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O Homem Dos Ratos, Schreber e Kafka PDF
O Homem Dos Ratos, Schreber e Kafka PDF
Resumo: A clínica psicanalítica impõe a observação, por vezes muito presente em determinados quadros,
das tendências hostis que aparecem de forma manifesta ou fantasiada. Partindo dessa constatação e
sustentado na releitura dos textos freudianos, este trabalho propõe uma reflexão sobre as tendências
agressivas e suas implicações na clínica da neurose obsessiva e da paranoia, já que entendemos que a
intensidade da hostilidade nessas patologias se coloca, muitas vezes, como um impasse para o tratamento.
Os quadros clínicos serão exemplificados por meio do caso do Homem dos Ratos e da história de Schreber.
Posteriormente, passaremos a discutir dois textos de Kafka, a fim de indicar uma saída para a elaboração
da hostilidade no sentido de simbolizar e de sublimar as tendências agressivas.
Palavras-chave: Transtorno obsessivo compulsivo. Hostilidade. Sublimação. Psicanálise. Psicopatologia.
Mecanismos de defesa.
Abstract: The psychoanalytical practice demands the observation of acted or fantasized hostile tendencies
which are very common in certain cases. We believe that the intensity of hostility has an increase in cases
like obsessive neurosis and paranoia and often become an impediment to treatment. Considering such
matters and based on Freud’s texts, this paper proposes a reflection on the aggressive tendencies and their
implications in the treatment of obsessive neurosis and paranoia. The clinical frames will be exemplified
by The Rat Man and the history of Schreber. Subsequently we will discuss two texts of Kafka, to indicate an
answer to the elaboration of hostility towards symbolization and sublimation of the aggressive tendencies.
...”Da vez Keywords: Obsessive compulsive disorder. Hostility. Sublimation. Psychoanalysis. Psychopathology. Defense
primeira em que mechanism.
me assassinaram
Perdi um
jeito de sorrir que Resumen: La clínica psicoanalítica impone la observación, algunas veces muy presente en determinados
eu tinha... cuadros, de las tendencias hostiles que aparecen de forma manifiesta o fantaseada. Partiendo de esa
Depois, constatación y sostenido en la relectura de los textos freudianos, este trabajo propone una reflexión sobre
de cada vez que las inclinaciones agresivas y sus implicaciones en la clínica de la neurosis obsesiva y de la paranoia, ya
me mataram,
Foram
que entendemos que la intensidad de la hostilidad en esas patologías se coloca, muchas veces, como un
levando qualquer impasse para el tratamiento. Los cuadros clínicos serán ejemplarizados por medio del caso del Hombre
coisa minha”... de los Ratones y de la historia de Schreber. Posteriormente, pasaremos a discutir dos textos de Kafka, con
el fin de indicar una salida para la elaboración de la hostilidad en el sentido de simbolizar y de sublimar
Mario Quintana,
las inclinaciones agresivas.
Soneto XVII
Palabras clave: Trastorno obsesivo compulsivo. Hostilidad. Sublimación. Psicoanálisis. Psicopatología.
Mecanismos de defesa.
Nas Novas Conferências Introdutórias sobre análise quando integrados com os elementos
Psicanálise (1932/1989, p.129), por exemplo, da segunda tópica.
ele se pergunta: “Por que necessitamos de
tempo tão longo para nos decidirmos a Para o objetivo deste trabalho, faremos um
reconhecer uma pulsão agressiva? Por que é percurso pelos textos teóricos freudianos,
que hesitamos em utilizar para a teoria fatos para depois abordar o modo como as
que eram evidentes e familiares a qualquer tendências agressivas aparecem na clínica,
pessoa?” Esse comentário de Freud refere- através da neurose obsessiva e da paranoia.
se à ideia de que a postulação da segunda Os quadros clínicos serão exemplificados
tópica delimita um lugar específico para a através do Homem dos Ratos e da história
agressividade como um substrato pulsional de Schreber. Posteriormente, passaremos a
único que caracterizaria a pulsão de morte. dois textos de Kafka, a fim de indicar uma
No entanto, evidências teóricas anteriores saída para a elaboração da hostilidade no
demonstram uma preocupação de Freud sentido da simbolização. Pensamos que
com o tema desde muito cedo, começando nessas patologias exista uma impossibilidade
com a observação das tendências hostis que de desligamento do objeto paterno devido à
fazem parte do tratamento analítico. Isso intensidade da hostilidade presente de parte
se explicita em Dora (Freud, 1905a/1989), a parte, o que leva o psicanalista a indagar:
quando Freud afirma que a hostilidade deve como é possível a fusão da agressividade com
ser despertada e utilizada pela análise ao a sexualidade nesses casos? Do ponto de vista
ser tornada consciente. A hostilidade faria da direção da cura, é necessária a elaboração
parte do que ele denominou, mais tarde, dessas tendências. O trabalho analítico se
transferência negativa. defronta com a volta contra si mesmo e a
transformação no contrário como destinos
Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade pulsionais, particularmente utilizados por
(1905b/1989). Freud afirma que as tendências esses pacientes, o que muitas vezes representa
agressivas apareciam junto à sexualidade; um impasse no que diz respeito à direção da
portanto, nesse momento, os fenômenos cura, dada a impossibildade de simbolização
da hostilidade não foram tratados a partir dos impulsos hostis a partir desses destinos.
de uma pulsão específica, talvez, por isso, o Dentro desse contexto, interessa-nos abordar
comentário de Freud nas Novas Conferências de que forma a simbolização das tendências
Introdutórias sobre Psicanálise (1932/1989). agressivas como sublimação da pulsão estaria
relacionada à direção da cura como uma
Na verdade, a hipótese de uma pulsão alternativa para a elaboração da hostilidade.
agressiva autônoma foi emitida por Adler em Em função dessa hipótese de trabalho,
1908, mas foi recusada por Freud. Mesmo abordamos os casos clínicos da paranoia e
que a autonomia pulsional da agressividade da neurose obsessiva e, por outro lado, os
em relação à sexualidade só tenha sido textos de Kafka.
especificada por ele a partir da viragem de
vinte, não se pode dizer que as formulações A agressividade em Freud
feitas anteriormente a esse período sejam
destituídas de importância. Pelo contrário, Foi em função das manifestações hostis e
todo o tema dos destinos pulsionais, como agressivas que, necessariamente, incidiam
formas de se defender da hostilidade, durante o tratamento analítico, que Freud
representam possibilidades férteis para uma descobriu a resistência. Isso, por si só, já
metapsicologia da agressividade, bem como nos permite dimensionar a centralidade e a
para a elaboração das tendências hostis na importância que a temática da agressividade
tem no campo psicanalítico, participando sua relação com os meios de alcançar esse
diretamente das condições que promovem, objetivo teria sido retirada deles pela ‘pulsão
agressiva’. Apesar de toda a incerteza e
viabilizam e sustentam a experiência analítica. obscuridade de nossa teoria das pulsões, eu
A experiência clínica da agressividade preferiria, no momento, aderir ao ponto de
na transferência permitiu a Freud o vista usual, que deixa a cada pulsão o seu
próprio poder de se tornar agressiva... (1909
desenvolvimento de outros conceitos e ideias,
a/1989, pp. 145-146)
como, por exemplo, a noção de ambivalência,
que foi definida como coexistência, no
mesmo plano, de tendências, de atitudes Freud se recusa a aceitar a existência de uma
e de sentimentos opostos, por excelência, pulsão agressiva independente e autônoma,
o amor e o ódio (Laplanche & Pontalis, pois, no seu entender, cada pulsão tem o
2004); de igual modo, o complexo de poder de se tornar agressiva. Essa mesma
Édipo, que, desde a Interpretação dos linha de pensamento se encontra em sua
Sonhos (Freud, 1900/1989) é concebido contribuição ao tema da hostilidade em
como uma forma de apreender o problema 1905, nos Três Ensaios sobre a Sexualidade,
relativo à conjunção de desejos amorosos e quando fala na pulsão de dominação. Esta
hostis. Também na descrição do caso Dora se situa na origem da crueldade infantil, e,
(1905/1989), percebe-se amplamente a em princípio, não teria por alvo o sofrimento
articulação entre as constelações amorosas alheio, mas simplesmente não o levaria em
e hostis do complexo de Édipo. Ao mesmo conta. Isso quer dizer que provocar dor em
tempo, vê-se a participação da agressividade alguém não está entre os objetivos pulsionais
na transferência estabelecida pela paciente da criança, e sim, que o ímpeto de dominação
com relação a Freud, o que leva à interrupção pode implicar a supressão do outro que se
da análise. coloca como obstáculo para a dominação
visada sobre algo. Freud situa a origem
No que diz respeito a uma metapsicologia dessa pulsão na organização sádico-anal do
da agressividade e seu desenvolvimento no desenvolvimento da libido.
sujeito, em um primeiro momento, Freud
não a definiu em termos de uma pulsão O texto As Pulsões e suas Vicissitudes representa
específica, pois ele entendia que isso levaria a culminância do pensamento freudiano sobre
a beneficiar um tipo específico de pulsão a agressividade no contexto da primeira
em detrimento de outro, tal como atesta seu tópica, e constitui um artigo de importância
comentário no Historial do Pequeno Hans capital para a compreensão desta. No que
sobre a postulação de uma pulsão agressiva diz respeito aos destinos pulsionais, Freud
por Adler: trata da transformação no contrário e da volta
contra si mesmo como maneira específica de
Não posso convencer-me a aceitar a se defender de tendências pulsionais, como
existência de uma pulsão agressiva especial a agressividade, por exemplo. O primeiro
ao lado das pulsões familiares de auto- desses destinos pode-se perceber em dois
conservação e sexuais, e de qualidade igual
à destas. Parece-me que Adler promoveu processos diferentes, a mudança da atividade
erradamente a uma pulsão especial e para a passividade e a mudança do conteúdo.
autosubsistente, o que é, na realidade, um Já a volta contra si mesmo se dá no campo
atributo universal e indispensável de todas
do objeto da pulsão. Esses dois processos
as pulsões – seu caráter pulsional premente,
o que poderia ser descrito como a sua ocorrem na transformação do sadismo em
capacidade para iniciar movimento. Nada masoquismo.
restaria, então, das outras pulsões, a não
ser a sua relação com um objetivo, pois a
Freud situa tanto a volta contra si mesmo das tendências agressivas teria alguma relação
como a transformação no contrário como com a direção da cura, aspecto esse que
formações narcisistas, afirmando: será retomado ao final do trabalho e que só
indicamos aqui a propósito de uma de nossas
Se levarmos em conta a fase do sadismo hipóteses de trabalho.
preliminar e narcisista que construímos,
estaremos aproximando-nos de uma
compreensão mais geral – a saber, que as
Já na vigência da segunda dualidade pulsional,
vicissitudes pulsionais, que consistem na a agressividade tem um lugar mais destacado.
volta contra si mesmo e a transformação É a parte da pulsão de morte posta a serviço
no contrário, se acham na dependência dos propósitos de Eros, voltada para fora com
da organização narcisista do ego e trazem
o cunho dessa fase. Correspondem talvez o auxílio da musculatura, que Freud chama
às tentativas de defesa que, em fases mais pulsão agressiva. Isso ocorreria da seguinte
elevadas do desenvolvimento do ego, são maneira: a parte da pulsão voltada para fora
efetuadas por outros meios (1915/1989,
seria o sadismo propriamente dito; a outra
p.153)
parte mantém-se no organismo, onde está
ligada libidinalmente pelo auxílio da excitação
A afirmação de Freud coloca em destaque
sexual, o que caracteriza o masoquismo
a ideia de que as vicissitudes pulsionais da
originário. Chamamos a atenção para a
volta contra si mesmo e da transformação
postulação de Freud, que é clara quanto ao
no contrário são maneiras específicas de
que ele chama de agressividade e sua diferença
lidar com o ódio, como o sadismo e o
para os fenômenos da destrutividade, presentes
masoquismo. Em outras palavras, o ódio
na mudez da pulsão de morte que aparecem
não é fusionado com a sexualidade; nesses
nas condutas de atuação, por exemplo. Com
destinos, ele é tratado narcisicamente, é
isso, quer salientar-se a diferença entre a
transformado em amor ou voltado para
destrutividade muda, característica da pulsão
dentro do próprio sujeito. Por isso mesmo,
de morte, e a agressividade presente em sua
esses desenvolvimentos teóricos possibilitam-
relação com o desenvolvimento da libido.
nos pensar que a patologia consiste na
Nessas situações, a agressividade apareceria
manutenção desses modos de defesa com
fusionada com a libido em maior ou menor
relação à hostilidade em detrimento do
quantidade, fazendo parte de estruturas
recalcamento e da sublimação, descritas por
neuróticas tais como a neurose obsessiva, por
ele, na afirmativa acima, como tentativas
exemplo, nas quais a fantasmatização está
mais elevadas de defesa. Nesse sentido,
em questão. Para a finalidade deste trabalho,
poder-se-ia pensar que Freud entende
iremos centrar-nos nas questões relativas às
que a sublimação e o recalcamento são
tendências fantasmáticas e manifestas de
formas mais elaboradas de lidar com as
hostilidade presentes na neurose obsessiva e na
tendências agressivas do que a volta contra
paranoia, portanto, nos quadros clínicos que
si mesmo e a transformação no contrário.
se relacionam muito mais com a problemática
Justamente essa postulação de Freud põe em
da agressividade e de sexualidade do que com
destaque a vinculação desses dois últimos
o mortífero em seu estado mudo.
destinos pulsionais com a organização
narcisista, aspecto que não estaria presente
Em O Ego e o Id, Freud (1923/1989), a partir
na sublimação, tal como ele afirma no caso
da hipótese da dualidade pulsional entre Eros
Scherber, quando diz que a sublimação é um
e a pulsão de morte, afirma que as duas classes
progressivo afastamento do narcisismo. Essas
de pulsão se unem e se fundem, de forma que
postulações de Freud nesses dois textos são o
o impulso destrutivo pode ser neutralizado,
que nos possibilita pensar que a sublimação
sendo desviado para o mundo externo através
a duas pessoas de quem ele gostava muito: se pensasse em tais desejos o acometia, por
o pai e uma dama a quem muito admirava. exemplo: o pai deveria morrer.
Estava consciente, também, de impulsos
compulsivos, tais como cortar a garganta
com uma lâmina (1909/1989, p.163) O pai, figura central na história, era um
homem de excelentes qualidades, embora
Esse temor, núcleo de toda a conflitiva pudesse ser, ocasionalmente, impetuoso e
apresentada por Ernst a Freud, decorria da violento. Pai e filho, na realidade, haviam
ambivalência em relação aos sentimentos vivido como bons amigos, à exceção de
que nutria por esses que constituíam os um único aspecto: o pai assumira para o
objetos centrais do drama e da trama de sua filho expressiva oposição à sua vida erótica.
história, ou seja, o pai e a dama. No centro Do sentimento de que o pai constituía um
do agravamento de sua neurose obsessiva, obstáculo à satisfação de sua sexualidade,
estava uma fantasia com ratos, da qual derivou sua hostilidade, que se expressaria
derivou o nome pelo qual esse caso clínico pelo temor de que algo pudesse acontecer
ficara conhecido, a saber: depois de ouvir, ao pai, mesmo após a sua morte. A
nas manobras militares de que participava, passagem que relatamos a seguir demonstra
uma cruel tortura relacionada a ratos contada como Ernst foi estabelecendo as conexões
por um hostil capitão, Ernst passou a imaginar entre seus desejos eróticos e a ideia de que
o castigo sendo infligido a duas pessoas, a o pai a eles se opunha. Quando ele tinha
dama, que lhe era cara, e a seu pai. A partir por volta de três, quatro anos de idade,
desse fato, desenvolveu-se uma série de apanhara do pai por ter mordido alguém,
ações de Ernst a fim de proteger o pai e a provavelmente sua babá. Como reação a
dama de tal tortura. essa ação violenta do pai, Ernst, enfurecido,
proferiu xingamentos enquanto apanhava,
Sua história de vida foi marcada por um porém, “como não conhecia impropérios,
despertar precoce da sexualidade, sendo chamou-o de todos os nomes de objetos
esse fato relatado a Freud como de muita comuns que lhe vinham à cabeça e gritou:
relevância em seu desenvolvimento. Dá ‘Sua lâmpada! Sua toalha! Seu prato! E assim
como exemplo um episódio, tendo ele na por diante’” (Freud, 1909/1989, p.52).
ocasião entre quatro e cinco anos, no qual
recebera da governanta a liberação para Posteriormente, Freud arrisca estabelecer
entrar debaixo de sua saia e tocá-la em seus uma ligação entre a má conduta que seria
genitais e na parte inferior de seu corpo, com a masturbação e a repreensão (surra)
a exigência de que ele não contasse isso a impetrada pelo pai como uma censura a esse
ninguém. Desde então, ele passou a ter uma ato. Diante do ataque de fúria de Ernst, o pai,
“curiosidade ardente e atormentadora de transtornado, interrompe a surra e exclama:
ver o corpo feminino” (Freud, 1909/1989, “O menino ou vai ser um grande homem,
p.14). Relata que, desde os seis anos, “sofria ou um grande criminoso!” (1909/1989,
de ereções” (Freud, 1909/1989, p. 166), e p.52). Essa cena, de acordo com Ernst,
associa essa sexualidade precoce às ideias ficara marcada permanentemente tanto em
que vieram a atormentá-lo, afirmando que, si mesmo quanto no pai, pois conta que,
já nessa época, tinha a ideia mórbida de que desde esse dia, ele jamais tornou a surrá-lo,
seus pais conheciam seus pensamentos. Ao por ter percebido mudança em seu caráter.
mesmo tempo em que percebia seu forte Freud diz, sobre o ocorrido:
desejo de ver nuas determinadas moças, um
A partir daquela época, tornou-se um
sentimento estranho de que algo aconteceria
covarde, por medo da violência de sua
própria raiva. Aliás, por toda sua vida, Os conflitos de sentimentos no Homem
teve um medo terrível de pancadas, e dos Ratos amalgamavam-se; o ódio à
costumava agachar-se e esconder-se,
cheio de terror e indignação, quando um dama estava ligado ao afeiçoamento ao
de seus irmãos ou irmãs era espancado pai, assim como o ódio ao pai ligava-se
(1909/1989, p.208) inevitavelmente ao seu amor pela dama.
Sobre isso, Freud afirma: “Sabemos que
O pai, ao mesmo tempo amado por Ernst, o amor incipiente com freqüência é
passa a constituir objeto de sua ira, ira percebido como o próprio ódio, e que o
essa inadmissível em sua consciência pela amor, se lhe é negada satisfação, pode, com
culpa que lhe imputava e que encontrou facilidade, ser parcialmente convertido em
expressão em seus pensamentos de que ódio”. Em Ernst, o amor não conseguiu
algo pudesse acontecer ao pai. suplantar o ódio, apenas baniu-o para o
inconsciente através da formação reativa, e
Diversas experiências acabaram por reforçar lá, protegido de ser removido pelas ações
a ideia mágica de que seus pensamentos da consciência, persistiu, cresceu e infiltrou-
se davam a conhecer aos pais, ficando se em sua vida, produzindo um amplo
ele convencido da onipotência de seu espectro de manifestações sintomáticas.
amor e de seu ódio, o que o compeliu a
superestimar os efeitos de sua hostilidade
Schreber
contra o mundo externo. O ódio, de acordo
Em 1911, Freud publicou o trabalho Notas
com Freud, precisa necessariamente ter
Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico
uma fonte, e descobri-la resultava em um
de um Caso de Paranóia (1911/1989), fruto
grande problema para Ernst. Diz Freud:
do estudo detalhado do livro de memórias
“Podemos considerar o recalcamento
escrito por Daniel Paul Schreber (1842-1911),
de seu ódio infantil contra o pai como o
jurista renomado e presidente da Corte de
evento que colocou todo o seu modo de
Apelação da Saxônia. Este apresentou sinais
vida subseqüente sob domínio da neurose”
de distúrbios mentais depois de ter sido
(1909/1989, p. 239). Entendemos que,
derrotado na eleição em que disputava o
quando Freud se referia ao recalcamento
cargo de candidato do partido conservador
do ódio, estaria colocando em questão a
(Roudinesco & Plon, 1998). De acordo com
impossibilidade de que um ódio intenso
Carone (1995), em um artigo irônico de
fosse integrado aos componentes amorosos, um jornal local, a matéria intitulada Quem
permanecendo desfusionado da libido. conhece esse tal Dr. Schreber? evidenciou
o anonimato de Schreber, em oposição aos
Ernst adoeceu na idade de vinte anos, méritos de seus antepassados e à celebridade
aproximadamente, ao se deparar com o de seu pai. Era o ano 1884, Schreber estava
conflito entre o desejo paterno de que ele com 42 anos, e foi hospitalizado sob os
se casasse com uma mulher de sua escolha cuidados do reconhecido Dr. Flechsig, com
e o desejo de se casar com a dama a quem diagnóstico de hipocondria grave, tendo
ele amava há tanto tempo. Os sentimentos permanecido internado por seis meses. Após
para com o pai, assim como os que nutria a alta, viveu um período de oito anos que
pela dama, eram carregados de amor e considerou feliz, embora ofuscado pelas
ódio. Acrescentamos, além disso, que, nesse frustrações da esperança de ter filhos. Em
conflito, reatualiza-se a ideia infantil de que 1893, Schreber foi nomeado presidente
o pai era quem impedia a satisfação de seus da Corte de Apelação de Dresden, o que
desejos eróticos. representava o ponto máximo de sua
desinteressante. Mas ele a usou como matéria forma plangente, incessante, que me dessem
literária para descrever o mundo alienado água; certamente, não era pelo fato de eu ter
em que vivemos, como era essa língua. sede, mas em parte talvez para incomodar
Além disso, inventou um narrador que não e em parte para divertir-me. Depois de
é mais onisciente, mas insciente; ele não não terem surtido efeito algumas ameaças
sabe. Como ele, também o personagem e violentas, tiraste-me da cama, levaste-me à
o leitor não sabem. Todos são pegos pela varanda e ali me deixaste um instante, em
alienação, mas saímos do outro lado com camisola, sozinho diante da porta fechada”
uma experiência concreta do que é”. (Kafka, 1919/1995, p. 86).
e atividades que levam ao prazer desde a que caracteriza a sublimação é que ela trata
infância, independentemente da genitalidade de uma satisfação da pulsão, de uma forma
e das necessidades fisiológicas. Assim, substituta, e não diretamente, através do
Freud afirma que, desde a infância, surgem corpo. Trata-se de uma volatilização. Claro
excitações e tensões no corpo que são está que as formulações freudianas sobre
satisfeitas por um objeto externo em um o recalque e a sublimação vão além das
primeiro momento. Essa satisfação fica como posições firmadas em 1914/15, e atravessam
uma marca, uma inscrição. Quando uma nova toda a sua obra. No que diz respeito à
tensão semelhante surgir, a tendência será a de sublimação especificamente, Freud não
buscar uma satisfação análoga. Dessa forma, tem uma posição única. No entanto, para
Freud demonstra que a sexualidade surge o objetivo deste trabalho, serão utilizadas
como uma tensão no nível do corpo, que as formulações desse período no sentido
dispara certa marca psíquica. Essa articulação de se poder traçar um paralelo entre esses
entre corpo e psiquismo é o que ele chama dois destinos pulsionais e sua relação com a
de pulsão. Em um segundo momento, a sexualidade e a hostilidade.
sexualidade se torna independente do objeto
externo, e a satisfação é buscada através do Entende-se, então, que a formulação dos
próprio corpo do sujeito, o que caracteriza destinos pulsionais permite supor que, a
o autoerotismo. Nesse período, a fonte e o partir do recalque das pulsões parciais,
objeto da pulsão coincidem. O autoerotismo passa a existir uma nova possibilidade para
é sucedido pelo narcisismo, quando o ego a perversidade-polimorfa, que é a satisfação
se torna o objeto da pulsão. Em todo o simbólica, na qual se perde a dimensão
transcorrer da sexualidade infantil, Freud corporal. Isso constitui a sublimação da
caracteriza a pulsão como perverso-polimorfa sexualidade. Nesse sentido, o que se sublima
no sentido de que todas as fontes corporais são as pulsões parciais de ver, de exibir-se,
estão em igualdade de condições. O fim da de maltratar e de ser maltratado. Sublimar
satisfação diretamente corporal da pulsão essas pulsões significa que outros objetos
sexual perverso-polimorfa ocorre através podem ser constituídos como símbolos dos
do recalque, que impossibilita a realização objetos originais. Entendemos que é por isso
pulsional. Com isso, a sexualidade só será mesmo que Freud usa a palavra sublimação
satisfeita no nível do corpo, novamente, a para definir esse processo, no sentido da
partir da puberdade, com a genitalidade. evaporação, da passagem do sólido ao gasoso.
Quando as pulsões parciais não podem ser
O recalque impõe a não satisfação das satisfeitas, e, por isso, são recalcadas, depois
pulsões parciais, e, com isso, possibilita a do complexo de Édipo, existe a possibilidade
transformação do narcisismo e a castração. de que sejam sublimadas, no sentido de
Assim, Freud (1915/1989) coloca o recalque que aí serão satisfeitas como uma abstração,
como um destino pulsional. As pulsões uma evaporação. É evidente que o processo
sexuais infantis não podem ser satisfeitas, de simbolização se inicia anteriormente
e o recalque expulsa os representantes ao Édipo. A partir disso, pode-se observar
pulsionais para o inconsciente. Ainda assim, que a sexualidade em Freud tem, além da
o recalque não é uma ação única, e os genitalidade, uma dimensão criativa, de
representantes pulsionais podem retornar realizações, ou seja, é a sexualidade sublimada
através de derivados. Além disso, define que viabiliza as realizações humanas no
outros destinos para que o sujeito possa se plano da cultura. No entanto, para que isso
defender das pulsões, entre eles, a sublimação aconteça, é preciso que os objetos primários
como um destino posterior ao recalque. O tenham sido recalcados, o que marca a
Débora Farinati
Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS. Psicóloga, psicanalista, membro titular e diretora administrativa da
Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS – Brasil.
E-mail: debfarinati@yahoo.com.br
Cláudia Rocha
Psicóloga e psicanalista em formação pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS - Brasil.
E-mail: rochapsico@gmail.com
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