da
relação do paciente com o seu perseguidor, transformação no contrário, são sentidos
já que aquele a quem ele atribui tanto poder como ódio. Assim, configura-se a sentença:
e influência é, claramente, alguém que esse homem a quem eu amo, na verdade,
desempenhou papel igualmente importante eu odeio.
na sua vida emocional.
Cabe, aqui, um exame sobre o que gera
Freud observou analogias entre os delírios o recalcamento falho desses impulsos
paranóicos de Schreber e os grandes homossexuais, deixando o sujeito restrito

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à transformação no contrário e à volta final, percebe-se em Schreber uma hostilidade


contra si mesmo. Através do caso Schreber, que nunca pôde aparecer, nem mesmo na
Freud evidencia que a impossibilidade de infância. A posição passiva homossexual de
exteriorizar a hostilidade em relação ao pai Schreber em relação ao pai destacada por
determina que esta seja mantida voltada Freud impede a simbolização e a fusão da
para dentro em forma de passividade. agressividade, e os destinos da transformação
Essa debilidade no direcionamento da no contrário e no retorno contra si mesmo
hostilidade acarreta um recalcamento são os que aparecem. Diante de uma
igualmente frágil dos impulsos eróticos em hostilidade proibida, uma das possibilidades
relação ao pai referentes ao complexo de encontradas pelo sujeito, dentro da dimensão
Édipo negativo. Assim, entende-se que da agressividade na paranoia, é entregar-
a única maneira que Schreber teve para se como objeto de gozo do outro em uma
lidar com o pai hostil e autoritário foi ficar posição masoquista.
permanentemente submetido a ele de forma
passiva. Salienta-se, ainda, que o cenário Kafka
familiar de Schreber tinha uma configuração
na qual só havia espaço para um homem: o A hostilidade e o destino singular a ela dado
pai. Isso é confirmado não só pela evolução marcam a vida de qualquer ser humano. Na
da doença de Schreber mas também pelo vida dos grandes autores da literatura universal,
suicídio do seu irmão. Com isso, percebe-se também podemos buscar um exemplo de
o porquê de certos episódios na sua vida um entrelaçamento desse tipo. Falamos de
terem adquirido uma magnitude que os Franz Kafka. Nasceu em 1883, em Praga, na
configuraram como desencadeantes da crise época uma capital sem muita importância do
paranoica: a promoção profissional, que o Império Austro-Húngaro, filho de uma família
colocaria em uma posição de igualdade com imigrante judia em um país onde era minoria
o pai, se considerados os valores da família, religiosa, que se expressava em língua alemã
sustentando a saída da condição passiva enquanto a maioria da população falava o
frente a ele e a impossibilidade de ter filhos, o tcheco. A sua ascendência e a realidade que
que pode ter significado um questionamento o cercava eram vividas intensamente por ele,
sobre a sua própria masculinidade. Nesses e marcaram profundamente sua obra.
momentos de crise, irrompem os delírios a
fim de encobrir uma posição homossexual a Kafka era o primeiro filho de uma prole de seis,
ser revista. Além disso, pode-se supor que a filho de pai enérgico, autoritário, que, através
relação com Flechsig, marcada pelo cuidado, de seu temperamento despótico, marcou
mesmo sendo cuidados médicos, tenha intensa e profundamente sua personalidade.
adquirido um caráter tal que ativou a relação Dentro de casa, a vontade do pai era lei,
do erótico, sobre o qual Schreber não tinha sempre prevalecia, e, desde cedo, Kafka se
um recalcamento operante capaz de suportá- viu isolado.
la, o que atualizou também o impulso.
Kafka inicia a escrever em 1912, em alemão
Nessa direção, examinando-se os delírios, vê- burocrático, diferentemente de seus colegas
se que as percepções internas são substituídas literatos, que escreviam em um alemão
por percepções externas, e o ódio, que não inventado, meio barroco, para usar as palavras
pode ser sentido como próprio, é projetado de Carone (2009). Assim criou uma linguagem
no outro, justificando o seu próprio ódio própria para descrever o mundo em que vivia.
sem culpa. Com relação à particularidade Ao comentar sobre essa linguagem, diz ainda
da hostilidade na paranoia, em uma síntese Carone: “Ela é, em si mesma, absolutamente

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desinteressante. Mas ele a usou como matéria forma plangente, incessante, que me dessem
literária para descrever o mundo alienado água; certamente, não era pelo fato de eu ter
em que vivemos, como era essa língua. sede, mas em parte talvez para incomodar
Além disso, inventou um narrador que não e em parte para divertir-me. Depois de
é mais onisciente, mas insciente; ele não não terem surtido efeito algumas ameaças
sabe. Como ele, também o personagem e violentas, tiraste-me da cama, levaste-me à
o leitor não sabem. Todos são pegos pela varanda e ali me deixaste um instante, em
alienação, mas saímos do outro lado com camisola, sozinho diante da porta fechada”
uma experiência concreta do que é”. (Kafka, 1919/1995, p. 86).

Essa experiência concreta do que é, ou do No trecho referido acima, percebemos a


que foi, encontramos na Carta ao Pai. Esse predominância da hostilidade na relação
texto tornou-se obra literária após a morte de entre pai e filho e o desamparo sentido então
Kafka. Originalmente, tal qual o nome nos pelo filho. Com isso, não queremos dizer que
revela, foi uma carta que Kafka escreveu ao não tenha havido sentimentos amorosos nessa
pai, como podemos inferir, em uma tentativa relação, mas, aparentemente, não foram
de comunicação. suficientes para contrabalançar a intensidade
da hostilidade presente. Frente a ela, Kafka
A Carta (Kafka, 1919/1995) nos apresenta, se ressente e, talvez por isso e apesar disso,
da primeira à ultima linha, um caráter escreve.
profundamente hostil e ressentido com
relação ao pai. Entre 10 e 20 de novembro Sua obra, em que predomina a ficção realista,
de 1919, aos 36 anos, cinco anos antes ao mesmo tempo esconde e denuncia a marca
de morrer de tuberculose, no sanatório de dessa hostilidade e desse ressentimento.
Kierling, nos arredores de Viena, Kafka faz É assim também na Metamorfose (Kafka,
deslindar o que acabou sendo, sem dúvida, 1912/1995), na qual se descortina uma
o mais intrigante acerto de contas de um realidade absurda e profundamente vivida
ser humano, de um homem com a figura na passividade. O personagem principal,
paterna, movido por uma absoluta relação Gregor Samsa, transforma-se em um inseto
de desentendimento com o pai, que se opôs monstruoso, e isso é vivido como um
a sua terceira e última fracassada tentativa destino inelutável. Não há escolha, não há
de matrimônio. Essa carta jamais chegou escapatória, não há nada mais a fazer do
ao destinatário, o emblemático Hermann que submeter-se ao que já está dado, pois
Kafka, apesar da negociação de Franz com a metamorfose já havia acontecido antes de
a irmã mais nova, Ottla, para que se fizesse a novela iniciar. Samsa foi metamorfoseado,
portadora da remessa. A carta é atravessada, é um inseto, que é descrito por um outro
do início ao fim, pela palavra medo. Os ativo, o narrador. O personagem-inseto nem
efeitos do método educativo e da hostilidade sabe estar e mover-se em seu próprio casco,
de Hermann em um menino tão pequeno torna-se a vergonha da família, escondido da
são devastadores. sociedade e não olhado pelos olhos do pai,
no seu agora abismal quarto de dormir.
Ao escrever A Carta, Kafka recorda sua Destacamos o seguinte trecho da obra:
relação com o pai, cujo efeito conta através
de cada lembrança. Sublinhamos o seguinte Um dos lados do seu corpo elevou-se, ele
estava deitado em posição oblíqua na altura
trecho da Carta: “lembro vivamente um da porta; um de seus flancos ficou bastante
acontecimento dos primeiros anos. Talvez tu esfolado, na porta branca ficaram manchas
também te lembres. Uma noite eu pedia em horríveis e em pouco estava entalado no

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vivenciado em relação ao pai é redirecionado


vão de entrada e não conseguia mais
se mover sozinho (...) foi aí que seu pai contra si mesmo, na vida, na impossibilidade
lhe desferiu um violento golpe por trás de transformar seu talento de escritor em
– desta vez salvador de verdade – e ele fonte de renda e de satisfação.
voou, sangrando em abundância, quarto
adentro. A porta ainda foi fechada com
a bengala, depois, enfim, ficou tudo em Apesar disso, a genialidade de sua obra fala por
silêncio (1912/1995, p.42) si. Podemos entender essa genialidade como
resultado de um processo de simbolização.
Esse ser não humano em que o personagem Em Kafka, entendemos que foi possível
Gregor Samsa se transformou não se simbolizar parte da hostilidade vivenciada na
reconhece no olhar do pai, não encontra relação com o pai, que coexiste juntamente
alguém com quem se identificar, não tem ao destino pulsional da volta contra si mesmo.
valor, nem merece voz, lugar, nem amor. Do livro de Janouch (1971, p.196), baseado
A nulidade em que se transforma Gregor é em seus registros dos tempos em que visitava
originalmente sentida pelo próprio Franz, Kafka em seu escritório, aprendemos a
que disse ao pai: “aquilo foi, então, um importância da amizade na vida do poeta.
pequeno princípio, mas essa sensação de Kafka foi para Janouch “a mais importante e
nulidade (sobre outro ponto de vista, sem fundamental experiência da sua juventude”.
dúvida, uma sensação também nobre e A relação de Kafka com Max Brod é uma
frutífera), que com frequência me domina, das amizades mais importantes da história
foi em grande parte provocada pela tua da literatura. Ele e Felix Weltsch foram os
influência” (1912/1995, p. 86). grandes incentivadores do escritor para que
deixasse seus trabalhos serem publicados.
Com isso, não queremos dizer que Gregor E foi ao amigo e testemunho Brod que
Samsa represente Franz Kafka, pois o Kafka pediu que queimasse parte desses
primeiro é uma criação do segundo, e aí escritos. Em mais uma e derradeira prova de
está toda a diferença. Diferentemente do admiração e amizade, o pedido foi ignorado.
personagem, e como citado acima, Kafka
E a literatura universal conheceu um de
vê, no próprio sentimento de nulidade, uma
seus maiores escritores, o maior prosista de
oportunidade para criar obra e vida. Assim
todos os tempos, nas palavras de Adorno,
como o amoroso do pai não contrabalançou
citado por Carone (2009). Slavutzky (2009)
o hostil, podemos pensar que toda a
capacidade criativa de Kafka dá conta de destaca o valor que a amizade e os vínculos
uma oportunidade de criação a partir dessa fraternos tiveram na vida de Kafka no sentido
hostilidade. de contrabalançar seus dissabores familiares.

Ao mesmo tempo, a nulidade vivenciada A sublimação como destino


a partir da hostilidade do pai para com pulsional
ele e dele para com o pai levou Kafka a
pensar em suicídio algumas vezes. Dessa Para falar sobre a possibilidade de dar um
ideação suicida nos fala Konder “embora destino sublimatório à hostilidade relativa à
por diversas vezes Kafka tenha encarado pulsão perverso-polimorfa, antes é necessário
a hipótese de se suicidar, não chegou a descrever o modo como se constitui a
aceitar tão plenamente o caminho da auto- sexualidade no sujeito.
destruição” (1979, p.90). Dessa forma, a
hostilidade manifesta na ideação suicida A sexualidade, em Freud (1905/1989), é
nunca se transforma em ato suicida. O hostil definida como relativa a todas as excitações

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e atividades que levam ao prazer desde a que caracteriza a sublimação é que ela trata
infância, independentemente da genitalidade de uma satisfação da pulsão, de uma forma
e das necessidades fisiológicas. Assim, substituta, e não diretamente, através do
Freud afirma que, desde a infância, surgem corpo. Trata-se de uma volatilização. Claro
excitações e tensões no corpo que são está que as formulações freudianas sobre
satisfeitas por um objeto externo em um o recalque e a sublimação vão além das
primeiro momento. Essa satisfação fica como posições firmadas em 1914/15, e atravessam
uma marca, uma inscrição. Quando uma nova toda a sua obra. No que diz respeito à
tensão semelhante surgir, a tendência será a de sublimação especificamente, Freud não
buscar uma satisfação análoga. Dessa forma, tem uma posição única. No entanto, para
Freud demonstra que a sexualidade surge o objetivo deste trabalho, serão utilizadas
como uma tensão no nível do corpo, que as formulações desse período no sentido
dispara certa marca psíquica. Essa articulação de se poder traçar um paralelo entre esses
entre corpo e psiquismo é o que ele chama dois destinos pulsionais e sua relação com a
de pulsão. Em um segundo momento, a sexualidade e a hostilidade.
sexualidade se torna independente do objeto
externo, e a satisfação é buscada através do Entende-se, então, que a formulação dos
próprio corpo do sujeito, o que caracteriza destinos pulsionais permite supor que, a
o autoerotismo. Nesse período, a fonte e o partir do recalque das pulsões parciais,
objeto da pulsão coincidem. O autoerotismo passa a existir uma nova possibilidade para
é sucedido pelo narcisismo, quando o ego a perversidade-polimorfa, que é a satisfação
se torna o objeto da pulsão. Em todo o simbólica, na qual se perde a dimensão
transcorrer da sexualidade infantil, Freud corporal. Isso constitui a sublimação da
caracteriza a pulsão como perverso-polimorfa sexualidade. Nesse sentido, o que se sublima
no sentido de que todas as fontes corporais são as pulsões parciais de ver, de exibir-se,
estão em igualdade de condições. O fim da de maltratar e de ser maltratado. Sublimar
satisfação diretamente corporal da pulsão essas pulsões significa que outros objetos
sexual perverso-polimorfa ocorre através podem ser constituídos como símbolos dos
do recalque, que impossibilita a realização objetos originais. Entendemos que é por isso
pulsional. Com isso, a sexualidade só será mesmo que Freud usa a palavra sublimação
satisfeita no nível do corpo, novamente, a para definir esse processo, no sentido da
partir da puberdade, com a genitalidade. evaporação, da passagem do sólido ao gasoso.
Quando as pulsões parciais não podem ser
O recalque impõe a não satisfação das satisfeitas, e, por isso, são recalcadas, depois
pulsões parciais, e, com isso, possibilita a do complexo de Édipo, existe a possibilidade
transformação do narcisismo e a castração. de que sejam sublimadas, no sentido de
Assim, Freud (1915/1989) coloca o recalque que aí serão satisfeitas como uma abstração,
como um destino pulsional. As pulsões uma evaporação. É evidente que o processo
sexuais infantis não podem ser satisfeitas, de simbolização se inicia anteriormente
e o recalque expulsa os representantes ao Édipo. A partir disso, pode-se observar
pulsionais para o inconsciente. Ainda assim, que a sexualidade em Freud tem, além da
o recalque não é uma ação única, e os genitalidade, uma dimensão criativa, de
representantes pulsionais podem retornar realizações, ou seja, é a sexualidade sublimada
através de derivados. Além disso, define que viabiliza as realizações humanas no
outros destinos para que o sujeito possa se plano da cultura. No entanto, para que isso
defender das pulsões, entre eles, a sublimação aconteça, é preciso que os objetos primários
como um destino posterior ao recalque. O tenham sido recalcados, o que marca a

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diferença entre recalque e sublimação. Em a impossibilidade da saída do narcisismo.


1914, Freud tenta diferenciar esses destinos Nesse sentido, Freud (1911/1989) afirma,
pulsionais, especificando melhor cada um na análise de Schreber, que o narcisismo é
desses mecanismos; afirma que a sublimação uma dessublimação. Assim, a sublimação só
é um mecanismo posterior ao recalque; seria possível se o sujeito se afastasse desse
logo, é preciso que haja recalcamento modelo primário de relação com objeto
antes para poder se ter a capacidade de paterno; do contrário, não há a possibilidade
sublimar. Ao mesmo tempo, Freud observa de metabolizar a agressividade.
que o conteúdo pulsional sublimado não
é o mesmo que é recalcado, e que nem De forma semelhante, também no Homem
toda pulsão pode ser sublimada, pois uma dos Ratos está presente o impedimento da
parte da sexualidade deve ser satisfeita: a sublimação da agressividade. Ainda que o
sexualidade genital. Por outro lado, quanto sintoma obsessivo faça referência a uma
ao recalcamento secundário que se dá no fim simbolização dada à formação de substitutos,
do complexo de Édipo, os objetos primários não se trata de uma realização pulsional,
são recalcados, abrindo portas para outros e sim, da simbolização como retorno do
objetos, através dos quais a sexualidade irá recalcado. Tal como afirma Castiel (2007),
se satisfazer no futuro. Do contrário, se não à diferença do retorno do recalcado, a
há recalque, o sujeito fica alienado em uma sublimação contém em si uma satisfação
posição narcisista, na qual os objetos são decorrente da realização da pulsão, enquanto
simulacros de si mesmo. o retorno do recalcado é uma impossibilidade
de realização pulsional. No entanto, não
Justamente aí, diante dessas possibilidades de há dúvida de que existe uma capacidade
destinos pulsionais no complexo de Édipo, simbólica constituída na neurose obsessiva,
é que vamos falar da agressividade. Uma não observada na paranoia.
pulsão parcial, na melhor das hipóteses, seria
recalcada e/ou sublimada. No entanto, algo Nesse caso, a intensidade do ódio sentido
ocorre na paranoia e na neurose obsessiva para com o pai impediu o recalque do
que impossibilita esses destinos. objeto paterno (que ficou para sempre
como o obstáculo à concretização dos
Em Schreber, ainda que se perceba um desejos eróticos do paciente), deixando-o
excesso de hostilidade no pai, o que importa, capturado. A fim de que pudesse lidar com
aqui, é o seu efeito no filho, na medida em o ódio em relação a esse pai visto como
que é colocada em ato, no nível do corpo. obstáculo aos seus desejos eróticos, Ernst
Podemos supor que isso impossibilita o lançou mão de mecanismos como a dúvida e
recalque das pulsões parciais. Em termos de a formação reativa, assim como de destinos
destinos pulsionais, a hostilidade vivida no pulsionais, da transformação no contrário e
real do corpo aparece como transformação da volta contra si mesmo.
no contrário, e volta-se contra si mesmo: na
passividade, no masoquismo. A agressividade Diferentemente desses modelos, temos
posta em ato não permite sua simbolização, em Kafka a possibilidade de simbolização
e, dessa forma, só pode ser vivida como da agressividade vivida na relação parental
masoquismo. que aparece concretamente na criação
literária, ainda que, em muitas situações
O excesso de hostilidade faz com que e produções de Kafka, a agressividade
não se possa recalcar o objeto para o diretamente dirigida ao pai fique evidente.
qual a hostilidade é dirigida. Isso implica O papel da criação literária e das amizades

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fala a favor de um processo de simbolização transformação pulsional. Da mesma maneira,


da agressividade, enquanto as tendências Joel Birman (1997) entende que a direção
suicidas, a impossibilidade de relações da cura se relaciona com a simbolização
amorosas como queria, o ressentimento e das forças pulsionais. Castiel (2007) fala da
a impossibilidade de satisfação no trabalho sublimação como um dos dispositivos de
falam de uma parte da agressividade que que dispomos na clínica para a simbolização.
não pôde ser transformada; houve em Kafka, Entendemos que a sublimação é o destino
portanto, uma simbolização da agressividade pulsional que se relaciona à satisfação
até onde o ressentimento permitiu. pulsional proporcionada pela simbolização
das pulsões, tal como demonstramos na
Lacan (1986) faz ver as consequências que página anterior, e assim esse poderia ser
tem um pai severo para a constituição do um destino que se relacionasse à direção
psiquismo do sujeito. Com efeito, os três da cura. Com isso, não estamos afirmando
exemplos citados dão mostra disso. Podemos que faz parte da experiência analítica uma
dizer que a neurose obsessiva e a paranoia higienização do sujeito ou que o analista
são impossibilidades de transformar essa tenha ideias de perfeição. Estamos tentando
condição. No entanto, diante do trágico, trabalhar os impasses causados na clínica à
é necessária a criação de algo novo, uma elaboração das tendências agressivas. Dentro
possibilidade sublimatória que volte o olhar desse contexto, a hostilidade constitutiva
para o horizonte do desejo. do sujeito, que aparece com especial
intensidade na neurose obsessiva e na
No que diz respeito à clínica psicanalítica, paranoia, torna-se, muitas vezes, um impasse
podemos dizer que a direção da cura se para a experiência analítica. Com relação
relaciona à transformação pulsional no à cura, a transformação das tendências
sentido de um funcionamento psíquico agressivas, que tem no corpo uma satisfação
heterogêneo, tal como afirmam diversos masoquista, poderia relacionar-se à abertura
autores. Luis Horstein (1981), por exemplo, dos canais de sublimação a partir de sua
afirma que a clínica psicanalítica deve ter simbolização. Esse é o papel da psicanálise:
uma preocupação com a direção da cura, resgatar o valor das possibilidades humanas
pois, de outra forma, preocupar-se-ia apenas de transformação, o que constitui a lógica
com questões filosofantes. O autor entende da esperança.
que a direção da cura relaciona-se a uma

O Homem dos Ratos, Schreber e Kafka: Destinos Possíveis para a Hostilidade


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PSICOLOGIA: Sissi Vigil Castiel, Débora Farinati, Liege Horst Didonet, Maria Lucia Fortes Moreira,
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Roberta Araujo Monteiro, Cláudia Rocha, Daniela Trois Feijó, Juliana Martins Costa & Luciana Lopez Silva
2012, 32 (4), 808-825

Sissi Vigil Castiel


Psicóloga, psicanalista, doutora em Psicanálise pela Universidade Autônoma de Madri, membro pleno, Diretora
de Ensino, Supervisora e Coordenadora de seminários da Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre
– RS- Brasil.
E-mail: scastiel@terra.com.br

Débora Farinati
Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS. Psicóloga, psicanalista, membro titular e diretora administrativa da
Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS – Brasil.
E-mail: debfarinati@yahoo.com.br

Liege Horst Didonet


Psicóloga e especialista em Saúde Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Psicanalista em
formação pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS – Brasil.
E-mail: liegedidonet@yahoo.com.br

Maria Lucia Fortes Moreira


Psicóloga e especialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica pela Unisinos. Psicanalista em formação
pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre –RS – Brasil.
E-mail: mluforts@terra.com.br

Roberta Araujo Monteiro


Psicóloga e mestranda em Psicologia Clínica (Bolsista CNPq - PUCRS), Psicanalista em formação pela Sigmund
Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS - Brasil.
E-mail: roberta.monteiro@live.com

Cláudia Rocha
Psicóloga e psicanalista em formação pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS - Brasil.
E-mail: rochapsico@gmail.com

Daniela Trois Feijó


Psicóloga e psicanalista em formação pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS - Brasil.
E-mail: danitrois@gmail.com

Juliana Martins Costa


Psicóloga e psicanalista em formação pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS - Brasil.
E-mail: julianamartinscosta@gmail.com

Luciana Lopez Silva


Psicóloga e psicanalista em formação pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS - Brasil.
E-mail: lopez.lu@hotmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Frei Henrique Trindade 430, Boa Vista, Porto Alegre – RS - Brasil. CEP: 90480140

Recebido 27/08/2010, 1ª Reformulação 26/12/2011, Aprovado 17/06/2012.

O Homem dos Ratos, Schreber e Kafka: Destinos Possíveis para a Hostilidade


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PSICOLOGIA: Sissi Vigil Castiel, Débora Farinati, Liege Horst Didonet, Maria Lucia Fortes Moreira,
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Roberta Araujo Monteiro, Cláudia Rocha, Daniela Trois Feijó, Juliana Martins Costa & Luciana Lopez Silva
2012, 32 (4), 808-825

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