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O PRIMADO DA CONSTITUICAO * Pelo Prof. Doutor Rainer Wahl ** ‘A ideia de que a Constituic&o constitui a autoridade ma- xima de um dado ordenamento juridico positivo é tao antiga como a propria ideia de Constituicio e @ luta para a fixacio expressa de normas fundamentais. Um conceito dogmitico especifico sobre o primado da Constituigio formou-se apenas quando dele passaram a depender efeitos juridicos concretos, ou seja, a derrogagio do direito anterior contrério e @ incons- titucionalidade de leis futuras contrarias 4 letra e ao espirito da Constituigao. Estes efeitos nao estiveram, porém, sempre e de forma imediata ligados, na sua evolugao histérica, & exis- téncia de ume Constituicao. As figuras da inconstitucionalidade e da hierarquia das normas juridicas nao foram desde 0 inicio devidamente consideradas no pensamento juridico-constitucio- nal. Pelo contrario, a tradigio constitucional na Alemanha nasceu em grande parte com base em uma outra perspectiva. Os efeitos materiais da violagio da Constituigéo tornaram-se cinteressantes» e transcendentes do ponto de vista juridico, na '* ‘Tradugo do texto «Der Vorrang der Verfassung» [in:: Der Staat 20 (1981), 485-516], segundo a versio do Dr. Anténio Franclaco de Sousa, investigador no Instituto de Direito Pibiico da Universidade de Freiburg, RPA. Responsive! pele cadeira de Cléncta da Administracto € Preal- dente do Instituto de Cléncla da Administragio da mesma Univeretdade 2 RAINER WAHL altura em que puderam ser determinados de forma certa e juridicamente compulsiva, por conseguinte, em estreita ligagéo com a formagio de jurisprudéncia constitucional. O controlo normativo pressupée teoricamente o conceito de hierarquia das normas; assim como a doutrina da hierarquia do ordena- mento juridico busca os seus principios, na relacéo da Cons- tituigdio com a lei, apenas com o aparecimento da jurisprudén- cia constitucional(*). Este fenémeno tem amplas consequéncias para a discussio do problema do primado da Constituigéo (sobre este ponto, ver I). I O primado da Constituigio envolve no apenas o principio da coliséo formal em sua manifestagéo considerada seja como nulidade originaria, seja como nulidade superveniente (*), mas exprime-se na ordem constitucional, mais fortemente e de forma mais decisiva, na vinculatoriedade, normatividade e executorie- dade da Constituigéo perante a legislagéo ordindria (*). () Né&o restringindo a ligacho temporal entre a formacio da teoria da estrutura hierarquica do ordenamento juridico e 0 aparecimento de uma jurisprudéocia constituctonal, cfr. on Austria (1920), Th. Ohinger, Der Stufenbau der Rechtsordnung, 1975, 10 e 32; com pormenor sobre a evolucéo cfr. H. Haller, Die Priifung von Gesetzen, 1979, page. 1-72 () Com pormenor, cfr. Ch. Buckenfirde, Die sog. Nichtigkelt vertassumgswidriger Gesete, 1006, pigs 27 ¢ a8, ¢ Ch. Moench, Ver- fassungswidrige Gesetze und Normenkontrolle, 1977, pags. 118 ¢ 8. 142 @ ss, cada um com critica & ligacdo légico-juridica da doutrina do orde- namento com hiererqula de normas © nulkdade ipsc-fure. Comparar as concluates recentes de J. Ipeen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkelt von Norm und Einzelakt, 1980. (@) Moench (nota 2), pég. 148 sob cltacho de Hesse. Sobre 9 primado da Constituicho, a par da indicacSo na nota 2: J. Ipeen, Richter- recht und Verfassung, 1976, pig. 155; E. Campiche, Die Verfassungakon- forme Auslegung, 1978, pigs. 17 © sega. © PRIMADO DA CONSTITUIGAO 63 Para a ordem constitucional, é decisiva a relacho da orde- nagdo material da Constituigéo com a execugio processual através da jurisprudéncia constitucional: a Constituig&éo niio é apenas a sutoridade maxima, ela tornou-se no padréo jirt- dico para uma jurisprudéncia. Hate fendbmeno nao s6 deu origem a um novo destinatario das normas meteriais do Direito Consti- tucional mas, desta forma, a Constituig&o foi confortade, de modo anteriormente desconhecido, com os efeitos jurisdicionsis. O Direito Constitucional tornow-se eficaz através da jurispru- déncia constitucional, ao mesmo tempo que o caracter juridico da Constituigio aumentou; isto é aceite como factor positivo, e sobre isto nao é necessaria maior problematizaciio (‘). Deve aqui referir-se, pelo seu interesse, uma outra consequéncia no menos importante: a introdugéio e 0 desenvolvimento de uma ample jurisprudéncia constitucional apoia e concentra © significado da Constituicao, primeiramente nos aspectos juridico e jurisdicional. Assim, as observacdes que se possam fazer sobre a Constituicfio tém de tomar em consideracéo o facto de que todas as afirmacées sobre o significado da Constituigdo e sobre o seu contetido sao afirmagédes que se referem a um padrao juridico e a uma jurisprudéncia especial- mente sensivel. Das miltiplas consequéncias dessas circuns- tancias devem ser, aqui, trés delas analisadas. Como padréo de um processo constitucional, o Direito Constitucional tem de receber a maior clareza e exactidéo pos- siveis quanto ao Ambito das normas constitucionais. Por isso, © «padrao» tem de ver expressamente distinto do seu factor (*) R. Wahl/F. Rottmann, Die Bedeutung der Verfassung und der Vertassungsgerichtsbarkeit in der Bundesrepublik —im Vergleich sum 19. Jehrhundet und zu Weimer; in W. Conze/R. Lepelus, Historische Staatarecht der Bundesrepublik Deutschland, vol. IT, 1960 § 44. oF RAINER WAHL oposto e tem de ser interpretado perante o direito ordinério de forma distinta. No caso de se examinar a constitucionali- dade da lei, os conceitos juridico-constitucionais necessitam de de 1716 em Inglaterra, 0 vaanual de H, Vattel 1768, a argumentago em especial de J. Otis, A. Hamilton e J. Iredell nas colénias norte-americanas desde 1761/64; comparar sinda G. Jellinek, Allgemeine Staatslehre, 3. ed. 1918, page. 008 e seg. em especial pigs. 511 © seg. 68 RAINER WAHL tem de ser entendido historicamente e- sécio-psicologicamente de forma mais precisa do que a consciéncia da secundarizacao da legislacao e da limitacao do legislador (**). Este passo funda- mental pressupde contacto com um Legislador soberano: nas colénias norte-americanas, nas décadas que precederam a sua independéncia, nao foi apenas admitido teoricamente, mas tam- bém sentido na pratica, que um Parlamento também pode come- ter injustigas. O grande contributo da evolugao constitucional norte-americana consistiu em ter transmitido para a sua pré- pria Constituicio a experiéncia vivida num Parlamento transformades am lei ordingria, pigs. 928 e seg. e 335 e seg. © PRIMADO DA CONSTITUIGAO n WELCKER (**) e em especial MOHL, referindo-se aos Estados Unidos, caracterizaram a Constituigéo como o tipo superior de normas e desenvolveram explicitamente a ideia de , in: Das Staatalexikon, vol. 5, 1847, pags. 605, 702, 704; contra, Welcker no seu Art, «Staatsverfassungs in: Das Lexikon, vol. 12 (1848), pags. $63 e seg. e pigs. 373 © seg. nfo admitiu expressamente a idela de primazia.— As investigaces histé- Tico~dogméticas de Ipsen (nota 2), pigs. 23-87, baselam-se quase exclu- sivamente sobre a violagdo formal da Constituigdo ( in: «Sateterecht, Vélkerrecht und Pilitik», vol. 1, 1860, pigs, 66 © seg. em especial 81 e seg. © 88 © seg. (pég. 89 «Abstufung der Normen>). Comparar ainda, do mesmo autor, Staatsrecht des Kénigreichs Wirttem- beng, 2.* ed. 1840, vol. I, pgs, 90 e seg. e, ainda, do mesmo: Das Bundes- -Staatsrecht der Vereinigten Staaten von Nord-Amerika, 1824, pags. 101 e seg. 133-140. (*) Mohl, in: Staatarecht, Vélkerrecht und Politik (nota 24), Ags. 93 e seg.; do mesmo, Steatsrecht des Kénigreichs (nota 24), pigs, 823 e weg.; sfr. ainda M. Kéhler, Die Lehre vom Widerstandarecht in der deutachen Konstitutionellen Staatsrechtstheorle der ersten Halfte des 19. Jhs, 1973, pags. 82 e ss, (") G. Meyer/G. Anschiitz, Lehrbuch des Deutschen und Staats- rechts, 7 ed. 1019, pgs. 661 © seg. e 743; P. Laband, Das Staatsrecht des Deutschen Reiches, vol. 2, 5.* ed., 1911, pg. 39. Esta doutrina tomou em plena consideracSo o que, na aceitacio da violagso implicita n RAINER WAHL rigidez de revisiio — como sendo uma lei que nado contém qual- quer autoridade superior relativamente as outras leis, porque néo poderia haver uma vontade mais alta no Estado do que a do Soberano na qual, quer a validade da Constituicao, quer a da lei em geral, estao enraizadas. ou . 84 RAINER WAHL cionalidade) através de uma decisao judicial. Uma lei que nio foi declarada por um Tribunal Constitucional como inconstitu- cional é constitucional, sem que exista a possibilidade de uma outra qualificagéo no caso de nfo correspondéncia da lei nem com o espirito, nem com o programa da Constituigio. Daqui resulta: o Direito Constitucional néo se pode dissociar de uma estreita ligagéo com a jurisprudéncia constitucional, com o entendimento da Constituicéo na Teoria do Estado e da Consti- tuigfio, com a teoria politica e com a pratica em geral. A opiniéo apresentada deve ser examinada na tentativa de nao fazer esgotar o direito constitucional as fronteiras da sua fungéo de padrao na jurisprudéncia constitucional. Antes de mais, na discussio em torno da tarefa constitucional tam- bém sao de reconhecer na Lei Fundamental programas legais no justiciéveis e tarefas legais (*'). Em ligacio com o prin- cipio da igualdade, é cada vez mais sustentada a tese de que © contetido das normas juridico-constitucionais nio significa © mesmo que o 4mbito do controlo juridico-constitucional; isto 6, de que normas — padréo e normas de controlo podem ndo coincidir (**). Néio é por acaso que o principio da igualdade est4 tio intrinsecamente ligado a ideias de justiga e nfo se contenta com a dogmética constitucional de compreensio (") Cfr. E, Friesenhahan, Der Wandel des Grundrechtsverstindnis- ses, Verh, d. 60, DIT I, 1974, pég. G 13: , como padréo exclusivo do controlo jurisdicional-constitucio- nal (*). A causa do problema est4 todavia na interpretacao dos direitos fundamentais. Esta, nos casos de efeito irradiante, n&o pode determinar o contetido constitucional independente- mente ou abstraidamente da ponderacaio concreta de todas as circunstancias. Se se recusar uma ampla critica (*) & imagem do efeito transformador, entio, deve-se aceitar a questio da relacio existente entre direitos fundamentais e lei delimitadora como problema da ordenagdo proporcional de duas qualidades. Mas, também no caso de este principio fundamental, precisamente como no caso da ideia da concordéncia pratica e do rigoroso (*) Consequéncia imanente foi ultimamente aprovada por R. Wank, JuS 1980, pigs. 546 © seg. na busca de oritérios juridico-materiais para © . 90 RAINER WAHL judicial, pois isso implicaria uma m4 colocagéo do problema que nos interessa aqui (“). Nao se trata de saber se o Tribu- nal Constitucional Federal nao pode fazer uso, ou pode fazer uso apenas limitado, da sua competéncia de controlo mas, antes pelo contrario, de saber se o problema apresentado—o preenchimento material da Constituigado com um contetido apelativo-programatico — foi justamente apreciado. Seria um duplo erro pretender corrigir um excesso neste primeiro passo, através de um principio de reserva, num segundo passo. 3. Como é evidente, no fundo desta problematica esté a controvérsia em torno do método de interpretagéo da Consti- tuigéo e, deste modo, torno da ideia constitucional. Os efeitos transformadores (Wechsebwirkungen) da interpretacio da Constituigéo (— entendimento constitucional — 4mbito do contetido material da Constituigio—Ambito de competén- cia do Tribunal Constitucional —) sao, como tal, conhecidos. O ponto geométrico, que poderia proporcionar nesta estrutura de relagdes uma paragem, é um ponto de partida seguro de desvio que no foi todavia encontrado. A ampla discussio em torno do método da interpretacio e entendimento constitucional deve ser aqui exercida apenas por partes. Ela pode ser carac- terizada sob as designacées de interpretacdo ou concretizagio de direitos fundamentais da Constituigdo (°). Pela concretiza- Glo deve ser entendido o que ainda nio é claro, como contetido da Constituigio, incluindo a realidade «a ser ordenada» (7). A concretizagio apresenta-se como consecugdo constitucional, esgotamento e enriquecimento, como aperfeicoamento do direito, através do preenchimento total de programas normativos ("). (*) Sobre este ponto cfr. ainda Schlaich (nota 4), 1 A 2 Para © principio no seu conjunto, cfr. W.R. Schenke, NJW 1979, pégs. 1821/ 71324; do mesmo, Die Verfassungsorgentreue, 1977, page, 119 © seg. © N. Achterberg, DOV 1977, pAga. 649 © seg., nespectivamente m.w.N. (*) Ossenbihl (nota 62), pigs. 2105 e seg. mw.N. (") Hesse (nota 8), § 2 I, pig. 25 (") Assim, Ossenbihl (nota €2), pg. 2006, © PRIMADO DA OONSTITUICAO a E objecto de contorvérsia que este processo pode conduzir a uma crescente manipulagao da Constituigéo que anule o seu carfcter de ordenamento com o alargar do espago de criagio politica do Jegislador ("). Nesta controvérsia tem apenas interesse o aspecto central de que o enriquecimento da Constituigio é considerado pelos criticos precisamente ao contrfrio. Mas é certo que, através de uma ampla jurisdigdo e con- sequente esclarecimento do problema da interpretacio, a norma ganha ao mesmo tempo no seu contetido. O BGB (Cédigo Civil) também se apresenta, depois de 80 anos de jurisprudéncia, nos seus preceitos que. permanecem formalmente inalterados, ampla- mente diferente do que era no ano de 1900; raciocinio correspon- dente vale para a Constituicéo depois de 52 volumes de. juris- prudéncia constitucional. Do mesmo modo, existem grandes diferengas da extenséo da manipulacéo de uma norma. Isto depende de modo decisivo da intengéo com que é feita a inter- pretagio, neste caso, a interpretacao constitucional. Esta é — no caso da concretizacéio — orientada, na medida do possivel, para o respeito de diferentes valores e para o acolhimento de diferentes contetidos da estrutura material das relagdes da rea- lidade «a ordenar». Trata-se de uma orientagio para um momento especifico, com vista 4 ostentagio do preenchimento juridico de uma provisao constitucional ("). Este processo nio esta justificado e coberto pelo respeito do conhecimento metodo- (*) Béckenférde, NIW 1076, pigs. 2089/2097, all também, pAgs. 2009 e 2091 para compreenséio da Constitulgéo como Ordenamento-quadro («Rahmeuordaung>). (®) Cfr. Hesse (nota 58), § 1 II, pig. 19 e § 2 Tl, pag. 27.— As consequéncias de uma acentuada interpretacSo da Constitulgéo sfio que ‘mo Ambito das normasy existem relagdes de natureza diferente e, por isso, a esfera de interpretagéo constitucional tem de resultar diferente; cada preenchimento da Constituigéo aumenta ao meamo tempo o campo de aplicachio da diapoeicio constitucional, O problems decisive consiate nfo na caracterizacéo juridico-material mas em que, depols de uma decisio vinculatéria do Tribunal Constitucional Federal no sentido do 92 BAINER WAHL légico num motivo criador de cada interpretagio e, por con- seguinte, também da interpretagao constitucional. A questio dogmético-constitucional decisiva e genuina consiste em saber quem concretiza e qual a dose de criatividade que resulta de uma norma constitucional fragmentdria. A ostentag&io «cria- dora» na norma constitucional pode significar duas coisas dis- tintas: por um lado, concretizagio no sentido de interpretacdo de uma norma da Constituicéo, através da interpretagéo do Tribunal Constitucional; e, por outro lado, concretizagéo no sentido de visio ampla do impulso juridico-constitucional através do legislador. Como é evidente, pretende a doutrina da concretizagéo abranger apenas o primeiro dos significados referidos. Mas o problema est4 na delimitagio dos dois pro- cessos. Na caracterizacio da interpretagio constitucional como Processo de concretizagio, fica-se sob a ameaga de se perder esta diferenga entre os dois processos criadores da «ostentagio» da Constituigfio e, assim, de os motivos serem removidos a favor da complementagao da Constituicéo na via de interpre- tacio. Na compreensio da Constituigéo como ordenamento espa- cial, o processo de preenchimento das normas constitucionais através da progressiva jurisdicio acaba mais cedo. Também nele é naturalmente exigivel uma fixagdo vinculatéria sobre © contetido das normas constitucionais; mas, ao mesmo tempo que esta fixagio do contetido se orienta compreensao do «quadro», a visdo orienta-se sempre também as alterna- tivas que esta fixagdo abriu e deve abrir ao legislador. Uma «compreensiio do quadro» (Rahmenverstindnis) exige sempre uma dupla afirmagio: sobre o que esta fixado e sobre o que fica em aberto (). Uma «compreensiio do qua- reconhecimento juridico da dispostg&io verificada, o § 31 de BVerfGG acaba por reflectir determinades Hmites para o legisiador e outras institul- g6es. Segundo uma deciséio do Tribunal Constitucional, a concrecio cons- titucional resultante 6, de certo modo, cadministrada> pelo BVerfG. cs) Por isso a Constituigio esté aberta, como é frequentemente dito, para o que € possivel no quaciro da Constituicéo. Hla pode hoje ser © PRIMADO DA CONSTITUIGAO 93 dro» significa ter consciéncia de cobrir e de formular um espago de actuagdo; o que fica dentro do quadro deve ser enten- dido como uma alternativa de entre as varias possiveis. Para que uma norma constitucional possa ser entendida como «qua- dro — padrao» de uma lei ordinaria nao nos chega a questiio de saber se foi encontrado o «meio a altura» ou o «ponto optimal», mas, sim, se a lei em concreto cai «dentro do quadro». No conceito de concretizagio pelo legislador est4 imanente, pelo contrario, uma tendéncia para a absorpedo do campo de actuacao no interesse da correcta concretizacéo da Constitui- cdo. Segundo a ideia de concretizacéio, a Constituigao penetra no tecido do direito ordindrio com impulsos juridico-constitu- cionais pormenorizados irradiantes; é feita no interesse de uma. execugio material e no preenchimento, tio perfeito quanto possivel, dos principios e consideragées de valor da Constituigao. Mas sao de esperar passos extremamente importantes no enri- quecimento da esséncia da Constituigéo. Assim, apresenta-se cheia de consequéncias a acepcio diferente dos dois conceitos, a qual esté ligada com os diferentes entendimentos da Cons- tituigéo de modo inevitavel. O resultado pode ser fixado com muitas teses: o entendi- mento do quadro, coberto pelo plano da Constituigéio, mantém uma ampla distancia relativamente 4 legislac&o ordinfria. Isto acentua a diferenga entre o direito constitucional, sempre limi- tado, e o sempre amplo (na maior parte das vezes com possi- bilidades alternativas) direito ordindrio. O entendimento do ordenamento juridico tem uma proximidade interna especffica relativamente ao conceito de primado da Constituigéo. Por isso, esse entendimento revela-se correcto para um ordena- mento constitucional que, desde logo, com a criagio da juris- prudéncia constitucional, ndo pode prescindir do facto de esta separagdo dever ser tomada tio exactamente quanto possivel. Preenchida pelo legislador de uma forma, e amanh& de outra. Além disso pode acontecer que: o que pareca de certo modo incontroverso na verifi- cagdéo da Constituicio represente uma alteracdo dela, 4 RAINER WAHL v 1. O Aambito e a delimitabilidade do primado da Consti- tuigéo tornaram-se num conceito dogm4tico problemAtico que, apesar de toda e rejeicio do Tribunal Constitucional, é sus- tentado frequentemente sob a designagio de «constituigéo par- cial» (Teilverfassung) como HERBERT KRUGER ("*) formu- Jou, em perfeita alusao 4 ideia de graduacgéo de normas — pela doutrina das chamadas constituigdes subconstitucionais (subk- onstitutionellen Verfassungen). No que concerne 4 constituicao econémica, o Tribunal Constitucional Federal rejeitou, desde a decisio de auxilio ao investimento (Jnvestitionshilfeurteil), e com permanéncia, o conceito de constituigéo parcial. Esta jurisprudéncia foi reforgada pela , 6 a viséo conjunta de «direitos fundamentais e preceitos juridicos constl- tucionais especificos>, relativamente ao , em Th. Oppermann, Verhandlung des 51. DIT I, 1976, pags. C-94 e seg. (") Assim expressamente J. H. Kaiser, Die Verfassung der dffen- tlichen Wohlfahrtspflege, in: FS Scheuner 1973, pigs. 241/243, 247 e seg.; criticamente como no texto, cfr. Wegener (nota 77), pags. 118 e seg.. Ver também abaixo na nota 89. (*) Os pressupostos para uma em direccio A , 100 RAINER WAHL e Direito simples é sistematicamente esquecida. Isto resulta de modo especialmente claro de outra passagem de Sholtz (*): Os artigos 12 (liberdade profissional) e 14 (garantia da propriedade privada) da Constituicéo a Constituicéo. © PRIMADO DA CONSTITUICAO 103 cional, como integragao vertical da lei na Constituicéo (*), Para variar a tese das conclusdes: num ordenamento constitucional com jurisprudéncia constitucional, a reciprocidade do direito constitucional e da lei ordinaria significaria nao apenas a inter- penetragdo reciproca de duas normes mas, também, a interpe- netragio das competéncias do Tribunal Constitucional e do legislador. 2. Um outro efeito de um entendimento constitucional com ampla jurisprudéncia constitucional é, ainda, mais impor- tante. A jurisprudéncia constitucional fez do direito constitu- cional um direito «perfeito», relativamente as instituigdes, ao Processo e ao cardcter da decisio da jurisprudéncia constitu- cional. A Constituigaéo foi colocada numa estreita ligagio com a actuacéo juridica. Em qualquer caso, na sua caracteristica como norma de controlo, a Constituigaéo tornou-se Lei irrevoga- vel. Assim, coloca-se com insisténcia a questéo j4 acima refe- rida: pode o Direito Constitucional abrir-se & tecnicidade, tio estreita, do entendimento «juridico» positivo da lei constitu- cional? Nao serao as opinides dominantes da discussio cons- titucional positivista de Weimar, sobre o caracter «politico» do direito constitucional, chamadas a desempenhar aqui um papel? Nao teré o Direito Constitucional de se manter na sua fungio dirigente programatica e postulatéria e, por filtimo, politica? Pode o Direito Constitucional abranger na sua norma- tividade e positividade as condigées precdrias da sua origem e preservacéo? Nao é por acaso que os problemas fundamentais citados ja foram objecto de discusséo enquanto problema do primado da Constituigéo. Assim, observou SCHEUNER em 1951 que, onde o conceito de Constituicéo nao se sobrepée a lei ordindria, (") D. Ch. Géldner, Verfassungsprinzip und Privatrechtenorm in der Verfassungskonformen Auslegung und Rechtsfortbildung, 1069, 125 seg. 127.— Por isso revela-se também problemAtico se a interpretacéio da, lei conforme 4 Constituicio for Kgada @ interpretacfo conforme 4 lei da Conatituicéio. Hesse (note 58), § 2 IV, 3, pag. 34, 104 RAINER WAHL é suplantada a ideia de Constituigéio como um preceito material, de dase inviolivel, do Estado e fica ameacada de dissolucio » existéncia do ordenamento constitucional, assim como a garan- tia da liberdade na sua epresentaciio positiva (**). Mais tarde Scheuner apreciou positivamente o primado da Constituigéo e considerou ambos os elementos da categoria e do contetido material na sua interpenetracgéo (*). O conceito de primado da Constituicio esté, como as histéricas consideragdes o tém demonstrado, nfo necessariamente ligado a um positivismo (**). Ele também nfo foi, na sua fase embrion4ria, ligado a uma provisiéo de contetdo material (°?). Na verdade, porém, trata-se de uma estreita ligacéo indissolfivel entre os dois elementos: o primado da Constituigéo 86 tem, em principio, sentido e signi- ficado na medida em que o conteiido da Constituigéo € fun- damental. Mas a problemftica mais profunda do Direito Cons- titucional nfo esté com isto, ainda, resolvida: para os dois elementos subsiste a fronteira invaridvel, na medida em que resulta do caracter da Constituigéo a sua fundibilidade com © ordenamento juridico-legal. O enigma do comego e a base imanente inalterdvel (*) permanecem, quer para a fundamen- (") U, Scheuer, Grundfragen des modernen Staates, in: Recht — Staat — Wirtschaft, vol. 3, 1951, pégs. 126/133. (") (Note 20), pags, 12 e seg.: «Verfassung als Vorordnung einer dauehaften, auf dem Grundkonsens des Gemeinwesens beruhenden Norm hdherer Ordnung>. (") © primado da Constituicfio nfo esté necessariamente Kgaxio ‘em todas as suas caracteristicas & escola de Viens, embora o seu mérito em tomo deste concelto néio posse ser diminuido; e antes de mais — evi- dentemente néio nos anos 20— nfo se deve menosprezar o consequente fundamento democrético desta doutrina. Para uma estreita ligacio entre ‘@ doutrina do primado da Constituic&o e a Escola de Viena, cfr. W. Henke, Vertassung, Gesetz und Richter, Der Stant $ (1964), pags, 493/487 e seg. (") Assim, P. Badura, Verfassung und Verfassungsgesetz, in: FS Scheuner, 1973, pags. 19/21. (") Para a questéo da origem e dos limites, ou seja, da impos- atbilidade de uma resposta, cfr. W. Henke, Staatsrecht, Politik und ver- fassungsgebende Gewalt, Der Staat 10 (1980), pags. 181/194 e seg. com © PRIMADO DA CONSTITUICAO 105 taciio da categoria solene e formal, quer para o contetdo juri- dico-material, ndo esclarecidos e nao esclareciveis. Também para a subsisténcia e sobrevivéncia do ordenamento constitucional vale o facto de que a realidade e o sucesso do Estado Constitu- cional no se baseiam, em primeiro lugar, em regulamentacéo Juridica e em instituigdes (°°). Com a no desprezivel questo da legitimidade, acentua-se o caracter «politicos do Direito Constitucional perante o restante ordenamento juridico. A Ciéncia do Estado niio pode contentar-se com a positi- vacdo do Direito Constitucional; ela renunciaria 4 sua tarefa se desprezasse esta problematica, considerando-a apenas como uma necessidade de manter o caracter fechado do sistema ou como uma construgio hipotética das normas fundamentais. Para que a Ciéncia do Estado se possa pronunciar sobre o problema da observancia da Constituicfio necessita de novas consideragées. As respostas de Weimar parecem nao serem mais suficientes. A Constituiggo de Weimar reagiu com mais seguranca na diagnose do que na terapia, limitando-se ao estreitamento posi- tivista e & posig&o especial do Direito Constitucional. Na época de Weimar as instituigdes da jurisprudéncia constitucional e o primado da Constituicgéo foram assunto altamente controverso € no trabalhado com seriedade. A doutrina do Estado do pés- positivismo de Weimar nao tem de se decidir entre possiveis entendimentos diferentes do direito constituconal materal, nem sobre padrées de controlo, quer como um programa nfo per- feito, quer como uma combinagio de programas. A Lei Funda- mental tem agora—e para esta tese final concorrem as dis- cussdes até aqui apresentadas — uma nova situagdo. Por isso, a relagéo metédica entre a dogmatica juridico-constitucional e a Teoria da Constituigéo, tem de ser pensada novamente. conclusies dignas de observacio para problemética, que aqui nos inte- reas, das relagdes do Direito Conatituoional como disciplina juridica e como pensamento da Constitulcéo enquanto Let Fundamental. (*) ‘Badura, (nota 97), pg. 21. 106 RAINER WAHL Nem tudo o que foi reconhecido em Weimar sobre es rela- des positives, como caracteristica do direito constitucional politico», pode ser adoptado como aspecto positive na com- preensio do Direito Constitucional e ser considerado pela juris prudéncia constitucional como decisivo.

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